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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PERDIDA / P. C. Cast e Kristin Cast
PERDIDA / P. C. Cast e Kristin Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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No instante em que Kevin passou entre os mundos, ele conseguiu sentir: aquela terrível e desesperadora sensação de estar perdido. O estranhamento que era o efeito do feitiço de Zoey – aquele que o havia atraído e depois devolvido para o seu próprio mundo – era avassalador. A sensação de estar irremediavelmente perdido era tão forte, tão urgente, que o fez lembrar de um dia de primavera quando tinha sete anos e havia ido fazer compras com sua mãe no Super Target da Rua Setenta e Um em Tulsa. Ele havia se afastado enquanto a mãe e as irmãs estavam olhando roupas femininas. Quando se deu conta, estava sentado no meio do departamento de eletrodomésticos chorando incontrolavelmente.
Essa era a mesma sensação terrível, só que agora não haveria nenhum funcionário amigável para reconfortá-lo enquanto ele esperava que sua mãe respondesse ao aviso de criança perdida que soava pelo alto-falante. Sim, ele era um vampiro completamente Transformado – um tenente no Exército Vermelho –, mas, definitivamente, havia momentos em que ele desejava que alguém o salvasse.
– Não é possível, Kev. Recomponha-se – ele murmurou para si mesmo.
Com um forte barulho de sopro, como do ar sendo expirado, o bizarro buraco entre os dois mundos desapareceu, deixando apenas uma sorveira, deslocada em seu verde abundante, no espaço onde o tecido entre os mundos havia rompido. Enquanto a linha de comunicação com sua irmã Zoey se fechava – juntamente com o mundo dela, no qual ele se sentiu mais em casa do que no seu próprio –, Kevin desejou mais do que qualquer coisa que pudesse retornar ao seu eu de sete anos, sentar e chorar para que sua mãe o salvasse.
Só que ele não era mais criança, e a sua mãe havia parado de ser mamãe anos atrás, então Kevin fez o que havia aconselhado a si mesmo: ele se recompôs. Para se reconfortar, ele tocou a bolsinha pendurada por uma tira de couro em seu pescoço e se tranquilizou por ela ter feito a viagem junto com ele. Conferiu o bolso interno da sua jaqueta para se certificar de que a cópia do diário de Neferet ainda estava ali, e então analisou o cenário ao seu redor.
Estava escuro, assim como quando ele deixou o mundo de Zo, e frio – embora não houvesse nenhuma neve cobrindo o gramado marrom do inverno. Ele olhou para a sua direita. Não havia um muro de pedra fechando a tumba da Grande Sacerdotisa Neferet. Havia apenas uma gruta e um pequeno lago meio congelado.
É porque neste mundo Neferet está livre e no comando. Só pensar isso fez com que o seu nível de estresse aumentasse.

 

 

 


 

 

 


Kevin estalou as juntas dos dedos enquanto levantava o olhar, seguindo a colina acima da gruta. Como esperado, carvalhos antigos formavam um pano de fundo para moitas enormes de azaleias adormecidas.

– Aqui com certeza é o Woodward Park, mas não aquele do qual eu acabei de sair – Kevin suspirou.

Ok, uma coisa de cada vez, é só o que eu posso fazer, mas eu preciso realmente fazer algo de fato, e não apenas ficar parado aqui estalando os dedos e me sentindo péssimo.

Kevin tinha um plano, mas era um que fazia o seu estômago se contrair de nervoso. Ele tinha que encontrar alguém e não tinha certeza se as coisas iam transcorrer muito bem. As pessoas eram as mesmas, mas perturbadoramente diferentes aqui, e ele não a via há mais de um ano.

E se ela não quisesse vê-lo de jeito nenhum? Ou pior, e se ela o visse, mas o rejeitasse – se recusasse a ver que ele era diferente dos outros e não o convidasse para entrar? Então que diabos eu vou fazer? E como eu vou aguentar se ela virar as costas para mim?

– Eu tenho que arriscar. Se eu quero tentar acertar as coisas, não tenho muita escolha. Preciso de aliados, e ela é a melhor pessoa em quem consigo pensar – Kevin disse a si mesmo enquanto atravessava o frágil gramado marrom em direção à calçada na Rua Vinte e Um que contornava o parque. Andando rapidamente, ele virou à direita, subindo a pequena ladeira até a fraca iluminação em frente à Utica Square.1

Era uma caminhada curta até as lojas e restaurantes sofisticados que rodeavam a praça, apesar de Kevin se pegar desejando que demorasse mais. O grande e antigo relógio de quatro faces da Utica, que ficava imponente na frente da loja Russell Stover Candies, dizia que já passava da meia-noite, mas o local estava fervilhando com atividade. Desde que Neferet havia assumido o controle de Tulsa e da maior parte do Meio-Oeste, o horário comercial dos humanos havia mudado drasticamente para refletir o fato de que eram os vampiros que mandavam, e não os humanos. As lojas da Utica Square – assim como qualquer outra loja ou restaurante em Tulsa e na área ao redor que os vampiros poderiam querer frequentar – abriam ao anoitecer e fechavam ao nascer do sol.

Havia, é claro, algumas poucas lojas que abriam para os humanos durante o dia – a maioria delas mercearias, postos de gasolina e que providenciavam outras necessidades, mas, comparadas aos negócios frequentados por vampiros, elas eram pobres lembranças de um passado em vias de extinção.

Nesta fria véspera de Natal, a Utica Square estava enfeitada com luzes – não em comemoração ao Natal, mas sim porque Neferet gostava que tudo parecesse brilhante, reluzente e bonito na superfície, não importando o que acontecia logo abaixo das belas aparências.

Vampiros e novatos azuis passaram por Kevin na calçada, mal olhando para ele, o que o tranquilizou. Se um alerta tivesse soado quando ele, General Dominick e outros do seu pelotão do Exército Vermelho foram dados como desaparecidos, os Guerreiros Filhos de Erebus teriam espalhado cartazes em todos os lugares públicos de Tulsa, e Kevin definitivamente seria interrogado.

Os poucos humanos que estavam na rua também reagiram normalmente a ele. Não fizeram contato visual e abriram bastante espaço para que ele passasse, mudando de calçada ou disparando para dentro de qualquer restaurante ou loja por perto, preferindo evitá-lo e também se esquivarem da possibilidade de ele estar com fome o suficiente para agarrá-los e fazer um lanche rápido. Embora a postura “oficial” de Neferet fosse a de desencorajar vampiros vermelhos de se alimentar de humanos em público, a verdade era que a única razão pela qual a Grande Sacerdotisa queria que o Exército Vermelho demonstrasse algum autocontrole era que a alimentação em público costumava causar pânico. Neferet considerava o pânico humano feio e motivo de distração. Então, basicamente, se acontecesse... bem, aconteceu. Normalmente não havia nenhuma consequência para os vampiros, exceto uma pequena advertência.

Kevin costumava ficar perturbado com o fato de ele óbvia e justificadamente apavorar os humanos, mas naquela noite isso o tranquilizou. Ele sabia que o seu cheiro estava diferente – ou, mais especificamente, não estava com cheiro de túmulo – desde que Nyx havia concedido a ele sua humanidade de volta, mas as pessoas de Tulsa estavam tão acostumadas com monstros na noite que não chegavam perto o bastante para notar que ele não era mais o bicho-papão.

Kevin não baixou a guarda, porém. Ele pensou em pegar o ônibus até a estação onde o seu carro estava estacionado, mas só imaginar a possibilidade de encarar novatos vermelhos esfomeados e vampiros vermelhos curiosos deu um aperto no estômago. Que diabos ele iria dizer a eles quando o inevitável acontecesse – quando eles percebessem que ele havia se Transformado irreversivelmente? Ele precisava de tempo e também de um plano.

Mas, principalmente, Kevin precisava de ajuda.

Ele poderia facilmente andar o quarteirão até a Morada da Noite, mas não encontraria nenhuma ajuda por lá, e ele não tinha nenhuma vontade de voltar para esta Morada da Noite. Não agora. Não depois de ele ter passado algum tempo na outra Morada da Noite, onde a sua irmã era a Grande Sacerdotisa e os humanos eram bem-vindos como amigos, não sofriam abusos sendo escravizados e não eram considerados geladeiras de sangue ambulantes.

Havia apenas um lugar para onde Kevin queria ir, e apenas uma pessoa que ele queria ver. De novo, sua mão tocou o volume que estava debaixo de sua camisa perto do coração. Ele pressionou a mão contra a pequena bolsa de couro com miçangas feita a mão, encontrando consolo na sua presença.

Kevin atravessou a Utica Square até os fundos do centro de compras com aparência de vilarejo, passando pela Fleming’s Steakhouse e pelo Ihloff Salon até chegar ao estacionamento, mais escuro e mais silencioso. Estava cheio, então não levou muito tempo até Kevin encontrar o que precisava.

Um homem sozinho, humano e bem-vestido, andava apressado entre os carros, em direção às vagas de estacionamento na frente dos condomínios no estilo de vilas italianas, que se erguiam ali como se um pedaço do Mediterrâneo tivesse sido deslocado da Costa Amalfitana e se estatelado no centro de Tulsa.

Silenciosamente, Kevin o seguiu. Quando o apito do alarme na chave do carro soou, desbloqueando o Audi SUV, Kevin saiu das sombras para encarar o homem.

– Boa noite – Kevin disse.

Os olhos do homem se arregalaram e o seu rosto ficou pálido feito osso. Ele estendeu as sacolas nas suas mãos, em parte como oferenda, em parte como escudo.

– Po-por favor! Eu tenho uma família em casa. Por favor, não me morda. Eu dou tudo que você quiser, mas os meus filhos precisam de mim, e eu não quero morrer.

O estômago de Kevin se revirou. Ele odiava isso. Odiava que apenas a imagem da sua Marca de vampiro vermelho instantaneamente criasse uma sensação de pavor e pânico nos humanos. Kevin encarou o homem nos olhos e falou vagarosa e gentilmente:

– Eu não vou machucá-lo. Você não precisa ter medo – ele disse, e o homem se acalmou. – Você não está sob a proteção de um vampiro? – Kevin perguntou ao ver a mão sem marcas do homem. Os vampiros azuis haviam tatuado a lua crescente nas mãos de humanos sob a sua proteção para que os vampiros vermelhos famintos soubessem que eles estavam fora do cardápio.

– Não de um vampiro específico – o homem respondeu como se estivesse em um sonho quando o poder da mente de Kevin o dominou, deixando-o imóvel e incapaz de fazer qualquer coisa, exceto o que Kevin ordenasse.

– Mas você faz algo para se proteger?

O homem assentiu, sonolento.

– Eu sou o dono do Harvard Meats. Na esquina da Quinze com a Harvard.

– Ah, claro. Eu conheço o lugar. – E Kevin realmente conhecia. Aquele homem não precisava estar sob a proteção de um vampiro específico porque o seu negócio era uma proteção por si só, já que era o açougueiro que fornecia as melhores carnes da cidade para a Morada da Noite e todos os seus restaurantes favoritos. – Está bem, eu quero que você faça o seguinte. Dê as chaves do seu carro para mim. Você está perto de casa?

O homem assentiu novamente.

– Eu moro na esquina da Rua Treze com a Columbia.

– Ótimo. Você vai precisar ir andando para casa. Amanhã registre uma queixa do desaparecimento do seu carro. Diga que você acha que foram garotos do ensino médio... da Union – Kevin acrescentou após uma breve reflexão. Ele tinha estudado na Broken Arrow. BA e Union eram rivais conhecidos, e ele teve que disfarçar o seu sorriso por essa pequena vingança pelo fato de a Union ter vencido o último campeonato estadual de futebol americano.

– Vou registrar a queixa de furto. Por garotos da Union. Amanhã – o homem repetiu automaticamente, entregando as chaves a Kevin.

Kevin hesitou, chamando o homem de volta quando ele se virou, movendo-se mecanicamente para começar a caminhar até sua casa.

– Ei, ahn, você precisa de alguma coisa do carro?

O homem piscou os olhos para ele, como se não tivesse entendido a pergunta.

– Tem alguma coisa no seu carro que você precisa levar para casa? – Kevin reformulou a pergunta, olhando bem nos olhos do homem, aumentando o seu controle sobre ele.

– Sim. O meu laptop – o homem respondeu imediatamente, embora sua voz ainda tivesse um tom sonolento. – E mais alguns presentes para as crianças.

– Pegue-os – Kevin disse. – Rápido.

O homem se mexeu rapidamente, abrindo a porta traseira e retirando um laptop fino e uma sacola cheia de pacotes embrulhados. Então ele se virou para Kevin, esperando receber uma ordem sobre o que fazer em seguida.

– Vá para casa agora. Rápido. Não fale com ninguém. Se você for parado por um Guerreiro, diga que está em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Eu estou em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Mais uma coisa. Este vai ser o melhor Natal da sua vida. Na verdade, vai ser o melhor ano da sua vida. Você vai mostrar para a sua mulher e os seus filhos o quanto você os ama todo dia, e você vai se certificar de que você e a sua família são valiosos para a Morada da Noite escolhendo cortes especiais de carne exclusivos para Neferet. – Kevin fez uma pausa, refletindo, e então continuou: – Prepare a carne marinada em um molho de vinho tinto. Neferet realmente gosta de vinho tinto. Entendido?

– Entendido.

– Ok, agora vá. Rápido!

O homem saiu apressado, apertando o laptop e a sacola de presentes contra o peito como se eles fossem feitos de ouro.

Cantarolando baixinho o grito de guerra da Broken Arrow para si mesmo, Kevin entrou no Audi. Ele se demorou um minuto apreciando o interior agradável antes de dar a partida e sair da Utica Square, e então ele estava no seu caminho até a estrada Muskogee Turnpike, que ficava a um pulo do centro de Tulsa. Quando entrou na estrada em direção ao sul, ligou a rádio 98.5 e tentou deixar a voz anasalada de Blake Shelton com seu sotaque familiar de Oklahoma acalmar seus nervos.

Kevin ainda não sabia muito bem o que faria, mas tinha certeza de quem precisava encontrar para conseguir ajuda e descobrir isso.

O trajeto de uma hora e meia passou voando, e logo Kevin estava saindo da rodovia e serpenteando por uma estrada antiga de duas pistas até chegar ao caminho de terra e cascalho que dividia campos de lavanda adormecidos e finalmente acabava em uma casa de pedra familiar com uma ampla varanda frontal.

O seu estômago deu reviravoltas de nervoso quando ele estalou os dedos e levantou a mão para bater na porta.

Kevin hesitou. E se ela não o convidasse para entrar?

Ele engoliu aquele pensamento horrível no instante em que a porta se abriu, antes mesmo de precisar bater.

– Oi, Vovó Redbird! Sou eu, Kevin.

O único sinal de choque que a mulher deu foi um leve rubor na pele marrom de suas bochechas.

– Já faz um tempo que não nos vemos, mas eu ainda reconheço a minha própria família – Vovó disse. Ela não fez nenhuma menção de convidá-lo para entrar. – O que eu posso fazer por você, Kevin?

– Eu preciso de sua ajuda. Na verdade, eu preciso de mais do que sua ajuda. Eu preciso de um plano. É muita coisa para explicar. Posso entrar, por favor?

– Não fico feliz em dizer isso, mas não. Você não pode entrar. Vejo que você completou a Transformação.

– Sim, meses atrás. Sinto muito por não ter vindo vê-la até hoje, mas você sabe por que não vim. Eu tinha que ter certeza de que conseguiria me controlar. Bom, agora tenho certeza, e a razão de eu ter certeza é inacreditável.

– Desculpe, Kevin. Hoje não é o meu dia para morrer. E, mesmo que fosse, eu não quero encontrar a Grande Deusa depois de o meu neto me transformar em um monstro devorador. Não. Por favor, vá embora, meu filho. Você está partindo o meu coração, e ele já está em mais pedaços do que eu posso contar.

Triste, Vovó Redbird começou a se afastar lentamente da porta.

– Espere, Vovó. Por favor, primeiro olhe isto aqui. – Kevin tirou a bolsinha medicinal do pescoço e a estendeu na frente da Vovó Redbird para que ela pudesse ver.

Ela franziu o cenho, confusa.

– Isso é meu. Mas eu estou com ela... – Ela ergueu a mão automaticamente, levando-a até a tira de couro que prendia uma bolsinha medicinal idêntica ao redor do seu pescoço.

– Vovó, você deu isso para mim.

– Não, Kevin. – Ela levantou a idêntica bolsa com miçangas. – Esta é a minha. Essa daí, bom, é uma cópia estranhamente parecida.

Kevin não podia cruzar a barreira da porta a menos que fosse convidado a entrar, mas a bolsinha definitivamente podia.

– Aqui, olhe só. Você vai ver. – Ele a atirou na direção dela, e Vovó a pegou facilmente.

Ele observou enquanto ela abria a bolsinha e depositava o conteúdo na palma de sua mão. Havia um cristal de ametista roxo e um pedaço de turquesa bruta lapidada em forma de um perfeito coração, assim como um ramo de lavanda, uma pena do peito de uma pomba e um punhado de terra vermelha. A última coisa que caiu da bolsa foi uma tira de papel enrolado com cheiro de lavanda.

Com mãos firmes, Vovó Redbird desenrolou o papel para revelar três palavras, escritas na sua forte letra cursiva.

Confie em Kevin.

Os sagazes olhos castanhos da Vovó encontraram os dele.

– Onde você conseguiu isto?

– Como eu disse, foi você que me deu. Em outra versão do nosso mundo. Depois que Zoey me levou para lá e que Aphrodite e Nyx restauraram a minha humanidade. Vovó, é uma longa história, mas eu juro pela memória de Zoey que você realmente me deu isso e me falou para procurá-la e mostrar isso a você. Eu preciso de você, Vovó. Eu não sei mais aonde ir nem quem devo procurar. Por favor, você vai me deixar entrar? Eu não vou te machucar. Eu nunca vou te machucar.

Sylvia Redbird analisou Kevin cuidadosamente. Então ela abaixou os olhos novamente para as três palavras escritas com sua própria letra no papel que ela mesma fez na fazenda de lavandas que dava plantas tão perfumadas e únicas que os vampiros a deixavam em paz – desde que ela continuasse fornecendo os produtos de lavanda que Neferet tanto apreciava.

– Kevin, eu gostaria de convidá-lo a entrar na minha casa. – A idosa deu um passo para trás, segurando a porta aberta para o seu neto.

Ele entrou na casa e inspirou fundo o ar com aroma de memórias de infância. Através das lágrimas inundando os seus olhos, ele abriu o sorriso para sua avó.

– Estou sentindo cheiro de cookies de chocolate e lavanda?

– Está sim, com certeza. Quer alguns?

– Mais do que qualquer outra coisa do mundo – Kevin respondeu. – Mas, primeiro, por favor, posso te dar um abraço?

– Ah, u-we-tsi, nada me deixaria mais alegre!

Kevin abriu os braços, e a sua pequena, adorável e linda avó se adiantou no seu abraço. E de repente ele se viu soluçando enquanto ela o apertava e acariciava suas costas com carinho, e ele liberava a tristeza, a solidão e o arrependimento de ter deixado sua irmã e voltado para um mundo cheio de batalhas e temores.

– Vai ficar tudo bem agora, u-we-tsi. Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Eu estou aqui...

1 Espécie de shopping ao ar livre de Tulsa. (N.T.)


2

Outro Kevin

– Vovó, estes cookies são os melhores entre todos os mundos!

Vovó Redbird sorriu carinhosamente para Kevin.

– Você devolveu a minha alegria em prepará-los. Eu não tenho ideia de como Neferet os descobriu, mas alguns meses atrás seus capangas do Exército Azul apareceram aqui, insistindo que eu entregasse um pedido semanal de duas dúzias de cookies... para a própria Grande Sacerdotisa. Eu achei estranho, mas isso de fato ajudou a garantir a minha segurança, e enquanto eles estavam aqui também fizeram uma encomenda permanente dos meus sabonetes e cremes... – ela perdeu as palavras quando a compreensão floresceu no seu rosto. – Você fez isso!

Kevin deu de ombros, um pouco envergonhado, enquanto pegava outro cookie.

– Bem, sim. Todo mundo sabe que a sua lavanda é a melhor de Oklahoma. Os seus sabonetes e cremes são incríveis e os seus cookies são especiais e deliciosos. Eu pensei que, se Neferet soubesse sobre eles, iria querer. Ela é daquele tipo que adora coisas que ninguém mais tem, e ninguém tem a sua receita.

– Eu não uso receita.

– Exatamente! São coisas que só você pode fazer. Então, eu mencionei isso para um Guerreiro que é companheiro da Sacerdotisa e que leva o lanche da noite para Neferet. Eu sabia que ela só precisava experimentar um cookie e já ficaria fisgada. Aparentemente, Neferet tem uma queda por doces. Os sabonetes e cremes foram um bônus.

Vovó Redbird não falou nada por um bom tempo. Ela observou o seu neto como se ele fosse um enigma que ela tivesse acabado de desvendar.

– Você já era diferente. Mesmo antes de ser arrastado para aquele Outro Mundo.

Kevin assentiu, falando com a boca cheia de cookies.

– Eu ficava pensando que isso iria mudar... que algum dia eu iria acordar e não seria mais capaz de controlar a minha fome de jeito nenhum. Mas isso não aconteceu.

Vovó colocou a sua mão calejada no rosto dele.

– Ah, u-we-tsi, queria que você tivesse vindo me procurar quando estava pensando nisso.

– Eu não consegui, Vovó. Eu tinha muito medo de me transformar em um monstro. – Kevin estava com a cabeça baixa, encarando fixamente a antiga mesa de madeira. – Eu não podia correr o risco de te machucar.

– Então, mesmo de longe, você arrumou um jeito para que eu ficasse segura... para que eu fosse uma das protegidas.

Kevin assentiu.

– Obrigada – ela disse simplesmente.

Quando Kevin teve certeza de que não ia se dissolver em lágrimas escandalosas de novo, ele encontrou os seus olhos castanhos gentis e sorriu.

– Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter perdido Zoey. Eu sempre soube que ela era a sua favorita.

– Zoey e eu éramos próximas desde que ela nasceu, mas isso acontece muito entre avós e netas. Isso não significa que eu a amasse mais do que eu amo você.

Kevin sentiu lágrimas enchendo seus olhos e ele piscou com força para impedi-las de transbordarem.

– Mesmo?

– Dou minha palavra. Era mais fácil ser próxima de Zoey Passarinha. Ela queria cozinhar comigo, trabalhar no jardim, aprender os costumes do nosso povo.

– E eu queria jogar videogames e contar piadas de peido com os meus amigos – Kevin disse com uma ironia amarga.

Vovó Redbird sorriu com afeto e compreensão.

– Você simplesmente queria ser um menino. Não há nada de errado nisso.

– Eu sei que não posso ocupar o lugar deixado por Zo, mas quero que a gente fique mais próximo. Eu... eu preciso de você, Vovó.

A idosa apertou a mão do neto.

– Eu estou aqui por você. Eu sempre vou estar aqui por você. Você nunca mais vai ficar sozinho de novo, meu u-we-tsi.

Pela primeira vez desde que percebeu que ele precisava voltar para o seu mundo – teria que de alguma forma liderar a Resistência para derrotar Neferet –, Kevin sentiu uma parte do peso terrível que tinha se instalado sobre o seu corpo se evaporar.

– Obrigado, Vovó. Isso torna tudo melhor.

– Fico feliz. Agora, eu tenho algumas perguntas que talvez você possa me ajudar a responder.

– Com certeza! Pode perguntar enquanto eu devoro os cookies.

– Ótima ideia. Então, você estava me contando que a nossa Zoey Passarinha está viva em um mundo alternativo, do qual você acabou de voltar?

– Sim. Ela está. Bom, ela não é exatamente a nossa Zo, mas é bem parecida. Tão parecida quanto aquela Vovó Redbird é parecida com você, quase exatamente igual. É estranho. Legal, mas estranho.

Vovó se sentou diante dele, servindo-se de uma xícara de chá de lavanda cheiroso do bule de ferro desgastado pelo tempo que usava desde que Kevin se entendia por gente.

– Deixe-me ver se compreendi direito. Naquele mundo Zoey é a Grande Sacerdotisa no comando. Não há Neferet e...

– Neferet está lá – Kevin a interrompeu. – Ela está magicamente trancada dentro da gruta no Woodward Park.

– Certo – Vovó Redbird assentiu. – Você disse que ela se tornou imortal?

– Sim. Na verdade, eu não entendi muito bem essa parte, mas acredito em Zo e sua turma. Eles disseram que ela tentou se transformar na Deusa de Tulsa e simplesmente surtou pra caralho, matou um monte de gente... humanos e vampiros. Ahn, desculpe pelo palavrão, Vó.

Ela fez um gesto indicando que as desculpas eram desnecessárias.

– Às vezes é preciso usar uma linguagem forte. A sua descrição é válida.

– Obrigado, Vó. – Kevin apontou para a cópia do diário que Zoey havia lhe dado antes que ele fosse embora do mundo dela. – Zo me disse que isso explica muito sobre o passado de Neferet e as suas motivações. Ela e seus amigos descobriram que a história de Neferet é um ponto fraco dela. Zo acha que talvez a gente possa encontrar algo aí que possa nos ajudar a derrotá-la nesse mundo também.

– Isso faz sentido. Então, Neferet está sepultada. Zoey está no comando. E ela abriu a Morada da Noite de Tulsa para os humanos? De verdade?

– Sim! Você precisava ver... garotos humanos estavam realmente brincando com novatos vermelhos e azuis na neve. Era bizarro, mas muito legal, e Zo e a sua turma... eles dizem que são a Horda Nerd... – Kevin fez uma pausa quando sua avó riu como uma garotinha. – Ela fez a Horda Nerd iniciar programas de estudantes humanos, como o da Morada da Noite de Tulsa, por todo o país. Aparentemente, está indo muito bem, por isso ela ficou super preocupada quando ficou parecendo que Neferet podia estar se movimentando. Zoey sabia que os humanos seriam o segundo alvo dela.

– Porque a própria Zoey seria o primeiro alvo.

– Sim. Elas são inimigas. Hum, Vó, quando eu expliquei a Zo como ela morreu aqui, ela disse que tinha certeza de que Neferet a matou, porque no mundo dela Neferet matou dois professores vampiros exatamente do mesmo jeito, apesar de ela ter encenado os assassinatos para parecer que o Povo da Fé era o responsável.

Vovó Redbird ficou pálida com a menção à morte repulsiva de sua neta. Kevin estendeu a mão sobre a mesa para apertar a mão de sua avó.

– Está tudo bem, Vó. Só precisa lembrar que ela ainda está viva. Ela só não está mais neste lugar.

A velha senhora assentiu rapidamente e deu um gole no chá, tentando se recompor.

– O plano de Neferet em ambos os mundos era criar uma guerra entre humanos e vampiros?

– Sim.

– Zoey e a sua... Horda Nerd foram responsáveis por conseguir detê-la nesse outro mundo?

– Sim – Kevin disse.

– Muito bem, Zoey Passarinha – Vovó Redbird disse baixinho. – Esse outro mundo... o mundo de Zoey... parece um lugar encantador.

– E é. Decorações de Natal por toda parte... humanos e vampiros se misturando... Vovó, eles até transformaram a estação de Tulsa em um restaurante descolado gerenciado por vampiros. Os humanos lotam o lugar toda noite. – Kevin rapidamente decidiu deixar de fora o detalhe complementar de como vampiros e novatos vermelhos do seu mundo tinham destruído o restaurante e comido todo mundo. Vovó não precisava dessa tristeza.

– É mesmo? – ela perguntou, maravilhada.

– Sim! Zo inclusive me contou que eles têm uma feira de produtores nos jardins da Morada da Noite toda semana, e o campus é completamente aberto aos humanos para isso.

– Isso é realmente mágico – ela comentou. – Mas por que você voltou para cá?

– Eu tive que voltar. Eu sou a Zoey.

– U-we-tsi, você vai ter que se explicar melhor do que isso.

– Vó, assim como a Zo naquele mundo, eu tenho afinidade com todos os cinco elementos.

Ela arregalou os olhos com a surpresa feliz.

– Oh, Kevin! Essa é uma notícia incrível.

– Bem, sim e não. Sim, porque é legal e um sinal das boas graças de Nyx. Ei, eu quase esqueci de contar! A tatuagem da Transformação completa de Zo é igual à minha. Só que a dela é azul, claro, mas ela também tem um monte de outras tatuagens, como nas palmas das mãos, em volta da cintura, nas costas e até nas clavículas.

– Ela foi até um tatuador? Parece lindo, mas certamente deve ter levado bastante tempo para fazer.

– Não, Vó, Nyx concedeu a ela essas tatuagens como um sinal de que ela estava no caminho certo – Kevin suspirou. – Eu meio que espero que Nyx possa me ajudar dessa mesma forma. Pelo menos eu saberia que estou fazendo a coisa certa.

– E o que é essa coisa certa que você quer fazer?

Kevin não hesitou.

– Isso me traz à parte não tão incrível. Como eu tenho afinidade com todos os cinco elementos assim como Zo, isso significa que eu também tenho as responsabilidades dadas pela Deusa que ela herdou. Vó, eu tenho que derrotar Neferet, assim como Zo fez no mundo dela, para recuperar o equilíbrio entre Luz e Trevas.

Vovó Redbird não perdeu o compasso.

– E como você planeja fazer isso?

– Não tenho ideia, Vovó. Não tenho ideia. – Ele abriu o sorriso atrevidamente para ela. – Mas aposto que você pode me ajudar a pensar em um plano.

– Se eu não posso, sei quem pode. Kevin, o que você sabe sobre a Resistência?

– Eu sou um tenente no Exército Vermelho de Neferet. A nossa única missão neste momento é encontrar e eliminar todos os membros da Resistência.

– O fato de você ser um tenente pode ajudar. Você tem acesso a informações, como talvez o local onde Neferet acredita que a Resistência está se escondendo, ou como eles conseguem levar pessoas clandestinamente para fora do Meio-Oeste até um lugar seguro?

– Não exatamente. A estratégia fica a cargo de Neferet, os generais do Exército Azul e os Guerreiros Filhos de Erebus. Até nós, vampiros vermelhos que conseguem manter um controle suficiente da nossa humanidade para nos tornarmos oficiais, não somos incluídos no planejamento. Basicamente, os Guerreiros de Neferet nos usam como se fôssemos armas irracionais. Quando eu completei a Transformação, escutei o General Stark falando sobre o Exército Vermelho. Ele nos chamou de descartáveis.

– O General Stark parece desprezível.

– Neste mundo, ele é mesmo. No mundo de Zo, ele é o seu Guerreiro Juramentado e companheiro... um cara realmente bacana.

Aquilo deixou Vovó Redbird pensativa.

– E o General Stark não está errado. Tudo que ele tem que fazer é apontar uma direção para o Exército Vermelho e nos soltar. – Kevin estremeceu. – A maioria dos vampiros vermelhos são máquinas irracionais de comer, feitos para devorar tudo no seu caminho.

– Na verdade, isso é bom para nós – Vovó disse.

– Ahn? – Kevin falou, soando muito como a sua irmã.

– Bom, se o General Stark é um bom rapaz no mundo de Zoey Passarinha, então lá no fundo há bondade nele. Talvez ele possa ser convencido. E você é um oficial. Você tem acesso para ir e vir facilmente na Morada da Noite, certo?

– Sim, imagino que sim, mas só entre o anoitecer e o amanhecer. Durante o dia, nós somos todos banidos para os túneis embaixo da estação.

– Mas ninguém na Morada da Noite... nenhum vampiro... iria imaginar que você está do lado da Resistência.

Kevin se endireitou na cadeira.

– Você está certa, Vovó! Isso nem passaria pela cabeça deles. Eles normalmente não incluem oficiais do Exército Vermelho nas reuniões estratégicas, mas eles não iriam notar se eu estivesse lá, parado por perto esperando receber ordens – ele sorriu. – Eu posso descobrir todo tipo de coisa! – ele hesitou, e o seu sorriso esvaneceu. – O problema é que eu não estou com o cheiro certo, e eles iriam reparar nisso.

Os olhos da Vovó brilharam maliciosamente.

– Deixe que eu cuido disso, u-we-tsi.

– Eca, ok. Então, este é o nosso plano? Você vai me fazer ficar fedido de novo, e eu vou espionar na Morada da Noite e descobrir coisas sobre a Resistência? Vamos ter que descobrir onde eles estão se escondendo antes que o exército os encontre, e avisar para a Resistência tudo que eu descobrir.

– Encontrá-los não é um problema.

– Vovó! Você faz parte da Resistência?

– Como Martin Luther King Jr. resumiu tão bem, “A pior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas sim o silêncio das pessoas boas”. Eu não serei silenciada.

– Caraca, Vó, você faz parte da Resistência!

– Tenho orgulho de dizer que sim, eu faço.

– Eles matariam você se a pegassem. Nossa, Vó. Neferet não ia se importar que você é uma idosa. Você iria morrer – Kevin afirmou.

– Estou ciente disso, mas, Kevin, se eu ficasse parada e não fizesse nada, seria o meu espírito que morreria.

Kevin suspirou pesadamente.

– O meu também. É por isso que eu voltei. Eu tenho que fazer algo, e acho que sou o único que pode fazer isso.

– Isso é muito corajoso da sua parte, u-we-tsi.

– Não, fazer a coisa certa não é corajoso. É só o que pessoas decentes fazem – Kevin respondeu.

– De fato.

– Quero que você me leve até eles – Kevin disse com firmeza.

– Eles?

– A Resistência. Quero falar com eles, e contar o que aconteceu comigo no mundo de Zo.

– Não sei se isso vai funcionar. Eles podem achar que é apenas um inimigo quando olharem para você – Vovó refletiu. – O que pode funcionar melhor é você espionar, contar para mim, e eu levarei as informações até eles.

– Isso seria ótimo, se não fosse por Aphrodite – Kevin falou.

– Aphrodite? A deusa grega do amor?

Kevin sorriu com ar travesso.

– Aposto que ela pensa que é uma deusa, mas imagino que, tecnicamente, ela é uma Profetisa, e não uma deusa.

– Filho, isso não faz sentido.

– Desculpe, Vó. É simples, na verdade. No mundo de Zo, há uma Profetisa de Nyx chamada Aphrodite que tem o poder de conceder segundas chances. Por causa dela, nenhum dos novatos ou vampiros vermelhos perdeu a sua humanidade. Ela está neste mundo também.

– Ah, Grande Deusa! Se isso pudesse acontecer neste mundo também! – Vovó exclamou.

– Sim, se a humanidade dos soldados do Exército Vermelho voltar, Neferet perde as suas armas – Kevin afirmou. – No mundo de Zo, Aphrodite e eu temos uma conexão. – Ele fez uma pausa, ignorando o fato de suas bochechas estarem corando muito. – Ela, hum, falou para eu encontrar a versão dela neste mundo, e que ela me amaria também.

Vovó ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. Kevin limpou a garganta e continuou:

– Além disso, Zo falou que eu tenho que montar o meu próprio círculo. Basicamente, a minha versão da Horda Nerd que ela tem. Eu já sei que pelo menos dois dos vampiros que preciso recrutar são azuis... e que eles estão na Morada da Noite neste exato momento.

– Mas, u-we-tsi, a Resistência está cheia de vampiros azuis. Você não pode simplesmente usá-los para o seu círculo?

– Acho que sim, mas a Horda Nerd de Zo é diferente, assim como ela. Assim como eu. Eles também têm afinidades com os seus elementos.

– O que torna o círculo dela mais poderoso que um círculo comum – Vovó observou.

– Sim. Você entende por que eu tenho que fazer mais do que apenas espionar para a Resistência?

– Entendo. E porque eu entendo isso, tenho muito mais esperanças com relação às nossas chances de sucesso do que eu tinha apenas alguns minutos atrás. – Vovó Redbird deu uma olhada para fora da janela da frente. – O amanhecer já está deixando o horizonte rosa. Vamos dormir, u-we-tsi, e amanhã... amanhã nós vamos até a Resistência.

– Está certo, Vovó – Kevin disse corajosamente antes de enfiar outro cookie na boca e pensar: “Ah, que inferno...”.


3

Outro Kevin

– Sap-a-lup-a? Sério, Vó? Isso aqui é bem no meio do nada – Kevin disse quando sua avó indicou a ele a saída para a rodovia Turner Turnpike.

– Kevin, pronuncie direito.

– Certo. Sapulpa. Mesmo assim... sério, Vó? Por que aqui?

– Porque, como você disse... é no meio do nada. O que significa que é um excelente lugar para o quartel-general da Resistência, já que Sapulpa fica a apenas uns trinta minutos do centro de Tulsa. Perto o bastante para ser útil, mas ainda uma cidade rural com nada que possa interessar os vampiros, com a exceção de vários ranchos que plantam a melhor alfafa do estado.

– Então, eles têm o suficiente para serem protegidos por Neferet, mas não o bastante para despertar o interesse dela para fazer uma visitinha nem nada do tipo.

– Exatamente. Vire à esquerda no próximo semáforo. É a South Hickory. Então siga essa estrada por cerca de um quilômetro e meio até a gente passar por algumas placas. Depois da tabacaria, procure pela Lone Star Road e vire à direita.

– Para onde diabos você está nos levando, Vó?

Ela sorriu angelicalmente.

– Para um desses adoráveis e pequenos ranchos de alfafa, u-we-tsi.

Eles serpentearam pela Lone Star Road, passando por campos verdejantes, alguns deixados ociosos em preparo para a plantação da primavera, e outros já verdes com o trigo de inverno. Como é de praxe em Oklahoma, as casas alternavam-se entre quase mansões e trailers caindo aos pedaços, e então mais mansões.

– Ei, olhe só, Vó. É o trio perfeito dos pobretões de Oklahoma: uma casa de trailer, uma piscina portátil e um colchão velho que aqueles pitbulls estão usando como cama... tudo em um só quintal.

Vovó Redbird franziu o nariz.

– Acho que são boxers, não pitbulls, Kevin.

– Erro meu. É isso que dá forçar estereótipos.

– Bem, definitivamente foi um bom palpite. Vá devagar agora. Está vendo à sua direita, onde aquela cerca branca bonita começa?

– Sim.

– Há um portão logo em frente. Pare ali, abaixe o vidro e aperte o botão do interfone. Deixe que eu prossiga com o resto.

Kevin seguiu as instruções, virando em uma entrada bloqueada por um grande portão de ferro. Ele deu uma rápida olhada em volta enquanto abaixava o vidro e viu que a aparência tranquila e organizada do pequeno rancho não passava de uma fachada.

O portão, assim como a cerca branca bem-cuidada, era cheio de cabos elétricos grossos. O olhar de Kevin seguiu os cabos.

– É uma cerca elétrica poderosa, Vó.

– Sim, estou ciente disso. Aperte o botão do interfone, por favor.

Kevin apertou o botão branco perto do interfone e uma luzinha vermelha se acendeu, chamando atenção para a câmera de alta tecnologia apontada na direção deles.

– Quem é? – saiu do interfone uma voz incisiva de mulher, com uma sinfonia de cães ganindo ao fundo.

– Sylvia Redbird. Ouvi dizer que você tem uma ninhada de cachorrinhos. Gostaria de dar uma olhada neles, se você ainda tiver algum para vender.

Houve uma pausa e então ela disse:

– Estou vendo um vampiro vermelho com você.

Vovó Redbird deslizou para o lado e enfiou sua cabeça ao lado da de Kevin.

– Sou eu, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Vampiros vermelhos não são bem-vindos na minha propriedade, muito menos na minha casa.

– Este vampiro vermelho é diferente. Eu dou a minha palavra – Vovó afirmou.

– É claro que você fala isso. Você está sob o controle dele. Não é não. Você não pode entrar na minha propriedade. Você não pode entrar na minha casa.

– Tina, mande Babos até aqui.

– Cachorros odeiam vampiros vermelhos. Ela vai rosnar, latir e atiçar todos os outros – a voz metálica respondeu.

– Ela vai me adorar. Eu juro, senhora – Kevin disse.

– Você vai ficar feliz por ter corrido esse risco – Vovó acrescentou.

– Está bem. Mas, quando ela começar a latir e ficar louca, eu vou ficar muito chateada com você, Sylvia. E eu estou levando a minha .45 comigo. Um movimento em falso, neto ou não, e eu arranco a cabeça desse vampiro.

– Você deve fazer isso mesmo, Tina – Vovó Redbird respondeu calmamente.

– Já vou aí.

A conexão do interfone se desligou enquanto o portão se abria.

– Não entre com o carro na propriedade dela. Vamos apenas sair do carro – Vovó disse, encontrando os olhos dele. – A cadela vai gostar de você, não vai?

Kevin abriu o sorriso.

– Os cachorros costumavam gostar de mim... antes de eu ser Marcado. E depois, na Morada da Noite de Zo, havia uma labradora dourada super legal chamada Duquesa. Ela me amava. Então acho que vai dar tudo certo.

O som de um motor de carro se aproximando cada vez mais fez Vovó Redbird suspirar.

– Bem, agora é tarde demais se estivermos errados.

– Não estamos errados, Vó. Só observe. Eu consigo lidar com essa parte. Cachorros são simplesmente incríveis! – Kevin deu a volta no carro e parou logo antes da linha de entrada na propriedade, diante do portão aberto.

O motor roncou, derrapando até parar na frente deles. Kevin teve que apertar os olhos diante das luzes ofuscantes do veículo, mas conseguiu ver uma mulher baixa – provavelmente com uma idade próxima à de sua avó. Ela tinha um cabelo desgrenhado com mechas grisalhas onduladas pintadas de roxo, rosa e azul. Era velha, mas seu corpo ainda estava em forma, o que era óbvio, pois estava usando uma calça legging enfiada em botas de cowboy turquesa e um moletom escrito KALE imitando o logo da universidade de Yale2. Apontando uma espingarda .45, ela desceu agilmente do carro, seguida por uma pequena terrier preta malhada.

– Oi, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Boa noite, senhora – Kevin disse educadamente.

– Vamos ver se a noite é boa mesmo – a velha resmungou.

– Ei! É um terrier escocês! – Kevin exclamou. – Eu sempre quis ter um. Acho que eles são os cachorros pequenos mais legais de todos.

Os olhos verdes de Tina analisaram Kevin.

– Você não soa como um vampiro vermelho.

– É porque eu sou um tipo diferente de vampiro vermelho – ele explicou.

– Um tipo bom – Vovó acrescentou.

– Impossível – Tina afirmou.

– Mostre a ela, u-we-tsi.

Kevin se agachou e sorriu para o pequeno terrier.

– E aí, garotinha! Você é muito linda. Que tal vir aqui e me deixar fazer carinho em você?

A cadela o observou tão atentamente quanto a mulher ao seu lado.

– O nome dela é Babos.

– Babos, que nome legal. Oi, Babos. – Ele estendeu a mão. – Venha cá, garota.

A cadelinha hesitou, com as orelhas levantadas para Kevin. Ela ergueu a cabeça e farejou o ar.

– Pena que não tenho nenhuma guloseima para você. Da próxima vez vou lembrar disso, mas eu prometo que sou ótimo em fazer carinho. – Ele fez gestos de coçar o queixo com os dedos. – Venha cá, Babos. Dê uma chance para mim.

O terrier escocês inclinou a cabeça, farejou o ar de novo e então, com uma pequena bufada, saiu trotando diretamente até Kevin, que sorriu e disse que ela era a cachorrinha mais esperta, bonita e doce que ele já tinha visto, cumprindo a sua promessa de coçar o seu queixo peludo enquanto ela balançava o rabo entusiasticamente.

– Uau. Eu nunca teria acreditado nisso se não estivesse vendo com os meus próprios olhos – Tina falou. – O que ele é?

– Eu disse. Ele é meu neto. E ele vai mudar tudo.


– Você tem mesmo um rancho de terriers escoceses! – Kevin não conseguiu evitar o olhar embasbacado enquanto ele e Vovó Redbird seguiam Tina para dentro do rancho espaçoso. Quando eles entraram pela garagem, foram cercados por um grupo de terriers pequenos, com suas cabecinhas em forma de tijolo, variando em cores do dourado ao trigo até o preto e o preto malhado. Kevin tentou contar quantos eram, mas, quando contou quinze deles, desistiu.

– Ahn, Vó, você estava falando sério sobre os filhotes? Cara, espero que sim.

Tina então sorriu para ele – a primeira vez que ela fez algo além de olhar como se ele fosse um inseto espetado em um mostruário de exibição.

– Eu não tenho filhotes agora, mas vão nascer em algumas semanas.

– É um código, u-we-tsi. Humanos ou vampiros azuis e até novatos azuis que são aliados da Resistência vêm ao rancho da Tina e perguntam por filhotes.

– Mas o que eles realmente estão pedindo é proteção – Tina disse.

– Espero que algum dia eu possa ter um filhote – Kevin murmurou enquanto se agachava e aproveitava totalmente o fato de estar sendo acossado por uma horda de terriers escoceses.

– Por que ele é diferente? – Tina perguntou.

– Isso, minha amiga, é uma longa história com a qual nós preferíamos não gastar tempo neste momento, já que a Resistência vai precisar dessa explicação também. Eles estão aqui?

Tina assentiu.

– No topo da montanha. Sabe onde ficam os esconderijos de caça, naquelas árvores adjacentes que dão na passagem do gramado?

– Sei.

– Alguns estão nos esconderijos. Outros estão trabalhando, tentando expandir uma área parecida com uma caverna que descobriram uns dias atrás entre as pedras ao lado da montanha. Eles chegaram na noite passada, com alguns refugiados que precisam levar clandestinamente para fora daqui, a maioria mulheres e crianças. Há uma tempestade de neve se formando. Eles acham que os refugiados vão estar seguros na montanha, pelo menos por uns dias.

Vovó Redbird suspirou.

– Eles ficam vulneráveis demais nesses esconderijos. Há tão pouco abrigo neles. Eu sei que vampiros têm resistência ao clima frio, mas é simplesmente horrível que tenham que correr de um lugar para o outro, como fazem. O estresse de não ter um lugar realmente seguro deve ser muito desgastante.

– Foi por isso que eles ficaram tão animados ao encontrar a caverna – Tina concordou. – Mas Dragon me disse que neste momento ela pode comportar apenas cerca de cinco pessoas, e isso se não se importarem em ficar amontoadas. Eles estão trabalhando para expandi-la, mas você sabe que a montanha é composta, na maior parte, por rochas e terra vermelha dura. Está indo devagar, especialmente no meio do inverno.

– Espere aí, você disse Dragon? Dragon Lankford? – Kevin perguntou.

– Sim. Dragon Lankford era o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa... antes de Neferet começar a guerra – Tina respondeu.

– A companheira dele, Anastasia, está aqui também? – Kevin quis saber, a empolgação aumentando o seu tom de voz.

Tina assentiu.

– Está sim.

– Vovó! Zoey me disse para encontrar Dragon e Anastasia Lankford... que eles com certeza poderiam me ajudar.

– Então nós estamos no caminho certo – Vovó falou com um sorriso.

– Cara, espero que sim. – Kevin se levantou depois de dar mais um abraço nos terriers. – Então, quer dizer que na real a Resistência não tem um quartel-general?

– Eles tinham um quartel-general de verdade, mas isso foi antes de Lenobia e Travis serem seguidos, encurralados e mortos, junto com os seus cavalos... – Tina perdeu as palavras enquanto tentava se recompor, obviamente perturbada demais para continuar.

Vovó Redbird se aproximou de Tina, abraçando-a em solidariedade, e então terminou a explicação.

– Lenobia e Travis tinham criado um quartel-general para a Resistência no meio do Parque Nacional de Keystone. Tem mais de setecentos acres e, exceto pelas áreas próximas à Represa e à Barragem de Keystone, é selvagem e não possui nenhuma construção, apesar de o parque ficar a apenas cerca de uma hora do centro de Tulsa. Era um lugar excelente para um acampamento rústico, principalmente porque Lenobia conseguiu retirar clandestinamente vários cavalos da Morada da Noite quando ela e Travis saíram. Alguém os traiu. Lenobia e Travis ficaram com os cavalos, atraindo o Exército Vermelho para longe do resto da Resistência e dos inocentes que estavam tentando ajudar a encontrar um lugar seguro. Eles foram massacrados. Lenobia, Travis, os membros da Resistência, os inocentes e todos os cavalos.

Kevin abaixou a cabeça, a tristeza e o arrependimento tomando conta dele.

– Você estava lá, não estava? – a voz de Tina soou áspera.

– Não. E eu agradeço a Nyx por isso. Eu ainda era um novato quando isso aconteceu, e novatos nunca tomam parte em combates. Eles ainda não são boas armas. Eles precisam estar completamente Transformados para que a sua humanidade esteja extinta o suficiente para que eles sejam perigosos e descartáveis. – Ele fez uma careta de desgosto. – Mas eu ouvi falar no massacre. O meu general, Dominick, se gabou muito por causa dessa vitória. Aquilo... aquilo me deu nojo. Ainda dá.

– Ainda bem que você não estava lá – Tina disse, com a voz ainda trêmula. – Acho que eu não conseguiria aguentar ter você aqui na minha casa se você estivesse envolvido nisso. Lenobia era uma boa amiga. E aqueles cavalos... – Ela estremeceu. – Não consigo nem pensar no que o Exército Vermelho fez com eles.

– Sinto muito – foi tudo que Kevin conseguiu pensar em dizer.

– Mostre que você sente muito. Não basta me dizer isso. Ajude-nos a impedir Neferet e reverter a tragédia que ela provocou neste mundo, e aí eu vou acreditar que você realmente sente muito – Tina disse.

– Eu vou. Eu juro.

Tina assentiu rapidamente e então fez um gesto para que eles a seguissem para dentro da cozinha, que estava exalando um cheiro delicioso. Com a horda de terriers trotando ao redor dos seus pés, Vovó Redbird e Kevin abriram caminho lentamente atrás de Tina, com cuidado para não pisar em nenhuma patinha.

– Imagino que vocês querem se juntar a eles logo.

– Sim. Seria melhor – Vovó Redbird respondeu.

– Na verdade, vocês vão me fazer economizar a viagem. Eu assei uma dúzia de pães e terminei de enlatar a minha geleia de amora. Nunca soube que vampiros amavam tanto pão fresco e geleia antes de Neferet mudar o nosso mundo, mas eles com certeza amam.

Kevin ficou salivando ao observar Tina terminar de colocar os pacotes de geleia e pão caseiro saído do forno em grandes sacolas de lona.

– Quem não gosta de pão caseiro? – ele comentou. – E o cheiro do seu pão é incrível.

Tina parou para olhar para ele. Ela balançou a cabeça.

– É difícil se acostumar com isso.

– Isso? – Kevin perguntou.

– Acho que você é uma palavra melhor do que isso. O que eu quis dizer foi que é difícil se acostumar a ter um vampiro vermelho que age como uma pessoa normal e racional dentro da minha cozinha – ela bufou, acrescentando: – Quase vale a pena sair com vocês no frio e no escuro só para ver a reação deles.

– Eu não espero que minha aceitação vá ser fácil – Kevin disse.

– Quer ouvir a verdade?

Kevin assentiu.

– Você precisa de um milagre para que eles o aceitem.

– Tudo bem – Kevin sorriu para ela. – Sei de fonte segura que Nyx está me concedendo alguns milagres.

– Para o seu bem, espero que sim. – Tina voltou a encher as sacolas de lona.

– Para o bem de todos nós, eu espero que sim – Vovó reafirmou.

– Ok, Kevin Milagroso, me ajude a carregar isto aqui.

Tina abarrotou Kevin com o máximo de sacolas que conseguia carregar, deixando apenas uma para a sua avó, e então seguiram Tina para fora pela porta de trás e passaram por uma piscina, da qual emergia um vapor semelhante a espíritos errantes.

– Que demais! – Kevin exclamou.

Tina sorriu.

– Isso e os meus terriers são os principais prazeres que me permito. Bem, isso se você não contar o meu amor por macarrão e cerveja artesanal. Eu deixo essa piscina aquecida o inverno inteiro. É lindo boiar nela olhando para as estrelas através do vapor. Faz com que eu esqueça como o nosso mundo está ferrado.

– Minha amiga, ajuda um pouco se eu contar a você que, por causa do que aconteceu com Kevin, nós temos uma chance real de derrotar Neferet? – Vovó Redbird falou.

– Sylvia, eu adoraria acreditar que nós podemos voltar a como tudo era antigamente.

– Que tal mais do que isso? – Kevin interveio. As duas mulheres apontaram olhares curiosos na direção dele. – Que tal um mundo onde humanos e vampiros são aliados e amigos de verdade? Assim como vocês duas são aliadas da Resistência. É mais do que possível. Eu vi. Pode funcionar, e faz do mundo um lugar até melhor do que o que a gente tinha aqui antes de Neferet começar a guerra.

– Filho, você não é daqui, é?

– Na verdade, eu sou. Vamos apenas dizer que eu viajei bastante recentemente.

– Eu quero o mundo de Kevin – Vovó Redbird afirmou, sorrindo carinhosamente para o seu neto.

– Bem, o seu mundo parece bom, meu filho. Mas, para mim, basta ter a paz.

– Senhora, a minha avó me ensinou a não me contentar com pouco – Kevin disse, abrindo um sorriso travesso para a sua avó.

– Ele é um pouco inexperiente, mas acho que devo acreditar nele – Sylvia Redbird falou.

– Vou dizer uma coisa: se conseguir fazer a Resistência confiar em você e aceitá-lo, eu posso acreditar nesse seu mundo – Tina disse. – E posso conseguir um filhote de terrier escocês para você de presente.

Kevin abriu um sorriso como um raio de sol.

– Promete?

– Desde que a gente não esteja em guerra e que você possa dar a ele um bom lar... sim, eu prometo.

– Feito! – Kevin exclamou.

– Feito – Tina concordou. – Ok, coloquem as sacolas aqui e levem o Polaris.

Ela abriu a tampa da caixa de metal presa ao local onde deveria ficar o assento traseiro do veículo. Kevin colocou as sacolas lá dentro depois que Tina afastou os cobertores, caixas de fósforos e bolsas de sangue...

– Sangue! – Kevin exclamou. – Nós vamos levar sangue para eles?

– É claro – Tina disse, perplexa. – Vampiros não sobrevivem só com pão e geleia.

– Mas... sangue!

Tina inclinou a cabeça.

– Meu jovem, nesse mundo em que você diz que os humanos e os vampiros vivem como amigos, eles também curaram o fato de que os vampiros precisam de sangue humano para sobreviver?

– Hum, não.

– Então, os humanos lá devem estar acostumados com os vampiros bebendo sangue, certo?

– Sim, acho que sim – Kevin respondeu.

– Bom, eu sou vegana. Eu realmente não vejo muita diferença entre beber sangue humano e comer um bife malpassado ou um carré de cordeiro sangrento. – Ela deu de ombros. – Eu não comeria nada disso, mas cada um na sua.

– Quem é você? – Kevin falou sem pensar.

– Apenas uma professora de inglês aposentada. Depois que você dá aula numa escolha pública de ensino médio, não se abala com muita coisa.

– Óbvio. Queria ter sido seu aluno. Aposto que sua aula não era um tédio – Kevin disse.

– Eu te digo que não – Tina respondeu. Então ela o surpreendeu ao lhe dar um abraço rápido. – Cuidado. E lembre-se do nosso acordo.

– Sem chance de eu esquecer que você me prometeu um filhotinho!

– Sylvia, você lembra como se chega até a montanha, não?

– Ah, acho que sim. Se não me engano, é só virar à direita – Vovó falou.

– É isso. Lembrem-se de tomar cuidado com o portão. Se tocarem naquela cerca elétrica, ela vai fritar vocês.

– Vou me lembrar disso – Vovó afirmou. Ela fez um gesto para Kevin assumir a direção. – Você dirige, u-we-tsi.

– Devagar e sempre – Tina disse quando Kevin deu a partida no Polaris. – Nós mantemos essas velhas trilhas esburacadas, principalmente depois do que aconteceu em Keystone. Você vai ter que parar e tirar uns galhos do caminho algumas vezes. É de propósito.

– Pensei que você estivesse sob a proteção de Neferet por causa das plantações de alfafa – Vovó Redbird observou.

– Eu estou, mas ultimamente os cachorros têm dado o alerta no meio da noite, e não é por causa de Dragon e do nosso grupo. Acho que o Exército Azul anda farejando por aqui. Lembre-se de contar isso a Dragon.

– Vou dizer – Vovó respondeu.

– Quando vocês chegarem à árvore caída, que é grande demais para tirar do caminho, vai ser a hora em que serão interditados – Tina os avisou.

– Eu tenho o meu código. Estou pronta – Vovó disse.

Tina balançou a cabeça.

– Você sabe que eles vão pensar que você está sob a influência de um vampiro vermelho. Eles podem atacar antes que você consiga convencê-los de não fazerem isso.

– Então eu só tenho que ser mais esperta e mais rápida do que eles – a idosa retrucou.

Tina sorriu ironicamente.

– Boa sorte.

– Obrigado, senhora – Kevin falou.

– Você não precisa me agradecer por ajudar a Resistência, filho. É a coisa certa a fazer.

– Eu não estava agradecendo por isso. Eu agradeci por você confiar em mim. Por me convidar para entrar.

– Ah, entendo. Não me agradeça. Só não faça com que eu me arrependa de confiar em você.

– Eu não vou. Prometo.

Kevin engatou a marcha no Polaris e foi na direção que a sua avó apontou – um caminho de terra que mal dava para ver e que desaparecia na escuridão dos cumes de Oklahoma. Se não tivesse que segurar as duas mãos no volante para contornar buracos e pedras, ele estaria estalando os dedos feito doido.

2 Kale significa couve em inglês. O moletom com a palavra “KALE” estampada, com a mesma letra do blusão tradicional da Universidade Yale (em que se lê apenas “YALE”), já foi usado por Beyoncé em um videoclipe. (N.T.)


4

Zoey

– Zoey! Ah, que bom que eu te achei. Você tem um segundo? – uma voz familiar gritou de algum lugar no corredor.

Fiz força para não suspirar, fixei um sorriso no rosto e me virei, enquanto Damien e Outro Jack abriam caminho pelo corredor lotado na minha direção. Assim que eles me alcançaram, meu sorriso se tornou verdadeiro.

– Oi, Damien e Jack. Vocês estão bem acomodados? Precisam de algo? – perguntei. A felicidade que irradiava deles deixava o meu coração pesado mais leve, pelo menos por um momento.

– Aiminhadeusa! Tudo aqui é simplesmente fabuloso! – Outro Jack exclamou, mirando Damien com seus olhos grandes e cheios de amor.

O sorriso de Damien era para Jack, mas ele também me inclui, compartilhando a alegria.

– Z, a gente tem tudo que precisa... nós temos um ao outro.

– E este mundo mais que demais – Jack acrescentou.

– Sim, concordo com Jack. Na verdade, a gente queria ver se nós podemos ajudar você em algo – Damien disse.

– Bem, certo. Mas o que isso quer dizer?

– A gente queria ficar mais envolvido na nova decoração do Restaurante da Estação – Damien falou.

Jack ficou assentindo feito um boneco de cabeça de mola, apesar de eu ter que admitir que ele é muito mais bonito do que os bonecos de mola em geral.

– Vocês falaram com Kramisha? Na verdade, o projeto é dela – eu disse.

– A gente não quis falar com ela antes de expor a nossa ideia para você – Damien respondeu.

Como os dois apenas ficaram ali parados sorrindo para mim, eu os incentivei a continuar.

– Ok, bom, qual é a ideia?

– Você vai amar! – Jack estava dando pulinhos, mal conseguindo controlar a ansiedade.

– A gente precisa contar para ela – Damien disse.

– Siiiiim, a gente precisa! – Jack concordou.

E, é claro, nenhum dos dois disse nada.

Eu resisti à tentação de estrangular seus pescoços ridiculamente felizes, o que Damien deve ter percebido, pois ele limpou a garganta e explicou.

– Então, você sabe que Kramisha já decidiu decorar o restaurante como uma boate da era das big bands, certo?

– Sim, certo. Todos achamos que era uma ótima ideia – eu disse.

– E é, por isso nós queremos trazer alguns especialistas em boates – Damien falou.

– Os gays! – Jack vibrou.

– Os gays? – eu disse, agora totalmente confusa.

– Na verdade, seria melhor dizer a comunidade LGBTQ – Damien corrigiu. – Eu fui até o Centro de Igualdade... você sabe que não fica longe da estação, não é?

– Sim, claro. O Centro de Igualdade de Oklahoma fica a menos de um quilômetro e meio da Rua Quatro. Eu fui lá outro dia discutir sobre uma parceria com eles para o próximo Show de Arte Mais Cores. Eu ia anunciar isso na nossa próxima newsletter – eu contei.

– A gente já sabe – Jack disse. – Toby nos contou quando estávamos lá, conversando sobre a nossa outra ideia.

Senti que eu estava parecendo uma bola de pingue-pongue entre os dois, então me concentrei em Damien.

– Explique-se, por favor.

– É simples. Toby Jenkins, o diretor do centro...

– Sim, eu conheço Toby – eu assenti.

– Ele é apaixonado por história e ficou entusiasmado de ouvir que nós vamos transformar o restaurante em um clube dançante. Ele gostaria de nos ajudar a fazer não apenas um lugar bonito com boa comida e música. Ele pode nos ajudar a fazer com que seja historicamente preciso. Certificando-se de que o palco, a pista de dança, as mesas, as toalhas e até o uniforme dos garçons sejam tão parecidos com os da era do jazz que as pessoas vão realmente sentir como se estivessem voltando ao passado quando reservarem uma noite no nosso restaurante – Damien explicou.

– Isso parece legal mesmo – eu concordei. – O que me faz lembrar que Toby me disse que tem uma lista de fornecedores que são pró-igualdade e, é claro, esses são os únicos fornecedores que nós devemos contratar. Ele disse que compartilharia essa lista comigo e então, bom... – perdi as palavras quando todos nós pensamos nos acontecimentos dos últimos dias.

– Ei, sem problemas, Z – Damien disse carinhosamente. – Nós vamos cuidar disso pra você.

– Sim, você já tem muita coisa na cabeça. Deixe a gente ajudar com isso – Jack completou.

– Obrigada. Aos dois. Sim, eu aceito a ajuda e acho que a ideia de vocês de trazer Toby e qualquer um que ele recomendar é fantástica. Podem falar para Kramisha que vocês definitivamente têm a minha aprovação.

– Aêêêê! – Jack bateu palmas.

– Você não vai se arrepender, Z. O restaurante vai ser espetacular – Damien prometeu. Ele fez uma pausa e me olhou atentamente. – Você parece cansada.

– Yoga é excelente para o alívio do estresse – Jack sugeriu. – No meu outro mundo, antes de todas aquelas coisas horrendas começarem a acontecer, eu era um professor certificado de yoga. Quer que eu conduza você em alguns alongamentos meditativos?

– Hum, não neste momento – eu respondi. – Mas se você quiser dar algumas aulas de yoga aqui na escola, acho que seria ótimo.

– Ai. Minha. Deusa! Sério? Você está brincando? Você me deixaria mesmo dar aulas?

Como é possível alguém não amar esse garoto? Ele era como um unicórnio cintilante.

– Sim, com certeza. Só espere que eu me reúna com o Conselho da Escola para pensar onde podemos encaixar as suas aulas.

Jack se atirou em meus braços, quase me derrubando.

– Obrigado! Obrigado! Posso tocar música? Yoga é sempre melhor com música. E hot yoga! A gente pode ter isso também?

Eu me desvencilhei de Jack.

– Claro. Hot yoga parece legal – eu menti. Hot yoga? Como se a yoga normal não fosse difícil o bastante. – Faça um programa do curso, com uma lista de suprimentos, para que eu possa informar o Conselho do que você precisa exatamente, e a gente bola alguma coisa.

– Que ótimo, Z. – Damien estava me observando por cima da cabeça exultante de Jack. – Mas parece que você precisa de um pouco de descanso e alívio de estresse agora.

– Você não poderia estar mais certo – eu concordei. – Por isso preciso ir. Estou a caminho da minha terapia de estábulo.

O alívio suavizou a expressão preocupada de Damien.

– Ah, excelente! Escovar Persephone sempre te ajuda a relaxar. Divirta-se. E se alguém perguntar onde você está, eu digo que você está na estação.

– Isso seria maravilhoso. Eu só preciso de uma hora para mim mesma.

– É toda sua. – Damien colocou o braço ao redor de Jack. – Venha. Vamos falar com Kramisha, e então a gente pode dar as boas novas a Toby.

Conversando animadamente com os rostos colados, Jack e Damien foram na direção da entrada da Morada da Noite. Eu observei os dois se afastando, tentando capturar um pouco da felicidade que eles exalavam.

Não funcionou. Eles se foram e tudo que eu senti foi cansaço e tristeza. De novo.

Vamos lá, Z. Recomponha-se e saia dessa! Kevin está de volta onde ele precisa estar, e é isso. Aquele mundo precisa dele. Neste mundo, Heath está morto. A sua mãe está morta. E a gente conseguiu derrotar Neferet pra valer. Controle-se!

Sacudindo-me mentalmente, saí pela porta de trás da escola, virei à esquerda e segui pela calçada até a entrada dos fundos do centro equestre. Caminhei rapidamente, mal assentindo para os novatos que me cumprimentavam. Eu só precisava de um tempo sozinha... um tempo para relaxar e não pensar muito.

No instante em que abri a porta do estábulo, respirei fundo, inalando os aromas reconfortantes de cavalo e feno. A aula já tinha começado, e eu podia ouvir Lenobia na arena, dizendo ao seu grupo de calouros que cavalos não são cachorros grandes, o que me fez sorrir em nostalgia enquanto caminhava até a baia de Persephone. Assim que a égua ruã me viu, ela fez uma saudação baixa e retumbante.

– Bom, oi pra você também, menina bonita! Como você está? – Eu peguei a escova para crinas, outra escova grande e macia e um limpador de casco na prateleira do lado de fora da baia, bem como um punhado de guloseimas de hortelã que eram as suas preferidas, e entrei. Persephone me acariciou com o focinho, obviamente procurando pelos doces, que eu ofereci a ela. Eu sorri e beijei a sua testa ampla enquanto ela lambia delicadamente a hortelã da minha mão. Depois de fazer um pouco mais de carinho e beijar o seu focinho de veludo, a égua voltou a atenção para a sua comida e eu comecei a trabalhar.

Eu amava tratar de cavalos – de Persephone principalmente. E a energia positiva dela sempre me atingia rapidamente. Logo a minha mente se esvaziava e eu não pensava em mais nada, exceto em trançar bem a sua crina e o seu rabo e em cuidar para que os seus cascos ficassem livres até da menor pedrinha.

– Persephone, menina bonita, queria que o meu cabelo brilhasse tanto quanto o seu pelo – eu disse, encostando o queixo no seu pescoço grosso e quente. Ela levantou uma pata, bufou e pareceu muito que ia tirar uma soneca. Por entre as colunas da baia, dei uma espiada no relógio do estábulo. – Droga. Mais uns vinte minutos e essa aula vai terminar, e então os novatos vão se esparramar por todo canto.

O que eu não daria para ser uma novata de novo, sem nenhuma preocupação com o mundo.

Comecei a ir na direção da porta para guardar as escovas quando Persephone bufou de novo e, com um grunhido muito satisfeito, dobrou as longas patas e se estatelou no meio da sua baia cheia de palha.

– Então você estava falando sério em tirar uma soneca, hein? – Eu me virei para a porta e então hesitei. – Bem, por que não? Talvez um pouco de descanso vá me ajudar a sair desse mau humor terrível. – Soltei as escovas e fui até Persephone. A doce égua mal abriu o olho quando eu me aconcheguei, bem na frente das suas patas dianteiras, recostando-me na sua barriga quente. – Mas eu provavelmente não vou dormir de verdade. Não tenho conseguido dormir muito bem ultimamente – contei a ela em meio a um bocejo gigante. Então coloquei a cabeça no ombro dela, fechei os olhos e caí direto no sono.


Toc-toc-toc! Alguém estava esmurrando a minha porta.

Minha porta? Espere aí. Eu estou no estábulo com Persephone. Estão esmurrando a porta da minha baia?

Levantei a cabeça. Tudo escuro... estava tudo muito, muito escuro mesmo. Como poderia estar tão escuro nos estábulos?

Toc-toc-toc!

– Ok, ok! Já vai – eu disse.

Eu disse? Mas eu nem abri a boca.

Uma luz se acendeu e eu dei um pulo em choque.

Eu não estava no estábulo. Eu estava no dormitório. No meu antigo dormitório, mas, na verdade, era parecido com o meu antigo dormitório. As minhas coisas estavam lá, mas a cama de solteiro do outro lado do quarto estava vazia. Stevie Rae não estava em lugar nenhum. As coisas dela também não estavam lá. Era como se ela não existisse.

Toc-toc-toc!

– Ei, estou me vestindo. Psiu! Aguenta aí!

Eu observei enquanto uma versão de mim colocava uma calça jeans e um moletom preto e dourado dos Tigers da Broken Arrow.

Que diabos era isso?

Eu me senti super tonta e enjoada, e então a minha confusão começou a clarear quando eu vi que o meu corpo estava quase completamente transparente, e que eu estava pairando um pouco acima da cama.

Então eu finalmente entendi. Aaah, eu estou dormindo. Isso é um sonho... um sonho sobre quando eu ainda era uma novata. O que, na verdade, fazia sentido. Quer dizer, eu andava tão estressada que estava me escondendo no estábulo, tirando uma soneca com o meu cavalo e desejando muito que eu fosse uma novata sem preocupações. Não é surpreendente que eu estivesse sonhando que era uma novata de novo.

Só que eu não era a novata. Eu estava observando a mim mesma, eu que era uma novata.

Ok, então, tudo bem. Sonhos são esquisitos. Olhei em volta do quarto semifamiliar enquanto “Zoey” corria até a porta. Se Kalona aparecer... de novo... eu acordo desta vez. Na mesma hora.

A Zoey do sonho hesitou diante do pequeno espelho sobre a pia e tentou ajeitar o cabelo de quem tinha acabado de acordar, e eu dei a primeira boa olhada no seu rosto.

Espere aí, isso está errado. Essa novata Zoey tem uma Marca normal, como todos os outros novatos.

Novamente, racionalizei que aquilo não era um grande problema. Quer dizer, se eu estava sonhando em escapar do estresse sendo uma novata, eu definitivamente não queria ser a única novata com uma Marca preenchida. De novo.

A Zoey do sonho abriu uma fresta na porta. Eu vi o seu corpo se contrair com a surpresa, e então ela deu um passo atrás para poder abrir a porta inteira e... mostrar Neferet parada no corredor.

– Ah, que inferno! Corra! Este é um sonho péssimo! – eu gritei.

Mas a Z do sonho não me ouviu – nem a Neferet falsa do sonho.

– Grande Sacerdotisa! Oi. Eu, ahn, posso convidá-la para entrar? – a Zoey do sonho perguntou desajeitadamente.

– Não! Não a deixe entrar no seu quarto! – eu disse, mas, de novo, nenhuma delas me ouviu.

– Ah, não, querida. Sinto muito por acordá-la, já que o sol ainda não se pôs, mas você tem uma visita que parece um pouco perturbada – disse a Neferet do sonho com uma falsa simpatia que me dava nojo.

– Vai se ferrar, Neferet! – eu berrei. Claro que elas não me ouviram, então eu suspirei e esperei para ver qual esquisitice ia acontecer em seguida no sonho, e reconsiderei seriamente a minha postura de nunca falar palavrão.

– Uma visita? Sinto muito, Grande Sacerdotisa, mas não estou entendendo.

– É o seu padrasto. Ele está... – Neferet fez uma pausa e uma careta obviamente contrariada – insistindo muito para que você vá falar com ele. Ele mencionou algo sobre a sua alma imortal.

– Ah, eca! Ele! – a Zoey do sonho disse, e eu ecoei o seu pensamento. Só fale que é para ela dizer que ele vá embora e nunca mais volte!

Mas a Zoey do sonho parecia mais nova e mais legal do que eu – ou talvez apenas mais nova e mais ingênua.

– Ok, eu vou falar com ele.

– Ótimo! Eu vou acompanhá-la até lá e permanecer com você. Ele realmente é um homem desagradável.

– Sim, com certeza, e obrigada por ficar comigo.

Neferet fez um gesto para que a Zoey do sonho a seguisse, o que ela fez, apesar de eu ficar gritando “Não, não vá!”.

E quando a Z do sonho fechou a porta, eu me senti flutuando atrás dela e atravessando a porta fechada.

– Ok, este é o sonho mais estranho que já tive na vida – falei em voz alta para mim mesma enquanto voava atrás da versão de mim e de Neferet no sonho. As duas estavam conversando despreocupadamente, como se a Neferet do sonho fosse mesmo uma Grande Sacerdotisa decente e a Zoey do sonho fosse apenas uma novata recém-Marcada. Quase como quando eu fui Marcada pela primeira vez e Neferet fazia um papel de mãe para mim.

Eu estava muito errada sobre aquilo, mas isto era apenas um sonho. Devia mesmo parecer estranho.

E a Morada da Noite parecia estranha também. De alguma forma, parecia mais escura e vazia do que a minha escola sempre cheia e onde ninguém nunca dormia. Nesse último ano, desde que meus amigos e eu assumimos o comando, nós havíamos expandido tanto os programas humanos/novatos que sempre havia algo acontecendo a qualquer hora.

Ali, não. Tudo estava silencioso, e a luz cada vez mais acuada do sol se pondo não fazia nada para aliviar a sensação de escuridão.

– Hum, a gente não está indo na direção errada? – a pergunta da minha eu do sonho chamou de volta a minha atenção, e eu percebi que Neferet havia guiado a Zoey do sonho para fora pela porta de trás da escola, em vez de na direção dos escritórios administrativos na frente do prédio principal.

– Oh, desculpe. Eu deveria ter explicado. O seu padrasto se recusa a entrar no campus. Um dos Guerreiros o encontrou espreitando lá fora no muro leste. – Neferet fez uma pausa e abriu um sorriso falso. – Isso não foi muito generoso da minha parte. Eu deveria ter escolhido outra palavra no lugar de espreitando.

O rosto da Zoey do sonho se enrubesceu e ela balançou a cabeça de desgosto.

– Não, essa é a palavra perfeita. E sou eu que preciso pedir desculpas. De novo. O meu padrasto é péssimo. Um religioso totalmente hipócrita, cheio de ódio e preconceito. – A eu do sonho estremeceu. – Ser Marcada e então me afastar dele foi um alívio. Eu vou conversar com ele e me certificar de que ele não voltará aqui para incomodar você nem nenhum outro vampiro.

– Ah, querida, por favor, não se preocupe com um humano sendo um incômodo. Não há nada de novo nisso. É o que os homens humanos parecem saber fazer melhor: incomodar quem é melhor do que eles.

A Zoey do sonho pareceu não saber como responder. Nesse instante, Neferet acelerou o passo, então nós duas tivemos que nos apressar para alcançá-la enquanto ela atravessava o gramado, indo direto até o alçapão no muro leste.

– O muro leste. Típico. Coisas horríveis sempre acontecem aqui – resmunguei.

Mas a Zoey do sonho não podia me ouvir, então nós seguimos Neferet até o alçapão, que ela abriu pressionando a pedra em que estava escrito 1926, o ano em que o muro foi construído. Eu flutuei pela passagem atrás delas até a área do lado de fora, bem ao lado do muro. Mesmo que o sol ainda não houvesse se posto, com certeza parecia que sim, pois estava tão escuro abaixo dos braços dos antigos carvalhos gigantes que ficavam em volta do muro que nós estávamos completamente nas sombras.

– John? – a Zoey do sonho chamou, olhando em volta da área escura e vazia. – Sou eu. Zoey. O que você precisa me dizer?

A eu do sonho estava procurando ao redor, com as mãos no quadril, obviamente exasperada. Só que a minha atenção não estava na Zoey do sonho. Estava em Neferet. A Grande Sacerdotisa havia ficado perto do muro, onde eu percebi que uma estaca grossa de madeira havia sido fixada no chão, tipo algo que um fazendeiro usaria para amarrar arame farpado.

Mas não havia cercas de arame farpado no centro de Tulsa. Que diabos estava acontecendo?

Neferet foi até a estaca e abriu uma grande bolsa que estava ali atrás – e desembainhou uma espada longa que parecia muito perigosa.

Eu entendi tudo em um instante. A estaca era parecida demais com aquela na qual eu encontrei a Professora Nolan, com a cabeça decepada.

– Zoey! Saia daí agora! – eu berrei para a minha eu do sonho desavisada, mas aquela Z não fez nada além de olhar em volta procurando pelo padrasto irritante.

Silenciosamente, Neferet se aproximou dela pelas costas, carregando a espada com as duas mãos, parecendo um samurai assassino.

– Aiminhadeusa, se mexa!

A Zoey do sonho não me ouviu, mas ela de fato se mexeu, virando-se de volta para dizer:

– Neferet, acho que ele foi embora. Sinto muito mesmo que isso tenha sido tanta perda de tempo e que você teve que... – Ela perdeu as palavras ao ver a espada de Neferet.

– Ah, querida, não há absolutamente nada a se desculpar. E as coisas saíram exatamente como eu planejei. Quando encontrarem você, vão acreditar que foi trabalho de humanos... do Povo da Fé, na verdade. Eu vou conseguir a minha guerra. – Neferet sorriu de modo irracional, mostrando os dentes, vitoriosa. – E você nunca mais vai ser importunada pelo seu padrasto ridículo de novo. Acho que isso é uma vitória para nós duas.

Os olhos da Zoey do sonho ficaram vidrados com o choque, e ela ficou balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar. Com uma voz de menininha, ela repetiu várias vezes:

– Não, eu não entendo... eu não entendo... eu não...

Eu gritei quando Neferet girou em uma curva tão graciosa quanto mortal e, com apenas um golpe, cortou a cabeça da Zoey do sonho. O sangue se espalhou por toda parte quando o corpo desabou, contorcendo-se espasmodicamente.

Tanto sangue! Há tanto sangue!

Eu não conseguia parar de gritar. Eu queria fechar os olhos. Eu queria acordar, mas eu estava congelada no lugar, pairando sobre a minha eu do sonho, enquanto Neferet limpava a sua espada no chão. Depois ela voltou até a bolsa para tirar de lá uma corda e uma placa rústica, artesanal, na qual estavam rabiscados os dizeres: A FEITICEIRA NÃO DEIXARÁS VIVER! ÊXODO 22:18.

Eu reconheci aquela citação da Bíblia. Foi a mesma encontrada sobre o corpo crucificado e sem cabeça da Professora Nolan.

E então eu a escutei. Eu me escutei. O meu olhar desviou de Neferet e se voltou para a cabeça cortada que tinha rolado até parar em uma poça de sangue abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Quando eu olhei horrorizada, os olhos se abriram de repente, e a minha própria voz explodiu na minha cabeça.

Você tem que ajudar Kevin a detê-la – nada mais importa!

Atrás de mim, alguém segurou o meu ombro, e eu gritei tão alto que parecia que a minha voz estava rasgando...

– Z! Sou eu! Está tudo bem!

Ainda gritando, eu me sentei, dando de cara com Stark e quase quebrando o seu nariz. Persephone bufou e colocou as orelhas para trás, como se estivesse procurando algo para atacar.

– Shhh, está tudo bem, doce égua – Lenobia apareceu repentinamente, acalmando Persephone e lançando um olhar preocupado na minha direção.

– Stark? – Eu olhei freneticamente em volta, com meu coração batendo tão forte e rápido que eu podia senti-lo nas minhas têmporas. Estou na baia com Persephone. Foi só um sonho. Não foi real.

– Ei, sim, é claro que sou eu. Que diabos está acontecendo? Eu senti o seu medo como um ferro em brasa. O que aconteceu?

Eu abri a boca para contar a ele sobre o sonho... e não consegui. Porque eu percebi que estava errada. Não tinha sido só um sonho. Era uma mensagem. Uma mensagem que eu tinha que guardar para mim mesma, ao menos por enquanto.

– Stark! – Eu deixei que ele me puxasse para dentro dos seus braços fortes e seguros. – Sinto muito. – Virei a cabeça para poder ver Lenobia. Persephone tinha se levantado e estava recostada contra a Mestra dos Cavalos, parecendo assustada e preocupada. – Ah, não! Eu assustei Persephone também! – Eu me levantei com a ajuda de Stark e fui até a égua para acariciá-la e beijá-la. – Sinto muito, muito mesmo, menina bonita. Eu estou bem. Está tudo bem.

– Não. Não está. Eu senti o seu medo, seu pavor. O. Que. Diabos. Aconteceu? – Stark perguntou.

Eu tentei dar uma risada, mas saiu mais parecido com um soluço.

– Isso é realmente constrangedor. Foi só um sonho.

– Na maioria das vezes, seus sonhos são mais do que apenas imagens da sua imaginação – Lenobia disse, não de um jeito rude. – Da última vez que um sonho a despertou, era Kalona.

– Só que não era realmente Kalona – Stark acrescentou. – Então, o que foi?

Eu enxuguei o suor do meu rosto.

– Gente, eu realmente sinto muito. Não foi nada como os sonhos com Kalona ou o não Kalona. Eram só aranhas.

– Aranhas? – Lenobia perguntou.

Eu assenti e estremeci.

– Aranhas.

Stark suspirou e me puxou de novo para os seus braços.

– Ela morre de medo de aranha – ele explicou para Lenobia.

– No meu sonho, eu caí em um poço cheio delas. Foi horrível – eu menti, sentindo-me tão horrível por isso quanto o próprio poço cheio de aranhas.

– Bom, que alívio – Lenobia disse. – Mas, Zoey, se você tem tanto pavor de aranhas, você realmente deveria procurar uma terapia com hipnose. Uma das Grandes Sacerdotisas da Morada da Noite de Saint Louis é especialista nisso. Tenho certeza de que ela pode ajudar você.

– Obrigada. Vou me lembrar disso. Eu normalmente não me incomodo muito com a minha fobia de aranha.

– Mas você anda estressada e sem dormir direito – Stark falou. – Então, um pouco de terapia talvez fosse bom pra você.

– É, talvez. Se eu tiver outro sonho como esse, com certeza vou procurar.

Stark deu um beijo na minha testa.

– Ei, será que um festival de psaghetti vai fazer você se sentir melhor? Você dormiu na hora do almoço, e já é quase hora do jantar.

Eu não demonstrei como fiquei chocada ao descobrir que tinha dormido por horas em vez de por uns vinte minutos. Em vez disso, eu assenti e tentei demonstrar entusiasmo.

– Psaghetti sempre faz com que eu me sinta melhor.

– Foi o que pensei – Stark disse, segurando a minha mão. – Foi um longo dia para mim também. Vamos comer.

– Boa ideia. – Dei um beijo em Persephone de novo e sorri envergonhada para Lenobia enquanto saíamos da baia. – Desculpe por assustar você. Estou realmente me sentindo idiota por isso.

Lenobia estava olhando para mim com seu olhar cinza e esperto.

– Você está perdoada – ela falou. – E, Grande Sacerdotisa, se precisar conversar, lembre-se de que estou sempre aqui a seu dispor.

– Obrigada! Vou me lembrar disso – falei, fechando a porta da baia.

De mãos dadas, Stark e eu saímos do estábulo, na direção do refeitório.

Eu vou falar sobre isso, mas só quando tiver decidido exatamente o que fazer e como. Verdade seja dita, eu já tinha uma ideia. Dei uma olhada em Stark, sabendo que ele seria o meu maior obstáculo. Ele ia ficar bravo. Muito bravo mesmo.

Ah, que inferno...


5

Outro Kevin

– Você parece estar com frio, Vó. Da próxima vez que eu for tirar um desses galhos do caminho, vou pegar um cobertor na caixa lá atrás. Não quero que você fique doente.

A idosa gesticulou para afastar a preocupação do seu neto.

– U-we-tsi, eu ainda me purifico naquele córrego que corre atrás da minha casa. Está sempre frio. Estou bem. E nós já estamos quase no topo da montanha. Acho que, da próxima vez que a gente parar, não estaremos mais sozinhos.

– O que é esta terra? – Kevin olhou em volta, apertando os olhos através da escuridão para a área selvagem de uma montanha de Oklahoma, cheia de carvalhos antigos, relva na altura da cintura e muitas e muitas rochas de arenito.

Vovó indicou a estrada de terra irregular em que o robusto Polaris estava sacolejando.

– Estas são velhas trilhas da época em que o petróleo foi descoberto, e quando digo velhas, quero dizer velhas mesmo. Elas foram feitas por volta de 1901 e, para a nossa sorte, abandonadas em 1902, bem antes de pensarem em colonizar tudo isso ou pelo menos em alargar estes caminhos e pavimentá-los. A família de Tina por parte de mãe era líder do Povo Creek, e a propriedade desta enorme porção de terra passou para ela. Tina a protege há décadas.

– Então, a cerca elétrica já existia antes de a guerra começar?

– Não. Isso foi uma melhoria que ela fez no último ano. Discretamente, usando apenas o trabalho daqueles que são aliados à Resistência. Ela sabe que aquilo não iria deter um ataque do Exército Vermelho, mas a cerca tem o efeito de dissuadir bisbilhoteiros aleatórios e caçadores clandestinos.

– Aposto que deve ser bem bonito aqui durante o dia. É fácil imaginar como seria esse lugar há cem anos.

– É mesmo.

– Mas seria mais divertido imaginar se não tivesse tantas aranhas. Sem para-brisa nem capota nesta coisa, a gente é tipo um imã para aranhas. – Kevin fez uma careta quando ergueu o galho grosso que ele tinha quebrado na primeira parada, balançando-o na frente dele e de Vovó, tentando retirar teias de aranha do caminho antes que acabassem parando no meio delas.

– Aranhas comem carrapatos e mosquitos, u-we-tsi. Elas são apenas um mero inconveniente para nós. – Ela levantou as sobrancelhas. – A menos que, como Zoey Passarinha, você também tenha pavor delas.

– Vó, a minha masculinidade diz que é melhor eu não responder a essa pergunta.

Kevin seguiu em frente, aproveitando o som da risada doce de sua avó. Logo, porém, ele percebeu que não tinha escolha a não ser deixar que as teias de aranha decorassem todo o seu corpo, já que ele tinha que manter as duas mãos no volante e se concentrar para que o Polaris não capotasse quando o caminho foi ficando cada vez mais traiçoeiro. Os seus faróis iluminaram uma árvore enorme, caída como um gigante adormecido sobre a trilha, e ele diminuiu a velocidade até quase ficarem parados.

– Essa deve ser a barricada final – ele disse.

– Prepare-se, u-we-tsi. Dirija direto até a árvore e então pare. Desligue o motor imediatamente.

Kevin engoliu o nervoso e fez o que ela disse. Dirigiu até a enorme árvore caída, estacionou o veículo e desligou o motor. Assim que ele fez isso, a sua pequena e velha avó o deixou totalmente chocado ao subir com agilidade para o banco elevado da parte de trás do Polaris, tão perto dele que sua perna estava pressionada contra o braço dele. Ela levantou a cabeça através das barras estabilizadoras, respirou fundo e então gritou.

– Estou tentando colher pés de mostarda à luz da lua. É nessa hora que eles ficam mais potentes!

– Isso é verdade, Vó?

– Claro que não. É o meu código. Agora, shiu.

Houve um barulho como o do vento farfalhando através da grama alta e meia dúzia de vampiros azuis desceram dos carvalhos enormes ao redor deles – com espadas levantadas de prontidão, enquanto formavam um círculo que foi se fechando em volta do Polaris.

Um vampiro baixo e corpulento, em cuja face havia uma intrincada tatuagem com dois dragões cuspindo fogo, deu alguns passos à frente, ficando a poucos metros de Kevin. Ele empunhava uma espada longa com as duas mãos, e a sua atenção estava concentrada no vampiro vermelho.

– Vampiro vermelho, liberte Sylvia Redbird. Ela não merece perder a vida junto com você hoje.

Sylvia cuidadosamente se colocou na frente de Kevin, ficando empoleirada entre o seu neto e a espada do vampiro azul.

– Merry meet, Dragon.

Dragon Lankford estreitou os olhos e continuou a não falar diretamente com a idosa, dando uma ordem para Kevin.

– Liberte-a.

Devagar, com cuidado, Kevin levantou as mãos do volante, mantendo-as estendidas, com as palmas voltadas para fora.

– Minha avó está completamente livre.

– Sylvia, venha para cá – Dragon disse.

– Só se você me der sua palavra de que vai me escutar antes de decapitar o meu neto.

Dragon voltou o olhar rapidamente para a velha senhora.

– Seu neto?

– Sim, meu amigo. Este é Kevin. Ele vem em paz como seu aliado, assim como eu.

O olhar duro e vazio de Dragon se voltou de novo para Kevin.

– Então eu sinto muito pela dor que essa morte vai causar a você.

– Dragon, você precisa me escutar. Se não fizer isso, se você o massacrar sem pensar, como você vai ser diferente de Neferet e do seu exército de monstros vermelhos?

Dragon Lankford fez uma pausa longa o suficiente para olhar com tristeza para Sylvia de novo.

– Eu não a culpo por trazê-lo aqui. Você está claramente sob a influência dele. Você vai me perdoar quando recobrar a consciência.

A visão de Kevin, que era aguçada de modo sobrenatural, conseguiu perceber o que estava prestes a acontecer um instante antes de Dragon atacar. Kevin só conseguiu pensar no que a longa espada afiada igual a uma navalha poderia fazer na sua pequena e velha avó. Ele se mexeu com uma velocidade estonteante quando Dragon deu o bote, atirando-se na frente dela enquanto pegava o seu galho de proteção contra aranhas e desviava o golpe da espada. Deslocado para o lado, o golpe que era destinado a decapitar sua cabeça acabou riscando as suas costas de ombro a ombro.

No começo, ele não sentiu nenhuma dor – apenas um puxão e o súbito calor do seu sangue jorrando pelas costas.

Vovó Redbird gritou e caiu sobre o corpo de Kevin, bloqueando o próximo golpe fatal de Dragon.

– Cheire o sangue dele! – Sylvia berrou. – Cheire, Dragon! O sangue dele não é como o dos outros vampiros vermelhos! – Pressionada contra o corpo ensanguentado do seu neto, a raiva de Sylvia era quase palpável. – Você vai ter que me matar para atingi-lo!

– Bryan, espere.

Em meio à confusão do choque, Kevin observou uma mulher se aproximar do Mestre da Espada e gentilmente tocar o seu braço. A beleza dela era etérea, fazendo-a parecer com uma das fadas ancestrais. Kevin achou que o seu longo cabelo loiro parecia irradiar luz própria. E um corvo enorme estava empoleirado serenamente no seu ombro.

– Meu amor, a nossa amiga Sylvia está certa. O sangue desse garoto não tem cheiro de morte.

Aquilo fez a espada de Dragon hesitar. O Guerreiro respirou fundo, e então arregalou os olhos. Ele deu um passo à frente, facilmente retirando Vovó Redbird de cima de Kevin e depositando-a ao lado da trilha, perto da mulher com o corvo. Dragon então pressionou a espada contra o pescoço de Kevin.

– Isso é magia negra? O Exército Vermelho aprendeu a disfarçar o seu cheiro? – Dragon o interpelou.

– Não – Kevin respondeu de modo ofegante, tentando falar em meio à dor ardente em suas costas. – Não é magia negra... é amor. Nyx intercedeu por mim e devolveu a minha humanidade. Por favor, não machuque a minha avó.

E então a beleza etérea novamente estava lá. Facilmente afastando a espada assassina para o lado, ela tocou o rosto de Kevin, sorrindo docemente para ele. Então ele percebeu quem aquela bela devia ser: Anastasia, a companheira de Dragon Lankford.

– Bryan, olhe além da sua raiva e veja este garoto.

Lentamente, Dragon colocou a longa espada na bainha presa às suas costas. Então ele deu um passo à frente, ficando a um palmo de distância de Kevin, que estava fazendo o melhor que podia para não desabar sobre o volante. O Guerreiro o cheirou e analisou a sua Marca.

– O que você é? – ele finalmente perguntou.

– Um garoto vampiro que você quase matou – disse Sylvia Redbird ao abrir caminho e passar por Dragon. – Esta ferida precisa de um curativo. Ele está perdendo muito sangue.

– Nós vamos cuidar dele. Você consegue andar? – a mulher encantadora perguntou a Kevin.

Dragon falou antes que Kevin conseguisse fazer a sua voz sair.

– Não, Anastasia. Diferente ou não, ele ainda é um vampiro vermelho e, portanto, nosso inimigo. Eu preciso acabar com ele.

– Meu amor, nós não podemos perder a nossa capacidade de demonstrar misericórdia ou, como Sylvia resumiu tão bem, não vai haver diferença entre nós e os monstros de Neferet. Confie em mim. Tenho um pressentimento bom sobre este garoto.

Dragon olhou para a sua companheira por um longo momento antes de assentir. Era um aceno leve, mas, ainda assim, ele havia assentido.

– Vamos cuidar dele e ouvir a sua história. Nós não somos monstros.

Anastasia beijou o rosto de Dragon enquanto o corvo em seu ombro observava Kevin com olhos escuros e inteligentes.

– É claro que não somos. – Ela se virou de novo para Kevin e repetiu a pergunta: – Você consegue andar?

– Sim. Acho que sim. – Ele começou a tirar as pernas para fora do Polaris. Antes que conseguisse se conter, Kevin arfou com a pontada de dor. Pontos brilhantes de luz brotaram na sua visão. Ele teria caído se Anastasia não o tivesse segurado.

– Eu... eu si-sinto muito – ele disse, batendo os dentes.

– Bryan! Este garoto está terrivelmente ferido – disse a bela, enquanto o seu corvo levantava voo, grasnando indignado.

– Há bolsas de sangue e cobertores no contêiner, junto com o resto dos mantimentos que Tina enviou. – Vovó Redbird foi apressada até o porta-malas do Polaris, voltando para o lado de Kevin com dois cobertores enrolados e o braço cheio de bolsas de sangue. Ela desenrolou o cobertor na trilha, no espaço entre o Polaris e a árvore caída, e arremessou o outro cobertor para Dragon. – Use essa espada para algo além de machucar crianças. Corte isso em tiras.

Kevin achou ter ouvido Dragon resmungar “Sim, senhora”, mas era difícil ter certeza com o zumbido nos seus ouvidos.

– U-we-tsi, Anastasia e eu vamos ajudar você a se deitar naquele cobertor. Depois nós vamos fazer um curativo nesse ferimento. Mas primeiro beba uma dessas bolsas de sangue. Isso vai ajudar.

– A-Anastasia? – Kevin gaguejou. – Vo-você é a companheira de Dragon, ce-certo? Mi-minha irmã me disse para en-encontrar vocês. Mas ela nã-não falou que você tinha um pássaro. – As mãos dele estavam tremendo demais para segurar a bolsa de sangue, então Vovó a segurou perto dos seus lábios enquanto ele bebia a primeira bolsa, depois a segunda, e, por fim, a terceira.

– Sim, é claro que sou a companheira de Dragon, e Tatsuwa não é um pássaro. Ele é um corvo. Se ele ouvisse você o chamando de pássaro, nunca o perdoaria – Anastasia falou com Kevin com uma voz calma e tranquilizadora. – Ok, vamos colocar você no cobertor.

Ela voltou o olhar aguçado para o seu companheiro e, antes que Kevin pudesse se dar conta, uma onda de dor e surpresa ameaçou inundá-lo quando o compacto Guerreiro o carregou para fora do veículo, como se ele não pesasse mais do que uma criança pequena. Então ele o levou até o cobertor e o soltou sobre ele, de bruços.

Determinado a não chorar, Kevin mordeu com força a parte interna da sua bochecha enquanto sua avó e Anastasia pressionavam tiras de cobertor contra a ferida encharcada de sangue. Elas o ajudaram a se sentar para que conseguissem enfaixá-lo em volta do peito e em cima dos braços.

– Eu me sinto estranho – Kevin disse. – Tipo como se eu estivesse flutuando.

– O corte é longo e profundo, mas você vai se recuperar – Anastasia prometeu. – Eu vou dar pontos para fechá-lo assim que nós o levarmos de volta conosco.

– Você é muito bonita – Kevin falou sem pensar.

– Grumpf – Dragon grunhiu de onde estava, bem perto da sua mulher, ainda observando Kevin com desconfiança.

– Obrigada. E você está sendo um ótimo paciente – Anastasia respondeu, ignorando o seu companheiro.

– Pronto. Isso é o melhor que nós podemos fazer aqui. – Vovó Redbird terminou o curativo. – Acho que é melhor ele não tentar andar. O sangramento ainda não parou de fato. Quanto mais ele se mexer, pior vai ficar.

– Concordo. – Anastasia olhou para o seu companheiro e ergueu uma sobrancelha loira e arqueada. – Bryan?

Dragon Bryan Lankford suspirou.

– Johnny B e Erik... peguem o resto dos mantimentos no Polaris.

– Erik? – Kevin virou o rosto para poder ver o vampiro jovem e alto. – Erik Night?

Erik deu uma olhada rápida na direção dele.

– Sim, eu sou Erik Night.

– Eu amei você como o Super-Homem! Mas, ahn, achei que você tivesse morrido. Foi o que falaram no Exército Vermelho.

Erik bufou.

– A única coisa que está morta em mim é a minha carreira de ator... morta pelas merdas que Neferet fez.

– Ei! Chega de conversa fiada. Vocês dois, peguem os mantimentos como eu mandei. – Dragon deu um olhar fulminante para Kevin antes de se voltar para Vovó Redbird. – Sylvia, imagino que você virá junto com o seu neto e não voltará para o rancho de Tina hoje.

– Imaginou certo.

Dragon suspirou de novo.

– Drew, esconda o Polaris. É melhor que os outros se espalhem pela montanha para ter certeza de que o Exército Vermelho não os estava seguindo. E eu quero dizer até lá embaixo da montanha. Verifiquem todos os caminhos, principalmente os que vêm da Lone Star Road. – Ele ergueu a voz e chamou: – Erik! Pensando bem, deixe Johnny B descarregar os suprimentos. É melhor você descer até o lado da montanha que dá para a casa de Tina, e verificar se ela não acendeu uma fogueira de alerta.

– Pode deixar!

– Ninguém está me seguindo. Eles não sabem que estou aqui – Kevin afirmou.

– É melhor você não falar – Dragon disse a ele.

– Não dói mais nem menos se eu falar – Kevin respondeu, tentando sorrir para o vampiro carrancudo.

– Eu quis dizer que é melhor para mim. – Em um movimento, Dragon se inclinou e colocou os braços em volta de Kevin, levantando-o como se ele fosse um bombeiro resgatando uma vítima e colocando-o sobre suas costas largas. Então o Guerreiro se voltou para a sua companheira.

– Eu sigo vocês.

– É claro, meu amor – disse Anastasia.

A última coisa que Kevin ouviu antes de felizmente ficar inconsciente foi a risada musical de Anastasia Lankford e o grasnido do seu corvo que voava em círculo acima deles.


6

Outro Kevin

Kevin recobrou a consciência ao ouvir o barulho de uma discussão.

– Ele não vai conseguir subir em nenhum dos esconderijos de caça. Nós precisamos levá-lo para a caverna – Anastasia estava dizendo.

– Eu não acho isso uma boa ideia – Dragon retorquiu. – Se ele souber que nós estamos escavando uma caverna, então existe o risco de que o Exército Vermelho descubra isso também.

– Meu amor, o garoto já sabe como as coisas funcionam aqui. Ela sabe que Tina é uma aliada. Se ele nos trair, vai ser como o Keystone Park de novo, e nós nunca vamos conseguir voltar para cá – Anastasia falou.

– Kevin não vai trair vocês – a avó afirmou. – Dragon Lankford, você pode sentir pelo cheiro que ele não é como os outros. Ele não age como os outros. Há uma explicação para o que aconteceu com ele, mas essa explicação não será relevante se o meu neto morrer da ferida que você infligiu.

Foi preciso várias tentativas, mas finalmente Kevin fez a sua voz soar. Apesar de mal conseguir pronunciar mais alto do que um sussurro, o seu rosto estava perto do ouvido de Dragon, e o Mestre da Espada não teve dificuldade em escutá-lo.

– Por favor, me coloque no chão.

– Kevin? Você está acordado? – Vovó Redbird estendeu a mão para tirar o cabelo cheio de suor de Kevin dos seus olhos.

– Po-por favor. Eu prefiro sangrar até a morte do que continuar sendo carregado.

– Bryan Lankford, leve este garoto até a caverna. Agora.

Kevin sentiu o suspiro de Dragon, mas o poderoso Guerreiro fez o que sua companheira ordenou. Ele seguiu por um caminho estreito, que, pelo que Kevin conseguiu ver, era uma área plana e coberta por grama no alto da montanha. Eles desceram contornando várias rochas enormes de arenito e finalmente chegaram a uma abertura estreita voltada para o precipício. Uma luz pálida e trêmula vinda de dentro projetava sombras que bruxuleavam nas pedras. Dragon fez uma pausa, enquanto Anastasia deslizava para dentro. Momentos depois, três figuras encapuzadas saíram apressadas. Eles não olharam para cima, apenas mantiveram suas cabeças abaixadas, escondendo os rostos ao passar por Dragon, Kevin e Vovó Redbird.

– Ok, tragam o garoto para dentro – a voz de Anastasia chegou até eles.

Dragon virou-se de lado para que ele e a sua carga conseguissem entrar. Então, sem a menor cerimônia, ele largou Kevin no chão de pedra da pequena caverna, e o mundo de Kevin ficou temporariamente cinza com pontos brilhantes.

– Você poderia ter sido mais gentil – Anastasia disse.

– Eu poderia tê-lo matado e poupado todos nós dos problemas que ele vai trazer – Dragon replicou.

– O meu neto traz esperança, não problemas, Dragon Lankford – Vovó Redbird disse com firmeza.

– Sylvia, perdoe-me por dizer isso, mas é claro que você pensaria dessa maneira. Ele é sua família. A grande lealdade que você demonstra por ele é admirável, seja ela justificada ou não – Dragon respondeu.

Conforme a visão de Kevin ficou mais clara, ele viu sua avó encarar o Mestre da Espada. As mãos no quadril, os cabelos grisalhos recaindo por seus ombros, e ele nunca a havia visto ficar tão enfurecida.

– Kevin foi Marcado há mais de um ano. Ele se Transformou logo depois disso. Alguma vez eu mencionei o nome dele a você?

– Não, mas...

– Não! Eu não mencionei – ela o interrompeu. – E não fiz isso porque eu não iria, não poderia colocar a Resistência em perigo, e ainda assim aqui estou. De repente trazendo o meu neto até vocês... um neto que é claramente um vampiro vermelho, mas que não tem o cheiro diferente do seu e que age de um modo perfeitamente racional.

– Sylvia, desde os assassinatos de Lenobia e Travis, manter a Resistência em segurança é o meu trabalho. Já aconteceram tantas mortes e, se houver pelo menos um pequeno risco de o seu neto nos comprometer, então nós precisamos tomar todas as precauções. Você acha que me dá prazer decapitar um garoto? Ele não tem culpa por ter sido Marcado como vermelho. Eu não sou um monstro, Sylvia Redbird.

– É claro que você não é, meu amor. – Anastasia levou uma lamparina a óleo até Kevin e a colocou em um nicho na rocha perto deles antes de depositar uma bolsa grande de couro ao lado dele. Ela abriu a bolsa e começou a procurar algo lá dentro enquanto falava: – Sylvia tem razão. Ela está trabalhando conosco por muitos meses e nenhuma vez tentou trazer o neto dela aqui.

– Porque não seria seguro me trazer até aqui antes do que aconteceu – Kevin se esforçou para falar. – Não importa o quanto eu me esforçasse para manter a minha humanidade.

– Fique quietinho. Preciso dar pontos nesse ferimento – Anastasia disse enquanto desenrolava o curativo improvisado. – Sylvia, há várias garrafas de água limpa lá no fundo da caverna. Você pode trazer aqui para mim, por favor?

Sylvia foi apressada até o fundo da caverna, retornando com duas garrafas de um litro de água fresca, que entregou para Anastasia.

– O que mais posso fazer para ajudar?

Anastasia passou para ela uma compressa de gaze.

– Vá secando o sangue enquanto dou os pontos para que eu consiga enxergar o que estou fazendo. – Ela segurou uma agulha longa e curva que estava presa ao fio escuro de sutura. – Kevin, pressinto que isso vá ser um pouco desagradável para nós dois... mais para você do que para mim.

– Tudo bem. Não é tão ruim quanto sentir a minha humanidade escapando de mim.

– O que aconteceu com você? O que mudou você? – Dragon perguntou de repente.

Anastasia levantou rapidamente os olhos para o seu companheiro, que estava em pé perto da entrada da caverna, os braços cruzados, com uma expressão sombria turvando seu belo rosto.

– Você pode interrogá-lo depois que eu der os pontos nele.

– Eu prefiro falar. Vai me distrair um pouco – Kevin disse.

– Muito bem. Vou começar. Primeiro vou colocar álcool sobre o ferimento. Vai doer bastante.

– Estou pronto. Ok, então, o que aconteceu comigo? Bom, eu...! – Kevin perdeu as palavras e deu uma arfada de ar brusca. Era como se Anastasia estivesse derramando fogo líquido nas suas costas, e ele teve que lutar para permanecer consciente.

– Respire, u-we-tsi. Respire. Profundamente, inspire e expire, inspire e expire. Vai passar – Vovó o tranquilizou enquanto secava as suas costas.

Kevin cerrou os punhos e respirou fundo várias vezes junto com sua avó.

– E agora vou começar a dar os pontos. A boa notícia é que o ferimento é longo e reto. Você vai ficar com uma cicatriz, mas deve sarar rápido.

– Melhor isso do que perder a cabeça – Kevin conseguiu falar entre dentes cerrados.

Quando ela começou a dar os pontos, Kevin pensou que ia desmaiar. Ele queria desmaiar, mas, como isso não aconteceu, Kevin voltou a se concentrar na sua história. Ele tentou fingir que estava fora do próprio corpo, em pé ao lado de Dragon, olhando para a noite fria de inverno enquanto falava.

– Três noites atrás, eu era parte de um grupo de soldados vampiros vermelhos e aprendizes novatos que foram arrancados de nossos alojamentos nos túneis embaixo da estação e levados para um mundo alternativo – Kevin fez uma pausa e respirou fundo várias vezes quando a dor nas suas costas ameaçou subjugá-lo.

– O que você quer dizer com um mundo alternativo? – Dragon perguntou.

– Um mundo que é quase como este aqui, só que Neferet não está no poder. A minha irmã está.

As mãos ocupadas de Anastasia fizeram uma pausa.

– Zoey?

– Você conhecia a minha irmã?

– Sim. Ela era uma jovem adorável. Ela entrou na minha aula de Feitiços e Rituais algumas semanas antes de ser assassinada, mas já tinha demonstrado que seria promissora com a magia. Você se lembra dela, não lembra, Bryan?

– Eu lembro que a morte dela foi o começo oficial da guerra de Neferet – Dragon respondeu.

– Neferet a matou – Kevin disse.

– Como você sabe disso? – Dragon perguntou repentinamente.

– Porque no mundo da outra Morada da Noite, Neferet tentou começar uma guerra com humanos da mesma forma... culpando-os pela morte de vampiros. Vampiros que ela mesma matou.

– E a sua irmã morta contou isso pra você? – Dragon falou.

– Não, a minha irmã viva me contou isso... na Morada da Noite de Tulsa, onde ela é uma das várias Grandes Sacerdotisas poderosas que comandam tudo. Zo e o seu grupo derrotaram Neferet e impediram que a guerra acontecesse.

– Garoto, você acabou de cometer o seu primeiro erro. Nós temos espiões no acampamento do Exército Vermelho. São poucos, mas posso conferir com eles essa história de desaparecimento.

– Ótimo – Kevin disse entre dentes cerrados enquanto Anastasia passava a agulha através de outro pedaço de sua carne rasgada. – Quero que você faça isso. Pergunte aos seus homens o que aconteceu com o General Dominick e os seus soldados.

– Vou perguntar. Pode ter certeza.

– Ótimo – Kevin repetiu.

– Mas, até lá, vamos dizer que eu acredito em você. Como o fato de ser atraído para outra versão do nosso mundo restaurou a sua humanidade?

– Foi algo que Nyx fez depois de abençoar Aphrodite com o dom de conceder segundas chances.

– Aphrodite? – Dragon pronunciou o nome com sarcasmo. – Você quer dizer a Sacerdotisa azul que tem visões sobre morte?

– Ela mesma. Só que no outro mundo ela é uma Profetisa de Nyx, tão poderosa quanto bonita.

Dragon bufou.

– Bom, neste mundo ela é praticamente inútil, a menos que você esteja tão iludido com a beleza dela que faça vista grossa para os seus prazeres egoístas e a sua ganância mesquinha.

– Mas, mesmo nesse mundo, ela ainda é uma Profetisa – Kevin argumentou.

– Ela é uma Profetisa que tem visões que raramente consegue interpretar. Antes de Anastasia e eu escaparmos para nos juntar à Resistência, havia rumores de que Neferet estava descontente com ela.

– E por que não estaria? – Anastasia comentou enquanto continuava a fazer a sutura nas costas de Kevin. – Eu abomino tudo que Neferet defende, mas Aphrodite é uma Profetisa horrível. Ela usa a beleza e o dom concedido pela Deusa para manipular os outros. Acredito de verdade que ela retém informação das suas visões, a menos que ache que pode ganhar algo com elas. Não sei por que Neferet não se livra dessa criatura.

– Eu sei. Aphrodite é uma mestra em saber em quanto ela pode abusar ou não de Neferet. Quando vai longe demais, Aphrodite simplesmente tem uma visão que é subitamente clara o bastante para que possa interpretá-la, e, coincidentemente, essa visão também é de grande valor para Neferet – Dragon explicou.

– Ela é diferente no outro mundo – Kevin insistiu. – Ela sacrificou a sua humanidade para salvar os primeiros novatos vermelhos. E desde então, naquele mundo, todos os novatos e vampiros vermelhos têm a capacidade de manter a sua humanidade. Tudo por causa de Aphrodite.

– E por causa dessa diferença, Kevin acredita que pode chegar até a Aphrodite que está neste mundo e convencê-la a fazer o mesmo sacrifício – Vovó Redbird acrescentou.

Houve um longo silêncio durante o qual Kevin tentou, em meio à dor ardente nas suas costas, pensar em algo a acrescentar – alguma coisa que convencesse Dragon de que o que ele estava contando era verdade.

Quando Dragon falou novamente, Kevin escutou uma mudança na sua voz. Muito leve, mas um pouco do sarcasmo e da raiva pareciam ter desaparecido.

– O que faz você pensar que Aphrodite pode fazer essa escolha? A Profetisa que você descreve tem muito pouco em comum com a do nosso mundo.

– Porque mesmo em outro mundo, quem nós somos lá no fundo parece não mudar muito. A única diferença é que nós passamos por experiências de vida diferentes, as quais têm o poder de mudar as nossas personalidades e as nossas reações – Kevin explicou. – Zoey me falou para procurar você e Anastasia neste mundo. Ela disse que vocês me ajudariam a derrotar Neferet, porque vocês a ajudaram no mundo dela.

– Bryan e eu também somos companheiros nesse outro mundo?

Kevin pensou em não contar o que havia acontecido, mas ele afastou aquele pensamento rapidamente. A verdade era uma das poucas forças que ele tinha, e ele não iria começar a mentir e estragar o que já tinha conquistado.

– Vocês eram – ele contou a Anastasia.

– Éramos? – Dragon perguntou.

– Vocês foram mortos. Não sei bem o que aconteceu. Zoey não teve tempo de me contar isso. Só que vocês morreram corajosamente salvando os outros.

– Nós dois estamos mortos? – a voz de Anastasia soou trêmula.

– Estão. Sinto muito – Kevin respondeu.

Anastasia pousou a mão ensanguentada no ombro dele por um instante.

– Não sinta. Se o meu Bryan perecesse, eu não gostaria de viver sem ele.

– E eu não iria dar nem um suspiro em um mundo sem você, meu amor – Dragon afirmou.

Do canto do olho, Kevin viu Anastasia se virar e levantar os olhos para o seu companheiro.

– E é a sua capacidade de amar que faz você maior do que a sua espada. Maior do que um dragão. Pense nisso, Bryan. Se isso for verdade, se Kevin conseguir chegar até Aphrodite e convencê-la a repetir o que fez naquele outro mundo... então a guerra de Neferet mudaria drasticamente.

– Sim – Kevin concordou. – Ela não teria um exército de armas irracionais. Ela teria apenas os oficiais azuis e os Guerreiros Filhos de Erebus, e quantos deles vão permanecer fiéis a ela e lutar se perceberem que Nyx não abençoa essa guerra?

– Ela perderia um pouco de poder, mas talvez não o bastante para acabar com a guerra – Dragon disse pensativamente. – Ela tem sido cuidadosa de apenas colocar em posições importantes Guerreiros que querem ter mais coisas: mais riquezas, mais terras, tudo.

– Mas pelo menos a gente teria uma chance de combatê-los – Kevin insistiu. – Dragon, eu vi o que acontece quando vampiros e novatos vermelhos têm a sua humanidade restaurada, e eu prometo a você que nenhum deles vai querer lutar de novo.

– Onde eles estão, esses outros vampiros e novatos vermelhos alterados? – Dragon perguntou.

– Ainda no outro mundo. Zoey teria que forçá-los a voltar para cá, e ela se recusou a fazer isso. Foi um choque terrível quando eles se recuperaram e se deram conta de tudo que tinham feito. Vários cometeram suicídio antes que pudéssemos detê-los.

– E você? Por que você não ficou devastado? – o Mestre da Espada perguntou.

– Porque eu era diferente desde o momento em que fui Marcado. Eu conservei mais da minha humanidade do que qualquer outro, e por causa disso eu garanti que...

De repente, do lado de fora da caverna vieram os gritos de alerta de um corvo, imediatamente seguidos por um alvoroço. O pássaro voou freneticamente até Anastasia enquanto Erik Night foi apressado até Dragon.

– Perigo! Perigo! Perigo! – o corvo berrou ao pousar no ombro de Anastasia.

– Tina acendeu uma fogueira de alerta! – Erik contou a Dragon.

Kevin estava ocupado demais olhando fixamente para o corvo e pensando se corvos normais conseguiam falar ou se esse em específico tinha poderes sobrenaturais, quando Dragon virou-se e o encarou.

– Seu desgraçado traidor! – Dragon atirou as palavras para Kevin.

– Não! Não fui eu! Não poderia ser. E-eu nem fui para o quartel ontem. Fui direto até a fazenda de Vovó Redbird.

Outro vampiro azul entrou apressado na caverna. Com a respiração ofegante, ele anunciou:

– Soldados do Exército Vermelho estão subindo a montanha!

Dragon Lankford marchou até Kevin e agarrou forte o seu braço, fazendo-o ficar em pé e arrastando-o até a entrada da caverna.

– Antes de matá-lo, você vai me dizer quantos soldados você trouxe até aqui!


7

Outro Stark

– Tenente Dallas, explique de novo para mim por que diabos nós estamos aqui, no meio do nada, em uma noite de inverno congelante, quando eu poderia estar nos meus aposentos com uma fogueira crepitante, venerando o sabor da boca da minha sacerdotisa atual?

O pequeno e jovem vampiro correu até Stark. A sua Marca azul de adulto tinha a forma de relâmpagos, o que fazia sentido por causa da sua estranha afinidade com eletricidade, mas Stark achou que ela ficava mais ridícula naquele rosto que lembrava o de um furão.

– Bom, General, como eu disse a Artus, hoje a nossa varredura de segurança era em Sapulpa e Sand Springs. Lá na mercearia Reasor’s, na esquina da Taft com a Hickory aqui em Sapulpa, o gerente relatou que tinha certeza de que viu Erik Night com um grupo de vampiros azuis que estavam espreitando no estacionamento.

– Bom, Night realmente se juntou à Resistência alguns meses atrás, mas por que nós estamos aqui, se ele foi visto na cidade?

– Porque eu andei pressionando um tenente do Exército Vermelho e ele conseguiu encorajar – Dallas pronunciou a palavra com uma alegria maliciosa – alguns dos moradores locais a admitirem que eles têm notado luzes estranhas vindo desta montanha. A maioria dos caipiras acha que ela é mal-assombrada... eles falaram alguma coisa sem sentido sobre a montanha pertencer ao Povo Creek há gerações. Disseram inclusive que os fantasmas perseguiam os técnicos que perfuravam petróleo no começo dos anos 1900, mas eu não acredito nessa merda. – Eles estavam parados ao lado de uma rodovia denominada Lone Star, que serpenteava pela montanha. Dallas apontou para a cerca com oito arames grossos, que parecia emoldurar toda a grande área selvagem que formava o local chamado Polecat Ridge. – Então, eu dei uma fuçada por aí e encontrei isso.

– Uma cerca? Há fazendas por toda parte nessa região que são cercadas. Por que isso seria um problema? – Stark perguntou.

– Porque isso não é uma fazenda. A montanha é selvagem. Ninguém fez nada nela desde o começo do século passado. Então por que ela é protegida por uma cerca elétrica de alta voltagem?

– Isso é muito? – Stark deu um passo para mais perto da cerca e de fato ouviu um zumbido fraco e sentiu algo diferente no ar.

– Muito. Eu tentei conversar com a velha que é dona da montanha, mas ela não foi muito prestativa... e ela é protegida pelas diretrizes de Neferet porque também é dona das melhores plantações de alfafa em todo o estado. Então eu não pude ser tão persuasivo quanto gostaria.

– Mas ela te deu uma resposta.

– Sim, senhor. Ela falou que tem um rebanho de um tipo especial de veado. Um tipo que Neferet também ama.

– Veado de cauda branca – Stark assentiu. – Neferet gosta de carne de veado. Muito. Não sabia que o fornecedor dela ficava por aqui.

– Sim, essa mesma mulher, Tina, é a dona desta montanha e de todos os campos ao redor. Enfim, ela disse que cria os veados especiais e os deixa soltos na montanha porque ficam mais saudáveis assim, então a carne deles é melhor. Por isso ela tem uma cerca elétrica em volta de toda a propriedade, para manter os veados dentro e os predadores longe.

– Acho que faz sentido. Você perguntou a ela sobre alguma atividade na montanha?

– Sim, senhor. Não consegui nada dela. A velha disse que é silencioso aqui, e por isso ela vive aqui, afastada das pessoas. Ela também disse que vigia a própria montanha, expulsando qualquer intruso, e que ela não precisa, nem quer, a nossa ajuda. Depois disso ela bateu o portão na minha cara.

– Nada de novo – Stark resmungou.

E não era mesmo. Desde a guerra de Neferet, os humanos sofriam. Não que ele estivesse muito preocupado com humanos. A única coisa com que Stark estava muito preocupado era com a sua própria pele – a vida era mais fácil assim –, principalmente nos últimos dias. No entanto, humanos se escondendo atrás de portas fechadas e demonstrando nada além de medo e/ou repugnância por vampiros não ajudava a luta contra a maldita e irritante Resistência.

– Então, quanto eu reportei tudo a Artus, ele disse que a montanha precisava ser inspecionada. E é por isso que nós estamos aqui.

– Tudo bem, então. Essa velha desligou a cerca elétrica? – Stark perguntou, mantendo uma distância segura dos cabos grossos.

– Não, mas a gente não precisa que ela faça isso. Eu consigo colocar a gente aí dentro sem problemas.

– Bom, então faça isso – Stark disse.

Ele deu as costas a Dallas e fez um gesto para o primeiro dos cinco utilitários estacionados atrás do seu veículo na liderança. O motorista obedeceu imediatamente, e soldados vampiros vermelhos e os seus oficiais responsáveis começaram a desembarcar. Stark fez outro gesto para que esperassem, o qual foi passado para a fila atrás, mas ele não precisava ter feito os soldados pararem. Dallas tinha ido até a cerca e colocado a mão no poste mais próximo. Os olhos do jovem vampiro estavam fechados, e a expressão do seu rosto quase indicava que ele estava sentindo prazer – o que não seria uma surpresa para Stark. Ele sempre achou que Dallas era estranho.

Quando Dallas levantou a cabeça no instante seguinte e olhou para Stark, os seus olhos estavam reluzindo com uma luz amarela bizarra.

– Mande os soldados passarem por cima da cerca aqui – Dallas manteve ambas as mãos no poste, indicando com o queixo o local à sua esquerda. – Fale para eles se apressarem. Essa certa tem muitos volts passando por aqui. Eu só posso segurá-los por alguns minutos.

– Vocês ouviram o tenente, façam os homens se mexerem! – Stark gritou.

Stark se afastou e ficou observando os vampiros vermelhos se arrastarem por cima da cerca. Eles parecem umas malditas baratas esfomeadas. Stark não se permitiu estremecer, apesar de sentir como se insetos estivessem rastejando na superfície de sua pele. O Exército Vermelho é necessário, ele lembrou a si mesmo com firmeza. Além do mais, não era como se eles pudessem se sentir ofendidos. Eles não davam a mínima para o quanto eles eram nojentos. Só o que importava para eles era a sua fome insaciável.

– Sua vez, General – as palavras de Dallas tiraram Stark dos seus pensamentos.

Ele rapidamente passou por cima da cerca.

– Ok, vamos nos espalhar e formar uma linha afrouxada, e então vamos subir com essa linha montanha acima.

Eles estavam andando por cerca de quinze minutos, abrindo caminho através de uma vegetação rasteira marrom devido ao inverno e cheia de detritos da floresta. Então encontraram uma estrada de terra acidentada em que mal cabia um quadriciclo, apesar de ser óbvio que ela tinha sido usada recentemente.

– Isso não parece nada bom – Stark disse. – Tenente, você viu algum carro na propriedade daquela senhora?

– Sim, senhor. Vi algumas dessas coisas caras que parecem carrinhos de golfe melhorados. Ela foi dirigindo um deles até o portão para falar comigo.

– Um Polaris – Stark disse, analisando os rastros.

– Perdão, senhor?

Stark levantou os olhos para Dallas.

– Esse é o nome desses veículos. E esses rastros parecem ter sido feitos por um deles. Pode não ser tão ruim quanto eu pensei. A velha senhora pode realmente ter dado uma circulada por aí procurando invasores, mas vamos seguir essa trilha por mais um tempo para ter certeza.

– Sim, senhor!

Depois de mais ou menos trinta minutos de caminhada, ouviu-se um grito à direita de Stark.

– Alto!

Stark pegou o seu arco sempre presente, preso às suas costas, e engatou uma flecha. Seis veados, completamente assustados e de olhos arregalados, passaram saltitando por eles, fazendo os soldados vermelhos se agitarem confusos, enquanto olhavam fixamente a carne de veado em movimento, claramente considerando se deveriam perseguir a presa ou esperar por um jantar mais delicioso e que se movimenta mais devagar com apenas duas pernas.

Stark franziu o cenho de desgosto.

– Dallas! Mantenha esses soldados sob controle. Ninguém mata um veado sem a permissão de Neferet. Cuide para que essas máquinas carnívoras entendam isso.

– Sim, senhor! – Dallas voltou correndo pelo caminho.

Stark podia ouvi-lo gritando para os tenentes do Exército Vermelho. Pela segunda vez naquela noite, ele ficou muito irritado com o fato de o General Dominick e seu pelotão de soldados terem aparentemente desaparecido sem explicações alguns dias atrás. Dominick era amplamente reconhecido como o mais implacável e inteligente dos generais vermelhos, o que significava que os seus soldados eram sempre os mais disciplinados.

– Maldito Exército Vermelho! – Stark resmungou. Ele tentou lembrar a si mesmo para tentar convencer Neferet a considerar a retirada progressiva do máximo possível dos vampiros vermelhos do dia a dia da guerra, e somente usá-los durante as batalhas principais contra os exércitos humanos ou a Resistência. – Eles fazem mais mal do que bem.

Isso sem mencionar que ele achava repugnante que a mordida de qualquer novato ou vampiro Marcado como vermelho fosse venenosa para humanos, inevitavelmente os matando e fazendo com que ressurgissem em três dias como coisas grotescas como zumbis, cuja mordida também era contagiosa.

– E eles têm um mau cheiro horrível.

– Senhor, os soldados estão sob controle – Dallas disse, ofegante, ao chegar correndo perto de Stark.

Stark soltou um grunhido.

– Então vamos em frente de novo. Ficar rastejando por esta montanha não é minha escolha ideal para passar a noite.

A fileira de soldados continuou se movendo, serpenteando pelo caminho, enquanto seguiam o que mal podia ser chamado de estrada de terra. Logo a trilha dobrou drasticamente para a direita, e então seguiu quase em linha reta. Stark suspirou e se concentrou na missão, não gostando nada de sentir o ar mais frio e úmido. Ele tentou lembrar se havia previsão de gelo ou neve. Ele deu uma olhada no seu telefone e praguejou em voz baixa.

É claro que não tem um maldito sinal aqui no meio do nada.

De repente, acima dele, um corvo começou a voar em círculos e a grasnar, como se estivesse irritado por estarem invadindo a sua montanha.

– Vamos apertar o passo – Stark disse a Dallas. – Volte descendo a fila e diga a eles para me acompanharem.

General Stark não esperou por uma resposta. Balançando os braços, ele começou a subir correndo a trilha de terra vermelha, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.


Outro Kevin

Dragon Lankford agarrou o braço de Kevin, puxou-o bruscamente, fazendo com que ele ficasse em pé, e o arrastou até a boca da pequena caverna. A sua espada montante estava desembainhada e ele ficou na frente de Kevin, segurando a ponta da lâmina afiada contra o seu pescoço.

– Quantos são? – Dragon o interpelou.

Vovó Redbird tentou correr para ficar ao lado de Kevin, mas Anastasia segurou o seu pulso, não permitindo que ela fosse até ele.

– Não, minha amiga. Isso foi além da nossa boa vontade. Dragon precisa lidar com o seu neto agora.

– Quantos? – Dragon repetiu, e a espada tirou uma pequena gota de sangue do pescoço de Kevin.

– Mate-me. Corte a minha cabeça. Faça o que quiser, mas isso não vai mudar a minha resposta porque eu estou dizendo a verdade. Eu não sei o que está rolando lá fora. Eu não sei como eles acharam a sua montanha, mas isso não tem nada a ver comigo.

– Então, é só uma coincidência que um tenente do Exército Vermelho apareça aqui na noite em que os soldados do Exército Vermelho fazem o mesmo? – A voz de Dragon estava pesada com uma fúria mal controlada. – Você sabe quantos inocentes estão aqui? Dezenas! Eles estão espalhados ao nosso redor em esconderijos de caça. Humanos e novatos azuis. Alguns são... apenas crianças. Todos procurando segurança e liberdade, e eles vão perder a vida esta noite. Por sua causa!

– Não! – Vovó Redbird gritou. – Kevin estava comigo. Ele está dizendo a verdade! Eu juro pela minha vida.

Dragon se dirigiu apenas a Kevin.

– Ela vai morrer hoje também. De uma maneira horrível. E, se eles deixarem sobrar algo, ela vai acordar como uma máquina de comer, voraz e irracional. A sua alma só pode estar completamente repleta de Trevas para fazer uma coisa dessas.

Kevin virou a cabeça para o outro lado, incapaz de olhar para a sua avó.

– Sinto muito, Vó. Eu nunca deveria ter deixado você me trazer aqui. Eu sabia que era perigoso demais. Eu devia ter espionado Neferet como você me disse para fazer e deixar que você viesse falar com a Resistência no meu lugar. Eu sinto muito, muito mesmo.

– Eles estão vindo pela trilha oeste! – Um vampiro azul que Kevin não reconheceu arrastou-se pelos últimos metros montanha acima até chegar onde eles estavam.

– Apaguem todas as chamas! – Dragon virou a cabeça para olhar para a sua companheira. – Meu amor, leve os inocentes até lá embaixo pela parte de trás da montanha. Pode ser que eles não nos tenham cercado. – O seu olhar duro encontrou Kevin de novo. – O resto de nós vai ficar aqui e ganhar tempo para que vocês escapem.

– Não. Eu não vou deixar você – Anastasia falou baixo, mas com firmeza. – Sylvia está acostumada com a natureza de Oklahoma. Ela pode guiar os inocentes. Eu vou ficar com o meu companheiro. Eu também sei empunhar uma espada, e prefiro morrer a seu lado.

Kevin viu a dor que atravessou os olhos de Dragon Lankford e o desespero que curvou os seus ombros, e ele não conseguia aguentar aquilo.

Que diabos Zoey faria?

Ele sabia o que ela não faria. Zoey Redbird – a Grande Sacerdotisa que comandava a Morada da Noite de Tulsa com força e honestidade – não iria desistir.

– O sangue da minha companheira vai estar nas suas mãos – Dragon triturou as palavras por entre dentes cerrados. – E depois de acabar com você, que tipo de recepção você acha que Nyx vai lhe oferecer? Essa é a parte boa de morrer. Eu vou estar lá, no Bosque da Deusa, para testemunhar a punição de Nyx.

Enquanto falava, Dragon pressionou a espada com mais força contra o pescoço de Kevin.

Kevin reagiu automaticamente. Ele se jogou para trás, gritando:

– Eu faria qualquer coisa para consertar isso! – As suas costas feridas arderam quando ele colidiu com a parede de pedra da caverna, abrindo os poucos pontos que Anastasia já tinha dado. Kevin cambaleou e caiu, enquanto o sangue escorria pelas suas costas e manchava as pedras.

Instantaneamente, houve uma mudança tão grande no ar que penetrou a fúria de Dragon. Ele congelou com a espada sobre a cabeça, pronta para dar um golpe mortal.

Depois de tudo isso, Kevin pensou que foi semelhante ao modo como o ar ficou em volta da fenda entre o seu mundo e o de Zo, mas, naquele momento, tudo que ele conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto quando seres etéreos começaram a se materializar ao redor dele. Alguns se ergueram das rochas de arenito da caverna. Alguns desceram dos céus, como penas flutuando até o chão. Outros ainda pereceram emergir de dentro da casca dos carvalhos antigos, cheios de nós, pendurados precariamente no precipício ao redor deles.

Eles eram muito diferentes entre si. Muitos pareciam um cruzamento entre folhas caídas e borboletas. Então uma leve rajada de vento soprou e eles mudaram de forma, tornando-se repentinamente belas mulheres aladas. Algumas lembravam beija-flores, só que tinham cabeças delicadas de mulheres incrivelmente bonitas e de homens lindos. Alguns pareciam fogos de artifício de Quatro de Julho, só que menores e translúcidos. Vários tinham forma de vaga-lumes... grandes e lindos vaga-lumes que não deviam estar esvoaçando por aí em pleno inverno. E outros ainda pareciam sereias e águas-vivas cintilantes.

Todos estavam descendo sobre Kevin.

– Magia Antiga! Magia Antiga! – grasnou o corvo, empoleirado no ombro de Anastasia.

A bela Sacerdotisa de repente estava agachada ao lado de Kevin, observando as criaturas com curiosidade e reverência.

– Sim, Tatsuwa! Esses espíritos são Magia Antiga. Nunca pensei que veria um, já que a Magia Antiga quase desapareceu do mundo.

Uma figura com asas de borboleta, que era uma mulher voluptuosa do tamanho aproximado da mão de Kevin, inteiramente nua, exceto por um vestido feito de brilho, esvoaçou até ele, concedendo um olhar suplicante.

– O-o que eles querem? – Kevin gaguejou.

– Você os invocou. Pergunte a eles – ela disse.

– Hum, o que vocês querem? – Kevin perguntou inseguro para o espírito flutuante.

“Nós aclamamos o chamado.

Vosso sangue é verdadeiro.

Qual é o vosso desejo

Que devemos realizar?”

Kevin não hesitou.

– Escondam-nos! Não deixem que os vampiros que estão subindo a montanha encontrem nenhum de nós que já estamos aqui em cima – ele fez uma pausa e então acrescentou: – Por favor.

“Se fizermos isso por vós,

O que fará por nós?”

Kevin abriu a boca para responder, mas Anastasia colocou a mão no seu braço e o deteve. Imediatamente, ela sussurrou:

– Tome cuidado. A Magia Antiga é poderosa. E também nunca é gratuita.

– O que você acha que eles querem? – Kevin sussurrou de volta.

– Os espíritos são ligados aos quatro elementos físicos: ar, fogo, água e terra. Encobrir esta montanha deve ser uma tarefa fácil para eles. Ofereça o seu sangue, mas apenas a quantidade que você já verteu.

Kevin limpou a garganta e então respondeu ao espírito cintilante.

– Eu vou pagar vocês com o meu sangue, mas apenas o sangue que eu já derramei. Isso é o suficiente para nos manter a salvo?

O espírito rodopiou no ar e foi cercado por todas as outras diferentes criaturas. Kevin podia ouvir que elas estavam murmurando, mas as palavras eram estranhas. Não como outra língua, mas como um modo diferente de pensar e de formar sons.

Então ela flutuou até pairar acima dele de novo.

“Nós aceitamos vosso preço esta noite

Já que vosso sangue é forte com a Luz.

Nós selamos este acordo convosco.

E é dito – que assim seja!”

Quando Tatsuwa grasniu um lamento, Anastasia se afastou rapidamente do caminho, juntando-se a Dragon, que estava a poucos metros de Kevin, com a espada ainda desembainhada, enquanto os espíritos cobriam o jovem vampiro vermelho. No início Kevin se contraiu, esperando que eles causassem ainda mais dor do que ele já tinha suportado aquela noite, mas o toque deles era estranhamente suave, como chuva fria caindo em uma floresta em chamas. Os espíritos também cobriram toda a parede rochosa da caverna, o chão de terra ao redor dele e até a ponta da espada de Dragon – qualquer lugar onde houvesse uma gota salpicada do seu sangue. Enquanto bebiam, os seus corpos resplandeciam com luz e cor, e eles fizeram tantos sons de estalos e gorjeios animados que fizeram Kevin sorrir.

Então, com a mesma rapidez com que haviam surgido, eles desapareceram.

E a noite ao redor deles mudou totalmente.


Outro Stark

Começou de modo inocente. Stark sentiu a direção da fria brisa da noite se alterar e se acentuar. Ele estava suando por causa da subida da montanha, então o seu rosto úmido registrou instantaneamente a mudança e ele estremeceu, apertando o passo.

E então o céu da noite começou a cuspir gelo.

Stark escorregou em uma pedra, subitamente lisa com o gelo, tão escura quanto a floresta ao redor deles, e teve que girar os braços para não cair. Ele abaixou a cabeça, protegendo-se da chuva fria, e diminuiu o ritmo.

Depois disso a névoa começou, vinda de lugares mais baixos ao redor deles, e erguendo-se das entranhas da montanha. Atrás dele, alguém gritou alto, e alguns instantes depois, Dallas estava ofegante ao seu lado.

– Senhor, os homens estão escorregando. Um dos soldados acabou de cair e espatifou a cabeça contra uma pedra.

Caminhando com dificuldade, Stark parou.

– O tempo virou. Eu devia ter conferido a previsão antes de sair da Morada da Noite.

– Senhor, eu conferi – Dallas disse, enxugando o rosto com as costas da manga do seu casaco encharcado. – A previsão era de frio e tempo firme.

– Isso que dá escutar Travis Meyer e o News on Six – Stark resmungou. – Bom, diga aos oficiais vermelhos para levarem os seus soldados de volta para os utilitários. Você e eu vamos em frente, continuar vasculhando até o topo da montanha para que eu tenha certeza...

Um grupo de vaga-lumes incrivelmente grandes saiu voando de dentro da névoa, esvoaçando rapidamente na chuva de gelo ao redor como se fossem crianças brincando em uma fonte. Stark ficou olhando fixamente para eles através do gelo, da chuva e da neblina enquanto os seus corpos de inseto se alteravam para corpos de mulheres nuas e depois novamente para insetos.

Stark sentiu o seu sangue ficar tão frio quanto o gelo que caía.

– Magia Antiga – ele falou baixo.

– O que foi, senhor? – Então os insetos incandescentes atraíram a visão de Dallas. – Ei, vaga-lumes! Merda, que coisa estranha.

– Não são vaga-lumes. São espíritos. Vamos recuar, Dallas. Diga aos soldados que estamos indo embora. Agora!

Dallas olhou confuso para Stark, mas saiu apressado para fazer o que ele ordenou. Stark fez uma pausa só por um segundo antes de segui-lo trilha abaixo.

Os espíritos eram realmente espetaculares – tão bonitos quanto haviam sido descritos nos tomos antigos que o seu professor de Feitiços e Rituais insistiu que a sua classe avançada lesse, de ponta a ponta. Stark havia ficado imerso na aula de Feitiços e Rituais, principalmente porque ele adorava ler. A metade final do último livro mais avançado usado na aula era dedicada à Magia Antiga e principalmente aos espíritos elementais.

Stark vasculhou a memória enquanto se afastava devagar da nuvem cintilante de criaturas. Os espíritos eram poderosos, mas tão instáveis quanto a Magia Antiga que os constituía – em outras palavras, eles podiam ajudar você em determinado momento, e se voltar contra você no instante seguinte.

O que Dallas falou sobre esta montanha? Era uma terra ancestral da Nação Creek.

– Faz sentido – ele murmurou para si mesmo enquanto continuava o caminho de volta, relutante em desviar o olhar dos espíritos. Eles devem ter sido protetores da terra, aliados da Nação Creek quando os indígenas viviam no local, e não compreendem que o mundo mudou, seguiu em frente. Eles ainda continuavam protegendo a terra.

Ele alcançou a fila de retirada, ordenando aos soldados que andassem o mais rápido possível para sair daquela terra. Dallas correu na frente deles, controlando a eletricidade o suficiente para que o grupo passasse sobre a cerca novamente. Na hora em que Stark chegou ao utilitário e Dallas manobrou o veículo líder em que eles estavam para voltarem para Tulsa, a estrada estava quase intransitável por causa do gelo.

– Senhor, o que diabos aconteceu lá em cima? – Dallas perguntou.

– A confirmação de que nenhum membro da Resistência anda rondando por aquela montanha. Magia Antiga com esse tipo de proteção não admite intrusos. Aquela mulher, Tina, é dona de toda a montanha?

– Sim, senhor.

– Ela deve ter sangue Creek. É por isso que os espíritos a deixam zanzar por ali, fingindo procurar por intrusos – Stark bufou. – Intrusos, caramba! Eu detestaria ver o que a Magia Antiga faria com qualquer um que invadisse aquela terra.

– Bom, pelo menos nós sabemos que os habitantes não estão mentindo – Dallas disse. – Não sei quase nada sobre Magia Antiga, mas eu vi aqueles insetos. Eles brilhavam como luzes. Deve ser isso que as pessoas falaram que viram lá em cima.

– Só pode ser. – Stark hesitou. – Foi só isso que você viu? Apenas insetos brilhantes grandes?

– Sim, isso não é estranho o suficiente?

– É sim – Stark respondeu, perguntando-se por que ele se sentia aliviado por Dallas não ter visto os espíritos se transformando em formas semi-humanas.

– Bom, parece que a gente não tem que se preocupar em vigiar aquela montanha. Ótimo. Muitos espinheiros malditos, pedras e coisas assim para o meu gosto. Além disso, eu odeio o campo. Sou um cara da cidade.

– Tenente, quero que você mantenha a boca fechada sobre o que nós vimos lá em cima. A última coisa que precisamos é de um bando de novatos idiotas pensando que seria uma aventura ir até lá para dar uma olhada na Magia Antiga.

– Como quiser, senhor, mas não pareciam perigosos. Eles parecem vaga-lumes anormalmente grandes, até são bem bonitinhos.

– Dallas, só um daqueles insetos bonitinhos tem a capacidade de devorar você inteiro... e eu quero dizer você inteiro mesmo. Os espíritos conseguem drenar almas tão facilmente quanto drenam sangue.

– Pelas tetas de Nyx! Você está brincando?

Stark deu um olhar duro para ele.

– Parece que estou brincando com você, Tenente? E nunca mais use o nome da Deusa dessa forma perto de mim de novo.

– Sim, senhor. Desculpe, senhor.

– Cale a boca e dirija.

O tenente obedeceu, deixando o seu general contemplando a noite.

A Magia Antiga já deveria ter desaparecido quase completamente do mundo. Os livros dizem que ela só pode ser encontrada na Ilha de Skye, e ninguém tem permissão de entrar lá há séculos. Stark não conseguia imaginar o que os espíritos estavam fazendo ali. O fato de ser uma terra de indígenas americanos que eles ainda estavam protegendo fazia sentido.

Ainda assim não explicava o porquê de estarem despertos e ativos o bastante para serem vistos por habitantes humanos do local.

Será que isso tem alguma coisa a ver com a guerra de Neferet?

Um arrepio de mau pressentimento desceu pela coluna de Stark, mais frio do que o gelo que parou de cair assim que saíram da Lone Star Road.

Stark tinha certeza de que ele sabia a resposta para a sua pergunta. O que ele não sabia era se era um bom ou mau sinal que os espíritos estivessem ficando ativos. Ele também não sabia que diabos fazer com a sua descoberta.

O seu dever era reportar isso a Neferet, mas Stark era um Guerreiro Filho de Erebus juramentado antes de se tornar general de Neferet, e o seu primeiro dever de lealdade era com a Deusa Nyx.

A verdade secreta que Stark mantinha escondida lá no fundo era que ele não confiava em Neferet, nem concordava com a guerra dela.

Claro, ele fazia parte de um grupo muito grande e firme de vampiros azuis que exigiam um melhor tratamento para os humanos. Antes da guerra, ele estava farto daquela besteira de separados-mas-iguais que os políticos humanos empurraram para cima deles por tanto tempo. Ele até apoiou o começo da guerra de Neferet, mas depois de poucos meses ficou óbvio que Neferet nunca quis criar uma ordem mundial onde todos fossem iguais. Neferet queria mandar e subjugar todos os humanos.

Stark não era um vampiro vermelho. Ele tinha princípios morais. Ele manteve a sua humanidade. E ele não era um assassino. Ele era um Guerreiro, que jurou proteger a Grande Sacerdotisa que recebeu de Nyx o dom de liderar a nação dos vampiros.

Mas e se os boatos fossem verdadeiros? E se Neferet não fosse mais uma seguidora de Nyx, e se a Deusa realmente tivesse se afastado da sua Grande Sacerdotisa?

– Eu rezo a Nyx por um sinal... – Stark murmurou para o seu reflexo no vidro escurecido.

– Senhor? Disse algo?

– Só estou falando comigo mesmo – Stark respondeu. Ele fechou a boca, mas o sussurro na sua mente não parou.

Eu tenho rezado por um sinal de que Neferet está seguindo a vontade da Deusa. Isso foi um sinal? Ou a aparição da Magia Antiga é uma indicação do contrário?

Stark esfregou a testa, odiando aquela dor de cabeça que estava aumentando. Até ele ter certeza de que Neferet havia renunciado Nyx, ele iria cumprir o seu dever. Ele iria proteger a sua Grande Sacerdotisa.

No entanto, ele também manteria a sua mente e os seus olhos bem abertos e, pelo menos por enquanto, não contaria a ninguém sobre os detalhes mágicos do que tinha acontecido na montanha aquela noite.


8

Outro Kevin

– Eles bateram em retirada! Todos eles! – um vampiro azul alto e loiro entrou correndo na pequena caverna, tirando gelo de uma tatuagem de adulto formada por nós celtas, enquanto se aproximava de Dragon.

– Cole, você tem certeza? – Dragon perguntou.

– Sim. Estava uma confusão lá fora, mas eu vi o que aconteceu. Foi bem lá no nosso primeiro posto de controle. Um bando de coisas que pareciam vaga-lumes saiu da neblina na frente do General Stark. Ele imediatamente ordenou a retirada. Não consegui chegar perto o bastante para entender o que ele estava dizendo, mas eu ouvi claramente as palavras Magia Antiga, e deu pra ver que ele parecia assustado. Pra valer.

– Oh, graças à Deusa! – Vovó Redbird desabou no chão de pedra bruta da caverna.

– Vó! Você está bem? – Kevin tentou ir até ela, mas as suas pernas se recusaram a funcionar, e ele não conseguiu fazer muito mais do que encostar dolorosamente contra a parede da caverna.

– Sylvia? – Anastasia começou a se afastar de Kevin para ir até a velha senhora, mas Vovó Redbird levantou uma mão para detê-la.

– Eu estou bem. Só precisava sentar. Acho que o meu pico de adrenalina já passou. Por favor, cuide do meu neto e não se preocupe comigo. – Ela abraçou a si mesma e estremeceu.

– Meu amor, você acha que nós podemos acender pelo menos algumas fogueiras de novo? – Anastasia perguntou para Dragon.

O Mestre da Espada olhou para o gelo e a névoa que ainda encobriam a montanha.

– Sim. Se eles voltarem, não será hoje. As estradas estarão intransitáveis e a neblina é excelente para ocultar as fogueiras. Acendam aquela no fundo da caverna. Cole, vá até os esconderijos de caça e diga a todos que é seguro manter as fogueiras acesas enquanto o gelo e a neblina durarem – Dragon disse, e Cole desapareceu na noite. Então Dragon encarou Kevin. – Deu certo. Os seus espíritos nos salvaram.

Kevin deu de ombros e fez uma careta de dor.

– Eles não são meus espíritos, na verdade. Eles só gostam do meu sangue.

– Porque o seu sangue contém o poder dos seus ancestrais, que já foram parte desta terra e destas rochas – Sylvia Redbird afirmou. – E porque é um sangue bom e honesto, não manchado por mentiras e ódio. Você acredita agora, Dragon Lankford?

– Eu acredito que o seu neto nos salvou, mas ainda há a questão sobre como o Exército Vermelho sabia que nós estávamos aqui e por que eles vieram na mesma noite que Kevin.

– Eu não posso responder nenhuma dessas perguntas agora – Kevin disse. – Não enquanto estou aqui. Mas eu posso conseguir respostas para todos nós de dentro da Morada da Noite.

– Você acha que eu deixarei você ir embora?

– Não. Eu acho que você me deixará lutar com vocês. Eu quero fazer parte da Resistência. Eu quero espionar para vocês... para nós.

– Impossível! – Dragon exclamou.

– Por que é impossível, Bryan? – Anastasia se agachou ao lado de Kevin de novo, reexaminando as suas costas, enquanto o seu corvo encontrou um poleiro na parede escarpada da caverna.

Kevin achou que os olhos negros do corvo pareciam tão céticos quanto os de Dragon.

– Ele é um vampiro vermelho! Ele não pode fazer parte da Resistência. Nós estamos combatendo a espécie dele.

– Vocês não estão combatendo a minha espécie – Kevin argumentou. – Não há ninguém mais da minha espécie neste mundo, e é por isso que eu sou o espião perfeito. Ninguém na Morada da Noite vai prestar atenção em um tenente do Exército Vermelho. Eles não dão a mínima para nós, exceto para nos considerar descartáveis. Eu posso ir a qualquer lugar, ouvir o que qualquer um fala... e eles nem vão notar.

– Você também pode ser promovido a general do Exército Vermelho e ter um esquadrão de homens seguindo suas ordens. Por que você escolheria se colocar em risco? – Dragon perguntou.

– Porque eu sou uma pessoa decente! – Kevin desabafou. – Afe, o que há de errado com você? Qualquer um que não seja um monstro ou um idiota ambicioso faria o mesmo.

– Isso não é verdade, Kevin. – Anastasia pousou uma mão suave em seu ombro. – Há muitas pessoas que nós chamaríamos de decentes, tanto vampiros quanto humanos, que não farão nada além de ficar sentados nos bastidores, balançando a cabeça para o estado do mundo.

– Bom, eu acho que, se você é uma pessoa decente e não se levanta contra monstros, então você é pior do que eles – Kevin disse. Ele virou a cabeça e encontrou os olhos azuis inconfundíveis de Anastasia. – Pode ir em frente e começar a me costurar de novo. Estou pronto como jamais estarei.

Ela sorriu gentilmente para ele.

– Isso não vai ser necessário. Não depois de a Magia Antiga ter feito o trabalho. – Anastasia indicou com um gesto as costas dele.

Kevin esticou cuidadosamente o pescoço e encontrou uma cicatriz sensível e elevada e pele limpa onde apenas alguns minutos atrás havia um corte profundo e sangrento.

– Mas isso é impossível!

– Aparentemente, não. Quando os espíritos beberam o seu sangue, eles também tocaram todo o seu ferimento, e o toque deles o curou. Porém, não completamente. Você vai ficar fraco, dolorido e sensível por um tempo, e você vai ficar com uma cicatriz grande e horrível, mas você não precisa mais da minha habilidade em dar pontos.

Vovó Redbird se aproximou de Kevin, inclinando-se para examinar suas costas nuas.

– Isso é extraordinário! U-we-tsi, os espíritos realmente fecharam o seu corte.

– Hum – foi tudo que Kevin pensou em dizer.

– Isso diz algo a você sobre o caráter dele? – Dragon perguntou à sua companheira.

– Só que os espíritos gostam dele e, já que eles são neutros, nem bons nem maus, isso não quer dizer muita coisa – Anastasia respondeu. Então ela se levantou e pegou as mãos calejadas pela espada do seu companheiro. – Bryan, acredito que nós já conhecemos o caráter de Kevin. Ele definitivamente não é como os outros vampiros vermelhos. A gente devia confiar nele – ela afirmou, e Dragon abriu a boca para responder, prestes a protestar, mas as palavras de Anastasia o silenciaram. – Ele é diferente. A sua humanidade está intacta. E ele conseguiu brandir a Magia Antiga. Nem mesmo Neferet consegue fazer isso.

– Ainda – Kevin disse.

Dragon se virou para ele.

– Explique esse ainda.

– No mundo da minha irmã, eles de fato derrotaram Neferet, mas não conseguiram matá-la porque ela se tornou imortal.

Anastasia arfou em choque.

– Ela aprendeu a brandir a Magia Antiga!

– Vó, você está com o diário?

Ela assentiu levemente e indicou o local onde os mantimentos do Polaris tinham sido empilhados, no fundo da pequena caverna.

– Estou. Está na cesta que eu enchi de cookies.

– Eu trouxe uma cópia do diário que Neferet escreveu quando ainda era humana. É do mundo da minha irmã, mas nele há provas de que a Magia Antiga vem influenciando Neferet desde que ela era criança.

– E o fato de o diário ter sido escrito por outra versão de Neferet não significa que não tenha relevância para nós – Vovó disse. – Como Kevin já explicou, quem nós somos em cada mundo permanece essencialmente igual. São apenas as nossas experiências que mudam. Eu vou dar o diário a vocês. Façam cópias dele. Repassem para os outros. Todos nós devemos lê-lo para obter o máximo de informação possível a respeito de maneiras de combater o mal de Neferet.

– Concordo. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos, principalmente se essa ajuda vem na forma de um jovem vampiro que nos traz informações e também consegue brandir Magia Antiga – Anastasia disse.

Dragon suspirou fundo e foi até Kevin, agachando-se ao lado dele, da mesma forma que a sua companheira tinha feito.

– Eu não gosto de ser colocado em uma posição na qual preciso confiar em um inimigo.

– Eu não sou seu inimigo.

– Prove.

– Acabei de tentar provar – Kevin respondeu. – E vou continuar tentando provar isso a vocês. Eu vou para a Morada da Noite espionar para vocês. Vou contar tudo que eu ouvir por lá. Vou ajudar de todas as formas que eu puder.

– O meu neto está falando a verdade, Dragon. Você vai ver – Sylvia Redbird disse, batendo os dentes de frio.

– Vó, você tem que ir para o fundo da caverna onde está a fogueira.

– Eu estou bem aqui. Tem muita fumaça lá atrás.

– Garoto, se você quer fazer algo para cair nas minhas graças, pense em um jeito de fazer com que a Magia Antiga nos ajude a tornar esta caverna habitável – Dragon falou baixo, mais para a noite do que para Kevin, quando se levantou e encarou a chuva congelante e a névoa lá fora.

Kevin olhou para a sua avó e para Anastasia.

– Vocês acham que eu poderia mesmo fazer isso? Conseguir que os espíritos ajudem a deixar esta caverna maior e melhor?

– Claro que sim – Anastasia respondeu sem nenhuma hesitação. – Como eu disse quando eles apareceram, espíritos estão sempre ligados aos elementos, e a terra é um dos elementos. Não seria um exagero imaginar espíritos da terra moldando uma caverna no seio desta montanha.

– Beleza! Eu vou só chamar os espíritos e perguntar a eles...

– Lembre-se, Kevin, você nunca deve abusar da Magia Antiga de modo impertinente – Anastasia o interrompeu. – É uma das magias mais poderosas do mundo... e também uma das mais imprevisíveis.

– Mas os espíritos fizeram exatamente o que eu pedi – Kevin falou.

– Ah, eles sempre mantêm a palavra, desde que sejam pagos. O problema vem com o pagamento – Anastasia disse.

– Por favor, explique – Vovó Redbird pediu.

– É simples e complicado. Simples porque os espíritos concordam com um pagamento por um serviço. Quando é algo parecido com o que acabaram de fazer, uma tarefa específica por um favor específico, tudo normalmente corre bem. Quando o pagamento não é executado imediatamente é que você pode se meter em encrenca, e eu quero dizer uma encrenca profunda envolvendo sua alma, que pode, inclusive, ser fatal.

– Se eu entendi bem o que você disse, então Kevin deveria concordar apenas com um pagamento que seja imediato e muito específico, certo? – Vovó Redbird perguntou.

– Bem, sim e não. Mesmo dessa forma, ele ainda pode ter problemas. Essa é outra parte complicada do processo. Os textos ancestrais alertam que usar tanto poder é perigoso e pode ferir o vampiro que o está brandindo.

– Mas eu já tenho afinidade com os cinco elementos. Assim como a minha irmã no outro mundo que eu acabei de visitar. Ela é uma boa Grande Sacerdotisa, das boas mesmo. Ela derrotou Neferet. Eu realmente acho que ela não foi ferida por isso.

– As afinidades elementais são concedidas por Nyx e, portanto, elas não são Magia Antiga. É impressionante que você tenha essas afinidades, juntamente com seu sangue cherokee. Deve ser esse o motivo pelo qual os espíritos ouviram o seu chamado – Anastasia disse. – E em relação ao que os textos querem dizer quando falam que o vampiro pode ser ferido por lidar com esse poder... sinto muito por simplesmente não ter conhecimento suficiente para explicar melhor. Eu nunca vi Magia Antiga antes, nem ninguém que pudesse invocá-la. Tudo que eu sei é o que li em textos antigos.

– Bom, estou querendo arriscar e usá-la, pelo menos mais uma vez. Você acha que eles vão me ouvir de novo?

Ela deu de ombros.

– Eu não posso responder isso, Kevin. Nem posso responder se você deveria invocá-los de novo. Eu não conheço a natureza da sua alma. Eu não sei o quanto você é suscetível às Trevas.

– Eu conheço – Vovó Redbird afirmou. – A alma dele é boa. Boa de verdade. Ele não será sujeito às Trevas, ao ódio nem ao mal. Mesmo antes de Nyx restaurar a sua humanidade naquele outro mundo, ele combateu a fome e a insanidade que muitos de nós estão chamando de Maldição Vermelha. U-we-tsi, eu acredito que você pode ajudar a endireitar o equilíbrio entre Luz e Trevas porque você pode brandir Magia Antiga. Mas não se esqueça das palavras de Anastasia: o pagamento tem que ser específico e feito imediatamente.

– Eu vou me lembrar disso. Prometo. Mas, hum, vocês acham que eu tenho sangue o suficiente agora para isso?

– Não, você não tem – Anastasia respondeu.

– Eu tenho uma ideia para um pagamento alternativo. – Vovó levantou a mão e a colocou sobre a bolsinha que fazia uma protuberância embaixo da sua blusa.

– Espere aí, não. Você não pode dar a sua bolsa medicinal – Kevin disse.

– Posso e vou. As minhas duas bolsas medicinais.

Kevin colocou a mão sobre a réplica que repousava no meio do seu peito.

– Não sei, Vó. Será que é uma boa ideia abrir mão do seu poder assim?

– Ah, u-we-tsi, uma bolsa medicinal não tem poder por si só. Ela apenas simboliza o poder de quem a fez. E eu posso simplesmente fazer outra, assim como provavelmente a Outra Sylvia Redbird fez no mundo de Zoey – ela puxou a bolsa com miçangas debaixo da sua blusa e levantou a tira de couro por sobre a cabeça, entregando-a para Kevin. – Invoque os seus espíritos.

Kevin pegou a bolsa medicinal depois de apertar a mão fria de sua avó, e então ele levantou os olhos para Dragon.

– Pode me ajudar a ficar em pé?

O poderoso Guerreiro segurou o cotovelo de Kevin, erguendo-o. Kevin ficou em pé, cambaleando levemente quando pontos brilhantes apareceram na sua visão, mas ele logo se estabilizou. As suas costas estavam sensíveis e doloridas de um ombro a outro, mas a sua tontura passou. Ele não ia conseguir correr uma maratona, mas tinha certeza de que não iria cair. De novo.

Então ele percebeu que não tinha a menor ideia do que fazer em seguida.

– Hum, Anastasia, como eu invoco os espíritos?

– Quando eles vieram até você antes, foi na hora em que você tinha aberto o seu ferimento, então estava sangrando bastante, e você tinha acabado de dizer algo sobre querer consertar as coisas.

– Então, você acha que eu deveria me cortar de novo e depois chamá-los?

– Eles já não estão aqui? – Vovó fez um gesto indicando a noite gelada lá fora. – Você não pode simplesmente pedir que eles voltem até você?

Kevin olhou questionador para Anastasia, que deu de ombros e assentiu.

Ele estalou as juntas dos dedos e balançou as mãos enquanto se movia para mais perto da entrada da caverna. Kevin limpou a garganta, respirou fundo e abriu a boca para gritar sabe-a-Deusa-o-quê, mas hesitou. Talvez eu deva pensar antes de falar... ou, mais especificamente, deva rezar. Kevin fechou a boca. Fechou os olhos. E baixou a cabeça.

Por favor, me ajude, Nyx. Isso tudo está muito acima da minha capacidade... e não estou falando só dos espíritos. Eu quero ajudar a Resistência, mas sou só um garoto. Não sou nem tão velho quanto a Zo, nem tão experiente. Eu prometo que vou tentar fazer a coisa certa e seguir o caminho que você quer que eu siga. Você pode me dar uma ajudinha para que eu continue seguindo esse caminho?

Kevin levantou a cabeça e encarou o gelo e a névoa mágica que tinham afastado Stark.

– Espíritos da água nos protegeram com gelo e névoa... – ele murmurou para si mesmo, pensando em voz alta. – E os espíritos são ligados aos elementos. – Kevin pensou bastante. E então ele deu um suspiro gigante. – Espíritos da terra!

Sorrindo, ele se virou e encontrou os olhares confusos que Anastasia, Dragon e sua avó estavam dando na sua direção.

– Acho que descobri! – Ele encarou a noite de novo e, com mais confiança do que sentia, falou com uma voz alta e clara. – Espíritos do ar, fogo, água e terra, eu sou Kevin... – ele hesitou um instante. E então ele sabia exatamente o que precisava dizer e como tinha que dizer. – Eu sou Kevin Redbird e, com a minha afinidade concedida pela Deusa e pelo meu direito de sangue, o mesmo sangue que pulsou forte nas veias daqueles que foram protetores desta terra, eu invoco vocês, principalmente aqueles que são espíritos elementais da terra! Espíritos que já estão por aí na montanha, por favor, venham até mim!

Foi como se a noite inspirasse fundo, segurasse o fôlego e então, ao expirar, soltasse a magia. Anastasia e Vovó Redbird arfaram quando uma revoada de espíritos, alterando a sua forma de vaga-lumes para fadas aladas, subiu voando desde a parte de baixo da montanha até o alto. Eles pairaram diante da caverna, iluminando a noite gelada, de modo que Kevin pôde ver claramente as rochas enormes que pontilhavam a área íngreme ao redor deles começarem a brilhar. Então figuras emergiram, como se elas estivessem encolhidas dentro das pedras dormindo, aguardando o chamado de Kevin. Eles eram maiores do que os espíritos vaga-lumes – tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ou dois anos. Os espíritos da rocha eram inacreditavelmente lindos. Pareciam não ter um gênero definido; a pele dos seus corpos tinha a aparência exata dos minúsculos veios de quartzo compacto que marmorizavam o arenito de Oklahoma de onde emergiram – brilhavam como se fossem acesos por dentro. Kevin percebeu que eles eram o que a princípio ele achara parecido com fogos de artifício de Quatro de Julho. Os seus pés delicados não tocaram o chão quando eles flutuaram na direção dele.

– Magia Antiga! – o corvo de Anastasia grasniu ao levantar voo da caverna.

Uma movimentação à sua direita e à sua esquerda atraíram a atenção de Kevin, e ele assistiu à casca nodosa dos carvalhos antigos e desfolhados pelo inverno ondular se levantando como ondas de calor de uma estrada asfaltada de Oklahoma no verão. De dentro das árvores, os espíritos se materializaram. Kevin teve que conferir se a sua boca não estava aberta (uma olhadela para Dragon mostrou que o Guerreiro estava de olhos arregalados e de boca aberta). Os espíritos das árvores eram as coisas mais perfeitas que ele já tinha visto desde que fora apresentado para Aphrodite no mundo de Zo. Eram todos femininos. A sua pele era de um marrom terroso como casca de árvore, mas, em vez de ser nodosa e antiga, parecia veludo. O cabelo flutuava ao redor de cada uma delas, caindo bem abaixo da cintura, em todos os tons de folhagens: o verde-limão brilhante da primavera, o jade forte do verão e o dourado avermelhado e fúcsia do outono. Elas eram tão únicas como as árvores de onde cada uma surgira. No começo, Kevin achou que os seus corpos eram cobertos de tatuagens, mas, quando elas se moveram graciosamente para mais perto, ele percebeu que elas eram, na verdade, cobertas por uma miríade de diferentes plantas da floresta – samambaias, cogumelos, flores e musgo – em vez de roupas.

Os diferentes tipos de espíritos elementais formaram um semicírculo em volta da boca da caverna, onde eles aguardavam silenciosamente na chuva congelante que ainda caía. A luz dos espíritos vaga-lumes atingiu o gelo que já tinha começado a cobrir a montanha, fazendo aquela pequena área brilhar como um diamante.

– Olá – Kevin disse, esperando que o sorriso enorme que ele não conseguia tirar do rosto não fosse inapropriado. – Hum, obrigado por terem vindo.

Um espírito da árvore foi mais para a frente. Ela era mais alta que as outras, e o seu cabelo era laranja, vermelho e dourado, como um poderoso carvalho no outono. O seu corpo era flexível, curvilíneo e mal coberto pela folhagem delicada de uma avenca.

– Garoto Redbird, não esperávamos que você repetisse o seu chamado, principalmente porque as nossas crianças ainda estão cuidando do seu pedido.

A voz dela era inesperada – agradável e doce, como a sombra de um velho carvalho em um dia quente de Oklahoma, mas também repleta de uma força que fez os galhos nus de todas as árvores próximas tremerem.

– Peço perdão. Eu não queria perturbar vocês – Kevin disse rapidamente.

– Você nos entendeu mal. Não estamos reclamando. Só quisemos demonstrar surpresa. Nós não somos despertados há muitas eras. As crianças se divertiram esta noite. – Ela ergueu uma mão, com a palma para cima, recolhendo o gelo de modo que ele revestiu a sua pele de veludo escura, deixando-a com a cor de cristal de quartzo esfumaçado. – Embora a água possa ter sido exuberante demais. – Ela chacoalhou o gelo da sua mão e do seu braço, e choveu ao redor dela, com as gotas faiscando na pálida luz da lua. – E elas realmente apreciaram o sabor do sangue indígena, por mais distante que seja a linhagem.

Kevin escutou a sua avó dar um grunhido irônico atrás dele, mas a sua atenção continuou focada no espírito.

– As suas crianças nos salvaram hoje – ele disse. – Por favor, agradeça a elas por mim.

O espírito inclinou a sua cabeça para o lado, como um passarinho, analisando-o.

– Você já agradeceu, Garoto Redbird, com o seu sangue. Você não precisava nos chamar para isso.

– Essa não é a única razão pela qual eu chamei vocês. Eu esperava que vocês pudessem me ajudar de novo.

Os olhos dela, escuros e amendoados, faiscaram com um brilho que Kevin achou ser malicioso.

– De qual outro serviço você precisa e qual o pagamento que você propõe, Garoto Redbird?

– São duas coisas – Kevin respondeu. – Primeiro, nós realmente precisamos que esta caverna fique maior e melhor. Sabe, mais ou menos... – ele hesitou e deu uma olhada rápida para Dragon. Então sussurrou para o Guerreiro. – Quantas pessoas mais ou menos precisam caber lá dentro?

Dragon apenas ficou olhando para ele, ainda boquiaberto, mas Anastasia deu um passo à frente rapidamente.

– Seria adorável se a caverna pudesse abrigar cem pessoas.

Kevin pensou que aquilo parecia coisa demais para pedir, mas ele voltou sua atenção para o espírito da árvore e falou com muito mais confiança do que de fato sentia.

– Vai ser ótimo se a caverna for grande o bastante para abrigar cerca de cem pessoas.

O espírito nem piscou ao ouvir o número.

– E o segundo serviço que você requisita?

– O que as suas crianças fizeram por nós esta noite... escondendo-nos do Exército Vermelho e Azul... bom, hum, vocês poderiam continuar a fazer isso? Por favor? – ele disse. Como ela não respondeu, ele acrescentou: – Nós também temos nossas crianças e inocentes que precisam de um lugar seguro, e esta montanha seria perfeita se a caverna fosse maior. Eu prometo que nós vamos respeitar a montanha. Não vamos construir mais nada aqui, e vamos manter tudo completamente limpo e sem bagunça.

– Ah, entendo. Você está pedindo santuário permanente.

Atrás dele, Anastasia sussurrou alarmada.

– Pare, Kevin. Você está pedindo demais.

Kevin a ignorou. Ele já havia medido se estava brincando com a sorte com os espíritos, mas ele percebeu que tinha duas oferendas para eles, então ele podia também pedir por dois serviços.

– Sim. Eu estou pedindo santuário, na forma de uma nova caverna, e a sua proteção, mas não de maneira permanente. Eu só solicito essa proteção até que eu restaure o equilíbrio entre Luz e Trevas neste mundo. Então nós não vamos precisar nos esconder mais.

– E o que você tem a oferecer como pagamento por esses serviços?

Kevin ergueu a bolsa medicinal que estava em volta do seu pescoço e a segurou, junto com a bolsa gêmea, mostrando-as para o espírito. Ela foi para a frente, não exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não mexeram no chão no qual eles pisaram. Ela chegou tão perto de Kevin que ele conseguiu sentir o seu cheiro – ela tinha todos os aromas do outono: a canela das folhas que caem, o frescor acentuado do primeiro dia frio depois de um longo e quente verão, a riqueza das raízes grossas se estendendo para o fundo da terra fértil. Ao se dar conta de que a estava encarando, ele se sacudiu mentalmente quando ela pegou as bolsas.

O espírito levou as bolsas até seu rosto, cheirou-as e colocou a língua para fora, sentido o gosto de cada uma. Ela piscou os olhos, surpresa.

– Elas são de mundos diferentes.

– São – ele confirmou. – Pagamentos de dois mundos diferentes por dois serviços diferentes.

– O seu pagamento é mais interessante do que poderoso. Vamos ver se é interessante o bastante.

O espírito da árvore deu as costas a ele, voltando-se para os outros que se reuniram ao som do seu chamado em um semicírculo frouxo em volta da frente da caverna. Ela falou rapidamente com eles, usando a estranha linguagem que era mais música do que palavras.

Em resposta, um espírito de cada um dos diferentes grupos deu um passo à frente, fazendo uma série de assobios e sons de estalos parecidos. Depois que todos tiveram a sua vez, o espírito da árvore abaixou a cabeça de leve antes de se voltar de novo para Kevin. Quando ela falou, a sua voz entrou em uma cadência musical repetitiva que o fez lembrar as vozes que ele havia escutado quando os outros espíritos aceitaram o seu sangue mais cedo, só que desta vez o poder na voz do espírito fez uma pressão contra a sua pele como a ameaça de uma tempestade com raios e trovões.

“Nós aceitamos este pagamento – esta magia

de mundos feitos em dois

Formada da sabedoria ancestral e dada

com amor para depois

Em troca –

A terra vai se mover

O ar vai escutar

A água será testemunha

E o fogo que aquece e impunha

Mas atenção ao meu comando, Garoto Redbird

Nem uma árvore viva deve destruir

Ou o nosso acordo irá para sempre ruir

E é dito – que assim seja!”

Então o espírito da árvore abriu a boca de um jeito impossivelmente amplo, dando a Kevin uma visão desconcertante dos seus dentes brancos e afiados, e engoliu uma das bolsas por inteiro. Em seguida, com um movimento tão rápido que para Kevin foi só um borrão, ela atirou a segunda bolsa para o ar, onde ela explodiu. Pedaços dela começaram a cair junto com a chuva de gelo, e o tempo desacelerou quando os espíritos começaram a esvoaçar em volta, alimentando-se dos restos da bolsa medicinal de Vovó Redbird como um cardume de piranhas lindas, mas mortais. Durante todo esse processo, eles piaram, assobiaram e cantaram uma canção sem palavras, mas cheia de alegria.

O tempo acelerou de novo, e o espírito da árvore olhou para um local atrás de Kevin, onde Vovó Redbird estava parada em pé, do lado de dentro da entrada da caverna.

– Mulher Sábia, a sua essência é deliciosa. Você controla o seu próprio tipo de poder da terra. Eu irei até você um dia, se alguma vez você precisar de mim.

Vovó Redbird abaixou a cabeça em um reconhecimento respeitoso para o espírito antes de responder.

– Se algum dia eu tiver uma necessidade tão grande que estiver disposta a pagar o seu preço, eu invocarei você, adorável espírito da árvore.

– Você e esse filho do seu sangue podem me chamar de Oak.

Desta vez, quando sua avó abaixou a cabeça, Kevin a imitou.

– Obrigado, Oak – ele falou.

– Você já me agradeceu. E o seu pagamento estava delicioso. Agora, o seu grupo deve sair da caverna enquanto nós trabalhamos.

Dragon e Vovó Redbird saíram da caverna com Kevin, mas Anastasia fez uma pausa na boca da caverna para fazer um chamado lá para dentro.

– Shadowfax, Guinevere! Venham, vocês dois. Sei que está frio e molhado aqui fora, mas vocês têm que sair da caverna.

Lá do fundo, dois gatos emergiram: um gato maine coon enorme, com cara de descontente, e um gato elegante cor de creme que Kevin tinha quase certeza de que era um siamês. Ambos estavam com as orelhas grudadas nas cabeças enquanto caminhavam até Dragon para pular nos seus braços.

– Pronto. Agora, venha para trás com a gente, Anastasia.

A companheira de Dragon se juntou a eles, e Kevin colocou o braço ao redor de sua avó, tentando protegê-la o máximo que podia daquela chuva que congelava os ossos, mas ele ainda estava fraco e se viu cambaleando, a menos que se apoiasse com força nela. De repente Dragon passou os dois gatos para a sua companheira, e então estava ao lado de Kevin, agarrando o seu outro braço, estabilizando-o o suficiente para que ele conseguisse subir entre duas rochas, que quase os protegiam da umidade. Com Dragon de um lado e sua avó de outro, Kevin observou como, em menos tempo do que tinha levado para expulsar o Exército Vermelho da montanha, os espíritos realizaram um milagre. E então, sem nem mais uma palavra, eles se dissolveram de novo em árvores, em pedras e na noite escura e fria.


9

Zoey

– Só faz alguns dias desde que Kevin foi embora, mas sinto como se fossem meses. Por favor, Nyx, cuide dele e não deixe que ele se meta em muitos problemas. – Eu acendi a vela roxa e então a coloquei aos pés da maravilhosa estátua de Nyx que ficava como ponto principal do jardim entre os prédios da escola e o templo da Deusa. Sua chama tremulou ali, acrescentando a sua luzinha alegre às outras velas oferecidas, cada uma representando uma oração que tinha sido elevada à nossa Deusa.

Então eu dei um passo para trás e me sentei no banco esculpido em pedra ao lado da minha melhor amiga, Stevie Rae.

– Sim, Nyx, por favor, fique de olho no irmão de Z no Outro Mundo – Stevie Rae disse. – E eu entendo o que você quer dizer, Z. É esse tempo. Dois dias atrás a gente estava enterrado em neve, e hoje está fazendo quase vinte graus. Faz com que pareça que passou muito mais tempo. Ei, sabe o que é ainda mais estranho do que o clima de Oklahoma?

– Não, porque o clima de Oklahoma é a coisa mais estranha do mundo.

– Né? Mas a coisa ainda mais estranha é que eu sinto falta disso. Muita. Quer dizer, o clima de Chicago é bem louco também, mas não no nível daqui. Eu sinto falta do gelo, do vento e de como as tempestades aparecem do nada como um estouro da boiada que cai do céu.

– Aham – eu respondi automaticamente, com os olhos fixos no modo como a luz das velas brincava através da pele de mármore de Nyx, enquanto minha mente estava bem longe. Um mundo inteiro de distância, para ser mais precisa.

– Você ficaria surpresa com todas as coisas de que vai sentir falta quando sair de casa.

– Sim. – Meu olhar se desviou da estátua e se voltou para a noite perfeitamente clara e cheia de estrelas.

– Como carrapicho-de-carneiro. Sabe, aquele tipo que machuca quando você puxa o espinho para fora da pele e também quando ele entra em você.

– Aham.

– Ah, e carrapato. Eu morro de saudade de carrapato.

– Sim, eu também.

– Hum, Z. Você não.

– Certo.

– Zoey Redbird, pare de sonhar acordada!

Stevie Rae deu um cutucão no meu ombro. Com força.

– Ei! O que foi isso?

– Z, sério? O que eu acabei de dizer?

Eu mordi a bochecha.

– Hum, alguma coisa sobre lã? O que não faz muito sentido. Você está bem? Eu estava falando sério quando disse que você e Rephaim não precisam voltar para Chicago. Vocês não precisariam ter ficado lá nesse último ano se eu soubesse que você estava triste.

Stevie Rae se virou no banco para me encarar.

– Zoey, você confia em mim, não confia?

– É claro que confio em você.

– Então, por favor, me conte o que tem de errado.

Eu suspirei.

– Não tem nada...

Stevie Rae levantou a mão rápido, com a palma para fora, com um sinal para parar.

– Não. Conte essa pra outro. Eu sei que é mentira e, depois de tudo que a gente passou, é quase ofensivo.

– Ei, você sabe que eu jamais ofenderia você de propósito – eu disse, sentindo-me péssima por ter feito minha melhor amiga se sentir péssima.

– Então me conte o que tem de errado.

Suspirei de novo.

– Estou preocupada com Kevin. Bem, com o Outro Kevin. Não o Kevin daqui. Na verdade, eu e ele vamos nos encontrar no Andolini’s para comer uma pizza antes que as férias de inverno dele acabem.

– Só isso?

– Bom, sim. Quase. Quer dizer, nós ainda não sabemos o que fez todas as rosas ficarem escuras e nojentas antes da visão de Aphrodite, mas, se foi Neferet, eu esperaria que ela fizesse algo mais. Qualquer coisa mais do que isso. E os Guerreiros que fazem guarda na gruta dizem que nada mais aconteceu por lá.

– As rosas voltaram ao normal.

– O quê? Voltaram? Como você sabe disso?

Stevie Rae abriu o sorriso.

– O jardim de rosas é mais uma das milhares de coisas de Tulsa da qual eu sinto falta. Rephaim me fez uma surpresa noite passada e fomos dar um passeio pelos jardins depois de jantar no Wild Fork. Foi quando ele me deu isto. – Ela apalpou o colar de prata cintilando no seu pescoço. Pendurada na correntinha brilhante, havia uma réplica perfeita do estado de Oklahoma como um pequeno talismã.

– Own, que lindo. Eu nem tinha reparado. Desculpe.

– Z, tem muita coisa que você não está reparando nos últimos dias. Eu... eu queria que você me deixasse ajudar.

– Não há nada que você possa fazer. Eu só tenho que descobrir um jeito de parar de me preocupar com Kevin – e de pensar em Neferet... na Neferet que está lá, no comando, provavelmente massacrando milhões de inocentes, assim como ela assassinou a Outra Zoey! Mas eu não deixei a minha boca pronunciar essas palavras em voz alta. Se eu deixasse, tinha medo de não parar mais, de não parar de falar sobre Neferet, de não parar de pensar que eu precisava ajudar Kevin.

E além disso havia Heath. O Heath vivo. O Outro Heath, que estava de luto pela Outra Zoey, que eu havia acabado de ver Neferet assassinar.

– É só o Kevin? – Stevie Rae perguntou.

– Sim. Não.

– Hum, Z, qual dos dois?

– Não – eu disse com tristeza. – Também tem a idiota da Neferet e qualquer mal novinho em folha que ela está aprontando. Além disso, bom, tem Heath – então eu me esforcei para continuar rápido. – E a minha mãe. Ela está viva lá também. E tem Outra Vovó Redbird. Você consegue imaginar como deve ter sido difícil a minha morte para ela?

– Z! Aí está você! – Kramisha chegou falando alto e usando um par de botas de salto vermelhas brilhantes na altura do joelho. – Chega pra lá, Stevie Rae. Eu tenho muito mais peso na minha bunda do que vocês duas, branquelas magrinhas.

Ela empurrou Stevie Rae com o quadril, que deslizou para mais perto de mim, e nós nos ajeitamos rápido para abrir espaço para Kramisha.

– Ei, eu não sou branca. Ou pelo menos não sou cem por cento branca – eu protestei.

– Desculpe. Esqueci que você tem um pouco de cor aí, Z. Mas a sua bunda ainda é pequena.

– Gostei das suas botas novas – Stevie Rae falou. – Elas têm a cor exata da sua peruca. Como você faz isso?

– Talento. Puro talento. E essas botas não são novas, mana. Mas este macacão colante de mulher-gato é. Que tal? Miau! – Ela fingiu dar um chiado de gato para Stevie Rae, que começou a rir.

– Kramisha, eu te amo! E senti falta tanto de você quanto de Tulsa – Stevie Rae disse.

– Você vai me amar mais ainda daqui a um segundo. Z, eu quero ir para Chicago.

– Hum? – eu perguntei. – Mas você mal começou a reconstrução do Restaurante da Estação.

– Olha só, todo mundo sabe que Damien e Outro Jack podem fazer um trabalho melhor do que eu nessa reconstrução. Z, eles são gays. E eles chamaram mais gays.

Eu revirei os olhos.

– Kramisha, isso é um estereótipo horrível.

– Diga que isso não é verdade que eu calo a boca. – Ela fez uma pausa e, como eu não disse nada porque, bem, Damien, Outro Jack e Toby, o diretor do Centro de Igualdade de Oklahoma, eram todos super incríveis em design de interiores, ela continuou. – Onde eu estava? Ah sim – Kramisha se virou para Stevie Rae. – Você quer voltar para Chicago?

– Bem, hum, não exatamente, não de modo permanente, mas Z e eu já falamos sobre voltar para Tulsa de vez assim que eu deixar as coisas organizadas na Morada da Noite de Chicago.

– “Organizadas” quer dizer “depois de escolher a sua substituta”? – Kramisha perguntou.

– Imagino que sim. Certo, Z?

– Claro. A menos que você já tenha alguém em mente, como Damien tinha – eu disse.

– Queria ter, mas não escolhi ninguém. Há algumas Grandes Sacerdotisas que têm potencial, mas ninguém que se destaque – ela falou.

– Eu vou fazer isso – Kramisha afirmou.

– Fazer o quê? Você está me deixando bem confusa, Kramisha. Vá direto ao ponto – eu pedi.

– Certo. A questão é que eu não posso voltar para a estação. Não agora. Eu preciso me dar um tempo. Eu... eu ainda consigo ouvir os gritos. – Kramisha fez uma pausa e tirou algumas mechas vermelhas e brilhantes do seu rosto com uma mão trêmula. – Stevie Rae é uma Grande Sacerdotisa vampira vermelha. Ela e Rephaim se encaixam bem na estação. Os novatos gostam deles, o que eu acho meio estranho, já que ele é um pássaro boa parte do tempo, mas que seja. Não gosto de julgar. – Ela deu de ombros. – E você sabe que sou boa em organizar tudo. Eu vou para Chicago e deixo tudo organizado e encaminhado e, quando isso já estiver resolvido, talvez os gritos que eu ouço à noite já tenham sido resolvidos também, e então eu posso vir para casa de vez – Kramisha concluiu apressada.

– Eu não sabia – eu falei em voz baixa, estendendo o braço por cima de Stevie Rae para pegar a mão de Kramisha. – Kramisha, sinto muito.

– Você anda distraída. Ninguém te culpa por isso, Z. O Outro Kevin passou só um tempinho aqui, mas todo mundo que conheceu o seu mano gostou dele. Muito.

Eu sacudi a cabeça.

– Não, eu sou a sua Grande Sacerdotisa, e eu estou fazendo um trabalho ruim.

– Você vai voltar a ser o que era logo, assim como eu. A gente só precisa de tempo e um pouco de descanso.

– Você não vai ter muito descanso se for para Chicago. Aquela Morada da Noite é agitada pra caramba – Stevie Rae disse. – E eles não têm nem um programa equestre. Andei falando com Lenobia sobre...

– Sei tudo sobre isso. Também andei falando com Lenobia – Kramisha falou.

– Ela quer ir para Chicago com você? – eu perguntei, sem saber ao certo se deveria ficar surpresa, irritada ou aliviada por obviamente haver um monte de coisas rolando ao meu redor sobre as quais eu não tinha a menor ideia.

– Só o suficiente para resolver a questão dos cavalos. O que você acha, Grande Sacerdotisa?

O que eu acho? Eu encarei a estátua de Nyx. Acho que eu preciso descobrir um jeito de ajudar Kevin sem ferrar totalmente com a minha própria vida. Decidi falar outra coisa em voz alta.

– Eu acho que você é altamente capaz. Você e Lenobia vão fazer um belo trabalho, desde que Stevie Rae não se importe de você assumir o lugar dela imediatamente.

– Isso significa que Rephaim e eu podemos ficar aqui e não precisamos mais ir embora?

– É isso que significa, sim – eu respondi.

– Então eu não me importo nem um pouquinho! Kramisha, você me deixou mais feliz do que urubu em cima de carniça! – Stevie Rae atirou os braços ao redor de Kramisha, que deu um grunhido, abraçou-a rapidamente de volta e então se afastou, endireitando a sua peruca.

– Cuidado com o cabelo. Sei que não parece, mas todo esse glamour pode se estragar rapidamente se o cabelo estiver errado.

Eu abri a boca para perguntar para Kramisha em quanto tempo ela estaria pronta para partir quando a primeira sensação me atingiu. Ela começou no meio do peito, apenas um pequeno calor começando a espalhar, mas não tão pequeno que passasse despercebido. A sensação pulsou e cresceu, como se eu tivesse acabado de subir correndo as escadas de um estádio em um dia quente (o que eu absolutamente não faria, a menos que alguém estivesse me perseguindo).

Eu tossi. Enxuguei o meu rosto, que de repente ficou suado. Limpei a garganta. Tossi de novo.

A minha mão se levantou como se eu não tivesse nenhum controle sobre ela e foi até o centro do meu peito. Minha palma pressionou a minha pele.

Não havia nada ali. Nenhum calor. Nada.

Mas eu jurava que tinha sentido algo. Alguma coisa quente, forte e estranhamente familiar.

– Zoey! Você está me ouvindo?

Eu olhei para cima e vi Stevie Rae em pé sobre mim com Kramisha ao seu lado. Eu ainda estava sentada no banco, mas elas tinham se levantado e estavam debruçadas sobre mim, obviamente preocupadas.

– Sim. Eu estou te ouvindo. Eu... eu estou bem. Eu acho.

– O que aconteceu? Você congelou com a mão sobre o peito, quase como se estivesse se agarrando às suas pérolas. Só que você não está usando um colar de pérolas – Kramisha falou.

– Não sei. Foi uma sensação estranha. Já passou.

O som de pés correndo veio por trás de nós, e de repente Stark estava lá, agachado ao meu lado, com as mãos nos meus joelhos, enquanto ele analisava o meu rosto.

– Zoey! O que foi?

– Você sentiu também?

– Calor? E alguma outra coisa. Algo que não consegui identificar. – Ele tocou o meu rosto, tirando o meu cabelo da minha bochecha úmida. – Z, a sua respiração está ok? O seu peito está doendo?

– Não, não doeu. Não senti dor nenhuma. Só calor e... uma sensação estranha. – Eu estava aliviada e com medo ao mesmo tempo. Se Stark sentiu também, eu não tinha imaginado aquilo. Mas, por outro lado, se Stark sentiu, o que quer que tenha acontecido foi real. E isso podia significar más notícias de verdade.

– Acho que a gente tem que levar Z para a enfermaria para que ela possa ser examinada – Stevie Rae disse.

Rephaim devia estar com Stark, porque de repente ele estava ali também, segurando a mão de Stevie Rae e me analisando com uma concentração típica de pássaro.

– Enfermaria? Que diabos está rolando? Z, você se machucou?

Eu desviei os olhos de Rephaim e vi Aphrodite em pé ao lado de Darius (Deusa, será que estavam todos no Ginásio com Stark?). Ela estava com as mãos no quadril e me olhava intensamente, com os olhos estreitos, com os quais ela provavelmente queria demonstrar preocupação, mas que na verdade estavam mais dizendo algo como “AiminhaDeusa, por que você está me enchendo agora?”.

– Eu não preciso ir para a enfermaria. Estou bem. Sério – eu insisti.

– E isso não foi algo que Z fez para si mesma – Stark afirmou. – Foi algo que aconteceu com ela.

– Isso não faz algum sentido – Kramisha disse.

– Ou, dito corretamente, isso não tem nenhum sentido. Gramática: errada. Sentimento: certo – Aphrodite provocou.

– Isso tem sentido sim – eu falei rapidamente, antes que Kramisha conseguisse espetar Aphrodite verbalmente. – Stark quis dizer que não tem nada de errado comigo. Que, seja o que for que nós sentimos, foi algo que aconteceu fora de mim. E isso foi mais estranho do que assustador.

– Ei, o que está acontecendo aqui? – Damien perguntou quando ele e Outro Jack se juntaram ao grupo. Ambos estavam segurando velas votivas perfeitas que eles obviamente tinham a intenção de acender aos pés de Nyx. – Z, você está bem?

Eu suspirei. Às vezes, era realmente como se eu tivesse zero privacidade.

– Estou bem. Não foi nada.

– Não diga isso – Stark falou sério quando sentou ao meu lado, colocando o seu braço ao meu redor de modo protetor. – Você está bem agora. Nós estamos bem, mas não quer dizer que não foi nada. Alguma coisa aconteceu. Algo que tocou você ou a mim ou a nós dois.

Foi a vez de Damien se agachar ao meu lado.

– Conte-me o que você sentiu.

Eu descrevi o súbito calor e observei Damien ficar cada vez mais pálido enquanto Stark assentia em concordância com a minha descrição. Mas, antes que Damien pudesse dizer qualquer coisa, Aphrodite se adiantou.

– Ah, que merda, seus imbecis! É óbvio o que acabou de acontecer.

– Aphrodite, é super ofensivo chamar a gente de imbecis – Stevie Rae protestou.

– Caipira, é só um chute, mas aposto que, antes de eu me juntar a este grupo improvisado, você fez pelo menos uma comparação terrível que tinha a ver com a sua mamãe ou com carrapatos. Acertei?

– Quase – Kramisha falou. – Tinha a ver com urubu em cima de carniça, o que é nojento. – Ela olhou para Stevie Rae e deu um sorriso de desculpas. – Só estou dizendo a verdade.

– Certo – Aphrodite continuou. – E isso é ofensivo, mas você vai continuar com suas analogias de caipira e, já que você vai fazer isso, também vou continuar chamando um imbecil de imbecil quando estiver presenciando vocês agindo feito imbecis.

– Ai minha Deusa, parem de discutir! – Eu senti como se minha cabeça pudesse explodir. – Aphrodite, você realmente sabe o que aconteceu?

– Claro que sim – ela respondeu. – É Magia Antiga. E aquele som de tapa na cara que você ouviu metaforicamente está te dando vontade de cobrir o rosto de vergonha enquanto você se dá conta de que estou certa.

– Ela está certa – Damien disse enquanto se levantava e segurava a mão de Outro Jack de novo. – Era o que eu estava pensando também.

Eu apenas fiquei sentada, incapaz de dizer qualquer coisa porque eu estava lembrando do tempo que eu passei na Ilha de Skye, do talismã de mármore de Skye que eu trouxe para Tulsa. Daquele calor e do poder daquela magia, e de como ela quase me engoliu e me transformou em alguém tão parecido com Neferet que não merecia continuar sobrevivendo.

– Z?

Eu podia sentir a preocupação de Stark e deixei que ela me tirasse dos meus pensamentos.

– Aphrodite e Damien estão certos – eu afirmei. – Não percebi isso na hora porque foi só um eco distante da real sensação de brandir a Magia Antiga.

– Então, isso só pode significar que alguém está usando Magia Antiga de novo – Stevie Rae concluiu.

– E isso é ruim – Rephaim falou.

– Ruim mesmo – Kramisha concordou.

– Você deveria ligar para a Rainha Sgiach – Aphrodite sugeriu. – Ela é a especialista em Magia Antiga.

– Eu adoraria – eu disse. – Mas ela está de luto, o que significa que ela se retirou totalmente do mundo exterior. Eu sei. Eu venho tentando falar com ela uma vez por semana, e já fiz isso ontem. Ela ainda está totalmente off-line e o telefone dela só chama, chama, e ninguém atende.

– Ela ainda está sem atender o telefone? Quanto tempo já faz, quase um ano desde que o Touro Branco atacou Skye na mesma noite em que Neferet nos atacou aqui? Já era de imaginar que ela pelo menos estivesse dando uma olhada no Facebook – Aphrodite falou.

Eu levantei os olhos para Aphrodite. Ela era minha amiga, uma poderosa Profetisa de Nyx e, com a sua nova Marca azul e vermelha, uma vampira adulta, mas ainda assim ela podia soar como uma criança mimada e egoísta.

– Ela e Seoras foram companheiros por séculos. Acho que um ano de luto não é nada perto disso. Você já teria seguido em frente se Darius tivesse sido assassinado naquela noite?

Aphrodite empalideceu e se recostou em Darius.

– Não. Não, não teria. Você está certa, Z. Peço desculpas por ter soado como uma imbecil.

– Aphrodite, você sabe que Damien podia ajudar você a melhorar o seu vocabulário para que você não tenha que usar palavras como... – Stevie Rae tinha começado um novo sermão quando a segunda onda daquela sensação me atingiu.

Eu ofeguei e coloquei meus braços ao redor do meu corpo, enquanto Stark me abraçava forte.

– Está tudo bem. Está tudo bem. A gente está bem. Vai passar – Stark murmurou frases para me tranquilizar.

– O que foi? O que está acontecendo? – Aphrodite chegou mais perto de mim, ombro a ombro com Damien.

– Você está com dor? – Damien perguntou.

– Nã-não – eu respondi com voz trêmula. – Eu só sinto como... como...

– Como se alguém estivesse pisando no seu túmulo – Stark concluiu por mim.

– A-alguém que usa Magia Antiga – eu acrescentei e Stark assentiu em concordância.

Como meu Guerreiro Juramentado, Stark compartilhava as minhas sensações. A ligação Grande Sacerdotisa-Guerreiro era estabelecida dessa forma para que nossos protetores sempre soubessem quando precisávamos deles. Mas havia momentos, como agora, em que eu preferia poder apertar um botão e não fazer ele passar por essas coisas estranhas que aconteciam frequentemente comigo.

– Está sumindo – Stark disse.

Eu soltei um longo suspiro de alívio.

– Sim. Acabou.

– Z, de onde isso está vindo? – Stevie Rae perguntou.

– Não tenho ideia – respondi. – Stark, você sabe de algo?

Ele balançou a cabeça.

– Não, acho que eu não estou tendo a sensação de fato, mas apenas um eco do que você está experimentando.

– Bom, está ligado a você – Damien falou. – Seja a magia propriamente dita ou a pessoa que está mexendo com ela.

– E se Sgiach invocou Magia Antiga? Será que pode ser isso que você sentiu? Vocês duas ficaram muito próximas – Stevie Rae deu um palpite.

– Não acho que seja isso – eu respondi. – A Rainha Sgiach é guardiã da Magia Antiga, e eu sei que ela se manifesta na ilha dela com muita frequência, mas, a menos que eu esteja lá com ela, nunca senti nada.

– Ela usou Magia Antiga na batalha contra o Touro Branco na noite em que sepultamos Neferet – Damien lembrou. – Você não sentiu nada?

Balancei a cabeça.

– Não.

– Merda! Será que pode ser Neferet? – Aphrodite disse.

De repente, senti um calafrio.

– Não sei.

– Bom, descubra! – Aphrodite exclamou.

Eu franzi o cenho para ela.

– Você é a Profetisa. Que tal você descobrir?

Ela atirou o longo cabelo loiro para trás.

– Não funciona desse jeito e você sabe disso.

– Além disso, você não precisa de nenhuma Profetisa. Você só precisa de uma Grande Sacerdotisa que possa invocar Magia Antiga. Conhece alguma, Z? – Kramisha perguntou, dando um olhar aguçado na minha direção.

Eu metaforicamente dei um tapa na minha testa.

– Eu devo ser uma imbecil.

– Z! – Stevie Rae bufou.

Fiz um gesto para evitar o que provavelmente seria um sermão politicamente correto enquanto Aphrodite caiu na gargalhada.

– Desculpe. Eu só estava brincando. Na maior parte. Eu sou a Grande Sacerdotisa de quem Kramisha estava falando.

– Não gosto de você mexendo com Magia Antiga – Stark falou.

– Eu não vou mexer com isso – eu argumentei. – Vou só dar uma invocada rápida, só isso.

– Nunca é só isso quando Magia Antiga está envolvida – Stark rebateu sombriamente.

Eu suspirei e concordei silenciosamente com ele.

– Será que a gente deve ir até Skye? Apesar de ela estar de luto, não acredito que a Rainha Sgiach recusaria dar passagem a você.

– Lá é longe demais – Stevie Rae protestou. – Tem que haver um jeito mais fácil. Ou pelo menos um lugar mais perto.

– Eu sei de um lugar mais perto – Rephaim disse.

A atenção de todo mundo se voltou para o jovem Cherokee alto e bonito.

– Ok, estou ouvindo – eu o incentivei a continuar.

– Tem Magia Antiga aqui. Bem aqui nos jardins da escola – ele falou em voz baixa, mas gravemente. – Eu sei porque eu vim dela.

Eu me endireitei no banco, como se o que Rephaim acabou de dizer tivesse entrado na minha mente. O meu olhar se perdeu pelos jardins da escola na direção leste, onde a distância eu mal podia distinguir a silhueta escura de um carvalho enorme e quebrado.

– Rephaim está certo. Há um jeito mais perto, mas eu não tenho muita certeza se vai ser muito mais fácil – eu afirmei.

O olhar de Stark seguiu o meu, e eu o escutei resmungar baixinho.

– Ah, que inferno.


10

Zoey

– Não sei se essa é uma boa ideia – Stevie Rae disse.

– Eu tenho certeza de que não é – Stark falou.

– Zoey, você não deveria fazer um círculo antes de tentar invocar Magia Antiga? – Rephaim perguntou. – Shaylin ainda está aqui, não está? Posso ir chamá-la. E eu vi Shaunee indo para a aula de Teatro com Erik. Posso falar para ela, caso você precise dela aqui também.

– Uau! Definitivamente essa árvore não se parece com a que está no meu velho mundo – Outro Jack exclamou.

– Ok, escutem bem. – Eu dei as costas para o carvalho destruído e encarei os meus amigos. – Eu não vou fazer um círculo. Quero fazer isso de um jeito rápido e simples, sem precisar focar muita energia em Magia Antiga. – Eu me virei para Rephaim. – Obrigada por me lembrar que essa árvore estava aqui. Queria que você e Stevie Rae ficassem – o meu olhar desviou dele e abarcou Aphrodite e Stark –, mas eu quero que todos os outros, exceto Stark e Aphrodite, vão embora. Minha intuição me diz para não tentar fazer um espetáculo para invocar Magia Antiga e, quanto mais gente estiver aqui, maior a bagunça. Eu faria isso sozinha, mas conheço o meu Guerreiro o bastante para saber que isso não é possível.

– Com certeza – Stark afirmou, com jeito de Guerreiro valentão, enquanto olhava sobre o meu ombro para a árvore quebrada, em cuja direção eu nem tinha olhado ainda.

– E Aphrodite é, bom... – minhas palavras sumiram quando percebi que não sabia muito bem como descrever o que Aphrodite havia se tornado.

– Estranhamente ligada a Nyx e poderosa? – Stevie Rae sugeriu.

– Que tal incrivelmente ligada a Nyx e poderosa? – Aphrodite a corrigiu, estreitando os olhos.

– As duas coisas – eu disse.

– E eu vou usar a minha posição de Grande Sacerdotisa e ficar bem aqui com Z – Stevie Rae falou.

– Eu fico com Stevie Rae – Rephaim acrescentou.

– Exatamente como eu esperava – eu concordei.

– O que nós podemos fazer enquanto isso? – Damien perguntou, entrelaçando os dedos com os de Outro Jack.

– Obrigada pela compreensão – eu agradeci. – Você e Jack podem cuidar para que todos os estudantes fiquem lá dentro.

– Claro – Damien respondeu. – Está na metade da segunda aula. Vamos enviar um e-mail de emergência para todos os professores. Ninguém pode ir a lugar nenhum por mais ou menos uns trinta minutos.

– E se alguém sair, Damien e eu vamos enxotar a pessoa direto de volta para a aula – Outro Jack completou, mostrando as covinhas para mim.

– Mas você tem certeza absoluta de que não quer que eu fique? – Damien perguntou. – Eu poderia fazer anotações sobre o que acontecer.

– Na verdade, o que me ajudaria ainda mais do que isso seria se você pudesse pegar aqueles livros sobre Magia Antiga na área restrita do Centro de Mídia, e marcar tudo que você achar que eu preciso ler sobre o assunto.

– Eu posso fazer isso, Z.

– Posso ajudar também? – Outro Jack se ofereceu, olhando para mim com olhos grandes e ansiosos. – Quer dizer, assim que a gente avisar os professores para não deixarem os novatos saírem das salas.

– Claro – eu respondi. – Eu agradeço.

Outro Jack deu um pulinho de alegria, que me fez sorrir, e então ele e Damien saíram apressados de mãos dadas.

– Bom, da minha parte, não preciso ver Magia Antiga nem qualquer coisa do tipo – Kramisha disse. – Tenho que fazer as malas. Z, se um poema vier até mim, eu mando uma mensagem pra você. Beleza?

– Sim – eu respondi, desejando secretamente não receber nenhum poema profético maluco enviado para mim via mensagem de texto com a fonte roxa brilhante que Kramisha usava para escrever.

– Grande Sacerdotisa, eu gostaria de permanecer com Aphrodite.

Meus olhos encontraram o olhar sério de Darius. Eu suspirei, mas assenti.

– Sim, eu entendo isso. Você pode ficar.

Darius fez uma reverência respeitosa para mim, com o punho sobre o coração.

– Ok, Z. Você encontra a gente no refeitório depois? Já está quase na hora do almoço e eu estou ficando irritada de fome – Kramisha disse.

– Sim, combinado. Não vou demorar. – Eu esperava que, ao falar em voz alta, pudesse transformar isso em realidade.

Enquanto meus amigos seguiam de volta para o prédio principal da escola, eu finalmente voltei minha atenção para a árvore rachada.

A aparência dela era horrível. Conforme eu a observei, percebi que deveria ter mandado arrumar tudo meses atrás. Estava assustador. Eu sabia que os estudantes evitavam o muro leste por causa daquilo, e imagino que parte do motivo que me fez adiar fazer qualquer coisa ali era porque aquilo desencorajava novatos a usarem o alçapão escondido no muro atrás da árvore para saírem escondidos do campus. Mas, por outro lado, agora eu era a Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Como se eu fosse realmente tomar conhecimento de cada novato que estava saindo escondido do campus. Era muito improvável.

– Z? Você está bem? – Stark perguntou.

Eu assenti.

– Sim, só estou pensando em mandar arrumar essa bagunça.

– Não. Deixe assim – Aphrodite falou. – Se você quiser fazer algo, faça uma defumação e um círculo de sal para proteção, mas deixe do jeito que está.

Eu me virei para ela.

– Por quê?

Ela indicou a ruína maléfica da árvore sem folhas e o buraco criado na terra de onde Kalona e os seus Raven Mockers haviam saído em uma explosão em um tempo que parecia muito, muito distante.

– Eu posso estar errada, mas para mim parece que essa bagunça é uma lição visível do que acontece quando você brinca com poderes em que é melhor não mexer.

Os meus olhos focaram nos galhos escuros feito garras, onde as folhas se recusavam a nascer.

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho razão. Então, você vai invocar Magia Antiga ou o quê?

Eu queria poder escolher “ou o quê”, mas sabia que essa não era uma opção.

– Alguém tem uma faca?

Juntos, Darius e Stark tiraram adagas que pareciam muito perigosas de sabe-a-Deusa-onde em seus corpos extremamente armados. Eu estendi a mão, com a palma para cima, e falei para Stark:

– Faça um corte.

Ele franziu a testa.

– Que tal eu me cortar e você usar o meu sangue?

– James Stark, eu sou a sua Grande Sacerdotisa e a sua Rainha. Eu disse para você me cortar. Então me corte.

Ele ainda estava franzindo a testa, mas desta vez fez o que eu pedi, rapidamente abrindo um corte raso na parte mais carnuda da palma da minha mão. A adaga dele era tão afiada que eu sequer senti dor. Fechei a mão e a apertei de leve para que o sangue se juntasse em uma quantidade razoável.

– Aphrodite e Darius, por favor, fiquem à minha esquerda. Stark, Stevie Rae e Rephaim, fiquem aqui do lado direito. Eu vou caminhar até a árvore. Deixem-me ir um pouco na frente de vocês. Não façam nada enquanto eu ainda estiver falando coisas com sentido, mas se algo estranho demais acontecer...

– Se alguma merda estranha acontecer, eu vou carregar você para fora de lá – Stark afirmou.

– Não – eu falei, cortando-o. – Coisas estranhas vão acontecer. É Magia Antiga. Não faça nada, a menos que eu pare de me comunicar com você, ou que eu seja puxada para dentro da, hum, árvore. – Fiz uma pausa, esforçando-me para não estremecer ao lembrar da última vez que a Magia Antiga havia me tocado ali. Da última vez eu quase havia me perdido. Encontrei o olhar preocupado de Stark e minha voz suavizou. – Você vai saber se alguma coisa estiver dando errado. Você vai sentir. Só não faça nada a não ser que dê tudo errado. Ok?

– Ok – ele respondeu com relutância.

– Eu te amo e sinto muito que isso esteja te estressando – eu disse.

Os ombros de Stark relaxaram um pouco.

– Eu também te amo, Z, e estresse faz parte do trabalho de um Guerreiro.

Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo e então encarei a árvore. Levantei a minha mão fechada diante de mim e inspirei profundamente três vezes para me centrar. Então hesitei.

– Bom, que inferno. Não sei quem eu devo invocar – eu falei.

– Você me disse que gostou dos espíritos elementais que responderam ao seu chamado em Skye – Stark lembrou.

– Sim, mas aquilo era diferente – eu respondi.

– Não exatamente. Pare de se preocupar tanto com o fato de ser Magia Antiga. Pense nisso em termos mais simples. É uma árvore velha toda ferrada. É só invocar os espíritos da terra – Stevie Rae sugeriu. – É o que eu faria.

– Sim, você está certa. Espíritos da terra. Isso parece o correto – eu concordei nervosamente.

– E pare de ficar tremendo tanto. Eles são só elementais. Você tem afinidade com todos os elementos. Imagine que você está invocando a terra para um círculo – Aphrodite reforçou.

– Essa é mesmo uma boa ideia – eu disse.

– Claro que é. Eu sou cheia de boas ideias. – Ela atirou o seu cabelo comprido e loiro para trás e levantou suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas para mim.

– E se eu tentar ajudar? – Stevie Rae veio para o meu lado. – Não sei muito sobre Magia Antiga, mas eu sou da terra. Vamos invocar juntas. Como a gente faz no círculo.

– Ok, isso faz sentido. Stevie Rae, você começa, e eu vou usar o meu sangue como se eu estivesse acendendo uma vela na terra.

– Facinho! – Stevie Rae limpou a garganta e falou para a árvore quebrada. – Eu sou Stevie Rae, Grande Sacerdotisa vampira vermelha de Nyx, que me presenteou com a afinidade com a terra. Com o poder concedido pela Deusa, eu gostaria de invocar os espíritos ancestrais da terra. – Então ela assentiu e deu um passo atrás, deixando que eu liderasse a invocação final.

Eu estendi a mão de novo, inspirei fundo e disse:

– Espíritos da terra! Espíritos das árvores da Magia Antiga! Eu sou Zoey Redbird. Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx, e eu consigo brandir a Magia Antiga. Com o poder ancestral no meu sangue, eu os invoco e peço que apareçam para mim. – Então, como se eu estivesse atirando uma mão cheia de água para longe de mim, arremessei o meu sangue na casca de árvore nodosa e quebradiça.

Nada aconteceu por um instante, e eu senti o meu coração afundar no peito. Eu ia mesmo ter que voar até Skye e incomodar Sgiach em seu luto? Será que isso poderia ser feito? Ou talvez eu devesse tentar falar com o Conselho Supremo dos Vampiros, o Europeu, aquele que não estava particularmente satisfeito com o fato de os meus amigos e eu termos assumido a liderança na América do Norte em vez deles...

– Ei, Z. Acorde. Tem alguém aqui – Aphrodite sussurrou.

Eu me sacudi mentalmente e fiquei olhando uma figura emergir do centro da árvore partida. Ela era obviamente um espírito da árvore. Alta e graciosa, tinha pele escura – da cor de casca de árvore à meia-noite –, mas não havia nada de rústico nela. Ao contrário, sua pele parecia incrivelmente suave e macia – e havia muita pele visível, pois o vestuário que ela estava usando era composto de delicadas folhagens de samambaia. Quanto mais eu olhava, mais me dava conta de que a samambaia parecia estar rente à sua pele, como uma pintura corporal ou mesmo uma tatuagem. Ela piscou para mim com olhos grandes, escuros e bonitos.

– Olá – eu disse. – Obrigada por atender ao meu chamado.

O espírito inclinou a cabeça para o lado com um movimento parecido com o de um passarinho. Isso fez o seu cabelo espetacular, da cor das folhas do outono, ondular como se estivesse sendo mexido por um vento que afetava apenas o espírito.

Eu estava tentando descobrir como persuadi-la a falar comigo quando o espírito inspirou profundamente, e então os seus olhos grandes e escuros ficaram ainda maiores.

– Outro Redbird? Esta noite está mesmo muito interessante.

Ela saiu do meio da árvore despedaçada, dando um olhar triste para ela enquanto passava a mão no tronco partido. Ela não estava exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não fizeram som nenhum nem remexeram o gramado marrom do inverno sobre o qual ela caminhava. O espírito parou diante de mim, se inclinou para a frente e me cheirou.

– Você é, de fato, uma Garota Redbird.

– Como você sabe o meu nome? – eu falei sem pensar.

– Eu acabei de encontrar outros do seu sangue. Um garoto jovem e uma mulher – a voz musical do espírito hesitou antes de continuar. – Mas eles não estão neste mundo. Que estranho.

– Espere aí, você está falando do meu irmão, Kevin?

– O Garoto Redbird... sim, acho que ele se chama Kevin.

– Quem era a mulher? Z, eu pensei que você estivesse, ahn, morta do lado de lá – Stevie Rae sussurrou.

O espírito voltou sua atenção para Stevie Rae, que sorria nervosamente e acenou, dizendo:

– E aí! Sou Stevie Rae. Prazer em te conhecer.

– Eu não a conheço, mas posso sentir a força da sua ligação com a terra. Como um espírito da árvore, eu aprecio isso. Pode me chamar de Oak.

– Obrigada, Oak – Stevie Rae fez uma reverência respeitosa.

Oak começou a farejar o ar de novo e, ao fazer isso, ela chegou mais perto de Rephaim, que estava tão imóvel que pensei que ele nem estivesse respirando.

– O que é você? Eu sinto o cheiro de Magia Antiga nos seus ossos, mas ela foi modificada.

– Sou Rephaim. Filho de Kalona. Eu fui um Raven Mocker.

– Portanto, não humano. Nem corvo. Mas algo modificado para fundir ambos em um só.

– Modificados por Nyx – eu me manifestei, sentindo a necessidade de ter algum tipo de controle sobre a conversa. – Rephaim conquistou o perdão da Deusa, e ela concedeu a ele o corpo de um garoto.

– Mas só do pôr do sol até o nascer do sol – Rephaim concluiu por mim. – Enquanto o sol está no céu, eu sou um corvo.

O espírito continuou a encarar Rephaim, farejando o ar ao redor dele, receoso.

– É uma punição pelos atos sombrios que você já cometeu que a Deusa permite que o corvo assuma o seu corpo.

Rephaim empinou o queixo.

– Sim. Nyx é justa. O meu passado não é algo do qual me orgulho.

– Exceto pelo ano passado – Stevie Rae disse, pegando a mão de Rephaim. – Ele escolheu a Luz, e Nyx o perdoou.

– Então, Oak, você não é deste mundo? – Aphrodite perguntou.

A cabeça de Oak girou, feito uma coruja, para observar Aphrodite.

– Eu não a conheço, Profetisa.

– Ainda assim você me chamou de Profetisa.

O espírito assentiu, fazendo o seu cabelo longo e multicolorido brilhar ao redor com um som parecido com o do vento derrubando as folhas do outono.

– A Magia Antiga reconhece uma Profetisa de Nyx. Houve um tempo, no passado distante, em que nós estivemos ao lado das Profetisas de Nyx, seguindo as ordens da Deusa. Infelizmente, esse tempo já passou, mas nós nos lembramos dele – Oak disse de forma enigmática antes de olhar para Darius. – Eu também não o conheço, Guerreiro – e então o olhar dela encontrou Stark. – Você, eu reconheço. O Garoto Redbird pediu santuário para se proteger de você e do seu exército, embora sua Marca fosse azul, não vermelha.

– Você é do Outro Mundo! – Stark exclamou. – Você conheceu Kevin Redbird lá, certo? Mas quem é a outra mulher Redbird? – Stark se virou para mim. – Será que a sua irmã foi Marcada no Outro Mundo sem Kevin saber?

Eu comecei a abrir a boca, mas a voz de Oak me interrompeu.

– Tantas perguntas, mas eu não recebi nenhuma oferta de pagamento. – Oak virou a cabeça e olhou sombriamente para a árvore quebrada na qual ela tinha se materializado. – E eu fui invocada através de um lugar que foi manchado pelas Trevas e pela destruição.

– Eu sou responsável por sua invocação. Peço desculpas. Eu realmente tenho perguntas a fazer, mas eu também tenho o seu pagamento. – Eu abri a mão, mostrando a Oak a ferida ensanguentada que ainda pingava.

Oak farejou delicadamente a palma da minha mão. Ela lambeu os seus lábios carnudos, lembrando estranhamente como eu costumava fazer quando tinha noite de festival de psaghetti no refeitório, mas então ela me surpreendeu ao desviar a sua atenção do meu sangue para encontrar o meu olhar.

– Você oferece um pagamento aceitável, mas eu prefiro outra coisa.

– Que tipo de pagamento você quer? – Senti a necessidade de prender a respiração enquanto esperava pela resposta dela.

Oak virou a cabeça para olhar sobre o seu ombro para a árvore destroçada.

– O pagamento que eu quero pela informação que você busca é que você limpe a abominação que aconteceu aqui, e restaure o equilíbrio deste lugar.

Eu pisquei em choque, mas ainda consegui dizer:

– Eu posso fazer isso.

A cabeça dela girou de novo para mim e a sua voz se tornou ritmada, como se ela estivesse recitando um belo poema.

“Eu aceito o pagamento do equilíbrio a esta árvore restaurado

Grande Sacerdotisa – você prometeu isso de bom grado

Eu concordo em fornecer informação

Eu concordo com a verdade dita na canção

Pergunte, então, Garota Redbird

Mas escute bem, para que minhas palavras acate

E se você esquecer do pagamento aqui rebate

Saiba que há outras formas de pagar antes que a mate...”

Oak não atirou sangue no ar nem fez nenhum outro tipo de floreio dramático, mas, no instante em que terminou de falar o feitiço de amarração, o ar ao redor dela brilhou como se alguém tivesse soprado purpurina sobre o pátio da escola. Tentei não pensar nas outras formas com que a Magia Antiga podia me fazer pagar pela promessa e fiz a minha primeira pergunta.

– Você conhece o meu irmão, Kevin?

– Conheço. Ele se parece muito com você.

– Então, você é de outro mundo?

– Para as fadas ancestrais, todos os mundos são um só. Nós prestamos pouca atenção no véu que os separam.

– A outra mulher Redbird que você mencionou. Você pode me dizer quem ela é?

– Sim, Garota Redbird. Ela é uma Mulher Sábia, uma do seu sangue. Ela é formidável. Eu realmente me deliciei com as suas bolsas medicinais. Elas não foram pagamentos poderosos pelos nossos serviços, mas foram saborosas.

– Ela está falando de Vovó Redbird! – Stevie Rae exclamou.

Eu assenti.

– Ela também falou em bolsas medicinais... no plural. Oak, a Mulher Sábia da qual você está falando deve ser minha avó. Ela e Kevin estão lidando com Magia Antiga no Outro Mundo?

– A Mulher Sábia não invocou Magia Antiga, mas, como respeito pelo seu sangue ancestral, eu responderia se ela me chamasse e precisasse da minha assistência. Foi o Garoto Redbird. Ele requisitou nossa ajuda. – Os olhos escuros de Oak se viraram para Stark. – Ele precisava de proteção contra um Guerreiro muito parecido com este que lhe pertence.

– Kevin deve estar trabalhando com a Resistência – Stark disse.

– Onde Kevin e minha avó estavam quando eles usaram Magia Antiga? – eu perguntei.

– Em uma montanha não muito longe daqui. É lá que o povo deles se reúne e se esconde daqueles que os caçam.

– É isso. O Outro Kevin se juntou à Resistência – Darius concluiu.

– E você realmente não me viu lá em nenhum lugar? – Aphrodite perguntou ao espírito.

Oak olhou atentamente para ela.

– Não. Você não faz parte do povo do Garoto Redbird.

– Olha, que merda – Aphrodite falou.

– Por que isso faz tanta diferença? – Rephaim perguntou para Aphrodite.

Stevie Rae respondeu por ela.

– Porque Aphrodite é a razão pela qual novatos vermelhos e vampiros vermelhos no nosso mundo podem escolher manter a sua humanidade. Sem ela, todos nós seríamos monstros, como o pobre Outro Jack já foi.

O que Stevie Rae disse deu um cutucão na minha memória, e de repente eu tinha outra pergunta a fazer para o espírito.

– Oak, você realmente é feita de Magia Antiga, certo?

Quase pareceu que o espírito se segurou para não rir.

– É claro, Garota Redbird. Do que mais eu seria feita?

– Bom, eu não sei, mas estou confusa. Pensei que Magia Antiga não tomasse partido nessa batalha entre Luz e Trevas. E mesmo assim você está aqui, contando que protegeu o meu irmão e o seu povo contra o Exército Vermelho, e que o pagamento que você quer é que eu limpe as Trevas desta árvore. Isso soa como se você estivesse tomando partido... não que eu me importe. Eu estou feliz que você esteja escolhendo a Luz. Só me pergunto por quê.

– Você está parcialmente correta, Garota Redbird. A Magia Antiga não escolhe lados, já que vemos as muitas camadas que compõem a Luz e as Trevas, e nós compreendemos profundamente que ninguém é completamente bom nem completamente mau. Eu concedi santuário ao seu irmão porque aceitei o pagamento dele, e não porque fiquei do lado dele contra as Trevas. Em relação a essa árvore, os espíritos elementais não são neutros quando uma abominação é cometida contra a natureza. E essa árvore, este lugar de poder elemental, foi de fato profanado, o que é uma abominação contra a natureza. Isso tem que ser consertado.

– Isso tem sentido, Z – Stark disse. – Ela soa muito como Sgiach, quando chegamos na ilha. Ela não sairia da ilha para combater as Trevas, mas, quando as Trevas invadiram a sua ilha, Sgiach lutou contra elas.

– Ah, a Rainha Sgiach. Nós ficamos tristes pela perda do Guerreiro dela.

– Você a conhece! – eu exclamei.

– Sim. Há muitos séculos.

– Como ela está?

– Em luto profundo. – E então Oak fechou a boca, deixando claro que não ia falar mais nada sobre a Rainha Sgiach, a Grande Cortadora de Cabeças.

– Ok, então, como o meu irmão está no Outro Mundo? – eu perguntei.

– O ferimento dele se curou. Nós concedemos santuário ao povo dele na montanha. Ele brande Magia Antiga com maestria.

– E o ferimento dele? – a minha pergunta saiu como um grito agudo.

– Ele se curou – Oak repetiu, como se pensasse que eu podia ser meio devagar.

Eu queria perguntar mais sobre Kevin ter se ferido, mas Aphrodite agarrou meu pulso e falou urgentemente para mim:

– Kevin está brandindo Magia Antiga. Foi isso que você sentiu.

– Sim, eu sei.

– Z – ela parecia exasperada –, lembre-se de como é brandir Magia Antiga.

E então eu percebi o que Aphrodite estava dizendo. Kevin estava encrencado, e ele provavelmente não sabia disso.

– Oak, você pode levar uma mensagem minha para Kevin?

– O seu pagamento foi por informação. Não para ser uma mensageira.

Eu baixei os olhos para a minha mão. A ferida tinha começado a coagular, mas eu sabia que podia abri-la de novo com a unha.

– Sangue. Eu pagarei com o meu sangue para você levar uma mensagem para o meu irmão.

– Não, Sacerdotisa. Você me julga mal. Não sou sua mensageira. Não tenho nenhum compromisso com você. Você me ofereceu um pagamento por informação. Eu dei essa informação. Agora você tem que cumprir o que me deve. Faça isso, e depois talvez me peça outra tarefa. Apenas tenha certeza de que o pagamento que você oferece é atraente...

E sem fazer nenhum barulho, Oak deu as costas para nós e, em um puf de névoa, ela desapareceu no meio da árvore caída.


11

Outro Kevin

Água da chuva gotejava do teto encurvado de pedra da caverna e formava poças, lama e barro ao redor dos pés de Kevin. Ele enxugou o rosto com a manga do seu casaco e espirrou violentamente.

– Acho que eu prefiro gelo do que essa droga de garoa e névoa. Se isso continuar por muito tempo, vai virar uma primavera de Oklahoma precoce com a tríade de coisas pé no saco que sempre vêm junto: tornados envoltos em chuva, pólen de ambrósia3 e carrapatos – Kevin resmungou para si mesmo.

– Ei, levante a cabeça! Podia ser bem pior. Que inferno, seria bem pior se você não tivesse nem vindo até aqui. Pelo menos estamos seguros, aquecidos e relativamente secos aqui.

Kevin sorriu ironicamente para o vampiro baixo, mas poderosamente musculoso, que pareceu se materializar de repente ao lado dele.

– Cara, você poderia ser menos silencioso? Esse jeito lento de andar não é bom para a minha ansiedade.

– Não há nada de errado com a sua ansiedade, Kevin querido. Mas Dragon não deveria importunar você andando por aí feito um espírito. – A adorável mulher com o véu de um longo cabelo loiro com mechas prateadas tocou o ombro de Kevin delicadamente, embora o afeto no seu olhar fosse todo direcionado a Dragon. – Principalmente com a quantidade de espíritos que temos por aqui. Eles podem ficar com inveja.

Dragon Lankford levantou as mãos em sinal de rendição.

– Anastasia, meu amor, não deixe que se diga que eu afronto os espíritos. – Ele fez uma pausa e então perguntou a Kevin: – Como eles são?

– Os espíritos? – Kevin disse, enxugando mais água da chuva do seu rosto enquanto saía da entrada da caverna muito maior e melhor.

– Sim, os espíritos. Você se lembra deles, certo?

– Ah, Bryan, deixe o garoto em paz. São os espíritos dele. É claro que ele se lembra deles. Todos nós lembramos deles e somos gratos – Anastasia Lankford repreendeu o seu companheiro, apesar de dizer isso deslizando o braço em volta da cintura dele com intimidade e recostando a cabeça rapidamente em seu ombro, o que Kevin achava que tirava totalmente a bronca que estava em suas palavras. Afinal de contas, que cara não levaria um sermão da bela Sacerdotisa numa boa se ela estivesse ao mesmo tempo encostando sua bochecha macia no ombro dele?

Em meio ao silêncio crescente, Dragon Lankford estalou os dedos algumas vezes na frente do rosto de Kevin, fazendo-o piscar e dar um pulo para trás – e se dar conta de que ele estava sentado lá encarando Anastasia como um menino de escola apaixonado.

Cara, eu preciso de uma namorada. Kevin suspirou internamente e se sacudiu.

– Desculpe. Eu estava pensando.

– Percebi. – Dragon deu um olhar divertido para ele.

Kevin devolveu o olhar com o seu próprio sorriso.

– Eu estava realmente pensando em mais coisas além da beleza da sua companheira.

– Bem, obrigada, Kevin querido. – Os cantos dos olhos de Anastasia se enrugaram de modo cativante.

Dragon limpou a garganta.

– Que outras coisas são essas em que você estava pensando?

– Que eu realmente preciso ir embora. – Kevin levantou a mão quando Anastasia começou a protestar. – Não, já faz três dias. As estradas estão limpas. O Exército Vermelho não voltou. – Kevin fez uma pausa e gesticulou para o local que antes era o fundo da minúscula caverna, mas agora era uma entrada em arco perfeita para um sistema de cavernas e túneis que serpenteavam como um labirinto, adentro da montanha rochosa. Mesmo de onde ele e os Lankfords estavam, todos podiam ver pessoas – novatos azuis, vampiros e humanos – apressadas indo de lá para cá, preparando o jantar, remendando roupas rasgadas, fervendo ervas para o chá e outras tarefas caseiras. Gatos caminhavam distraídos por ali, atrapalhando o caminho, mas também mantendo a população de ratos e de toupeiras sob controle. E de algum lugar mais lá embaixo na caverna, o aroma de chili se levantou, fazendo Kevin salivar. – Está tudo funcionando. A caverna está aquecida, seca e bem ventilada, e os espíritos estão mantendo a montanha encoberta com névoa. Já está na hora de eu ir embora.

– Eu concordo – Vovó Redbird chegou até a entrada da caverna, vindo do ponto mais fundo do seu interior recém-concluído. – Está tão agradável e aquecido lá atrás! Não sei como os espíritos fizeram isso, mas o sistema de ventilação é um milagre. Quase não tem fumaça nenhuma em nenhum lugar. Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Kevin, eu concordo com você. Se você demorar muito mais para voltar para a Morada da Noite, a sua reaparição vai levantar suspeitas.

– Mas Kevin voltar já não será suspeito por si só? – Anastasia questionou. – De acordo com o que ele nos contou, um grupo inteiro de novatos e soldados do Exército Vermelho e um general vermelho desapareceram. Como você vai explicar onde esteve? E onde eles estão?

Kevin soltou um longo suspiro.

– Andei pensando nisso e tenho uma ideia. Eu vou mentir.

Dragon deu risada.

– Obviamente!

– O que você quer dizer com isso, u-we-tsi?

– Bom, se alguém me perguntar sobre o restante do meu grupo, vou dizer que não sei nada sobre isso porque o meu general, que está morto lá no mundo da minha irmã, me mandou em uma missão de reconhecimento alguns dias atrás. E eu fui. Não encontrei nada de mais, mas aí acabei me perdendo.

– Acabou se perdendo? – Dragon bufou.

– Ah, eles vão acreditar. E também não vão me perguntar mais nada sobre o general. Pense na maneira como os vampiros vermelhos agem. Mesmo os oficiais não são muito mais do que máquinas de comer. O General Dominick era o meu oficial superior, mas até ele era basicamente um babaca desgraçado e do mal, que controlava os seus soldados com ameaças e medo. Para um vampiro vermelho, ele era considerado esperto, mas na verdade ele não pensava muito além de quem nós poderíamos atacar em seguida. – Kevin balançou a cabeça de desgosto. – Acredite em mim, sei tudo sobre isso. Eu estou me escondendo no Exército Vermelho há quase um ano, e nenhum deles jamais suspeitou que eu fosse diferente.

– Mas, Kevin, você tem um cheiro diferente agora – Anastasia lembrou.

– Essa foi a última coisa que eu andei tentando resolver. Tenho quase certeza de que nenhum vampiro azul vai prestar atenção suficiente em mim para reparar que eu não tenho um fedor.

– Mas “quase” não é bom o bastante, u-we-tsi.

– Os vampiros vermelhos vão reparar, não vão? – Anastasia perguntou delicadamente.

– Acho que eles podem reparar. Bom, não os soldados comuns, mas alguém como um dos generais vermelhos... tenho quase certeza de que iriam notar sim.

– O que Kevin pode fazer em relação a isso? – Dragon perguntou.

– Bom, eu posso pensar em jogar um feitiço sobre ele... algo que tenha um cheiro junto – Anastasia refletiu. – Mas qualquer Sacerdotisa que cruzar o caminho dele poderia facilmente perceber o rastro de energia do feitiço. E, se você estiver em qualquer lugar perto de Neferet, ela reconheceria o meu feitiço imediatamente.

– Então essa ideia está definitivamente fora de questão – Dragon afirmou.

– Que tal algo mais simples? – Vovó Redbird sugeriu. – Kevin, qual a intensidade que esse cheiro precisa ter?

Kevin deu de ombros.

– Não tenho certeza. Quando eu era um vampiro vermelho, nunca percebia o fedor.

– Depende do tipo de vampiro vermelho – Dragon explicou. – Os soldados fedem como cadáver e bolor. Já os oficiais, especialmente os oficiais de patentes mais elevadas, não possuem um cheiro tão ruim.

– Então, um oficial, como o Kevin, não tem o aroma muito mais forte do que o de um perfume de mulher? – Vovó perguntou.

– Acho que é uma boa comparação – Dragon respondeu. – Se a mulher exagerou e colocou perfume demais.

– Bom, u-we-tsi, isso vai parecer repugnante, mas acho que você deveria usar o sangue de um vampiro vermelho como se fosse perfume.

– Você quer que eu passe perfume de sangue em mim?

Vovó sorriu.

– Talvez funcione melhor se espalhar um pouco de sangue na sua pele em lugares que não possam ser vistos.

– Que nojento – Kevin resmungou.

– Porém prático – Anastasia disse.

– Sim, acho que vocês estão certas – Kevin falou. – Cara, eu queria poder fazer só uma tentativa sem o perfume de sangue fedido.

– Você não pode – Dragon afirmou. – Eles vão descobrir você, e vão nos descobrir em seguida.

– Eu jamais contaria a eles onde vocês estão! – Kevin protestou.

Anastasia colocou a mão no ombro dele.

– Não por livre e espontânea vontade, mas depois que eles torturarem você e o deixarem passar fome... bom, vamos apenas dizer que é melhor ficar fedido.

– Sim, você está certa. Então vou voltar para a estação hoje à noite, depois de conseguir um pouco de sangue de vampiro vermelho. Não vou gostar disso. – Kevin estremeceu e então estalou as juntas dos dedos. – Mas vou fazer tudo que tiver de ser feito. Ok, eu já tenho um plano, mas quero a contribuição de vocês.

– Claro – Anastasia disse, e os quatro foram até os bancos de pedra que os espíritos haviam esculpido de algum modo na parede da caverna. O corvo enorme que nunca ficava longe da Sacerdotisa voou para dentro da caverna e esticou suas asas escuras no ar frio, aterrissando em um afloramento rochoso em cima de Anastasia. – O que você está pensando, Kevin?

– Nós precisamos de Aphrodite.

– Aphrodite? – Dragon grunhiu.

– Antes que você reclame, apenas pense no que eu contei antes. O que aconteceria se não existisse mais o Exército Vermelho para Neferet usar como uma máquina de comer em tempos de guerra?

Dragon suspirou e assentiu.

– Sim, é verdade. Sem o Exército Vermelho, não seria mais tão fácil para Neferet ganhar a guerra.

– Exatamente – Kevin concordou.

– Então você deve saber que o risco compensa – Vovó Redbird disse.

– Certo. Vou pedir para Johnny B levar vocês até onde nós escondemos o Polaris. – Dragon voltou seu olhar sombrio para Vovó Redbird. – Sylvia, quero que saiba que você tem um lugar aqui conosco se preferir ficar.

– Obrigada, Dragon, mas eu preciso voltar para a minha fazenda. Eu sou protegida, então não corro perigo e posso ajudar mais lá fora do que me escondendo aqui.

– Como eu vou enviar mensagens para vocês aqui? – Kevin perguntou. – Vou tentar voltar para cá o maior número de vezes que conseguir, mas tenho que ter cem por cento de certeza de que ninguém está me seguindo. E se eu tiver informações que vocês precisam, mas não conseguir escapar?

– Isso é fácil – Anastasia respondeu, levantando os seus grandes olhos azuis na direção do corvo. – Vou enviar Tatsuwa para encontrá-lo todo dia. Ele vai voar em círculos sobre você. Se você tiver uma mensagem para nós, escreva em um pedaço de papel e dê a ele. Tatsuwa vai trazer a mensagem para mim. Da mesma forma, se nós tivermos uma mensagem para enviar, ele vai levá-la até você.

– Hum, como ele vai me encontrar? – Kevin deu uma olhada rápida para o corvo, e o grande pássaro grasnou para ele.

– Ah, você não precisa se preocupar com isso. Se você estiver ao ar livre, Tatsuwa vai encontrá-lo. A visão dele é tão aguçada quanto a sua inteligência.

– Anastasia, minha querida, eu já tinha visto o seu corvo adorável antes, e ele parece estar sempre perto de você, mas eu não tinha ouvido antes você o chamando pelo nome até recentemente. Eu queria dizer que gostei que você escolheu como nome dele uma palavra indígena – Vovó Redbird falou, aproximando-se do pássaro o bastante para acariciar suas penas pretas e brilhantes.

– Tatsuwa significa corvo em Cherokee? – Anastasia pareceu surpresa.

– Sim – Vovó Redbird respondeu. – Se você não sabia disso, como foi que deu esse nome a ele?

O sorriso brilhante de Anastasia iluminou a caverna quando ela olhou carinhosamente para o pássaro.

– Eu não o nomeei. Ele me disse o seu nome, não foi, Tatsuwa?

– Tatsuwa! – o corvo falou tão claramente quanto a Sacerdotisa que ele tinha escolhido como sua.

– Às vezes eu acho que os dois são mais próximos do que eu e ela – Dragon resmungou.

– Ciumento! – Tatsuwa grasnou.

Anastasia riu musicalmente.

– Ah, Tatsuwa, pare de provocar Bryan.

O pássaro saltou do seu poleiro e andou gingando até Anastasia, aconchegando-se ao lado dela, enquanto ela usava um dedo longo e fino para fazer carinho na penugem em cima do seu bico.

– Quantas palavras ele sabe falar? – Kevin perguntou, totalmente intrigado com o estranho pássaro negro.

– Ah, Tatsuwa não apenas imita palavras. Ele realmente fala – Anastasia explicou. Ela beijou o topo da cabeça do grande pássaro, e Kevin pôde jurar que ouviu a criatura ronronar.

– Um ta-tsu-wa é um aliado poderoso – Vovó Redbird afirmou. – Quando eles se ligam a alguém, essa ligação é para a vida toda.

– Se ao menos eu soubesse disso quando o encontrei, congelando e quase completamente sem penas no inverno passado – Dragon resmungou.

– Oh, Bryan, você nunca teria deixado ele sofrer e ficar para morrer – sua bela companheira falou. – Tatsuwa e eu somos gratos pelo seu bom coração.

– Obrigado, Bryan – o pássaro disse, soando igual Anastasia de um jeito desconcertante.

– Eu estabeleci o limite de ele não dormir conosco – Dragon disse.

– Meu amor, você sabe que ele prefere o ninho dele.

– Feito com os seus cabelos.

– Sério? – Kevin perguntou para Anastasia.

– Apenas parcialmente. O resto é feito com um dos meus velhos suéteres. E ele não arrancou o cabelo da minha cabeça. Ele é ótimo em limpar as minhas escovas.

Os olhos da Sacerdotisa faiscaram quando ela beijou o topo da cabeça negra lustrosa do corvo de novo.

– Humpf – Dragon resmungou. Então ele voltou seu olhar sarcástico para Kevin. – Mas o que tudo isso significa é que o pássaro é bizarramente inteligente e vai fazer qualquer coisa que Anastasia pedir.

– Ok, bom, acho que ele vai ser o meu celular então. É estranho, mas não tão estranho quanto o fato de ele dormir em um ninho feito com os cabelos da sua companheira. – Kevin levantou e se alongou, fazendo só uma pequena careta ao sentir uma fisgada na cicatriz do seu ferimento. – Você está pronta, Vó?

– Totalmente. – Vovó Redbird se levantou e fez mais uma longa carícia no corvo antes de abraçar Anastasia e depois o companheiro dela. – Obrigada por confiarem em mim.

– E em mim. – Kevin estendeu a mão para Anastasia, que sorriu docemente antes de abraçá-lo e de beijar sua bochecha.

– É tão fácil confiar em você quanto na sua avó – disse a Sacerdotisa.

– Bom, só depois que a gente supera essa sua Marca vermelha. – Dragon também puxou Kevin para um abraço com tapinha nas costas. – Fique em segurança, Kevin Redbird. Você pode ser a nossa única esperança de acabar com essa guerra sem nos render e condenar o nosso mundo às Trevas.

– Ei, sem pressão, certo? – Kevin se esforçou para não estalar os nós dos dedos.

Quando ele e sua avó saíram da caverna seguindo Johnny B, Tatsuwa passou voando por eles e então Kevin ouviu o pássaro chamando no vento:

– Garoto Redbird... Garoto Redbird... Garoto Redbird...

3 Causador de muitos casos de alergia no hemisfério norte. (N.T.)


12

Outro Kevin

– U-we-tsi, você tem certeza disso? – Vovó Redbird perguntou enquanto se inclinava sobre o assento, procurando algo dentro da grande cesta que ocupava a maior parte do banco traseiro do carro. Ela havia parado em uma das vagas na parte mais escura do estacionamento da Utica Square, bem no fundo.

– Não, mas eu tenho certeza de que você não pode me levar até a escola. Você está sob a proteção de Neferet, mas nenhum humano racional jamais iria entrar em um carro com um vampiro vermelho, a menos que estivesse prestes a ser devorado.

– Ah, aqui está! Eu sabia que tinha um desses aqui atrás. Coloque isso. Tem um capuz e deve ser grande o bastante para puxar para baixo para cobrir o seu rosto. – Vovó entregou a ele um velho moletom escuro que tinha um leve cheiro de lavanda, e ele o vestiu. Então ela abriu a cesta de novo e pegou uma bolsa de couro com uma tira grossa para colocar sobre o ombro. – Aqui, pegue isto também. Coloquei aí dentro algumas coisas que acho que você pode precisar. E, não, eu não quis dizer que eu deveria levá-lo de carro até lá. Entendo que isso é impossível e você pode facilmente ir a pé até a Morada da Noite. Estou preocupada com o seu perfume de sangue.

Vovó Redbird franziu o nariz quando disse as últimas palavras.

Kevin riu, colocou a tira da bolsa sobre o ombro e a abraçou.

– Você não precisa se preocupar com isso. Já pensei em tudo.

– Sei que isso é algo que você precisa fazer, mas me deixa muito angustiada pensar em você matando um novato ou vampiro vermelho.

– Vó, eu não vou matar ninguém.

– Então, você vai apenas cortar um vampiro vermelho para pegar o sangue de que precisa?

– Vó, eu tenho uma ideia melhor que essa. Vou visitar o necrotério da escola.

Vovó Redbird o abraçou forte.

– Oh, u-we-tsi, fico tão feliz em ouvir isso! – Então ambos riram como criancinhas por causa do ridículo de ficar feliz por alguém visitar um necrotério.

Finalmente, Kevin deu um beijo na bochecha dela.

– Prometa que não vai fazer nada que possa te machucar.

Ela segurou o rosto dele com as mãos e sorriu amorosamente, olhando nos olhos dele.

– Não posso prometer isso, mas prometo que vou ser sábia e pensar um pouco antes de agir.

– Acho que vou ter que me contentar com essa promessa.

– Acho que sim. – Vovó o beijou. – Vá com a proteção da Grande Deusa, u-we-tsi, e lembre-se sempre de como eu tenho orgulho de você.

Kevin odiou deixar sua avó para trás. Ele teve que se esforçar para não começar imediatamente a imaginar hordas de vampiros vermelhos insaciáveis atacando a sua fazenda para devorá-la por ajudar a Resistência.

Vovó está sob a proteção de Neferet.

Ninguém no Exército Vermelho ou Azul sabe que ela faz parte da Resistência.

Eu realmente preciso relaxar.

Pensamentos sobre a sua avó e a Resistência ficaram revirando sem parar na cabeça de Kevin enquanto ele cortava caminho pela Rua Vinte e Dois e seguia pela Avenida Yorktown em direção ao lado leste da Morada da Noite.

Era tarde – apenas algumas horas antes do amanhecer –, mas ele não estava preocupado. Visitar Zoey tinha dado a ele uma percepção maior da Morada da Noite, e ele sabia onde poderia se esconder em segurança do sol e de vampiros curiosos. Se os dois mundos fossem realmente mais parecidos do que diferentes. Se esta Morada da Noite não tiver sido construída como a de Zo...

Kevin balançou a cabeça. Não tem motivo para ficar pessimista a não ser que eu precise. Se tudo mais falhasse, ele sempre podia se fingir de bobo e ser apenas outro vampiro vermelho que tinha perdido o ônibus de antes do amanhecer para os túneis da estação. Com sorte, os vampiros azuis o deixariam ficar em um dos quartos escurecidos no dormitório e não iriam atirá-lo no meio da rua para fritar.

O muro de pedra que rodeava a Morada da Noite surgiu subitamente à sua direita, parecendo austero, intimidador e basicamente nada parecido com o da Morada da Noite iluminada e receptiva que a sua irmã comandava.

Por um instante, uma saudade profunda apertou, e Kevin desejou mais do que qualquer coisa que ele pudesse sair correndo para o Woodward Park e descobrir um jeito de reabrir o portal entre os mundos e deslizar de volta por ele – para nunca mais voltar.

– Mas e se eu realmente fizesse isso? O que iria acontecer com Vovó aqui? Ela nunca iria parar de se preocupar comigo e nunca iria sair do luto por perder Zo e eu – ele disse a si mesmo.

E agora havia Dragon, Anastasia e o restante da Resistência. Eles iriam achar que ele havia sido pego e morto, ou que tinha mentido para eles. Provavelmente iriam abandonar a caverna na montanha, o que seria realmente terrível. Não, Kevin não podia ir embora. Não importava o quanto ele quisesse isso.

Postes de rua feitos para parecer que eram do começo dos anos 1900, inclusive com as chamas tremulantes do gás, projetavam sombras em movimento pelo muro enorme. Kevin atravessou a Yorktown para se juntar a elas enquanto sua visão sobrenaturalmente aguçada começava a vasculhar a parede, procurando a pedra antiga e retangular em que estava inscrito 1926 – o ano em que o muro que circundava a escola havia sido terminado. Ele estalou as juntas dos dedos nervoso enquanto procurava, sem nem ter certeza de que ela estava mesmo ali. Zo tinha contado a ele sobre essa pedra – que era um tijolo específico no muro leste da escola que, na verdade, era parte de um sistema de alçapão acionado por molas. Esse tijolo no muro não parecia muito diferente dos outros, mas ela disse que do lado de fora ele estava marcado e que era através desse alçapão que novatos escapavam para fora do campus há quase um século.

Pelo menos era assim no mundo dela.

Aquele era o primeiro teste – a primeira vez em que ele iria ver o quanto os dois mundos eram parecidos em sua estrutura.

Quando os olhos dele avistaram a inscrição 1926, ele sentiu uma onda de alívio. O tijolo estava na altura dos seus olhos. Ele respirou fundo e o pressionou.

Houve um clique baixo quando algum mecanismo se abriu, e então o muro pareceu dar um suspiro ao aparecer um vão – com espaço apenas suficiente para alguém passar apertado por ele – naquela obra de alvenaria antes aparentemente perfeita.

Depois que entrou, ele empurrou o tijolo de novo e a porta se fechou, e então Kevin fez uma pausa. Ele se agachou contra o muro, desejando que a escuridão antes do amanhecer estivesse menos límpida e com mais névoa, chuva ou até gelo, mas, depois que o seu olhar fez uma varredura pelos jardins da escola, ele começou a relaxar. Aquela não era a Morada da Noite da sua irmã. Não havia garotos humanos se misturando aos novatos, azuis e vermelhos, brincando pelo jardim. Tudo o que Kevin viu foi um gramado meticulosamente bem-cuidado, alguns gatos furtivos e Guerreiros Filhos de Erebus de guarda em cada uma das portas do prédio principal.

Kevin definitivamente iria evitar o prédio principal.

Mantendo-se perto o bastante do muro para se misturar às sombras bruxuleantes da iluminação a gás, Kevin começou a correr. Ele seguiu o muro todo até passar pelo Templo de Nyx. Ao passar por ali, ele lançou um olhar nostálgico naquela direção. Ele nunca se esqueceria da sensação de amor e aceitação que experimentou com Zoey e os seus amigos dentro do Templo da Deusa. Esse lugar parecia quase exatamente igual a esse templo, embora não houvesse nem perto da mesma quantidade de velas brilhando através das janelas e ele não sentisse nem um pingo de aroma de baunilha ou lavanda.

É Neferet. Ela não está honrando a Deusa como Zo faz.

Esse pensamento deixou Kevin irritado e muito triste.

Logo depois do Templo de Nyx, o muro começou a fazer uma curva para a direita, onde ele corria paralelo à Rua Utica, e não muito depois disso Kevin avistou o prédio solitário que ele procurava, construído com a mesma pedra do muro e do resto da Morada da Noite, só que esse edifício era diferente.

Não que parecesse muito diferente. Ele era pequeno – realmente uma versão em miniatura do Templo de Nyx. Tinha um jardim de meditação estilo japonês adjacente que era emoldurado em três lados por um mausoléu, que guardava os corpos cinzentos dos novatos azuis que haviam rejeitado a Transformação.

– E apenas dos novatos azuis – Kevin murmurou para si mesmo. – Os novatos vermelhos são retirados do necrotério, queimados e então as suas cinzas são jogadas fora. Literalmente. Como lixo mesmo, eles são coletados com o resto do lixo da escola toda semana. Espero que hoje não tenha sido o dia da coleta.

Kevin se aproximou do mausoléu. Ele teria que atravessar o jardim de meditação para entrar no necrotério em si, mas ele não previa nenhum problema nessa hora. O necrotério não era exatamente um lugar efervescente da Morada da Noite. Na verdade, dificilmente alguém ia até lá, já que Neferet encorajava os novatos a “não ficar de luto por aqueles que se mostraram indignos”.

A areia do jardim de meditação continuou silenciosa sob os pés de Kevin e, apesar de a área parecer deserta, ele ficou satisfeito com a existência de biombos de madeira decorados que seccionavam o jardim, criando alcovas particulares de sombras.

Não muito longe, ele conseguiu ver a porta de madeira arqueada que era a entrada para o necrotério. Kevin estava quase deixando que a tensão saísse dos seus ombros quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento.

No meio do jardim de meditação havia uma bela estátua de Nyx. Aquela estátua em particular retratava Nyx como a deusa piedosa Kwan Yin. Feita de um onírico ônix branco, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, ela estava acesa por dentro e era a única luz no sereno jardim.

Na frente da estátua havia um banco de madeira simples, muito parecido com os bancos dentro de cada alcova de meditação, porém maior. No banco estava sentada uma figura solitária, com o rosto levantado, contemplando a Deusa.

Merda! Uma Sacerdotisa!

Kevin se enfiou rápida e silenciosamente na alcova de meditação mais próxima. Ele estava analisando a mulher sentada no banco, tentando ter uma visão mais clara do seu rosto e pensando que ela parecia familiar, quando outra pessoa entrou apressada no jardim, vindo da direção oposta, como se estivesse chegando do prédio principal da escola. Ela caminhou a passos largos até o banco, fazendo uma grande encenação ao baixar os olhos para a Sacerdotisa que estava sentada sozinha. Kevin se espremeu no canto da sua alcova e rezou para que nenhuma das duas o descobrisse ali.

– Aí está você! Um dos Guerreiros disse que viu você vindo nesta direção, mas eu tinha certeza de que ele estava errado. Eu inclusive falei isso para ele. Eu disse: “Por que a adorável Aphrodite iria querer passar um tempo no jardim do necrotério?”. Mas, como não consegui encontrar você em lugar nenhum e como você se recusa a atender o seu telefone, eu resolvi vir aqui procurar você.

Kevin sentiu um tranco de choque elétrico. Aquela era Aphrodite! E então a sua mente alcançou o seu choque quando ele reconheceu a voz da segunda Sacerdotisa.

O som do suspiro de Aphrodite atravessou a areia até Kevin.

– Olá, Neferet. Respondendo à sua pergunta, eu venho bastante aqui porque dificilmente alguém está por aqui. Gosto de ter tempo para pensar. Sozinha. É por isso que o meu telefone está desligado.

– Minha querida, isso seria aceitável se você fosse qualquer outra Sacerdotisa, mas você não é. Você é minha Profetisa.

– Não é como se eu estivesse tendo uma visão neste exato momento.

Kevin sorriu ao ouvir a voz sexy e sarcástica de Aphrodite. Ele raramente tinha visto Neferet tão de perto. Ele nunca tinha falado com ela, mas havia testemunhado como os outros vampiros a tratavam – com respeito e uma dose segura de medo. Aphrodite, não. Aphrodite falava com Neferet como se elas estivessem no mesmo patamar, e ela estivesse irritada por ter sido interrompida.

– Neste momento você não está, mas você teve uma visão mais cedo.

Aphrodite se levantou e encarou a Grande Sacerdotisa mais alta.

– Você colocou espiões para me observar?

– Espiões? Não. Só aqueles que são leais e que cumprem o seu papel de me informar sobre qualquer coisa que eu possa considerar importante, e o fato de a minha Profetisa ter uma visão e esconder isso de mim definitivamente é importante.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo, o qual capturou a luz suave da imagem da Deusa e brilhou como fios de ouro.

– Ah, que merda! Eu não estou escondendo nada. Eu achei seriamente que vir até o necrotério poderia ajudar. Não estou vendo nada além de morte nas minhas visões. A visão de hoje não foi diferente. Você quer saber o que eu vi? Novatos e vampiros azuis sendo massacrados em um campo por uma horda nojenta de vampiros vermelhos. Na verdade, a única coisa que eu posso dizer especificamente, além de quem estava massacrando quem, é que era um campo de trigo de inverno que tinha acabado de ser cortado. Tinha um cheiro muito bom, até o fedor dos vampiros vermelhos tomar conta de tudo. Nada mais estava muito claro. Apenas morte, sangue, massacre e pânico em um campo infestado de soldados vermelhos.

– Qual campo? Onde? – Neferet falou rispidamente.

– Eu não sei! Neferet, eu continuo tentando fazer você entender que eu sempre tenho as minhas visões do ponto de vista de alguém que está morrendo, normalmente de um jeito horrível. Por isso que é tão difícil compreendê-las. Portanto, como as minhas malditas visões são tão cheias de morte, faz sentido que eu possa encontrar uma resposta perto do necrotério. Tipo, você acha que eu quero dar uma voltinha aqui? Cai na real. Este lugar não é o meu estilo.

– Oh, então você quer a real? – Neferet disse com voz baixa. Kevin sentiu a sua alma estremecer quando Neferet deslizou para mais perto de Aphrodite, fazendo a jovem vampira dar um passo para trás na areia do jardim. – O que é real é que há um movimento de Resistência do meu próprio povo lutando contra mim. O que é real é que a cada dia novatos azuis, vampiros azuis e até humanos fracos e repugnantes desertam nosso exército. Eles vão embora! Como se eu não soubesse o que é melhor para eles! Como se eu não fosse a Grande Sacerdotisa!

– Bom, você realmente não é a Grande Sacerdotisa de nenhum humano – Aphrodite respondeu.

Rápida como uma víbora, Neferet atacou Aphrodite. O tapa ecoou por aquele espaço sereno, e Kevin se encolheu em um reflexo de empatia.

– Nunca diga o que eu sou ou deixo de ser! Tudo o que eu quero é que você me diga como alcançar o fim da Resistência. Se você não consegue fazer isso, você tem menos utilidade para mim do que um vampiro vermelho raivoso e recém-Transformado. Pelo menos eles lutam por mim. Refresque a minha memória, minha querida, o que é que você faz por mim?

– Eu sou sua Profetisa.

– Mesmo? As suas visões se tornaram nada mais do que disparates confusos e sem sentido.

– Mas eu só posso ver o que Nyx permite que eu...

– Talvez você conseguisse trabalhar melhor se rastejasse menos diante de Nyx e passasse mais tempo servindo a sua Grande Sacerdotisa! – Neferet a interrompeu.

– Neferet, eu sou uma Profetisa de Nyx. O meu poder vem da Deusa. Se eu não rastejar, como você diz, então eu não tenho nenhuma visão.

– Então talvez você deva procurar poder em outro lugar, minha querida. Ou você prefere que eu a envie junto com o Exército Vermelho no próximo confronto deles contra nossos inimigos? Melhor ainda, alguns generais meus sugeriram que eu deveria ser mais presente para meus soldados vermelhos. – Neferet fez uma pausa e Kevin viu que ela estremeceu de asco. – Mas eu simplesmente não suporto o cheiro e a burrice deles. Eles realmente não são nada além de animais raivosos. Talvez você seja a minha resposta para o pedido dos generais. Talvez você deva transferir as suas coisas para a estação e virar a Profetisa deles. Você pode até ir para a guerra com eles. Ver a morte de verdade em vez de suas visões complicadas pode ser uma experiência de iluminação para você! Você pode se acostumar com isso e começar a ser capaz de pensar um pouco durante as suas visões.

Kevin ficou estarrecido com as palavras de Neferet. A estação e os túneis eram pouco mais do que celas para o Exército Vermelho e os novatos vermelhos recém-Marcados. Tudo fedia lá embaixo – até Kevin tinha se sentido enojado. E era imundo – realmente asqueroso, com restos de humanos em decomposição espalhados como bonecas quebradas gigantes, que o exército comia. Os novatos e vampiros vermelhos que habitavam aquele lugar não eram muito distantes de animais. Kevin odiava só imaginar o que ser forçada a viver com eles faria com Aphrodite.

– Eu vou para onde você mandar, mas prometo que estar cercada pelo Exército Vermelho não vai ajudar as minhas visões em nada – Aphrodite tentou soar forte, como se ela particularmente não se importasse para onde Neferet iria enviá-la, mas Kevin conseguiu escutar o pânico dela, levemente encoberto pela indiferença.

– Você tem que descobrir o que vai ajudar as suas visões! Se você não começar a me dar alguma informação que eu possa usar, vai perder os seus aposentos suntuosos, o seu serviço de quarto e o seu abastecimento inesgotável de champanhe e de vampiros azuis viris com quem você vadia o dia todo. Tudo isso – Neferet fez um gesto nervoso que abarcou o jardim sereno, o terreno da escola e o pequeno e organizado necrotério – será substituído por túneis úmidos, fétidos e morte, já que eu estou começando a acreditar que os seus dons são relevantes apenas para os mortos. Então, da próxima vez que nos falarmos, espero que você consiga lembrar de mais detalhes a respeito de sua última visão. Ou pode ir arrumando a sua mala Louis Vuitton e se preparando para a mudança.

Com um rodopio do seu vestido longo de seda, Neferet deu as costas a Aphrodite e saiu com passadas firmes, deixando a sua Profetisa em pé sozinha nas areias do jardim de meditação iluminadas pela lua.

Kevin permaneceu ali, observando Aphrodite silenciosamente. Assim que Neferet saiu, os ombros da jovem Profetisa desabaram. Ela esfregou a lateral do rosto onde havia sido atingida, e Kevin teve quase certeza de que ouviu ela segurar um soluço.

E então ela fez algo que Kevin não esperava de jeito nenhum. Aphrodite não foi embora. Ela não voltou para o aconchego e a opulência dos seus aposentos no prédio principal da Morada da Noite. Em vez disso, ela se virou e por um instante ele pensou que ela estava vindo na direção da sua alcova. A mente de Kevin zuniu, freneticamente testando e descartando mentiras que ele poderia contar, desculpas que ele poderia dar por estar ali.

Ela parou e desabou no banco em que estava sentada antes de Neferet a interromper. Com um suspiro que soou como se tivesse saído das profundezas da sua alma, ela tirou do pé direito um sapato de salto brilhante que parecia muito desconfortável e começou a fazer pequenos desenhos na areia com o que ele podia ver claramente que era o seu dedão, a unha pintada de rosa.

– Nyx, ela é tão horrível! – Aphrodite disse para a estátua. – Talvez eu deva dizer para Neferet que ela está ficando velha. Ela não está, claro, aquela vaca. Mas, se eu começar a perguntar se ela está dormindo direito e mencionar pés de galinha e peitos caídos, sabe, no geral... não sobre ela especificamente, ela vai ficar tão paranoica que pode ser que ela foque mais no espelho dela do que em mim – ela soltou outro longo suspiro derrotado. – Não quero contar para ela tudo que eu vejo. Eu... eu não suporto saber que sou a causa de mais mortes. Lenobia, Travis e todos aqueles cavalos... – A voz de Aphrodite se perdeu em um soluço. Então ela enxugou os olhos com raiva e levantou a cabeça para a Deusa. – Nyx, ela é a sua Grande Sacerdotisa, mas eu simplesmente não entendo. Ela é terrível. Eu a odeio mais do que odeio aquelas lojas de departamento baratas e horríveis onde tudo está sempre em liquidação e os caipiras que compram lá precisam ficar remexendo em araras e mais araras cheias de porcarias bregas sem o benefício de provadores com lustres de cristal e taças de champanhe.

Ela estremeceu delicadamente.

Pego completamente desprevenido pela comparação muito bizarra e muito no estilo de Aphrodite, Kevin riu alto.

A atitude de Aphrodite mudou instantaneamente. A sua espinha ficou ereta. Ela atirou o cabelo para trás e franziu os olhos azuis que faziam uma varredura no jardim de meditação.

– Quem é que está aí?

Kevin congelou. Então, lembrando do moletom que Vovó tinha lhe dado, ele puxou o capuz sobre a cabeça o máximo que podia – esperando fortemente que o capuz e as sombras fossem o bastante para encobrir a sua tatuagem vermelha.

Aphrodite levantou, colocando o seu pé arqueado de volta no sapato brilhante. Ela deu alguns passos no jardim de meditação, na direção exata da alcova de Kevin.

– Eu já perguntei, quem está aí?

– De-desculpe. Eu não queria perturbar você – ele gaguejou, pensando que era mais inteligente admitir a sua presença do que ser descoberto fugindo nas sombras.

Ela marchou até a alcova de meditação e parou diante dele, com as mãos no quadril.

– O que é? Que merda você quer de mim? Saber o futuro? Conhecer a Deusa? Me conhecer? – ela zombou dele, e o seu rosto bonito virou algo maldoso e cheio de ódio. – Bom, você está sem sorte. Não posso ajudar você com nenhuma dessas coisas.

– E-eu não estou aqui porque quero alguma coisa de você! – Kevin falou honestamente, sem pensar. A sua mente estava acelerando como um carrinho de bate-bate no Festival Rooster Days,4 chocando-se contra ideias e quicando quando ele as rejeitava.

– Ah, é claro que não. Todo mundo quer alguma coisa de mim – Aphrodite afirmou, e Kevin viu que um lampejo de emoção bruta, com amargura e repleta de dor, cruzou o rosto dela. – Quanto tempo faz que você está aí?

Ele abriu a boca para tentar responder, mas ela não deu chance para ele começar.

– Você trabalha pra ela? Ela colocou você aqui para me espionar? Se foi isso, escute aqui e escute bem: eu não ligo se você vai contar para ela que porra eu falei. Eu vou mentir. Vou dizer a ela que estava sentada rezando para Nyx e que você me interrompeu bem na hora em que eu estava tendo uma resposta da Deusa. Ela vai acreditar em mim porque, não importa o quanto ela goste de transar com homens, Neferet, na verdade, não gosta de homens. E ela nunca, jamais confia neles. Então, seja lá quem você for, se for falar de mim para Neferet, ela vai acabar acreditando em mim e odiando você, porque ela precisa de poucos pretextos para odiar qualquer homem.

Kevin ficou atordoado com a profundidade da crueldade na voz dela. A Profetisa linda e triste, que apenas alguns segundos atrás estava sentada melancolicamente em um banco conversando com a sua Deusa, tinha se transformado em alguém detestável.

Devagar, de maneira bem clara, Kevin disse:

– Ah, eu acredito. Você obviamente sabe do que está falando. Vocês se parecem muito.

Aphrodite deu um solavanco para trás, como se ele tivesse dado outro tapa na sua bochecha.

– Quem é você?

Kevin se pressionou contra a alcova, desejando que ele pudesse se tornar uma sombra.

– Eu não sou ninguém. Neferet não me mandou até aqui. Eu não tinha ideia de que ela estaria aqui. Eu não tinha ideia de que você estaria aqui.

– Então que diabos você quer? – Aphrodite perguntou de novo.

Ela parecia tão fria, tão diferente da sua Aphrodite, que a irritação de Kevin começou a cozinhar em fogo brando junto com o seu medo. Se ela gritasse, um Guerreiro Filho de Erebus certamente a ouviria. Ele seria arrastado para fora dos jardins por perturbar a Profetisa de Neferet e se tornaria o centro das atenções – sem nem ter seu perfume fedido de sangue.

Ele seria descoberto como alguém diferente, e isso seria péssimo em vários níveis. Então ele endureceu a sua voz e abasteceu a sua irritação com o seu medo.

– Ei, eu já disse. Não quero nada de você. Não queria nem estar aqui... neste lugar horrível que tem cheiro de morte neste maldito mundo horrível!

Ele pôde ver que as suas palavras a abalaram. Houve um longo silêncio enquanto ela ficou encarando a sombra sentada que era Kevin. Quando ela falou, a sua voz tinha perdido aquela ponta de amargura, e a sua pergunta simples o surpreendeu.

– Você perdeu alguém que amava?

Aquela pergunta penetrou na mente dele, trazendo com ela imagens de um mundo perdido, uma vida deixada para trás. Zoey, rindo com a sua Horda Nerd. Vovó Redbird, dando a ele uma bolsa medicinal e tentando não chorar ao dizer adeus. A Aphrodite do outro mundo, sorrindo para ele enquanto os seus olhos faiscavam como pedras preciosas com humor e aquele seu tipo especial e sarcástico de inteligência. Damien e Jack, de mãos dadas e parecendo tão, mas tão felizes e apaixonados, e novatos vermelhos e azuis divertindo-se pacificamente na neve, rodeados por gatos e amor. Sempre o amor.

– Sim – ele perdeu a voz e teve que limpar a garganta antes de continuar. – Sim. Eu perdi o meu mundo inteiro.

O rosto dela mudou. Ele se suavizou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto impecável, e Kevin pensou que ele nunca tinha visto ninguém mais triste nem mais bonita.

– É, eu também. Eu me perdi. Sinto a mesma coisa.

Então ela se virou e saiu do jardim de meditação sem nem mais uma palavra ou olhar na direção dele.

4 O festival mais antigo de Oklahoma. (N.T.)


13

Outro Kevin

Kevin tomou uma decisão rapidamente. Ele poderia ir embora – imediatamente. Poderia fugir, correr para a Utica Square, ligar para Vovó e voltar para a montanha. Ou ele podia levantar a bunda daquele banco no qual estava praticamente colado e entrar no necrotério para coletar um pouco de sangue fedido de vampiro vermelho para camuflar o seu cheiro e continuar com o trabalho que ele havia se disposto a fazer.

Ele sabia o que Zoey faria.

Kevin se mexeu o mais rápido e o mais silenciosamente possível. O seu olhar vasculhou a área enquanto os seus ouvidos se esforçaram para escutar até o menor dos sons de alguém se aproximando enquanto ele atravessava o jardim de meditação em direção à porta do necrotério. Quando ele chegou lá, não hesitou. Kevin abriu a porta e entrou.

Ele já tinha estado no necrotério apenas uma vez. Foi com o General Dominick logo antes de ele ser promovido a tenente. Eles haviam tido uma briga com um grupo de humanos que haviam formado uma milícia a leste de Broken Arrow, no meio de algumas terras do estado que já haviam sido um campo de escoteiros no passado, mas que agora era um lugar desleixado, com trilhas abandonadas e cobertas de vegetação. Os humanos tinham se recusado a desistir. Neferet enviou o Exército Vermelho.

Foi um massacre brutal. Todos os humanos foram mortos. O Exército Vermelho perdeu uma dúzia de soldados. O general havia pedido por voluntários para trazer os corpos dos vampiros vermelhos que tombaram de volta para a Morada da Noite, e Kevin imediatamente se candidatou, pensando que dirigir um caminhão militar cheio de vampiros mortos empilhados era muito melhor do que ficar lá e se juntar ao resto do exército enquanto eles despedaçavam os humanos e os devoravam. O General Dominick havia ficado impressionado com a habilidade de Kevin de liderar essa missão e imediatamente o promoveu de cargo.

Assim, Kevin sabia exatamente aonde estava indo – embora não estivesse ansioso para chegar lá.

Ele seguiu pelo corredor da entrada até o final, ignorando as portas que estavam enfileiradas à direita e à esquerda. Elas davam para salas cheias de vampiros azuis que haviam morrido durante as batalhas e de novatos azuis que rejeitaram a Transformação. Não havia nenhum vampiro vermelho em nenhuma dessas salas, já que Neferet fazia questão de manter os seus Exércitos Vermelho e Azul separados, até mesmo na morte.

Não havia nenhuma sinalização em nenhuma dessas portas, exceto na última delas, no final do corredor. Essa porta estava marcada claramente com um grande X vermelho. Kevin não hesitou. Ele abriu a porta e entrou silenciosamente no quarto escuro.

O cheiro foi a primeira coisa que o atingiu. A sala era fria, mantida daquela forma para que os corpos não entrassem em decomposição antes que pudessem ser queimados e então descartados como lixo. Não havia quase nada na sala, exceto mesas e armários de metal alinhados contra uma parede. Ele rapidamente contou dez mesas. Apenas uma delas estava ocupada. Desviando o olhar dessa mesa, Kevin foi rapidamente até os armários e começou a vasculhar os suprimentos médicos.

Levou pouco tempo para encontrar um vidro com tampa.

Kevin pegou o vidro e foi até a mesa ocupada. Um corpo jazia ali, coberto por um lençol ensanguentado.

É só fazer isso. Só faça logo e acabe com o sofrimento.

Kevin levantou o lençol do corpo e suspirou com tristeza.

– Caramba, cara, isso deve ter doído.

A causa da morte do jovem vampiro vermelho era óbvia. Algo tinha esmagado a sua cabeça. Todo o lado direito da cabeça, da maçã do rosto para cima, estava um horror. Kevin queria desviar os olhos. Ele não queria olhar para o rosto daquele cara, mas não conseguia evitar.

O vampiro morto era tão jovem! O seu rosto, congelado pela morte, estava medonho do lado ferido, mas no restante dele parecia que ele mal tinha dezoito anos.

– Você não deve ter se Transformado há muito tempo – ele falou em voz baixa para o cadáver. – Eu também não. Eu me lembro tão bem de me Transformar. Lembro de como fiquei com medo, sabendo que a minha humanidade estava escapando de mim. Eu ainda não sei o que é pior. Perder totalmente a sua humanidade e virar uma máquina de comer, ou manter a humanidade e compreender muito bem a sua monstruosidade. – Kevin colocou a mão no ombro frio e sem vida do garoto. – Sinto muito. Vou tentar fazer o melhor que posso para evitar que outras pessoas virem monstros, mas eu preciso da sua ajuda. Isso não vai ser agradável, e fico realmente feliz que você não pode sentir nada, mas assim mesmo eu sinto muito por ter que fazer isso com você. Ok, bom, vou acabar logo com isso e depois eu cubro você de novo.

Primeiro, Kevin levantou o braço do vampiro morto, virando-o para ter acesso ao lado de baixo do antebraço.

– De novo, cara, desculpe.

Então, ele pressionou a unha do seu dedo indicador com força contra a pele flácida, cortando devagar a veia principal do pulso até o cotovelo. A pele se partiu facilmente sob a unha sobrenaturalmente afiada de Kevin, e ele trabalhou rápido, apertando e pressionando para fazer o sangue estagnado e coagulado passar para dentro do vidro.

O cheiro era terrível – ainda pior do que o de vampiros vermelhos vivos, que já era péssimo. Kevin continuou mesmo assim, passando para o outro braço e depois finalmente rolando o corpo de lado para expor mais sangue estagnado. Era um trabalho demorado. O sangue era pegajoso e estava coagulado, e era totalmente repugnante ordenhar sangue do corpo morto como se fosse uma vaca. Finalmente, Kevin se viu tendo que enfiar os dedos dentro dos cortes que ele fez para tirar aquela coisa viscosa para fora. Com o vidro cheio, ele finalmente colocou a tampa antes de ir até a pia.

Cuidadosamente, Kevin levantou o moletom e a camiseta que estava usando por baixo. Com uma careta de nojo, ele esfregou uma linha de gosma sangrenta com cheiro podre na barriga, logo acima da cintura da sua calça jeans. Ele também puxou as mangas para cima, esfregando mais sangue nas dobras dos seus cotovelos. Satisfeito com o trabalho, pois agora ele passaria em um teste de cheiro de vampiro vermelho, lavou as mãos e o vidro e então pegou um monte de papel toalha em um dispenser de metal posicionado sobre a pia. Kevin molhou metade dos papéis toalha e então foi de novo até o corpo.

– Nunca mais vou comer nada que pareça geleia de morango. Jamais – Kevin disse para o cadáver. – Não vou deixar você assim. Não que alguém fosse notar. Eles vão levar você na maca de rodinhas e colocá-lo dentro do crematório sem nem olhar para você. Mas assim mesmo... não é certo deixar você assim.

Kevin limpou o sangue do corpo, colocando as roupas de volta no lugar e até secando a mesa. Quando o vampiro morto pareceu quase arrumado, Kevin colocou a mão de novo no ombro do garoto morto.

– Obrigado. O seu sangue vai fazer com que eu não seja pego... para que eles não saibam que eu sou diferente. Eu vou mudar as coisas por aqui. Dou a minha palavra. Vou ser parte de um milagre. Sei que isso pode acontecer porque eu já presenciei isso antes. Eu já senti. E agora eu vivo isso. Eu vou garantir que vampiros vermelhos não sejam mais monstros. Eu prometo. – Kevin baixou a cabeça e sussurrou para a sua Deusa: – Obrigado, Nyx. Por favor, receba este garoto no seu bosque. Ele não pediu por esse destino. Não importa quem ele era quando humano, bom ou mau, ele não merecia isso.

Então, devagar, Kevin puxou o lençol ensanguentado sobre o corpo do jovem vampiro vermelho.

Kevin enfiou o vidro dentro do bolso interno da mochila – bem longe dos cookies deliciosos da sua avó. Então ele colocou a tira da mochila sobre o ombro de novo e foi até a porta, abrindo-a apenas o suficiente para espiar o corredor e dando um suspiro de alívio ao ver que estava deserto.

Sem perder nem mais um segundo, Kevin se apressou pelo corredor e saiu pela porta. Ele contornou discretamente o lado do necrotério que dava para o resto dos jardins da escola e analisou a área. Uma sensação familiar de apreensão terrível subiu pela sua espinha quando ele percebeu que, em vez de um céu preto, o mundo ao redor dele tinha começado a se alterar para cinza e rosa.

O amanhecer! Kevin quis dar um chute nele próprio. É claro que eu me sinto apreensivo. Em quinze minutos, o sol vai se levantar e fritar a minha bunda!

Ele não tinha tempo a perder. Puxando o capuz para cobrir a maior parte do seu rosto, Kevin caminhou rapidamente com confiança pelo jardim da escola.

Ele não viu nenhum novato, e os únicos vampiros que ele notou eram Guerreiros Filhos de Erebus pegando o turno do dia e aliviando os vigias da noite. Kevin atravessou o campus até a entrada dos fundos do Ginásio e do centro equestre abandonado. Ele manteve o rosto virado para o outro lado quando passou por dois Guerreiros que estavam discutindo as instruções para os oficiais que Neferet havia anunciado, de que eles deveriam comparecer ao auditório às 2000 horas5 do dia seguinte.

Ele teve que dar tudo de si para não socar o ar e gritar “Ótimo!”. Um informe para os oficiais era exatamente tudo que ele precisava – e o que Dragon precisava ouvir!

Quando Kevin entrou no Ginásio, ele seguiu pelo corredor, virando algumas vezes até chegar a uma porta comum, que ele esperava desesperadamente que desse para o porão, assim como era no mundo de Zo. Ele tentou abrir a maçaneta da porta, e ela estava trancada!

– Droga! – Kevin sussurrou a palavra. – Agora o que é que eu vou fazer?

Se alguém o visse durante as horas de luz do dia, ele seria pego. Vampiros vermelhos nunca ficavam na Morada da Noite depois do amanhecer. Ele não podia nem fingir ignorância e dizer que estava perdido. Ninguém acreditaria nele. Desde o momento em que um novato era Marcado como vermelho e trazido para a Morada da Noite, era incutido dentro dele que ele tinha que estar nos túneis antes do nascer do sol. A única exceção era se o vampiro vermelho estivesse em uma missão do Exército Vermelho.

A mente de Kevin acelerou e rejeitou uma ideia após a outra. Ele simplesmente não tinha mais tempo. Ele precisava se esconder no porão.

Ele precisava de ajuda.

– Droga, se pelo menos eu conseguisse passar por aquele buraco da fechadura como o ar... – Kevin murmurou para si mesmo enquanto estalava os dedos. Ele queria ter conhecido esta Morada da Noite como ele conhecia os túneis, assim saberia onde se esconder e ficar seguro até...

Ele teve uma ideia! Ele não tinha tempo para pensar se estava cometendo um erro. Ele não tinha tempo para pensar melhor. Ele só teve tempo para fechar os olhos e respirar profundamente algumas vezes para se acalmar. Então ele abriu os olhos, encarou o leste e fez a invocação.

– Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder no meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim!

A resposta veio rápido e de forma desconcertante. Diante dele, várias fadas brilhantes parecidas com vaga-lumes brotaram de repente, pairando na altura dos seus olhos, trazendo com elas a sensação de alguma coisa rastejando na pele que Kevin tinha todas as vezes que invocava Magia Antiga.

– Garoto Redbird! Você nos chamou de novo! E nós viemos! Nós viemos! – Elas ficaram esvoaçando de um lado para o outro, mudando de lugar enquanto os seus corpinhos se alteravam de insetos para mulheres aladas e depois para insetos de novo.

– Muito obrigado mesmo! Ok, eu só preciso de uma coisa, mas tem que ser muito rápido. – Ele apontou para o buraco da fechadura na porta. – Vocês podem entrar ali e destrancar essa porta? Eu tenho que entrar aí imediatamente.

– Nós podemos fazer isso – disse uma fada esvoaçante.

– Mas qual é o pagamento? Qual é o pagamento? – gorjeou a outra.

Ele abriu a boca para dizer às fadas que iria pagar com mais sangue, mas um espírito risonho, que mostrava muitos dentes afiados quando ria, interrompeu Kevin antes que ele conseguisse falar.

– Nada de sangue desta vez! Nós queremos algo especial!

– Sim – a primeira fada concordou. – Especial!

Kevin teve vontade de arrancar os cabelos de frustração e se perguntou brevemente se os espíritos considerariam o seu cabelo um pagamento especial. Felizmente, ele teve outra ideia. Ele enfiou a mão dentro da bolsa de sua avó e pegou um cheiroso cookie de chocolate e lavanda feito em casa. Erguendo-o para que vissem, ele sorriu para os espíritos.

– Bom, é impossível alguma coisa ser mais especial do que este cookie. Ele foi feito pela minha avó, a Mulher Sábia que estava na montanha comigo. Vocês sabem, vocês comeram uma das bolsas medicinais dela.

– Ooooooh! – Os espíritos ficaram ainda mais brilhantes enquanto pairavam no ar ao redor do cookie. Então, juntas, para que as suas vozes ecoassem misteriosamente nas paredes de pedra ao redor dele, as fadas falaram de modo ritmado:

“Um pagamento especial nós vemos sim

Oferecido por ti e aceito por mim.

O nosso acordo está selado – que assim seja!”

A revoada de espíritos do ar de Magia Antiga atacou o cookie como uma nuvem de gafanhotos. Kevin deu um gritinho e o soltou enquanto eles devoravam cada migalha. Então, sem nenhuma hesitação, os espíritos incandescentes mergulharam para baixo, passando através do buraco da fechadura, por baixo da porta e pelo vão do batente.

Kevin ficou parado ali, perguntando-se o que iria acontecer em seguida, quando ele ouviu o trinco girar. Ele segurou a maçaneta e empurrou a porta. Ela se abriu facilmente. Ele a fechou atrás de si e, quando se virou para seguir seu caminho descendo a escada íngreme até o porão, um único espírito apareceu, flutuando perto de sua cabeça.

– Obrigado – Kevin agradeceu. – Vocês me ajudaram muito.

– Nós gostamos do seu chamado, Garoto Redbird. Nós gostamos do seu pagamento. Chame quando precisar de nós, mas não se esqueça de que nós gostamos de pagamento especial... pagamento especial... – enquanto o espírito falava, a sua aparência continuou a se alterar de um grande vaga-lume para uma bela mulher alada e então para algo com mais braços e pernas do que ela deveria ter e uma boca que parecia crescer sem parar, até que o rosto dela pareceu se dividir no meio.

E então, em um lampejo de luz, o espírito desapareceu, deixando Kevin com uma terrível sensação de apreensão.


Zoey

– Z? Você está aí? – Stark me chamou ao entrar nos nossos aposentos. – Recebi sua mensagem de texto para vir encontrar você.

– Você chegou cedo! – eu gritei do banheiro. – Não se mexa!

– Ahn?

– Eu disse “não se mexa”! Fique aí na porta. Feche os olhos!

– É pra eu fechar os olhos?

Eu escutei o tom confuso na voz dele, de quem estava achando graça, mas eu realmente não queria que ele estragasse a minha surpresa.

– Se você não quer fechar os olhos, então vire de costas.

– Ok! Ok! Estou fechando os olhos. Ahn, Z. O que você está fazendo?

O que eu estava fazendo? Eu estava tentando compensar o meu Guerreiro por deixá-lo totalmente preocupado e ser romântica ao mesmo tempo.

– Aguente aí. Você vai ver em um segundo!

– Eu achei que você nem voltaria para cá até depois do nascer do sol. Você não estava na estação com Damien e Kramisha?

– Sim! – eu gritei da porta do banheiro. – Bom, fiquei lá um tempo, mas Aphrodite decidiu palpitar na decoração do restaurante, e eu tive que ir embora.

– Ficaram se bicando muito?

– Pois é – eu disse. – Ok, estou saindo. Mantenha os olhos fechados até eu falar pra você abrir, ok?

– Como quiser, minha Rainha.

Eu senti o sorriso na voz dele, o que me fez sorrir de volta, e então dei uma última conferida em mim mesma no espelho. Eu não usava muita maquiagem no geral. Na verdade, eu tinha uma questão em relação à maquiagem. Eu detestava que a sociedade dissesse que tínhamos que usar isso para “parecer o nosso melhor”. Parecer o nosso melhor? Com um monte de porcaria espalhada por todo o rosto, escondendo tudo o que realmente somos? Hum, não. Eu concordo com a fabulosa Alicia Keys – eu não quero cobrir o meu rosto, nem a minha mente, nem a minha alma, não quero cobrir nada. Então, eu ajeitei o meu cabelo e sorri para a minha cara recém-lavada. Pronta!

Coloquei a cabeça para fora do banheiro para dar uma espiada. Nada de Stark. Descalça, entrei pisando de leve no nosso quarto, endireitando a toalha de piquenique que eu havia estendido no chão e afofando as almofadas que eu tinha disposto ali perfeitamente para nos sentarmos.

– Z?

– Fique de olhos fechados! – Atravessei rapidamente o quarto até a sala de estar e sorri quando vi o meu Guerreiro ainda parado na frente da porta com os olhos fechados. Fui até ele e peguei a sua mão.

– Posso abrir os olhos agora?

– Não, só quando eu disser que pode, mas me siga.

– Eu vou trombar com alguma coisa.

– Não seja um crianção. Eu guio você. – Eu o conduzi devagar ao redor da mesa de café e de outros obstáculos, finalmente colocando-o ao lado da toalha de piquenique. – Ok, aguente aí só mais um segundo. – Eu o deixei parado ali e fui rapidamente até o outro lado da toalha, apertando o controle remoto da grande TV que estava pendurada na parede, conferindo para ter certeza de que estava sem som. Então eu ajeitei nervosamente meu cabelo de novo antes de dar a autorização. – Ok, pode abrir os olhos agora!

Ele abriu, e os seus lábios se curvaram naquele meio-sorriso sexy que eu amava tanto.

– Z! Você está praticamente nua!

Eu senti minhas bochechas ficando vermelhas, mas abri um sorriso para ele.

– Não, estou com uma das suas camisetas.

– Sim, minha camiseta velha e esburacada que é totalmente transparente. Caramba, Z! Em mim ela não fica assim!

– Hihi! – eu ri. – Então, você está com fome?

– Só se for fome de você!

– Não, seu tonto. Bom, sim, seu tonto, mas que tal a gente comer algo de verdade primeiro? – Apontei para o piquenique que eu havia preparado.

Com relutância, ele desviou o olhar do meu corpo para conferir o que estava sobre a toalha.

– Z, isso são nachos? Com tudo para colocar neles?

– Aham! Eu inclusive coloquei pimenta-jalapeño. Um monte, porque, apesar de eu achar que elas são as pimentas do inferno enviadas para queimar as bocas até você pedir arrego, sei que você gosta delas.

Sentei em uma das almofadas e dei tapinhas na outra do meu lado, indicando para Stark se juntar a mim.

– Nachos são a minha comida preferida – ele falou ao se sentar.

– Eu sei.

Ele ergueu um copo gelado, cheirou e então deu um gole grande antes de exclamar:

– E Dr. Pepper! Você trouxe Dr. Pepper para mim!

– Eu sei o quanto você adora isso, apesar de eu discordar totalmente de você porque isso é...

– Uma abominação de refrigerante de cola – ele terminou a frase por mim.

– Sim, é exatamente isso.

Ele estendeu a mão para pegar um nacho e o seu olhar se levantou para a tela da TV.

– Caramba, Z! Game of Thrones? Você vai mesmo assistir a um episódio comigo?

– Vou assistir a quantos episódios você quiser.

– Mas você odeia Game of Thrones.

– Não, eu não odeio. Eu não assisto porque Cersei me lembra demais a loucura de Neferet, mas não tem que ser tudo sempre do meu jeito, então podemos assistir.

Stark me encarou.

– O que você fez com a minha Zoey?

Eu dei um empurrãozinho no ombro dele com o meu.

– Ah, para com isso.

– Sério, eu estou encrencado?

– Claro que não!

– Ah, droga. – Ele soltou o nacho e virou meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. – O que você fez?

Eu suspirei.

– Eu tenho agido como uma idiota egoísta desde que Kevin foi embora, e sinto muito. Sinto muito mesmo, Stark. Sei que você anda preocupado, e esta é minha maneira de pedir desculpas.

– Ei, é normal que você tenha andado preocupada, principalmente sabendo que Kev está usando Magia Antiga.

– Normal, sim, mas é muito imaturo da minha parte estar tão distraída com o fato de você estar estressado por minha causa e as minhas Grandes Sacerdotisas terem que tocar o barco enquanto estou desse jeito. Eu vou fazer melhor do que isso, prometo.

Stark tocou o meu rosto com delicadeza.

– Você sempre faz o melhor, Z. Eu sabia que você ia dar a volta por cima.

– Você entende o quanto eu te amo? – falei sem pensar.

– Sim, mas é bom ouvir você dizer isso.

Ele devorou um nacho que estava coberto com queijo pastoso e jalapeños e depois lambeu o queijo extra que ficou nos seus dedos enquanto engolia.

– Você é tão bom. Você sempre está aqui por mim, mas também me dá espaço para lidar com as minhas coisas sozinha. Isso significa muito para mim, principalmente porque eu sei que você pode sentir o quanto estou distraída.

– Não acho que você está distraída nesse momento. – Ele se inclinou e tocou os meus lábios com os seus.

Eu sorri.

– Não, você tem cem por cento da minha atenção agora. E eu sei que o sol vai nascer logo, mas, se você conseguir ficar acordado um pouco, prometo que, enquanto você estiver consciente, vai ter cem por cento de mim.

Eu coloquei os braços em volta dos seus ombros largos e o puxei para mim. Os nossos lábios se encontraram de novo, e o beijo se aprofundou. Eu amei o gosto dele, uma mistura do chiclete de hortelã que estava mascando, da doçura nojenta do Dr. Pepper – que de repente não era nojenta de modo algum – e do salgado dos nachos.

Enquanto ele me pressionava contra as almofadas, os seus lábios desceram pelo meu pescoço, dando beijos e mordidinhas na minha pele, o que me fez gemer e me deixou arrepiada.

– Que tal se a gente não dormir? – A voz dele era baixa, e o seu hálito era quente e sexy contra a minha pele. – Que tal eu beijar cada centímetro de você, depois a gente come nachos, assiste a Game of Thrones, e então eu beijo cada centímetro de você de novo?

Ele colocou a língua para fora quando começou a encontrar os buracos na sua velha camiseta, beijando os meus seios através deles.

– Mas você tem que dar aula amanhã – eu soei sem fôlego, como se tivesse acabado de subir correndo vários lances de escada.

– Amanhã é aula de esgrima, não de arco. Damien pode me substituir. Ele é o melhor espadachim mesmo.

Devagar, ele começou a tirar a camiseta por sobre a minha cabeça.

– Caramba, Z! Você realmente não está usando nada exceto a minha camiseta.

– Surpresa! – eu exclamei.

E então o meu peito começou a esquentar e o meu estômago se contraiu.

– Zoey? – Stark falou abruptamente, puxando a minha camiseta para baixo e me encarando. – Está acontecendo de novo, não está?

Em meio a lágrimas de medo e frustração, eu assenti.

– Kevin está usando Magia Antiga de novo – eu falei cheia de tristeza. – E ele não tem a menor ideia de como está se metendo em encrenca.

– Shhh, eu sei, eu sei. Venha cá, minha Rainha.

Stark me puxou para os seus braços e me abraçou enquanto aquele calor terrivelmente familiar diminuía, deixando apenas um enjoo no meu estômago e a clareza sobre o que eu tinha que fazer. Agora. Eu precisava parar de pensar sobre isso. Parar de ficar pesando as consequências. E simplesmente... fazer.

Ah. Inferno.

5 No horário militar, 2000 horas equivale a 20 horas ou 8h00 PM. (N.T.)


14

Outro Kevin

Kevin despertou de repente e, nos seus primeiros minutos de consciência, ele achou que estava de volta aos túneis embaixo da estação – antes mesmo de ter se deslocado para o mundo de Zoey, antes do retorno da sua humanidade. Um gosto amargo de desespero inundou a sua boca com náusea ao pensar em tentar controlar a fome e manter a sanidade.

Então ele se sentou, bateu a cabeça em um dos engradados de madeira entre os quais estava encolhido, e a sua memória acordou junto com ele. Kevin congelou e olhou silenciosamente em volta. Nada se mexeu. Ninguém tinha entrado no porão. Ele conferiu o seu relógio interno – os vampiros vermelhos sempre sabiam a hora exata do nascer e do pôr do sol.

– Dezessete horas e vinte e dois minutos. Pôr do sol – ele falou para si mesmo por força do hábito. Kevin havia feito isso muitas vezes no último ano, desde que tinha sido Marcado como um novato vermelho e depois se Transformado. Foi uma forma que encontrou de tentar manter a sua sanidade durante aquele tempo horrível, e agora isso o reconfortava. Ele se alongou, fazendo só uma pequena careta para a dor que o seu ferimento ainda causava, embora ele se sentisse muito bem. – Com fome, mas bem. – Então ele se lembrou, e o seu rosto se abriu em um sorriso de gratidão. – Os cookies da Vovó!

Kevin pegou a mochila e tirou vários cookies de dentro dela. Ao fazer isso, sua mão topou com alguma coisa dura. Perguntando-se o que mais a sua avó tinha colocado ali, ele espiou o interior da bolsa e deu um suspiro longo e feliz.

Ele tirou a garrafa térmica metálica que estava no fundo da bolsa, abriu a tampa, cheirou e facilmente reconheceu o aroma de sangue.

– Ela pensou em tudo! – ele bebeu ruidosamente o sangue da garrafa fria enquanto comia os cookies.

Kevin não precisava ter um abastecimento constante de sangue. Ele não iria perder a cabeça nem atacar alguém na rua como um vampiro vermelho normal faria depois de alguns dias sem beber, mas as suas costas ainda precisavam se curar e o sangue definitivamente ia deixá-lo mais forte.

– Obrigado, Vó – ele disse entre mordidas nos cookies e sentiu uma onda de saudade de casa.

Pelo resto do tempo que levou para Kevin terminar o seu café da manhã, ele se permitiu desejar que pudesse sair daquele porão e daquela Morada da Noite, ir até a casa de sua avó e ficar com ela comendo cookies e trabalhando na fazenda de lavandas, ignorando esse mundo todo ferrado. Quando terminou de comer, ele espanou os farelos de sua blusa e, junto com eles, expulsou de sua mente aquele desejo egoísta e impossível.

Ele conferiu o seu relógio interno infalível, percebendo que tinha cerca de duas horas até a reunião de briefing que Neferet havia convocado.

– Ok, eu tenho que ficar aqui embaixo pelo menos o tempo suficiente para que os primeiros ônibus tragam os novatos e vampiros vermelhos dos túneis para treinar com os Guerreiros Filhos de Erebus. Então, posso explorar um pouco, já que não fiz nada além de desmaiar quando vim da primeira vez.

Ele encontrou o interruptor para acender as arandelas da parede, transformando o porão escuro em um lugar estranho que quase parecia um cemitério submerso, com as sombras tremulantes da iluminação a gás que bruxuleavam pelas várias fileiras de caixas de madeira compridas em pilhas de duas ou três.

– Bom, é diferente do porão da Morada da Noite de Zo, com certeza.

Zo dissera a ele que poderia haver uma variedade de armas escondidas no porão, mas ali definitivamente não tinha nenhuma espada com pedras preciosas nem bestas antigas de valor incalculável à vista. Só havia caixas de madeira. Um monte delas.

Ele tentou abrir uma, mas estava fechada com pregos. Ele procurou pela sala grande e ampla, e não levou muito tempo para encontrar um pé-de-cabra em uma pilha de martelos, pregos e outras pequenas ferramentas descartadas. Trabalhando com cuidado, para que pudesse fechar a caixa de novo depois de verificar o conteúdo, Kevin levantou a tampa da primeira caixa.

A princípio, quando ele olhou para dentro, a sua mente não registrou o que estava vendo. Ele estendeu a mão e tocou em uma daquelas coisas, e a verdade fez com que Kevin se sentisse tão quente e tonto que ele deu vários passos cambaleantes para trás.

– Fique calmo, Kev – ele disse a si mesmo. Ele estalou os nós dos dedos. Sacudiu as mãos. Passou os dedos pelo seu cabelo escuro. E então voltou até a caixa.

As armas eram enormes e tinham uma aparência estranha, e então ele viu que havia um papel guardado junto na caixa. Nele, Kevin leu: LANÇADOR DE GRANADAS MULTITIRO EX-41.

– Isso é ruim. Isso é muito ruim.

Ele não queria olhar o que tinha nas outras caixas, mas precisava fazer isso – assim, ele abriu cada um dos cinquenta engradados que mais pareciam caixões. Metade tinha lançadores de granadas acompanhados da munição. O resto continha metralhadoras M16, mais um monte de munição e um punhado de granadas.

A mente de Kevin zunia em um princípio de pânico enquanto ele memorizava tudo que viu. Ele tinha que alertar Dragon. Os exércitos de Neferet haviam assumido o controle de Oklahoma, Texas, Arkansas e Kansas em uma expansão coordenada de ataques surpresa no meio da noite. Esse controle tinha se espalhado como um incêndio para Louisiana, Missouri, Nebraska e Iowa. Eles destruíram os depósitos de armas da Guarda Nacional em cada um desses estados e confiscaram veículos militares. Mantendo a tradição dos vampiros, eles não haviam utilizado armas modernas. Os dentes e as garras do Exército Vermelho, assim como a habilidade de controlar as mentes dos humanos, haviam sido o suficiente para derrotar a pequena Resistência humana.

Porém, Kevin sabia que, assim como Neferet continuava pressionando – com sua guerra declarada contra todos os humanos –, ela estava encontrando cada vez mais oposição. Os humanos estavam levantando barricadas nas fronteiras estaduais. Como Kevin era apenas um tenente no Exército Vermelho, ele não ficava a par do “como” e do “porquê” das táticas militares, mas tinha escutado o General Dominick reclamar que Neferet estava gastando tempo demais tentando negociar com os governadores de cada estado. Ele, é claro, achava melhor atacar, atacar, atacar.

– Aparentemente, Neferet também acha isso – Kevin disse sombriamente. – A diferença é que ela quer atacar com armas modernas – e então outro pensamento o esmagou. – Merda! Este não deve ser o único esconderijo de armas que ela tem! Todos aqueles depósitos de armas... merda! Merda! Merda! Claro, os exércitos queimaram tudo, mas eu aposto a minha humanidade que eles não queimaram as armas que encontraram dentro deles.

Ele ficou andando em círculos.

– Isso muda tudo. A Resistência precisa agir imediatamente! Nós temos que depor Neferet e acabar com essa guerra antes que ela comece a usar essas armas. E eu tenho que mandar uma mensagem para Dragon. Agora.

Kevin conferiu seu relógio interno de novo. Ele tinha cerca de quarenta e cinco minutos antes do briefing de Neferet, o que deveria ser tempo suficiente para caminhar sem destino próprio pelos jardins da escola, esperando que o corvo de Anastasia o encontrasse.

Ele tomou cuidado para que os engradados parecessem intocados antes de reaplicar o perfume de sangue nojento. Então ele colocou a mochila de Vovó sobre o ombro e subiu dois degraus de cada vez, parando na frente da porta. Decidindo que a melhor coisa a fazer seria não tentar se esgueirar, ele prendeu a respiração e abriu a porta, saindo rapidamente para o corredor. Ele tinha dado só um passo quando uma voz atrás dele pareceu preencher o ambiente – e congelou o seu coração.

– Ei! Que diabos você estava fazendo lá embaixo?

Kevin se virou para ver o General Stark e um dos seus tenentes se aproximando dele. Ainda por cima, Stark parecia irritado.

– Desculpe, senhor. Eu devo ter virado no lugar errado – Kevin fez uma grande demonstração ficando rapidamente em posição de sentido e evitando o contato visual.

– Essa porta deveria estar trancada. Ordens de Neferet – Stark afirmou.

– Desculpe, senhor – Kevin repetiu, ainda em posição de sentido. – Não estava trancada.

– Dallas, Artus tem as chaves. Encontre-o e tranque essa maldita porta.

– Sim, vou fazer isso, general. – O tenente de Stark começou a ir embora, mas então deu um tapa na sua testa e se virou. – Acabei de perceber quem é esse garoto. Ele é um dos tenentes do General Dominick.

– Dominick? O general vermelho que sumiu com um pelotão inteiro de novatos e soldados vermelhos? – Stark perguntou, com seus olhos aguçados examinando Kevin.

– Sim, ele mesmo, senhor – Dallas respondeu.

Stark deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Kevin.

– Quem é você?

– Tenente Heffer, senhor!

– Sob o comando de quem?

– General Dominick, senhor!

– E onde está o seu general, Tenente Heffer?

– Perdão, senhor?

Stark suspirou alto.

– Vampiros vermelhos são mesmo um pé-no-saco – Stark falou para Dallas como se Kevin não estivesse diante dele em posição de sentido, escutando cada palavra.

– Sim, eles são muito burros. Até os oficiais. – Dallas chegou bem perto do rosto de Kevin. – Ei! O general fez uma pergunta, garoto! Responda, porra!

– E-eu não sei onde o meu general está. – Kevin se concentrou em se parecer com qualquer outro tenente do Exército Vermelho: prestativo e confuso.

– Quando foi a última vez que você o viu? – Stark perguntou.

– Vários dias atrás, senhor. Ele me deu ordens, e eu estava cumprindo essa missão desde então.

Dallas bufou.

– Essa missão incluía invadir um porão trancado?

– Não, Tenente! Isso foi um erro.

– O que você fez lá embaixo? – Stark o questionou.

– Nada. Quando vi que estava no lugar errado, eu saí, senhor.

– Onde diabos você deveria estar? – Dallas quis saber.

– Treinando. Eu voltei da minha missão e então era hora de treinar. Pensei que ia encontrar o General Dominick nos túneis hoje à noite e dar o meu relatório.

– Qual era a sua missão, Tenente? – Stark perguntou.

– Cinco dias atrás, o General Dominick me enviou para Stroud. Ele tinha ouvido falar que a Resistência encontrou esconderijos naquela área e eu deveria fazer um reconhecimento por lá e depois voltar para um relatório. – Stroud ficava mais ou menos no meio do caminho entre Tulsa e Oklahoma City, e não perto o bastante de Sapulpa para causar algum problema para Dragon e a Resistência, então desviar a atenção de Stark para lá não pareceu uma má ideia para Kev.

– Você não achou que tinha algo estranho quando não conseguiu encontrar o seu general e o resto do seu pelotão? – Stark perguntou.

– Senhor, eu acabei de voltar. Agora mesmo.

– Ah, que merda, dá um tempo. Você espera que o General Stark acredite que levou cinco dias para você checar uma bosta de cidade como Stroud? – Dallas zombou.

– Não, Tenente. E-eu me perdi.

– Isso só piora – Dallas resmungou.

– Explique-se, Tenente – Stark ordenou.

Evitando contato visual, Kevin falou rapidamente e com cuidado.

– Senhor, o General Dominick me deu ordens para verificar a área de Stroud, procurando membros da Resistência. Eu fiz isso. Comecei pela cidade. Não encontrei nenhum sinal da Resistência por lá, mas ouvi rumores de que havia uma atividade incomum perto do Rio Deep Fork. Como o general ordenou, eu me abriguei na cidade e no dia seguinte fui até o rio. Encontrei sinais de acampamentos, mas nada específico da Resistência. Quando tentei sair de lá, percebi que estava perdido. Não encontrei nenhuma estrada principal até o pôr do sol de hoje. Então eu confisquei um carro e voltei imediatamente para a Morada da Noite.

– Perdido por dias... que imbecil – Dallas murmurou.

– E você não teve nenhum contato com o General Dominick desde que ele deu essas ordens a você? – Stark perguntou.

– Não, senhor. Nenhum.

– Você não pensou em ligar para alguém com o seu celular quando ficou perdido? Ou você só não pensou nessa possibilidade? – Dallas zombou de Kevin.

Kevin resistiu ao impulso de dar um soco naquela cara estreita, e não demonstrou qualquer sinal de emoção, exceto confusão, respondendo imediatamente.

– Eu pensei, mas não tinha sinal de celular, Tenente.

– Tenente Heffer, o General Dominick mencionou para onde ele e os seus soldados estavam indo? – Stark questionou.

Kevin deixou o seu rosto mostrar surpresa.

– É claro, senhor. Ele disse que ia marchar seguindo ordens.

– Ordens? De quem? – Stark perguntou.

– Perdão, senhor, mas essa informação não chega até minha patente.

– Sim, está certo. Eles estavam indo em qual direção? – Stark continuou o interrogatório.

Então Kevin começou a levar Stark para um rastro totalmente falso, na direção oposta de Sapulpa, da Resistência e da sua montanha protegida por Magia Antiga.

– Ele disse que a milícia estadual estava vindo pelo Novo México e atravessando o Texas pelo Rio Vermelho. Acredito que o general estava indo para Elmer para preparar uma emboscada.

– A milícia do Novo México? Isso é bobagem. Não se ouve um pio de nenhuma das milícias dos nossos estados vizinhos há meses. Ele está inventando coisas. É uma perda de tempo conversar com ele. Com qualquer um deles – Dallas disse, balançando a cabeça de desgosto.

Stark ignorou Dallas.

– Não, alguma coisa definitivamente parece errada. Meu instinto me diz isso há semanas. Tem coisas acontecendo que a gente não sabe. Heffer, quero que você venha comigo.

– Sim, senhor! É uma honra, senhor!

Dallas revirou os olhos.

– General, ele fede.

– Todos eles fedem, mas este garoto vampiro vermelho nos deu a única pista que tivemos sobre um general desaparecido e os seus soldados. Vá pegar aquela chave com Artus e depois nos encontre no auditório para o briefing de Neferet.

– Sim, senhor – Dallas disse antes de dar outro olhar de nojo para Kevin e sair correndo.

– Ok, siga-me, Tenente. E não se perca.

– Sim, senhor!

A mente de Kevin estava em um turbilhão enquanto ele seguia o General Stark. Ele precisava ir à reunião de briefing, mas também tinha que dar um jeito de se livrar de Stark e do babaca do Dallas para ir lá fora e esperar que o corvo de Anastasia o encontrasse. Dragon precisava saber sobre o esconderijo de armas. Ainda hoje.

– Ei, chega de andar feito uma lesma! – Stark falou rispidamente para Kevin, que estava, de fato, andando feito uma lesma.

– Sim, senhor! – Ele acelerou o passo e estava bem atrás de Stark ao sair do Ginásio e entrar no corredor que levava à entrada da escola e ao auditório quando uma voz familiar, sexy e sarcástica interrompeu o seu plano de fuga.

– E aí, Cara do Arco. Eu diria “que bom ver você”, mas nós dois sabemos que isso é mentira.

Stark fez uma pausa para cumprimentá-la quando ela entrou no corredor, vindo dos aposentos das Sacerdotisas. Kevin começou a analisar Aphrodite, reparando em nuances que ele não tinha sido capaz de ver na escuridão dos jardins do necrotério.

Ela parece cansada. Muito cansada. E magra. Quase frágil. Esta Aphrodite usava muito mais maquiagem do que a do mundo de Zo, e Kevin se perguntou se poderia ser para tentar encobrir olheiras e estresse. E a boca dela está diferente também. Mais dura. Como se ela não sorrisse nunca. Aquilo fez o coração dele doer, e ele quis colocar os braços em volta dela e dizer que tudo ia ficar bem. Inconscientemente, os seus pés começaram a dar um passo em frente quando a voz de Stark o trouxe de volta para a realidade.

– Desde quando mentir é um problema para você, Aphrodite? E não me chame assim.

– Oh, tudo bem, sinto muito. Eu me esqueço de que agora você é o General Cara do Arco. Viva. Todos nós ficamos tão elevados com essa guerra. – Ela franziu o nariz lindo e perfeito ao olhar para Kevin, logo atrás de Stark. – Eca. Isso fede.

– Ele também é um tenente no exército da sua Grande Sacerdotisa e coloca a sua vida em risco toda vez que sai desta Morada da Noite. Acho que o cheiro não faria nenhuma maldita diferença para você se só ele se colocasse entre você e uma turba de humanos.

Aphrodite fez uma cena, olhando em volta do corredor, o qual estava ficando cada vez mais apinhado de soldados, Guerreiros Filhos de Erebus e Sacerdotisas indo na direção do auditório.

– Engraçado, mas eu não estou vendo nenhum humano por perto.

– Engraçado? Sabe o que eu acho engraçado? O boato que eu ouvi de que você pode se juntar ao Exército Vermelho, então o meu conselho é que é melhor você já ir se acostumando com esse cheiro. – Stark fez um movimento de cabeça na direção de Kevin. – Vamos, Tenente. – Ele se curvou para Aphrodite de modo zombeteiro. – Tenha um ótimo dia, Profetisa.

 


C O N T I N U A

No instante em que Kevin passou entre os mundos, ele conseguiu sentir: aquela terrível e desesperadora sensação de estar perdido. O estranhamento que era o efeito do feitiço de Zoey – aquele que o havia atraído e depois devolvido para o seu próprio mundo – era avassalador. A sensação de estar irremediavelmente perdido era tão forte, tão urgente, que o fez lembrar de um dia de primavera quando tinha sete anos e havia ido fazer compras com sua mãe no Super Target da Rua Setenta e Um em Tulsa. Ele havia se afastado enquanto a mãe e as irmãs estavam olhando roupas femininas. Quando se deu conta, estava sentado no meio do departamento de eletrodomésticos chorando incontrolavelmente.
Essa era a mesma sensação terrível, só que agora não haveria nenhum funcionário amigável para reconfortá-lo enquanto ele esperava que sua mãe respondesse ao aviso de criança perdida que soava pelo alto-falante. Sim, ele era um vampiro completamente Transformado – um tenente no Exército Vermelho –, mas, definitivamente, havia momentos em que ele desejava que alguém o salvasse.
– Não é possível, Kev. Recomponha-se – ele murmurou para si mesmo.
Com um forte barulho de sopro, como do ar sendo expirado, o bizarro buraco entre os dois mundos desapareceu, deixando apenas uma sorveira, deslocada em seu verde abundante, no espaço onde o tecido entre os mundos havia rompido. Enquanto a linha de comunicação com sua irmã Zoey se fechava – juntamente com o mundo dela, no qual ele se sentiu mais em casa do que no seu próprio –, Kevin desejou mais do que qualquer coisa que pudesse retornar ao seu eu de sete anos, sentar e chorar para que sua mãe o salvasse.
Só que ele não era mais criança, e a sua mãe havia parado de ser mamãe anos atrás, então Kevin fez o que havia aconselhado a si mesmo: ele se recompôs. Para se reconfortar, ele tocou a bolsinha pendurada por uma tira de couro em seu pescoço e se tranquilizou por ela ter feito a viagem junto com ele. Conferiu o bolso interno da sua jaqueta para se certificar de que a cópia do diário de Neferet ainda estava ali, e então analisou o cenário ao seu redor.
Estava escuro, assim como quando ele deixou o mundo de Zo, e frio – embora não houvesse nenhuma neve cobrindo o gramado marrom do inverno. Ele olhou para a sua direita. Não havia um muro de pedra fechando a tumba da Grande Sacerdotisa Neferet. Havia apenas uma gruta e um pequeno lago meio congelado.
É porque neste mundo Neferet está livre e no comando. Só pensar isso fez com que o seu nível de estresse aumentasse.

 


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Kevin estalou as juntas dos dedos enquanto levantava o olhar, seguindo a colina acima da gruta. Como esperado, carvalhos antigos formavam um pano de fundo para moitas enormes de azaleias adormecidas.

– Aqui com certeza é o Woodward Park, mas não aquele do qual eu acabei de sair – Kevin suspirou.

Ok, uma coisa de cada vez, é só o que eu posso fazer, mas eu preciso realmente fazer algo de fato, e não apenas ficar parado aqui estalando os dedos e me sentindo péssimo.

Kevin tinha um plano, mas era um que fazia o seu estômago se contrair de nervoso. Ele tinha que encontrar alguém e não tinha certeza se as coisas iam transcorrer muito bem. As pessoas eram as mesmas, mas perturbadoramente diferentes aqui, e ele não a via há mais de um ano.

E se ela não quisesse vê-lo de jeito nenhum? Ou pior, e se ela o visse, mas o rejeitasse – se recusasse a ver que ele era diferente dos outros e não o convidasse para entrar? Então que diabos eu vou fazer? E como eu vou aguentar se ela virar as costas para mim?

– Eu tenho que arriscar. Se eu quero tentar acertar as coisas, não tenho muita escolha. Preciso de aliados, e ela é a melhor pessoa em quem consigo pensar – Kevin disse a si mesmo enquanto atravessava o frágil gramado marrom em direção à calçada na Rua Vinte e Um que contornava o parque. Andando rapidamente, ele virou à direita, subindo a pequena ladeira até a fraca iluminação em frente à Utica Square.1

Era uma caminhada curta até as lojas e restaurantes sofisticados que rodeavam a praça, apesar de Kevin se pegar desejando que demorasse mais. O grande e antigo relógio de quatro faces da Utica, que ficava imponente na frente da loja Russell Stover Candies, dizia que já passava da meia-noite, mas o local estava fervilhando com atividade. Desde que Neferet havia assumido o controle de Tulsa e da maior parte do Meio-Oeste, o horário comercial dos humanos havia mudado drasticamente para refletir o fato de que eram os vampiros que mandavam, e não os humanos. As lojas da Utica Square – assim como qualquer outra loja ou restaurante em Tulsa e na área ao redor que os vampiros poderiam querer frequentar – abriam ao anoitecer e fechavam ao nascer do sol.

Havia, é claro, algumas poucas lojas que abriam para os humanos durante o dia – a maioria delas mercearias, postos de gasolina e que providenciavam outras necessidades, mas, comparadas aos negócios frequentados por vampiros, elas eram pobres lembranças de um passado em vias de extinção.

Nesta fria véspera de Natal, a Utica Square estava enfeitada com luzes – não em comemoração ao Natal, mas sim porque Neferet gostava que tudo parecesse brilhante, reluzente e bonito na superfície, não importando o que acontecia logo abaixo das belas aparências.

Vampiros e novatos azuis passaram por Kevin na calçada, mal olhando para ele, o que o tranquilizou. Se um alerta tivesse soado quando ele, General Dominick e outros do seu pelotão do Exército Vermelho foram dados como desaparecidos, os Guerreiros Filhos de Erebus teriam espalhado cartazes em todos os lugares públicos de Tulsa, e Kevin definitivamente seria interrogado.

Os poucos humanos que estavam na rua também reagiram normalmente a ele. Não fizeram contato visual e abriram bastante espaço para que ele passasse, mudando de calçada ou disparando para dentro de qualquer restaurante ou loja por perto, preferindo evitá-lo e também se esquivarem da possibilidade de ele estar com fome o suficiente para agarrá-los e fazer um lanche rápido. Embora a postura “oficial” de Neferet fosse a de desencorajar vampiros vermelhos de se alimentar de humanos em público, a verdade era que a única razão pela qual a Grande Sacerdotisa queria que o Exército Vermelho demonstrasse algum autocontrole era que a alimentação em público costumava causar pânico. Neferet considerava o pânico humano feio e motivo de distração. Então, basicamente, se acontecesse... bem, aconteceu. Normalmente não havia nenhuma consequência para os vampiros, exceto uma pequena advertência.

Kevin costumava ficar perturbado com o fato de ele óbvia e justificadamente apavorar os humanos, mas naquela noite isso o tranquilizou. Ele sabia que o seu cheiro estava diferente – ou, mais especificamente, não estava com cheiro de túmulo – desde que Nyx havia concedido a ele sua humanidade de volta, mas as pessoas de Tulsa estavam tão acostumadas com monstros na noite que não chegavam perto o bastante para notar que ele não era mais o bicho-papão.

Kevin não baixou a guarda, porém. Ele pensou em pegar o ônibus até a estação onde o seu carro estava estacionado, mas só imaginar a possibilidade de encarar novatos vermelhos esfomeados e vampiros vermelhos curiosos deu um aperto no estômago. Que diabos ele iria dizer a eles quando o inevitável acontecesse – quando eles percebessem que ele havia se Transformado irreversivelmente? Ele precisava de tempo e também de um plano.

Mas, principalmente, Kevin precisava de ajuda.

Ele poderia facilmente andar o quarteirão até a Morada da Noite, mas não encontraria nenhuma ajuda por lá, e ele não tinha nenhuma vontade de voltar para esta Morada da Noite. Não agora. Não depois de ele ter passado algum tempo na outra Morada da Noite, onde a sua irmã era a Grande Sacerdotisa e os humanos eram bem-vindos como amigos, não sofriam abusos sendo escravizados e não eram considerados geladeiras de sangue ambulantes.

Havia apenas um lugar para onde Kevin queria ir, e apenas uma pessoa que ele queria ver. De novo, sua mão tocou o volume que estava debaixo de sua camisa perto do coração. Ele pressionou a mão contra a pequena bolsa de couro com miçangas feita a mão, encontrando consolo na sua presença.

Kevin atravessou a Utica Square até os fundos do centro de compras com aparência de vilarejo, passando pela Fleming’s Steakhouse e pelo Ihloff Salon até chegar ao estacionamento, mais escuro e mais silencioso. Estava cheio, então não levou muito tempo até Kevin encontrar o que precisava.

Um homem sozinho, humano e bem-vestido, andava apressado entre os carros, em direção às vagas de estacionamento na frente dos condomínios no estilo de vilas italianas, que se erguiam ali como se um pedaço do Mediterrâneo tivesse sido deslocado da Costa Amalfitana e se estatelado no centro de Tulsa.

Silenciosamente, Kevin o seguiu. Quando o apito do alarme na chave do carro soou, desbloqueando o Audi SUV, Kevin saiu das sombras para encarar o homem.

– Boa noite – Kevin disse.

Os olhos do homem se arregalaram e o seu rosto ficou pálido feito osso. Ele estendeu as sacolas nas suas mãos, em parte como oferenda, em parte como escudo.

– Po-por favor! Eu tenho uma família em casa. Por favor, não me morda. Eu dou tudo que você quiser, mas os meus filhos precisam de mim, e eu não quero morrer.

O estômago de Kevin se revirou. Ele odiava isso. Odiava que apenas a imagem da sua Marca de vampiro vermelho instantaneamente criasse uma sensação de pavor e pânico nos humanos. Kevin encarou o homem nos olhos e falou vagarosa e gentilmente:

– Eu não vou machucá-lo. Você não precisa ter medo – ele disse, e o homem se acalmou. – Você não está sob a proteção de um vampiro? – Kevin perguntou ao ver a mão sem marcas do homem. Os vampiros azuis haviam tatuado a lua crescente nas mãos de humanos sob a sua proteção para que os vampiros vermelhos famintos soubessem que eles estavam fora do cardápio.

– Não de um vampiro específico – o homem respondeu como se estivesse em um sonho quando o poder da mente de Kevin o dominou, deixando-o imóvel e incapaz de fazer qualquer coisa, exceto o que Kevin ordenasse.

– Mas você faz algo para se proteger?

O homem assentiu, sonolento.

– Eu sou o dono do Harvard Meats. Na esquina da Quinze com a Harvard.

– Ah, claro. Eu conheço o lugar. – E Kevin realmente conhecia. Aquele homem não precisava estar sob a proteção de um vampiro específico porque o seu negócio era uma proteção por si só, já que era o açougueiro que fornecia as melhores carnes da cidade para a Morada da Noite e todos os seus restaurantes favoritos. – Está bem, eu quero que você faça o seguinte. Dê as chaves do seu carro para mim. Você está perto de casa?

O homem assentiu novamente.

– Eu moro na esquina da Rua Treze com a Columbia.

– Ótimo. Você vai precisar ir andando para casa. Amanhã registre uma queixa do desaparecimento do seu carro. Diga que você acha que foram garotos do ensino médio... da Union – Kevin acrescentou após uma breve reflexão. Ele tinha estudado na Broken Arrow. BA e Union eram rivais conhecidos, e ele teve que disfarçar o seu sorriso por essa pequena vingança pelo fato de a Union ter vencido o último campeonato estadual de futebol americano.

– Vou registrar a queixa de furto. Por garotos da Union. Amanhã – o homem repetiu automaticamente, entregando as chaves a Kevin.

Kevin hesitou, chamando o homem de volta quando ele se virou, movendo-se mecanicamente para começar a caminhar até sua casa.

– Ei, ahn, você precisa de alguma coisa do carro?

O homem piscou os olhos para ele, como se não tivesse entendido a pergunta.

– Tem alguma coisa no seu carro que você precisa levar para casa? – Kevin reformulou a pergunta, olhando bem nos olhos do homem, aumentando o seu controle sobre ele.

– Sim. O meu laptop – o homem respondeu imediatamente, embora sua voz ainda tivesse um tom sonolento. – E mais alguns presentes para as crianças.

– Pegue-os – Kevin disse. – Rápido.

O homem se mexeu rapidamente, abrindo a porta traseira e retirando um laptop fino e uma sacola cheia de pacotes embrulhados. Então ele se virou para Kevin, esperando receber uma ordem sobre o que fazer em seguida.

– Vá para casa agora. Rápido. Não fale com ninguém. Se você for parado por um Guerreiro, diga que está em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Eu estou em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Mais uma coisa. Este vai ser o melhor Natal da sua vida. Na verdade, vai ser o melhor ano da sua vida. Você vai mostrar para a sua mulher e os seus filhos o quanto você os ama todo dia, e você vai se certificar de que você e a sua família são valiosos para a Morada da Noite escolhendo cortes especiais de carne exclusivos para Neferet. – Kevin fez uma pausa, refletindo, e então continuou: – Prepare a carne marinada em um molho de vinho tinto. Neferet realmente gosta de vinho tinto. Entendido?

– Entendido.

– Ok, agora vá. Rápido!

O homem saiu apressado, apertando o laptop e a sacola de presentes contra o peito como se eles fossem feitos de ouro.

Cantarolando baixinho o grito de guerra da Broken Arrow para si mesmo, Kevin entrou no Audi. Ele se demorou um minuto apreciando o interior agradável antes de dar a partida e sair da Utica Square, e então ele estava no seu caminho até a estrada Muskogee Turnpike, que ficava a um pulo do centro de Tulsa. Quando entrou na estrada em direção ao sul, ligou a rádio 98.5 e tentou deixar a voz anasalada de Blake Shelton com seu sotaque familiar de Oklahoma acalmar seus nervos.

Kevin ainda não sabia muito bem o que faria, mas tinha certeza de quem precisava encontrar para conseguir ajuda e descobrir isso.

O trajeto de uma hora e meia passou voando, e logo Kevin estava saindo da rodovia e serpenteando por uma estrada antiga de duas pistas até chegar ao caminho de terra e cascalho que dividia campos de lavanda adormecidos e finalmente acabava em uma casa de pedra familiar com uma ampla varanda frontal.

O seu estômago deu reviravoltas de nervoso quando ele estalou os dedos e levantou a mão para bater na porta.

Kevin hesitou. E se ela não o convidasse para entrar?

Ele engoliu aquele pensamento horrível no instante em que a porta se abriu, antes mesmo de precisar bater.

– Oi, Vovó Redbird! Sou eu, Kevin.

O único sinal de choque que a mulher deu foi um leve rubor na pele marrom de suas bochechas.

– Já faz um tempo que não nos vemos, mas eu ainda reconheço a minha própria família – Vovó disse. Ela não fez nenhuma menção de convidá-lo para entrar. – O que eu posso fazer por você, Kevin?

– Eu preciso de sua ajuda. Na verdade, eu preciso de mais do que sua ajuda. Eu preciso de um plano. É muita coisa para explicar. Posso entrar, por favor?

– Não fico feliz em dizer isso, mas não. Você não pode entrar. Vejo que você completou a Transformação.

– Sim, meses atrás. Sinto muito por não ter vindo vê-la até hoje, mas você sabe por que não vim. Eu tinha que ter certeza de que conseguiria me controlar. Bom, agora tenho certeza, e a razão de eu ter certeza é inacreditável.

– Desculpe, Kevin. Hoje não é o meu dia para morrer. E, mesmo que fosse, eu não quero encontrar a Grande Deusa depois de o meu neto me transformar em um monstro devorador. Não. Por favor, vá embora, meu filho. Você está partindo o meu coração, e ele já está em mais pedaços do que eu posso contar.

Triste, Vovó Redbird começou a se afastar lentamente da porta.

– Espere, Vovó. Por favor, primeiro olhe isto aqui. – Kevin tirou a bolsinha medicinal do pescoço e a estendeu na frente da Vovó Redbird para que ela pudesse ver.

Ela franziu o cenho, confusa.

– Isso é meu. Mas eu estou com ela... – Ela ergueu a mão automaticamente, levando-a até a tira de couro que prendia uma bolsinha medicinal idêntica ao redor do seu pescoço.

– Vovó, você deu isso para mim.

– Não, Kevin. – Ela levantou a idêntica bolsa com miçangas. – Esta é a minha. Essa daí, bom, é uma cópia estranhamente parecida.

Kevin não podia cruzar a barreira da porta a menos que fosse convidado a entrar, mas a bolsinha definitivamente podia.

– Aqui, olhe só. Você vai ver. – Ele a atirou na direção dela, e Vovó a pegou facilmente.

Ele observou enquanto ela abria a bolsinha e depositava o conteúdo na palma de sua mão. Havia um cristal de ametista roxo e um pedaço de turquesa bruta lapidada em forma de um perfeito coração, assim como um ramo de lavanda, uma pena do peito de uma pomba e um punhado de terra vermelha. A última coisa que caiu da bolsa foi uma tira de papel enrolado com cheiro de lavanda.

Com mãos firmes, Vovó Redbird desenrolou o papel para revelar três palavras, escritas na sua forte letra cursiva.

Confie em Kevin.

Os sagazes olhos castanhos da Vovó encontraram os dele.

– Onde você conseguiu isto?

– Como eu disse, foi você que me deu. Em outra versão do nosso mundo. Depois que Zoey me levou para lá e que Aphrodite e Nyx restauraram a minha humanidade. Vovó, é uma longa história, mas eu juro pela memória de Zoey que você realmente me deu isso e me falou para procurá-la e mostrar isso a você. Eu preciso de você, Vovó. Eu não sei mais aonde ir nem quem devo procurar. Por favor, você vai me deixar entrar? Eu não vou te machucar. Eu nunca vou te machucar.

Sylvia Redbird analisou Kevin cuidadosamente. Então ela abaixou os olhos novamente para as três palavras escritas com sua própria letra no papel que ela mesma fez na fazenda de lavandas que dava plantas tão perfumadas e únicas que os vampiros a deixavam em paz – desde que ela continuasse fornecendo os produtos de lavanda que Neferet tanto apreciava.

– Kevin, eu gostaria de convidá-lo a entrar na minha casa. – A idosa deu um passo para trás, segurando a porta aberta para o seu neto.

Ele entrou na casa e inspirou fundo o ar com aroma de memórias de infância. Através das lágrimas inundando os seus olhos, ele abriu o sorriso para sua avó.

– Estou sentindo cheiro de cookies de chocolate e lavanda?

– Está sim, com certeza. Quer alguns?

– Mais do que qualquer outra coisa do mundo – Kevin respondeu. – Mas, primeiro, por favor, posso te dar um abraço?

– Ah, u-we-tsi, nada me deixaria mais alegre!

Kevin abriu os braços, e a sua pequena, adorável e linda avó se adiantou no seu abraço. E de repente ele se viu soluçando enquanto ela o apertava e acariciava suas costas com carinho, e ele liberava a tristeza, a solidão e o arrependimento de ter deixado sua irmã e voltado para um mundo cheio de batalhas e temores.

– Vai ficar tudo bem agora, u-we-tsi. Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Eu estou aqui...

1 Espécie de shopping ao ar livre de Tulsa. (N.T.)


2

Outro Kevin

– Vovó, estes cookies são os melhores entre todos os mundos!

Vovó Redbird sorriu carinhosamente para Kevin.

– Você devolveu a minha alegria em prepará-los. Eu não tenho ideia de como Neferet os descobriu, mas alguns meses atrás seus capangas do Exército Azul apareceram aqui, insistindo que eu entregasse um pedido semanal de duas dúzias de cookies... para a própria Grande Sacerdotisa. Eu achei estranho, mas isso de fato ajudou a garantir a minha segurança, e enquanto eles estavam aqui também fizeram uma encomenda permanente dos meus sabonetes e cremes... – ela perdeu as palavras quando a compreensão floresceu no seu rosto. – Você fez isso!

Kevin deu de ombros, um pouco envergonhado, enquanto pegava outro cookie.

– Bem, sim. Todo mundo sabe que a sua lavanda é a melhor de Oklahoma. Os seus sabonetes e cremes são incríveis e os seus cookies são especiais e deliciosos. Eu pensei que, se Neferet soubesse sobre eles, iria querer. Ela é daquele tipo que adora coisas que ninguém mais tem, e ninguém tem a sua receita.

– Eu não uso receita.

– Exatamente! São coisas que só você pode fazer. Então, eu mencionei isso para um Guerreiro que é companheiro da Sacerdotisa e que leva o lanche da noite para Neferet. Eu sabia que ela só precisava experimentar um cookie e já ficaria fisgada. Aparentemente, Neferet tem uma queda por doces. Os sabonetes e cremes foram um bônus.

Vovó Redbird não falou nada por um bom tempo. Ela observou o seu neto como se ele fosse um enigma que ela tivesse acabado de desvendar.

– Você já era diferente. Mesmo antes de ser arrastado para aquele Outro Mundo.

Kevin assentiu, falando com a boca cheia de cookies.

– Eu ficava pensando que isso iria mudar... que algum dia eu iria acordar e não seria mais capaz de controlar a minha fome de jeito nenhum. Mas isso não aconteceu.

Vovó colocou a sua mão calejada no rosto dele.

– Ah, u-we-tsi, queria que você tivesse vindo me procurar quando estava pensando nisso.

– Eu não consegui, Vovó. Eu tinha muito medo de me transformar em um monstro. – Kevin estava com a cabeça baixa, encarando fixamente a antiga mesa de madeira. – Eu não podia correr o risco de te machucar.

– Então, mesmo de longe, você arrumou um jeito para que eu ficasse segura... para que eu fosse uma das protegidas.

Kevin assentiu.

– Obrigada – ela disse simplesmente.

Quando Kevin teve certeza de que não ia se dissolver em lágrimas escandalosas de novo, ele encontrou os seus olhos castanhos gentis e sorriu.

– Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter perdido Zoey. Eu sempre soube que ela era a sua favorita.

– Zoey e eu éramos próximas desde que ela nasceu, mas isso acontece muito entre avós e netas. Isso não significa que eu a amasse mais do que eu amo você.

Kevin sentiu lágrimas enchendo seus olhos e ele piscou com força para impedi-las de transbordarem.

– Mesmo?

– Dou minha palavra. Era mais fácil ser próxima de Zoey Passarinha. Ela queria cozinhar comigo, trabalhar no jardim, aprender os costumes do nosso povo.

– E eu queria jogar videogames e contar piadas de peido com os meus amigos – Kevin disse com uma ironia amarga.

Vovó Redbird sorriu com afeto e compreensão.

– Você simplesmente queria ser um menino. Não há nada de errado nisso.

– Eu sei que não posso ocupar o lugar deixado por Zo, mas quero que a gente fique mais próximo. Eu... eu preciso de você, Vovó.

A idosa apertou a mão do neto.

– Eu estou aqui por você. Eu sempre vou estar aqui por você. Você nunca mais vai ficar sozinho de novo, meu u-we-tsi.

Pela primeira vez desde que percebeu que ele precisava voltar para o seu mundo – teria que de alguma forma liderar a Resistência para derrotar Neferet –, Kevin sentiu uma parte do peso terrível que tinha se instalado sobre o seu corpo se evaporar.

– Obrigado, Vovó. Isso torna tudo melhor.

– Fico feliz. Agora, eu tenho algumas perguntas que talvez você possa me ajudar a responder.

– Com certeza! Pode perguntar enquanto eu devoro os cookies.

– Ótima ideia. Então, você estava me contando que a nossa Zoey Passarinha está viva em um mundo alternativo, do qual você acabou de voltar?

– Sim. Ela está. Bom, ela não é exatamente a nossa Zo, mas é bem parecida. Tão parecida quanto aquela Vovó Redbird é parecida com você, quase exatamente igual. É estranho. Legal, mas estranho.

Vovó se sentou diante dele, servindo-se de uma xícara de chá de lavanda cheiroso do bule de ferro desgastado pelo tempo que usava desde que Kevin se entendia por gente.

– Deixe-me ver se compreendi direito. Naquele mundo Zoey é a Grande Sacerdotisa no comando. Não há Neferet e...

– Neferet está lá – Kevin a interrompeu. – Ela está magicamente trancada dentro da gruta no Woodward Park.

– Certo – Vovó Redbird assentiu. – Você disse que ela se tornou imortal?

– Sim. Na verdade, eu não entendi muito bem essa parte, mas acredito em Zo e sua turma. Eles disseram que ela tentou se transformar na Deusa de Tulsa e simplesmente surtou pra caralho, matou um monte de gente... humanos e vampiros. Ahn, desculpe pelo palavrão, Vó.

Ela fez um gesto indicando que as desculpas eram desnecessárias.

– Às vezes é preciso usar uma linguagem forte. A sua descrição é válida.

– Obrigado, Vó. – Kevin apontou para a cópia do diário que Zoey havia lhe dado antes que ele fosse embora do mundo dela. – Zo me disse que isso explica muito sobre o passado de Neferet e as suas motivações. Ela e seus amigos descobriram que a história de Neferet é um ponto fraco dela. Zo acha que talvez a gente possa encontrar algo aí que possa nos ajudar a derrotá-la nesse mundo também.

– Isso faz sentido. Então, Neferet está sepultada. Zoey está no comando. E ela abriu a Morada da Noite de Tulsa para os humanos? De verdade?

– Sim! Você precisava ver... garotos humanos estavam realmente brincando com novatos vermelhos e azuis na neve. Era bizarro, mas muito legal, e Zo e a sua turma... eles dizem que são a Horda Nerd... – Kevin fez uma pausa quando sua avó riu como uma garotinha. – Ela fez a Horda Nerd iniciar programas de estudantes humanos, como o da Morada da Noite de Tulsa, por todo o país. Aparentemente, está indo muito bem, por isso ela ficou super preocupada quando ficou parecendo que Neferet podia estar se movimentando. Zoey sabia que os humanos seriam o segundo alvo dela.

– Porque a própria Zoey seria o primeiro alvo.

– Sim. Elas são inimigas. Hum, Vó, quando eu expliquei a Zo como ela morreu aqui, ela disse que tinha certeza de que Neferet a matou, porque no mundo dela Neferet matou dois professores vampiros exatamente do mesmo jeito, apesar de ela ter encenado os assassinatos para parecer que o Povo da Fé era o responsável.

Vovó Redbird ficou pálida com a menção à morte repulsiva de sua neta. Kevin estendeu a mão sobre a mesa para apertar a mão de sua avó.

– Está tudo bem, Vó. Só precisa lembrar que ela ainda está viva. Ela só não está mais neste lugar.

A velha senhora assentiu rapidamente e deu um gole no chá, tentando se recompor.

– O plano de Neferet em ambos os mundos era criar uma guerra entre humanos e vampiros?

– Sim.

– Zoey e a sua... Horda Nerd foram responsáveis por conseguir detê-la nesse outro mundo?

– Sim – Kevin disse.

– Muito bem, Zoey Passarinha – Vovó Redbird disse baixinho. – Esse outro mundo... o mundo de Zoey... parece um lugar encantador.

– E é. Decorações de Natal por toda parte... humanos e vampiros se misturando... Vovó, eles até transformaram a estação de Tulsa em um restaurante descolado gerenciado por vampiros. Os humanos lotam o lugar toda noite. – Kevin rapidamente decidiu deixar de fora o detalhe complementar de como vampiros e novatos vermelhos do seu mundo tinham destruído o restaurante e comido todo mundo. Vovó não precisava dessa tristeza.

– É mesmo? – ela perguntou, maravilhada.

– Sim! Zo inclusive me contou que eles têm uma feira de produtores nos jardins da Morada da Noite toda semana, e o campus é completamente aberto aos humanos para isso.

– Isso é realmente mágico – ela comentou. – Mas por que você voltou para cá?

– Eu tive que voltar. Eu sou a Zoey.

– U-we-tsi, você vai ter que se explicar melhor do que isso.

– Vó, assim como a Zo naquele mundo, eu tenho afinidade com todos os cinco elementos.

Ela arregalou os olhos com a surpresa feliz.

– Oh, Kevin! Essa é uma notícia incrível.

– Bem, sim e não. Sim, porque é legal e um sinal das boas graças de Nyx. Ei, eu quase esqueci de contar! A tatuagem da Transformação completa de Zo é igual à minha. Só que a dela é azul, claro, mas ela também tem um monte de outras tatuagens, como nas palmas das mãos, em volta da cintura, nas costas e até nas clavículas.

– Ela foi até um tatuador? Parece lindo, mas certamente deve ter levado bastante tempo para fazer.

– Não, Vó, Nyx concedeu a ela essas tatuagens como um sinal de que ela estava no caminho certo – Kevin suspirou. – Eu meio que espero que Nyx possa me ajudar dessa mesma forma. Pelo menos eu saberia que estou fazendo a coisa certa.

– E o que é essa coisa certa que você quer fazer?

Kevin não hesitou.

– Isso me traz à parte não tão incrível. Como eu tenho afinidade com todos os cinco elementos assim como Zo, isso significa que eu também tenho as responsabilidades dadas pela Deusa que ela herdou. Vó, eu tenho que derrotar Neferet, assim como Zo fez no mundo dela, para recuperar o equilíbrio entre Luz e Trevas.

Vovó Redbird não perdeu o compasso.

– E como você planeja fazer isso?

– Não tenho ideia, Vovó. Não tenho ideia. – Ele abriu o sorriso atrevidamente para ela. – Mas aposto que você pode me ajudar a pensar em um plano.

– Se eu não posso, sei quem pode. Kevin, o que você sabe sobre a Resistência?

– Eu sou um tenente no Exército Vermelho de Neferet. A nossa única missão neste momento é encontrar e eliminar todos os membros da Resistência.

– O fato de você ser um tenente pode ajudar. Você tem acesso a informações, como talvez o local onde Neferet acredita que a Resistência está se escondendo, ou como eles conseguem levar pessoas clandestinamente para fora do Meio-Oeste até um lugar seguro?

– Não exatamente. A estratégia fica a cargo de Neferet, os generais do Exército Azul e os Guerreiros Filhos de Erebus. Até nós, vampiros vermelhos que conseguem manter um controle suficiente da nossa humanidade para nos tornarmos oficiais, não somos incluídos no planejamento. Basicamente, os Guerreiros de Neferet nos usam como se fôssemos armas irracionais. Quando eu completei a Transformação, escutei o General Stark falando sobre o Exército Vermelho. Ele nos chamou de descartáveis.

– O General Stark parece desprezível.

– Neste mundo, ele é mesmo. No mundo de Zo, ele é o seu Guerreiro Juramentado e companheiro... um cara realmente bacana.

Aquilo deixou Vovó Redbird pensativa.

– E o General Stark não está errado. Tudo que ele tem que fazer é apontar uma direção para o Exército Vermelho e nos soltar. – Kevin estremeceu. – A maioria dos vampiros vermelhos são máquinas irracionais de comer, feitos para devorar tudo no seu caminho.

– Na verdade, isso é bom para nós – Vovó disse.

– Ahn? – Kevin falou, soando muito como a sua irmã.

– Bom, se o General Stark é um bom rapaz no mundo de Zoey Passarinha, então lá no fundo há bondade nele. Talvez ele possa ser convencido. E você é um oficial. Você tem acesso para ir e vir facilmente na Morada da Noite, certo?

– Sim, imagino que sim, mas só entre o anoitecer e o amanhecer. Durante o dia, nós somos todos banidos para os túneis embaixo da estação.

– Mas ninguém na Morada da Noite... nenhum vampiro... iria imaginar que você está do lado da Resistência.

Kevin se endireitou na cadeira.

– Você está certa, Vovó! Isso nem passaria pela cabeça deles. Eles normalmente não incluem oficiais do Exército Vermelho nas reuniões estratégicas, mas eles não iriam notar se eu estivesse lá, parado por perto esperando receber ordens – ele sorriu. – Eu posso descobrir todo tipo de coisa! – ele hesitou, e o seu sorriso esvaneceu. – O problema é que eu não estou com o cheiro certo, e eles iriam reparar nisso.

Os olhos da Vovó brilharam maliciosamente.

– Deixe que eu cuido disso, u-we-tsi.

– Eca, ok. Então, este é o nosso plano? Você vai me fazer ficar fedido de novo, e eu vou espionar na Morada da Noite e descobrir coisas sobre a Resistência? Vamos ter que descobrir onde eles estão se escondendo antes que o exército os encontre, e avisar para a Resistência tudo que eu descobrir.

– Encontrá-los não é um problema.

– Vovó! Você faz parte da Resistência?

– Como Martin Luther King Jr. resumiu tão bem, “A pior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas sim o silêncio das pessoas boas”. Eu não serei silenciada.

– Caraca, Vó, você faz parte da Resistência!

– Tenho orgulho de dizer que sim, eu faço.

– Eles matariam você se a pegassem. Nossa, Vó. Neferet não ia se importar que você é uma idosa. Você iria morrer – Kevin afirmou.

– Estou ciente disso, mas, Kevin, se eu ficasse parada e não fizesse nada, seria o meu espírito que morreria.

Kevin suspirou pesadamente.

– O meu também. É por isso que eu voltei. Eu tenho que fazer algo, e acho que sou o único que pode fazer isso.

– Isso é muito corajoso da sua parte, u-we-tsi.

– Não, fazer a coisa certa não é corajoso. É só o que pessoas decentes fazem – Kevin respondeu.

– De fato.

– Quero que você me leve até eles – Kevin disse com firmeza.

– Eles?

– A Resistência. Quero falar com eles, e contar o que aconteceu comigo no mundo de Zo.

– Não sei se isso vai funcionar. Eles podem achar que é apenas um inimigo quando olharem para você – Vovó refletiu. – O que pode funcionar melhor é você espionar, contar para mim, e eu levarei as informações até eles.

– Isso seria ótimo, se não fosse por Aphrodite – Kevin falou.

– Aphrodite? A deusa grega do amor?

Kevin sorriu com ar travesso.

– Aposto que ela pensa que é uma deusa, mas imagino que, tecnicamente, ela é uma Profetisa, e não uma deusa.

– Filho, isso não faz sentido.

– Desculpe, Vó. É simples, na verdade. No mundo de Zo, há uma Profetisa de Nyx chamada Aphrodite que tem o poder de conceder segundas chances. Por causa dela, nenhum dos novatos ou vampiros vermelhos perdeu a sua humanidade. Ela está neste mundo também.

– Ah, Grande Deusa! Se isso pudesse acontecer neste mundo também! – Vovó exclamou.

– Sim, se a humanidade dos soldados do Exército Vermelho voltar, Neferet perde as suas armas – Kevin afirmou. – No mundo de Zo, Aphrodite e eu temos uma conexão. – Ele fez uma pausa, ignorando o fato de suas bochechas estarem corando muito. – Ela, hum, falou para eu encontrar a versão dela neste mundo, e que ela me amaria também.

Vovó ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. Kevin limpou a garganta e continuou:

– Além disso, Zo falou que eu tenho que montar o meu próprio círculo. Basicamente, a minha versão da Horda Nerd que ela tem. Eu já sei que pelo menos dois dos vampiros que preciso recrutar são azuis... e que eles estão na Morada da Noite neste exato momento.

– Mas, u-we-tsi, a Resistência está cheia de vampiros azuis. Você não pode simplesmente usá-los para o seu círculo?

– Acho que sim, mas a Horda Nerd de Zo é diferente, assim como ela. Assim como eu. Eles também têm afinidades com os seus elementos.

– O que torna o círculo dela mais poderoso que um círculo comum – Vovó observou.

– Sim. Você entende por que eu tenho que fazer mais do que apenas espionar para a Resistência?

– Entendo. E porque eu entendo isso, tenho muito mais esperanças com relação às nossas chances de sucesso do que eu tinha apenas alguns minutos atrás. – Vovó Redbird deu uma olhada para fora da janela da frente. – O amanhecer já está deixando o horizonte rosa. Vamos dormir, u-we-tsi, e amanhã... amanhã nós vamos até a Resistência.

– Está certo, Vovó – Kevin disse corajosamente antes de enfiar outro cookie na boca e pensar: “Ah, que inferno...”.


3

Outro Kevin

– Sap-a-lup-a? Sério, Vó? Isso aqui é bem no meio do nada – Kevin disse quando sua avó indicou a ele a saída para a rodovia Turner Turnpike.

– Kevin, pronuncie direito.

– Certo. Sapulpa. Mesmo assim... sério, Vó? Por que aqui?

– Porque, como você disse... é no meio do nada. O que significa que é um excelente lugar para o quartel-general da Resistência, já que Sapulpa fica a apenas uns trinta minutos do centro de Tulsa. Perto o bastante para ser útil, mas ainda uma cidade rural com nada que possa interessar os vampiros, com a exceção de vários ranchos que plantam a melhor alfafa do estado.

– Então, eles têm o suficiente para serem protegidos por Neferet, mas não o bastante para despertar o interesse dela para fazer uma visitinha nem nada do tipo.

– Exatamente. Vire à esquerda no próximo semáforo. É a South Hickory. Então siga essa estrada por cerca de um quilômetro e meio até a gente passar por algumas placas. Depois da tabacaria, procure pela Lone Star Road e vire à direita.

– Para onde diabos você está nos levando, Vó?

Ela sorriu angelicalmente.

– Para um desses adoráveis e pequenos ranchos de alfafa, u-we-tsi.

Eles serpentearam pela Lone Star Road, passando por campos verdejantes, alguns deixados ociosos em preparo para a plantação da primavera, e outros já verdes com o trigo de inverno. Como é de praxe em Oklahoma, as casas alternavam-se entre quase mansões e trailers caindo aos pedaços, e então mais mansões.

– Ei, olhe só, Vó. É o trio perfeito dos pobretões de Oklahoma: uma casa de trailer, uma piscina portátil e um colchão velho que aqueles pitbulls estão usando como cama... tudo em um só quintal.

Vovó Redbird franziu o nariz.

– Acho que são boxers, não pitbulls, Kevin.

– Erro meu. É isso que dá forçar estereótipos.

– Bem, definitivamente foi um bom palpite. Vá devagar agora. Está vendo à sua direita, onde aquela cerca branca bonita começa?

– Sim.

– Há um portão logo em frente. Pare ali, abaixe o vidro e aperte o botão do interfone. Deixe que eu prossiga com o resto.

Kevin seguiu as instruções, virando em uma entrada bloqueada por um grande portão de ferro. Ele deu uma rápida olhada em volta enquanto abaixava o vidro e viu que a aparência tranquila e organizada do pequeno rancho não passava de uma fachada.

O portão, assim como a cerca branca bem-cuidada, era cheio de cabos elétricos grossos. O olhar de Kevin seguiu os cabos.

– É uma cerca elétrica poderosa, Vó.

– Sim, estou ciente disso. Aperte o botão do interfone, por favor.

Kevin apertou o botão branco perto do interfone e uma luzinha vermelha se acendeu, chamando atenção para a câmera de alta tecnologia apontada na direção deles.

– Quem é? – saiu do interfone uma voz incisiva de mulher, com uma sinfonia de cães ganindo ao fundo.

– Sylvia Redbird. Ouvi dizer que você tem uma ninhada de cachorrinhos. Gostaria de dar uma olhada neles, se você ainda tiver algum para vender.

Houve uma pausa e então ela disse:

– Estou vendo um vampiro vermelho com você.

Vovó Redbird deslizou para o lado e enfiou sua cabeça ao lado da de Kevin.

– Sou eu, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Vampiros vermelhos não são bem-vindos na minha propriedade, muito menos na minha casa.

– Este vampiro vermelho é diferente. Eu dou a minha palavra – Vovó afirmou.

– É claro que você fala isso. Você está sob o controle dele. Não é não. Você não pode entrar na minha propriedade. Você não pode entrar na minha casa.

– Tina, mande Babos até aqui.

– Cachorros odeiam vampiros vermelhos. Ela vai rosnar, latir e atiçar todos os outros – a voz metálica respondeu.

– Ela vai me adorar. Eu juro, senhora – Kevin disse.

– Você vai ficar feliz por ter corrido esse risco – Vovó acrescentou.

– Está bem. Mas, quando ela começar a latir e ficar louca, eu vou ficar muito chateada com você, Sylvia. E eu estou levando a minha .45 comigo. Um movimento em falso, neto ou não, e eu arranco a cabeça desse vampiro.

– Você deve fazer isso mesmo, Tina – Vovó Redbird respondeu calmamente.

– Já vou aí.

A conexão do interfone se desligou enquanto o portão se abria.

– Não entre com o carro na propriedade dela. Vamos apenas sair do carro – Vovó disse, encontrando os olhos dele. – A cadela vai gostar de você, não vai?

Kevin abriu o sorriso.

– Os cachorros costumavam gostar de mim... antes de eu ser Marcado. E depois, na Morada da Noite de Zo, havia uma labradora dourada super legal chamada Duquesa. Ela me amava. Então acho que vai dar tudo certo.

O som de um motor de carro se aproximando cada vez mais fez Vovó Redbird suspirar.

– Bem, agora é tarde demais se estivermos errados.

– Não estamos errados, Vó. Só observe. Eu consigo lidar com essa parte. Cachorros são simplesmente incríveis! – Kevin deu a volta no carro e parou logo antes da linha de entrada na propriedade, diante do portão aberto.

O motor roncou, derrapando até parar na frente deles. Kevin teve que apertar os olhos diante das luzes ofuscantes do veículo, mas conseguiu ver uma mulher baixa – provavelmente com uma idade próxima à de sua avó. Ela tinha um cabelo desgrenhado com mechas grisalhas onduladas pintadas de roxo, rosa e azul. Era velha, mas seu corpo ainda estava em forma, o que era óbvio, pois estava usando uma calça legging enfiada em botas de cowboy turquesa e um moletom escrito KALE imitando o logo da universidade de Yale2. Apontando uma espingarda .45, ela desceu agilmente do carro, seguida por uma pequena terrier preta malhada.

– Oi, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Boa noite, senhora – Kevin disse educadamente.

– Vamos ver se a noite é boa mesmo – a velha resmungou.

– Ei! É um terrier escocês! – Kevin exclamou. – Eu sempre quis ter um. Acho que eles são os cachorros pequenos mais legais de todos.

Os olhos verdes de Tina analisaram Kevin.

– Você não soa como um vampiro vermelho.

– É porque eu sou um tipo diferente de vampiro vermelho – ele explicou.

– Um tipo bom – Vovó acrescentou.

– Impossível – Tina afirmou.

– Mostre a ela, u-we-tsi.

Kevin se agachou e sorriu para o pequeno terrier.

– E aí, garotinha! Você é muito linda. Que tal vir aqui e me deixar fazer carinho em você?

A cadela o observou tão atentamente quanto a mulher ao seu lado.

– O nome dela é Babos.

– Babos, que nome legal. Oi, Babos. – Ele estendeu a mão. – Venha cá, garota.

A cadelinha hesitou, com as orelhas levantadas para Kevin. Ela ergueu a cabeça e farejou o ar.

– Pena que não tenho nenhuma guloseima para você. Da próxima vez vou lembrar disso, mas eu prometo que sou ótimo em fazer carinho. – Ele fez gestos de coçar o queixo com os dedos. – Venha cá, Babos. Dê uma chance para mim.

O terrier escocês inclinou a cabeça, farejou o ar de novo e então, com uma pequena bufada, saiu trotando diretamente até Kevin, que sorriu e disse que ela era a cachorrinha mais esperta, bonita e doce que ele já tinha visto, cumprindo a sua promessa de coçar o seu queixo peludo enquanto ela balançava o rabo entusiasticamente.

– Uau. Eu nunca teria acreditado nisso se não estivesse vendo com os meus próprios olhos – Tina falou. – O que ele é?

– Eu disse. Ele é meu neto. E ele vai mudar tudo.


– Você tem mesmo um rancho de terriers escoceses! – Kevin não conseguiu evitar o olhar embasbacado enquanto ele e Vovó Redbird seguiam Tina para dentro do rancho espaçoso. Quando eles entraram pela garagem, foram cercados por um grupo de terriers pequenos, com suas cabecinhas em forma de tijolo, variando em cores do dourado ao trigo até o preto e o preto malhado. Kevin tentou contar quantos eram, mas, quando contou quinze deles, desistiu.

– Ahn, Vó, você estava falando sério sobre os filhotes? Cara, espero que sim.

Tina então sorriu para ele – a primeira vez que ela fez algo além de olhar como se ele fosse um inseto espetado em um mostruário de exibição.

– Eu não tenho filhotes agora, mas vão nascer em algumas semanas.

– É um código, u-we-tsi. Humanos ou vampiros azuis e até novatos azuis que são aliados da Resistência vêm ao rancho da Tina e perguntam por filhotes.

– Mas o que eles realmente estão pedindo é proteção – Tina disse.

– Espero que algum dia eu possa ter um filhote – Kevin murmurou enquanto se agachava e aproveitava totalmente o fato de estar sendo acossado por uma horda de terriers escoceses.

– Por que ele é diferente? – Tina perguntou.

– Isso, minha amiga, é uma longa história com a qual nós preferíamos não gastar tempo neste momento, já que a Resistência vai precisar dessa explicação também. Eles estão aqui?

Tina assentiu.

– No topo da montanha. Sabe onde ficam os esconderijos de caça, naquelas árvores adjacentes que dão na passagem do gramado?

– Sei.

– Alguns estão nos esconderijos. Outros estão trabalhando, tentando expandir uma área parecida com uma caverna que descobriram uns dias atrás entre as pedras ao lado da montanha. Eles chegaram na noite passada, com alguns refugiados que precisam levar clandestinamente para fora daqui, a maioria mulheres e crianças. Há uma tempestade de neve se formando. Eles acham que os refugiados vão estar seguros na montanha, pelo menos por uns dias.

Vovó Redbird suspirou.

– Eles ficam vulneráveis demais nesses esconderijos. Há tão pouco abrigo neles. Eu sei que vampiros têm resistência ao clima frio, mas é simplesmente horrível que tenham que correr de um lugar para o outro, como fazem. O estresse de não ter um lugar realmente seguro deve ser muito desgastante.

– Foi por isso que eles ficaram tão animados ao encontrar a caverna – Tina concordou. – Mas Dragon me disse que neste momento ela pode comportar apenas cerca de cinco pessoas, e isso se não se importarem em ficar amontoadas. Eles estão trabalhando para expandi-la, mas você sabe que a montanha é composta, na maior parte, por rochas e terra vermelha dura. Está indo devagar, especialmente no meio do inverno.

– Espere aí, você disse Dragon? Dragon Lankford? – Kevin perguntou.

– Sim. Dragon Lankford era o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa... antes de Neferet começar a guerra – Tina respondeu.

– A companheira dele, Anastasia, está aqui também? – Kevin quis saber, a empolgação aumentando o seu tom de voz.

Tina assentiu.

– Está sim.

– Vovó! Zoey me disse para encontrar Dragon e Anastasia Lankford... que eles com certeza poderiam me ajudar.

– Então nós estamos no caminho certo – Vovó falou com um sorriso.

– Cara, espero que sim. – Kevin se levantou depois de dar mais um abraço nos terriers. – Então, quer dizer que na real a Resistência não tem um quartel-general?

– Eles tinham um quartel-general de verdade, mas isso foi antes de Lenobia e Travis serem seguidos, encurralados e mortos, junto com os seus cavalos... – Tina perdeu as palavras enquanto tentava se recompor, obviamente perturbada demais para continuar.

Vovó Redbird se aproximou de Tina, abraçando-a em solidariedade, e então terminou a explicação.

– Lenobia e Travis tinham criado um quartel-general para a Resistência no meio do Parque Nacional de Keystone. Tem mais de setecentos acres e, exceto pelas áreas próximas à Represa e à Barragem de Keystone, é selvagem e não possui nenhuma construção, apesar de o parque ficar a apenas cerca de uma hora do centro de Tulsa. Era um lugar excelente para um acampamento rústico, principalmente porque Lenobia conseguiu retirar clandestinamente vários cavalos da Morada da Noite quando ela e Travis saíram. Alguém os traiu. Lenobia e Travis ficaram com os cavalos, atraindo o Exército Vermelho para longe do resto da Resistência e dos inocentes que estavam tentando ajudar a encontrar um lugar seguro. Eles foram massacrados. Lenobia, Travis, os membros da Resistência, os inocentes e todos os cavalos.

Kevin abaixou a cabeça, a tristeza e o arrependimento tomando conta dele.

– Você estava lá, não estava? – a voz de Tina soou áspera.

– Não. E eu agradeço a Nyx por isso. Eu ainda era um novato quando isso aconteceu, e novatos nunca tomam parte em combates. Eles ainda não são boas armas. Eles precisam estar completamente Transformados para que a sua humanidade esteja extinta o suficiente para que eles sejam perigosos e descartáveis. – Ele fez uma careta de desgosto. – Mas eu ouvi falar no massacre. O meu general, Dominick, se gabou muito por causa dessa vitória. Aquilo... aquilo me deu nojo. Ainda dá.

– Ainda bem que você não estava lá – Tina disse, com a voz ainda trêmula. – Acho que eu não conseguiria aguentar ter você aqui na minha casa se você estivesse envolvido nisso. Lenobia era uma boa amiga. E aqueles cavalos... – Ela estremeceu. – Não consigo nem pensar no que o Exército Vermelho fez com eles.

– Sinto muito – foi tudo que Kevin conseguiu pensar em dizer.

– Mostre que você sente muito. Não basta me dizer isso. Ajude-nos a impedir Neferet e reverter a tragédia que ela provocou neste mundo, e aí eu vou acreditar que você realmente sente muito – Tina disse.

– Eu vou. Eu juro.

Tina assentiu rapidamente e então fez um gesto para que eles a seguissem para dentro da cozinha, que estava exalando um cheiro delicioso. Com a horda de terriers trotando ao redor dos seus pés, Vovó Redbird e Kevin abriram caminho lentamente atrás de Tina, com cuidado para não pisar em nenhuma patinha.

– Imagino que vocês querem se juntar a eles logo.

– Sim. Seria melhor – Vovó Redbird respondeu.

– Na verdade, vocês vão me fazer economizar a viagem. Eu assei uma dúzia de pães e terminei de enlatar a minha geleia de amora. Nunca soube que vampiros amavam tanto pão fresco e geleia antes de Neferet mudar o nosso mundo, mas eles com certeza amam.

Kevin ficou salivando ao observar Tina terminar de colocar os pacotes de geleia e pão caseiro saído do forno em grandes sacolas de lona.

– Quem não gosta de pão caseiro? – ele comentou. – E o cheiro do seu pão é incrível.

Tina parou para olhar para ele. Ela balançou a cabeça.

– É difícil se acostumar com isso.

– Isso? – Kevin perguntou.

– Acho que você é uma palavra melhor do que isso. O que eu quis dizer foi que é difícil se acostumar a ter um vampiro vermelho que age como uma pessoa normal e racional dentro da minha cozinha – ela bufou, acrescentando: – Quase vale a pena sair com vocês no frio e no escuro só para ver a reação deles.

– Eu não espero que minha aceitação vá ser fácil – Kevin disse.

– Quer ouvir a verdade?

Kevin assentiu.

– Você precisa de um milagre para que eles o aceitem.

– Tudo bem – Kevin sorriu para ela. – Sei de fonte segura que Nyx está me concedendo alguns milagres.

– Para o seu bem, espero que sim. – Tina voltou a encher as sacolas de lona.

– Para o bem de todos nós, eu espero que sim – Vovó reafirmou.

– Ok, Kevin Milagroso, me ajude a carregar isto aqui.

Tina abarrotou Kevin com o máximo de sacolas que conseguia carregar, deixando apenas uma para a sua avó, e então seguiram Tina para fora pela porta de trás e passaram por uma piscina, da qual emergia um vapor semelhante a espíritos errantes.

– Que demais! – Kevin exclamou.

Tina sorriu.

– Isso e os meus terriers são os principais prazeres que me permito. Bem, isso se você não contar o meu amor por macarrão e cerveja artesanal. Eu deixo essa piscina aquecida o inverno inteiro. É lindo boiar nela olhando para as estrelas através do vapor. Faz com que eu esqueça como o nosso mundo está ferrado.

– Minha amiga, ajuda um pouco se eu contar a você que, por causa do que aconteceu com Kevin, nós temos uma chance real de derrotar Neferet? – Vovó Redbird falou.

– Sylvia, eu adoraria acreditar que nós podemos voltar a como tudo era antigamente.

– Que tal mais do que isso? – Kevin interveio. As duas mulheres apontaram olhares curiosos na direção dele. – Que tal um mundo onde humanos e vampiros são aliados e amigos de verdade? Assim como vocês duas são aliadas da Resistência. É mais do que possível. Eu vi. Pode funcionar, e faz do mundo um lugar até melhor do que o que a gente tinha aqui antes de Neferet começar a guerra.

– Filho, você não é daqui, é?

– Na verdade, eu sou. Vamos apenas dizer que eu viajei bastante recentemente.

– Eu quero o mundo de Kevin – Vovó Redbird afirmou, sorrindo carinhosamente para o seu neto.

– Bem, o seu mundo parece bom, meu filho. Mas, para mim, basta ter a paz.

– Senhora, a minha avó me ensinou a não me contentar com pouco – Kevin disse, abrindo um sorriso travesso para a sua avó.

– Ele é um pouco inexperiente, mas acho que devo acreditar nele – Sylvia Redbird falou.

– Vou dizer uma coisa: se conseguir fazer a Resistência confiar em você e aceitá-lo, eu posso acreditar nesse seu mundo – Tina disse. – E posso conseguir um filhote de terrier escocês para você de presente.

Kevin abriu um sorriso como um raio de sol.

– Promete?

– Desde que a gente não esteja em guerra e que você possa dar a ele um bom lar... sim, eu prometo.

– Feito! – Kevin exclamou.

– Feito – Tina concordou. – Ok, coloquem as sacolas aqui e levem o Polaris.

Ela abriu a tampa da caixa de metal presa ao local onde deveria ficar o assento traseiro do veículo. Kevin colocou as sacolas lá dentro depois que Tina afastou os cobertores, caixas de fósforos e bolsas de sangue...

– Sangue! – Kevin exclamou. – Nós vamos levar sangue para eles?

– É claro – Tina disse, perplexa. – Vampiros não sobrevivem só com pão e geleia.

– Mas... sangue!

Tina inclinou a cabeça.

– Meu jovem, nesse mundo em que você diz que os humanos e os vampiros vivem como amigos, eles também curaram o fato de que os vampiros precisam de sangue humano para sobreviver?

– Hum, não.

– Então, os humanos lá devem estar acostumados com os vampiros bebendo sangue, certo?

– Sim, acho que sim – Kevin respondeu.

– Bom, eu sou vegana. Eu realmente não vejo muita diferença entre beber sangue humano e comer um bife malpassado ou um carré de cordeiro sangrento. – Ela deu de ombros. – Eu não comeria nada disso, mas cada um na sua.

– Quem é você? – Kevin falou sem pensar.

– Apenas uma professora de inglês aposentada. Depois que você dá aula numa escolha pública de ensino médio, não se abala com muita coisa.

– Óbvio. Queria ter sido seu aluno. Aposto que sua aula não era um tédio – Kevin disse.

– Eu te digo que não – Tina respondeu. Então ela o surpreendeu ao lhe dar um abraço rápido. – Cuidado. E lembre-se do nosso acordo.

– Sem chance de eu esquecer que você me prometeu um filhotinho!

– Sylvia, você lembra como se chega até a montanha, não?

– Ah, acho que sim. Se não me engano, é só virar à direita – Vovó falou.

– É isso. Lembrem-se de tomar cuidado com o portão. Se tocarem naquela cerca elétrica, ela vai fritar vocês.

– Vou me lembrar disso – Vovó afirmou. Ela fez um gesto para Kevin assumir a direção. – Você dirige, u-we-tsi.

– Devagar e sempre – Tina disse quando Kevin deu a partida no Polaris. – Nós mantemos essas velhas trilhas esburacadas, principalmente depois do que aconteceu em Keystone. Você vai ter que parar e tirar uns galhos do caminho algumas vezes. É de propósito.

– Pensei que você estivesse sob a proteção de Neferet por causa das plantações de alfafa – Vovó Redbird observou.

– Eu estou, mas ultimamente os cachorros têm dado o alerta no meio da noite, e não é por causa de Dragon e do nosso grupo. Acho que o Exército Azul anda farejando por aqui. Lembre-se de contar isso a Dragon.

– Vou dizer – Vovó respondeu.

– Quando vocês chegarem à árvore caída, que é grande demais para tirar do caminho, vai ser a hora em que serão interditados – Tina os avisou.

– Eu tenho o meu código. Estou pronta – Vovó disse.

Tina balançou a cabeça.

– Você sabe que eles vão pensar que você está sob a influência de um vampiro vermelho. Eles podem atacar antes que você consiga convencê-los de não fazerem isso.

– Então eu só tenho que ser mais esperta e mais rápida do que eles – a idosa retrucou.

Tina sorriu ironicamente.

– Boa sorte.

– Obrigado, senhora – Kevin falou.

– Você não precisa me agradecer por ajudar a Resistência, filho. É a coisa certa a fazer.

– Eu não estava agradecendo por isso. Eu agradeci por você confiar em mim. Por me convidar para entrar.

– Ah, entendo. Não me agradeça. Só não faça com que eu me arrependa de confiar em você.

– Eu não vou. Prometo.

Kevin engatou a marcha no Polaris e foi na direção que a sua avó apontou – um caminho de terra que mal dava para ver e que desaparecia na escuridão dos cumes de Oklahoma. Se não tivesse que segurar as duas mãos no volante para contornar buracos e pedras, ele estaria estalando os dedos feito doido.

2 Kale significa couve em inglês. O moletom com a palavra “KALE” estampada, com a mesma letra do blusão tradicional da Universidade Yale (em que se lê apenas “YALE”), já foi usado por Beyoncé em um videoclipe. (N.T.)


4

Zoey

– Zoey! Ah, que bom que eu te achei. Você tem um segundo? – uma voz familiar gritou de algum lugar no corredor.

Fiz força para não suspirar, fixei um sorriso no rosto e me virei, enquanto Damien e Outro Jack abriam caminho pelo corredor lotado na minha direção. Assim que eles me alcançaram, meu sorriso se tornou verdadeiro.

– Oi, Damien e Jack. Vocês estão bem acomodados? Precisam de algo? – perguntei. A felicidade que irradiava deles deixava o meu coração pesado mais leve, pelo menos por um momento.

– Aiminhadeusa! Tudo aqui é simplesmente fabuloso! – Outro Jack exclamou, mirando Damien com seus olhos grandes e cheios de amor.

O sorriso de Damien era para Jack, mas ele também me inclui, compartilhando a alegria.

– Z, a gente tem tudo que precisa... nós temos um ao outro.

– E este mundo mais que demais – Jack acrescentou.

– Sim, concordo com Jack. Na verdade, a gente queria ver se nós podemos ajudar você em algo – Damien disse.

– Bem, certo. Mas o que isso quer dizer?

– A gente queria ficar mais envolvido na nova decoração do Restaurante da Estação – Damien falou.

Jack ficou assentindo feito um boneco de cabeça de mola, apesar de eu ter que admitir que ele é muito mais bonito do que os bonecos de mola em geral.

– Vocês falaram com Kramisha? Na verdade, o projeto é dela – eu disse.

– A gente não quis falar com ela antes de expor a nossa ideia para você – Damien respondeu.

Como os dois apenas ficaram ali parados sorrindo para mim, eu os incentivei a continuar.

– Ok, bom, qual é a ideia?

– Você vai amar! – Jack estava dando pulinhos, mal conseguindo controlar a ansiedade.

– A gente precisa contar para ela – Damien disse.

– Siiiiim, a gente precisa! – Jack concordou.

E, é claro, nenhum dos dois disse nada.

Eu resisti à tentação de estrangular seus pescoços ridiculamente felizes, o que Damien deve ter percebido, pois ele limpou a garganta e explicou.

– Então, você sabe que Kramisha já decidiu decorar o restaurante como uma boate da era das big bands, certo?

– Sim, certo. Todos achamos que era uma ótima ideia – eu disse.

– E é, por isso nós queremos trazer alguns especialistas em boates – Damien falou.

– Os gays! – Jack vibrou.

– Os gays? – eu disse, agora totalmente confusa.

– Na verdade, seria melhor dizer a comunidade LGBTQ – Damien corrigiu. – Eu fui até o Centro de Igualdade... você sabe que não fica longe da estação, não é?

– Sim, claro. O Centro de Igualdade de Oklahoma fica a menos de um quilômetro e meio da Rua Quatro. Eu fui lá outro dia discutir sobre uma parceria com eles para o próximo Show de Arte Mais Cores. Eu ia anunciar isso na nossa próxima newsletter – eu contei.

– A gente já sabe – Jack disse. – Toby nos contou quando estávamos lá, conversando sobre a nossa outra ideia.

Senti que eu estava parecendo uma bola de pingue-pongue entre os dois, então me concentrei em Damien.

– Explique-se, por favor.

– É simples. Toby Jenkins, o diretor do centro...

– Sim, eu conheço Toby – eu assenti.

– Ele é apaixonado por história e ficou entusiasmado de ouvir que nós vamos transformar o restaurante em um clube dançante. Ele gostaria de nos ajudar a fazer não apenas um lugar bonito com boa comida e música. Ele pode nos ajudar a fazer com que seja historicamente preciso. Certificando-se de que o palco, a pista de dança, as mesas, as toalhas e até o uniforme dos garçons sejam tão parecidos com os da era do jazz que as pessoas vão realmente sentir como se estivessem voltando ao passado quando reservarem uma noite no nosso restaurante – Damien explicou.

– Isso parece legal mesmo – eu concordei. – O que me faz lembrar que Toby me disse que tem uma lista de fornecedores que são pró-igualdade e, é claro, esses são os únicos fornecedores que nós devemos contratar. Ele disse que compartilharia essa lista comigo e então, bom... – perdi as palavras quando todos nós pensamos nos acontecimentos dos últimos dias.

– Ei, sem problemas, Z – Damien disse carinhosamente. – Nós vamos cuidar disso pra você.

– Sim, você já tem muita coisa na cabeça. Deixe a gente ajudar com isso – Jack completou.

– Obrigada. Aos dois. Sim, eu aceito a ajuda e acho que a ideia de vocês de trazer Toby e qualquer um que ele recomendar é fantástica. Podem falar para Kramisha que vocês definitivamente têm a minha aprovação.

– Aêêêê! – Jack bateu palmas.

– Você não vai se arrepender, Z. O restaurante vai ser espetacular – Damien prometeu. Ele fez uma pausa e me olhou atentamente. – Você parece cansada.

– Yoga é excelente para o alívio do estresse – Jack sugeriu. – No meu outro mundo, antes de todas aquelas coisas horrendas começarem a acontecer, eu era um professor certificado de yoga. Quer que eu conduza você em alguns alongamentos meditativos?

– Hum, não neste momento – eu respondi. – Mas se você quiser dar algumas aulas de yoga aqui na escola, acho que seria ótimo.

– Ai. Minha. Deusa! Sério? Você está brincando? Você me deixaria mesmo dar aulas?

Como é possível alguém não amar esse garoto? Ele era como um unicórnio cintilante.

– Sim, com certeza. Só espere que eu me reúna com o Conselho da Escola para pensar onde podemos encaixar as suas aulas.

Jack se atirou em meus braços, quase me derrubando.

– Obrigado! Obrigado! Posso tocar música? Yoga é sempre melhor com música. E hot yoga! A gente pode ter isso também?

Eu me desvencilhei de Jack.

– Claro. Hot yoga parece legal – eu menti. Hot yoga? Como se a yoga normal não fosse difícil o bastante. – Faça um programa do curso, com uma lista de suprimentos, para que eu possa informar o Conselho do que você precisa exatamente, e a gente bola alguma coisa.

– Que ótimo, Z. – Damien estava me observando por cima da cabeça exultante de Jack. – Mas parece que você precisa de um pouco de descanso e alívio de estresse agora.

– Você não poderia estar mais certo – eu concordei. – Por isso preciso ir. Estou a caminho da minha terapia de estábulo.

O alívio suavizou a expressão preocupada de Damien.

– Ah, excelente! Escovar Persephone sempre te ajuda a relaxar. Divirta-se. E se alguém perguntar onde você está, eu digo que você está na estação.

– Isso seria maravilhoso. Eu só preciso de uma hora para mim mesma.

– É toda sua. – Damien colocou o braço ao redor de Jack. – Venha. Vamos falar com Kramisha, e então a gente pode dar as boas novas a Toby.

Conversando animadamente com os rostos colados, Jack e Damien foram na direção da entrada da Morada da Noite. Eu observei os dois se afastando, tentando capturar um pouco da felicidade que eles exalavam.

Não funcionou. Eles se foram e tudo que eu senti foi cansaço e tristeza. De novo.

Vamos lá, Z. Recomponha-se e saia dessa! Kevin está de volta onde ele precisa estar, e é isso. Aquele mundo precisa dele. Neste mundo, Heath está morto. A sua mãe está morta. E a gente conseguiu derrotar Neferet pra valer. Controle-se!

Sacudindo-me mentalmente, saí pela porta de trás da escola, virei à esquerda e segui pela calçada até a entrada dos fundos do centro equestre. Caminhei rapidamente, mal assentindo para os novatos que me cumprimentavam. Eu só precisava de um tempo sozinha... um tempo para relaxar e não pensar muito.

No instante em que abri a porta do estábulo, respirei fundo, inalando os aromas reconfortantes de cavalo e feno. A aula já tinha começado, e eu podia ouvir Lenobia na arena, dizendo ao seu grupo de calouros que cavalos não são cachorros grandes, o que me fez sorrir em nostalgia enquanto caminhava até a baia de Persephone. Assim que a égua ruã me viu, ela fez uma saudação baixa e retumbante.

– Bom, oi pra você também, menina bonita! Como você está? – Eu peguei a escova para crinas, outra escova grande e macia e um limpador de casco na prateleira do lado de fora da baia, bem como um punhado de guloseimas de hortelã que eram as suas preferidas, e entrei. Persephone me acariciou com o focinho, obviamente procurando pelos doces, que eu ofereci a ela. Eu sorri e beijei a sua testa ampla enquanto ela lambia delicadamente a hortelã da minha mão. Depois de fazer um pouco mais de carinho e beijar o seu focinho de veludo, a égua voltou a atenção para a sua comida e eu comecei a trabalhar.

Eu amava tratar de cavalos – de Persephone principalmente. E a energia positiva dela sempre me atingia rapidamente. Logo a minha mente se esvaziava e eu não pensava em mais nada, exceto em trançar bem a sua crina e o seu rabo e em cuidar para que os seus cascos ficassem livres até da menor pedrinha.

– Persephone, menina bonita, queria que o meu cabelo brilhasse tanto quanto o seu pelo – eu disse, encostando o queixo no seu pescoço grosso e quente. Ela levantou uma pata, bufou e pareceu muito que ia tirar uma soneca. Por entre as colunas da baia, dei uma espiada no relógio do estábulo. – Droga. Mais uns vinte minutos e essa aula vai terminar, e então os novatos vão se esparramar por todo canto.

O que eu não daria para ser uma novata de novo, sem nenhuma preocupação com o mundo.

Comecei a ir na direção da porta para guardar as escovas quando Persephone bufou de novo e, com um grunhido muito satisfeito, dobrou as longas patas e se estatelou no meio da sua baia cheia de palha.

– Então você estava falando sério em tirar uma soneca, hein? – Eu me virei para a porta e então hesitei. – Bem, por que não? Talvez um pouco de descanso vá me ajudar a sair desse mau humor terrível. – Soltei as escovas e fui até Persephone. A doce égua mal abriu o olho quando eu me aconcheguei, bem na frente das suas patas dianteiras, recostando-me na sua barriga quente. – Mas eu provavelmente não vou dormir de verdade. Não tenho conseguido dormir muito bem ultimamente – contei a ela em meio a um bocejo gigante. Então coloquei a cabeça no ombro dela, fechei os olhos e caí direto no sono.


Toc-toc-toc! Alguém estava esmurrando a minha porta.

Minha porta? Espere aí. Eu estou no estábulo com Persephone. Estão esmurrando a porta da minha baia?

Levantei a cabeça. Tudo escuro... estava tudo muito, muito escuro mesmo. Como poderia estar tão escuro nos estábulos?

Toc-toc-toc!

– Ok, ok! Já vai – eu disse.

Eu disse? Mas eu nem abri a boca.

Uma luz se acendeu e eu dei um pulo em choque.

Eu não estava no estábulo. Eu estava no dormitório. No meu antigo dormitório, mas, na verdade, era parecido com o meu antigo dormitório. As minhas coisas estavam lá, mas a cama de solteiro do outro lado do quarto estava vazia. Stevie Rae não estava em lugar nenhum. As coisas dela também não estavam lá. Era como se ela não existisse.

Toc-toc-toc!

– Ei, estou me vestindo. Psiu! Aguenta aí!

Eu observei enquanto uma versão de mim colocava uma calça jeans e um moletom preto e dourado dos Tigers da Broken Arrow.

Que diabos era isso?

Eu me senti super tonta e enjoada, e então a minha confusão começou a clarear quando eu vi que o meu corpo estava quase completamente transparente, e que eu estava pairando um pouco acima da cama.

Então eu finalmente entendi. Aaah, eu estou dormindo. Isso é um sonho... um sonho sobre quando eu ainda era uma novata. O que, na verdade, fazia sentido. Quer dizer, eu andava tão estressada que estava me escondendo no estábulo, tirando uma soneca com o meu cavalo e desejando muito que eu fosse uma novata sem preocupações. Não é surpreendente que eu estivesse sonhando que era uma novata de novo.

Só que eu não era a novata. Eu estava observando a mim mesma, eu que era uma novata.

Ok, então, tudo bem. Sonhos são esquisitos. Olhei em volta do quarto semifamiliar enquanto “Zoey” corria até a porta. Se Kalona aparecer... de novo... eu acordo desta vez. Na mesma hora.

A Zoey do sonho hesitou diante do pequeno espelho sobre a pia e tentou ajeitar o cabelo de quem tinha acabado de acordar, e eu dei a primeira boa olhada no seu rosto.

Espere aí, isso está errado. Essa novata Zoey tem uma Marca normal, como todos os outros novatos.

Novamente, racionalizei que aquilo não era um grande problema. Quer dizer, se eu estava sonhando em escapar do estresse sendo uma novata, eu definitivamente não queria ser a única novata com uma Marca preenchida. De novo.

A Zoey do sonho abriu uma fresta na porta. Eu vi o seu corpo se contrair com a surpresa, e então ela deu um passo atrás para poder abrir a porta inteira e... mostrar Neferet parada no corredor.

– Ah, que inferno! Corra! Este é um sonho péssimo! – eu gritei.

Mas a Z do sonho não me ouviu – nem a Neferet falsa do sonho.

– Grande Sacerdotisa! Oi. Eu, ahn, posso convidá-la para entrar? – a Zoey do sonho perguntou desajeitadamente.

– Não! Não a deixe entrar no seu quarto! – eu disse, mas, de novo, nenhuma delas me ouviu.

– Ah, não, querida. Sinto muito por acordá-la, já que o sol ainda não se pôs, mas você tem uma visita que parece um pouco perturbada – disse a Neferet do sonho com uma falsa simpatia que me dava nojo.

– Vai se ferrar, Neferet! – eu berrei. Claro que elas não me ouviram, então eu suspirei e esperei para ver qual esquisitice ia acontecer em seguida no sonho, e reconsiderei seriamente a minha postura de nunca falar palavrão.

– Uma visita? Sinto muito, Grande Sacerdotisa, mas não estou entendendo.

– É o seu padrasto. Ele está... – Neferet fez uma pausa e uma careta obviamente contrariada – insistindo muito para que você vá falar com ele. Ele mencionou algo sobre a sua alma imortal.

– Ah, eca! Ele! – a Zoey do sonho disse, e eu ecoei o seu pensamento. Só fale que é para ela dizer que ele vá embora e nunca mais volte!

Mas a Zoey do sonho parecia mais nova e mais legal do que eu – ou talvez apenas mais nova e mais ingênua.

– Ok, eu vou falar com ele.

– Ótimo! Eu vou acompanhá-la até lá e permanecer com você. Ele realmente é um homem desagradável.

– Sim, com certeza, e obrigada por ficar comigo.

Neferet fez um gesto para que a Zoey do sonho a seguisse, o que ela fez, apesar de eu ficar gritando “Não, não vá!”.

E quando a Z do sonho fechou a porta, eu me senti flutuando atrás dela e atravessando a porta fechada.

– Ok, este é o sonho mais estranho que já tive na vida – falei em voz alta para mim mesma enquanto voava atrás da versão de mim e de Neferet no sonho. As duas estavam conversando despreocupadamente, como se a Neferet do sonho fosse mesmo uma Grande Sacerdotisa decente e a Zoey do sonho fosse apenas uma novata recém-Marcada. Quase como quando eu fui Marcada pela primeira vez e Neferet fazia um papel de mãe para mim.

Eu estava muito errada sobre aquilo, mas isto era apenas um sonho. Devia mesmo parecer estranho.

E a Morada da Noite parecia estranha também. De alguma forma, parecia mais escura e vazia do que a minha escola sempre cheia e onde ninguém nunca dormia. Nesse último ano, desde que meus amigos e eu assumimos o comando, nós havíamos expandido tanto os programas humanos/novatos que sempre havia algo acontecendo a qualquer hora.

Ali, não. Tudo estava silencioso, e a luz cada vez mais acuada do sol se pondo não fazia nada para aliviar a sensação de escuridão.

– Hum, a gente não está indo na direção errada? – a pergunta da minha eu do sonho chamou de volta a minha atenção, e eu percebi que Neferet havia guiado a Zoey do sonho para fora pela porta de trás da escola, em vez de na direção dos escritórios administrativos na frente do prédio principal.

– Oh, desculpe. Eu deveria ter explicado. O seu padrasto se recusa a entrar no campus. Um dos Guerreiros o encontrou espreitando lá fora no muro leste. – Neferet fez uma pausa e abriu um sorriso falso. – Isso não foi muito generoso da minha parte. Eu deveria ter escolhido outra palavra no lugar de espreitando.

O rosto da Zoey do sonho se enrubesceu e ela balançou a cabeça de desgosto.

– Não, essa é a palavra perfeita. E sou eu que preciso pedir desculpas. De novo. O meu padrasto é péssimo. Um religioso totalmente hipócrita, cheio de ódio e preconceito. – A eu do sonho estremeceu. – Ser Marcada e então me afastar dele foi um alívio. Eu vou conversar com ele e me certificar de que ele não voltará aqui para incomodar você nem nenhum outro vampiro.

– Ah, querida, por favor, não se preocupe com um humano sendo um incômodo. Não há nada de novo nisso. É o que os homens humanos parecem saber fazer melhor: incomodar quem é melhor do que eles.

A Zoey do sonho pareceu não saber como responder. Nesse instante, Neferet acelerou o passo, então nós duas tivemos que nos apressar para alcançá-la enquanto ela atravessava o gramado, indo direto até o alçapão no muro leste.

– O muro leste. Típico. Coisas horríveis sempre acontecem aqui – resmunguei.

Mas a Zoey do sonho não podia me ouvir, então nós seguimos Neferet até o alçapão, que ela abriu pressionando a pedra em que estava escrito 1926, o ano em que o muro foi construído. Eu flutuei pela passagem atrás delas até a área do lado de fora, bem ao lado do muro. Mesmo que o sol ainda não houvesse se posto, com certeza parecia que sim, pois estava tão escuro abaixo dos braços dos antigos carvalhos gigantes que ficavam em volta do muro que nós estávamos completamente nas sombras.

– John? – a Zoey do sonho chamou, olhando em volta da área escura e vazia. – Sou eu. Zoey. O que você precisa me dizer?

A eu do sonho estava procurando ao redor, com as mãos no quadril, obviamente exasperada. Só que a minha atenção não estava na Zoey do sonho. Estava em Neferet. A Grande Sacerdotisa havia ficado perto do muro, onde eu percebi que uma estaca grossa de madeira havia sido fixada no chão, tipo algo que um fazendeiro usaria para amarrar arame farpado.

Mas não havia cercas de arame farpado no centro de Tulsa. Que diabos estava acontecendo?

Neferet foi até a estaca e abriu uma grande bolsa que estava ali atrás – e desembainhou uma espada longa que parecia muito perigosa.

Eu entendi tudo em um instante. A estaca era parecida demais com aquela na qual eu encontrei a Professora Nolan, com a cabeça decepada.

– Zoey! Saia daí agora! – eu berrei para a minha eu do sonho desavisada, mas aquela Z não fez nada além de olhar em volta procurando pelo padrasto irritante.

Silenciosamente, Neferet se aproximou dela pelas costas, carregando a espada com as duas mãos, parecendo um samurai assassino.

– Aiminhadeusa, se mexa!

A Zoey do sonho não me ouviu, mas ela de fato se mexeu, virando-se de volta para dizer:

– Neferet, acho que ele foi embora. Sinto muito mesmo que isso tenha sido tanta perda de tempo e que você teve que... – Ela perdeu as palavras ao ver a espada de Neferet.

– Ah, querida, não há absolutamente nada a se desculpar. E as coisas saíram exatamente como eu planejei. Quando encontrarem você, vão acreditar que foi trabalho de humanos... do Povo da Fé, na verdade. Eu vou conseguir a minha guerra. – Neferet sorriu de modo irracional, mostrando os dentes, vitoriosa. – E você nunca mais vai ser importunada pelo seu padrasto ridículo de novo. Acho que isso é uma vitória para nós duas.

Os olhos da Zoey do sonho ficaram vidrados com o choque, e ela ficou balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar. Com uma voz de menininha, ela repetiu várias vezes:

– Não, eu não entendo... eu não entendo... eu não...

Eu gritei quando Neferet girou em uma curva tão graciosa quanto mortal e, com apenas um golpe, cortou a cabeça da Zoey do sonho. O sangue se espalhou por toda parte quando o corpo desabou, contorcendo-se espasmodicamente.

Tanto sangue! Há tanto sangue!

Eu não conseguia parar de gritar. Eu queria fechar os olhos. Eu queria acordar, mas eu estava congelada no lugar, pairando sobre a minha eu do sonho, enquanto Neferet limpava a sua espada no chão. Depois ela voltou até a bolsa para tirar de lá uma corda e uma placa rústica, artesanal, na qual estavam rabiscados os dizeres: A FEITICEIRA NÃO DEIXARÁS VIVER! ÊXODO 22:18.

Eu reconheci aquela citação da Bíblia. Foi a mesma encontrada sobre o corpo crucificado e sem cabeça da Professora Nolan.

E então eu a escutei. Eu me escutei. O meu olhar desviou de Neferet e se voltou para a cabeça cortada que tinha rolado até parar em uma poça de sangue abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Quando eu olhei horrorizada, os olhos se abriram de repente, e a minha própria voz explodiu na minha cabeça.

Você tem que ajudar Kevin a detê-la – nada mais importa!

Atrás de mim, alguém segurou o meu ombro, e eu gritei tão alto que parecia que a minha voz estava rasgando...

– Z! Sou eu! Está tudo bem!

Ainda gritando, eu me sentei, dando de cara com Stark e quase quebrando o seu nariz. Persephone bufou e colocou as orelhas para trás, como se estivesse procurando algo para atacar.

– Shhh, está tudo bem, doce égua – Lenobia apareceu repentinamente, acalmando Persephone e lançando um olhar preocupado na minha direção.

– Stark? – Eu olhei freneticamente em volta, com meu coração batendo tão forte e rápido que eu podia senti-lo nas minhas têmporas. Estou na baia com Persephone. Foi só um sonho. Não foi real.

– Ei, sim, é claro que sou eu. Que diabos está acontecendo? Eu senti o seu medo como um ferro em brasa. O que aconteceu?

Eu abri a boca para contar a ele sobre o sonho... e não consegui. Porque eu percebi que estava errada. Não tinha sido só um sonho. Era uma mensagem. Uma mensagem que eu tinha que guardar para mim mesma, ao menos por enquanto.

– Stark! – Eu deixei que ele me puxasse para dentro dos seus braços fortes e seguros. – Sinto muito. – Virei a cabeça para poder ver Lenobia. Persephone tinha se levantado e estava recostada contra a Mestra dos Cavalos, parecendo assustada e preocupada. – Ah, não! Eu assustei Persephone também! – Eu me levantei com a ajuda de Stark e fui até a égua para acariciá-la e beijá-la. – Sinto muito, muito mesmo, menina bonita. Eu estou bem. Está tudo bem.

– Não. Não está. Eu senti o seu medo, seu pavor. O. Que. Diabos. Aconteceu? – Stark perguntou.

Eu tentei dar uma risada, mas saiu mais parecido com um soluço.

– Isso é realmente constrangedor. Foi só um sonho.

– Na maioria das vezes, seus sonhos são mais do que apenas imagens da sua imaginação – Lenobia disse, não de um jeito rude. – Da última vez que um sonho a despertou, era Kalona.

– Só que não era realmente Kalona – Stark acrescentou. – Então, o que foi?

Eu enxuguei o suor do meu rosto.

– Gente, eu realmente sinto muito. Não foi nada como os sonhos com Kalona ou o não Kalona. Eram só aranhas.

– Aranhas? – Lenobia perguntou.

Eu assenti e estremeci.

– Aranhas.

Stark suspirou e me puxou de novo para os seus braços.

– Ela morre de medo de aranha – ele explicou para Lenobia.

– No meu sonho, eu caí em um poço cheio delas. Foi horrível – eu menti, sentindo-me tão horrível por isso quanto o próprio poço cheio de aranhas.

– Bom, que alívio – Lenobia disse. – Mas, Zoey, se você tem tanto pavor de aranhas, você realmente deveria procurar uma terapia com hipnose. Uma das Grandes Sacerdotisas da Morada da Noite de Saint Louis é especialista nisso. Tenho certeza de que ela pode ajudar você.

– Obrigada. Vou me lembrar disso. Eu normalmente não me incomodo muito com a minha fobia de aranha.

– Mas você anda estressada e sem dormir direito – Stark falou. – Então, um pouco de terapia talvez fosse bom pra você.

– É, talvez. Se eu tiver outro sonho como esse, com certeza vou procurar.

Stark deu um beijo na minha testa.

– Ei, será que um festival de psaghetti vai fazer você se sentir melhor? Você dormiu na hora do almoço, e já é quase hora do jantar.

Eu não demonstrei como fiquei chocada ao descobrir que tinha dormido por horas em vez de por uns vinte minutos. Em vez disso, eu assenti e tentei demonstrar entusiasmo.

– Psaghetti sempre faz com que eu me sinta melhor.

– Foi o que pensei – Stark disse, segurando a minha mão. – Foi um longo dia para mim também. Vamos comer.

– Boa ideia. – Dei um beijo em Persephone de novo e sorri envergonhada para Lenobia enquanto saíamos da baia. – Desculpe por assustar você. Estou realmente me sentindo idiota por isso.

Lenobia estava olhando para mim com seu olhar cinza e esperto.

– Você está perdoada – ela falou. – E, Grande Sacerdotisa, se precisar conversar, lembre-se de que estou sempre aqui a seu dispor.

– Obrigada! Vou me lembrar disso – falei, fechando a porta da baia.

De mãos dadas, Stark e eu saímos do estábulo, na direção do refeitório.

Eu vou falar sobre isso, mas só quando tiver decidido exatamente o que fazer e como. Verdade seja dita, eu já tinha uma ideia. Dei uma olhada em Stark, sabendo que ele seria o meu maior obstáculo. Ele ia ficar bravo. Muito bravo mesmo.

Ah, que inferno...


5

Outro Kevin

– Você parece estar com frio, Vó. Da próxima vez que eu for tirar um desses galhos do caminho, vou pegar um cobertor na caixa lá atrás. Não quero que você fique doente.

A idosa gesticulou para afastar a preocupação do seu neto.

– U-we-tsi, eu ainda me purifico naquele córrego que corre atrás da minha casa. Está sempre frio. Estou bem. E nós já estamos quase no topo da montanha. Acho que, da próxima vez que a gente parar, não estaremos mais sozinhos.

– O que é esta terra? – Kevin olhou em volta, apertando os olhos através da escuridão para a área selvagem de uma montanha de Oklahoma, cheia de carvalhos antigos, relva na altura da cintura e muitas e muitas rochas de arenito.

Vovó indicou a estrada de terra irregular em que o robusto Polaris estava sacolejando.

– Estas são velhas trilhas da época em que o petróleo foi descoberto, e quando digo velhas, quero dizer velhas mesmo. Elas foram feitas por volta de 1901 e, para a nossa sorte, abandonadas em 1902, bem antes de pensarem em colonizar tudo isso ou pelo menos em alargar estes caminhos e pavimentá-los. A família de Tina por parte de mãe era líder do Povo Creek, e a propriedade desta enorme porção de terra passou para ela. Tina a protege há décadas.

– Então, a cerca elétrica já existia antes de a guerra começar?

– Não. Isso foi uma melhoria que ela fez no último ano. Discretamente, usando apenas o trabalho daqueles que são aliados à Resistência. Ela sabe que aquilo não iria deter um ataque do Exército Vermelho, mas a cerca tem o efeito de dissuadir bisbilhoteiros aleatórios e caçadores clandestinos.

– Aposto que deve ser bem bonito aqui durante o dia. É fácil imaginar como seria esse lugar há cem anos.

– É mesmo.

– Mas seria mais divertido imaginar se não tivesse tantas aranhas. Sem para-brisa nem capota nesta coisa, a gente é tipo um imã para aranhas. – Kevin fez uma careta quando ergueu o galho grosso que ele tinha quebrado na primeira parada, balançando-o na frente dele e de Vovó, tentando retirar teias de aranha do caminho antes que acabassem parando no meio delas.

– Aranhas comem carrapatos e mosquitos, u-we-tsi. Elas são apenas um mero inconveniente para nós. – Ela levantou as sobrancelhas. – A menos que, como Zoey Passarinha, você também tenha pavor delas.

– Vó, a minha masculinidade diz que é melhor eu não responder a essa pergunta.

Kevin seguiu em frente, aproveitando o som da risada doce de sua avó. Logo, porém, ele percebeu que não tinha escolha a não ser deixar que as teias de aranha decorassem todo o seu corpo, já que ele tinha que manter as duas mãos no volante e se concentrar para que o Polaris não capotasse quando o caminho foi ficando cada vez mais traiçoeiro. Os seus faróis iluminaram uma árvore enorme, caída como um gigante adormecido sobre a trilha, e ele diminuiu a velocidade até quase ficarem parados.

– Essa deve ser a barricada final – ele disse.

– Prepare-se, u-we-tsi. Dirija direto até a árvore e então pare. Desligue o motor imediatamente.

Kevin engoliu o nervoso e fez o que ela disse. Dirigiu até a enorme árvore caída, estacionou o veículo e desligou o motor. Assim que ele fez isso, a sua pequena e velha avó o deixou totalmente chocado ao subir com agilidade para o banco elevado da parte de trás do Polaris, tão perto dele que sua perna estava pressionada contra o braço dele. Ela levantou a cabeça através das barras estabilizadoras, respirou fundo e então gritou.

– Estou tentando colher pés de mostarda à luz da lua. É nessa hora que eles ficam mais potentes!

– Isso é verdade, Vó?

– Claro que não. É o meu código. Agora, shiu.

Houve um barulho como o do vento farfalhando através da grama alta e meia dúzia de vampiros azuis desceram dos carvalhos enormes ao redor deles – com espadas levantadas de prontidão, enquanto formavam um círculo que foi se fechando em volta do Polaris.

Um vampiro baixo e corpulento, em cuja face havia uma intrincada tatuagem com dois dragões cuspindo fogo, deu alguns passos à frente, ficando a poucos metros de Kevin. Ele empunhava uma espada longa com as duas mãos, e a sua atenção estava concentrada no vampiro vermelho.

– Vampiro vermelho, liberte Sylvia Redbird. Ela não merece perder a vida junto com você hoje.

Sylvia cuidadosamente se colocou na frente de Kevin, ficando empoleirada entre o seu neto e a espada do vampiro azul.

– Merry meet, Dragon.

Dragon Lankford estreitou os olhos e continuou a não falar diretamente com a idosa, dando uma ordem para Kevin.

– Liberte-a.

Devagar, com cuidado, Kevin levantou as mãos do volante, mantendo-as estendidas, com as palmas voltadas para fora.

– Minha avó está completamente livre.

– Sylvia, venha para cá – Dragon disse.

– Só se você me der sua palavra de que vai me escutar antes de decapitar o meu neto.

Dragon voltou o olhar rapidamente para a velha senhora.

– Seu neto?

– Sim, meu amigo. Este é Kevin. Ele vem em paz como seu aliado, assim como eu.

O olhar duro e vazio de Dragon se voltou de novo para Kevin.

– Então eu sinto muito pela dor que essa morte vai causar a você.

– Dragon, você precisa me escutar. Se não fizer isso, se você o massacrar sem pensar, como você vai ser diferente de Neferet e do seu exército de monstros vermelhos?

Dragon Lankford fez uma pausa longa o suficiente para olhar com tristeza para Sylvia de novo.

– Eu não a culpo por trazê-lo aqui. Você está claramente sob a influência dele. Você vai me perdoar quando recobrar a consciência.

A visão de Kevin, que era aguçada de modo sobrenatural, conseguiu perceber o que estava prestes a acontecer um instante antes de Dragon atacar. Kevin só conseguiu pensar no que a longa espada afiada igual a uma navalha poderia fazer na sua pequena e velha avó. Ele se mexeu com uma velocidade estonteante quando Dragon deu o bote, atirando-se na frente dela enquanto pegava o seu galho de proteção contra aranhas e desviava o golpe da espada. Deslocado para o lado, o golpe que era destinado a decapitar sua cabeça acabou riscando as suas costas de ombro a ombro.

No começo, ele não sentiu nenhuma dor – apenas um puxão e o súbito calor do seu sangue jorrando pelas costas.

Vovó Redbird gritou e caiu sobre o corpo de Kevin, bloqueando o próximo golpe fatal de Dragon.

– Cheire o sangue dele! – Sylvia berrou. – Cheire, Dragon! O sangue dele não é como o dos outros vampiros vermelhos! – Pressionada contra o corpo ensanguentado do seu neto, a raiva de Sylvia era quase palpável. – Você vai ter que me matar para atingi-lo!

– Bryan, espere.

Em meio à confusão do choque, Kevin observou uma mulher se aproximar do Mestre da Espada e gentilmente tocar o seu braço. A beleza dela era etérea, fazendo-a parecer com uma das fadas ancestrais. Kevin achou que o seu longo cabelo loiro parecia irradiar luz própria. E um corvo enorme estava empoleirado serenamente no seu ombro.

– Meu amor, a nossa amiga Sylvia está certa. O sangue desse garoto não tem cheiro de morte.

Aquilo fez a espada de Dragon hesitar. O Guerreiro respirou fundo, e então arregalou os olhos. Ele deu um passo à frente, facilmente retirando Vovó Redbird de cima de Kevin e depositando-a ao lado da trilha, perto da mulher com o corvo. Dragon então pressionou a espada contra o pescoço de Kevin.

– Isso é magia negra? O Exército Vermelho aprendeu a disfarçar o seu cheiro? – Dragon o interpelou.

– Não – Kevin respondeu de modo ofegante, tentando falar em meio à dor ardente em suas costas. – Não é magia negra... é amor. Nyx intercedeu por mim e devolveu a minha humanidade. Por favor, não machuque a minha avó.

E então a beleza etérea novamente estava lá. Facilmente afastando a espada assassina para o lado, ela tocou o rosto de Kevin, sorrindo docemente para ele. Então ele percebeu quem aquela bela devia ser: Anastasia, a companheira de Dragon Lankford.

– Bryan, olhe além da sua raiva e veja este garoto.

Lentamente, Dragon colocou a longa espada na bainha presa às suas costas. Então ele deu um passo à frente, ficando a um palmo de distância de Kevin, que estava fazendo o melhor que podia para não desabar sobre o volante. O Guerreiro o cheirou e analisou a sua Marca.

– O que você é? – ele finalmente perguntou.

– Um garoto vampiro que você quase matou – disse Sylvia Redbird ao abrir caminho e passar por Dragon. – Esta ferida precisa de um curativo. Ele está perdendo muito sangue.

– Nós vamos cuidar dele. Você consegue andar? – a mulher encantadora perguntou a Kevin.

Dragon falou antes que Kevin conseguisse fazer a sua voz sair.

– Não, Anastasia. Diferente ou não, ele ainda é um vampiro vermelho e, portanto, nosso inimigo. Eu preciso acabar com ele.

– Meu amor, nós não podemos perder a nossa capacidade de demonstrar misericórdia ou, como Sylvia resumiu tão bem, não vai haver diferença entre nós e os monstros de Neferet. Confie em mim. Tenho um pressentimento bom sobre este garoto.

Dragon olhou para a sua companheira por um longo momento antes de assentir. Era um aceno leve, mas, ainda assim, ele havia assentido.

– Vamos cuidar dele e ouvir a sua história. Nós não somos monstros.

Anastasia beijou o rosto de Dragon enquanto o corvo em seu ombro observava Kevin com olhos escuros e inteligentes.

– É claro que não somos. – Ela se virou de novo para Kevin e repetiu a pergunta: – Você consegue andar?

– Sim. Acho que sim. – Ele começou a tirar as pernas para fora do Polaris. Antes que conseguisse se conter, Kevin arfou com a pontada de dor. Pontos brilhantes de luz brotaram na sua visão. Ele teria caído se Anastasia não o tivesse segurado.

– Eu... eu si-sinto muito – ele disse, batendo os dentes.

– Bryan! Este garoto está terrivelmente ferido – disse a bela, enquanto o seu corvo levantava voo, grasnando indignado.

– Há bolsas de sangue e cobertores no contêiner, junto com o resto dos mantimentos que Tina enviou. – Vovó Redbird foi apressada até o porta-malas do Polaris, voltando para o lado de Kevin com dois cobertores enrolados e o braço cheio de bolsas de sangue. Ela desenrolou o cobertor na trilha, no espaço entre o Polaris e a árvore caída, e arremessou o outro cobertor para Dragon. – Use essa espada para algo além de machucar crianças. Corte isso em tiras.

Kevin achou ter ouvido Dragon resmungar “Sim, senhora”, mas era difícil ter certeza com o zumbido nos seus ouvidos.

– U-we-tsi, Anastasia e eu vamos ajudar você a se deitar naquele cobertor. Depois nós vamos fazer um curativo nesse ferimento. Mas primeiro beba uma dessas bolsas de sangue. Isso vai ajudar.

– A-Anastasia? – Kevin gaguejou. – Vo-você é a companheira de Dragon, ce-certo? Mi-minha irmã me disse para en-encontrar vocês. Mas ela nã-não falou que você tinha um pássaro. – As mãos dele estavam tremendo demais para segurar a bolsa de sangue, então Vovó a segurou perto dos seus lábios enquanto ele bebia a primeira bolsa, depois a segunda, e, por fim, a terceira.

– Sim, é claro que sou a companheira de Dragon, e Tatsuwa não é um pássaro. Ele é um corvo. Se ele ouvisse você o chamando de pássaro, nunca o perdoaria – Anastasia falou com Kevin com uma voz calma e tranquilizadora. – Ok, vamos colocar você no cobertor.

Ela voltou o olhar aguçado para o seu companheiro e, antes que Kevin pudesse se dar conta, uma onda de dor e surpresa ameaçou inundá-lo quando o compacto Guerreiro o carregou para fora do veículo, como se ele não pesasse mais do que uma criança pequena. Então ele o levou até o cobertor e o soltou sobre ele, de bruços.

Determinado a não chorar, Kevin mordeu com força a parte interna da sua bochecha enquanto sua avó e Anastasia pressionavam tiras de cobertor contra a ferida encharcada de sangue. Elas o ajudaram a se sentar para que conseguissem enfaixá-lo em volta do peito e em cima dos braços.

– Eu me sinto estranho – Kevin disse. – Tipo como se eu estivesse flutuando.

– O corte é longo e profundo, mas você vai se recuperar – Anastasia prometeu. – Eu vou dar pontos para fechá-lo assim que nós o levarmos de volta conosco.

– Você é muito bonita – Kevin falou sem pensar.

– Grumpf – Dragon grunhiu de onde estava, bem perto da sua mulher, ainda observando Kevin com desconfiança.

– Obrigada. E você está sendo um ótimo paciente – Anastasia respondeu, ignorando o seu companheiro.

– Pronto. Isso é o melhor que nós podemos fazer aqui. – Vovó Redbird terminou o curativo. – Acho que é melhor ele não tentar andar. O sangramento ainda não parou de fato. Quanto mais ele se mexer, pior vai ficar.

– Concordo. – Anastasia olhou para o seu companheiro e ergueu uma sobrancelha loira e arqueada. – Bryan?

Dragon Bryan Lankford suspirou.

– Johnny B e Erik... peguem o resto dos mantimentos no Polaris.

– Erik? – Kevin virou o rosto para poder ver o vampiro jovem e alto. – Erik Night?

Erik deu uma olhada rápida na direção dele.

– Sim, eu sou Erik Night.

– Eu amei você como o Super-Homem! Mas, ahn, achei que você tivesse morrido. Foi o que falaram no Exército Vermelho.

Erik bufou.

– A única coisa que está morta em mim é a minha carreira de ator... morta pelas merdas que Neferet fez.

– Ei! Chega de conversa fiada. Vocês dois, peguem os mantimentos como eu mandei. – Dragon deu um olhar fulminante para Kevin antes de se voltar para Vovó Redbird. – Sylvia, imagino que você virá junto com o seu neto e não voltará para o rancho de Tina hoje.

– Imaginou certo.

Dragon suspirou de novo.

– Drew, esconda o Polaris. É melhor que os outros se espalhem pela montanha para ter certeza de que o Exército Vermelho não os estava seguindo. E eu quero dizer até lá embaixo da montanha. Verifiquem todos os caminhos, principalmente os que vêm da Lone Star Road. – Ele ergueu a voz e chamou: – Erik! Pensando bem, deixe Johnny B descarregar os suprimentos. É melhor você descer até o lado da montanha que dá para a casa de Tina, e verificar se ela não acendeu uma fogueira de alerta.

– Pode deixar!

– Ninguém está me seguindo. Eles não sabem que estou aqui – Kevin afirmou.

– É melhor você não falar – Dragon disse a ele.

– Não dói mais nem menos se eu falar – Kevin respondeu, tentando sorrir para o vampiro carrancudo.

– Eu quis dizer que é melhor para mim. – Em um movimento, Dragon se inclinou e colocou os braços em volta de Kevin, levantando-o como se ele fosse um bombeiro resgatando uma vítima e colocando-o sobre suas costas largas. Então o Guerreiro se voltou para a sua companheira.

– Eu sigo vocês.

– É claro, meu amor – disse Anastasia.

A última coisa que Kevin ouviu antes de felizmente ficar inconsciente foi a risada musical de Anastasia Lankford e o grasnido do seu corvo que voava em círculo acima deles.


6

Outro Kevin

Kevin recobrou a consciência ao ouvir o barulho de uma discussão.

– Ele não vai conseguir subir em nenhum dos esconderijos de caça. Nós precisamos levá-lo para a caverna – Anastasia estava dizendo.

– Eu não acho isso uma boa ideia – Dragon retorquiu. – Se ele souber que nós estamos escavando uma caverna, então existe o risco de que o Exército Vermelho descubra isso também.

– Meu amor, o garoto já sabe como as coisas funcionam aqui. Ela sabe que Tina é uma aliada. Se ele nos trair, vai ser como o Keystone Park de novo, e nós nunca vamos conseguir voltar para cá – Anastasia falou.

– Kevin não vai trair vocês – a avó afirmou. – Dragon Lankford, você pode sentir pelo cheiro que ele não é como os outros. Ele não age como os outros. Há uma explicação para o que aconteceu com ele, mas essa explicação não será relevante se o meu neto morrer da ferida que você infligiu.

Foi preciso várias tentativas, mas finalmente Kevin fez a sua voz soar. Apesar de mal conseguir pronunciar mais alto do que um sussurro, o seu rosto estava perto do ouvido de Dragon, e o Mestre da Espada não teve dificuldade em escutá-lo.

– Por favor, me coloque no chão.

– Kevin? Você está acordado? – Vovó Redbird estendeu a mão para tirar o cabelo cheio de suor de Kevin dos seus olhos.

– Po-por favor. Eu prefiro sangrar até a morte do que continuar sendo carregado.

– Bryan Lankford, leve este garoto até a caverna. Agora.

Kevin sentiu o suspiro de Dragon, mas o poderoso Guerreiro fez o que sua companheira ordenou. Ele seguiu por um caminho estreito, que, pelo que Kevin conseguiu ver, era uma área plana e coberta por grama no alto da montanha. Eles desceram contornando várias rochas enormes de arenito e finalmente chegaram a uma abertura estreita voltada para o precipício. Uma luz pálida e trêmula vinda de dentro projetava sombras que bruxuleavam nas pedras. Dragon fez uma pausa, enquanto Anastasia deslizava para dentro. Momentos depois, três figuras encapuzadas saíram apressadas. Eles não olharam para cima, apenas mantiveram suas cabeças abaixadas, escondendo os rostos ao passar por Dragon, Kevin e Vovó Redbird.

– Ok, tragam o garoto para dentro – a voz de Anastasia chegou até eles.

Dragon virou-se de lado para que ele e a sua carga conseguissem entrar. Então, sem a menor cerimônia, ele largou Kevin no chão de pedra da pequena caverna, e o mundo de Kevin ficou temporariamente cinza com pontos brilhantes.

– Você poderia ter sido mais gentil – Anastasia disse.

– Eu poderia tê-lo matado e poupado todos nós dos problemas que ele vai trazer – Dragon replicou.

– O meu neto traz esperança, não problemas, Dragon Lankford – Vovó Redbird disse com firmeza.

– Sylvia, perdoe-me por dizer isso, mas é claro que você pensaria dessa maneira. Ele é sua família. A grande lealdade que você demonstra por ele é admirável, seja ela justificada ou não – Dragon respondeu.

Conforme a visão de Kevin ficou mais clara, ele viu sua avó encarar o Mestre da Espada. As mãos no quadril, os cabelos grisalhos recaindo por seus ombros, e ele nunca a havia visto ficar tão enfurecida.

– Kevin foi Marcado há mais de um ano. Ele se Transformou logo depois disso. Alguma vez eu mencionei o nome dele a você?

– Não, mas...

– Não! Eu não mencionei – ela o interrompeu. – E não fiz isso porque eu não iria, não poderia colocar a Resistência em perigo, e ainda assim aqui estou. De repente trazendo o meu neto até vocês... um neto que é claramente um vampiro vermelho, mas que não tem o cheiro diferente do seu e que age de um modo perfeitamente racional.

– Sylvia, desde os assassinatos de Lenobia e Travis, manter a Resistência em segurança é o meu trabalho. Já aconteceram tantas mortes e, se houver pelo menos um pequeno risco de o seu neto nos comprometer, então nós precisamos tomar todas as precauções. Você acha que me dá prazer decapitar um garoto? Ele não tem culpa por ter sido Marcado como vermelho. Eu não sou um monstro, Sylvia Redbird.

– É claro que você não é, meu amor. – Anastasia levou uma lamparina a óleo até Kevin e a colocou em um nicho na rocha perto deles antes de depositar uma bolsa grande de couro ao lado dele. Ela abriu a bolsa e começou a procurar algo lá dentro enquanto falava: – Sylvia tem razão. Ela está trabalhando conosco por muitos meses e nenhuma vez tentou trazer o neto dela aqui.

– Porque não seria seguro me trazer até aqui antes do que aconteceu – Kevin se esforçou para falar. – Não importa o quanto eu me esforçasse para manter a minha humanidade.

– Fique quietinho. Preciso dar pontos nesse ferimento – Anastasia disse enquanto desenrolava o curativo improvisado. – Sylvia, há várias garrafas de água limpa lá no fundo da caverna. Você pode trazer aqui para mim, por favor?

Sylvia foi apressada até o fundo da caverna, retornando com duas garrafas de um litro de água fresca, que entregou para Anastasia.

– O que mais posso fazer para ajudar?

Anastasia passou para ela uma compressa de gaze.

– Vá secando o sangue enquanto dou os pontos para que eu consiga enxergar o que estou fazendo. – Ela segurou uma agulha longa e curva que estava presa ao fio escuro de sutura. – Kevin, pressinto que isso vá ser um pouco desagradável para nós dois... mais para você do que para mim.

– Tudo bem. Não é tão ruim quanto sentir a minha humanidade escapando de mim.

– O que aconteceu com você? O que mudou você? – Dragon perguntou de repente.

Anastasia levantou rapidamente os olhos para o seu companheiro, que estava em pé perto da entrada da caverna, os braços cruzados, com uma expressão sombria turvando seu belo rosto.

– Você pode interrogá-lo depois que eu der os pontos nele.

– Eu prefiro falar. Vai me distrair um pouco – Kevin disse.

– Muito bem. Vou começar. Primeiro vou colocar álcool sobre o ferimento. Vai doer bastante.

– Estou pronto. Ok, então, o que aconteceu comigo? Bom, eu...! – Kevin perdeu as palavras e deu uma arfada de ar brusca. Era como se Anastasia estivesse derramando fogo líquido nas suas costas, e ele teve que lutar para permanecer consciente.

– Respire, u-we-tsi. Respire. Profundamente, inspire e expire, inspire e expire. Vai passar – Vovó o tranquilizou enquanto secava as suas costas.

Kevin cerrou os punhos e respirou fundo várias vezes junto com sua avó.

– E agora vou começar a dar os pontos. A boa notícia é que o ferimento é longo e reto. Você vai ficar com uma cicatriz, mas deve sarar rápido.

– Melhor isso do que perder a cabeça – Kevin conseguiu falar entre dentes cerrados.

Quando ela começou a dar os pontos, Kevin pensou que ia desmaiar. Ele queria desmaiar, mas, como isso não aconteceu, Kevin voltou a se concentrar na sua história. Ele tentou fingir que estava fora do próprio corpo, em pé ao lado de Dragon, olhando para a noite fria de inverno enquanto falava.

– Três noites atrás, eu era parte de um grupo de soldados vampiros vermelhos e aprendizes novatos que foram arrancados de nossos alojamentos nos túneis embaixo da estação e levados para um mundo alternativo – Kevin fez uma pausa e respirou fundo várias vezes quando a dor nas suas costas ameaçou subjugá-lo.

– O que você quer dizer com um mundo alternativo? – Dragon perguntou.

– Um mundo que é quase como este aqui, só que Neferet não está no poder. A minha irmã está.

As mãos ocupadas de Anastasia fizeram uma pausa.

– Zoey?

– Você conhecia a minha irmã?

– Sim. Ela era uma jovem adorável. Ela entrou na minha aula de Feitiços e Rituais algumas semanas antes de ser assassinada, mas já tinha demonstrado que seria promissora com a magia. Você se lembra dela, não lembra, Bryan?

– Eu lembro que a morte dela foi o começo oficial da guerra de Neferet – Dragon respondeu.

– Neferet a matou – Kevin disse.

– Como você sabe disso? – Dragon perguntou repentinamente.

– Porque no mundo da outra Morada da Noite, Neferet tentou começar uma guerra com humanos da mesma forma... culpando-os pela morte de vampiros. Vampiros que ela mesma matou.

– E a sua irmã morta contou isso pra você? – Dragon falou.

– Não, a minha irmã viva me contou isso... na Morada da Noite de Tulsa, onde ela é uma das várias Grandes Sacerdotisas poderosas que comandam tudo. Zo e o seu grupo derrotaram Neferet e impediram que a guerra acontecesse.

– Garoto, você acabou de cometer o seu primeiro erro. Nós temos espiões no acampamento do Exército Vermelho. São poucos, mas posso conferir com eles essa história de desaparecimento.

– Ótimo – Kevin disse entre dentes cerrados enquanto Anastasia passava a agulha através de outro pedaço de sua carne rasgada. – Quero que você faça isso. Pergunte aos seus homens o que aconteceu com o General Dominick e os seus soldados.

– Vou perguntar. Pode ter certeza.

– Ótimo – Kevin repetiu.

– Mas, até lá, vamos dizer que eu acredito em você. Como o fato de ser atraído para outra versão do nosso mundo restaurou a sua humanidade?

– Foi algo que Nyx fez depois de abençoar Aphrodite com o dom de conceder segundas chances.

– Aphrodite? – Dragon pronunciou o nome com sarcasmo. – Você quer dizer a Sacerdotisa azul que tem visões sobre morte?

– Ela mesma. Só que no outro mundo ela é uma Profetisa de Nyx, tão poderosa quanto bonita.

Dragon bufou.

– Bom, neste mundo ela é praticamente inútil, a menos que você esteja tão iludido com a beleza dela que faça vista grossa para os seus prazeres egoístas e a sua ganância mesquinha.

– Mas, mesmo nesse mundo, ela ainda é uma Profetisa – Kevin argumentou.

– Ela é uma Profetisa que tem visões que raramente consegue interpretar. Antes de Anastasia e eu escaparmos para nos juntar à Resistência, havia rumores de que Neferet estava descontente com ela.

– E por que não estaria? – Anastasia comentou enquanto continuava a fazer a sutura nas costas de Kevin. – Eu abomino tudo que Neferet defende, mas Aphrodite é uma Profetisa horrível. Ela usa a beleza e o dom concedido pela Deusa para manipular os outros. Acredito de verdade que ela retém informação das suas visões, a menos que ache que pode ganhar algo com elas. Não sei por que Neferet não se livra dessa criatura.

– Eu sei. Aphrodite é uma mestra em saber em quanto ela pode abusar ou não de Neferet. Quando vai longe demais, Aphrodite simplesmente tem uma visão que é subitamente clara o bastante para que possa interpretá-la, e, coincidentemente, essa visão também é de grande valor para Neferet – Dragon explicou.

– Ela é diferente no outro mundo – Kevin insistiu. – Ela sacrificou a sua humanidade para salvar os primeiros novatos vermelhos. E desde então, naquele mundo, todos os novatos e vampiros vermelhos têm a capacidade de manter a sua humanidade. Tudo por causa de Aphrodite.

– E por causa dessa diferença, Kevin acredita que pode chegar até a Aphrodite que está neste mundo e convencê-la a fazer o mesmo sacrifício – Vovó Redbird acrescentou.

Houve um longo silêncio durante o qual Kevin tentou, em meio à dor ardente nas suas costas, pensar em algo a acrescentar – alguma coisa que convencesse Dragon de que o que ele estava contando era verdade.

Quando Dragon falou novamente, Kevin escutou uma mudança na sua voz. Muito leve, mas um pouco do sarcasmo e da raiva pareciam ter desaparecido.

– O que faz você pensar que Aphrodite pode fazer essa escolha? A Profetisa que você descreve tem muito pouco em comum com a do nosso mundo.

– Porque mesmo em outro mundo, quem nós somos lá no fundo parece não mudar muito. A única diferença é que nós passamos por experiências de vida diferentes, as quais têm o poder de mudar as nossas personalidades e as nossas reações – Kevin explicou. – Zoey me falou para procurar você e Anastasia neste mundo. Ela disse que vocês me ajudariam a derrotar Neferet, porque vocês a ajudaram no mundo dela.

– Bryan e eu também somos companheiros nesse outro mundo?

Kevin pensou em não contar o que havia acontecido, mas ele afastou aquele pensamento rapidamente. A verdade era uma das poucas forças que ele tinha, e ele não iria começar a mentir e estragar o que já tinha conquistado.

– Vocês eram – ele contou a Anastasia.

– Éramos? – Dragon perguntou.

– Vocês foram mortos. Não sei bem o que aconteceu. Zoey não teve tempo de me contar isso. Só que vocês morreram corajosamente salvando os outros.

– Nós dois estamos mortos? – a voz de Anastasia soou trêmula.

– Estão. Sinto muito – Kevin respondeu.

Anastasia pousou a mão ensanguentada no ombro dele por um instante.

– Não sinta. Se o meu Bryan perecesse, eu não gostaria de viver sem ele.

– E eu não iria dar nem um suspiro em um mundo sem você, meu amor – Dragon afirmou.

Do canto do olho, Kevin viu Anastasia se virar e levantar os olhos para o seu companheiro.

– E é a sua capacidade de amar que faz você maior do que a sua espada. Maior do que um dragão. Pense nisso, Bryan. Se isso for verdade, se Kevin conseguir chegar até Aphrodite e convencê-la a repetir o que fez naquele outro mundo... então a guerra de Neferet mudaria drasticamente.

– Sim – Kevin concordou. – Ela não teria um exército de armas irracionais. Ela teria apenas os oficiais azuis e os Guerreiros Filhos de Erebus, e quantos deles vão permanecer fiéis a ela e lutar se perceberem que Nyx não abençoa essa guerra?

– Ela perderia um pouco de poder, mas talvez não o bastante para acabar com a guerra – Dragon disse pensativamente. – Ela tem sido cuidadosa de apenas colocar em posições importantes Guerreiros que querem ter mais coisas: mais riquezas, mais terras, tudo.

– Mas pelo menos a gente teria uma chance de combatê-los – Kevin insistiu. – Dragon, eu vi o que acontece quando vampiros e novatos vermelhos têm a sua humanidade restaurada, e eu prometo a você que nenhum deles vai querer lutar de novo.

– Onde eles estão, esses outros vampiros e novatos vermelhos alterados? – Dragon perguntou.

– Ainda no outro mundo. Zoey teria que forçá-los a voltar para cá, e ela se recusou a fazer isso. Foi um choque terrível quando eles se recuperaram e se deram conta de tudo que tinham feito. Vários cometeram suicídio antes que pudéssemos detê-los.

– E você? Por que você não ficou devastado? – o Mestre da Espada perguntou.

– Porque eu era diferente desde o momento em que fui Marcado. Eu conservei mais da minha humanidade do que qualquer outro, e por causa disso eu garanti que...

De repente, do lado de fora da caverna vieram os gritos de alerta de um corvo, imediatamente seguidos por um alvoroço. O pássaro voou freneticamente até Anastasia enquanto Erik Night foi apressado até Dragon.

– Perigo! Perigo! Perigo! – o corvo berrou ao pousar no ombro de Anastasia.

– Tina acendeu uma fogueira de alerta! – Erik contou a Dragon.

Kevin estava ocupado demais olhando fixamente para o corvo e pensando se corvos normais conseguiam falar ou se esse em específico tinha poderes sobrenaturais, quando Dragon virou-se e o encarou.

– Seu desgraçado traidor! – Dragon atirou as palavras para Kevin.

– Não! Não fui eu! Não poderia ser. E-eu nem fui para o quartel ontem. Fui direto até a fazenda de Vovó Redbird.

Outro vampiro azul entrou apressado na caverna. Com a respiração ofegante, ele anunciou:

– Soldados do Exército Vermelho estão subindo a montanha!

Dragon Lankford marchou até Kevin e agarrou forte o seu braço, fazendo-o ficar em pé e arrastando-o até a entrada da caverna.

– Antes de matá-lo, você vai me dizer quantos soldados você trouxe até aqui!


7

Outro Stark

– Tenente Dallas, explique de novo para mim por que diabos nós estamos aqui, no meio do nada, em uma noite de inverno congelante, quando eu poderia estar nos meus aposentos com uma fogueira crepitante, venerando o sabor da boca da minha sacerdotisa atual?

O pequeno e jovem vampiro correu até Stark. A sua Marca azul de adulto tinha a forma de relâmpagos, o que fazia sentido por causa da sua estranha afinidade com eletricidade, mas Stark achou que ela ficava mais ridícula naquele rosto que lembrava o de um furão.

– Bom, General, como eu disse a Artus, hoje a nossa varredura de segurança era em Sapulpa e Sand Springs. Lá na mercearia Reasor’s, na esquina da Taft com a Hickory aqui em Sapulpa, o gerente relatou que tinha certeza de que viu Erik Night com um grupo de vampiros azuis que estavam espreitando no estacionamento.

– Bom, Night realmente se juntou à Resistência alguns meses atrás, mas por que nós estamos aqui, se ele foi visto na cidade?

– Porque eu andei pressionando um tenente do Exército Vermelho e ele conseguiu encorajar – Dallas pronunciou a palavra com uma alegria maliciosa – alguns dos moradores locais a admitirem que eles têm notado luzes estranhas vindo desta montanha. A maioria dos caipiras acha que ela é mal-assombrada... eles falaram alguma coisa sem sentido sobre a montanha pertencer ao Povo Creek há gerações. Disseram inclusive que os fantasmas perseguiam os técnicos que perfuravam petróleo no começo dos anos 1900, mas eu não acredito nessa merda. – Eles estavam parados ao lado de uma rodovia denominada Lone Star, que serpenteava pela montanha. Dallas apontou para a cerca com oito arames grossos, que parecia emoldurar toda a grande área selvagem que formava o local chamado Polecat Ridge. – Então, eu dei uma fuçada por aí e encontrei isso.

– Uma cerca? Há fazendas por toda parte nessa região que são cercadas. Por que isso seria um problema? – Stark perguntou.

– Porque isso não é uma fazenda. A montanha é selvagem. Ninguém fez nada nela desde o começo do século passado. Então por que ela é protegida por uma cerca elétrica de alta voltagem?

– Isso é muito? – Stark deu um passo para mais perto da cerca e de fato ouviu um zumbido fraco e sentiu algo diferente no ar.

– Muito. Eu tentei conversar com a velha que é dona da montanha, mas ela não foi muito prestativa... e ela é protegida pelas diretrizes de Neferet porque também é dona das melhores plantações de alfafa em todo o estado. Então eu não pude ser tão persuasivo quanto gostaria.

– Mas ela te deu uma resposta.

– Sim, senhor. Ela falou que tem um rebanho de um tipo especial de veado. Um tipo que Neferet também ama.

– Veado de cauda branca – Stark assentiu. – Neferet gosta de carne de veado. Muito. Não sabia que o fornecedor dela ficava por aqui.

– Sim, essa mesma mulher, Tina, é a dona desta montanha e de todos os campos ao redor. Enfim, ela disse que cria os veados especiais e os deixa soltos na montanha porque ficam mais saudáveis assim, então a carne deles é melhor. Por isso ela tem uma cerca elétrica em volta de toda a propriedade, para manter os veados dentro e os predadores longe.

– Acho que faz sentido. Você perguntou a ela sobre alguma atividade na montanha?

– Sim, senhor. Não consegui nada dela. A velha disse que é silencioso aqui, e por isso ela vive aqui, afastada das pessoas. Ela também disse que vigia a própria montanha, expulsando qualquer intruso, e que ela não precisa, nem quer, a nossa ajuda. Depois disso ela bateu o portão na minha cara.

– Nada de novo – Stark resmungou.

E não era mesmo. Desde a guerra de Neferet, os humanos sofriam. Não que ele estivesse muito preocupado com humanos. A única coisa com que Stark estava muito preocupado era com a sua própria pele – a vida era mais fácil assim –, principalmente nos últimos dias. No entanto, humanos se escondendo atrás de portas fechadas e demonstrando nada além de medo e/ou repugnância por vampiros não ajudava a luta contra a maldita e irritante Resistência.

– Então, quanto eu reportei tudo a Artus, ele disse que a montanha precisava ser inspecionada. E é por isso que nós estamos aqui.

– Tudo bem, então. Essa velha desligou a cerca elétrica? – Stark perguntou, mantendo uma distância segura dos cabos grossos.

– Não, mas a gente não precisa que ela faça isso. Eu consigo colocar a gente aí dentro sem problemas.

– Bom, então faça isso – Stark disse.

Ele deu as costas a Dallas e fez um gesto para o primeiro dos cinco utilitários estacionados atrás do seu veículo na liderança. O motorista obedeceu imediatamente, e soldados vampiros vermelhos e os seus oficiais responsáveis começaram a desembarcar. Stark fez outro gesto para que esperassem, o qual foi passado para a fila atrás, mas ele não precisava ter feito os soldados pararem. Dallas tinha ido até a cerca e colocado a mão no poste mais próximo. Os olhos do jovem vampiro estavam fechados, e a expressão do seu rosto quase indicava que ele estava sentindo prazer – o que não seria uma surpresa para Stark. Ele sempre achou que Dallas era estranho.

Quando Dallas levantou a cabeça no instante seguinte e olhou para Stark, os seus olhos estavam reluzindo com uma luz amarela bizarra.

– Mande os soldados passarem por cima da cerca aqui – Dallas manteve ambas as mãos no poste, indicando com o queixo o local à sua esquerda. – Fale para eles se apressarem. Essa certa tem muitos volts passando por aqui. Eu só posso segurá-los por alguns minutos.

– Vocês ouviram o tenente, façam os homens se mexerem! – Stark gritou.

Stark se afastou e ficou observando os vampiros vermelhos se arrastarem por cima da cerca. Eles parecem umas malditas baratas esfomeadas. Stark não se permitiu estremecer, apesar de sentir como se insetos estivessem rastejando na superfície de sua pele. O Exército Vermelho é necessário, ele lembrou a si mesmo com firmeza. Além do mais, não era como se eles pudessem se sentir ofendidos. Eles não davam a mínima para o quanto eles eram nojentos. Só o que importava para eles era a sua fome insaciável.

– Sua vez, General – as palavras de Dallas tiraram Stark dos seus pensamentos.

Ele rapidamente passou por cima da cerca.

– Ok, vamos nos espalhar e formar uma linha afrouxada, e então vamos subir com essa linha montanha acima.

Eles estavam andando por cerca de quinze minutos, abrindo caminho através de uma vegetação rasteira marrom devido ao inverno e cheia de detritos da floresta. Então encontraram uma estrada de terra acidentada em que mal cabia um quadriciclo, apesar de ser óbvio que ela tinha sido usada recentemente.

– Isso não parece nada bom – Stark disse. – Tenente, você viu algum carro na propriedade daquela senhora?

– Sim, senhor. Vi algumas dessas coisas caras que parecem carrinhos de golfe melhorados. Ela foi dirigindo um deles até o portão para falar comigo.

– Um Polaris – Stark disse, analisando os rastros.

– Perdão, senhor?

Stark levantou os olhos para Dallas.

– Esse é o nome desses veículos. E esses rastros parecem ter sido feitos por um deles. Pode não ser tão ruim quanto eu pensei. A velha senhora pode realmente ter dado uma circulada por aí procurando invasores, mas vamos seguir essa trilha por mais um tempo para ter certeza.

– Sim, senhor!

Depois de mais ou menos trinta minutos de caminhada, ouviu-se um grito à direita de Stark.

– Alto!

Stark pegou o seu arco sempre presente, preso às suas costas, e engatou uma flecha. Seis veados, completamente assustados e de olhos arregalados, passaram saltitando por eles, fazendo os soldados vermelhos se agitarem confusos, enquanto olhavam fixamente a carne de veado em movimento, claramente considerando se deveriam perseguir a presa ou esperar por um jantar mais delicioso e que se movimenta mais devagar com apenas duas pernas.

Stark franziu o cenho de desgosto.

– Dallas! Mantenha esses soldados sob controle. Ninguém mata um veado sem a permissão de Neferet. Cuide para que essas máquinas carnívoras entendam isso.

– Sim, senhor! – Dallas voltou correndo pelo caminho.

Stark podia ouvi-lo gritando para os tenentes do Exército Vermelho. Pela segunda vez naquela noite, ele ficou muito irritado com o fato de o General Dominick e seu pelotão de soldados terem aparentemente desaparecido sem explicações alguns dias atrás. Dominick era amplamente reconhecido como o mais implacável e inteligente dos generais vermelhos, o que significava que os seus soldados eram sempre os mais disciplinados.

– Maldito Exército Vermelho! – Stark resmungou. Ele tentou lembrar a si mesmo para tentar convencer Neferet a considerar a retirada progressiva do máximo possível dos vampiros vermelhos do dia a dia da guerra, e somente usá-los durante as batalhas principais contra os exércitos humanos ou a Resistência. – Eles fazem mais mal do que bem.

Isso sem mencionar que ele achava repugnante que a mordida de qualquer novato ou vampiro Marcado como vermelho fosse venenosa para humanos, inevitavelmente os matando e fazendo com que ressurgissem em três dias como coisas grotescas como zumbis, cuja mordida também era contagiosa.

– E eles têm um mau cheiro horrível.

– Senhor, os soldados estão sob controle – Dallas disse, ofegante, ao chegar correndo perto de Stark.

Stark soltou um grunhido.

– Então vamos em frente de novo. Ficar rastejando por esta montanha não é minha escolha ideal para passar a noite.

A fileira de soldados continuou se movendo, serpenteando pelo caminho, enquanto seguiam o que mal podia ser chamado de estrada de terra. Logo a trilha dobrou drasticamente para a direita, e então seguiu quase em linha reta. Stark suspirou e se concentrou na missão, não gostando nada de sentir o ar mais frio e úmido. Ele tentou lembrar se havia previsão de gelo ou neve. Ele deu uma olhada no seu telefone e praguejou em voz baixa.

É claro que não tem um maldito sinal aqui no meio do nada.

De repente, acima dele, um corvo começou a voar em círculos e a grasnar, como se estivesse irritado por estarem invadindo a sua montanha.

– Vamos apertar o passo – Stark disse a Dallas. – Volte descendo a fila e diga a eles para me acompanharem.

General Stark não esperou por uma resposta. Balançando os braços, ele começou a subir correndo a trilha de terra vermelha, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.


Outro Kevin

Dragon Lankford agarrou o braço de Kevin, puxou-o bruscamente, fazendo com que ele ficasse em pé, e o arrastou até a boca da pequena caverna. A sua espada montante estava desembainhada e ele ficou na frente de Kevin, segurando a ponta da lâmina afiada contra o seu pescoço.

– Quantos são? – Dragon o interpelou.

Vovó Redbird tentou correr para ficar ao lado de Kevin, mas Anastasia segurou o seu pulso, não permitindo que ela fosse até ele.

– Não, minha amiga. Isso foi além da nossa boa vontade. Dragon precisa lidar com o seu neto agora.

– Quantos? – Dragon repetiu, e a espada tirou uma pequena gota de sangue do pescoço de Kevin.

– Mate-me. Corte a minha cabeça. Faça o que quiser, mas isso não vai mudar a minha resposta porque eu estou dizendo a verdade. Eu não sei o que está rolando lá fora. Eu não sei como eles acharam a sua montanha, mas isso não tem nada a ver comigo.

– Então, é só uma coincidência que um tenente do Exército Vermelho apareça aqui na noite em que os soldados do Exército Vermelho fazem o mesmo? – A voz de Dragon estava pesada com uma fúria mal controlada. – Você sabe quantos inocentes estão aqui? Dezenas! Eles estão espalhados ao nosso redor em esconderijos de caça. Humanos e novatos azuis. Alguns são... apenas crianças. Todos procurando segurança e liberdade, e eles vão perder a vida esta noite. Por sua causa!

– Não! – Vovó Redbird gritou. – Kevin estava comigo. Ele está dizendo a verdade! Eu juro pela minha vida.

Dragon se dirigiu apenas a Kevin.

– Ela vai morrer hoje também. De uma maneira horrível. E, se eles deixarem sobrar algo, ela vai acordar como uma máquina de comer, voraz e irracional. A sua alma só pode estar completamente repleta de Trevas para fazer uma coisa dessas.

Kevin virou a cabeça para o outro lado, incapaz de olhar para a sua avó.

– Sinto muito, Vó. Eu nunca deveria ter deixado você me trazer aqui. Eu sabia que era perigoso demais. Eu devia ter espionado Neferet como você me disse para fazer e deixar que você viesse falar com a Resistência no meu lugar. Eu sinto muito, muito mesmo.

– Eles estão vindo pela trilha oeste! – Um vampiro azul que Kevin não reconheceu arrastou-se pelos últimos metros montanha acima até chegar onde eles estavam.

– Apaguem todas as chamas! – Dragon virou a cabeça para olhar para a sua companheira. – Meu amor, leve os inocentes até lá embaixo pela parte de trás da montanha. Pode ser que eles não nos tenham cercado. – O seu olhar duro encontrou Kevin de novo. – O resto de nós vai ficar aqui e ganhar tempo para que vocês escapem.

– Não. Eu não vou deixar você – Anastasia falou baixo, mas com firmeza. – Sylvia está acostumada com a natureza de Oklahoma. Ela pode guiar os inocentes. Eu vou ficar com o meu companheiro. Eu também sei empunhar uma espada, e prefiro morrer a seu lado.

Kevin viu a dor que atravessou os olhos de Dragon Lankford e o desespero que curvou os seus ombros, e ele não conseguia aguentar aquilo.

Que diabos Zoey faria?

Ele sabia o que ela não faria. Zoey Redbird – a Grande Sacerdotisa que comandava a Morada da Noite de Tulsa com força e honestidade – não iria desistir.

– O sangue da minha companheira vai estar nas suas mãos – Dragon triturou as palavras por entre dentes cerrados. – E depois de acabar com você, que tipo de recepção você acha que Nyx vai lhe oferecer? Essa é a parte boa de morrer. Eu vou estar lá, no Bosque da Deusa, para testemunhar a punição de Nyx.

Enquanto falava, Dragon pressionou a espada com mais força contra o pescoço de Kevin.

Kevin reagiu automaticamente. Ele se jogou para trás, gritando:

– Eu faria qualquer coisa para consertar isso! – As suas costas feridas arderam quando ele colidiu com a parede de pedra da caverna, abrindo os poucos pontos que Anastasia já tinha dado. Kevin cambaleou e caiu, enquanto o sangue escorria pelas suas costas e manchava as pedras.

Instantaneamente, houve uma mudança tão grande no ar que penetrou a fúria de Dragon. Ele congelou com a espada sobre a cabeça, pronta para dar um golpe mortal.

Depois de tudo isso, Kevin pensou que foi semelhante ao modo como o ar ficou em volta da fenda entre o seu mundo e o de Zo, mas, naquele momento, tudo que ele conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto quando seres etéreos começaram a se materializar ao redor dele. Alguns se ergueram das rochas de arenito da caverna. Alguns desceram dos céus, como penas flutuando até o chão. Outros ainda pereceram emergir de dentro da casca dos carvalhos antigos, cheios de nós, pendurados precariamente no precipício ao redor deles.

Eles eram muito diferentes entre si. Muitos pareciam um cruzamento entre folhas caídas e borboletas. Então uma leve rajada de vento soprou e eles mudaram de forma, tornando-se repentinamente belas mulheres aladas. Algumas lembravam beija-flores, só que tinham cabeças delicadas de mulheres incrivelmente bonitas e de homens lindos. Alguns pareciam fogos de artifício de Quatro de Julho, só que menores e translúcidos. Vários tinham forma de vaga-lumes... grandes e lindos vaga-lumes que não deviam estar esvoaçando por aí em pleno inverno. E outros ainda pareciam sereias e águas-vivas cintilantes.

Todos estavam descendo sobre Kevin.

– Magia Antiga! Magia Antiga! – grasnou o corvo, empoleirado no ombro de Anastasia.

A bela Sacerdotisa de repente estava agachada ao lado de Kevin, observando as criaturas com curiosidade e reverência.

– Sim, Tatsuwa! Esses espíritos são Magia Antiga. Nunca pensei que veria um, já que a Magia Antiga quase desapareceu do mundo.

Uma figura com asas de borboleta, que era uma mulher voluptuosa do tamanho aproximado da mão de Kevin, inteiramente nua, exceto por um vestido feito de brilho, esvoaçou até ele, concedendo um olhar suplicante.

– O-o que eles querem? – Kevin gaguejou.

– Você os invocou. Pergunte a eles – ela disse.

– Hum, o que vocês querem? – Kevin perguntou inseguro para o espírito flutuante.

“Nós aclamamos o chamado.

Vosso sangue é verdadeiro.

Qual é o vosso desejo

Que devemos realizar?”

Kevin não hesitou.

– Escondam-nos! Não deixem que os vampiros que estão subindo a montanha encontrem nenhum de nós que já estamos aqui em cima – ele fez uma pausa e então acrescentou: – Por favor.

“Se fizermos isso por vós,

O que fará por nós?”

Kevin abriu a boca para responder, mas Anastasia colocou a mão no seu braço e o deteve. Imediatamente, ela sussurrou:

– Tome cuidado. A Magia Antiga é poderosa. E também nunca é gratuita.

– O que você acha que eles querem? – Kevin sussurrou de volta.

– Os espíritos são ligados aos quatro elementos físicos: ar, fogo, água e terra. Encobrir esta montanha deve ser uma tarefa fácil para eles. Ofereça o seu sangue, mas apenas a quantidade que você já verteu.

Kevin limpou a garganta e então respondeu ao espírito cintilante.

– Eu vou pagar vocês com o meu sangue, mas apenas o sangue que eu já derramei. Isso é o suficiente para nos manter a salvo?

O espírito rodopiou no ar e foi cercado por todas as outras diferentes criaturas. Kevin podia ouvir que elas estavam murmurando, mas as palavras eram estranhas. Não como outra língua, mas como um modo diferente de pensar e de formar sons.

Então ela flutuou até pairar acima dele de novo.

“Nós aceitamos vosso preço esta noite

Já que vosso sangue é forte com a Luz.

Nós selamos este acordo convosco.

E é dito – que assim seja!”

Quando Tatsuwa grasniu um lamento, Anastasia se afastou rapidamente do caminho, juntando-se a Dragon, que estava a poucos metros de Kevin, com a espada ainda desembainhada, enquanto os espíritos cobriam o jovem vampiro vermelho. No início Kevin se contraiu, esperando que eles causassem ainda mais dor do que ele já tinha suportado aquela noite, mas o toque deles era estranhamente suave, como chuva fria caindo em uma floresta em chamas. Os espíritos também cobriram toda a parede rochosa da caverna, o chão de terra ao redor dele e até a ponta da espada de Dragon – qualquer lugar onde houvesse uma gota salpicada do seu sangue. Enquanto bebiam, os seus corpos resplandeciam com luz e cor, e eles fizeram tantos sons de estalos e gorjeios animados que fizeram Kevin sorrir.

Então, com a mesma rapidez com que haviam surgido, eles desapareceram.

E a noite ao redor deles mudou totalmente.


Outro Stark

Começou de modo inocente. Stark sentiu a direção da fria brisa da noite se alterar e se acentuar. Ele estava suando por causa da subida da montanha, então o seu rosto úmido registrou instantaneamente a mudança e ele estremeceu, apertando o passo.

E então o céu da noite começou a cuspir gelo.

Stark escorregou em uma pedra, subitamente lisa com o gelo, tão escura quanto a floresta ao redor deles, e teve que girar os braços para não cair. Ele abaixou a cabeça, protegendo-se da chuva fria, e diminuiu o ritmo.

Depois disso a névoa começou, vinda de lugares mais baixos ao redor deles, e erguendo-se das entranhas da montanha. Atrás dele, alguém gritou alto, e alguns instantes depois, Dallas estava ofegante ao seu lado.

– Senhor, os homens estão escorregando. Um dos soldados acabou de cair e espatifou a cabeça contra uma pedra.

Caminhando com dificuldade, Stark parou.

– O tempo virou. Eu devia ter conferido a previsão antes de sair da Morada da Noite.

– Senhor, eu conferi – Dallas disse, enxugando o rosto com as costas da manga do seu casaco encharcado. – A previsão era de frio e tempo firme.

– Isso que dá escutar Travis Meyer e o News on Six – Stark resmungou. – Bom, diga aos oficiais vermelhos para levarem os seus soldados de volta para os utilitários. Você e eu vamos em frente, continuar vasculhando até o topo da montanha para que eu tenha certeza...

Um grupo de vaga-lumes incrivelmente grandes saiu voando de dentro da névoa, esvoaçando rapidamente na chuva de gelo ao redor como se fossem crianças brincando em uma fonte. Stark ficou olhando fixamente para eles através do gelo, da chuva e da neblina enquanto os seus corpos de inseto se alteravam para corpos de mulheres nuas e depois novamente para insetos.

Stark sentiu o seu sangue ficar tão frio quanto o gelo que caía.

– Magia Antiga – ele falou baixo.

– O que foi, senhor? – Então os insetos incandescentes atraíram a visão de Dallas. – Ei, vaga-lumes! Merda, que coisa estranha.

– Não são vaga-lumes. São espíritos. Vamos recuar, Dallas. Diga aos soldados que estamos indo embora. Agora!

Dallas olhou confuso para Stark, mas saiu apressado para fazer o que ele ordenou. Stark fez uma pausa só por um segundo antes de segui-lo trilha abaixo.

Os espíritos eram realmente espetaculares – tão bonitos quanto haviam sido descritos nos tomos antigos que o seu professor de Feitiços e Rituais insistiu que a sua classe avançada lesse, de ponta a ponta. Stark havia ficado imerso na aula de Feitiços e Rituais, principalmente porque ele adorava ler. A metade final do último livro mais avançado usado na aula era dedicada à Magia Antiga e principalmente aos espíritos elementais.

Stark vasculhou a memória enquanto se afastava devagar da nuvem cintilante de criaturas. Os espíritos eram poderosos, mas tão instáveis quanto a Magia Antiga que os constituía – em outras palavras, eles podiam ajudar você em determinado momento, e se voltar contra você no instante seguinte.

O que Dallas falou sobre esta montanha? Era uma terra ancestral da Nação Creek.

– Faz sentido – ele murmurou para si mesmo enquanto continuava o caminho de volta, relutante em desviar o olhar dos espíritos. Eles devem ter sido protetores da terra, aliados da Nação Creek quando os indígenas viviam no local, e não compreendem que o mundo mudou, seguiu em frente. Eles ainda continuavam protegendo a terra.

Ele alcançou a fila de retirada, ordenando aos soldados que andassem o mais rápido possível para sair daquela terra. Dallas correu na frente deles, controlando a eletricidade o suficiente para que o grupo passasse sobre a cerca novamente. Na hora em que Stark chegou ao utilitário e Dallas manobrou o veículo líder em que eles estavam para voltarem para Tulsa, a estrada estava quase intransitável por causa do gelo.

– Senhor, o que diabos aconteceu lá em cima? – Dallas perguntou.

– A confirmação de que nenhum membro da Resistência anda rondando por aquela montanha. Magia Antiga com esse tipo de proteção não admite intrusos. Aquela mulher, Tina, é dona de toda a montanha?

– Sim, senhor.

– Ela deve ter sangue Creek. É por isso que os espíritos a deixam zanzar por ali, fingindo procurar por intrusos – Stark bufou. – Intrusos, caramba! Eu detestaria ver o que a Magia Antiga faria com qualquer um que invadisse aquela terra.

– Bom, pelo menos nós sabemos que os habitantes não estão mentindo – Dallas disse. – Não sei quase nada sobre Magia Antiga, mas eu vi aqueles insetos. Eles brilhavam como luzes. Deve ser isso que as pessoas falaram que viram lá em cima.

– Só pode ser. – Stark hesitou. – Foi só isso que você viu? Apenas insetos brilhantes grandes?

– Sim, isso não é estranho o suficiente?

– É sim – Stark respondeu, perguntando-se por que ele se sentia aliviado por Dallas não ter visto os espíritos se transformando em formas semi-humanas.

– Bom, parece que a gente não tem que se preocupar em vigiar aquela montanha. Ótimo. Muitos espinheiros malditos, pedras e coisas assim para o meu gosto. Além disso, eu odeio o campo. Sou um cara da cidade.

– Tenente, quero que você mantenha a boca fechada sobre o que nós vimos lá em cima. A última coisa que precisamos é de um bando de novatos idiotas pensando que seria uma aventura ir até lá para dar uma olhada na Magia Antiga.

– Como quiser, senhor, mas não pareciam perigosos. Eles parecem vaga-lumes anormalmente grandes, até são bem bonitinhos.

– Dallas, só um daqueles insetos bonitinhos tem a capacidade de devorar você inteiro... e eu quero dizer você inteiro mesmo. Os espíritos conseguem drenar almas tão facilmente quanto drenam sangue.

– Pelas tetas de Nyx! Você está brincando?

Stark deu um olhar duro para ele.

– Parece que estou brincando com você, Tenente? E nunca mais use o nome da Deusa dessa forma perto de mim de novo.

– Sim, senhor. Desculpe, senhor.

– Cale a boca e dirija.

O tenente obedeceu, deixando o seu general contemplando a noite.

A Magia Antiga já deveria ter desaparecido quase completamente do mundo. Os livros dizem que ela só pode ser encontrada na Ilha de Skye, e ninguém tem permissão de entrar lá há séculos. Stark não conseguia imaginar o que os espíritos estavam fazendo ali. O fato de ser uma terra de indígenas americanos que eles ainda estavam protegendo fazia sentido.

Ainda assim não explicava o porquê de estarem despertos e ativos o bastante para serem vistos por habitantes humanos do local.

Será que isso tem alguma coisa a ver com a guerra de Neferet?

Um arrepio de mau pressentimento desceu pela coluna de Stark, mais frio do que o gelo que parou de cair assim que saíram da Lone Star Road.

Stark tinha certeza de que ele sabia a resposta para a sua pergunta. O que ele não sabia era se era um bom ou mau sinal que os espíritos estivessem ficando ativos. Ele também não sabia que diabos fazer com a sua descoberta.

O seu dever era reportar isso a Neferet, mas Stark era um Guerreiro Filho de Erebus juramentado antes de se tornar general de Neferet, e o seu primeiro dever de lealdade era com a Deusa Nyx.

A verdade secreta que Stark mantinha escondida lá no fundo era que ele não confiava em Neferet, nem concordava com a guerra dela.

Claro, ele fazia parte de um grupo muito grande e firme de vampiros azuis que exigiam um melhor tratamento para os humanos. Antes da guerra, ele estava farto daquela besteira de separados-mas-iguais que os políticos humanos empurraram para cima deles por tanto tempo. Ele até apoiou o começo da guerra de Neferet, mas depois de poucos meses ficou óbvio que Neferet nunca quis criar uma ordem mundial onde todos fossem iguais. Neferet queria mandar e subjugar todos os humanos.

Stark não era um vampiro vermelho. Ele tinha princípios morais. Ele manteve a sua humanidade. E ele não era um assassino. Ele era um Guerreiro, que jurou proteger a Grande Sacerdotisa que recebeu de Nyx o dom de liderar a nação dos vampiros.

Mas e se os boatos fossem verdadeiros? E se Neferet não fosse mais uma seguidora de Nyx, e se a Deusa realmente tivesse se afastado da sua Grande Sacerdotisa?

– Eu rezo a Nyx por um sinal... – Stark murmurou para o seu reflexo no vidro escurecido.

– Senhor? Disse algo?

– Só estou falando comigo mesmo – Stark respondeu. Ele fechou a boca, mas o sussurro na sua mente não parou.

Eu tenho rezado por um sinal de que Neferet está seguindo a vontade da Deusa. Isso foi um sinal? Ou a aparição da Magia Antiga é uma indicação do contrário?

Stark esfregou a testa, odiando aquela dor de cabeça que estava aumentando. Até ele ter certeza de que Neferet havia renunciado Nyx, ele iria cumprir o seu dever. Ele iria proteger a sua Grande Sacerdotisa.

No entanto, ele também manteria a sua mente e os seus olhos bem abertos e, pelo menos por enquanto, não contaria a ninguém sobre os detalhes mágicos do que tinha acontecido na montanha aquela noite.


8

Outro Kevin

– Eles bateram em retirada! Todos eles! – um vampiro azul alto e loiro entrou correndo na pequena caverna, tirando gelo de uma tatuagem de adulto formada por nós celtas, enquanto se aproximava de Dragon.

– Cole, você tem certeza? – Dragon perguntou.

– Sim. Estava uma confusão lá fora, mas eu vi o que aconteceu. Foi bem lá no nosso primeiro posto de controle. Um bando de coisas que pareciam vaga-lumes saiu da neblina na frente do General Stark. Ele imediatamente ordenou a retirada. Não consegui chegar perto o bastante para entender o que ele estava dizendo, mas eu ouvi claramente as palavras Magia Antiga, e deu pra ver que ele parecia assustado. Pra valer.

– Oh, graças à Deusa! – Vovó Redbird desabou no chão de pedra bruta da caverna.

– Vó! Você está bem? – Kevin tentou ir até ela, mas as suas pernas se recusaram a funcionar, e ele não conseguiu fazer muito mais do que encostar dolorosamente contra a parede da caverna.

– Sylvia? – Anastasia começou a se afastar de Kevin para ir até a velha senhora, mas Vovó Redbird levantou uma mão para detê-la.

– Eu estou bem. Só precisava sentar. Acho que o meu pico de adrenalina já passou. Por favor, cuide do meu neto e não se preocupe comigo. – Ela abraçou a si mesma e estremeceu.

– Meu amor, você acha que nós podemos acender pelo menos algumas fogueiras de novo? – Anastasia perguntou para Dragon.

O Mestre da Espada olhou para o gelo e a névoa que ainda encobriam a montanha.

– Sim. Se eles voltarem, não será hoje. As estradas estarão intransitáveis e a neblina é excelente para ocultar as fogueiras. Acendam aquela no fundo da caverna. Cole, vá até os esconderijos de caça e diga a todos que é seguro manter as fogueiras acesas enquanto o gelo e a neblina durarem – Dragon disse, e Cole desapareceu na noite. Então Dragon encarou Kevin. – Deu certo. Os seus espíritos nos salvaram.

Kevin deu de ombros e fez uma careta de dor.

– Eles não são meus espíritos, na verdade. Eles só gostam do meu sangue.

– Porque o seu sangue contém o poder dos seus ancestrais, que já foram parte desta terra e destas rochas – Sylvia Redbird afirmou. – E porque é um sangue bom e honesto, não manchado por mentiras e ódio. Você acredita agora, Dragon Lankford?

– Eu acredito que o seu neto nos salvou, mas ainda há a questão sobre como o Exército Vermelho sabia que nós estávamos aqui e por que eles vieram na mesma noite que Kevin.

– Eu não posso responder nenhuma dessas perguntas agora – Kevin disse. – Não enquanto estou aqui. Mas eu posso conseguir respostas para todos nós de dentro da Morada da Noite.

– Você acha que eu deixarei você ir embora?

– Não. Eu acho que você me deixará lutar com vocês. Eu quero fazer parte da Resistência. Eu quero espionar para vocês... para nós.

– Impossível! – Dragon exclamou.

– Por que é impossível, Bryan? – Anastasia se agachou ao lado de Kevin de novo, reexaminando as suas costas, enquanto o seu corvo encontrou um poleiro na parede escarpada da caverna.

Kevin achou que os olhos negros do corvo pareciam tão céticos quanto os de Dragon.

– Ele é um vampiro vermelho! Ele não pode fazer parte da Resistência. Nós estamos combatendo a espécie dele.

– Vocês não estão combatendo a minha espécie – Kevin argumentou. – Não há ninguém mais da minha espécie neste mundo, e é por isso que eu sou o espião perfeito. Ninguém na Morada da Noite vai prestar atenção em um tenente do Exército Vermelho. Eles não dão a mínima para nós, exceto para nos considerar descartáveis. Eu posso ir a qualquer lugar, ouvir o que qualquer um fala... e eles nem vão notar.

– Você também pode ser promovido a general do Exército Vermelho e ter um esquadrão de homens seguindo suas ordens. Por que você escolheria se colocar em risco? – Dragon perguntou.

– Porque eu sou uma pessoa decente! – Kevin desabafou. – Afe, o que há de errado com você? Qualquer um que não seja um monstro ou um idiota ambicioso faria o mesmo.

– Isso não é verdade, Kevin. – Anastasia pousou uma mão suave em seu ombro. – Há muitas pessoas que nós chamaríamos de decentes, tanto vampiros quanto humanos, que não farão nada além de ficar sentados nos bastidores, balançando a cabeça para o estado do mundo.

– Bom, eu acho que, se você é uma pessoa decente e não se levanta contra monstros, então você é pior do que eles – Kevin disse. Ele virou a cabeça e encontrou os olhos azuis inconfundíveis de Anastasia. – Pode ir em frente e começar a me costurar de novo. Estou pronto como jamais estarei.

Ela sorriu gentilmente para ele.

– Isso não vai ser necessário. Não depois de a Magia Antiga ter feito o trabalho. – Anastasia indicou com um gesto as costas dele.

Kevin esticou cuidadosamente o pescoço e encontrou uma cicatriz sensível e elevada e pele limpa onde apenas alguns minutos atrás havia um corte profundo e sangrento.

– Mas isso é impossível!

– Aparentemente, não. Quando os espíritos beberam o seu sangue, eles também tocaram todo o seu ferimento, e o toque deles o curou. Porém, não completamente. Você vai ficar fraco, dolorido e sensível por um tempo, e você vai ficar com uma cicatriz grande e horrível, mas você não precisa mais da minha habilidade em dar pontos.

Vovó Redbird se aproximou de Kevin, inclinando-se para examinar suas costas nuas.

– Isso é extraordinário! U-we-tsi, os espíritos realmente fecharam o seu corte.

– Hum – foi tudo que Kevin pensou em dizer.

– Isso diz algo a você sobre o caráter dele? – Dragon perguntou à sua companheira.

– Só que os espíritos gostam dele e, já que eles são neutros, nem bons nem maus, isso não quer dizer muita coisa – Anastasia respondeu. Então ela se levantou e pegou as mãos calejadas pela espada do seu companheiro. – Bryan, acredito que nós já conhecemos o caráter de Kevin. Ele definitivamente não é como os outros vampiros vermelhos. A gente devia confiar nele – ela afirmou, e Dragon abriu a boca para responder, prestes a protestar, mas as palavras de Anastasia o silenciaram. – Ele é diferente. A sua humanidade está intacta. E ele conseguiu brandir a Magia Antiga. Nem mesmo Neferet consegue fazer isso.

– Ainda – Kevin disse.

Dragon se virou para ele.

– Explique esse ainda.

– No mundo da minha irmã, eles de fato derrotaram Neferet, mas não conseguiram matá-la porque ela se tornou imortal.

Anastasia arfou em choque.

– Ela aprendeu a brandir a Magia Antiga!

– Vó, você está com o diário?

Ela assentiu levemente e indicou o local onde os mantimentos do Polaris tinham sido empilhados, no fundo da pequena caverna.

– Estou. Está na cesta que eu enchi de cookies.

– Eu trouxe uma cópia do diário que Neferet escreveu quando ainda era humana. É do mundo da minha irmã, mas nele há provas de que a Magia Antiga vem influenciando Neferet desde que ela era criança.

– E o fato de o diário ter sido escrito por outra versão de Neferet não significa que não tenha relevância para nós – Vovó disse. – Como Kevin já explicou, quem nós somos em cada mundo permanece essencialmente igual. São apenas as nossas experiências que mudam. Eu vou dar o diário a vocês. Façam cópias dele. Repassem para os outros. Todos nós devemos lê-lo para obter o máximo de informação possível a respeito de maneiras de combater o mal de Neferet.

– Concordo. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos, principalmente se essa ajuda vem na forma de um jovem vampiro que nos traz informações e também consegue brandir Magia Antiga – Anastasia disse.

Dragon suspirou fundo e foi até Kevin, agachando-se ao lado dele, da mesma forma que a sua companheira tinha feito.

– Eu não gosto de ser colocado em uma posição na qual preciso confiar em um inimigo.

– Eu não sou seu inimigo.

– Prove.

– Acabei de tentar provar – Kevin respondeu. – E vou continuar tentando provar isso a vocês. Eu vou para a Morada da Noite espionar para vocês. Vou contar tudo que eu ouvir por lá. Vou ajudar de todas as formas que eu puder.

– O meu neto está falando a verdade, Dragon. Você vai ver – Sylvia Redbird disse, batendo os dentes de frio.

– Vó, você tem que ir para o fundo da caverna onde está a fogueira.

– Eu estou bem aqui. Tem muita fumaça lá atrás.

– Garoto, se você quer fazer algo para cair nas minhas graças, pense em um jeito de fazer com que a Magia Antiga nos ajude a tornar esta caverna habitável – Dragon falou baixo, mais para a noite do que para Kevin, quando se levantou e encarou a chuva congelante e a névoa lá fora.

Kevin olhou para a sua avó e para Anastasia.

– Vocês acham que eu poderia mesmo fazer isso? Conseguir que os espíritos ajudem a deixar esta caverna maior e melhor?

– Claro que sim – Anastasia respondeu sem nenhuma hesitação. – Como eu disse quando eles apareceram, espíritos estão sempre ligados aos elementos, e a terra é um dos elementos. Não seria um exagero imaginar espíritos da terra moldando uma caverna no seio desta montanha.

– Beleza! Eu vou só chamar os espíritos e perguntar a eles...

– Lembre-se, Kevin, você nunca deve abusar da Magia Antiga de modo impertinente – Anastasia o interrompeu. – É uma das magias mais poderosas do mundo... e também uma das mais imprevisíveis.

– Mas os espíritos fizeram exatamente o que eu pedi – Kevin falou.

– Ah, eles sempre mantêm a palavra, desde que sejam pagos. O problema vem com o pagamento – Anastasia disse.

– Por favor, explique – Vovó Redbird pediu.

– É simples e complicado. Simples porque os espíritos concordam com um pagamento por um serviço. Quando é algo parecido com o que acabaram de fazer, uma tarefa específica por um favor específico, tudo normalmente corre bem. Quando o pagamento não é executado imediatamente é que você pode se meter em encrenca, e eu quero dizer uma encrenca profunda envolvendo sua alma, que pode, inclusive, ser fatal.

– Se eu entendi bem o que você disse, então Kevin deveria concordar apenas com um pagamento que seja imediato e muito específico, certo? – Vovó Redbird perguntou.

– Bem, sim e não. Mesmo dessa forma, ele ainda pode ter problemas. Essa é outra parte complicada do processo. Os textos ancestrais alertam que usar tanto poder é perigoso e pode ferir o vampiro que o está brandindo.

– Mas eu já tenho afinidade com os cinco elementos. Assim como a minha irmã no outro mundo que eu acabei de visitar. Ela é uma boa Grande Sacerdotisa, das boas mesmo. Ela derrotou Neferet. Eu realmente acho que ela não foi ferida por isso.

– As afinidades elementais são concedidas por Nyx e, portanto, elas não são Magia Antiga. É impressionante que você tenha essas afinidades, juntamente com seu sangue cherokee. Deve ser esse o motivo pelo qual os espíritos ouviram o seu chamado – Anastasia disse. – E em relação ao que os textos querem dizer quando falam que o vampiro pode ser ferido por lidar com esse poder... sinto muito por simplesmente não ter conhecimento suficiente para explicar melhor. Eu nunca vi Magia Antiga antes, nem ninguém que pudesse invocá-la. Tudo que eu sei é o que li em textos antigos.

– Bom, estou querendo arriscar e usá-la, pelo menos mais uma vez. Você acha que eles vão me ouvir de novo?

Ela deu de ombros.

– Eu não posso responder isso, Kevin. Nem posso responder se você deveria invocá-los de novo. Eu não conheço a natureza da sua alma. Eu não sei o quanto você é suscetível às Trevas.

– Eu conheço – Vovó Redbird afirmou. – A alma dele é boa. Boa de verdade. Ele não será sujeito às Trevas, ao ódio nem ao mal. Mesmo antes de Nyx restaurar a sua humanidade naquele outro mundo, ele combateu a fome e a insanidade que muitos de nós estão chamando de Maldição Vermelha. U-we-tsi, eu acredito que você pode ajudar a endireitar o equilíbrio entre Luz e Trevas porque você pode brandir Magia Antiga. Mas não se esqueça das palavras de Anastasia: o pagamento tem que ser específico e feito imediatamente.

– Eu vou me lembrar disso. Prometo. Mas, hum, vocês acham que eu tenho sangue o suficiente agora para isso?

– Não, você não tem – Anastasia respondeu.

– Eu tenho uma ideia para um pagamento alternativo. – Vovó levantou a mão e a colocou sobre a bolsinha que fazia uma protuberância embaixo da sua blusa.

– Espere aí, não. Você não pode dar a sua bolsa medicinal – Kevin disse.

– Posso e vou. As minhas duas bolsas medicinais.

Kevin colocou a mão sobre a réplica que repousava no meio do seu peito.

– Não sei, Vó. Será que é uma boa ideia abrir mão do seu poder assim?

– Ah, u-we-tsi, uma bolsa medicinal não tem poder por si só. Ela apenas simboliza o poder de quem a fez. E eu posso simplesmente fazer outra, assim como provavelmente a Outra Sylvia Redbird fez no mundo de Zoey – ela puxou a bolsa com miçangas debaixo da sua blusa e levantou a tira de couro por sobre a cabeça, entregando-a para Kevin. – Invoque os seus espíritos.

Kevin pegou a bolsa medicinal depois de apertar a mão fria de sua avó, e então ele levantou os olhos para Dragon.

– Pode me ajudar a ficar em pé?

O poderoso Guerreiro segurou o cotovelo de Kevin, erguendo-o. Kevin ficou em pé, cambaleando levemente quando pontos brilhantes apareceram na sua visão, mas ele logo se estabilizou. As suas costas estavam sensíveis e doloridas de um ombro a outro, mas a sua tontura passou. Ele não ia conseguir correr uma maratona, mas tinha certeza de que não iria cair. De novo.

Então ele percebeu que não tinha a menor ideia do que fazer em seguida.

– Hum, Anastasia, como eu invoco os espíritos?

– Quando eles vieram até você antes, foi na hora em que você tinha aberto o seu ferimento, então estava sangrando bastante, e você tinha acabado de dizer algo sobre querer consertar as coisas.

– Então, você acha que eu deveria me cortar de novo e depois chamá-los?

– Eles já não estão aqui? – Vovó fez um gesto indicando a noite gelada lá fora. – Você não pode simplesmente pedir que eles voltem até você?

Kevin olhou questionador para Anastasia, que deu de ombros e assentiu.

Ele estalou as juntas dos dedos e balançou as mãos enquanto se movia para mais perto da entrada da caverna. Kevin limpou a garganta, respirou fundo e abriu a boca para gritar sabe-a-Deusa-o-quê, mas hesitou. Talvez eu deva pensar antes de falar... ou, mais especificamente, deva rezar. Kevin fechou a boca. Fechou os olhos. E baixou a cabeça.

Por favor, me ajude, Nyx. Isso tudo está muito acima da minha capacidade... e não estou falando só dos espíritos. Eu quero ajudar a Resistência, mas sou só um garoto. Não sou nem tão velho quanto a Zo, nem tão experiente. Eu prometo que vou tentar fazer a coisa certa e seguir o caminho que você quer que eu siga. Você pode me dar uma ajudinha para que eu continue seguindo esse caminho?

Kevin levantou a cabeça e encarou o gelo e a névoa mágica que tinham afastado Stark.

– Espíritos da água nos protegeram com gelo e névoa... – ele murmurou para si mesmo, pensando em voz alta. – E os espíritos são ligados aos elementos. – Kevin pensou bastante. E então ele deu um suspiro gigante. – Espíritos da terra!

Sorrindo, ele se virou e encontrou os olhares confusos que Anastasia, Dragon e sua avó estavam dando na sua direção.

– Acho que descobri! – Ele encarou a noite de novo e, com mais confiança do que sentia, falou com uma voz alta e clara. – Espíritos do ar, fogo, água e terra, eu sou Kevin... – ele hesitou um instante. E então ele sabia exatamente o que precisava dizer e como tinha que dizer. – Eu sou Kevin Redbird e, com a minha afinidade concedida pela Deusa e pelo meu direito de sangue, o mesmo sangue que pulsou forte nas veias daqueles que foram protetores desta terra, eu invoco vocês, principalmente aqueles que são espíritos elementais da terra! Espíritos que já estão por aí na montanha, por favor, venham até mim!

Foi como se a noite inspirasse fundo, segurasse o fôlego e então, ao expirar, soltasse a magia. Anastasia e Vovó Redbird arfaram quando uma revoada de espíritos, alterando a sua forma de vaga-lumes para fadas aladas, subiu voando desde a parte de baixo da montanha até o alto. Eles pairaram diante da caverna, iluminando a noite gelada, de modo que Kevin pôde ver claramente as rochas enormes que pontilhavam a área íngreme ao redor deles começarem a brilhar. Então figuras emergiram, como se elas estivessem encolhidas dentro das pedras dormindo, aguardando o chamado de Kevin. Eles eram maiores do que os espíritos vaga-lumes – tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ou dois anos. Os espíritos da rocha eram inacreditavelmente lindos. Pareciam não ter um gênero definido; a pele dos seus corpos tinha a aparência exata dos minúsculos veios de quartzo compacto que marmorizavam o arenito de Oklahoma de onde emergiram – brilhavam como se fossem acesos por dentro. Kevin percebeu que eles eram o que a princípio ele achara parecido com fogos de artifício de Quatro de Julho. Os seus pés delicados não tocaram o chão quando eles flutuaram na direção dele.

– Magia Antiga! – o corvo de Anastasia grasniu ao levantar voo da caverna.

Uma movimentação à sua direita e à sua esquerda atraíram a atenção de Kevin, e ele assistiu à casca nodosa dos carvalhos antigos e desfolhados pelo inverno ondular se levantando como ondas de calor de uma estrada asfaltada de Oklahoma no verão. De dentro das árvores, os espíritos se materializaram. Kevin teve que conferir se a sua boca não estava aberta (uma olhadela para Dragon mostrou que o Guerreiro estava de olhos arregalados e de boca aberta). Os espíritos das árvores eram as coisas mais perfeitas que ele já tinha visto desde que fora apresentado para Aphrodite no mundo de Zo. Eram todos femininos. A sua pele era de um marrom terroso como casca de árvore, mas, em vez de ser nodosa e antiga, parecia veludo. O cabelo flutuava ao redor de cada uma delas, caindo bem abaixo da cintura, em todos os tons de folhagens: o verde-limão brilhante da primavera, o jade forte do verão e o dourado avermelhado e fúcsia do outono. Elas eram tão únicas como as árvores de onde cada uma surgira. No começo, Kevin achou que os seus corpos eram cobertos de tatuagens, mas, quando elas se moveram graciosamente para mais perto, ele percebeu que elas eram, na verdade, cobertas por uma miríade de diferentes plantas da floresta – samambaias, cogumelos, flores e musgo – em vez de roupas.

Os diferentes tipos de espíritos elementais formaram um semicírculo em volta da boca da caverna, onde eles aguardavam silenciosamente na chuva congelante que ainda caía. A luz dos espíritos vaga-lumes atingiu o gelo que já tinha começado a cobrir a montanha, fazendo aquela pequena área brilhar como um diamante.

– Olá – Kevin disse, esperando que o sorriso enorme que ele não conseguia tirar do rosto não fosse inapropriado. – Hum, obrigado por terem vindo.

Um espírito da árvore foi mais para a frente. Ela era mais alta que as outras, e o seu cabelo era laranja, vermelho e dourado, como um poderoso carvalho no outono. O seu corpo era flexível, curvilíneo e mal coberto pela folhagem delicada de uma avenca.

– Garoto Redbird, não esperávamos que você repetisse o seu chamado, principalmente porque as nossas crianças ainda estão cuidando do seu pedido.

A voz dela era inesperada – agradável e doce, como a sombra de um velho carvalho em um dia quente de Oklahoma, mas também repleta de uma força que fez os galhos nus de todas as árvores próximas tremerem.

– Peço perdão. Eu não queria perturbar vocês – Kevin disse rapidamente.

– Você nos entendeu mal. Não estamos reclamando. Só quisemos demonstrar surpresa. Nós não somos despertados há muitas eras. As crianças se divertiram esta noite. – Ela ergueu uma mão, com a palma para cima, recolhendo o gelo de modo que ele revestiu a sua pele de veludo escura, deixando-a com a cor de cristal de quartzo esfumaçado. – Embora a água possa ter sido exuberante demais. – Ela chacoalhou o gelo da sua mão e do seu braço, e choveu ao redor dela, com as gotas faiscando na pálida luz da lua. – E elas realmente apreciaram o sabor do sangue indígena, por mais distante que seja a linhagem.

Kevin escutou a sua avó dar um grunhido irônico atrás dele, mas a sua atenção continuou focada no espírito.

– As suas crianças nos salvaram hoje – ele disse. – Por favor, agradeça a elas por mim.

O espírito inclinou a sua cabeça para o lado, como um passarinho, analisando-o.

– Você já agradeceu, Garoto Redbird, com o seu sangue. Você não precisava nos chamar para isso.

– Essa não é a única razão pela qual eu chamei vocês. Eu esperava que vocês pudessem me ajudar de novo.

Os olhos dela, escuros e amendoados, faiscaram com um brilho que Kevin achou ser malicioso.

– De qual outro serviço você precisa e qual o pagamento que você propõe, Garoto Redbird?

– São duas coisas – Kevin respondeu. – Primeiro, nós realmente precisamos que esta caverna fique maior e melhor. Sabe, mais ou menos... – ele hesitou e deu uma olhada rápida para Dragon. Então sussurrou para o Guerreiro. – Quantas pessoas mais ou menos precisam caber lá dentro?

Dragon apenas ficou olhando para ele, ainda boquiaberto, mas Anastasia deu um passo à frente rapidamente.

– Seria adorável se a caverna pudesse abrigar cem pessoas.

Kevin pensou que aquilo parecia coisa demais para pedir, mas ele voltou sua atenção para o espírito da árvore e falou com muito mais confiança do que de fato sentia.

– Vai ser ótimo se a caverna for grande o bastante para abrigar cerca de cem pessoas.

O espírito nem piscou ao ouvir o número.

– E o segundo serviço que você requisita?

– O que as suas crianças fizeram por nós esta noite... escondendo-nos do Exército Vermelho e Azul... bom, hum, vocês poderiam continuar a fazer isso? Por favor? – ele disse. Como ela não respondeu, ele acrescentou: – Nós também temos nossas crianças e inocentes que precisam de um lugar seguro, e esta montanha seria perfeita se a caverna fosse maior. Eu prometo que nós vamos respeitar a montanha. Não vamos construir mais nada aqui, e vamos manter tudo completamente limpo e sem bagunça.

– Ah, entendo. Você está pedindo santuário permanente.

Atrás dele, Anastasia sussurrou alarmada.

– Pare, Kevin. Você está pedindo demais.

Kevin a ignorou. Ele já havia medido se estava brincando com a sorte com os espíritos, mas ele percebeu que tinha duas oferendas para eles, então ele podia também pedir por dois serviços.

– Sim. Eu estou pedindo santuário, na forma de uma nova caverna, e a sua proteção, mas não de maneira permanente. Eu só solicito essa proteção até que eu restaure o equilíbrio entre Luz e Trevas neste mundo. Então nós não vamos precisar nos esconder mais.

– E o que você tem a oferecer como pagamento por esses serviços?

Kevin ergueu a bolsa medicinal que estava em volta do seu pescoço e a segurou, junto com a bolsa gêmea, mostrando-as para o espírito. Ela foi para a frente, não exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não mexeram no chão no qual eles pisaram. Ela chegou tão perto de Kevin que ele conseguiu sentir o seu cheiro – ela tinha todos os aromas do outono: a canela das folhas que caem, o frescor acentuado do primeiro dia frio depois de um longo e quente verão, a riqueza das raízes grossas se estendendo para o fundo da terra fértil. Ao se dar conta de que a estava encarando, ele se sacudiu mentalmente quando ela pegou as bolsas.

O espírito levou as bolsas até seu rosto, cheirou-as e colocou a língua para fora, sentido o gosto de cada uma. Ela piscou os olhos, surpresa.

– Elas são de mundos diferentes.

– São – ele confirmou. – Pagamentos de dois mundos diferentes por dois serviços diferentes.

– O seu pagamento é mais interessante do que poderoso. Vamos ver se é interessante o bastante.

O espírito da árvore deu as costas a ele, voltando-se para os outros que se reuniram ao som do seu chamado em um semicírculo frouxo em volta da frente da caverna. Ela falou rapidamente com eles, usando a estranha linguagem que era mais música do que palavras.

Em resposta, um espírito de cada um dos diferentes grupos deu um passo à frente, fazendo uma série de assobios e sons de estalos parecidos. Depois que todos tiveram a sua vez, o espírito da árvore abaixou a cabeça de leve antes de se voltar de novo para Kevin. Quando ela falou, a sua voz entrou em uma cadência musical repetitiva que o fez lembrar as vozes que ele havia escutado quando os outros espíritos aceitaram o seu sangue mais cedo, só que desta vez o poder na voz do espírito fez uma pressão contra a sua pele como a ameaça de uma tempestade com raios e trovões.

“Nós aceitamos este pagamento – esta magia

de mundos feitos em dois

Formada da sabedoria ancestral e dada

com amor para depois

Em troca –

A terra vai se mover

O ar vai escutar

A água será testemunha

E o fogo que aquece e impunha

Mas atenção ao meu comando, Garoto Redbird

Nem uma árvore viva deve destruir

Ou o nosso acordo irá para sempre ruir

E é dito – que assim seja!”

Então o espírito da árvore abriu a boca de um jeito impossivelmente amplo, dando a Kevin uma visão desconcertante dos seus dentes brancos e afiados, e engoliu uma das bolsas por inteiro. Em seguida, com um movimento tão rápido que para Kevin foi só um borrão, ela atirou a segunda bolsa para o ar, onde ela explodiu. Pedaços dela começaram a cair junto com a chuva de gelo, e o tempo desacelerou quando os espíritos começaram a esvoaçar em volta, alimentando-se dos restos da bolsa medicinal de Vovó Redbird como um cardume de piranhas lindas, mas mortais. Durante todo esse processo, eles piaram, assobiaram e cantaram uma canção sem palavras, mas cheia de alegria.

O tempo acelerou de novo, e o espírito da árvore olhou para um local atrás de Kevin, onde Vovó Redbird estava parada em pé, do lado de dentro da entrada da caverna.

– Mulher Sábia, a sua essência é deliciosa. Você controla o seu próprio tipo de poder da terra. Eu irei até você um dia, se alguma vez você precisar de mim.

Vovó Redbird abaixou a cabeça em um reconhecimento respeitoso para o espírito antes de responder.

– Se algum dia eu tiver uma necessidade tão grande que estiver disposta a pagar o seu preço, eu invocarei você, adorável espírito da árvore.

– Você e esse filho do seu sangue podem me chamar de Oak.

Desta vez, quando sua avó abaixou a cabeça, Kevin a imitou.

– Obrigado, Oak – ele falou.

– Você já me agradeceu. E o seu pagamento estava delicioso. Agora, o seu grupo deve sair da caverna enquanto nós trabalhamos.

Dragon e Vovó Redbird saíram da caverna com Kevin, mas Anastasia fez uma pausa na boca da caverna para fazer um chamado lá para dentro.

– Shadowfax, Guinevere! Venham, vocês dois. Sei que está frio e molhado aqui fora, mas vocês têm que sair da caverna.

Lá do fundo, dois gatos emergiram: um gato maine coon enorme, com cara de descontente, e um gato elegante cor de creme que Kevin tinha quase certeza de que era um siamês. Ambos estavam com as orelhas grudadas nas cabeças enquanto caminhavam até Dragon para pular nos seus braços.

– Pronto. Agora, venha para trás com a gente, Anastasia.

A companheira de Dragon se juntou a eles, e Kevin colocou o braço ao redor de sua avó, tentando protegê-la o máximo que podia daquela chuva que congelava os ossos, mas ele ainda estava fraco e se viu cambaleando, a menos que se apoiasse com força nela. De repente Dragon passou os dois gatos para a sua companheira, e então estava ao lado de Kevin, agarrando o seu outro braço, estabilizando-o o suficiente para que ele conseguisse subir entre duas rochas, que quase os protegiam da umidade. Com Dragon de um lado e sua avó de outro, Kevin observou como, em menos tempo do que tinha levado para expulsar o Exército Vermelho da montanha, os espíritos realizaram um milagre. E então, sem nem mais uma palavra, eles se dissolveram de novo em árvores, em pedras e na noite escura e fria.


9

Zoey

– Só faz alguns dias desde que Kevin foi embora, mas sinto como se fossem meses. Por favor, Nyx, cuide dele e não deixe que ele se meta em muitos problemas. – Eu acendi a vela roxa e então a coloquei aos pés da maravilhosa estátua de Nyx que ficava como ponto principal do jardim entre os prédios da escola e o templo da Deusa. Sua chama tremulou ali, acrescentando a sua luzinha alegre às outras velas oferecidas, cada uma representando uma oração que tinha sido elevada à nossa Deusa.

Então eu dei um passo para trás e me sentei no banco esculpido em pedra ao lado da minha melhor amiga, Stevie Rae.

– Sim, Nyx, por favor, fique de olho no irmão de Z no Outro Mundo – Stevie Rae disse. – E eu entendo o que você quer dizer, Z. É esse tempo. Dois dias atrás a gente estava enterrado em neve, e hoje está fazendo quase vinte graus. Faz com que pareça que passou muito mais tempo. Ei, sabe o que é ainda mais estranho do que o clima de Oklahoma?

– Não, porque o clima de Oklahoma é a coisa mais estranha do mundo.

– Né? Mas a coisa ainda mais estranha é que eu sinto falta disso. Muita. Quer dizer, o clima de Chicago é bem louco também, mas não no nível daqui. Eu sinto falta do gelo, do vento e de como as tempestades aparecem do nada como um estouro da boiada que cai do céu.

– Aham – eu respondi automaticamente, com os olhos fixos no modo como a luz das velas brincava através da pele de mármore de Nyx, enquanto minha mente estava bem longe. Um mundo inteiro de distância, para ser mais precisa.

– Você ficaria surpresa com todas as coisas de que vai sentir falta quando sair de casa.

– Sim. – Meu olhar se desviou da estátua e se voltou para a noite perfeitamente clara e cheia de estrelas.

– Como carrapicho-de-carneiro. Sabe, aquele tipo que machuca quando você puxa o espinho para fora da pele e também quando ele entra em você.

– Aham.

– Ah, e carrapato. Eu morro de saudade de carrapato.

– Sim, eu também.

– Hum, Z. Você não.

– Certo.

– Zoey Redbird, pare de sonhar acordada!

Stevie Rae deu um cutucão no meu ombro. Com força.

– Ei! O que foi isso?

– Z, sério? O que eu acabei de dizer?

Eu mordi a bochecha.

– Hum, alguma coisa sobre lã? O que não faz muito sentido. Você está bem? Eu estava falando sério quando disse que você e Rephaim não precisam voltar para Chicago. Vocês não precisariam ter ficado lá nesse último ano se eu soubesse que você estava triste.

Stevie Rae se virou no banco para me encarar.

– Zoey, você confia em mim, não confia?

– É claro que confio em você.

– Então, por favor, me conte o que tem de errado.

Eu suspirei.

– Não tem nada...

Stevie Rae levantou a mão rápido, com a palma para fora, com um sinal para parar.

– Não. Conte essa pra outro. Eu sei que é mentira e, depois de tudo que a gente passou, é quase ofensivo.

– Ei, você sabe que eu jamais ofenderia você de propósito – eu disse, sentindo-me péssima por ter feito minha melhor amiga se sentir péssima.

– Então me conte o que tem de errado.

Suspirei de novo.

– Estou preocupada com Kevin. Bem, com o Outro Kevin. Não o Kevin daqui. Na verdade, eu e ele vamos nos encontrar no Andolini’s para comer uma pizza antes que as férias de inverno dele acabem.

– Só isso?

– Bom, sim. Quase. Quer dizer, nós ainda não sabemos o que fez todas as rosas ficarem escuras e nojentas antes da visão de Aphrodite, mas, se foi Neferet, eu esperaria que ela fizesse algo mais. Qualquer coisa mais do que isso. E os Guerreiros que fazem guarda na gruta dizem que nada mais aconteceu por lá.

– As rosas voltaram ao normal.

– O quê? Voltaram? Como você sabe disso?

Stevie Rae abriu o sorriso.

– O jardim de rosas é mais uma das milhares de coisas de Tulsa da qual eu sinto falta. Rephaim me fez uma surpresa noite passada e fomos dar um passeio pelos jardins depois de jantar no Wild Fork. Foi quando ele me deu isto. – Ela apalpou o colar de prata cintilando no seu pescoço. Pendurada na correntinha brilhante, havia uma réplica perfeita do estado de Oklahoma como um pequeno talismã.

– Own, que lindo. Eu nem tinha reparado. Desculpe.

– Z, tem muita coisa que você não está reparando nos últimos dias. Eu... eu queria que você me deixasse ajudar.

– Não há nada que você possa fazer. Eu só tenho que descobrir um jeito de parar de me preocupar com Kevin – e de pensar em Neferet... na Neferet que está lá, no comando, provavelmente massacrando milhões de inocentes, assim como ela assassinou a Outra Zoey! Mas eu não deixei a minha boca pronunciar essas palavras em voz alta. Se eu deixasse, tinha medo de não parar mais, de não parar de falar sobre Neferet, de não parar de pensar que eu precisava ajudar Kevin.

E além disso havia Heath. O Heath vivo. O Outro Heath, que estava de luto pela Outra Zoey, que eu havia acabado de ver Neferet assassinar.

– É só o Kevin? – Stevie Rae perguntou.

– Sim. Não.

– Hum, Z, qual dos dois?

– Não – eu disse com tristeza. – Também tem a idiota da Neferet e qualquer mal novinho em folha que ela está aprontando. Além disso, bom, tem Heath – então eu me esforcei para continuar rápido. – E a minha mãe. Ela está viva lá também. E tem Outra Vovó Redbird. Você consegue imaginar como deve ter sido difícil a minha morte para ela?

– Z! Aí está você! – Kramisha chegou falando alto e usando um par de botas de salto vermelhas brilhantes na altura do joelho. – Chega pra lá, Stevie Rae. Eu tenho muito mais peso na minha bunda do que vocês duas, branquelas magrinhas.

Ela empurrou Stevie Rae com o quadril, que deslizou para mais perto de mim, e nós nos ajeitamos rápido para abrir espaço para Kramisha.

– Ei, eu não sou branca. Ou pelo menos não sou cem por cento branca – eu protestei.

– Desculpe. Esqueci que você tem um pouco de cor aí, Z. Mas a sua bunda ainda é pequena.

– Gostei das suas botas novas – Stevie Rae falou. – Elas têm a cor exata da sua peruca. Como você faz isso?

– Talento. Puro talento. E essas botas não são novas, mana. Mas este macacão colante de mulher-gato é. Que tal? Miau! – Ela fingiu dar um chiado de gato para Stevie Rae, que começou a rir.

– Kramisha, eu te amo! E senti falta tanto de você quanto de Tulsa – Stevie Rae disse.

– Você vai me amar mais ainda daqui a um segundo. Z, eu quero ir para Chicago.

– Hum? – eu perguntei. – Mas você mal começou a reconstrução do Restaurante da Estação.

– Olha só, todo mundo sabe que Damien e Outro Jack podem fazer um trabalho melhor do que eu nessa reconstrução. Z, eles são gays. E eles chamaram mais gays.

Eu revirei os olhos.

– Kramisha, isso é um estereótipo horrível.

– Diga que isso não é verdade que eu calo a boca. – Ela fez uma pausa e, como eu não disse nada porque, bem, Damien, Outro Jack e Toby, o diretor do Centro de Igualdade de Oklahoma, eram todos super incríveis em design de interiores, ela continuou. – Onde eu estava? Ah sim – Kramisha se virou para Stevie Rae. – Você quer voltar para Chicago?

– Bem, hum, não exatamente, não de modo permanente, mas Z e eu já falamos sobre voltar para Tulsa de vez assim que eu deixar as coisas organizadas na Morada da Noite de Chicago.

– “Organizadas” quer dizer “depois de escolher a sua substituta”? – Kramisha perguntou.

– Imagino que sim. Certo, Z?

– Claro. A menos que você já tenha alguém em mente, como Damien tinha – eu disse.

– Queria ter, mas não escolhi ninguém. Há algumas Grandes Sacerdotisas que têm potencial, mas ninguém que se destaque – ela falou.

– Eu vou fazer isso – Kramisha afirmou.

– Fazer o quê? Você está me deixando bem confusa, Kramisha. Vá direto ao ponto – eu pedi.

– Certo. A questão é que eu não posso voltar para a estação. Não agora. Eu preciso me dar um tempo. Eu... eu ainda consigo ouvir os gritos. – Kramisha fez uma pausa e tirou algumas mechas vermelhas e brilhantes do seu rosto com uma mão trêmula. – Stevie Rae é uma Grande Sacerdotisa vampira vermelha. Ela e Rephaim se encaixam bem na estação. Os novatos gostam deles, o que eu acho meio estranho, já que ele é um pássaro boa parte do tempo, mas que seja. Não gosto de julgar. – Ela deu de ombros. – E você sabe que sou boa em organizar tudo. Eu vou para Chicago e deixo tudo organizado e encaminhado e, quando isso já estiver resolvido, talvez os gritos que eu ouço à noite já tenham sido resolvidos também, e então eu posso vir para casa de vez – Kramisha concluiu apressada.

– Eu não sabia – eu falei em voz baixa, estendendo o braço por cima de Stevie Rae para pegar a mão de Kramisha. – Kramisha, sinto muito.

– Você anda distraída. Ninguém te culpa por isso, Z. O Outro Kevin passou só um tempinho aqui, mas todo mundo que conheceu o seu mano gostou dele. Muito.

Eu sacudi a cabeça.

– Não, eu sou a sua Grande Sacerdotisa, e eu estou fazendo um trabalho ruim.

– Você vai voltar a ser o que era logo, assim como eu. A gente só precisa de tempo e um pouco de descanso.

– Você não vai ter muito descanso se for para Chicago. Aquela Morada da Noite é agitada pra caramba – Stevie Rae disse. – E eles não têm nem um programa equestre. Andei falando com Lenobia sobre...

– Sei tudo sobre isso. Também andei falando com Lenobia – Kramisha falou.

– Ela quer ir para Chicago com você? – eu perguntei, sem saber ao certo se deveria ficar surpresa, irritada ou aliviada por obviamente haver um monte de coisas rolando ao meu redor sobre as quais eu não tinha a menor ideia.

– Só o suficiente para resolver a questão dos cavalos. O que você acha, Grande Sacerdotisa?

O que eu acho? Eu encarei a estátua de Nyx. Acho que eu preciso descobrir um jeito de ajudar Kevin sem ferrar totalmente com a minha própria vida. Decidi falar outra coisa em voz alta.

– Eu acho que você é altamente capaz. Você e Lenobia vão fazer um belo trabalho, desde que Stevie Rae não se importe de você assumir o lugar dela imediatamente.

– Isso significa que Rephaim e eu podemos ficar aqui e não precisamos mais ir embora?

– É isso que significa, sim – eu respondi.

– Então eu não me importo nem um pouquinho! Kramisha, você me deixou mais feliz do que urubu em cima de carniça! – Stevie Rae atirou os braços ao redor de Kramisha, que deu um grunhido, abraçou-a rapidamente de volta e então se afastou, endireitando a sua peruca.

– Cuidado com o cabelo. Sei que não parece, mas todo esse glamour pode se estragar rapidamente se o cabelo estiver errado.

Eu abri a boca para perguntar para Kramisha em quanto tempo ela estaria pronta para partir quando a primeira sensação me atingiu. Ela começou no meio do peito, apenas um pequeno calor começando a espalhar, mas não tão pequeno que passasse despercebido. A sensação pulsou e cresceu, como se eu tivesse acabado de subir correndo as escadas de um estádio em um dia quente (o que eu absolutamente não faria, a menos que alguém estivesse me perseguindo).

Eu tossi. Enxuguei o meu rosto, que de repente ficou suado. Limpei a garganta. Tossi de novo.

A minha mão se levantou como se eu não tivesse nenhum controle sobre ela e foi até o centro do meu peito. Minha palma pressionou a minha pele.

Não havia nada ali. Nenhum calor. Nada.

Mas eu jurava que tinha sentido algo. Alguma coisa quente, forte e estranhamente familiar.

– Zoey! Você está me ouvindo?

Eu olhei para cima e vi Stevie Rae em pé sobre mim com Kramisha ao seu lado. Eu ainda estava sentada no banco, mas elas tinham se levantado e estavam debruçadas sobre mim, obviamente preocupadas.

– Sim. Eu estou te ouvindo. Eu... eu estou bem. Eu acho.

– O que aconteceu? Você congelou com a mão sobre o peito, quase como se estivesse se agarrando às suas pérolas. Só que você não está usando um colar de pérolas – Kramisha falou.

– Não sei. Foi uma sensação estranha. Já passou.

O som de pés correndo veio por trás de nós, e de repente Stark estava lá, agachado ao meu lado, com as mãos nos meus joelhos, enquanto ele analisava o meu rosto.

– Zoey! O que foi?

– Você sentiu também?

– Calor? E alguma outra coisa. Algo que não consegui identificar. – Ele tocou o meu rosto, tirando o meu cabelo da minha bochecha úmida. – Z, a sua respiração está ok? O seu peito está doendo?

– Não, não doeu. Não senti dor nenhuma. Só calor e... uma sensação estranha. – Eu estava aliviada e com medo ao mesmo tempo. Se Stark sentiu também, eu não tinha imaginado aquilo. Mas, por outro lado, se Stark sentiu, o que quer que tenha acontecido foi real. E isso podia significar más notícias de verdade.

– Acho que a gente tem que levar Z para a enfermaria para que ela possa ser examinada – Stevie Rae disse.

Rephaim devia estar com Stark, porque de repente ele estava ali também, segurando a mão de Stevie Rae e me analisando com uma concentração típica de pássaro.

– Enfermaria? Que diabos está rolando? Z, você se machucou?

Eu desviei os olhos de Rephaim e vi Aphrodite em pé ao lado de Darius (Deusa, será que estavam todos no Ginásio com Stark?). Ela estava com as mãos no quadril e me olhava intensamente, com os olhos estreitos, com os quais ela provavelmente queria demonstrar preocupação, mas que na verdade estavam mais dizendo algo como “AiminhaDeusa, por que você está me enchendo agora?”.

– Eu não preciso ir para a enfermaria. Estou bem. Sério – eu insisti.

– E isso não foi algo que Z fez para si mesma – Stark afirmou. – Foi algo que aconteceu com ela.

– Isso não faz algum sentido – Kramisha disse.

– Ou, dito corretamente, isso não tem nenhum sentido. Gramática: errada. Sentimento: certo – Aphrodite provocou.

– Isso tem sentido sim – eu falei rapidamente, antes que Kramisha conseguisse espetar Aphrodite verbalmente. – Stark quis dizer que não tem nada de errado comigo. Que, seja o que for que nós sentimos, foi algo que aconteceu fora de mim. E isso foi mais estranho do que assustador.

– Ei, o que está acontecendo aqui? – Damien perguntou quando ele e Outro Jack se juntaram ao grupo. Ambos estavam segurando velas votivas perfeitas que eles obviamente tinham a intenção de acender aos pés de Nyx. – Z, você está bem?

Eu suspirei. Às vezes, era realmente como se eu tivesse zero privacidade.

– Estou bem. Não foi nada.

– Não diga isso – Stark falou sério quando sentou ao meu lado, colocando o seu braço ao meu redor de modo protetor. – Você está bem agora. Nós estamos bem, mas não quer dizer que não foi nada. Alguma coisa aconteceu. Algo que tocou você ou a mim ou a nós dois.

Foi a vez de Damien se agachar ao meu lado.

– Conte-me o que você sentiu.

Eu descrevi o súbito calor e observei Damien ficar cada vez mais pálido enquanto Stark assentia em concordância com a minha descrição. Mas, antes que Damien pudesse dizer qualquer coisa, Aphrodite se adiantou.

– Ah, que merda, seus imbecis! É óbvio o que acabou de acontecer.

– Aphrodite, é super ofensivo chamar a gente de imbecis – Stevie Rae protestou.

– Caipira, é só um chute, mas aposto que, antes de eu me juntar a este grupo improvisado, você fez pelo menos uma comparação terrível que tinha a ver com a sua mamãe ou com carrapatos. Acertei?

– Quase – Kramisha falou. – Tinha a ver com urubu em cima de carniça, o que é nojento. – Ela olhou para Stevie Rae e deu um sorriso de desculpas. – Só estou dizendo a verdade.

– Certo – Aphrodite continuou. – E isso é ofensivo, mas você vai continuar com suas analogias de caipira e, já que você vai fazer isso, também vou continuar chamando um imbecil de imbecil quando estiver presenciando vocês agindo feito imbecis.

– Ai minha Deusa, parem de discutir! – Eu senti como se minha cabeça pudesse explodir. – Aphrodite, você realmente sabe o que aconteceu?

– Claro que sim – ela respondeu. – É Magia Antiga. E aquele som de tapa na cara que você ouviu metaforicamente está te dando vontade de cobrir o rosto de vergonha enquanto você se dá conta de que estou certa.

– Ela está certa – Damien disse enquanto se levantava e segurava a mão de Outro Jack de novo. – Era o que eu estava pensando também.

Eu apenas fiquei sentada, incapaz de dizer qualquer coisa porque eu estava lembrando do tempo que eu passei na Ilha de Skye, do talismã de mármore de Skye que eu trouxe para Tulsa. Daquele calor e do poder daquela magia, e de como ela quase me engoliu e me transformou em alguém tão parecido com Neferet que não merecia continuar sobrevivendo.

– Z?

Eu podia sentir a preocupação de Stark e deixei que ela me tirasse dos meus pensamentos.

– Aphrodite e Damien estão certos – eu afirmei. – Não percebi isso na hora porque foi só um eco distante da real sensação de brandir a Magia Antiga.

– Então, isso só pode significar que alguém está usando Magia Antiga de novo – Stevie Rae concluiu.

– E isso é ruim – Rephaim falou.

– Ruim mesmo – Kramisha concordou.

– Você deveria ligar para a Rainha Sgiach – Aphrodite sugeriu. – Ela é a especialista em Magia Antiga.

– Eu adoraria – eu disse. – Mas ela está de luto, o que significa que ela se retirou totalmente do mundo exterior. Eu sei. Eu venho tentando falar com ela uma vez por semana, e já fiz isso ontem. Ela ainda está totalmente off-line e o telefone dela só chama, chama, e ninguém atende.

– Ela ainda está sem atender o telefone? Quanto tempo já faz, quase um ano desde que o Touro Branco atacou Skye na mesma noite em que Neferet nos atacou aqui? Já era de imaginar que ela pelo menos estivesse dando uma olhada no Facebook – Aphrodite falou.

Eu levantei os olhos para Aphrodite. Ela era minha amiga, uma poderosa Profetisa de Nyx e, com a sua nova Marca azul e vermelha, uma vampira adulta, mas ainda assim ela podia soar como uma criança mimada e egoísta.

– Ela e Seoras foram companheiros por séculos. Acho que um ano de luto não é nada perto disso. Você já teria seguido em frente se Darius tivesse sido assassinado naquela noite?

Aphrodite empalideceu e se recostou em Darius.

– Não. Não, não teria. Você está certa, Z. Peço desculpas por ter soado como uma imbecil.

– Aphrodite, você sabe que Damien podia ajudar você a melhorar o seu vocabulário para que você não tenha que usar palavras como... – Stevie Rae tinha começado um novo sermão quando a segunda onda daquela sensação me atingiu.

Eu ofeguei e coloquei meus braços ao redor do meu corpo, enquanto Stark me abraçava forte.

– Está tudo bem. Está tudo bem. A gente está bem. Vai passar – Stark murmurou frases para me tranquilizar.

– O que foi? O que está acontecendo? – Aphrodite chegou mais perto de mim, ombro a ombro com Damien.

– Você está com dor? – Damien perguntou.

– Nã-não – eu respondi com voz trêmula. – Eu só sinto como... como...

– Como se alguém estivesse pisando no seu túmulo – Stark concluiu por mim.

– A-alguém que usa Magia Antiga – eu acrescentei e Stark assentiu em concordância.

Como meu Guerreiro Juramentado, Stark compartilhava as minhas sensações. A ligação Grande Sacerdotisa-Guerreiro era estabelecida dessa forma para que nossos protetores sempre soubessem quando precisávamos deles. Mas havia momentos, como agora, em que eu preferia poder apertar um botão e não fazer ele passar por essas coisas estranhas que aconteciam frequentemente comigo.

– Está sumindo – Stark disse.

Eu soltei um longo suspiro de alívio.

– Sim. Acabou.

– Z, de onde isso está vindo? – Stevie Rae perguntou.

– Não tenho ideia – respondi. – Stark, você sabe de algo?

Ele balançou a cabeça.

– Não, acho que eu não estou tendo a sensação de fato, mas apenas um eco do que você está experimentando.

– Bom, está ligado a você – Damien falou. – Seja a magia propriamente dita ou a pessoa que está mexendo com ela.

– E se Sgiach invocou Magia Antiga? Será que pode ser isso que você sentiu? Vocês duas ficaram muito próximas – Stevie Rae deu um palpite.

– Não acho que seja isso – eu respondi. – A Rainha Sgiach é guardiã da Magia Antiga, e eu sei que ela se manifesta na ilha dela com muita frequência, mas, a menos que eu esteja lá com ela, nunca senti nada.

– Ela usou Magia Antiga na batalha contra o Touro Branco na noite em que sepultamos Neferet – Damien lembrou. – Você não sentiu nada?

Balancei a cabeça.

– Não.

– Merda! Será que pode ser Neferet? – Aphrodite disse.

De repente, senti um calafrio.

– Não sei.

– Bom, descubra! – Aphrodite exclamou.

Eu franzi o cenho para ela.

– Você é a Profetisa. Que tal você descobrir?

Ela atirou o longo cabelo loiro para trás.

– Não funciona desse jeito e você sabe disso.

– Além disso, você não precisa de nenhuma Profetisa. Você só precisa de uma Grande Sacerdotisa que possa invocar Magia Antiga. Conhece alguma, Z? – Kramisha perguntou, dando um olhar aguçado na minha direção.

Eu metaforicamente dei um tapa na minha testa.

– Eu devo ser uma imbecil.

– Z! – Stevie Rae bufou.

Fiz um gesto para evitar o que provavelmente seria um sermão politicamente correto enquanto Aphrodite caiu na gargalhada.

– Desculpe. Eu só estava brincando. Na maior parte. Eu sou a Grande Sacerdotisa de quem Kramisha estava falando.

– Não gosto de você mexendo com Magia Antiga – Stark falou.

– Eu não vou mexer com isso – eu argumentei. – Vou só dar uma invocada rápida, só isso.

– Nunca é só isso quando Magia Antiga está envolvida – Stark rebateu sombriamente.

Eu suspirei e concordei silenciosamente com ele.

– Será que a gente deve ir até Skye? Apesar de ela estar de luto, não acredito que a Rainha Sgiach recusaria dar passagem a você.

– Lá é longe demais – Stevie Rae protestou. – Tem que haver um jeito mais fácil. Ou pelo menos um lugar mais perto.

– Eu sei de um lugar mais perto – Rephaim disse.

A atenção de todo mundo se voltou para o jovem Cherokee alto e bonito.

– Ok, estou ouvindo – eu o incentivei a continuar.

– Tem Magia Antiga aqui. Bem aqui nos jardins da escola – ele falou em voz baixa, mas gravemente. – Eu sei porque eu vim dela.

Eu me endireitei no banco, como se o que Rephaim acabou de dizer tivesse entrado na minha mente. O meu olhar se perdeu pelos jardins da escola na direção leste, onde a distância eu mal podia distinguir a silhueta escura de um carvalho enorme e quebrado.

– Rephaim está certo. Há um jeito mais perto, mas eu não tenho muita certeza se vai ser muito mais fácil – eu afirmei.

O olhar de Stark seguiu o meu, e eu o escutei resmungar baixinho.

– Ah, que inferno.


10

Zoey

– Não sei se essa é uma boa ideia – Stevie Rae disse.

– Eu tenho certeza de que não é – Stark falou.

– Zoey, você não deveria fazer um círculo antes de tentar invocar Magia Antiga? – Rephaim perguntou. – Shaylin ainda está aqui, não está? Posso ir chamá-la. E eu vi Shaunee indo para a aula de Teatro com Erik. Posso falar para ela, caso você precise dela aqui também.

– Uau! Definitivamente essa árvore não se parece com a que está no meu velho mundo – Outro Jack exclamou.

– Ok, escutem bem. – Eu dei as costas para o carvalho destruído e encarei os meus amigos. – Eu não vou fazer um círculo. Quero fazer isso de um jeito rápido e simples, sem precisar focar muita energia em Magia Antiga. – Eu me virei para Rephaim. – Obrigada por me lembrar que essa árvore estava aqui. Queria que você e Stevie Rae ficassem – o meu olhar desviou dele e abarcou Aphrodite e Stark –, mas eu quero que todos os outros, exceto Stark e Aphrodite, vão embora. Minha intuição me diz para não tentar fazer um espetáculo para invocar Magia Antiga e, quanto mais gente estiver aqui, maior a bagunça. Eu faria isso sozinha, mas conheço o meu Guerreiro o bastante para saber que isso não é possível.

– Com certeza – Stark afirmou, com jeito de Guerreiro valentão, enquanto olhava sobre o meu ombro para a árvore quebrada, em cuja direção eu nem tinha olhado ainda.

– E Aphrodite é, bom... – minhas palavras sumiram quando percebi que não sabia muito bem como descrever o que Aphrodite havia se tornado.

– Estranhamente ligada a Nyx e poderosa? – Stevie Rae sugeriu.

– Que tal incrivelmente ligada a Nyx e poderosa? – Aphrodite a corrigiu, estreitando os olhos.

– As duas coisas – eu disse.

– E eu vou usar a minha posição de Grande Sacerdotisa e ficar bem aqui com Z – Stevie Rae falou.

– Eu fico com Stevie Rae – Rephaim acrescentou.

– Exatamente como eu esperava – eu concordei.

– O que nós podemos fazer enquanto isso? – Damien perguntou, entrelaçando os dedos com os de Outro Jack.

– Obrigada pela compreensão – eu agradeci. – Você e Jack podem cuidar para que todos os estudantes fiquem lá dentro.

– Claro – Damien respondeu. – Está na metade da segunda aula. Vamos enviar um e-mail de emergência para todos os professores. Ninguém pode ir a lugar nenhum por mais ou menos uns trinta minutos.

– E se alguém sair, Damien e eu vamos enxotar a pessoa direto de volta para a aula – Outro Jack completou, mostrando as covinhas para mim.

– Mas você tem certeza absoluta de que não quer que eu fique? – Damien perguntou. – Eu poderia fazer anotações sobre o que acontecer.

– Na verdade, o que me ajudaria ainda mais do que isso seria se você pudesse pegar aqueles livros sobre Magia Antiga na área restrita do Centro de Mídia, e marcar tudo que você achar que eu preciso ler sobre o assunto.

– Eu posso fazer isso, Z.

– Posso ajudar também? – Outro Jack se ofereceu, olhando para mim com olhos grandes e ansiosos. – Quer dizer, assim que a gente avisar os professores para não deixarem os novatos saírem das salas.

– Claro – eu respondi. – Eu agradeço.

Outro Jack deu um pulinho de alegria, que me fez sorrir, e então ele e Damien saíram apressados de mãos dadas.

– Bom, da minha parte, não preciso ver Magia Antiga nem qualquer coisa do tipo – Kramisha disse. – Tenho que fazer as malas. Z, se um poema vier até mim, eu mando uma mensagem pra você. Beleza?

– Sim – eu respondi, desejando secretamente não receber nenhum poema profético maluco enviado para mim via mensagem de texto com a fonte roxa brilhante que Kramisha usava para escrever.

– Grande Sacerdotisa, eu gostaria de permanecer com Aphrodite.

Meus olhos encontraram o olhar sério de Darius. Eu suspirei, mas assenti.

– Sim, eu entendo isso. Você pode ficar.

Darius fez uma reverência respeitosa para mim, com o punho sobre o coração.

– Ok, Z. Você encontra a gente no refeitório depois? Já está quase na hora do almoço e eu estou ficando irritada de fome – Kramisha disse.

– Sim, combinado. Não vou demorar. – Eu esperava que, ao falar em voz alta, pudesse transformar isso em realidade.

Enquanto meus amigos seguiam de volta para o prédio principal da escola, eu finalmente voltei minha atenção para a árvore rachada.

A aparência dela era horrível. Conforme eu a observei, percebi que deveria ter mandado arrumar tudo meses atrás. Estava assustador. Eu sabia que os estudantes evitavam o muro leste por causa daquilo, e imagino que parte do motivo que me fez adiar fazer qualquer coisa ali era porque aquilo desencorajava novatos a usarem o alçapão escondido no muro atrás da árvore para saírem escondidos do campus. Mas, por outro lado, agora eu era a Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Como se eu fosse realmente tomar conhecimento de cada novato que estava saindo escondido do campus. Era muito improvável.

– Z? Você está bem? – Stark perguntou.

Eu assenti.

– Sim, só estou pensando em mandar arrumar essa bagunça.

– Não. Deixe assim – Aphrodite falou. – Se você quiser fazer algo, faça uma defumação e um círculo de sal para proteção, mas deixe do jeito que está.

Eu me virei para ela.

– Por quê?

Ela indicou a ruína maléfica da árvore sem folhas e o buraco criado na terra de onde Kalona e os seus Raven Mockers haviam saído em uma explosão em um tempo que parecia muito, muito distante.

– Eu posso estar errada, mas para mim parece que essa bagunça é uma lição visível do que acontece quando você brinca com poderes em que é melhor não mexer.

Os meus olhos focaram nos galhos escuros feito garras, onde as folhas se recusavam a nascer.

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho razão. Então, você vai invocar Magia Antiga ou o quê?

Eu queria poder escolher “ou o quê”, mas sabia que essa não era uma opção.

– Alguém tem uma faca?

Juntos, Darius e Stark tiraram adagas que pareciam muito perigosas de sabe-a-Deusa-onde em seus corpos extremamente armados. Eu estendi a mão, com a palma para cima, e falei para Stark:

– Faça um corte.

Ele franziu a testa.

– Que tal eu me cortar e você usar o meu sangue?

– James Stark, eu sou a sua Grande Sacerdotisa e a sua Rainha. Eu disse para você me cortar. Então me corte.

Ele ainda estava franzindo a testa, mas desta vez fez o que eu pedi, rapidamente abrindo um corte raso na parte mais carnuda da palma da minha mão. A adaga dele era tão afiada que eu sequer senti dor. Fechei a mão e a apertei de leve para que o sangue se juntasse em uma quantidade razoável.

– Aphrodite e Darius, por favor, fiquem à minha esquerda. Stark, Stevie Rae e Rephaim, fiquem aqui do lado direito. Eu vou caminhar até a árvore. Deixem-me ir um pouco na frente de vocês. Não façam nada enquanto eu ainda estiver falando coisas com sentido, mas se algo estranho demais acontecer...

– Se alguma merda estranha acontecer, eu vou carregar você para fora de lá – Stark afirmou.

– Não – eu falei, cortando-o. – Coisas estranhas vão acontecer. É Magia Antiga. Não faça nada, a menos que eu pare de me comunicar com você, ou que eu seja puxada para dentro da, hum, árvore. – Fiz uma pausa, esforçando-me para não estremecer ao lembrar da última vez que a Magia Antiga havia me tocado ali. Da última vez eu quase havia me perdido. Encontrei o olhar preocupado de Stark e minha voz suavizou. – Você vai saber se alguma coisa estiver dando errado. Você vai sentir. Só não faça nada a não ser que dê tudo errado. Ok?

– Ok – ele respondeu com relutância.

– Eu te amo e sinto muito que isso esteja te estressando – eu disse.

Os ombros de Stark relaxaram um pouco.

– Eu também te amo, Z, e estresse faz parte do trabalho de um Guerreiro.

Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo e então encarei a árvore. Levantei a minha mão fechada diante de mim e inspirei profundamente três vezes para me centrar. Então hesitei.

– Bom, que inferno. Não sei quem eu devo invocar – eu falei.

– Você me disse que gostou dos espíritos elementais que responderam ao seu chamado em Skye – Stark lembrou.

– Sim, mas aquilo era diferente – eu respondi.

– Não exatamente. Pare de se preocupar tanto com o fato de ser Magia Antiga. Pense nisso em termos mais simples. É uma árvore velha toda ferrada. É só invocar os espíritos da terra – Stevie Rae sugeriu. – É o que eu faria.

– Sim, você está certa. Espíritos da terra. Isso parece o correto – eu concordei nervosamente.

– E pare de ficar tremendo tanto. Eles são só elementais. Você tem afinidade com todos os elementos. Imagine que você está invocando a terra para um círculo – Aphrodite reforçou.

– Essa é mesmo uma boa ideia – eu disse.

– Claro que é. Eu sou cheia de boas ideias. – Ela atirou o seu cabelo comprido e loiro para trás e levantou suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas para mim.

– E se eu tentar ajudar? – Stevie Rae veio para o meu lado. – Não sei muito sobre Magia Antiga, mas eu sou da terra. Vamos invocar juntas. Como a gente faz no círculo.

– Ok, isso faz sentido. Stevie Rae, você começa, e eu vou usar o meu sangue como se eu estivesse acendendo uma vela na terra.

– Facinho! – Stevie Rae limpou a garganta e falou para a árvore quebrada. – Eu sou Stevie Rae, Grande Sacerdotisa vampira vermelha de Nyx, que me presenteou com a afinidade com a terra. Com o poder concedido pela Deusa, eu gostaria de invocar os espíritos ancestrais da terra. – Então ela assentiu e deu um passo atrás, deixando que eu liderasse a invocação final.

Eu estendi a mão de novo, inspirei fundo e disse:

– Espíritos da terra! Espíritos das árvores da Magia Antiga! Eu sou Zoey Redbird. Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx, e eu consigo brandir a Magia Antiga. Com o poder ancestral no meu sangue, eu os invoco e peço que apareçam para mim. – Então, como se eu estivesse atirando uma mão cheia de água para longe de mim, arremessei o meu sangue na casca de árvore nodosa e quebradiça.

Nada aconteceu por um instante, e eu senti o meu coração afundar no peito. Eu ia mesmo ter que voar até Skye e incomodar Sgiach em seu luto? Será que isso poderia ser feito? Ou talvez eu devesse tentar falar com o Conselho Supremo dos Vampiros, o Europeu, aquele que não estava particularmente satisfeito com o fato de os meus amigos e eu termos assumido a liderança na América do Norte em vez deles...

– Ei, Z. Acorde. Tem alguém aqui – Aphrodite sussurrou.

Eu me sacudi mentalmente e fiquei olhando uma figura emergir do centro da árvore partida. Ela era obviamente um espírito da árvore. Alta e graciosa, tinha pele escura – da cor de casca de árvore à meia-noite –, mas não havia nada de rústico nela. Ao contrário, sua pele parecia incrivelmente suave e macia – e havia muita pele visível, pois o vestuário que ela estava usando era composto de delicadas folhagens de samambaia. Quanto mais eu olhava, mais me dava conta de que a samambaia parecia estar rente à sua pele, como uma pintura corporal ou mesmo uma tatuagem. Ela piscou para mim com olhos grandes, escuros e bonitos.

– Olá – eu disse. – Obrigada por atender ao meu chamado.

O espírito inclinou a cabeça para o lado com um movimento parecido com o de um passarinho. Isso fez o seu cabelo espetacular, da cor das folhas do outono, ondular como se estivesse sendo mexido por um vento que afetava apenas o espírito.

Eu estava tentando descobrir como persuadi-la a falar comigo quando o espírito inspirou profundamente, e então os seus olhos grandes e escuros ficaram ainda maiores.

– Outro Redbird? Esta noite está mesmo muito interessante.

Ela saiu do meio da árvore despedaçada, dando um olhar triste para ela enquanto passava a mão no tronco partido. Ela não estava exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não fizeram som nenhum nem remexeram o gramado marrom do inverno sobre o qual ela caminhava. O espírito parou diante de mim, se inclinou para a frente e me cheirou.

– Você é, de fato, uma Garota Redbird.

– Como você sabe o meu nome? – eu falei sem pensar.

– Eu acabei de encontrar outros do seu sangue. Um garoto jovem e uma mulher – a voz musical do espírito hesitou antes de continuar. – Mas eles não estão neste mundo. Que estranho.

– Espere aí, você está falando do meu irmão, Kevin?

– O Garoto Redbird... sim, acho que ele se chama Kevin.

– Quem era a mulher? Z, eu pensei que você estivesse, ahn, morta do lado de lá – Stevie Rae sussurrou.

O espírito voltou sua atenção para Stevie Rae, que sorria nervosamente e acenou, dizendo:

– E aí! Sou Stevie Rae. Prazer em te conhecer.

– Eu não a conheço, mas posso sentir a força da sua ligação com a terra. Como um espírito da árvore, eu aprecio isso. Pode me chamar de Oak.

– Obrigada, Oak – Stevie Rae fez uma reverência respeitosa.

Oak começou a farejar o ar de novo e, ao fazer isso, ela chegou mais perto de Rephaim, que estava tão imóvel que pensei que ele nem estivesse respirando.

– O que é você? Eu sinto o cheiro de Magia Antiga nos seus ossos, mas ela foi modificada.

– Sou Rephaim. Filho de Kalona. Eu fui um Raven Mocker.

– Portanto, não humano. Nem corvo. Mas algo modificado para fundir ambos em um só.

– Modificados por Nyx – eu me manifestei, sentindo a necessidade de ter algum tipo de controle sobre a conversa. – Rephaim conquistou o perdão da Deusa, e ela concedeu a ele o corpo de um garoto.

– Mas só do pôr do sol até o nascer do sol – Rephaim concluiu por mim. – Enquanto o sol está no céu, eu sou um corvo.

O espírito continuou a encarar Rephaim, farejando o ar ao redor dele, receoso.

– É uma punição pelos atos sombrios que você já cometeu que a Deusa permite que o corvo assuma o seu corpo.

Rephaim empinou o queixo.

– Sim. Nyx é justa. O meu passado não é algo do qual me orgulho.

– Exceto pelo ano passado – Stevie Rae disse, pegando a mão de Rephaim. – Ele escolheu a Luz, e Nyx o perdoou.

– Então, Oak, você não é deste mundo? – Aphrodite perguntou.

A cabeça de Oak girou, feito uma coruja, para observar Aphrodite.

– Eu não a conheço, Profetisa.

– Ainda assim você me chamou de Profetisa.

O espírito assentiu, fazendo o seu cabelo longo e multicolorido brilhar ao redor com um som parecido com o do vento derrubando as folhas do outono.

– A Magia Antiga reconhece uma Profetisa de Nyx. Houve um tempo, no passado distante, em que nós estivemos ao lado das Profetisas de Nyx, seguindo as ordens da Deusa. Infelizmente, esse tempo já passou, mas nós nos lembramos dele – Oak disse de forma enigmática antes de olhar para Darius. – Eu também não o conheço, Guerreiro – e então o olhar dela encontrou Stark. – Você, eu reconheço. O Garoto Redbird pediu santuário para se proteger de você e do seu exército, embora sua Marca fosse azul, não vermelha.

– Você é do Outro Mundo! – Stark exclamou. – Você conheceu Kevin Redbird lá, certo? Mas quem é a outra mulher Redbird? – Stark se virou para mim. – Será que a sua irmã foi Marcada no Outro Mundo sem Kevin saber?

Eu comecei a abrir a boca, mas a voz de Oak me interrompeu.

– Tantas perguntas, mas eu não recebi nenhuma oferta de pagamento. – Oak virou a cabeça e olhou sombriamente para a árvore quebrada na qual ela tinha se materializado. – E eu fui invocada através de um lugar que foi manchado pelas Trevas e pela destruição.

– Eu sou responsável por sua invocação. Peço desculpas. Eu realmente tenho perguntas a fazer, mas eu também tenho o seu pagamento. – Eu abri a mão, mostrando a Oak a ferida ensanguentada que ainda pingava.

Oak farejou delicadamente a palma da minha mão. Ela lambeu os seus lábios carnudos, lembrando estranhamente como eu costumava fazer quando tinha noite de festival de psaghetti no refeitório, mas então ela me surpreendeu ao desviar a sua atenção do meu sangue para encontrar o meu olhar.

– Você oferece um pagamento aceitável, mas eu prefiro outra coisa.

– Que tipo de pagamento você quer? – Senti a necessidade de prender a respiração enquanto esperava pela resposta dela.

Oak virou a cabeça para olhar sobre o seu ombro para a árvore destroçada.

– O pagamento que eu quero pela informação que você busca é que você limpe a abominação que aconteceu aqui, e restaure o equilíbrio deste lugar.

Eu pisquei em choque, mas ainda consegui dizer:

– Eu posso fazer isso.

A cabeça dela girou de novo para mim e a sua voz se tornou ritmada, como se ela estivesse recitando um belo poema.

“Eu aceito o pagamento do equilíbrio a esta árvore restaurado

Grande Sacerdotisa – você prometeu isso de bom grado

Eu concordo em fornecer informação

Eu concordo com a verdade dita na canção

Pergunte, então, Garota Redbird

Mas escute bem, para que minhas palavras acate

E se você esquecer do pagamento aqui rebate

Saiba que há outras formas de pagar antes que a mate...”

Oak não atirou sangue no ar nem fez nenhum outro tipo de floreio dramático, mas, no instante em que terminou de falar o feitiço de amarração, o ar ao redor dela brilhou como se alguém tivesse soprado purpurina sobre o pátio da escola. Tentei não pensar nas outras formas com que a Magia Antiga podia me fazer pagar pela promessa e fiz a minha primeira pergunta.

– Você conhece o meu irmão, Kevin?

– Conheço. Ele se parece muito com você.

– Então, você é de outro mundo?

– Para as fadas ancestrais, todos os mundos são um só. Nós prestamos pouca atenção no véu que os separam.

– A outra mulher Redbird que você mencionou. Você pode me dizer quem ela é?

– Sim, Garota Redbird. Ela é uma Mulher Sábia, uma do seu sangue. Ela é formidável. Eu realmente me deliciei com as suas bolsas medicinais. Elas não foram pagamentos poderosos pelos nossos serviços, mas foram saborosas.

– Ela está falando de Vovó Redbird! – Stevie Rae exclamou.

Eu assenti.

– Ela também falou em bolsas medicinais... no plural. Oak, a Mulher Sábia da qual você está falando deve ser minha avó. Ela e Kevin estão lidando com Magia Antiga no Outro Mundo?

– A Mulher Sábia não invocou Magia Antiga, mas, como respeito pelo seu sangue ancestral, eu responderia se ela me chamasse e precisasse da minha assistência. Foi o Garoto Redbird. Ele requisitou nossa ajuda. – Os olhos escuros de Oak se viraram para Stark. – Ele precisava de proteção contra um Guerreiro muito parecido com este que lhe pertence.

– Kevin deve estar trabalhando com a Resistência – Stark disse.

– Onde Kevin e minha avó estavam quando eles usaram Magia Antiga? – eu perguntei.

– Em uma montanha não muito longe daqui. É lá que o povo deles se reúne e se esconde daqueles que os caçam.

– É isso. O Outro Kevin se juntou à Resistência – Darius concluiu.

– E você realmente não me viu lá em nenhum lugar? – Aphrodite perguntou ao espírito.

Oak olhou atentamente para ela.

– Não. Você não faz parte do povo do Garoto Redbird.

– Olha, que merda – Aphrodite falou.

– Por que isso faz tanta diferença? – Rephaim perguntou para Aphrodite.

Stevie Rae respondeu por ela.

– Porque Aphrodite é a razão pela qual novatos vermelhos e vampiros vermelhos no nosso mundo podem escolher manter a sua humanidade. Sem ela, todos nós seríamos monstros, como o pobre Outro Jack já foi.

O que Stevie Rae disse deu um cutucão na minha memória, e de repente eu tinha outra pergunta a fazer para o espírito.

– Oak, você realmente é feita de Magia Antiga, certo?

Quase pareceu que o espírito se segurou para não rir.

– É claro, Garota Redbird. Do que mais eu seria feita?

– Bom, eu não sei, mas estou confusa. Pensei que Magia Antiga não tomasse partido nessa batalha entre Luz e Trevas. E mesmo assim você está aqui, contando que protegeu o meu irmão e o seu povo contra o Exército Vermelho, e que o pagamento que você quer é que eu limpe as Trevas desta árvore. Isso soa como se você estivesse tomando partido... não que eu me importe. Eu estou feliz que você esteja escolhendo a Luz. Só me pergunto por quê.

– Você está parcialmente correta, Garota Redbird. A Magia Antiga não escolhe lados, já que vemos as muitas camadas que compõem a Luz e as Trevas, e nós compreendemos profundamente que ninguém é completamente bom nem completamente mau. Eu concedi santuário ao seu irmão porque aceitei o pagamento dele, e não porque fiquei do lado dele contra as Trevas. Em relação a essa árvore, os espíritos elementais não são neutros quando uma abominação é cometida contra a natureza. E essa árvore, este lugar de poder elemental, foi de fato profanado, o que é uma abominação contra a natureza. Isso tem que ser consertado.

– Isso tem sentido, Z – Stark disse. – Ela soa muito como Sgiach, quando chegamos na ilha. Ela não sairia da ilha para combater as Trevas, mas, quando as Trevas invadiram a sua ilha, Sgiach lutou contra elas.

– Ah, a Rainha Sgiach. Nós ficamos tristes pela perda do Guerreiro dela.

– Você a conhece! – eu exclamei.

– Sim. Há muitos séculos.

– Como ela está?

– Em luto profundo. – E então Oak fechou a boca, deixando claro que não ia falar mais nada sobre a Rainha Sgiach, a Grande Cortadora de Cabeças.

– Ok, então, como o meu irmão está no Outro Mundo? – eu perguntei.

– O ferimento dele se curou. Nós concedemos santuário ao povo dele na montanha. Ele brande Magia Antiga com maestria.

– E o ferimento dele? – a minha pergunta saiu como um grito agudo.

– Ele se curou – Oak repetiu, como se pensasse que eu podia ser meio devagar.

Eu queria perguntar mais sobre Kevin ter se ferido, mas Aphrodite agarrou meu pulso e falou urgentemente para mim:

– Kevin está brandindo Magia Antiga. Foi isso que você sentiu.

– Sim, eu sei.

– Z – ela parecia exasperada –, lembre-se de como é brandir Magia Antiga.

E então eu percebi o que Aphrodite estava dizendo. Kevin estava encrencado, e ele provavelmente não sabia disso.

– Oak, você pode levar uma mensagem minha para Kevin?

– O seu pagamento foi por informação. Não para ser uma mensageira.

Eu baixei os olhos para a minha mão. A ferida tinha começado a coagular, mas eu sabia que podia abri-la de novo com a unha.

– Sangue. Eu pagarei com o meu sangue para você levar uma mensagem para o meu irmão.

– Não, Sacerdotisa. Você me julga mal. Não sou sua mensageira. Não tenho nenhum compromisso com você. Você me ofereceu um pagamento por informação. Eu dei essa informação. Agora você tem que cumprir o que me deve. Faça isso, e depois talvez me peça outra tarefa. Apenas tenha certeza de que o pagamento que você oferece é atraente...

E sem fazer nenhum barulho, Oak deu as costas para nós e, em um puf de névoa, ela desapareceu no meio da árvore caída.


11

Outro Kevin

Água da chuva gotejava do teto encurvado de pedra da caverna e formava poças, lama e barro ao redor dos pés de Kevin. Ele enxugou o rosto com a manga do seu casaco e espirrou violentamente.

– Acho que eu prefiro gelo do que essa droga de garoa e névoa. Se isso continuar por muito tempo, vai virar uma primavera de Oklahoma precoce com a tríade de coisas pé no saco que sempre vêm junto: tornados envoltos em chuva, pólen de ambrósia3 e carrapatos – Kevin resmungou para si mesmo.

– Ei, levante a cabeça! Podia ser bem pior. Que inferno, seria bem pior se você não tivesse nem vindo até aqui. Pelo menos estamos seguros, aquecidos e relativamente secos aqui.

Kevin sorriu ironicamente para o vampiro baixo, mas poderosamente musculoso, que pareceu se materializar de repente ao lado dele.

– Cara, você poderia ser menos silencioso? Esse jeito lento de andar não é bom para a minha ansiedade.

– Não há nada de errado com a sua ansiedade, Kevin querido. Mas Dragon não deveria importunar você andando por aí feito um espírito. – A adorável mulher com o véu de um longo cabelo loiro com mechas prateadas tocou o ombro de Kevin delicadamente, embora o afeto no seu olhar fosse todo direcionado a Dragon. – Principalmente com a quantidade de espíritos que temos por aqui. Eles podem ficar com inveja.

Dragon Lankford levantou as mãos em sinal de rendição.

– Anastasia, meu amor, não deixe que se diga que eu afronto os espíritos. – Ele fez uma pausa e então perguntou a Kevin: – Como eles são?

– Os espíritos? – Kevin disse, enxugando mais água da chuva do seu rosto enquanto saía da entrada da caverna muito maior e melhor.

– Sim, os espíritos. Você se lembra deles, certo?

– Ah, Bryan, deixe o garoto em paz. São os espíritos dele. É claro que ele se lembra deles. Todos nós lembramos deles e somos gratos – Anastasia Lankford repreendeu o seu companheiro, apesar de dizer isso deslizando o braço em volta da cintura dele com intimidade e recostando a cabeça rapidamente em seu ombro, o que Kevin achava que tirava totalmente a bronca que estava em suas palavras. Afinal de contas, que cara não levaria um sermão da bela Sacerdotisa numa boa se ela estivesse ao mesmo tempo encostando sua bochecha macia no ombro dele?

Em meio ao silêncio crescente, Dragon Lankford estalou os dedos algumas vezes na frente do rosto de Kevin, fazendo-o piscar e dar um pulo para trás – e se dar conta de que ele estava sentado lá encarando Anastasia como um menino de escola apaixonado.

Cara, eu preciso de uma namorada. Kevin suspirou internamente e se sacudiu.

– Desculpe. Eu estava pensando.

– Percebi. – Dragon deu um olhar divertido para ele.

Kevin devolveu o olhar com o seu próprio sorriso.

– Eu estava realmente pensando em mais coisas além da beleza da sua companheira.

– Bem, obrigada, Kevin querido. – Os cantos dos olhos de Anastasia se enrugaram de modo cativante.

Dragon limpou a garganta.

– Que outras coisas são essas em que você estava pensando?

– Que eu realmente preciso ir embora. – Kevin levantou a mão quando Anastasia começou a protestar. – Não, já faz três dias. As estradas estão limpas. O Exército Vermelho não voltou. – Kevin fez uma pausa e gesticulou para o local que antes era o fundo da minúscula caverna, mas agora era uma entrada em arco perfeita para um sistema de cavernas e túneis que serpenteavam como um labirinto, adentro da montanha rochosa. Mesmo de onde ele e os Lankfords estavam, todos podiam ver pessoas – novatos azuis, vampiros e humanos – apressadas indo de lá para cá, preparando o jantar, remendando roupas rasgadas, fervendo ervas para o chá e outras tarefas caseiras. Gatos caminhavam distraídos por ali, atrapalhando o caminho, mas também mantendo a população de ratos e de toupeiras sob controle. E de algum lugar mais lá embaixo na caverna, o aroma de chili se levantou, fazendo Kevin salivar. – Está tudo funcionando. A caverna está aquecida, seca e bem ventilada, e os espíritos estão mantendo a montanha encoberta com névoa. Já está na hora de eu ir embora.

– Eu concordo – Vovó Redbird chegou até a entrada da caverna, vindo do ponto mais fundo do seu interior recém-concluído. – Está tão agradável e aquecido lá atrás! Não sei como os espíritos fizeram isso, mas o sistema de ventilação é um milagre. Quase não tem fumaça nenhuma em nenhum lugar. Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Kevin, eu concordo com você. Se você demorar muito mais para voltar para a Morada da Noite, a sua reaparição vai levantar suspeitas.

– Mas Kevin voltar já não será suspeito por si só? – Anastasia questionou. – De acordo com o que ele nos contou, um grupo inteiro de novatos e soldados do Exército Vermelho e um general vermelho desapareceram. Como você vai explicar onde esteve? E onde eles estão?

Kevin soltou um longo suspiro.

– Andei pensando nisso e tenho uma ideia. Eu vou mentir.

Dragon deu risada.

– Obviamente!

– O que você quer dizer com isso, u-we-tsi?

– Bom, se alguém me perguntar sobre o restante do meu grupo, vou dizer que não sei nada sobre isso porque o meu general, que está morto lá no mundo da minha irmã, me mandou em uma missão de reconhecimento alguns dias atrás. E eu fui. Não encontrei nada de mais, mas aí acabei me perdendo.

– Acabou se perdendo? – Dragon bufou.

– Ah, eles vão acreditar. E também não vão me perguntar mais nada sobre o general. Pense na maneira como os vampiros vermelhos agem. Mesmo os oficiais não são muito mais do que máquinas de comer. O General Dominick era o meu oficial superior, mas até ele era basicamente um babaca desgraçado e do mal, que controlava os seus soldados com ameaças e medo. Para um vampiro vermelho, ele era considerado esperto, mas na verdade ele não pensava muito além de quem nós poderíamos atacar em seguida. – Kevin balançou a cabeça de desgosto. – Acredite em mim, sei tudo sobre isso. Eu estou me escondendo no Exército Vermelho há quase um ano, e nenhum deles jamais suspeitou que eu fosse diferente.

– Mas, Kevin, você tem um cheiro diferente agora – Anastasia lembrou.

– Essa foi a última coisa que eu andei tentando resolver. Tenho quase certeza de que nenhum vampiro azul vai prestar atenção suficiente em mim para reparar que eu não tenho um fedor.

– Mas “quase” não é bom o bastante, u-we-tsi.

– Os vampiros vermelhos vão reparar, não vão? – Anastasia perguntou delicadamente.

– Acho que eles podem reparar. Bom, não os soldados comuns, mas alguém como um dos generais vermelhos... tenho quase certeza de que iriam notar sim.

– O que Kevin pode fazer em relação a isso? – Dragon perguntou.

– Bom, eu posso pensar em jogar um feitiço sobre ele... algo que tenha um cheiro junto – Anastasia refletiu. – Mas qualquer Sacerdotisa que cruzar o caminho dele poderia facilmente perceber o rastro de energia do feitiço. E, se você estiver em qualquer lugar perto de Neferet, ela reconheceria o meu feitiço imediatamente.

– Então essa ideia está definitivamente fora de questão – Dragon afirmou.

– Que tal algo mais simples? – Vovó Redbird sugeriu. – Kevin, qual a intensidade que esse cheiro precisa ter?

Kevin deu de ombros.

– Não tenho certeza. Quando eu era um vampiro vermelho, nunca percebia o fedor.

– Depende do tipo de vampiro vermelho – Dragon explicou. – Os soldados fedem como cadáver e bolor. Já os oficiais, especialmente os oficiais de patentes mais elevadas, não possuem um cheiro tão ruim.

– Então, um oficial, como o Kevin, não tem o aroma muito mais forte do que o de um perfume de mulher? – Vovó perguntou.

– Acho que é uma boa comparação – Dragon respondeu. – Se a mulher exagerou e colocou perfume demais.

– Bom, u-we-tsi, isso vai parecer repugnante, mas acho que você deveria usar o sangue de um vampiro vermelho como se fosse perfume.

– Você quer que eu passe perfume de sangue em mim?

Vovó sorriu.

– Talvez funcione melhor se espalhar um pouco de sangue na sua pele em lugares que não possam ser vistos.

– Que nojento – Kevin resmungou.

– Porém prático – Anastasia disse.

– Sim, acho que vocês estão certas – Kevin falou. – Cara, eu queria poder fazer só uma tentativa sem o perfume de sangue fedido.

– Você não pode – Dragon afirmou. – Eles vão descobrir você, e vão nos descobrir em seguida.

– Eu jamais contaria a eles onde vocês estão! – Kevin protestou.

Anastasia colocou a mão no ombro dele.

– Não por livre e espontânea vontade, mas depois que eles torturarem você e o deixarem passar fome... bom, vamos apenas dizer que é melhor ficar fedido.

– Sim, você está certa. Então vou voltar para a estação hoje à noite, depois de conseguir um pouco de sangue de vampiro vermelho. Não vou gostar disso. – Kevin estremeceu e então estalou as juntas dos dedos. – Mas vou fazer tudo que tiver de ser feito. Ok, eu já tenho um plano, mas quero a contribuição de vocês.

– Claro – Anastasia disse, e os quatro foram até os bancos de pedra que os espíritos haviam esculpido de algum modo na parede da caverna. O corvo enorme que nunca ficava longe da Sacerdotisa voou para dentro da caverna e esticou suas asas escuras no ar frio, aterrissando em um afloramento rochoso em cima de Anastasia. – O que você está pensando, Kevin?

– Nós precisamos de Aphrodite.

– Aphrodite? – Dragon grunhiu.

– Antes que você reclame, apenas pense no que eu contei antes. O que aconteceria se não existisse mais o Exército Vermelho para Neferet usar como uma máquina de comer em tempos de guerra?

Dragon suspirou e assentiu.

– Sim, é verdade. Sem o Exército Vermelho, não seria mais tão fácil para Neferet ganhar a guerra.

– Exatamente – Kevin concordou.

– Então você deve saber que o risco compensa – Vovó Redbird disse.

– Certo. Vou pedir para Johnny B levar vocês até onde nós escondemos o Polaris. – Dragon voltou seu olhar sombrio para Vovó Redbird. – Sylvia, quero que saiba que você tem um lugar aqui conosco se preferir ficar.

– Obrigada, Dragon, mas eu preciso voltar para a minha fazenda. Eu sou protegida, então não corro perigo e posso ajudar mais lá fora do que me escondendo aqui.

– Como eu vou enviar mensagens para vocês aqui? – Kevin perguntou. – Vou tentar voltar para cá o maior número de vezes que conseguir, mas tenho que ter cem por cento de certeza de que ninguém está me seguindo. E se eu tiver informações que vocês precisam, mas não conseguir escapar?

– Isso é fácil – Anastasia respondeu, levantando os seus grandes olhos azuis na direção do corvo. – Vou enviar Tatsuwa para encontrá-lo todo dia. Ele vai voar em círculos sobre você. Se você tiver uma mensagem para nós, escreva em um pedaço de papel e dê a ele. Tatsuwa vai trazer a mensagem para mim. Da mesma forma, se nós tivermos uma mensagem para enviar, ele vai levá-la até você.

– Hum, como ele vai me encontrar? – Kevin deu uma olhada rápida para o corvo, e o grande pássaro grasnou para ele.

– Ah, você não precisa se preocupar com isso. Se você estiver ao ar livre, Tatsuwa vai encontrá-lo. A visão dele é tão aguçada quanto a sua inteligência.

– Anastasia, minha querida, eu já tinha visto o seu corvo adorável antes, e ele parece estar sempre perto de você, mas eu não tinha ouvido antes você o chamando pelo nome até recentemente. Eu queria dizer que gostei que você escolheu como nome dele uma palavra indígena – Vovó Redbird falou, aproximando-se do pássaro o bastante para acariciar suas penas pretas e brilhantes.

– Tatsuwa significa corvo em Cherokee? – Anastasia pareceu surpresa.

– Sim – Vovó Redbird respondeu. – Se você não sabia disso, como foi que deu esse nome a ele?

O sorriso brilhante de Anastasia iluminou a caverna quando ela olhou carinhosamente para o pássaro.

– Eu não o nomeei. Ele me disse o seu nome, não foi, Tatsuwa?

– Tatsuwa! – o corvo falou tão claramente quanto a Sacerdotisa que ele tinha escolhido como sua.

– Às vezes eu acho que os dois são mais próximos do que eu e ela – Dragon resmungou.

– Ciumento! – Tatsuwa grasnou.

Anastasia riu musicalmente.

– Ah, Tatsuwa, pare de provocar Bryan.

O pássaro saltou do seu poleiro e andou gingando até Anastasia, aconchegando-se ao lado dela, enquanto ela usava um dedo longo e fino para fazer carinho na penugem em cima do seu bico.

– Quantas palavras ele sabe falar? – Kevin perguntou, totalmente intrigado com o estranho pássaro negro.

– Ah, Tatsuwa não apenas imita palavras. Ele realmente fala – Anastasia explicou. Ela beijou o topo da cabeça do grande pássaro, e Kevin pôde jurar que ouviu a criatura ronronar.

– Um ta-tsu-wa é um aliado poderoso – Vovó Redbird afirmou. – Quando eles se ligam a alguém, essa ligação é para a vida toda.

– Se ao menos eu soubesse disso quando o encontrei, congelando e quase completamente sem penas no inverno passado – Dragon resmungou.

– Oh, Bryan, você nunca teria deixado ele sofrer e ficar para morrer – sua bela companheira falou. – Tatsuwa e eu somos gratos pelo seu bom coração.

– Obrigado, Bryan – o pássaro disse, soando igual Anastasia de um jeito desconcertante.

– Eu estabeleci o limite de ele não dormir conosco – Dragon disse.

– Meu amor, você sabe que ele prefere o ninho dele.

– Feito com os seus cabelos.

– Sério? – Kevin perguntou para Anastasia.

– Apenas parcialmente. O resto é feito com um dos meus velhos suéteres. E ele não arrancou o cabelo da minha cabeça. Ele é ótimo em limpar as minhas escovas.

Os olhos da Sacerdotisa faiscaram quando ela beijou o topo da cabeça negra lustrosa do corvo de novo.

– Humpf – Dragon resmungou. Então ele voltou seu olhar sarcástico para Kevin. – Mas o que tudo isso significa é que o pássaro é bizarramente inteligente e vai fazer qualquer coisa que Anastasia pedir.

– Ok, bom, acho que ele vai ser o meu celular então. É estranho, mas não tão estranho quanto o fato de ele dormir em um ninho feito com os cabelos da sua companheira. – Kevin levantou e se alongou, fazendo só uma pequena careta ao sentir uma fisgada na cicatriz do seu ferimento. – Você está pronta, Vó?

– Totalmente. – Vovó Redbird se levantou e fez mais uma longa carícia no corvo antes de abraçar Anastasia e depois o companheiro dela. – Obrigada por confiarem em mim.

– E em mim. – Kevin estendeu a mão para Anastasia, que sorriu docemente antes de abraçá-lo e de beijar sua bochecha.

– É tão fácil confiar em você quanto na sua avó – disse a Sacerdotisa.

– Bom, só depois que a gente supera essa sua Marca vermelha. – Dragon também puxou Kevin para um abraço com tapinha nas costas. – Fique em segurança, Kevin Redbird. Você pode ser a nossa única esperança de acabar com essa guerra sem nos render e condenar o nosso mundo às Trevas.

– Ei, sem pressão, certo? – Kevin se esforçou para não estalar os nós dos dedos.

Quando ele e sua avó saíram da caverna seguindo Johnny B, Tatsuwa passou voando por eles e então Kevin ouviu o pássaro chamando no vento:

– Garoto Redbird... Garoto Redbird... Garoto Redbird...

3 Causador de muitos casos de alergia no hemisfério norte. (N.T.)


12

Outro Kevin

– U-we-tsi, você tem certeza disso? – Vovó Redbird perguntou enquanto se inclinava sobre o assento, procurando algo dentro da grande cesta que ocupava a maior parte do banco traseiro do carro. Ela havia parado em uma das vagas na parte mais escura do estacionamento da Utica Square, bem no fundo.

– Não, mas eu tenho certeza de que você não pode me levar até a escola. Você está sob a proteção de Neferet, mas nenhum humano racional jamais iria entrar em um carro com um vampiro vermelho, a menos que estivesse prestes a ser devorado.

– Ah, aqui está! Eu sabia que tinha um desses aqui atrás. Coloque isso. Tem um capuz e deve ser grande o bastante para puxar para baixo para cobrir o seu rosto. – Vovó entregou a ele um velho moletom escuro que tinha um leve cheiro de lavanda, e ele o vestiu. Então ela abriu a cesta de novo e pegou uma bolsa de couro com uma tira grossa para colocar sobre o ombro. – Aqui, pegue isto também. Coloquei aí dentro algumas coisas que acho que você pode precisar. E, não, eu não quis dizer que eu deveria levá-lo de carro até lá. Entendo que isso é impossível e você pode facilmente ir a pé até a Morada da Noite. Estou preocupada com o seu perfume de sangue.

Vovó Redbird franziu o nariz quando disse as últimas palavras.

Kevin riu, colocou a tira da bolsa sobre o ombro e a abraçou.

– Você não precisa se preocupar com isso. Já pensei em tudo.

– Sei que isso é algo que você precisa fazer, mas me deixa muito angustiada pensar em você matando um novato ou vampiro vermelho.

– Vó, eu não vou matar ninguém.

– Então, você vai apenas cortar um vampiro vermelho para pegar o sangue de que precisa?

– Vó, eu tenho uma ideia melhor que essa. Vou visitar o necrotério da escola.

Vovó Redbird o abraçou forte.

– Oh, u-we-tsi, fico tão feliz em ouvir isso! – Então ambos riram como criancinhas por causa do ridículo de ficar feliz por alguém visitar um necrotério.

Finalmente, Kevin deu um beijo na bochecha dela.

– Prometa que não vai fazer nada que possa te machucar.

Ela segurou o rosto dele com as mãos e sorriu amorosamente, olhando nos olhos dele.

– Não posso prometer isso, mas prometo que vou ser sábia e pensar um pouco antes de agir.

– Acho que vou ter que me contentar com essa promessa.

– Acho que sim. – Vovó o beijou. – Vá com a proteção da Grande Deusa, u-we-tsi, e lembre-se sempre de como eu tenho orgulho de você.

Kevin odiou deixar sua avó para trás. Ele teve que se esforçar para não começar imediatamente a imaginar hordas de vampiros vermelhos insaciáveis atacando a sua fazenda para devorá-la por ajudar a Resistência.

Vovó está sob a proteção de Neferet.

Ninguém no Exército Vermelho ou Azul sabe que ela faz parte da Resistência.

Eu realmente preciso relaxar.

Pensamentos sobre a sua avó e a Resistência ficaram revirando sem parar na cabeça de Kevin enquanto ele cortava caminho pela Rua Vinte e Dois e seguia pela Avenida Yorktown em direção ao lado leste da Morada da Noite.

Era tarde – apenas algumas horas antes do amanhecer –, mas ele não estava preocupado. Visitar Zoey tinha dado a ele uma percepção maior da Morada da Noite, e ele sabia onde poderia se esconder em segurança do sol e de vampiros curiosos. Se os dois mundos fossem realmente mais parecidos do que diferentes. Se esta Morada da Noite não tiver sido construída como a de Zo...

Kevin balançou a cabeça. Não tem motivo para ficar pessimista a não ser que eu precise. Se tudo mais falhasse, ele sempre podia se fingir de bobo e ser apenas outro vampiro vermelho que tinha perdido o ônibus de antes do amanhecer para os túneis da estação. Com sorte, os vampiros azuis o deixariam ficar em um dos quartos escurecidos no dormitório e não iriam atirá-lo no meio da rua para fritar.

O muro de pedra que rodeava a Morada da Noite surgiu subitamente à sua direita, parecendo austero, intimidador e basicamente nada parecido com o da Morada da Noite iluminada e receptiva que a sua irmã comandava.

Por um instante, uma saudade profunda apertou, e Kevin desejou mais do que qualquer coisa que ele pudesse sair correndo para o Woodward Park e descobrir um jeito de reabrir o portal entre os mundos e deslizar de volta por ele – para nunca mais voltar.

– Mas e se eu realmente fizesse isso? O que iria acontecer com Vovó aqui? Ela nunca iria parar de se preocupar comigo e nunca iria sair do luto por perder Zo e eu – ele disse a si mesmo.

E agora havia Dragon, Anastasia e o restante da Resistência. Eles iriam achar que ele havia sido pego e morto, ou que tinha mentido para eles. Provavelmente iriam abandonar a caverna na montanha, o que seria realmente terrível. Não, Kevin não podia ir embora. Não importava o quanto ele quisesse isso.

Postes de rua feitos para parecer que eram do começo dos anos 1900, inclusive com as chamas tremulantes do gás, projetavam sombras em movimento pelo muro enorme. Kevin atravessou a Yorktown para se juntar a elas enquanto sua visão sobrenaturalmente aguçada começava a vasculhar a parede, procurando a pedra antiga e retangular em que estava inscrito 1926 – o ano em que o muro que circundava a escola havia sido terminado. Ele estalou as juntas dos dedos nervoso enquanto procurava, sem nem ter certeza de que ela estava mesmo ali. Zo tinha contado a ele sobre essa pedra – que era um tijolo específico no muro leste da escola que, na verdade, era parte de um sistema de alçapão acionado por molas. Esse tijolo no muro não parecia muito diferente dos outros, mas ela disse que do lado de fora ele estava marcado e que era através desse alçapão que novatos escapavam para fora do campus há quase um século.

Pelo menos era assim no mundo dela.

Aquele era o primeiro teste – a primeira vez em que ele iria ver o quanto os dois mundos eram parecidos em sua estrutura.

Quando os olhos dele avistaram a inscrição 1926, ele sentiu uma onda de alívio. O tijolo estava na altura dos seus olhos. Ele respirou fundo e o pressionou.

Houve um clique baixo quando algum mecanismo se abriu, e então o muro pareceu dar um suspiro ao aparecer um vão – com espaço apenas suficiente para alguém passar apertado por ele – naquela obra de alvenaria antes aparentemente perfeita.

Depois que entrou, ele empurrou o tijolo de novo e a porta se fechou, e então Kevin fez uma pausa. Ele se agachou contra o muro, desejando que a escuridão antes do amanhecer estivesse menos límpida e com mais névoa, chuva ou até gelo, mas, depois que o seu olhar fez uma varredura pelos jardins da escola, ele começou a relaxar. Aquela não era a Morada da Noite da sua irmã. Não havia garotos humanos se misturando aos novatos, azuis e vermelhos, brincando pelo jardim. Tudo o que Kevin viu foi um gramado meticulosamente bem-cuidado, alguns gatos furtivos e Guerreiros Filhos de Erebus de guarda em cada uma das portas do prédio principal.

Kevin definitivamente iria evitar o prédio principal.

Mantendo-se perto o bastante do muro para se misturar às sombras bruxuleantes da iluminação a gás, Kevin começou a correr. Ele seguiu o muro todo até passar pelo Templo de Nyx. Ao passar por ali, ele lançou um olhar nostálgico naquela direção. Ele nunca se esqueceria da sensação de amor e aceitação que experimentou com Zoey e os seus amigos dentro do Templo da Deusa. Esse lugar parecia quase exatamente igual a esse templo, embora não houvesse nem perto da mesma quantidade de velas brilhando através das janelas e ele não sentisse nem um pingo de aroma de baunilha ou lavanda.

É Neferet. Ela não está honrando a Deusa como Zo faz.

Esse pensamento deixou Kevin irritado e muito triste.

Logo depois do Templo de Nyx, o muro começou a fazer uma curva para a direita, onde ele corria paralelo à Rua Utica, e não muito depois disso Kevin avistou o prédio solitário que ele procurava, construído com a mesma pedra do muro e do resto da Morada da Noite, só que esse edifício era diferente.

Não que parecesse muito diferente. Ele era pequeno – realmente uma versão em miniatura do Templo de Nyx. Tinha um jardim de meditação estilo japonês adjacente que era emoldurado em três lados por um mausoléu, que guardava os corpos cinzentos dos novatos azuis que haviam rejeitado a Transformação.

– E apenas dos novatos azuis – Kevin murmurou para si mesmo. – Os novatos vermelhos são retirados do necrotério, queimados e então as suas cinzas são jogadas fora. Literalmente. Como lixo mesmo, eles são coletados com o resto do lixo da escola toda semana. Espero que hoje não tenha sido o dia da coleta.

Kevin se aproximou do mausoléu. Ele teria que atravessar o jardim de meditação para entrar no necrotério em si, mas ele não previa nenhum problema nessa hora. O necrotério não era exatamente um lugar efervescente da Morada da Noite. Na verdade, dificilmente alguém ia até lá, já que Neferet encorajava os novatos a “não ficar de luto por aqueles que se mostraram indignos”.

A areia do jardim de meditação continuou silenciosa sob os pés de Kevin e, apesar de a área parecer deserta, ele ficou satisfeito com a existência de biombos de madeira decorados que seccionavam o jardim, criando alcovas particulares de sombras.

Não muito longe, ele conseguiu ver a porta de madeira arqueada que era a entrada para o necrotério. Kevin estava quase deixando que a tensão saísse dos seus ombros quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento.

No meio do jardim de meditação havia uma bela estátua de Nyx. Aquela estátua em particular retratava Nyx como a deusa piedosa Kwan Yin. Feita de um onírico ônix branco, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, ela estava acesa por dentro e era a única luz no sereno jardim.

Na frente da estátua havia um banco de madeira simples, muito parecido com os bancos dentro de cada alcova de meditação, porém maior. No banco estava sentada uma figura solitária, com o rosto levantado, contemplando a Deusa.

Merda! Uma Sacerdotisa!

Kevin se enfiou rápida e silenciosamente na alcova de meditação mais próxima. Ele estava analisando a mulher sentada no banco, tentando ter uma visão mais clara do seu rosto e pensando que ela parecia familiar, quando outra pessoa entrou apressada no jardim, vindo da direção oposta, como se estivesse chegando do prédio principal da escola. Ela caminhou a passos largos até o banco, fazendo uma grande encenação ao baixar os olhos para a Sacerdotisa que estava sentada sozinha. Kevin se espremeu no canto da sua alcova e rezou para que nenhuma das duas o descobrisse ali.

– Aí está você! Um dos Guerreiros disse que viu você vindo nesta direção, mas eu tinha certeza de que ele estava errado. Eu inclusive falei isso para ele. Eu disse: “Por que a adorável Aphrodite iria querer passar um tempo no jardim do necrotério?”. Mas, como não consegui encontrar você em lugar nenhum e como você se recusa a atender o seu telefone, eu resolvi vir aqui procurar você.

Kevin sentiu um tranco de choque elétrico. Aquela era Aphrodite! E então a sua mente alcançou o seu choque quando ele reconheceu a voz da segunda Sacerdotisa.

O som do suspiro de Aphrodite atravessou a areia até Kevin.

– Olá, Neferet. Respondendo à sua pergunta, eu venho bastante aqui porque dificilmente alguém está por aqui. Gosto de ter tempo para pensar. Sozinha. É por isso que o meu telefone está desligado.

– Minha querida, isso seria aceitável se você fosse qualquer outra Sacerdotisa, mas você não é. Você é minha Profetisa.

– Não é como se eu estivesse tendo uma visão neste exato momento.

Kevin sorriu ao ouvir a voz sexy e sarcástica de Aphrodite. Ele raramente tinha visto Neferet tão de perto. Ele nunca tinha falado com ela, mas havia testemunhado como os outros vampiros a tratavam – com respeito e uma dose segura de medo. Aphrodite, não. Aphrodite falava com Neferet como se elas estivessem no mesmo patamar, e ela estivesse irritada por ter sido interrompida.

– Neste momento você não está, mas você teve uma visão mais cedo.

Aphrodite se levantou e encarou a Grande Sacerdotisa mais alta.

– Você colocou espiões para me observar?

– Espiões? Não. Só aqueles que são leais e que cumprem o seu papel de me informar sobre qualquer coisa que eu possa considerar importante, e o fato de a minha Profetisa ter uma visão e esconder isso de mim definitivamente é importante.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo, o qual capturou a luz suave da imagem da Deusa e brilhou como fios de ouro.

– Ah, que merda! Eu não estou escondendo nada. Eu achei seriamente que vir até o necrotério poderia ajudar. Não estou vendo nada além de morte nas minhas visões. A visão de hoje não foi diferente. Você quer saber o que eu vi? Novatos e vampiros azuis sendo massacrados em um campo por uma horda nojenta de vampiros vermelhos. Na verdade, a única coisa que eu posso dizer especificamente, além de quem estava massacrando quem, é que era um campo de trigo de inverno que tinha acabado de ser cortado. Tinha um cheiro muito bom, até o fedor dos vampiros vermelhos tomar conta de tudo. Nada mais estava muito claro. Apenas morte, sangue, massacre e pânico em um campo infestado de soldados vermelhos.

– Qual campo? Onde? – Neferet falou rispidamente.

– Eu não sei! Neferet, eu continuo tentando fazer você entender que eu sempre tenho as minhas visões do ponto de vista de alguém que está morrendo, normalmente de um jeito horrível. Por isso que é tão difícil compreendê-las. Portanto, como as minhas malditas visões são tão cheias de morte, faz sentido que eu possa encontrar uma resposta perto do necrotério. Tipo, você acha que eu quero dar uma voltinha aqui? Cai na real. Este lugar não é o meu estilo.

– Oh, então você quer a real? – Neferet disse com voz baixa. Kevin sentiu a sua alma estremecer quando Neferet deslizou para mais perto de Aphrodite, fazendo a jovem vampira dar um passo para trás na areia do jardim. – O que é real é que há um movimento de Resistência do meu próprio povo lutando contra mim. O que é real é que a cada dia novatos azuis, vampiros azuis e até humanos fracos e repugnantes desertam nosso exército. Eles vão embora! Como se eu não soubesse o que é melhor para eles! Como se eu não fosse a Grande Sacerdotisa!

– Bom, você realmente não é a Grande Sacerdotisa de nenhum humano – Aphrodite respondeu.

Rápida como uma víbora, Neferet atacou Aphrodite. O tapa ecoou por aquele espaço sereno, e Kevin se encolheu em um reflexo de empatia.

– Nunca diga o que eu sou ou deixo de ser! Tudo o que eu quero é que você me diga como alcançar o fim da Resistência. Se você não consegue fazer isso, você tem menos utilidade para mim do que um vampiro vermelho raivoso e recém-Transformado. Pelo menos eles lutam por mim. Refresque a minha memória, minha querida, o que é que você faz por mim?

– Eu sou sua Profetisa.

– Mesmo? As suas visões se tornaram nada mais do que disparates confusos e sem sentido.

– Mas eu só posso ver o que Nyx permite que eu...

– Talvez você conseguisse trabalhar melhor se rastejasse menos diante de Nyx e passasse mais tempo servindo a sua Grande Sacerdotisa! – Neferet a interrompeu.

– Neferet, eu sou uma Profetisa de Nyx. O meu poder vem da Deusa. Se eu não rastejar, como você diz, então eu não tenho nenhuma visão.

– Então talvez você deva procurar poder em outro lugar, minha querida. Ou você prefere que eu a envie junto com o Exército Vermelho no próximo confronto deles contra nossos inimigos? Melhor ainda, alguns generais meus sugeriram que eu deveria ser mais presente para meus soldados vermelhos. – Neferet fez uma pausa e Kevin viu que ela estremeceu de asco. – Mas eu simplesmente não suporto o cheiro e a burrice deles. Eles realmente não são nada além de animais raivosos. Talvez você seja a minha resposta para o pedido dos generais. Talvez você deva transferir as suas coisas para a estação e virar a Profetisa deles. Você pode até ir para a guerra com eles. Ver a morte de verdade em vez de suas visões complicadas pode ser uma experiência de iluminação para você! Você pode se acostumar com isso e começar a ser capaz de pensar um pouco durante as suas visões.

Kevin ficou estarrecido com as palavras de Neferet. A estação e os túneis eram pouco mais do que celas para o Exército Vermelho e os novatos vermelhos recém-Marcados. Tudo fedia lá embaixo – até Kevin tinha se sentido enojado. E era imundo – realmente asqueroso, com restos de humanos em decomposição espalhados como bonecas quebradas gigantes, que o exército comia. Os novatos e vampiros vermelhos que habitavam aquele lugar não eram muito distantes de animais. Kevin odiava só imaginar o que ser forçada a viver com eles faria com Aphrodite.

– Eu vou para onde você mandar, mas prometo que estar cercada pelo Exército Vermelho não vai ajudar as minhas visões em nada – Aphrodite tentou soar forte, como se ela particularmente não se importasse para onde Neferet iria enviá-la, mas Kevin conseguiu escutar o pânico dela, levemente encoberto pela indiferença.

– Você tem que descobrir o que vai ajudar as suas visões! Se você não começar a me dar alguma informação que eu possa usar, vai perder os seus aposentos suntuosos, o seu serviço de quarto e o seu abastecimento inesgotável de champanhe e de vampiros azuis viris com quem você vadia o dia todo. Tudo isso – Neferet fez um gesto nervoso que abarcou o jardim sereno, o terreno da escola e o pequeno e organizado necrotério – será substituído por túneis úmidos, fétidos e morte, já que eu estou começando a acreditar que os seus dons são relevantes apenas para os mortos. Então, da próxima vez que nos falarmos, espero que você consiga lembrar de mais detalhes a respeito de sua última visão. Ou pode ir arrumando a sua mala Louis Vuitton e se preparando para a mudança.

Com um rodopio do seu vestido longo de seda, Neferet deu as costas a Aphrodite e saiu com passadas firmes, deixando a sua Profetisa em pé sozinha nas areias do jardim de meditação iluminadas pela lua.

Kevin permaneceu ali, observando Aphrodite silenciosamente. Assim que Neferet saiu, os ombros da jovem Profetisa desabaram. Ela esfregou a lateral do rosto onde havia sido atingida, e Kevin teve quase certeza de que ouviu ela segurar um soluço.

E então ela fez algo que Kevin não esperava de jeito nenhum. Aphrodite não foi embora. Ela não voltou para o aconchego e a opulência dos seus aposentos no prédio principal da Morada da Noite. Em vez disso, ela se virou e por um instante ele pensou que ela estava vindo na direção da sua alcova. A mente de Kevin zuniu, freneticamente testando e descartando mentiras que ele poderia contar, desculpas que ele poderia dar por estar ali.

Ela parou e desabou no banco em que estava sentada antes de Neferet a interromper. Com um suspiro que soou como se tivesse saído das profundezas da sua alma, ela tirou do pé direito um sapato de salto brilhante que parecia muito desconfortável e começou a fazer pequenos desenhos na areia com o que ele podia ver claramente que era o seu dedão, a unha pintada de rosa.

– Nyx, ela é tão horrível! – Aphrodite disse para a estátua. – Talvez eu deva dizer para Neferet que ela está ficando velha. Ela não está, claro, aquela vaca. Mas, se eu começar a perguntar se ela está dormindo direito e mencionar pés de galinha e peitos caídos, sabe, no geral... não sobre ela especificamente, ela vai ficar tão paranoica que pode ser que ela foque mais no espelho dela do que em mim – ela soltou outro longo suspiro derrotado. – Não quero contar para ela tudo que eu vejo. Eu... eu não suporto saber que sou a causa de mais mortes. Lenobia, Travis e todos aqueles cavalos... – A voz de Aphrodite se perdeu em um soluço. Então ela enxugou os olhos com raiva e levantou a cabeça para a Deusa. – Nyx, ela é a sua Grande Sacerdotisa, mas eu simplesmente não entendo. Ela é terrível. Eu a odeio mais do que odeio aquelas lojas de departamento baratas e horríveis onde tudo está sempre em liquidação e os caipiras que compram lá precisam ficar remexendo em araras e mais araras cheias de porcarias bregas sem o benefício de provadores com lustres de cristal e taças de champanhe.

Ela estremeceu delicadamente.

Pego completamente desprevenido pela comparação muito bizarra e muito no estilo de Aphrodite, Kevin riu alto.

A atitude de Aphrodite mudou instantaneamente. A sua espinha ficou ereta. Ela atirou o cabelo para trás e franziu os olhos azuis que faziam uma varredura no jardim de meditação.

– Quem é que está aí?

Kevin congelou. Então, lembrando do moletom que Vovó tinha lhe dado, ele puxou o capuz sobre a cabeça o máximo que podia – esperando fortemente que o capuz e as sombras fossem o bastante para encobrir a sua tatuagem vermelha.

Aphrodite levantou, colocando o seu pé arqueado de volta no sapato brilhante. Ela deu alguns passos no jardim de meditação, na direção exata da alcova de Kevin.

– Eu já perguntei, quem está aí?

– De-desculpe. Eu não queria perturbar você – ele gaguejou, pensando que era mais inteligente admitir a sua presença do que ser descoberto fugindo nas sombras.

Ela marchou até a alcova de meditação e parou diante dele, com as mãos no quadril.

– O que é? Que merda você quer de mim? Saber o futuro? Conhecer a Deusa? Me conhecer? – ela zombou dele, e o seu rosto bonito virou algo maldoso e cheio de ódio. – Bom, você está sem sorte. Não posso ajudar você com nenhuma dessas coisas.

– E-eu não estou aqui porque quero alguma coisa de você! – Kevin falou honestamente, sem pensar. A sua mente estava acelerando como um carrinho de bate-bate no Festival Rooster Days,4 chocando-se contra ideias e quicando quando ele as rejeitava.

– Ah, é claro que não. Todo mundo quer alguma coisa de mim – Aphrodite afirmou, e Kevin viu que um lampejo de emoção bruta, com amargura e repleta de dor, cruzou o rosto dela. – Quanto tempo faz que você está aí?

Ele abriu a boca para tentar responder, mas ela não deu chance para ele começar.

– Você trabalha pra ela? Ela colocou você aqui para me espionar? Se foi isso, escute aqui e escute bem: eu não ligo se você vai contar para ela que porra eu falei. Eu vou mentir. Vou dizer a ela que estava sentada rezando para Nyx e que você me interrompeu bem na hora em que eu estava tendo uma resposta da Deusa. Ela vai acreditar em mim porque, não importa o quanto ela goste de transar com homens, Neferet, na verdade, não gosta de homens. E ela nunca, jamais confia neles. Então, seja lá quem você for, se for falar de mim para Neferet, ela vai acabar acreditando em mim e odiando você, porque ela precisa de poucos pretextos para odiar qualquer homem.

Kevin ficou atordoado com a profundidade da crueldade na voz dela. A Profetisa linda e triste, que apenas alguns segundos atrás estava sentada melancolicamente em um banco conversando com a sua Deusa, tinha se transformado em alguém detestável.

Devagar, de maneira bem clara, Kevin disse:

– Ah, eu acredito. Você obviamente sabe do que está falando. Vocês se parecem muito.

Aphrodite deu um solavanco para trás, como se ele tivesse dado outro tapa na sua bochecha.

– Quem é você?

Kevin se pressionou contra a alcova, desejando que ele pudesse se tornar uma sombra.

– Eu não sou ninguém. Neferet não me mandou até aqui. Eu não tinha ideia de que ela estaria aqui. Eu não tinha ideia de que você estaria aqui.

– Então que diabos você quer? – Aphrodite perguntou de novo.

Ela parecia tão fria, tão diferente da sua Aphrodite, que a irritação de Kevin começou a cozinhar em fogo brando junto com o seu medo. Se ela gritasse, um Guerreiro Filho de Erebus certamente a ouviria. Ele seria arrastado para fora dos jardins por perturbar a Profetisa de Neferet e se tornaria o centro das atenções – sem nem ter seu perfume fedido de sangue.

Ele seria descoberto como alguém diferente, e isso seria péssimo em vários níveis. Então ele endureceu a sua voz e abasteceu a sua irritação com o seu medo.

– Ei, eu já disse. Não quero nada de você. Não queria nem estar aqui... neste lugar horrível que tem cheiro de morte neste maldito mundo horrível!

Ele pôde ver que as suas palavras a abalaram. Houve um longo silêncio enquanto ela ficou encarando a sombra sentada que era Kevin. Quando ela falou, a sua voz tinha perdido aquela ponta de amargura, e a sua pergunta simples o surpreendeu.

– Você perdeu alguém que amava?

Aquela pergunta penetrou na mente dele, trazendo com ela imagens de um mundo perdido, uma vida deixada para trás. Zoey, rindo com a sua Horda Nerd. Vovó Redbird, dando a ele uma bolsa medicinal e tentando não chorar ao dizer adeus. A Aphrodite do outro mundo, sorrindo para ele enquanto os seus olhos faiscavam como pedras preciosas com humor e aquele seu tipo especial e sarcástico de inteligência. Damien e Jack, de mãos dadas e parecendo tão, mas tão felizes e apaixonados, e novatos vermelhos e azuis divertindo-se pacificamente na neve, rodeados por gatos e amor. Sempre o amor.

– Sim – ele perdeu a voz e teve que limpar a garganta antes de continuar. – Sim. Eu perdi o meu mundo inteiro.

O rosto dela mudou. Ele se suavizou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto impecável, e Kevin pensou que ele nunca tinha visto ninguém mais triste nem mais bonita.

– É, eu também. Eu me perdi. Sinto a mesma coisa.

Então ela se virou e saiu do jardim de meditação sem nem mais uma palavra ou olhar na direção dele.

4 O festival mais antigo de Oklahoma. (N.T.)


13

Outro Kevin

Kevin tomou uma decisão rapidamente. Ele poderia ir embora – imediatamente. Poderia fugir, correr para a Utica Square, ligar para Vovó e voltar para a montanha. Ou ele podia levantar a bunda daquele banco no qual estava praticamente colado e entrar no necrotério para coletar um pouco de sangue fedido de vampiro vermelho para camuflar o seu cheiro e continuar com o trabalho que ele havia se disposto a fazer.

Ele sabia o que Zoey faria.

Kevin se mexeu o mais rápido e o mais silenciosamente possível. O seu olhar vasculhou a área enquanto os seus ouvidos se esforçaram para escutar até o menor dos sons de alguém se aproximando enquanto ele atravessava o jardim de meditação em direção à porta do necrotério. Quando ele chegou lá, não hesitou. Kevin abriu a porta e entrou.

Ele já tinha estado no necrotério apenas uma vez. Foi com o General Dominick logo antes de ele ser promovido a tenente. Eles haviam tido uma briga com um grupo de humanos que haviam formado uma milícia a leste de Broken Arrow, no meio de algumas terras do estado que já haviam sido um campo de escoteiros no passado, mas que agora era um lugar desleixado, com trilhas abandonadas e cobertas de vegetação. Os humanos tinham se recusado a desistir. Neferet enviou o Exército Vermelho.

Foi um massacre brutal. Todos os humanos foram mortos. O Exército Vermelho perdeu uma dúzia de soldados. O general havia pedido por voluntários para trazer os corpos dos vampiros vermelhos que tombaram de volta para a Morada da Noite, e Kevin imediatamente se candidatou, pensando que dirigir um caminhão militar cheio de vampiros mortos empilhados era muito melhor do que ficar lá e se juntar ao resto do exército enquanto eles despedaçavam os humanos e os devoravam. O General Dominick havia ficado impressionado com a habilidade de Kevin de liderar essa missão e imediatamente o promoveu de cargo.

Assim, Kevin sabia exatamente aonde estava indo – embora não estivesse ansioso para chegar lá.

Ele seguiu pelo corredor da entrada até o final, ignorando as portas que estavam enfileiradas à direita e à esquerda. Elas davam para salas cheias de vampiros azuis que haviam morrido durante as batalhas e de novatos azuis que rejeitaram a Transformação. Não havia nenhum vampiro vermelho em nenhuma dessas salas, já que Neferet fazia questão de manter os seus Exércitos Vermelho e Azul separados, até mesmo na morte.

Não havia nenhuma sinalização em nenhuma dessas portas, exceto na última delas, no final do corredor. Essa porta estava marcada claramente com um grande X vermelho. Kevin não hesitou. Ele abriu a porta e entrou silenciosamente no quarto escuro.

O cheiro foi a primeira coisa que o atingiu. A sala era fria, mantida daquela forma para que os corpos não entrassem em decomposição antes que pudessem ser queimados e então descartados como lixo. Não havia quase nada na sala, exceto mesas e armários de metal alinhados contra uma parede. Ele rapidamente contou dez mesas. Apenas uma delas estava ocupada. Desviando o olhar dessa mesa, Kevin foi rapidamente até os armários e começou a vasculhar os suprimentos médicos.

Levou pouco tempo para encontrar um vidro com tampa.

Kevin pegou o vidro e foi até a mesa ocupada. Um corpo jazia ali, coberto por um lençol ensanguentado.

É só fazer isso. Só faça logo e acabe com o sofrimento.

Kevin levantou o lençol do corpo e suspirou com tristeza.

– Caramba, cara, isso deve ter doído.

A causa da morte do jovem vampiro vermelho era óbvia. Algo tinha esmagado a sua cabeça. Todo o lado direito da cabeça, da maçã do rosto para cima, estava um horror. Kevin queria desviar os olhos. Ele não queria olhar para o rosto daquele cara, mas não conseguia evitar.

O vampiro morto era tão jovem! O seu rosto, congelado pela morte, estava medonho do lado ferido, mas no restante dele parecia que ele mal tinha dezoito anos.

– Você não deve ter se Transformado há muito tempo – ele falou em voz baixa para o cadáver. – Eu também não. Eu me lembro tão bem de me Transformar. Lembro de como fiquei com medo, sabendo que a minha humanidade estava escapando de mim. Eu ainda não sei o que é pior. Perder totalmente a sua humanidade e virar uma máquina de comer, ou manter a humanidade e compreender muito bem a sua monstruosidade. – Kevin colocou a mão no ombro frio e sem vida do garoto. – Sinto muito. Vou tentar fazer o melhor que posso para evitar que outras pessoas virem monstros, mas eu preciso da sua ajuda. Isso não vai ser agradável, e fico realmente feliz que você não pode sentir nada, mas assim mesmo eu sinto muito por ter que fazer isso com você. Ok, bom, vou acabar logo com isso e depois eu cubro você de novo.

Primeiro, Kevin levantou o braço do vampiro morto, virando-o para ter acesso ao lado de baixo do antebraço.

– De novo, cara, desculpe.

Então, ele pressionou a unha do seu dedo indicador com força contra a pele flácida, cortando devagar a veia principal do pulso até o cotovelo. A pele se partiu facilmente sob a unha sobrenaturalmente afiada de Kevin, e ele trabalhou rápido, apertando e pressionando para fazer o sangue estagnado e coagulado passar para dentro do vidro.

O cheiro era terrível – ainda pior do que o de vampiros vermelhos vivos, que já era péssimo. Kevin continuou mesmo assim, passando para o outro braço e depois finalmente rolando o corpo de lado para expor mais sangue estagnado. Era um trabalho demorado. O sangue era pegajoso e estava coagulado, e era totalmente repugnante ordenhar sangue do corpo morto como se fosse uma vaca. Finalmente, Kevin se viu tendo que enfiar os dedos dentro dos cortes que ele fez para tirar aquela coisa viscosa para fora. Com o vidro cheio, ele finalmente colocou a tampa antes de ir até a pia.

Cuidadosamente, Kevin levantou o moletom e a camiseta que estava usando por baixo. Com uma careta de nojo, ele esfregou uma linha de gosma sangrenta com cheiro podre na barriga, logo acima da cintura da sua calça jeans. Ele também puxou as mangas para cima, esfregando mais sangue nas dobras dos seus cotovelos. Satisfeito com o trabalho, pois agora ele passaria em um teste de cheiro de vampiro vermelho, lavou as mãos e o vidro e então pegou um monte de papel toalha em um dispenser de metal posicionado sobre a pia. Kevin molhou metade dos papéis toalha e então foi de novo até o corpo.

– Nunca mais vou comer nada que pareça geleia de morango. Jamais – Kevin disse para o cadáver. – Não vou deixar você assim. Não que alguém fosse notar. Eles vão levar você na maca de rodinhas e colocá-lo dentro do crematório sem nem olhar para você. Mas assim mesmo... não é certo deixar você assim.

Kevin limpou o sangue do corpo, colocando as roupas de volta no lugar e até secando a mesa. Quando o vampiro morto pareceu quase arrumado, Kevin colocou a mão de novo no ombro do garoto morto.

– Obrigado. O seu sangue vai fazer com que eu não seja pego... para que eles não saibam que eu sou diferente. Eu vou mudar as coisas por aqui. Dou a minha palavra. Vou ser parte de um milagre. Sei que isso pode acontecer porque eu já presenciei isso antes. Eu já senti. E agora eu vivo isso. Eu vou garantir que vampiros vermelhos não sejam mais monstros. Eu prometo. – Kevin baixou a cabeça e sussurrou para a sua Deusa: – Obrigado, Nyx. Por favor, receba este garoto no seu bosque. Ele não pediu por esse destino. Não importa quem ele era quando humano, bom ou mau, ele não merecia isso.

Então, devagar, Kevin puxou o lençol ensanguentado sobre o corpo do jovem vampiro vermelho.

Kevin enfiou o vidro dentro do bolso interno da mochila – bem longe dos cookies deliciosos da sua avó. Então ele colocou a tira da mochila sobre o ombro de novo e foi até a porta, abrindo-a apenas o suficiente para espiar o corredor e dando um suspiro de alívio ao ver que estava deserto.

Sem perder nem mais um segundo, Kevin se apressou pelo corredor e saiu pela porta. Ele contornou discretamente o lado do necrotério que dava para o resto dos jardins da escola e analisou a área. Uma sensação familiar de apreensão terrível subiu pela sua espinha quando ele percebeu que, em vez de um céu preto, o mundo ao redor dele tinha começado a se alterar para cinza e rosa.

O amanhecer! Kevin quis dar um chute nele próprio. É claro que eu me sinto apreensivo. Em quinze minutos, o sol vai se levantar e fritar a minha bunda!

Ele não tinha tempo a perder. Puxando o capuz para cobrir a maior parte do seu rosto, Kevin caminhou rapidamente com confiança pelo jardim da escola.

Ele não viu nenhum novato, e os únicos vampiros que ele notou eram Guerreiros Filhos de Erebus pegando o turno do dia e aliviando os vigias da noite. Kevin atravessou o campus até a entrada dos fundos do Ginásio e do centro equestre abandonado. Ele manteve o rosto virado para o outro lado quando passou por dois Guerreiros que estavam discutindo as instruções para os oficiais que Neferet havia anunciado, de que eles deveriam comparecer ao auditório às 2000 horas5 do dia seguinte.

Ele teve que dar tudo de si para não socar o ar e gritar “Ótimo!”. Um informe para os oficiais era exatamente tudo que ele precisava – e o que Dragon precisava ouvir!

Quando Kevin entrou no Ginásio, ele seguiu pelo corredor, virando algumas vezes até chegar a uma porta comum, que ele esperava desesperadamente que desse para o porão, assim como era no mundo de Zo. Ele tentou abrir a maçaneta da porta, e ela estava trancada!

– Droga! – Kevin sussurrou a palavra. – Agora o que é que eu vou fazer?

Se alguém o visse durante as horas de luz do dia, ele seria pego. Vampiros vermelhos nunca ficavam na Morada da Noite depois do amanhecer. Ele não podia nem fingir ignorância e dizer que estava perdido. Ninguém acreditaria nele. Desde o momento em que um novato era Marcado como vermelho e trazido para a Morada da Noite, era incutido dentro dele que ele tinha que estar nos túneis antes do nascer do sol. A única exceção era se o vampiro vermelho estivesse em uma missão do Exército Vermelho.

A mente de Kevin acelerou e rejeitou uma ideia após a outra. Ele simplesmente não tinha mais tempo. Ele precisava se esconder no porão.

Ele precisava de ajuda.

– Droga, se pelo menos eu conseguisse passar por aquele buraco da fechadura como o ar... – Kevin murmurou para si mesmo enquanto estalava os dedos. Ele queria ter conhecido esta Morada da Noite como ele conhecia os túneis, assim saberia onde se esconder e ficar seguro até...

Ele teve uma ideia! Ele não tinha tempo para pensar se estava cometendo um erro. Ele não tinha tempo para pensar melhor. Ele só teve tempo para fechar os olhos e respirar profundamente algumas vezes para se acalmar. Então ele abriu os olhos, encarou o leste e fez a invocação.

– Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder no meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim!

A resposta veio rápido e de forma desconcertante. Diante dele, várias fadas brilhantes parecidas com vaga-lumes brotaram de repente, pairando na altura dos seus olhos, trazendo com elas a sensação de alguma coisa rastejando na pele que Kevin tinha todas as vezes que invocava Magia Antiga.

– Garoto Redbird! Você nos chamou de novo! E nós viemos! Nós viemos! – Elas ficaram esvoaçando de um lado para o outro, mudando de lugar enquanto os seus corpinhos se alteravam de insetos para mulheres aladas e depois para insetos de novo.

– Muito obrigado mesmo! Ok, eu só preciso de uma coisa, mas tem que ser muito rápido. – Ele apontou para o buraco da fechadura na porta. – Vocês podem entrar ali e destrancar essa porta? Eu tenho que entrar aí imediatamente.

– Nós podemos fazer isso – disse uma fada esvoaçante.

– Mas qual é o pagamento? Qual é o pagamento? – gorjeou a outra.

Ele abriu a boca para dizer às fadas que iria pagar com mais sangue, mas um espírito risonho, que mostrava muitos dentes afiados quando ria, interrompeu Kevin antes que ele conseguisse falar.

– Nada de sangue desta vez! Nós queremos algo especial!

– Sim – a primeira fada concordou. – Especial!

Kevin teve vontade de arrancar os cabelos de frustração e se perguntou brevemente se os espíritos considerariam o seu cabelo um pagamento especial. Felizmente, ele teve outra ideia. Ele enfiou a mão dentro da bolsa de sua avó e pegou um cheiroso cookie de chocolate e lavanda feito em casa. Erguendo-o para que vissem, ele sorriu para os espíritos.

– Bom, é impossível alguma coisa ser mais especial do que este cookie. Ele foi feito pela minha avó, a Mulher Sábia que estava na montanha comigo. Vocês sabem, vocês comeram uma das bolsas medicinais dela.

– Ooooooh! – Os espíritos ficaram ainda mais brilhantes enquanto pairavam no ar ao redor do cookie. Então, juntas, para que as suas vozes ecoassem misteriosamente nas paredes de pedra ao redor dele, as fadas falaram de modo ritmado:

“Um pagamento especial nós vemos sim

Oferecido por ti e aceito por mim.

O nosso acordo está selado – que assim seja!”

A revoada de espíritos do ar de Magia Antiga atacou o cookie como uma nuvem de gafanhotos. Kevin deu um gritinho e o soltou enquanto eles devoravam cada migalha. Então, sem nenhuma hesitação, os espíritos incandescentes mergulharam para baixo, passando através do buraco da fechadura, por baixo da porta e pelo vão do batente.

Kevin ficou parado ali, perguntando-se o que iria acontecer em seguida, quando ele ouviu o trinco girar. Ele segurou a maçaneta e empurrou a porta. Ela se abriu facilmente. Ele a fechou atrás de si e, quando se virou para seguir seu caminho descendo a escada íngreme até o porão, um único espírito apareceu, flutuando perto de sua cabeça.

– Obrigado – Kevin agradeceu. – Vocês me ajudaram muito.

– Nós gostamos do seu chamado, Garoto Redbird. Nós gostamos do seu pagamento. Chame quando precisar de nós, mas não se esqueça de que nós gostamos de pagamento especial... pagamento especial... – enquanto o espírito falava, a sua aparência continuou a se alterar de um grande vaga-lume para uma bela mulher alada e então para algo com mais braços e pernas do que ela deveria ter e uma boca que parecia crescer sem parar, até que o rosto dela pareceu se dividir no meio.

E então, em um lampejo de luz, o espírito desapareceu, deixando Kevin com uma terrível sensação de apreensão.


Zoey

– Z? Você está aí? – Stark me chamou ao entrar nos nossos aposentos. – Recebi sua mensagem de texto para vir encontrar você.

– Você chegou cedo! – eu gritei do banheiro. – Não se mexa!

– Ahn?

– Eu disse “não se mexa”! Fique aí na porta. Feche os olhos!

– É pra eu fechar os olhos?

Eu escutei o tom confuso na voz dele, de quem estava achando graça, mas eu realmente não queria que ele estragasse a minha surpresa.

– Se você não quer fechar os olhos, então vire de costas.

– Ok! Ok! Estou fechando os olhos. Ahn, Z. O que você está fazendo?

O que eu estava fazendo? Eu estava tentando compensar o meu Guerreiro por deixá-lo totalmente preocupado e ser romântica ao mesmo tempo.

– Aguente aí. Você vai ver em um segundo!

– Eu achei que você nem voltaria para cá até depois do nascer do sol. Você não estava na estação com Damien e Kramisha?

– Sim! – eu gritei da porta do banheiro. – Bom, fiquei lá um tempo, mas Aphrodite decidiu palpitar na decoração do restaurante, e eu tive que ir embora.

– Ficaram se bicando muito?

– Pois é – eu disse. – Ok, estou saindo. Mantenha os olhos fechados até eu falar pra você abrir, ok?

– Como quiser, minha Rainha.

Eu senti o sorriso na voz dele, o que me fez sorrir de volta, e então dei uma última conferida em mim mesma no espelho. Eu não usava muita maquiagem no geral. Na verdade, eu tinha uma questão em relação à maquiagem. Eu detestava que a sociedade dissesse que tínhamos que usar isso para “parecer o nosso melhor”. Parecer o nosso melhor? Com um monte de porcaria espalhada por todo o rosto, escondendo tudo o que realmente somos? Hum, não. Eu concordo com a fabulosa Alicia Keys – eu não quero cobrir o meu rosto, nem a minha mente, nem a minha alma, não quero cobrir nada. Então, eu ajeitei o meu cabelo e sorri para a minha cara recém-lavada. Pronta!

Coloquei a cabeça para fora do banheiro para dar uma espiada. Nada de Stark. Descalça, entrei pisando de leve no nosso quarto, endireitando a toalha de piquenique que eu havia estendido no chão e afofando as almofadas que eu tinha disposto ali perfeitamente para nos sentarmos.

– Z?

– Fique de olhos fechados! – Atravessei rapidamente o quarto até a sala de estar e sorri quando vi o meu Guerreiro ainda parado na frente da porta com os olhos fechados. Fui até ele e peguei a sua mão.

– Posso abrir os olhos agora?

– Não, só quando eu disser que pode, mas me siga.

– Eu vou trombar com alguma coisa.

– Não seja um crianção. Eu guio você. – Eu o conduzi devagar ao redor da mesa de café e de outros obstáculos, finalmente colocando-o ao lado da toalha de piquenique. – Ok, aguente aí só mais um segundo. – Eu o deixei parado ali e fui rapidamente até o outro lado da toalha, apertando o controle remoto da grande TV que estava pendurada na parede, conferindo para ter certeza de que estava sem som. Então eu ajeitei nervosamente meu cabelo de novo antes de dar a autorização. – Ok, pode abrir os olhos agora!

Ele abriu, e os seus lábios se curvaram naquele meio-sorriso sexy que eu amava tanto.

– Z! Você está praticamente nua!

Eu senti minhas bochechas ficando vermelhas, mas abri um sorriso para ele.

– Não, estou com uma das suas camisetas.

– Sim, minha camiseta velha e esburacada que é totalmente transparente. Caramba, Z! Em mim ela não fica assim!

– Hihi! – eu ri. – Então, você está com fome?

– Só se for fome de você!

– Não, seu tonto. Bom, sim, seu tonto, mas que tal a gente comer algo de verdade primeiro? – Apontei para o piquenique que eu havia preparado.

Com relutância, ele desviou o olhar do meu corpo para conferir o que estava sobre a toalha.

– Z, isso são nachos? Com tudo para colocar neles?

– Aham! Eu inclusive coloquei pimenta-jalapeño. Um monte, porque, apesar de eu achar que elas são as pimentas do inferno enviadas para queimar as bocas até você pedir arrego, sei que você gosta delas.

Sentei em uma das almofadas e dei tapinhas na outra do meu lado, indicando para Stark se juntar a mim.

– Nachos são a minha comida preferida – ele falou ao se sentar.

– Eu sei.

Ele ergueu um copo gelado, cheirou e então deu um gole grande antes de exclamar:

– E Dr. Pepper! Você trouxe Dr. Pepper para mim!

– Eu sei o quanto você adora isso, apesar de eu discordar totalmente de você porque isso é...

– Uma abominação de refrigerante de cola – ele terminou a frase por mim.

– Sim, é exatamente isso.

Ele estendeu a mão para pegar um nacho e o seu olhar se levantou para a tela da TV.

– Caramba, Z! Game of Thrones? Você vai mesmo assistir a um episódio comigo?

– Vou assistir a quantos episódios você quiser.

– Mas você odeia Game of Thrones.

– Não, eu não odeio. Eu não assisto porque Cersei me lembra demais a loucura de Neferet, mas não tem que ser tudo sempre do meu jeito, então podemos assistir.

Stark me encarou.

– O que você fez com a minha Zoey?

Eu dei um empurrãozinho no ombro dele com o meu.

– Ah, para com isso.

– Sério, eu estou encrencado?

– Claro que não!

– Ah, droga. – Ele soltou o nacho e virou meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. – O que você fez?

Eu suspirei.

– Eu tenho agido como uma idiota egoísta desde que Kevin foi embora, e sinto muito. Sinto muito mesmo, Stark. Sei que você anda preocupado, e esta é minha maneira de pedir desculpas.

– Ei, é normal que você tenha andado preocupada, principalmente sabendo que Kev está usando Magia Antiga.

– Normal, sim, mas é muito imaturo da minha parte estar tão distraída com o fato de você estar estressado por minha causa e as minhas Grandes Sacerdotisas terem que tocar o barco enquanto estou desse jeito. Eu vou fazer melhor do que isso, prometo.

Stark tocou o meu rosto com delicadeza.

– Você sempre faz o melhor, Z. Eu sabia que você ia dar a volta por cima.

– Você entende o quanto eu te amo? – falei sem pensar.

– Sim, mas é bom ouvir você dizer isso.

Ele devorou um nacho que estava coberto com queijo pastoso e jalapeños e depois lambeu o queijo extra que ficou nos seus dedos enquanto engolia.

– Você é tão bom. Você sempre está aqui por mim, mas também me dá espaço para lidar com as minhas coisas sozinha. Isso significa muito para mim, principalmente porque eu sei que você pode sentir o quanto estou distraída.

– Não acho que você está distraída nesse momento. – Ele se inclinou e tocou os meus lábios com os seus.

Eu sorri.

– Não, você tem cem por cento da minha atenção agora. E eu sei que o sol vai nascer logo, mas, se você conseguir ficar acordado um pouco, prometo que, enquanto você estiver consciente, vai ter cem por cento de mim.

Eu coloquei os braços em volta dos seus ombros largos e o puxei para mim. Os nossos lábios se encontraram de novo, e o beijo se aprofundou. Eu amei o gosto dele, uma mistura do chiclete de hortelã que estava mascando, da doçura nojenta do Dr. Pepper – que de repente não era nojenta de modo algum – e do salgado dos nachos.

Enquanto ele me pressionava contra as almofadas, os seus lábios desceram pelo meu pescoço, dando beijos e mordidinhas na minha pele, o que me fez gemer e me deixou arrepiada.

– Que tal se a gente não dormir? – A voz dele era baixa, e o seu hálito era quente e sexy contra a minha pele. – Que tal eu beijar cada centímetro de você, depois a gente come nachos, assiste a Game of Thrones, e então eu beijo cada centímetro de você de novo?

Ele colocou a língua para fora quando começou a encontrar os buracos na sua velha camiseta, beijando os meus seios através deles.

– Mas você tem que dar aula amanhã – eu soei sem fôlego, como se tivesse acabado de subir correndo vários lances de escada.

– Amanhã é aula de esgrima, não de arco. Damien pode me substituir. Ele é o melhor espadachim mesmo.

Devagar, ele começou a tirar a camiseta por sobre a minha cabeça.

– Caramba, Z! Você realmente não está usando nada exceto a minha camiseta.

– Surpresa! – eu exclamei.

E então o meu peito começou a esquentar e o meu estômago se contraiu.

– Zoey? – Stark falou abruptamente, puxando a minha camiseta para baixo e me encarando. – Está acontecendo de novo, não está?

Em meio a lágrimas de medo e frustração, eu assenti.

– Kevin está usando Magia Antiga de novo – eu falei cheia de tristeza. – E ele não tem a menor ideia de como está se metendo em encrenca.

– Shhh, eu sei, eu sei. Venha cá, minha Rainha.

Stark me puxou para os seus braços e me abraçou enquanto aquele calor terrivelmente familiar diminuía, deixando apenas um enjoo no meu estômago e a clareza sobre o que eu tinha que fazer. Agora. Eu precisava parar de pensar sobre isso. Parar de ficar pesando as consequências. E simplesmente... fazer.

Ah. Inferno.

5 No horário militar, 2000 horas equivale a 20 horas ou 8h00 PM. (N.T.)


14

Outro Kevin

Kevin despertou de repente e, nos seus primeiros minutos de consciência, ele achou que estava de volta aos túneis embaixo da estação – antes mesmo de ter se deslocado para o mundo de Zoey, antes do retorno da sua humanidade. Um gosto amargo de desespero inundou a sua boca com náusea ao pensar em tentar controlar a fome e manter a sanidade.

Então ele se sentou, bateu a cabeça em um dos engradados de madeira entre os quais estava encolhido, e a sua memória acordou junto com ele. Kevin congelou e olhou silenciosamente em volta. Nada se mexeu. Ninguém tinha entrado no porão. Ele conferiu o seu relógio interno – os vampiros vermelhos sempre sabiam a hora exata do nascer e do pôr do sol.

– Dezessete horas e vinte e dois minutos. Pôr do sol – ele falou para si mesmo por força do hábito. Kevin havia feito isso muitas vezes no último ano, desde que tinha sido Marcado como um novato vermelho e depois se Transformado. Foi uma forma que encontrou de tentar manter a sua sanidade durante aquele tempo horrível, e agora isso o reconfortava. Ele se alongou, fazendo só uma pequena careta para a dor que o seu ferimento ainda causava, embora ele se sentisse muito bem. – Com fome, mas bem. – Então ele se lembrou, e o seu rosto se abriu em um sorriso de gratidão. – Os cookies da Vovó!

Kevin pegou a mochila e tirou vários cookies de dentro dela. Ao fazer isso, sua mão topou com alguma coisa dura. Perguntando-se o que mais a sua avó tinha colocado ali, ele espiou o interior da bolsa e deu um suspiro longo e feliz.

Ele tirou a garrafa térmica metálica que estava no fundo da bolsa, abriu a tampa, cheirou e facilmente reconheceu o aroma de sangue.

– Ela pensou em tudo! – ele bebeu ruidosamente o sangue da garrafa fria enquanto comia os cookies.

Kevin não precisava ter um abastecimento constante de sangue. Ele não iria perder a cabeça nem atacar alguém na rua como um vampiro vermelho normal faria depois de alguns dias sem beber, mas as suas costas ainda precisavam se curar e o sangue definitivamente ia deixá-lo mais forte.

– Obrigado, Vó – ele disse entre mordidas nos cookies e sentiu uma onda de saudade de casa.

Pelo resto do tempo que levou para Kevin terminar o seu café da manhã, ele se permitiu desejar que pudesse sair daquele porão e daquela Morada da Noite, ir até a casa de sua avó e ficar com ela comendo cookies e trabalhando na fazenda de lavandas, ignorando esse mundo todo ferrado. Quando terminou de comer, ele espanou os farelos de sua blusa e, junto com eles, expulsou de sua mente aquele desejo egoísta e impossível.

Ele conferiu o seu relógio interno infalível, percebendo que tinha cerca de duas horas até a reunião de briefing que Neferet havia convocado.

– Ok, eu tenho que ficar aqui embaixo pelo menos o tempo suficiente para que os primeiros ônibus tragam os novatos e vampiros vermelhos dos túneis para treinar com os Guerreiros Filhos de Erebus. Então, posso explorar um pouco, já que não fiz nada além de desmaiar quando vim da primeira vez.

Ele encontrou o interruptor para acender as arandelas da parede, transformando o porão escuro em um lugar estranho que quase parecia um cemitério submerso, com as sombras tremulantes da iluminação a gás que bruxuleavam pelas várias fileiras de caixas de madeira compridas em pilhas de duas ou três.

– Bom, é diferente do porão da Morada da Noite de Zo, com certeza.

Zo dissera a ele que poderia haver uma variedade de armas escondidas no porão, mas ali definitivamente não tinha nenhuma espada com pedras preciosas nem bestas antigas de valor incalculável à vista. Só havia caixas de madeira. Um monte delas.

Ele tentou abrir uma, mas estava fechada com pregos. Ele procurou pela sala grande e ampla, e não levou muito tempo para encontrar um pé-de-cabra em uma pilha de martelos, pregos e outras pequenas ferramentas descartadas. Trabalhando com cuidado, para que pudesse fechar a caixa de novo depois de verificar o conteúdo, Kevin levantou a tampa da primeira caixa.

A princípio, quando ele olhou para dentro, a sua mente não registrou o que estava vendo. Ele estendeu a mão e tocou em uma daquelas coisas, e a verdade fez com que Kevin se sentisse tão quente e tonto que ele deu vários passos cambaleantes para trás.

– Fique calmo, Kev – ele disse a si mesmo. Ele estalou os nós dos dedos. Sacudiu as mãos. Passou os dedos pelo seu cabelo escuro. E então voltou até a caixa.

As armas eram enormes e tinham uma aparência estranha, e então ele viu que havia um papel guardado junto na caixa. Nele, Kevin leu: LANÇADOR DE GRANADAS MULTITIRO EX-41.

– Isso é ruim. Isso é muito ruim.

Ele não queria olhar o que tinha nas outras caixas, mas precisava fazer isso – assim, ele abriu cada um dos cinquenta engradados que mais pareciam caixões. Metade tinha lançadores de granadas acompanhados da munição. O resto continha metralhadoras M16, mais um monte de munição e um punhado de granadas.

A mente de Kevin zunia em um princípio de pânico enquanto ele memorizava tudo que viu. Ele tinha que alertar Dragon. Os exércitos de Neferet haviam assumido o controle de Oklahoma, Texas, Arkansas e Kansas em uma expansão coordenada de ataques surpresa no meio da noite. Esse controle tinha se espalhado como um incêndio para Louisiana, Missouri, Nebraska e Iowa. Eles destruíram os depósitos de armas da Guarda Nacional em cada um desses estados e confiscaram veículos militares. Mantendo a tradição dos vampiros, eles não haviam utilizado armas modernas. Os dentes e as garras do Exército Vermelho, assim como a habilidade de controlar as mentes dos humanos, haviam sido o suficiente para derrotar a pequena Resistência humana.

Porém, Kevin sabia que, assim como Neferet continuava pressionando – com sua guerra declarada contra todos os humanos –, ela estava encontrando cada vez mais oposição. Os humanos estavam levantando barricadas nas fronteiras estaduais. Como Kevin era apenas um tenente no Exército Vermelho, ele não ficava a par do “como” e do “porquê” das táticas militares, mas tinha escutado o General Dominick reclamar que Neferet estava gastando tempo demais tentando negociar com os governadores de cada estado. Ele, é claro, achava melhor atacar, atacar, atacar.

– Aparentemente, Neferet também acha isso – Kevin disse sombriamente. – A diferença é que ela quer atacar com armas modernas – e então outro pensamento o esmagou. – Merda! Este não deve ser o único esconderijo de armas que ela tem! Todos aqueles depósitos de armas... merda! Merda! Merda! Claro, os exércitos queimaram tudo, mas eu aposto a minha humanidade que eles não queimaram as armas que encontraram dentro deles.

Ele ficou andando em círculos.

– Isso muda tudo. A Resistência precisa agir imediatamente! Nós temos que depor Neferet e acabar com essa guerra antes que ela comece a usar essas armas. E eu tenho que mandar uma mensagem para Dragon. Agora.

Kevin conferiu seu relógio interno de novo. Ele tinha cerca de quarenta e cinco minutos antes do briefing de Neferet, o que deveria ser tempo suficiente para caminhar sem destino próprio pelos jardins da escola, esperando que o corvo de Anastasia o encontrasse.

Ele tomou cuidado para que os engradados parecessem intocados antes de reaplicar o perfume de sangue nojento. Então ele colocou a mochila de Vovó sobre o ombro e subiu dois degraus de cada vez, parando na frente da porta. Decidindo que a melhor coisa a fazer seria não tentar se esgueirar, ele prendeu a respiração e abriu a porta, saindo rapidamente para o corredor. Ele tinha dado só um passo quando uma voz atrás dele pareceu preencher o ambiente – e congelou o seu coração.

– Ei! Que diabos você estava fazendo lá embaixo?

Kevin se virou para ver o General Stark e um dos seus tenentes se aproximando dele. Ainda por cima, Stark parecia irritado.

– Desculpe, senhor. Eu devo ter virado no lugar errado – Kevin fez uma grande demonstração ficando rapidamente em posição de sentido e evitando o contato visual.

– Essa porta deveria estar trancada. Ordens de Neferet – Stark afirmou.

– Desculpe, senhor – Kevin repetiu, ainda em posição de sentido. – Não estava trancada.

– Dallas, Artus tem as chaves. Encontre-o e tranque essa maldita porta.

– Sim, vou fazer isso, general. – O tenente de Stark começou a ir embora, mas então deu um tapa na sua testa e se virou. – Acabei de perceber quem é esse garoto. Ele é um dos tenentes do General Dominick.

– Dominick? O general vermelho que sumiu com um pelotão inteiro de novatos e soldados vermelhos? – Stark perguntou, com seus olhos aguçados examinando Kevin.

– Sim, ele mesmo, senhor – Dallas respondeu.

Stark deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Kevin.

– Quem é você?

– Tenente Heffer, senhor!

– Sob o comando de quem?

– General Dominick, senhor!

– E onde está o seu general, Tenente Heffer?

– Perdão, senhor?

Stark suspirou alto.

– Vampiros vermelhos são mesmo um pé-no-saco – Stark falou para Dallas como se Kevin não estivesse diante dele em posição de sentido, escutando cada palavra.

– Sim, eles são muito burros. Até os oficiais. – Dallas chegou bem perto do rosto de Kevin. – Ei! O general fez uma pergunta, garoto! Responda, porra!

– E-eu não sei onde o meu general está. – Kevin se concentrou em se parecer com qualquer outro tenente do Exército Vermelho: prestativo e confuso.

– Quando foi a última vez que você o viu? – Stark perguntou.

– Vários dias atrás, senhor. Ele me deu ordens, e eu estava cumprindo essa missão desde então.

Dallas bufou.

– Essa missão incluía invadir um porão trancado?

– Não, Tenente! Isso foi um erro.

– O que você fez lá embaixo? – Stark o questionou.

– Nada. Quando vi que estava no lugar errado, eu saí, senhor.

– Onde diabos você deveria estar? – Dallas quis saber.

– Treinando. Eu voltei da minha missão e então era hora de treinar. Pensei que ia encontrar o General Dominick nos túneis hoje à noite e dar o meu relatório.

– Qual era a sua missão, Tenente? – Stark perguntou.

– Cinco dias atrás, o General Dominick me enviou para Stroud. Ele tinha ouvido falar que a Resistência encontrou esconderijos naquela área e eu deveria fazer um reconhecimento por lá e depois voltar para um relatório. – Stroud ficava mais ou menos no meio do caminho entre Tulsa e Oklahoma City, e não perto o bastante de Sapulpa para causar algum problema para Dragon e a Resistência, então desviar a atenção de Stark para lá não pareceu uma má ideia para Kev.

– Você não achou que tinha algo estranho quando não conseguiu encontrar o seu general e o resto do seu pelotão? – Stark perguntou.

– Senhor, eu acabei de voltar. Agora mesmo.

– Ah, que merda, dá um tempo. Você espera que o General Stark acredite que levou cinco dias para você checar uma bosta de cidade como Stroud? – Dallas zombou.

– Não, Tenente. E-eu me perdi.

– Isso só piora – Dallas resmungou.

– Explique-se, Tenente – Stark ordenou.

Evitando contato visual, Kevin falou rapidamente e com cuidado.

– Senhor, o General Dominick me deu ordens para verificar a área de Stroud, procurando membros da Resistência. Eu fiz isso. Comecei pela cidade. Não encontrei nenhum sinal da Resistência por lá, mas ouvi rumores de que havia uma atividade incomum perto do Rio Deep Fork. Como o general ordenou, eu me abriguei na cidade e no dia seguinte fui até o rio. Encontrei sinais de acampamentos, mas nada específico da Resistência. Quando tentei sair de lá, percebi que estava perdido. Não encontrei nenhuma estrada principal até o pôr do sol de hoje. Então eu confisquei um carro e voltei imediatamente para a Morada da Noite.

– Perdido por dias... que imbecil – Dallas murmurou.

– E você não teve nenhum contato com o General Dominick desde que ele deu essas ordens a você? – Stark perguntou.

– Não, senhor. Nenhum.

– Você não pensou em ligar para alguém com o seu celular quando ficou perdido? Ou você só não pensou nessa possibilidade? – Dallas zombou de Kevin.

Kevin resistiu ao impulso de dar um soco naquela cara estreita, e não demonstrou qualquer sinal de emoção, exceto confusão, respondendo imediatamente.

– Eu pensei, mas não tinha sinal de celular, Tenente.

– Tenente Heffer, o General Dominick mencionou para onde ele e os seus soldados estavam indo? – Stark questionou.

Kevin deixou o seu rosto mostrar surpresa.

– É claro, senhor. Ele disse que ia marchar seguindo ordens.

– Ordens? De quem? – Stark perguntou.

– Perdão, senhor, mas essa informação não chega até minha patente.

– Sim, está certo. Eles estavam indo em qual direção? – Stark continuou o interrogatório.

Então Kevin começou a levar Stark para um rastro totalmente falso, na direção oposta de Sapulpa, da Resistência e da sua montanha protegida por Magia Antiga.

– Ele disse que a milícia estadual estava vindo pelo Novo México e atravessando o Texas pelo Rio Vermelho. Acredito que o general estava indo para Elmer para preparar uma emboscada.

– A milícia do Novo México? Isso é bobagem. Não se ouve um pio de nenhuma das milícias dos nossos estados vizinhos há meses. Ele está inventando coisas. É uma perda de tempo conversar com ele. Com qualquer um deles – Dallas disse, balançando a cabeça de desgosto.

Stark ignorou Dallas.

– Não, alguma coisa definitivamente parece errada. Meu instinto me diz isso há semanas. Tem coisas acontecendo que a gente não sabe. Heffer, quero que você venha comigo.

– Sim, senhor! É uma honra, senhor!

Dallas revirou os olhos.

– General, ele fede.

– Todos eles fedem, mas este garoto vampiro vermelho nos deu a única pista que tivemos sobre um general desaparecido e os seus soldados. Vá pegar aquela chave com Artus e depois nos encontre no auditório para o briefing de Neferet.

– Sim, senhor – Dallas disse antes de dar outro olhar de nojo para Kevin e sair correndo.

– Ok, siga-me, Tenente. E não se perca.

– Sim, senhor!

A mente de Kevin estava em um turbilhão enquanto ele seguia o General Stark. Ele precisava ir à reunião de briefing, mas também tinha que dar um jeito de se livrar de Stark e do babaca do Dallas para ir lá fora e esperar que o corvo de Anastasia o encontrasse. Dragon precisava saber sobre o esconderijo de armas. Ainda hoje.

– Ei, chega de andar feito uma lesma! – Stark falou rispidamente para Kevin, que estava, de fato, andando feito uma lesma.

– Sim, senhor! – Ele acelerou o passo e estava bem atrás de Stark ao sair do Ginásio e entrar no corredor que levava à entrada da escola e ao auditório quando uma voz familiar, sexy e sarcástica interrompeu o seu plano de fuga.

– E aí, Cara do Arco. Eu diria “que bom ver você”, mas nós dois sabemos que isso é mentira.

Stark fez uma pausa para cumprimentá-la quando ela entrou no corredor, vindo dos aposentos das Sacerdotisas. Kevin começou a analisar Aphrodite, reparando em nuances que ele não tinha sido capaz de ver na escuridão dos jardins do necrotério.

Ela parece cansada. Muito cansada. E magra. Quase frágil. Esta Aphrodite usava muito mais maquiagem do que a do mundo de Zo, e Kevin se perguntou se poderia ser para tentar encobrir olheiras e estresse. E a boca dela está diferente também. Mais dura. Como se ela não sorrisse nunca. Aquilo fez o coração dele doer, e ele quis colocar os braços em volta dela e dizer que tudo ia ficar bem. Inconscientemente, os seus pés começaram a dar um passo em frente quando a voz de Stark o trouxe de volta para a realidade.

– Desde quando mentir é um problema para você, Aphrodite? E não me chame assim.

– Oh, tudo bem, sinto muito. Eu me esqueço de que agora você é o General Cara do Arco. Viva. Todos nós ficamos tão elevados com essa guerra. – Ela franziu o nariz lindo e perfeito ao olhar para Kevin, logo atrás de Stark. – Eca. Isso fede.

– Ele também é um tenente no exército da sua Grande Sacerdotisa e coloca a sua vida em risco toda vez que sai desta Morada da Noite. Acho que o cheiro não faria nenhuma maldita diferença para você se só ele se colocasse entre você e uma turba de humanos.

Aphrodite fez uma cena, olhando em volta do corredor, o qual estava ficando cada vez mais apinhado de soldados, Guerreiros Filhos de Erebus e Sacerdotisas indo na direção do auditório.

– Engraçado, mas eu não estou vendo nenhum humano por perto.

– Engraçado? Sabe o que eu acho engraçado? O boato que eu ouvi de que você pode se juntar ao Exército Vermelho, então o meu conselho é que é melhor você já ir se acostumando com esse cheiro. – Stark fez um movimento de cabeça na direção de Kevin. – Vamos, Tenente. – Ele se curvou para Aphrodite de modo zombeteiro. – Tenha um ótimo dia, Profetisa.

 


C O N T I N U A

No instante em que Kevin passou entre os mundos, ele conseguiu sentir: aquela terrível e desesperadora sensação de estar perdido. O estranhamento que era o efeito do feitiço de Zoey – aquele que o havia atraído e depois devolvido para o seu próprio mundo – era avassalador. A sensação de estar irremediavelmente perdido era tão forte, tão urgente, que o fez lembrar de um dia de primavera quando tinha sete anos e havia ido fazer compras com sua mãe no Super Target da Rua Setenta e Um em Tulsa. Ele havia se afastado enquanto a mãe e as irmãs estavam olhando roupas femininas. Quando se deu conta, estava sentado no meio do departamento de eletrodomésticos chorando incontrolavelmente.
Essa era a mesma sensação terrível, só que agora não haveria nenhum funcionário amigável para reconfortá-lo enquanto ele esperava que sua mãe respondesse ao aviso de criança perdida que soava pelo alto-falante. Sim, ele era um vampiro completamente Transformado – um tenente no Exército Vermelho –, mas, definitivamente, havia momentos em que ele desejava que alguém o salvasse.
– Não é possível, Kev. Recomponha-se – ele murmurou para si mesmo.
Com um forte barulho de sopro, como do ar sendo expirado, o bizarro buraco entre os dois mundos desapareceu, deixando apenas uma sorveira, deslocada em seu verde abundante, no espaço onde o tecido entre os mundos havia rompido. Enquanto a linha de comunicação com sua irmã Zoey se fechava – juntamente com o mundo dela, no qual ele se sentiu mais em casa do que no seu próprio –, Kevin desejou mais do que qualquer coisa que pudesse retornar ao seu eu de sete anos, sentar e chorar para que sua mãe o salvasse.
Só que ele não era mais criança, e a sua mãe havia parado de ser mamãe anos atrás, então Kevin fez o que havia aconselhado a si mesmo: ele se recompôs. Para se reconfortar, ele tocou a bolsinha pendurada por uma tira de couro em seu pescoço e se tranquilizou por ela ter feito a viagem junto com ele. Conferiu o bolso interno da sua jaqueta para se certificar de que a cópia do diário de Neferet ainda estava ali, e então analisou o cenário ao seu redor.
Estava escuro, assim como quando ele deixou o mundo de Zo, e frio – embora não houvesse nenhuma neve cobrindo o gramado marrom do inverno. Ele olhou para a sua direita. Não havia um muro de pedra fechando a tumba da Grande Sacerdotisa Neferet. Havia apenas uma gruta e um pequeno lago meio congelado.
É porque neste mundo Neferet está livre e no comando. Só pensar isso fez com que o seu nível de estresse aumentasse.

 


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Kevin estalou as juntas dos dedos enquanto levantava o olhar, seguindo a colina acima da gruta. Como esperado, carvalhos antigos formavam um pano de fundo para moitas enormes de azaleias adormecidas.

– Aqui com certeza é o Woodward Park, mas não aquele do qual eu acabei de sair – Kevin suspirou.

Ok, uma coisa de cada vez, é só o que eu posso fazer, mas eu preciso realmente fazer algo de fato, e não apenas ficar parado aqui estalando os dedos e me sentindo péssimo.

Kevin tinha um plano, mas era um que fazia o seu estômago se contrair de nervoso. Ele tinha que encontrar alguém e não tinha certeza se as coisas iam transcorrer muito bem. As pessoas eram as mesmas, mas perturbadoramente diferentes aqui, e ele não a via há mais de um ano.

E se ela não quisesse vê-lo de jeito nenhum? Ou pior, e se ela o visse, mas o rejeitasse – se recusasse a ver que ele era diferente dos outros e não o convidasse para entrar? Então que diabos eu vou fazer? E como eu vou aguentar se ela virar as costas para mim?

– Eu tenho que arriscar. Se eu quero tentar acertar as coisas, não tenho muita escolha. Preciso de aliados, e ela é a melhor pessoa em quem consigo pensar – Kevin disse a si mesmo enquanto atravessava o frágil gramado marrom em direção à calçada na Rua Vinte e Um que contornava o parque. Andando rapidamente, ele virou à direita, subindo a pequena ladeira até a fraca iluminação em frente à Utica Square.1

Era uma caminhada curta até as lojas e restaurantes sofisticados que rodeavam a praça, apesar de Kevin se pegar desejando que demorasse mais. O grande e antigo relógio de quatro faces da Utica, que ficava imponente na frente da loja Russell Stover Candies, dizia que já passava da meia-noite, mas o local estava fervilhando com atividade. Desde que Neferet havia assumido o controle de Tulsa e da maior parte do Meio-Oeste, o horário comercial dos humanos havia mudado drasticamente para refletir o fato de que eram os vampiros que mandavam, e não os humanos. As lojas da Utica Square – assim como qualquer outra loja ou restaurante em Tulsa e na área ao redor que os vampiros poderiam querer frequentar – abriam ao anoitecer e fechavam ao nascer do sol.

Havia, é claro, algumas poucas lojas que abriam para os humanos durante o dia – a maioria delas mercearias, postos de gasolina e que providenciavam outras necessidades, mas, comparadas aos negócios frequentados por vampiros, elas eram pobres lembranças de um passado em vias de extinção.

Nesta fria véspera de Natal, a Utica Square estava enfeitada com luzes – não em comemoração ao Natal, mas sim porque Neferet gostava que tudo parecesse brilhante, reluzente e bonito na superfície, não importando o que acontecia logo abaixo das belas aparências.

Vampiros e novatos azuis passaram por Kevin na calçada, mal olhando para ele, o que o tranquilizou. Se um alerta tivesse soado quando ele, General Dominick e outros do seu pelotão do Exército Vermelho foram dados como desaparecidos, os Guerreiros Filhos de Erebus teriam espalhado cartazes em todos os lugares públicos de Tulsa, e Kevin definitivamente seria interrogado.

Os poucos humanos que estavam na rua também reagiram normalmente a ele. Não fizeram contato visual e abriram bastante espaço para que ele passasse, mudando de calçada ou disparando para dentro de qualquer restaurante ou loja por perto, preferindo evitá-lo e também se esquivarem da possibilidade de ele estar com fome o suficiente para agarrá-los e fazer um lanche rápido. Embora a postura “oficial” de Neferet fosse a de desencorajar vampiros vermelhos de se alimentar de humanos em público, a verdade era que a única razão pela qual a Grande Sacerdotisa queria que o Exército Vermelho demonstrasse algum autocontrole era que a alimentação em público costumava causar pânico. Neferet considerava o pânico humano feio e motivo de distração. Então, basicamente, se acontecesse... bem, aconteceu. Normalmente não havia nenhuma consequência para os vampiros, exceto uma pequena advertência.

Kevin costumava ficar perturbado com o fato de ele óbvia e justificadamente apavorar os humanos, mas naquela noite isso o tranquilizou. Ele sabia que o seu cheiro estava diferente – ou, mais especificamente, não estava com cheiro de túmulo – desde que Nyx havia concedido a ele sua humanidade de volta, mas as pessoas de Tulsa estavam tão acostumadas com monstros na noite que não chegavam perto o bastante para notar que ele não era mais o bicho-papão.

Kevin não baixou a guarda, porém. Ele pensou em pegar o ônibus até a estação onde o seu carro estava estacionado, mas só imaginar a possibilidade de encarar novatos vermelhos esfomeados e vampiros vermelhos curiosos deu um aperto no estômago. Que diabos ele iria dizer a eles quando o inevitável acontecesse – quando eles percebessem que ele havia se Transformado irreversivelmente? Ele precisava de tempo e também de um plano.

Mas, principalmente, Kevin precisava de ajuda.

Ele poderia facilmente andar o quarteirão até a Morada da Noite, mas não encontraria nenhuma ajuda por lá, e ele não tinha nenhuma vontade de voltar para esta Morada da Noite. Não agora. Não depois de ele ter passado algum tempo na outra Morada da Noite, onde a sua irmã era a Grande Sacerdotisa e os humanos eram bem-vindos como amigos, não sofriam abusos sendo escravizados e não eram considerados geladeiras de sangue ambulantes.

Havia apenas um lugar para onde Kevin queria ir, e apenas uma pessoa que ele queria ver. De novo, sua mão tocou o volume que estava debaixo de sua camisa perto do coração. Ele pressionou a mão contra a pequena bolsa de couro com miçangas feita a mão, encontrando consolo na sua presença.

Kevin atravessou a Utica Square até os fundos do centro de compras com aparência de vilarejo, passando pela Fleming’s Steakhouse e pelo Ihloff Salon até chegar ao estacionamento, mais escuro e mais silencioso. Estava cheio, então não levou muito tempo até Kevin encontrar o que precisava.

Um homem sozinho, humano e bem-vestido, andava apressado entre os carros, em direção às vagas de estacionamento na frente dos condomínios no estilo de vilas italianas, que se erguiam ali como se um pedaço do Mediterrâneo tivesse sido deslocado da Costa Amalfitana e se estatelado no centro de Tulsa.

Silenciosamente, Kevin o seguiu. Quando o apito do alarme na chave do carro soou, desbloqueando o Audi SUV, Kevin saiu das sombras para encarar o homem.

– Boa noite – Kevin disse.

Os olhos do homem se arregalaram e o seu rosto ficou pálido feito osso. Ele estendeu as sacolas nas suas mãos, em parte como oferenda, em parte como escudo.

– Po-por favor! Eu tenho uma família em casa. Por favor, não me morda. Eu dou tudo que você quiser, mas os meus filhos precisam de mim, e eu não quero morrer.

O estômago de Kevin se revirou. Ele odiava isso. Odiava que apenas a imagem da sua Marca de vampiro vermelho instantaneamente criasse uma sensação de pavor e pânico nos humanos. Kevin encarou o homem nos olhos e falou vagarosa e gentilmente:

– Eu não vou machucá-lo. Você não precisa ter medo – ele disse, e o homem se acalmou. – Você não está sob a proteção de um vampiro? – Kevin perguntou ao ver a mão sem marcas do homem. Os vampiros azuis haviam tatuado a lua crescente nas mãos de humanos sob a sua proteção para que os vampiros vermelhos famintos soubessem que eles estavam fora do cardápio.

– Não de um vampiro específico – o homem respondeu como se estivesse em um sonho quando o poder da mente de Kevin o dominou, deixando-o imóvel e incapaz de fazer qualquer coisa, exceto o que Kevin ordenasse.

– Mas você faz algo para se proteger?

O homem assentiu, sonolento.

– Eu sou o dono do Harvard Meats. Na esquina da Quinze com a Harvard.

– Ah, claro. Eu conheço o lugar. – E Kevin realmente conhecia. Aquele homem não precisava estar sob a proteção de um vampiro específico porque o seu negócio era uma proteção por si só, já que era o açougueiro que fornecia as melhores carnes da cidade para a Morada da Noite e todos os seus restaurantes favoritos. – Está bem, eu quero que você faça o seguinte. Dê as chaves do seu carro para mim. Você está perto de casa?

O homem assentiu novamente.

– Eu moro na esquina da Rua Treze com a Columbia.

– Ótimo. Você vai precisar ir andando para casa. Amanhã registre uma queixa do desaparecimento do seu carro. Diga que você acha que foram garotos do ensino médio... da Union – Kevin acrescentou após uma breve reflexão. Ele tinha estudado na Broken Arrow. BA e Union eram rivais conhecidos, e ele teve que disfarçar o seu sorriso por essa pequena vingança pelo fato de a Union ter vencido o último campeonato estadual de futebol americano.

– Vou registrar a queixa de furto. Por garotos da Union. Amanhã – o homem repetiu automaticamente, entregando as chaves a Kevin.

Kevin hesitou, chamando o homem de volta quando ele se virou, movendo-se mecanicamente para começar a caminhar até sua casa.

– Ei, ahn, você precisa de alguma coisa do carro?

O homem piscou os olhos para ele, como se não tivesse entendido a pergunta.

– Tem alguma coisa no seu carro que você precisa levar para casa? – Kevin reformulou a pergunta, olhando bem nos olhos do homem, aumentando o seu controle sobre ele.

– Sim. O meu laptop – o homem respondeu imediatamente, embora sua voz ainda tivesse um tom sonolento. – E mais alguns presentes para as crianças.

– Pegue-os – Kevin disse. – Rápido.

O homem se mexeu rapidamente, abrindo a porta traseira e retirando um laptop fino e uma sacola cheia de pacotes embrulhados. Então ele se virou para Kevin, esperando receber uma ordem sobre o que fazer em seguida.

– Vá para casa agora. Rápido. Não fale com ninguém. Se você for parado por um Guerreiro, diga que está em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Eu estou em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Mais uma coisa. Este vai ser o melhor Natal da sua vida. Na verdade, vai ser o melhor ano da sua vida. Você vai mostrar para a sua mulher e os seus filhos o quanto você os ama todo dia, e você vai se certificar de que você e a sua família são valiosos para a Morada da Noite escolhendo cortes especiais de carne exclusivos para Neferet. – Kevin fez uma pausa, refletindo, e então continuou: – Prepare a carne marinada em um molho de vinho tinto. Neferet realmente gosta de vinho tinto. Entendido?

– Entendido.

– Ok, agora vá. Rápido!

O homem saiu apressado, apertando o laptop e a sacola de presentes contra o peito como se eles fossem feitos de ouro.

Cantarolando baixinho o grito de guerra da Broken Arrow para si mesmo, Kevin entrou no Audi. Ele se demorou um minuto apreciando o interior agradável antes de dar a partida e sair da Utica Square, e então ele estava no seu caminho até a estrada Muskogee Turnpike, que ficava a um pulo do centro de Tulsa. Quando entrou na estrada em direção ao sul, ligou a rádio 98.5 e tentou deixar a voz anasalada de Blake Shelton com seu sotaque familiar de Oklahoma acalmar seus nervos.

Kevin ainda não sabia muito bem o que faria, mas tinha certeza de quem precisava encontrar para conseguir ajuda e descobrir isso.

O trajeto de uma hora e meia passou voando, e logo Kevin estava saindo da rodovia e serpenteando por uma estrada antiga de duas pistas até chegar ao caminho de terra e cascalho que dividia campos de lavanda adormecidos e finalmente acabava em uma casa de pedra familiar com uma ampla varanda frontal.

O seu estômago deu reviravoltas de nervoso quando ele estalou os dedos e levantou a mão para bater na porta.

Kevin hesitou. E se ela não o convidasse para entrar?

Ele engoliu aquele pensamento horrível no instante em que a porta se abriu, antes mesmo de precisar bater.

– Oi, Vovó Redbird! Sou eu, Kevin.

O único sinal de choque que a mulher deu foi um leve rubor na pele marrom de suas bochechas.

– Já faz um tempo que não nos vemos, mas eu ainda reconheço a minha própria família – Vovó disse. Ela não fez nenhuma menção de convidá-lo para entrar. – O que eu posso fazer por você, Kevin?

– Eu preciso de sua ajuda. Na verdade, eu preciso de mais do que sua ajuda. Eu preciso de um plano. É muita coisa para explicar. Posso entrar, por favor?

– Não fico feliz em dizer isso, mas não. Você não pode entrar. Vejo que você completou a Transformação.

– Sim, meses atrás. Sinto muito por não ter vindo vê-la até hoje, mas você sabe por que não vim. Eu tinha que ter certeza de que conseguiria me controlar. Bom, agora tenho certeza, e a razão de eu ter certeza é inacreditável.

– Desculpe, Kevin. Hoje não é o meu dia para morrer. E, mesmo que fosse, eu não quero encontrar a Grande Deusa depois de o meu neto me transformar em um monstro devorador. Não. Por favor, vá embora, meu filho. Você está partindo o meu coração, e ele já está em mais pedaços do que eu posso contar.

Triste, Vovó Redbird começou a se afastar lentamente da porta.

– Espere, Vovó. Por favor, primeiro olhe isto aqui. – Kevin tirou a bolsinha medicinal do pescoço e a estendeu na frente da Vovó Redbird para que ela pudesse ver.

Ela franziu o cenho, confusa.

– Isso é meu. Mas eu estou com ela... – Ela ergueu a mão automaticamente, levando-a até a tira de couro que prendia uma bolsinha medicinal idêntica ao redor do seu pescoço.

– Vovó, você deu isso para mim.

– Não, Kevin. – Ela levantou a idêntica bolsa com miçangas. – Esta é a minha. Essa daí, bom, é uma cópia estranhamente parecida.

Kevin não podia cruzar a barreira da porta a menos que fosse convidado a entrar, mas a bolsinha definitivamente podia.

– Aqui, olhe só. Você vai ver. – Ele a atirou na direção dela, e Vovó a pegou facilmente.

Ele observou enquanto ela abria a bolsinha e depositava o conteúdo na palma de sua mão. Havia um cristal de ametista roxo e um pedaço de turquesa bruta lapidada em forma de um perfeito coração, assim como um ramo de lavanda, uma pena do peito de uma pomba e um punhado de terra vermelha. A última coisa que caiu da bolsa foi uma tira de papel enrolado com cheiro de lavanda.

Com mãos firmes, Vovó Redbird desenrolou o papel para revelar três palavras, escritas na sua forte letra cursiva.

Confie em Kevin.

Os sagazes olhos castanhos da Vovó encontraram os dele.

– Onde você conseguiu isto?

– Como eu disse, foi você que me deu. Em outra versão do nosso mundo. Depois que Zoey me levou para lá e que Aphrodite e Nyx restauraram a minha humanidade. Vovó, é uma longa história, mas eu juro pela memória de Zoey que você realmente me deu isso e me falou para procurá-la e mostrar isso a você. Eu preciso de você, Vovó. Eu não sei mais aonde ir nem quem devo procurar. Por favor, você vai me deixar entrar? Eu não vou te machucar. Eu nunca vou te machucar.

Sylvia Redbird analisou Kevin cuidadosamente. Então ela abaixou os olhos novamente para as três palavras escritas com sua própria letra no papel que ela mesma fez na fazenda de lavandas que dava plantas tão perfumadas e únicas que os vampiros a deixavam em paz – desde que ela continuasse fornecendo os produtos de lavanda que Neferet tanto apreciava.

– Kevin, eu gostaria de convidá-lo a entrar na minha casa. – A idosa deu um passo para trás, segurando a porta aberta para o seu neto.

Ele entrou na casa e inspirou fundo o ar com aroma de memórias de infância. Através das lágrimas inundando os seus olhos, ele abriu o sorriso para sua avó.

– Estou sentindo cheiro de cookies de chocolate e lavanda?

– Está sim, com certeza. Quer alguns?

– Mais do que qualquer outra coisa do mundo – Kevin respondeu. – Mas, primeiro, por favor, posso te dar um abraço?

– Ah, u-we-tsi, nada me deixaria mais alegre!

Kevin abriu os braços, e a sua pequena, adorável e linda avó se adiantou no seu abraço. E de repente ele se viu soluçando enquanto ela o apertava e acariciava suas costas com carinho, e ele liberava a tristeza, a solidão e o arrependimento de ter deixado sua irmã e voltado para um mundo cheio de batalhas e temores.

– Vai ficar tudo bem agora, u-we-tsi. Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Eu estou aqui...

1 Espécie de shopping ao ar livre de Tulsa. (N.T.)


2

Outro Kevin

– Vovó, estes cookies são os melhores entre todos os mundos!

Vovó Redbird sorriu carinhosamente para Kevin.

– Você devolveu a minha alegria em prepará-los. Eu não tenho ideia de como Neferet os descobriu, mas alguns meses atrás seus capangas do Exército Azul apareceram aqui, insistindo que eu entregasse um pedido semanal de duas dúzias de cookies... para a própria Grande Sacerdotisa. Eu achei estranho, mas isso de fato ajudou a garantir a minha segurança, e enquanto eles estavam aqui também fizeram uma encomenda permanente dos meus sabonetes e cremes... – ela perdeu as palavras quando a compreensão floresceu no seu rosto. – Você fez isso!

Kevin deu de ombros, um pouco envergonhado, enquanto pegava outro cookie.

– Bem, sim. Todo mundo sabe que a sua lavanda é a melhor de Oklahoma. Os seus sabonetes e cremes são incríveis e os seus cookies são especiais e deliciosos. Eu pensei que, se Neferet soubesse sobre eles, iria querer. Ela é daquele tipo que adora coisas que ninguém mais tem, e ninguém tem a sua receita.

– Eu não uso receita.

– Exatamente! São coisas que só você pode fazer. Então, eu mencionei isso para um Guerreiro que é companheiro da Sacerdotisa e que leva o lanche da noite para Neferet. Eu sabia que ela só precisava experimentar um cookie e já ficaria fisgada. Aparentemente, Neferet tem uma queda por doces. Os sabonetes e cremes foram um bônus.

Vovó Redbird não falou nada por um bom tempo. Ela observou o seu neto como se ele fosse um enigma que ela tivesse acabado de desvendar.

– Você já era diferente. Mesmo antes de ser arrastado para aquele Outro Mundo.

Kevin assentiu, falando com a boca cheia de cookies.

– Eu ficava pensando que isso iria mudar... que algum dia eu iria acordar e não seria mais capaz de controlar a minha fome de jeito nenhum. Mas isso não aconteceu.

Vovó colocou a sua mão calejada no rosto dele.

– Ah, u-we-tsi, queria que você tivesse vindo me procurar quando estava pensando nisso.

– Eu não consegui, Vovó. Eu tinha muito medo de me transformar em um monstro. – Kevin estava com a cabeça baixa, encarando fixamente a antiga mesa de madeira. – Eu não podia correr o risco de te machucar.

– Então, mesmo de longe, você arrumou um jeito para que eu ficasse segura... para que eu fosse uma das protegidas.

Kevin assentiu.

– Obrigada – ela disse simplesmente.

Quando Kevin teve certeza de que não ia se dissolver em lágrimas escandalosas de novo, ele encontrou os seus olhos castanhos gentis e sorriu.

– Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter perdido Zoey. Eu sempre soube que ela era a sua favorita.

– Zoey e eu éramos próximas desde que ela nasceu, mas isso acontece muito entre avós e netas. Isso não significa que eu a amasse mais do que eu amo você.

Kevin sentiu lágrimas enchendo seus olhos e ele piscou com força para impedi-las de transbordarem.

– Mesmo?

– Dou minha palavra. Era mais fácil ser próxima de Zoey Passarinha. Ela queria cozinhar comigo, trabalhar no jardim, aprender os costumes do nosso povo.

– E eu queria jogar videogames e contar piadas de peido com os meus amigos – Kevin disse com uma ironia amarga.

Vovó Redbird sorriu com afeto e compreensão.

– Você simplesmente queria ser um menino. Não há nada de errado nisso.

– Eu sei que não posso ocupar o lugar deixado por Zo, mas quero que a gente fique mais próximo. Eu... eu preciso de você, Vovó.

A idosa apertou a mão do neto.

– Eu estou aqui por você. Eu sempre vou estar aqui por você. Você nunca mais vai ficar sozinho de novo, meu u-we-tsi.

Pela primeira vez desde que percebeu que ele precisava voltar para o seu mundo – teria que de alguma forma liderar a Resistência para derrotar Neferet –, Kevin sentiu uma parte do peso terrível que tinha se instalado sobre o seu corpo se evaporar.

– Obrigado, Vovó. Isso torna tudo melhor.

– Fico feliz. Agora, eu tenho algumas perguntas que talvez você possa me ajudar a responder.

– Com certeza! Pode perguntar enquanto eu devoro os cookies.

– Ótima ideia. Então, você estava me contando que a nossa Zoey Passarinha está viva em um mundo alternativo, do qual você acabou de voltar?

– Sim. Ela está. Bom, ela não é exatamente a nossa Zo, mas é bem parecida. Tão parecida quanto aquela Vovó Redbird é parecida com você, quase exatamente igual. É estranho. Legal, mas estranho.

Vovó se sentou diante dele, servindo-se de uma xícara de chá de lavanda cheiroso do bule de ferro desgastado pelo tempo que usava desde que Kevin se entendia por gente.

– Deixe-me ver se compreendi direito. Naquele mundo Zoey é a Grande Sacerdotisa no comando. Não há Neferet e...

– Neferet está lá – Kevin a interrompeu. – Ela está magicamente trancada dentro da gruta no Woodward Park.

– Certo – Vovó Redbird assentiu. – Você disse que ela se tornou imortal?

– Sim. Na verdade, eu não entendi muito bem essa parte, mas acredito em Zo e sua turma. Eles disseram que ela tentou se transformar na Deusa de Tulsa e simplesmente surtou pra caralho, matou um monte de gente... humanos e vampiros. Ahn, desculpe pelo palavrão, Vó.

Ela fez um gesto indicando que as desculpas eram desnecessárias.

– Às vezes é preciso usar uma linguagem forte. A sua descrição é válida.

– Obrigado, Vó. – Kevin apontou para a cópia do diário que Zoey havia lhe dado antes que ele fosse embora do mundo dela. – Zo me disse que isso explica muito sobre o passado de Neferet e as suas motivações. Ela e seus amigos descobriram que a história de Neferet é um ponto fraco dela. Zo acha que talvez a gente possa encontrar algo aí que possa nos ajudar a derrotá-la nesse mundo também.

– Isso faz sentido. Então, Neferet está sepultada. Zoey está no comando. E ela abriu a Morada da Noite de Tulsa para os humanos? De verdade?

– Sim! Você precisava ver... garotos humanos estavam realmente brincando com novatos vermelhos e azuis na neve. Era bizarro, mas muito legal, e Zo e a sua turma... eles dizem que são a Horda Nerd... – Kevin fez uma pausa quando sua avó riu como uma garotinha. – Ela fez a Horda Nerd iniciar programas de estudantes humanos, como o da Morada da Noite de Tulsa, por todo o país. Aparentemente, está indo muito bem, por isso ela ficou super preocupada quando ficou parecendo que Neferet podia estar se movimentando. Zoey sabia que os humanos seriam o segundo alvo dela.

– Porque a própria Zoey seria o primeiro alvo.

– Sim. Elas são inimigas. Hum, Vó, quando eu expliquei a Zo como ela morreu aqui, ela disse que tinha certeza de que Neferet a matou, porque no mundo dela Neferet matou dois professores vampiros exatamente do mesmo jeito, apesar de ela ter encenado os assassinatos para parecer que o Povo da Fé era o responsável.

Vovó Redbird ficou pálida com a menção à morte repulsiva de sua neta. Kevin estendeu a mão sobre a mesa para apertar a mão de sua avó.

– Está tudo bem, Vó. Só precisa lembrar que ela ainda está viva. Ela só não está mais neste lugar.

A velha senhora assentiu rapidamente e deu um gole no chá, tentando se recompor.

– O plano de Neferet em ambos os mundos era criar uma guerra entre humanos e vampiros?

– Sim.

– Zoey e a sua... Horda Nerd foram responsáveis por conseguir detê-la nesse outro mundo?

– Sim – Kevin disse.

– Muito bem, Zoey Passarinha – Vovó Redbird disse baixinho. – Esse outro mundo... o mundo de Zoey... parece um lugar encantador.

– E é. Decorações de Natal por toda parte... humanos e vampiros se misturando... Vovó, eles até transformaram a estação de Tulsa em um restaurante descolado gerenciado por vampiros. Os humanos lotam o lugar toda noite. – Kevin rapidamente decidiu deixar de fora o detalhe complementar de como vampiros e novatos vermelhos do seu mundo tinham destruído o restaurante e comido todo mundo. Vovó não precisava dessa tristeza.

– É mesmo? – ela perguntou, maravilhada.

– Sim! Zo inclusive me contou que eles têm uma feira de produtores nos jardins da Morada da Noite toda semana, e o campus é completamente aberto aos humanos para isso.

– Isso é realmente mágico – ela comentou. – Mas por que você voltou para cá?

– Eu tive que voltar. Eu sou a Zoey.

– U-we-tsi, você vai ter que se explicar melhor do que isso.

– Vó, assim como a Zo naquele mundo, eu tenho afinidade com todos os cinco elementos.

Ela arregalou os olhos com a surpresa feliz.

– Oh, Kevin! Essa é uma notícia incrível.

– Bem, sim e não. Sim, porque é legal e um sinal das boas graças de Nyx. Ei, eu quase esqueci de contar! A tatuagem da Transformação completa de Zo é igual à minha. Só que a dela é azul, claro, mas ela também tem um monte de outras tatuagens, como nas palmas das mãos, em volta da cintura, nas costas e até nas clavículas.

– Ela foi até um tatuador? Parece lindo, mas certamente deve ter levado bastante tempo para fazer.

– Não, Vó, Nyx concedeu a ela essas tatuagens como um sinal de que ela estava no caminho certo – Kevin suspirou. – Eu meio que espero que Nyx possa me ajudar dessa mesma forma. Pelo menos eu saberia que estou fazendo a coisa certa.

– E o que é essa coisa certa que você quer fazer?

Kevin não hesitou.

– Isso me traz à parte não tão incrível. Como eu tenho afinidade com todos os cinco elementos assim como Zo, isso significa que eu também tenho as responsabilidades dadas pela Deusa que ela herdou. Vó, eu tenho que derrotar Neferet, assim como Zo fez no mundo dela, para recuperar o equilíbrio entre Luz e Trevas.

Vovó Redbird não perdeu o compasso.

– E como você planeja fazer isso?

– Não tenho ideia, Vovó. Não tenho ideia. – Ele abriu o sorriso atrevidamente para ela. – Mas aposto que você pode me ajudar a pensar em um plano.

– Se eu não posso, sei quem pode. Kevin, o que você sabe sobre a Resistência?

– Eu sou um tenente no Exército Vermelho de Neferet. A nossa única missão neste momento é encontrar e eliminar todos os membros da Resistência.

– O fato de você ser um tenente pode ajudar. Você tem acesso a informações, como talvez o local onde Neferet acredita que a Resistência está se escondendo, ou como eles conseguem levar pessoas clandestinamente para fora do Meio-Oeste até um lugar seguro?

– Não exatamente. A estratégia fica a cargo de Neferet, os generais do Exército Azul e os Guerreiros Filhos de Erebus. Até nós, vampiros vermelhos que conseguem manter um controle suficiente da nossa humanidade para nos tornarmos oficiais, não somos incluídos no planejamento. Basicamente, os Guerreiros de Neferet nos usam como se fôssemos armas irracionais. Quando eu completei a Transformação, escutei o General Stark falando sobre o Exército Vermelho. Ele nos chamou de descartáveis.

– O General Stark parece desprezível.

– Neste mundo, ele é mesmo. No mundo de Zo, ele é o seu Guerreiro Juramentado e companheiro... um cara realmente bacana.

Aquilo deixou Vovó Redbird pensativa.

– E o General Stark não está errado. Tudo que ele tem que fazer é apontar uma direção para o Exército Vermelho e nos soltar. – Kevin estremeceu. – A maioria dos vampiros vermelhos são máquinas irracionais de comer, feitos para devorar tudo no seu caminho.

– Na verdade, isso é bom para nós – Vovó disse.

– Ahn? – Kevin falou, soando muito como a sua irmã.

– Bom, se o General Stark é um bom rapaz no mundo de Zoey Passarinha, então lá no fundo há bondade nele. Talvez ele possa ser convencido. E você é um oficial. Você tem acesso para ir e vir facilmente na Morada da Noite, certo?

– Sim, imagino que sim, mas só entre o anoitecer e o amanhecer. Durante o dia, nós somos todos banidos para os túneis embaixo da estação.

– Mas ninguém na Morada da Noite... nenhum vampiro... iria imaginar que você está do lado da Resistência.

Kevin se endireitou na cadeira.

– Você está certa, Vovó! Isso nem passaria pela cabeça deles. Eles normalmente não incluem oficiais do Exército Vermelho nas reuniões estratégicas, mas eles não iriam notar se eu estivesse lá, parado por perto esperando receber ordens – ele sorriu. – Eu posso descobrir todo tipo de coisa! – ele hesitou, e o seu sorriso esvaneceu. – O problema é que eu não estou com o cheiro certo, e eles iriam reparar nisso.

Os olhos da Vovó brilharam maliciosamente.

– Deixe que eu cuido disso, u-we-tsi.

– Eca, ok. Então, este é o nosso plano? Você vai me fazer ficar fedido de novo, e eu vou espionar na Morada da Noite e descobrir coisas sobre a Resistência? Vamos ter que descobrir onde eles estão se escondendo antes que o exército os encontre, e avisar para a Resistência tudo que eu descobrir.

– Encontrá-los não é um problema.

– Vovó! Você faz parte da Resistência?

– Como Martin Luther King Jr. resumiu tão bem, “A pior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas sim o silêncio das pessoas boas”. Eu não serei silenciada.

– Caraca, Vó, você faz parte da Resistência!

– Tenho orgulho de dizer que sim, eu faço.

– Eles matariam você se a pegassem. Nossa, Vó. Neferet não ia se importar que você é uma idosa. Você iria morrer – Kevin afirmou.

– Estou ciente disso, mas, Kevin, se eu ficasse parada e não fizesse nada, seria o meu espírito que morreria.

Kevin suspirou pesadamente.

– O meu também. É por isso que eu voltei. Eu tenho que fazer algo, e acho que sou o único que pode fazer isso.

– Isso é muito corajoso da sua parte, u-we-tsi.

– Não, fazer a coisa certa não é corajoso. É só o que pessoas decentes fazem – Kevin respondeu.

– De fato.

– Quero que você me leve até eles – Kevin disse com firmeza.

– Eles?

– A Resistência. Quero falar com eles, e contar o que aconteceu comigo no mundo de Zo.

– Não sei se isso vai funcionar. Eles podem achar que é apenas um inimigo quando olharem para você – Vovó refletiu. – O que pode funcionar melhor é você espionar, contar para mim, e eu levarei as informações até eles.

– Isso seria ótimo, se não fosse por Aphrodite – Kevin falou.

– Aphrodite? A deusa grega do amor?

Kevin sorriu com ar travesso.

– Aposto que ela pensa que é uma deusa, mas imagino que, tecnicamente, ela é uma Profetisa, e não uma deusa.

– Filho, isso não faz sentido.

– Desculpe, Vó. É simples, na verdade. No mundo de Zo, há uma Profetisa de Nyx chamada Aphrodite que tem o poder de conceder segundas chances. Por causa dela, nenhum dos novatos ou vampiros vermelhos perdeu a sua humanidade. Ela está neste mundo também.

– Ah, Grande Deusa! Se isso pudesse acontecer neste mundo também! – Vovó exclamou.

– Sim, se a humanidade dos soldados do Exército Vermelho voltar, Neferet perde as suas armas – Kevin afirmou. – No mundo de Zo, Aphrodite e eu temos uma conexão. – Ele fez uma pausa, ignorando o fato de suas bochechas estarem corando muito. – Ela, hum, falou para eu encontrar a versão dela neste mundo, e que ela me amaria também.

Vovó ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. Kevin limpou a garganta e continuou:

– Além disso, Zo falou que eu tenho que montar o meu próprio círculo. Basicamente, a minha versão da Horda Nerd que ela tem. Eu já sei que pelo menos dois dos vampiros que preciso recrutar são azuis... e que eles estão na Morada da Noite neste exato momento.

– Mas, u-we-tsi, a Resistência está cheia de vampiros azuis. Você não pode simplesmente usá-los para o seu círculo?

– Acho que sim, mas a Horda Nerd de Zo é diferente, assim como ela. Assim como eu. Eles também têm afinidades com os seus elementos.

– O que torna o círculo dela mais poderoso que um círculo comum – Vovó observou.

– Sim. Você entende por que eu tenho que fazer mais do que apenas espionar para a Resistência?

– Entendo. E porque eu entendo isso, tenho muito mais esperanças com relação às nossas chances de sucesso do que eu tinha apenas alguns minutos atrás. – Vovó Redbird deu uma olhada para fora da janela da frente. – O amanhecer já está deixando o horizonte rosa. Vamos dormir, u-we-tsi, e amanhã... amanhã nós vamos até a Resistência.

– Está certo, Vovó – Kevin disse corajosamente antes de enfiar outro cookie na boca e pensar: “Ah, que inferno...”.


3

Outro Kevin

– Sap-a-lup-a? Sério, Vó? Isso aqui é bem no meio do nada – Kevin disse quando sua avó indicou a ele a saída para a rodovia Turner Turnpike.

– Kevin, pronuncie direito.

– Certo. Sapulpa. Mesmo assim... sério, Vó? Por que aqui?

– Porque, como você disse... é no meio do nada. O que significa que é um excelente lugar para o quartel-general da Resistência, já que Sapulpa fica a apenas uns trinta minutos do centro de Tulsa. Perto o bastante para ser útil, mas ainda uma cidade rural com nada que possa interessar os vampiros, com a exceção de vários ranchos que plantam a melhor alfafa do estado.

– Então, eles têm o suficiente para serem protegidos por Neferet, mas não o bastante para despertar o interesse dela para fazer uma visitinha nem nada do tipo.

– Exatamente. Vire à esquerda no próximo semáforo. É a South Hickory. Então siga essa estrada por cerca de um quilômetro e meio até a gente passar por algumas placas. Depois da tabacaria, procure pela Lone Star Road e vire à direita.

– Para onde diabos você está nos levando, Vó?

Ela sorriu angelicalmente.

– Para um desses adoráveis e pequenos ranchos de alfafa, u-we-tsi.

Eles serpentearam pela Lone Star Road, passando por campos verdejantes, alguns deixados ociosos em preparo para a plantação da primavera, e outros já verdes com o trigo de inverno. Como é de praxe em Oklahoma, as casas alternavam-se entre quase mansões e trailers caindo aos pedaços, e então mais mansões.

– Ei, olhe só, Vó. É o trio perfeito dos pobretões de Oklahoma: uma casa de trailer, uma piscina portátil e um colchão velho que aqueles pitbulls estão usando como cama... tudo em um só quintal.

Vovó Redbird franziu o nariz.

– Acho que são boxers, não pitbulls, Kevin.

– Erro meu. É isso que dá forçar estereótipos.

– Bem, definitivamente foi um bom palpite. Vá devagar agora. Está vendo à sua direita, onde aquela cerca branca bonita começa?

– Sim.

– Há um portão logo em frente. Pare ali, abaixe o vidro e aperte o botão do interfone. Deixe que eu prossiga com o resto.

Kevin seguiu as instruções, virando em uma entrada bloqueada por um grande portão de ferro. Ele deu uma rápida olhada em volta enquanto abaixava o vidro e viu que a aparência tranquila e organizada do pequeno rancho não passava de uma fachada.

O portão, assim como a cerca branca bem-cuidada, era cheio de cabos elétricos grossos. O olhar de Kevin seguiu os cabos.

– É uma cerca elétrica poderosa, Vó.

– Sim, estou ciente disso. Aperte o botão do interfone, por favor.

Kevin apertou o botão branco perto do interfone e uma luzinha vermelha se acendeu, chamando atenção para a câmera de alta tecnologia apontada na direção deles.

– Quem é? – saiu do interfone uma voz incisiva de mulher, com uma sinfonia de cães ganindo ao fundo.

– Sylvia Redbird. Ouvi dizer que você tem uma ninhada de cachorrinhos. Gostaria de dar uma olhada neles, se você ainda tiver algum para vender.

Houve uma pausa e então ela disse:

– Estou vendo um vampiro vermelho com você.

Vovó Redbird deslizou para o lado e enfiou sua cabeça ao lado da de Kevin.

– Sou eu, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Vampiros vermelhos não são bem-vindos na minha propriedade, muito menos na minha casa.

– Este vampiro vermelho é diferente. Eu dou a minha palavra – Vovó afirmou.

– É claro que você fala isso. Você está sob o controle dele. Não é não. Você não pode entrar na minha propriedade. Você não pode entrar na minha casa.

– Tina, mande Babos até aqui.

– Cachorros odeiam vampiros vermelhos. Ela vai rosnar, latir e atiçar todos os outros – a voz metálica respondeu.

– Ela vai me adorar. Eu juro, senhora – Kevin disse.

– Você vai ficar feliz por ter corrido esse risco – Vovó acrescentou.

– Está bem. Mas, quando ela começar a latir e ficar louca, eu vou ficar muito chateada com você, Sylvia. E eu estou levando a minha .45 comigo. Um movimento em falso, neto ou não, e eu arranco a cabeça desse vampiro.

– Você deve fazer isso mesmo, Tina – Vovó Redbird respondeu calmamente.

– Já vou aí.

A conexão do interfone se desligou enquanto o portão se abria.

– Não entre com o carro na propriedade dela. Vamos apenas sair do carro – Vovó disse, encontrando os olhos dele. – A cadela vai gostar de você, não vai?

Kevin abriu o sorriso.

– Os cachorros costumavam gostar de mim... antes de eu ser Marcado. E depois, na Morada da Noite de Zo, havia uma labradora dourada super legal chamada Duquesa. Ela me amava. Então acho que vai dar tudo certo.

O som de um motor de carro se aproximando cada vez mais fez Vovó Redbird suspirar.

– Bem, agora é tarde demais se estivermos errados.

– Não estamos errados, Vó. Só observe. Eu consigo lidar com essa parte. Cachorros são simplesmente incríveis! – Kevin deu a volta no carro e parou logo antes da linha de entrada na propriedade, diante do portão aberto.

O motor roncou, derrapando até parar na frente deles. Kevin teve que apertar os olhos diante das luzes ofuscantes do veículo, mas conseguiu ver uma mulher baixa – provavelmente com uma idade próxima à de sua avó. Ela tinha um cabelo desgrenhado com mechas grisalhas onduladas pintadas de roxo, rosa e azul. Era velha, mas seu corpo ainda estava em forma, o que era óbvio, pois estava usando uma calça legging enfiada em botas de cowboy turquesa e um moletom escrito KALE imitando o logo da universidade de Yale2. Apontando uma espingarda .45, ela desceu agilmente do carro, seguida por uma pequena terrier preta malhada.

– Oi, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Boa noite, senhora – Kevin disse educadamente.

– Vamos ver se a noite é boa mesmo – a velha resmungou.

– Ei! É um terrier escocês! – Kevin exclamou. – Eu sempre quis ter um. Acho que eles são os cachorros pequenos mais legais de todos.

Os olhos verdes de Tina analisaram Kevin.

– Você não soa como um vampiro vermelho.

– É porque eu sou um tipo diferente de vampiro vermelho – ele explicou.

– Um tipo bom – Vovó acrescentou.

– Impossível – Tina afirmou.

– Mostre a ela, u-we-tsi.

Kevin se agachou e sorriu para o pequeno terrier.

– E aí, garotinha! Você é muito linda. Que tal vir aqui e me deixar fazer carinho em você?

A cadela o observou tão atentamente quanto a mulher ao seu lado.

– O nome dela é Babos.

– Babos, que nome legal. Oi, Babos. – Ele estendeu a mão. – Venha cá, garota.

A cadelinha hesitou, com as orelhas levantadas para Kevin. Ela ergueu a cabeça e farejou o ar.

– Pena que não tenho nenhuma guloseima para você. Da próxima vez vou lembrar disso, mas eu prometo que sou ótimo em fazer carinho. – Ele fez gestos de coçar o queixo com os dedos. – Venha cá, Babos. Dê uma chance para mim.

O terrier escocês inclinou a cabeça, farejou o ar de novo e então, com uma pequena bufada, saiu trotando diretamente até Kevin, que sorriu e disse que ela era a cachorrinha mais esperta, bonita e doce que ele já tinha visto, cumprindo a sua promessa de coçar o seu queixo peludo enquanto ela balançava o rabo entusiasticamente.

– Uau. Eu nunca teria acreditado nisso se não estivesse vendo com os meus próprios olhos – Tina falou. – O que ele é?

– Eu disse. Ele é meu neto. E ele vai mudar tudo.


– Você tem mesmo um rancho de terriers escoceses! – Kevin não conseguiu evitar o olhar embasbacado enquanto ele e Vovó Redbird seguiam Tina para dentro do rancho espaçoso. Quando eles entraram pela garagem, foram cercados por um grupo de terriers pequenos, com suas cabecinhas em forma de tijolo, variando em cores do dourado ao trigo até o preto e o preto malhado. Kevin tentou contar quantos eram, mas, quando contou quinze deles, desistiu.

– Ahn, Vó, você estava falando sério sobre os filhotes? Cara, espero que sim.

Tina então sorriu para ele – a primeira vez que ela fez algo além de olhar como se ele fosse um inseto espetado em um mostruário de exibição.

– Eu não tenho filhotes agora, mas vão nascer em algumas semanas.

– É um código, u-we-tsi. Humanos ou vampiros azuis e até novatos azuis que são aliados da Resistência vêm ao rancho da Tina e perguntam por filhotes.

– Mas o que eles realmente estão pedindo é proteção – Tina disse.

– Espero que algum dia eu possa ter um filhote – Kevin murmurou enquanto se agachava e aproveitava totalmente o fato de estar sendo acossado por uma horda de terriers escoceses.

– Por que ele é diferente? – Tina perguntou.

– Isso, minha amiga, é uma longa história com a qual nós preferíamos não gastar tempo neste momento, já que a Resistência vai precisar dessa explicação também. Eles estão aqui?

Tina assentiu.

– No topo da montanha. Sabe onde ficam os esconderijos de caça, naquelas árvores adjacentes que dão na passagem do gramado?

– Sei.

– Alguns estão nos esconderijos. Outros estão trabalhando, tentando expandir uma área parecida com uma caverna que descobriram uns dias atrás entre as pedras ao lado da montanha. Eles chegaram na noite passada, com alguns refugiados que precisam levar clandestinamente para fora daqui, a maioria mulheres e crianças. Há uma tempestade de neve se formando. Eles acham que os refugiados vão estar seguros na montanha, pelo menos por uns dias.

Vovó Redbird suspirou.

– Eles ficam vulneráveis demais nesses esconderijos. Há tão pouco abrigo neles. Eu sei que vampiros têm resistência ao clima frio, mas é simplesmente horrível que tenham que correr de um lugar para o outro, como fazem. O estresse de não ter um lugar realmente seguro deve ser muito desgastante.

– Foi por isso que eles ficaram tão animados ao encontrar a caverna – Tina concordou. – Mas Dragon me disse que neste momento ela pode comportar apenas cerca de cinco pessoas, e isso se não se importarem em ficar amontoadas. Eles estão trabalhando para expandi-la, mas você sabe que a montanha é composta, na maior parte, por rochas e terra vermelha dura. Está indo devagar, especialmente no meio do inverno.

– Espere aí, você disse Dragon? Dragon Lankford? – Kevin perguntou.

– Sim. Dragon Lankford era o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa... antes de Neferet começar a guerra – Tina respondeu.

– A companheira dele, Anastasia, está aqui também? – Kevin quis saber, a empolgação aumentando o seu tom de voz.

Tina assentiu.

– Está sim.

– Vovó! Zoey me disse para encontrar Dragon e Anastasia Lankford... que eles com certeza poderiam me ajudar.

– Então nós estamos no caminho certo – Vovó falou com um sorriso.

– Cara, espero que sim. – Kevin se levantou depois de dar mais um abraço nos terriers. – Então, quer dizer que na real a Resistência não tem um quartel-general?

– Eles tinham um quartel-general de verdade, mas isso foi antes de Lenobia e Travis serem seguidos, encurralados e mortos, junto com os seus cavalos... – Tina perdeu as palavras enquanto tentava se recompor, obviamente perturbada demais para continuar.

Vovó Redbird se aproximou de Tina, abraçando-a em solidariedade, e então terminou a explicação.

– Lenobia e Travis tinham criado um quartel-general para a Resistência no meio do Parque Nacional de Keystone. Tem mais de setecentos acres e, exceto pelas áreas próximas à Represa e à Barragem de Keystone, é selvagem e não possui nenhuma construção, apesar de o parque ficar a apenas cerca de uma hora do centro de Tulsa. Era um lugar excelente para um acampamento rústico, principalmente porque Lenobia conseguiu retirar clandestinamente vários cavalos da Morada da Noite quando ela e Travis saíram. Alguém os traiu. Lenobia e Travis ficaram com os cavalos, atraindo o Exército Vermelho para longe do resto da Resistência e dos inocentes que estavam tentando ajudar a encontrar um lugar seguro. Eles foram massacrados. Lenobia, Travis, os membros da Resistência, os inocentes e todos os cavalos.

Kevin abaixou a cabeça, a tristeza e o arrependimento tomando conta dele.

– Você estava lá, não estava? – a voz de Tina soou áspera.

– Não. E eu agradeço a Nyx por isso. Eu ainda era um novato quando isso aconteceu, e novatos nunca tomam parte em combates. Eles ainda não são boas armas. Eles precisam estar completamente Transformados para que a sua humanidade esteja extinta o suficiente para que eles sejam perigosos e descartáveis. – Ele fez uma careta de desgosto. – Mas eu ouvi falar no massacre. O meu general, Dominick, se gabou muito por causa dessa vitória. Aquilo... aquilo me deu nojo. Ainda dá.

– Ainda bem que você não estava lá – Tina disse, com a voz ainda trêmula. – Acho que eu não conseguiria aguentar ter você aqui na minha casa se você estivesse envolvido nisso. Lenobia era uma boa amiga. E aqueles cavalos... – Ela estremeceu. – Não consigo nem pensar no que o Exército Vermelho fez com eles.

– Sinto muito – foi tudo que Kevin conseguiu pensar em dizer.

– Mostre que você sente muito. Não basta me dizer isso. Ajude-nos a impedir Neferet e reverter a tragédia que ela provocou neste mundo, e aí eu vou acreditar que você realmente sente muito – Tina disse.

– Eu vou. Eu juro.

Tina assentiu rapidamente e então fez um gesto para que eles a seguissem para dentro da cozinha, que estava exalando um cheiro delicioso. Com a horda de terriers trotando ao redor dos seus pés, Vovó Redbird e Kevin abriram caminho lentamente atrás de Tina, com cuidado para não pisar em nenhuma patinha.

– Imagino que vocês querem se juntar a eles logo.

– Sim. Seria melhor – Vovó Redbird respondeu.

– Na verdade, vocês vão me fazer economizar a viagem. Eu assei uma dúzia de pães e terminei de enlatar a minha geleia de amora. Nunca soube que vampiros amavam tanto pão fresco e geleia antes de Neferet mudar o nosso mundo, mas eles com certeza amam.

Kevin ficou salivando ao observar Tina terminar de colocar os pacotes de geleia e pão caseiro saído do forno em grandes sacolas de lona.

– Quem não gosta de pão caseiro? – ele comentou. – E o cheiro do seu pão é incrível.

Tina parou para olhar para ele. Ela balançou a cabeça.

– É difícil se acostumar com isso.

– Isso? – Kevin perguntou.

– Acho que você é uma palavra melhor do que isso. O que eu quis dizer foi que é difícil se acostumar a ter um vampiro vermelho que age como uma pessoa normal e racional dentro da minha cozinha – ela bufou, acrescentando: – Quase vale a pena sair com vocês no frio e no escuro só para ver a reação deles.

– Eu não espero que minha aceitação vá ser fácil – Kevin disse.

– Quer ouvir a verdade?

Kevin assentiu.

– Você precisa de um milagre para que eles o aceitem.

– Tudo bem – Kevin sorriu para ela. – Sei de fonte segura que Nyx está me concedendo alguns milagres.

– Para o seu bem, espero que sim. – Tina voltou a encher as sacolas de lona.

– Para o bem de todos nós, eu espero que sim – Vovó reafirmou.

– Ok, Kevin Milagroso, me ajude a carregar isto aqui.

Tina abarrotou Kevin com o máximo de sacolas que conseguia carregar, deixando apenas uma para a sua avó, e então seguiram Tina para fora pela porta de trás e passaram por uma piscina, da qual emergia um vapor semelhante a espíritos errantes.

– Que demais! – Kevin exclamou.

Tina sorriu.

– Isso e os meus terriers são os principais prazeres que me permito. Bem, isso se você não contar o meu amor por macarrão e cerveja artesanal. Eu deixo essa piscina aquecida o inverno inteiro. É lindo boiar nela olhando para as estrelas através do vapor. Faz com que eu esqueça como o nosso mundo está ferrado.

– Minha amiga, ajuda um pouco se eu contar a você que, por causa do que aconteceu com Kevin, nós temos uma chance real de derrotar Neferet? – Vovó Redbird falou.

– Sylvia, eu adoraria acreditar que nós podemos voltar a como tudo era antigamente.

– Que tal mais do que isso? – Kevin interveio. As duas mulheres apontaram olhares curiosos na direção dele. – Que tal um mundo onde humanos e vampiros são aliados e amigos de verdade? Assim como vocês duas são aliadas da Resistência. É mais do que possível. Eu vi. Pode funcionar, e faz do mundo um lugar até melhor do que o que a gente tinha aqui antes de Neferet começar a guerra.

– Filho, você não é daqui, é?

– Na verdade, eu sou. Vamos apenas dizer que eu viajei bastante recentemente.

– Eu quero o mundo de Kevin – Vovó Redbird afirmou, sorrindo carinhosamente para o seu neto.

– Bem, o seu mundo parece bom, meu filho. Mas, para mim, basta ter a paz.

– Senhora, a minha avó me ensinou a não me contentar com pouco – Kevin disse, abrindo um sorriso travesso para a sua avó.

– Ele é um pouco inexperiente, mas acho que devo acreditar nele – Sylvia Redbird falou.

– Vou dizer uma coisa: se conseguir fazer a Resistência confiar em você e aceitá-lo, eu posso acreditar nesse seu mundo – Tina disse. – E posso conseguir um filhote de terrier escocês para você de presente.

Kevin abriu um sorriso como um raio de sol.

– Promete?

– Desde que a gente não esteja em guerra e que você possa dar a ele um bom lar... sim, eu prometo.

– Feito! – Kevin exclamou.

– Feito – Tina concordou. – Ok, coloquem as sacolas aqui e levem o Polaris.

Ela abriu a tampa da caixa de metal presa ao local onde deveria ficar o assento traseiro do veículo. Kevin colocou as sacolas lá dentro depois que Tina afastou os cobertores, caixas de fósforos e bolsas de sangue...

– Sangue! – Kevin exclamou. – Nós vamos levar sangue para eles?

– É claro – Tina disse, perplexa. – Vampiros não sobrevivem só com pão e geleia.

– Mas... sangue!

Tina inclinou a cabeça.

– Meu jovem, nesse mundo em que você diz que os humanos e os vampiros vivem como amigos, eles também curaram o fato de que os vampiros precisam de sangue humano para sobreviver?

– Hum, não.

– Então, os humanos lá devem estar acostumados com os vampiros bebendo sangue, certo?

– Sim, acho que sim – Kevin respondeu.

– Bom, eu sou vegana. Eu realmente não vejo muita diferença entre beber sangue humano e comer um bife malpassado ou um carré de cordeiro sangrento. – Ela deu de ombros. – Eu não comeria nada disso, mas cada um na sua.

– Quem é você? – Kevin falou sem pensar.

– Apenas uma professora de inglês aposentada. Depois que você dá aula numa escolha pública de ensino médio, não se abala com muita coisa.

– Óbvio. Queria ter sido seu aluno. Aposto que sua aula não era um tédio – Kevin disse.

– Eu te digo que não – Tina respondeu. Então ela o surpreendeu ao lhe dar um abraço rápido. – Cuidado. E lembre-se do nosso acordo.

– Sem chance de eu esquecer que você me prometeu um filhotinho!

– Sylvia, você lembra como se chega até a montanha, não?

– Ah, acho que sim. Se não me engano, é só virar à direita – Vovó falou.

– É isso. Lembrem-se de tomar cuidado com o portão. Se tocarem naquela cerca elétrica, ela vai fritar vocês.

– Vou me lembrar disso – Vovó afirmou. Ela fez um gesto para Kevin assumir a direção. – Você dirige, u-we-tsi.

– Devagar e sempre – Tina disse quando Kevin deu a partida no Polaris. – Nós mantemos essas velhas trilhas esburacadas, principalmente depois do que aconteceu em Keystone. Você vai ter que parar e tirar uns galhos do caminho algumas vezes. É de propósito.

– Pensei que você estivesse sob a proteção de Neferet por causa das plantações de alfafa – Vovó Redbird observou.

– Eu estou, mas ultimamente os cachorros têm dado o alerta no meio da noite, e não é por causa de Dragon e do nosso grupo. Acho que o Exército Azul anda farejando por aqui. Lembre-se de contar isso a Dragon.

– Vou dizer – Vovó respondeu.

– Quando vocês chegarem à árvore caída, que é grande demais para tirar do caminho, vai ser a hora em que serão interditados – Tina os avisou.

– Eu tenho o meu código. Estou pronta – Vovó disse.

Tina balançou a cabeça.

– Você sabe que eles vão pensar que você está sob a influência de um vampiro vermelho. Eles podem atacar antes que você consiga convencê-los de não fazerem isso.

– Então eu só tenho que ser mais esperta e mais rápida do que eles – a idosa retrucou.

Tina sorriu ironicamente.

– Boa sorte.

– Obrigado, senhora – Kevin falou.

– Você não precisa me agradecer por ajudar a Resistência, filho. É a coisa certa a fazer.

– Eu não estava agradecendo por isso. Eu agradeci por você confiar em mim. Por me convidar para entrar.

– Ah, entendo. Não me agradeça. Só não faça com que eu me arrependa de confiar em você.

– Eu não vou. Prometo.

Kevin engatou a marcha no Polaris e foi na direção que a sua avó apontou – um caminho de terra que mal dava para ver e que desaparecia na escuridão dos cumes de Oklahoma. Se não tivesse que segurar as duas mãos no volante para contornar buracos e pedras, ele estaria estalando os dedos feito doido.

2 Kale significa couve em inglês. O moletom com a palavra “KALE” estampada, com a mesma letra do blusão tradicional da Universidade Yale (em que se lê apenas “YALE”), já foi usado por Beyoncé em um videoclipe. (N.T.)


4

Zoey

– Zoey! Ah, que bom que eu te achei. Você tem um segundo? – uma voz familiar gritou de algum lugar no corredor.

Fiz força para não suspirar, fixei um sorriso no rosto e me virei, enquanto Damien e Outro Jack abriam caminho pelo corredor lotado na minha direção. Assim que eles me alcançaram, meu sorriso se tornou verdadeiro.

– Oi, Damien e Jack. Vocês estão bem acomodados? Precisam de algo? – perguntei. A felicidade que irradiava deles deixava o meu coração pesado mais leve, pelo menos por um momento.

– Aiminhadeusa! Tudo aqui é simplesmente fabuloso! – Outro Jack exclamou, mirando Damien com seus olhos grandes e cheios de amor.

O sorriso de Damien era para Jack, mas ele também me inclui, compartilhando a alegria.

– Z, a gente tem tudo que precisa... nós temos um ao outro.

– E este mundo mais que demais – Jack acrescentou.

– Sim, concordo com Jack. Na verdade, a gente queria ver se nós podemos ajudar você em algo – Damien disse.

– Bem, certo. Mas o que isso quer dizer?

– A gente queria ficar mais envolvido na nova decoração do Restaurante da Estação – Damien falou.

Jack ficou assentindo feito um boneco de cabeça de mola, apesar de eu ter que admitir que ele é muito mais bonito do que os bonecos de mola em geral.

– Vocês falaram com Kramisha? Na verdade, o projeto é dela – eu disse.

– A gente não quis falar com ela antes de expor a nossa ideia para você – Damien respondeu.

Como os dois apenas ficaram ali parados sorrindo para mim, eu os incentivei a continuar.

– Ok, bom, qual é a ideia?

– Você vai amar! – Jack estava dando pulinhos, mal conseguindo controlar a ansiedade.

– A gente precisa contar para ela – Damien disse.

– Siiiiim, a gente precisa! – Jack concordou.

E, é claro, nenhum dos dois disse nada.

Eu resisti à tentação de estrangular seus pescoços ridiculamente felizes, o que Damien deve ter percebido, pois ele limpou a garganta e explicou.

– Então, você sabe que Kramisha já decidiu decorar o restaurante como uma boate da era das big bands, certo?

– Sim, certo. Todos achamos que era uma ótima ideia – eu disse.

– E é, por isso nós queremos trazer alguns especialistas em boates – Damien falou.

– Os gays! – Jack vibrou.

– Os gays? – eu disse, agora totalmente confusa.

– Na verdade, seria melhor dizer a comunidade LGBTQ – Damien corrigiu. – Eu fui até o Centro de Igualdade... você sabe que não fica longe da estação, não é?

– Sim, claro. O Centro de Igualdade de Oklahoma fica a menos de um quilômetro e meio da Rua Quatro. Eu fui lá outro dia discutir sobre uma parceria com eles para o próximo Show de Arte Mais Cores. Eu ia anunciar isso na nossa próxima newsletter – eu contei.

– A gente já sabe – Jack disse. – Toby nos contou quando estávamos lá, conversando sobre a nossa outra ideia.

Senti que eu estava parecendo uma bola de pingue-pongue entre os dois, então me concentrei em Damien.

– Explique-se, por favor.

– É simples. Toby Jenkins, o diretor do centro...

– Sim, eu conheço Toby – eu assenti.

– Ele é apaixonado por história e ficou entusiasmado de ouvir que nós vamos transformar o restaurante em um clube dançante. Ele gostaria de nos ajudar a fazer não apenas um lugar bonito com boa comida e música. Ele pode nos ajudar a fazer com que seja historicamente preciso. Certificando-se de que o palco, a pista de dança, as mesas, as toalhas e até o uniforme dos garçons sejam tão parecidos com os da era do jazz que as pessoas vão realmente sentir como se estivessem voltando ao passado quando reservarem uma noite no nosso restaurante – Damien explicou.

– Isso parece legal mesmo – eu concordei. – O que me faz lembrar que Toby me disse que tem uma lista de fornecedores que são pró-igualdade e, é claro, esses são os únicos fornecedores que nós devemos contratar. Ele disse que compartilharia essa lista comigo e então, bom... – perdi as palavras quando todos nós pensamos nos acontecimentos dos últimos dias.

– Ei, sem problemas, Z – Damien disse carinhosamente. – Nós vamos cuidar disso pra você.

– Sim, você já tem muita coisa na cabeça. Deixe a gente ajudar com isso – Jack completou.

– Obrigada. Aos dois. Sim, eu aceito a ajuda e acho que a ideia de vocês de trazer Toby e qualquer um que ele recomendar é fantástica. Podem falar para Kramisha que vocês definitivamente têm a minha aprovação.

– Aêêêê! – Jack bateu palmas.

– Você não vai se arrepender, Z. O restaurante vai ser espetacular – Damien prometeu. Ele fez uma pausa e me olhou atentamente. – Você parece cansada.

– Yoga é excelente para o alívio do estresse – Jack sugeriu. – No meu outro mundo, antes de todas aquelas coisas horrendas começarem a acontecer, eu era um professor certificado de yoga. Quer que eu conduza você em alguns alongamentos meditativos?

– Hum, não neste momento – eu respondi. – Mas se você quiser dar algumas aulas de yoga aqui na escola, acho que seria ótimo.

– Ai. Minha. Deusa! Sério? Você está brincando? Você me deixaria mesmo dar aulas?

Como é possível alguém não amar esse garoto? Ele era como um unicórnio cintilante.

– Sim, com certeza. Só espere que eu me reúna com o Conselho da Escola para pensar onde podemos encaixar as suas aulas.

Jack se atirou em meus braços, quase me derrubando.

– Obrigado! Obrigado! Posso tocar música? Yoga é sempre melhor com música. E hot yoga! A gente pode ter isso também?

Eu me desvencilhei de Jack.

– Claro. Hot yoga parece legal – eu menti. Hot yoga? Como se a yoga normal não fosse difícil o bastante. – Faça um programa do curso, com uma lista de suprimentos, para que eu possa informar o Conselho do que você precisa exatamente, e a gente bola alguma coisa.

– Que ótimo, Z. – Damien estava me observando por cima da cabeça exultante de Jack. – Mas parece que você precisa de um pouco de descanso e alívio de estresse agora.

– Você não poderia estar mais certo – eu concordei. – Por isso preciso ir. Estou a caminho da minha terapia de estábulo.

O alívio suavizou a expressão preocupada de Damien.

– Ah, excelente! Escovar Persephone sempre te ajuda a relaxar. Divirta-se. E se alguém perguntar onde você está, eu digo que você está na estação.

– Isso seria maravilhoso. Eu só preciso de uma hora para mim mesma.

– É toda sua. – Damien colocou o braço ao redor de Jack. – Venha. Vamos falar com Kramisha, e então a gente pode dar as boas novas a Toby.

Conversando animadamente com os rostos colados, Jack e Damien foram na direção da entrada da Morada da Noite. Eu observei os dois se afastando, tentando capturar um pouco da felicidade que eles exalavam.

Não funcionou. Eles se foram e tudo que eu senti foi cansaço e tristeza. De novo.

Vamos lá, Z. Recomponha-se e saia dessa! Kevin está de volta onde ele precisa estar, e é isso. Aquele mundo precisa dele. Neste mundo, Heath está morto. A sua mãe está morta. E a gente conseguiu derrotar Neferet pra valer. Controle-se!

Sacudindo-me mentalmente, saí pela porta de trás da escola, virei à esquerda e segui pela calçada até a entrada dos fundos do centro equestre. Caminhei rapidamente, mal assentindo para os novatos que me cumprimentavam. Eu só precisava de um tempo sozinha... um tempo para relaxar e não pensar muito.

No instante em que abri a porta do estábulo, respirei fundo, inalando os aromas reconfortantes de cavalo e feno. A aula já tinha começado, e eu podia ouvir Lenobia na arena, dizendo ao seu grupo de calouros que cavalos não são cachorros grandes, o que me fez sorrir em nostalgia enquanto caminhava até a baia de Persephone. Assim que a égua ruã me viu, ela fez uma saudação baixa e retumbante.

– Bom, oi pra você também, menina bonita! Como você está? – Eu peguei a escova para crinas, outra escova grande e macia e um limpador de casco na prateleira do lado de fora da baia, bem como um punhado de guloseimas de hortelã que eram as suas preferidas, e entrei. Persephone me acariciou com o focinho, obviamente procurando pelos doces, que eu ofereci a ela. Eu sorri e beijei a sua testa ampla enquanto ela lambia delicadamente a hortelã da minha mão. Depois de fazer um pouco mais de carinho e beijar o seu focinho de veludo, a égua voltou a atenção para a sua comida e eu comecei a trabalhar.

Eu amava tratar de cavalos – de Persephone principalmente. E a energia positiva dela sempre me atingia rapidamente. Logo a minha mente se esvaziava e eu não pensava em mais nada, exceto em trançar bem a sua crina e o seu rabo e em cuidar para que os seus cascos ficassem livres até da menor pedrinha.

– Persephone, menina bonita, queria que o meu cabelo brilhasse tanto quanto o seu pelo – eu disse, encostando o queixo no seu pescoço grosso e quente. Ela levantou uma pata, bufou e pareceu muito que ia tirar uma soneca. Por entre as colunas da baia, dei uma espiada no relógio do estábulo. – Droga. Mais uns vinte minutos e essa aula vai terminar, e então os novatos vão se esparramar por todo canto.

O que eu não daria para ser uma novata de novo, sem nenhuma preocupação com o mundo.

Comecei a ir na direção da porta para guardar as escovas quando Persephone bufou de novo e, com um grunhido muito satisfeito, dobrou as longas patas e se estatelou no meio da sua baia cheia de palha.

– Então você estava falando sério em tirar uma soneca, hein? – Eu me virei para a porta e então hesitei. – Bem, por que não? Talvez um pouco de descanso vá me ajudar a sair desse mau humor terrível. – Soltei as escovas e fui até Persephone. A doce égua mal abriu o olho quando eu me aconcheguei, bem na frente das suas patas dianteiras, recostando-me na sua barriga quente. – Mas eu provavelmente não vou dormir de verdade. Não tenho conseguido dormir muito bem ultimamente – contei a ela em meio a um bocejo gigante. Então coloquei a cabeça no ombro dela, fechei os olhos e caí direto no sono.


Toc-toc-toc! Alguém estava esmurrando a minha porta.

Minha porta? Espere aí. Eu estou no estábulo com Persephone. Estão esmurrando a porta da minha baia?

Levantei a cabeça. Tudo escuro... estava tudo muito, muito escuro mesmo. Como poderia estar tão escuro nos estábulos?

Toc-toc-toc!

– Ok, ok! Já vai – eu disse.

Eu disse? Mas eu nem abri a boca.

Uma luz se acendeu e eu dei um pulo em choque.

Eu não estava no estábulo. Eu estava no dormitório. No meu antigo dormitório, mas, na verdade, era parecido com o meu antigo dormitório. As minhas coisas estavam lá, mas a cama de solteiro do outro lado do quarto estava vazia. Stevie Rae não estava em lugar nenhum. As coisas dela também não estavam lá. Era como se ela não existisse.

Toc-toc-toc!

– Ei, estou me vestindo. Psiu! Aguenta aí!

Eu observei enquanto uma versão de mim colocava uma calça jeans e um moletom preto e dourado dos Tigers da Broken Arrow.

Que diabos era isso?

Eu me senti super tonta e enjoada, e então a minha confusão começou a clarear quando eu vi que o meu corpo estava quase completamente transparente, e que eu estava pairando um pouco acima da cama.

Então eu finalmente entendi. Aaah, eu estou dormindo. Isso é um sonho... um sonho sobre quando eu ainda era uma novata. O que, na verdade, fazia sentido. Quer dizer, eu andava tão estressada que estava me escondendo no estábulo, tirando uma soneca com o meu cavalo e desejando muito que eu fosse uma novata sem preocupações. Não é surpreendente que eu estivesse sonhando que era uma novata de novo.

Só que eu não era a novata. Eu estava observando a mim mesma, eu que era uma novata.

Ok, então, tudo bem. Sonhos são esquisitos. Olhei em volta do quarto semifamiliar enquanto “Zoey” corria até a porta. Se Kalona aparecer... de novo... eu acordo desta vez. Na mesma hora.

A Zoey do sonho hesitou diante do pequeno espelho sobre a pia e tentou ajeitar o cabelo de quem tinha acabado de acordar, e eu dei a primeira boa olhada no seu rosto.

Espere aí, isso está errado. Essa novata Zoey tem uma Marca normal, como todos os outros novatos.

Novamente, racionalizei que aquilo não era um grande problema. Quer dizer, se eu estava sonhando em escapar do estresse sendo uma novata, eu definitivamente não queria ser a única novata com uma Marca preenchida. De novo.

A Zoey do sonho abriu uma fresta na porta. Eu vi o seu corpo se contrair com a surpresa, e então ela deu um passo atrás para poder abrir a porta inteira e... mostrar Neferet parada no corredor.

– Ah, que inferno! Corra! Este é um sonho péssimo! – eu gritei.

Mas a Z do sonho não me ouviu – nem a Neferet falsa do sonho.

– Grande Sacerdotisa! Oi. Eu, ahn, posso convidá-la para entrar? – a Zoey do sonho perguntou desajeitadamente.

– Não! Não a deixe entrar no seu quarto! – eu disse, mas, de novo, nenhuma delas me ouviu.

– Ah, não, querida. Sinto muito por acordá-la, já que o sol ainda não se pôs, mas você tem uma visita que parece um pouco perturbada – disse a Neferet do sonho com uma falsa simpatia que me dava nojo.

– Vai se ferrar, Neferet! – eu berrei. Claro que elas não me ouviram, então eu suspirei e esperei para ver qual esquisitice ia acontecer em seguida no sonho, e reconsiderei seriamente a minha postura de nunca falar palavrão.

– Uma visita? Sinto muito, Grande Sacerdotisa, mas não estou entendendo.

– É o seu padrasto. Ele está... – Neferet fez uma pausa e uma careta obviamente contrariada – insistindo muito para que você vá falar com ele. Ele mencionou algo sobre a sua alma imortal.

– Ah, eca! Ele! – a Zoey do sonho disse, e eu ecoei o seu pensamento. Só fale que é para ela dizer que ele vá embora e nunca mais volte!

Mas a Zoey do sonho parecia mais nova e mais legal do que eu – ou talvez apenas mais nova e mais ingênua.

– Ok, eu vou falar com ele.

– Ótimo! Eu vou acompanhá-la até lá e permanecer com você. Ele realmente é um homem desagradável.

– Sim, com certeza, e obrigada por ficar comigo.

Neferet fez um gesto para que a Zoey do sonho a seguisse, o que ela fez, apesar de eu ficar gritando “Não, não vá!”.

E quando a Z do sonho fechou a porta, eu me senti flutuando atrás dela e atravessando a porta fechada.

– Ok, este é o sonho mais estranho que já tive na vida – falei em voz alta para mim mesma enquanto voava atrás da versão de mim e de Neferet no sonho. As duas estavam conversando despreocupadamente, como se a Neferet do sonho fosse mesmo uma Grande Sacerdotisa decente e a Zoey do sonho fosse apenas uma novata recém-Marcada. Quase como quando eu fui Marcada pela primeira vez e Neferet fazia um papel de mãe para mim.

Eu estava muito errada sobre aquilo, mas isto era apenas um sonho. Devia mesmo parecer estranho.

E a Morada da Noite parecia estranha também. De alguma forma, parecia mais escura e vazia do que a minha escola sempre cheia e onde ninguém nunca dormia. Nesse último ano, desde que meus amigos e eu assumimos o comando, nós havíamos expandido tanto os programas humanos/novatos que sempre havia algo acontecendo a qualquer hora.

Ali, não. Tudo estava silencioso, e a luz cada vez mais acuada do sol se pondo não fazia nada para aliviar a sensação de escuridão.

– Hum, a gente não está indo na direção errada? – a pergunta da minha eu do sonho chamou de volta a minha atenção, e eu percebi que Neferet havia guiado a Zoey do sonho para fora pela porta de trás da escola, em vez de na direção dos escritórios administrativos na frente do prédio principal.

– Oh, desculpe. Eu deveria ter explicado. O seu padrasto se recusa a entrar no campus. Um dos Guerreiros o encontrou espreitando lá fora no muro leste. – Neferet fez uma pausa e abriu um sorriso falso. – Isso não foi muito generoso da minha parte. Eu deveria ter escolhido outra palavra no lugar de espreitando.

O rosto da Zoey do sonho se enrubesceu e ela balançou a cabeça de desgosto.

– Não, essa é a palavra perfeita. E sou eu que preciso pedir desculpas. De novo. O meu padrasto é péssimo. Um religioso totalmente hipócrita, cheio de ódio e preconceito. – A eu do sonho estremeceu. – Ser Marcada e então me afastar dele foi um alívio. Eu vou conversar com ele e me certificar de que ele não voltará aqui para incomodar você nem nenhum outro vampiro.

– Ah, querida, por favor, não se preocupe com um humano sendo um incômodo. Não há nada de novo nisso. É o que os homens humanos parecem saber fazer melhor: incomodar quem é melhor do que eles.

A Zoey do sonho pareceu não saber como responder. Nesse instante, Neferet acelerou o passo, então nós duas tivemos que nos apressar para alcançá-la enquanto ela atravessava o gramado, indo direto até o alçapão no muro leste.

– O muro leste. Típico. Coisas horríveis sempre acontecem aqui – resmunguei.

Mas a Zoey do sonho não podia me ouvir, então nós seguimos Neferet até o alçapão, que ela abriu pressionando a pedra em que estava escrito 1926, o ano em que o muro foi construído. Eu flutuei pela passagem atrás delas até a área do lado de fora, bem ao lado do muro. Mesmo que o sol ainda não houvesse se posto, com certeza parecia que sim, pois estava tão escuro abaixo dos braços dos antigos carvalhos gigantes que ficavam em volta do muro que nós estávamos completamente nas sombras.

– John? – a Zoey do sonho chamou, olhando em volta da área escura e vazia. – Sou eu. Zoey. O que você precisa me dizer?

A eu do sonho estava procurando ao redor, com as mãos no quadril, obviamente exasperada. Só que a minha atenção não estava na Zoey do sonho. Estava em Neferet. A Grande Sacerdotisa havia ficado perto do muro, onde eu percebi que uma estaca grossa de madeira havia sido fixada no chão, tipo algo que um fazendeiro usaria para amarrar arame farpado.

Mas não havia cercas de arame farpado no centro de Tulsa. Que diabos estava acontecendo?

Neferet foi até a estaca e abriu uma grande bolsa que estava ali atrás – e desembainhou uma espada longa que parecia muito perigosa.

Eu entendi tudo em um instante. A estaca era parecida demais com aquela na qual eu encontrei a Professora Nolan, com a cabeça decepada.

– Zoey! Saia daí agora! – eu berrei para a minha eu do sonho desavisada, mas aquela Z não fez nada além de olhar em volta procurando pelo padrasto irritante.

Silenciosamente, Neferet se aproximou dela pelas costas, carregando a espada com as duas mãos, parecendo um samurai assassino.

– Aiminhadeusa, se mexa!

A Zoey do sonho não me ouviu, mas ela de fato se mexeu, virando-se de volta para dizer:

– Neferet, acho que ele foi embora. Sinto muito mesmo que isso tenha sido tanta perda de tempo e que você teve que... – Ela perdeu as palavras ao ver a espada de Neferet.

– Ah, querida, não há absolutamente nada a se desculpar. E as coisas saíram exatamente como eu planejei. Quando encontrarem você, vão acreditar que foi trabalho de humanos... do Povo da Fé, na verdade. Eu vou conseguir a minha guerra. – Neferet sorriu de modo irracional, mostrando os dentes, vitoriosa. – E você nunca mais vai ser importunada pelo seu padrasto ridículo de novo. Acho que isso é uma vitória para nós duas.

Os olhos da Zoey do sonho ficaram vidrados com o choque, e ela ficou balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar. Com uma voz de menininha, ela repetiu várias vezes:

– Não, eu não entendo... eu não entendo... eu não...

Eu gritei quando Neferet girou em uma curva tão graciosa quanto mortal e, com apenas um golpe, cortou a cabeça da Zoey do sonho. O sangue se espalhou por toda parte quando o corpo desabou, contorcendo-se espasmodicamente.

Tanto sangue! Há tanto sangue!

Eu não conseguia parar de gritar. Eu queria fechar os olhos. Eu queria acordar, mas eu estava congelada no lugar, pairando sobre a minha eu do sonho, enquanto Neferet limpava a sua espada no chão. Depois ela voltou até a bolsa para tirar de lá uma corda e uma placa rústica, artesanal, na qual estavam rabiscados os dizeres: A FEITICEIRA NÃO DEIXARÁS VIVER! ÊXODO 22:18.

Eu reconheci aquela citação da Bíblia. Foi a mesma encontrada sobre o corpo crucificado e sem cabeça da Professora Nolan.

E então eu a escutei. Eu me escutei. O meu olhar desviou de Neferet e se voltou para a cabeça cortada que tinha rolado até parar em uma poça de sangue abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Quando eu olhei horrorizada, os olhos se abriram de repente, e a minha própria voz explodiu na minha cabeça.

Você tem que ajudar Kevin a detê-la – nada mais importa!

Atrás de mim, alguém segurou o meu ombro, e eu gritei tão alto que parecia que a minha voz estava rasgando...

– Z! Sou eu! Está tudo bem!

Ainda gritando, eu me sentei, dando de cara com Stark e quase quebrando o seu nariz. Persephone bufou e colocou as orelhas para trás, como se estivesse procurando algo para atacar.

– Shhh, está tudo bem, doce égua – Lenobia apareceu repentinamente, acalmando Persephone e lançando um olhar preocupado na minha direção.

– Stark? – Eu olhei freneticamente em volta, com meu coração batendo tão forte e rápido que eu podia senti-lo nas minhas têmporas. Estou na baia com Persephone. Foi só um sonho. Não foi real.

– Ei, sim, é claro que sou eu. Que diabos está acontecendo? Eu senti o seu medo como um ferro em brasa. O que aconteceu?

Eu abri a boca para contar a ele sobre o sonho... e não consegui. Porque eu percebi que estava errada. Não tinha sido só um sonho. Era uma mensagem. Uma mensagem que eu tinha que guardar para mim mesma, ao menos por enquanto.

– Stark! – Eu deixei que ele me puxasse para dentro dos seus braços fortes e seguros. – Sinto muito. – Virei a cabeça para poder ver Lenobia. Persephone tinha se levantado e estava recostada contra a Mestra dos Cavalos, parecendo assustada e preocupada. – Ah, não! Eu assustei Persephone também! – Eu me levantei com a ajuda de Stark e fui até a égua para acariciá-la e beijá-la. – Sinto muito, muito mesmo, menina bonita. Eu estou bem. Está tudo bem.

– Não. Não está. Eu senti o seu medo, seu pavor. O. Que. Diabos. Aconteceu? – Stark perguntou.

Eu tentei dar uma risada, mas saiu mais parecido com um soluço.

– Isso é realmente constrangedor. Foi só um sonho.

– Na maioria das vezes, seus sonhos são mais do que apenas imagens da sua imaginação – Lenobia disse, não de um jeito rude. – Da última vez que um sonho a despertou, era Kalona.

– Só que não era realmente Kalona – Stark acrescentou. – Então, o que foi?

Eu enxuguei o suor do meu rosto.

– Gente, eu realmente sinto muito. Não foi nada como os sonhos com Kalona ou o não Kalona. Eram só aranhas.

– Aranhas? – Lenobia perguntou.

Eu assenti e estremeci.

– Aranhas.

Stark suspirou e me puxou de novo para os seus braços.

– Ela morre de medo de aranha – ele explicou para Lenobia.

– No meu sonho, eu caí em um poço cheio delas. Foi horrível – eu menti, sentindo-me tão horrível por isso quanto o próprio poço cheio de aranhas.

– Bom, que alívio – Lenobia disse. – Mas, Zoey, se você tem tanto pavor de aranhas, você realmente deveria procurar uma terapia com hipnose. Uma das Grandes Sacerdotisas da Morada da Noite de Saint Louis é especialista nisso. Tenho certeza de que ela pode ajudar você.

– Obrigada. Vou me lembrar disso. Eu normalmente não me incomodo muito com a minha fobia de aranha.

– Mas você anda estressada e sem dormir direito – Stark falou. – Então, um pouco de terapia talvez fosse bom pra você.

– É, talvez. Se eu tiver outro sonho como esse, com certeza vou procurar.

Stark deu um beijo na minha testa.

– Ei, será que um festival de psaghetti vai fazer você se sentir melhor? Você dormiu na hora do almoço, e já é quase hora do jantar.

Eu não demonstrei como fiquei chocada ao descobrir que tinha dormido por horas em vez de por uns vinte minutos. Em vez disso, eu assenti e tentei demonstrar entusiasmo.

– Psaghetti sempre faz com que eu me sinta melhor.

– Foi o que pensei – Stark disse, segurando a minha mão. – Foi um longo dia para mim também. Vamos comer.

– Boa ideia. – Dei um beijo em Persephone de novo e sorri envergonhada para Lenobia enquanto saíamos da baia. – Desculpe por assustar você. Estou realmente me sentindo idiota por isso.

Lenobia estava olhando para mim com seu olhar cinza e esperto.

– Você está perdoada – ela falou. – E, Grande Sacerdotisa, se precisar conversar, lembre-se de que estou sempre aqui a seu dispor.

– Obrigada! Vou me lembrar disso – falei, fechando a porta da baia.

De mãos dadas, Stark e eu saímos do estábulo, na direção do refeitório.

Eu vou falar sobre isso, mas só quando tiver decidido exatamente o que fazer e como. Verdade seja dita, eu já tinha uma ideia. Dei uma olhada em Stark, sabendo que ele seria o meu maior obstáculo. Ele ia ficar bravo. Muito bravo mesmo.

Ah, que inferno...


5

Outro Kevin

– Você parece estar com frio, Vó. Da próxima vez que eu for tirar um desses galhos do caminho, vou pegar um cobertor na caixa lá atrás. Não quero que você fique doente.

A idosa gesticulou para afastar a preocupação do seu neto.

– U-we-tsi, eu ainda me purifico naquele córrego que corre atrás da minha casa. Está sempre frio. Estou bem. E nós já estamos quase no topo da montanha. Acho que, da próxima vez que a gente parar, não estaremos mais sozinhos.

– O que é esta terra? – Kevin olhou em volta, apertando os olhos através da escuridão para a área selvagem de uma montanha de Oklahoma, cheia de carvalhos antigos, relva na altura da cintura e muitas e muitas rochas de arenito.

Vovó indicou a estrada de terra irregular em que o robusto Polaris estava sacolejando.

– Estas são velhas trilhas da época em que o petróleo foi descoberto, e quando digo velhas, quero dizer velhas mesmo. Elas foram feitas por volta de 1901 e, para a nossa sorte, abandonadas em 1902, bem antes de pensarem em colonizar tudo isso ou pelo menos em alargar estes caminhos e pavimentá-los. A família de Tina por parte de mãe era líder do Povo Creek, e a propriedade desta enorme porção de terra passou para ela. Tina a protege há décadas.

– Então, a cerca elétrica já existia antes de a guerra começar?

– Não. Isso foi uma melhoria que ela fez no último ano. Discretamente, usando apenas o trabalho daqueles que são aliados à Resistência. Ela sabe que aquilo não iria deter um ataque do Exército Vermelho, mas a cerca tem o efeito de dissuadir bisbilhoteiros aleatórios e caçadores clandestinos.

– Aposto que deve ser bem bonito aqui durante o dia. É fácil imaginar como seria esse lugar há cem anos.

– É mesmo.

– Mas seria mais divertido imaginar se não tivesse tantas aranhas. Sem para-brisa nem capota nesta coisa, a gente é tipo um imã para aranhas. – Kevin fez uma careta quando ergueu o galho grosso que ele tinha quebrado na primeira parada, balançando-o na frente dele e de Vovó, tentando retirar teias de aranha do caminho antes que acabassem parando no meio delas.

– Aranhas comem carrapatos e mosquitos, u-we-tsi. Elas são apenas um mero inconveniente para nós. – Ela levantou as sobrancelhas. – A menos que, como Zoey Passarinha, você também tenha pavor delas.

– Vó, a minha masculinidade diz que é melhor eu não responder a essa pergunta.

Kevin seguiu em frente, aproveitando o som da risada doce de sua avó. Logo, porém, ele percebeu que não tinha escolha a não ser deixar que as teias de aranha decorassem todo o seu corpo, já que ele tinha que manter as duas mãos no volante e se concentrar para que o Polaris não capotasse quando o caminho foi ficando cada vez mais traiçoeiro. Os seus faróis iluminaram uma árvore enorme, caída como um gigante adormecido sobre a trilha, e ele diminuiu a velocidade até quase ficarem parados.

– Essa deve ser a barricada final – ele disse.

– Prepare-se, u-we-tsi. Dirija direto até a árvore e então pare. Desligue o motor imediatamente.

Kevin engoliu o nervoso e fez o que ela disse. Dirigiu até a enorme árvore caída, estacionou o veículo e desligou o motor. Assim que ele fez isso, a sua pequena e velha avó o deixou totalmente chocado ao subir com agilidade para o banco elevado da parte de trás do Polaris, tão perto dele que sua perna estava pressionada contra o braço dele. Ela levantou a cabeça através das barras estabilizadoras, respirou fundo e então gritou.

– Estou tentando colher pés de mostarda à luz da lua. É nessa hora que eles ficam mais potentes!

– Isso é verdade, Vó?

– Claro que não. É o meu código. Agora, shiu.

Houve um barulho como o do vento farfalhando através da grama alta e meia dúzia de vampiros azuis desceram dos carvalhos enormes ao redor deles – com espadas levantadas de prontidão, enquanto formavam um círculo que foi se fechando em volta do Polaris.

Um vampiro baixo e corpulento, em cuja face havia uma intrincada tatuagem com dois dragões cuspindo fogo, deu alguns passos à frente, ficando a poucos metros de Kevin. Ele empunhava uma espada longa com as duas mãos, e a sua atenção estava concentrada no vampiro vermelho.

– Vampiro vermelho, liberte Sylvia Redbird. Ela não merece perder a vida junto com você hoje.

Sylvia cuidadosamente se colocou na frente de Kevin, ficando empoleirada entre o seu neto e a espada do vampiro azul.

– Merry meet, Dragon.

Dragon Lankford estreitou os olhos e continuou a não falar diretamente com a idosa, dando uma ordem para Kevin.

– Liberte-a.

Devagar, com cuidado, Kevin levantou as mãos do volante, mantendo-as estendidas, com as palmas voltadas para fora.

– Minha avó está completamente livre.

– Sylvia, venha para cá – Dragon disse.

– Só se você me der sua palavra de que vai me escutar antes de decapitar o meu neto.

Dragon voltou o olhar rapidamente para a velha senhora.

– Seu neto?

– Sim, meu amigo. Este é Kevin. Ele vem em paz como seu aliado, assim como eu.

O olhar duro e vazio de Dragon se voltou de novo para Kevin.

– Então eu sinto muito pela dor que essa morte vai causar a você.

– Dragon, você precisa me escutar. Se não fizer isso, se você o massacrar sem pensar, como você vai ser diferente de Neferet e do seu exército de monstros vermelhos?

Dragon Lankford fez uma pausa longa o suficiente para olhar com tristeza para Sylvia de novo.

– Eu não a culpo por trazê-lo aqui. Você está claramente sob a influência dele. Você vai me perdoar quando recobrar a consciência.

A visão de Kevin, que era aguçada de modo sobrenatural, conseguiu perceber o que estava prestes a acontecer um instante antes de Dragon atacar. Kevin só conseguiu pensar no que a longa espada afiada igual a uma navalha poderia fazer na sua pequena e velha avó. Ele se mexeu com uma velocidade estonteante quando Dragon deu o bote, atirando-se na frente dela enquanto pegava o seu galho de proteção contra aranhas e desviava o golpe da espada. Deslocado para o lado, o golpe que era destinado a decapitar sua cabeça acabou riscando as suas costas de ombro a ombro.

No começo, ele não sentiu nenhuma dor – apenas um puxão e o súbito calor do seu sangue jorrando pelas costas.

Vovó Redbird gritou e caiu sobre o corpo de Kevin, bloqueando o próximo golpe fatal de Dragon.

– Cheire o sangue dele! – Sylvia berrou. – Cheire, Dragon! O sangue dele não é como o dos outros vampiros vermelhos! – Pressionada contra o corpo ensanguentado do seu neto, a raiva de Sylvia era quase palpável. – Você vai ter que me matar para atingi-lo!

– Bryan, espere.

Em meio à confusão do choque, Kevin observou uma mulher se aproximar do Mestre da Espada e gentilmente tocar o seu braço. A beleza dela era etérea, fazendo-a parecer com uma das fadas ancestrais. Kevin achou que o seu longo cabelo loiro parecia irradiar luz própria. E um corvo enorme estava empoleirado serenamente no seu ombro.

– Meu amor, a nossa amiga Sylvia está certa. O sangue desse garoto não tem cheiro de morte.

Aquilo fez a espada de Dragon hesitar. O Guerreiro respirou fundo, e então arregalou os olhos. Ele deu um passo à frente, facilmente retirando Vovó Redbird de cima de Kevin e depositando-a ao lado da trilha, perto da mulher com o corvo. Dragon então pressionou a espada contra o pescoço de Kevin.

– Isso é magia negra? O Exército Vermelho aprendeu a disfarçar o seu cheiro? – Dragon o interpelou.

– Não – Kevin respondeu de modo ofegante, tentando falar em meio à dor ardente em suas costas. – Não é magia negra... é amor. Nyx intercedeu por mim e devolveu a minha humanidade. Por favor, não machuque a minha avó.

E então a beleza etérea novamente estava lá. Facilmente afastando a espada assassina para o lado, ela tocou o rosto de Kevin, sorrindo docemente para ele. Então ele percebeu quem aquela bela devia ser: Anastasia, a companheira de Dragon Lankford.

– Bryan, olhe além da sua raiva e veja este garoto.

Lentamente, Dragon colocou a longa espada na bainha presa às suas costas. Então ele deu um passo à frente, ficando a um palmo de distância de Kevin, que estava fazendo o melhor que podia para não desabar sobre o volante. O Guerreiro o cheirou e analisou a sua Marca.

– O que você é? – ele finalmente perguntou.

– Um garoto vampiro que você quase matou – disse Sylvia Redbird ao abrir caminho e passar por Dragon. – Esta ferida precisa de um curativo. Ele está perdendo muito sangue.

– Nós vamos cuidar dele. Você consegue andar? – a mulher encantadora perguntou a Kevin.

Dragon falou antes que Kevin conseguisse fazer a sua voz sair.

– Não, Anastasia. Diferente ou não, ele ainda é um vampiro vermelho e, portanto, nosso inimigo. Eu preciso acabar com ele.

– Meu amor, nós não podemos perder a nossa capacidade de demonstrar misericórdia ou, como Sylvia resumiu tão bem, não vai haver diferença entre nós e os monstros de Neferet. Confie em mim. Tenho um pressentimento bom sobre este garoto.

Dragon olhou para a sua companheira por um longo momento antes de assentir. Era um aceno leve, mas, ainda assim, ele havia assentido.

– Vamos cuidar dele e ouvir a sua história. Nós não somos monstros.

Anastasia beijou o rosto de Dragon enquanto o corvo em seu ombro observava Kevin com olhos escuros e inteligentes.

– É claro que não somos. – Ela se virou de novo para Kevin e repetiu a pergunta: – Você consegue andar?

– Sim. Acho que sim. – Ele começou a tirar as pernas para fora do Polaris. Antes que conseguisse se conter, Kevin arfou com a pontada de dor. Pontos brilhantes de luz brotaram na sua visão. Ele teria caído se Anastasia não o tivesse segurado.

– Eu... eu si-sinto muito – ele disse, batendo os dentes.

– Bryan! Este garoto está terrivelmente ferido – disse a bela, enquanto o seu corvo levantava voo, grasnando indignado.

– Há bolsas de sangue e cobertores no contêiner, junto com o resto dos mantimentos que Tina enviou. – Vovó Redbird foi apressada até o porta-malas do Polaris, voltando para o lado de Kevin com dois cobertores enrolados e o braço cheio de bolsas de sangue. Ela desenrolou o cobertor na trilha, no espaço entre o Polaris e a árvore caída, e arremessou o outro cobertor para Dragon. – Use essa espada para algo além de machucar crianças. Corte isso em tiras.

Kevin achou ter ouvido Dragon resmungar “Sim, senhora”, mas era difícil ter certeza com o zumbido nos seus ouvidos.

– U-we-tsi, Anastasia e eu vamos ajudar você a se deitar naquele cobertor. Depois nós vamos fazer um curativo nesse ferimento. Mas primeiro beba uma dessas bolsas de sangue. Isso vai ajudar.

– A-Anastasia? – Kevin gaguejou. – Vo-você é a companheira de Dragon, ce-certo? Mi-minha irmã me disse para en-encontrar vocês. Mas ela nã-não falou que você tinha um pássaro. – As mãos dele estavam tremendo demais para segurar a bolsa de sangue, então Vovó a segurou perto dos seus lábios enquanto ele bebia a primeira bolsa, depois a segunda, e, por fim, a terceira.

– Sim, é claro que sou a companheira de Dragon, e Tatsuwa não é um pássaro. Ele é um corvo. Se ele ouvisse você o chamando de pássaro, nunca o perdoaria – Anastasia falou com Kevin com uma voz calma e tranquilizadora. – Ok, vamos colocar você no cobertor.

Ela voltou o olhar aguçado para o seu companheiro e, antes que Kevin pudesse se dar conta, uma onda de dor e surpresa ameaçou inundá-lo quando o compacto Guerreiro o carregou para fora do veículo, como se ele não pesasse mais do que uma criança pequena. Então ele o levou até o cobertor e o soltou sobre ele, de bruços.

Determinado a não chorar, Kevin mordeu com força a parte interna da sua bochecha enquanto sua avó e Anastasia pressionavam tiras de cobertor contra a ferida encharcada de sangue. Elas o ajudaram a se sentar para que conseguissem enfaixá-lo em volta do peito e em cima dos braços.

– Eu me sinto estranho – Kevin disse. – Tipo como se eu estivesse flutuando.

– O corte é longo e profundo, mas você vai se recuperar – Anastasia prometeu. – Eu vou dar pontos para fechá-lo assim que nós o levarmos de volta conosco.

– Você é muito bonita – Kevin falou sem pensar.

– Grumpf – Dragon grunhiu de onde estava, bem perto da sua mulher, ainda observando Kevin com desconfiança.

– Obrigada. E você está sendo um ótimo paciente – Anastasia respondeu, ignorando o seu companheiro.

– Pronto. Isso é o melhor que nós podemos fazer aqui. – Vovó Redbird terminou o curativo. – Acho que é melhor ele não tentar andar. O sangramento ainda não parou de fato. Quanto mais ele se mexer, pior vai ficar.

– Concordo. – Anastasia olhou para o seu companheiro e ergueu uma sobrancelha loira e arqueada. – Bryan?

Dragon Bryan Lankford suspirou.

– Johnny B e Erik... peguem o resto dos mantimentos no Polaris.

– Erik? – Kevin virou o rosto para poder ver o vampiro jovem e alto. – Erik Night?

Erik deu uma olhada rápida na direção dele.

– Sim, eu sou Erik Night.

– Eu amei você como o Super-Homem! Mas, ahn, achei que você tivesse morrido. Foi o que falaram no Exército Vermelho.

Erik bufou.

– A única coisa que está morta em mim é a minha carreira de ator... morta pelas merdas que Neferet fez.

– Ei! Chega de conversa fiada. Vocês dois, peguem os mantimentos como eu mandei. – Dragon deu um olhar fulminante para Kevin antes de se voltar para Vovó Redbird. – Sylvia, imagino que você virá junto com o seu neto e não voltará para o rancho de Tina hoje.

– Imaginou certo.

Dragon suspirou de novo.

– Drew, esconda o Polaris. É melhor que os outros se espalhem pela montanha para ter certeza de que o Exército Vermelho não os estava seguindo. E eu quero dizer até lá embaixo da montanha. Verifiquem todos os caminhos, principalmente os que vêm da Lone Star Road. – Ele ergueu a voz e chamou: – Erik! Pensando bem, deixe Johnny B descarregar os suprimentos. É melhor você descer até o lado da montanha que dá para a casa de Tina, e verificar se ela não acendeu uma fogueira de alerta.

– Pode deixar!

– Ninguém está me seguindo. Eles não sabem que estou aqui – Kevin afirmou.

– É melhor você não falar – Dragon disse a ele.

– Não dói mais nem menos se eu falar – Kevin respondeu, tentando sorrir para o vampiro carrancudo.

– Eu quis dizer que é melhor para mim. – Em um movimento, Dragon se inclinou e colocou os braços em volta de Kevin, levantando-o como se ele fosse um bombeiro resgatando uma vítima e colocando-o sobre suas costas largas. Então o Guerreiro se voltou para a sua companheira.

– Eu sigo vocês.

– É claro, meu amor – disse Anastasia.

A última coisa que Kevin ouviu antes de felizmente ficar inconsciente foi a risada musical de Anastasia Lankford e o grasnido do seu corvo que voava em círculo acima deles.


6

Outro Kevin

Kevin recobrou a consciência ao ouvir o barulho de uma discussão.

– Ele não vai conseguir subir em nenhum dos esconderijos de caça. Nós precisamos levá-lo para a caverna – Anastasia estava dizendo.

– Eu não acho isso uma boa ideia – Dragon retorquiu. – Se ele souber que nós estamos escavando uma caverna, então existe o risco de que o Exército Vermelho descubra isso também.

– Meu amor, o garoto já sabe como as coisas funcionam aqui. Ela sabe que Tina é uma aliada. Se ele nos trair, vai ser como o Keystone Park de novo, e nós nunca vamos conseguir voltar para cá – Anastasia falou.

– Kevin não vai trair vocês – a avó afirmou. – Dragon Lankford, você pode sentir pelo cheiro que ele não é como os outros. Ele não age como os outros. Há uma explicação para o que aconteceu com ele, mas essa explicação não será relevante se o meu neto morrer da ferida que você infligiu.

Foi preciso várias tentativas, mas finalmente Kevin fez a sua voz soar. Apesar de mal conseguir pronunciar mais alto do que um sussurro, o seu rosto estava perto do ouvido de Dragon, e o Mestre da Espada não teve dificuldade em escutá-lo.

– Por favor, me coloque no chão.

– Kevin? Você está acordado? – Vovó Redbird estendeu a mão para tirar o cabelo cheio de suor de Kevin dos seus olhos.

– Po-por favor. Eu prefiro sangrar até a morte do que continuar sendo carregado.

– Bryan Lankford, leve este garoto até a caverna. Agora.

Kevin sentiu o suspiro de Dragon, mas o poderoso Guerreiro fez o que sua companheira ordenou. Ele seguiu por um caminho estreito, que, pelo que Kevin conseguiu ver, era uma área plana e coberta por grama no alto da montanha. Eles desceram contornando várias rochas enormes de arenito e finalmente chegaram a uma abertura estreita voltada para o precipício. Uma luz pálida e trêmula vinda de dentro projetava sombras que bruxuleavam nas pedras. Dragon fez uma pausa, enquanto Anastasia deslizava para dentro. Momentos depois, três figuras encapuzadas saíram apressadas. Eles não olharam para cima, apenas mantiveram suas cabeças abaixadas, escondendo os rostos ao passar por Dragon, Kevin e Vovó Redbird.

– Ok, tragam o garoto para dentro – a voz de Anastasia chegou até eles.

Dragon virou-se de lado para que ele e a sua carga conseguissem entrar. Então, sem a menor cerimônia, ele largou Kevin no chão de pedra da pequena caverna, e o mundo de Kevin ficou temporariamente cinza com pontos brilhantes.

– Você poderia ter sido mais gentil – Anastasia disse.

– Eu poderia tê-lo matado e poupado todos nós dos problemas que ele vai trazer – Dragon replicou.

– O meu neto traz esperança, não problemas, Dragon Lankford – Vovó Redbird disse com firmeza.

– Sylvia, perdoe-me por dizer isso, mas é claro que você pensaria dessa maneira. Ele é sua família. A grande lealdade que você demonstra por ele é admirável, seja ela justificada ou não – Dragon respondeu.

Conforme a visão de Kevin ficou mais clara, ele viu sua avó encarar o Mestre da Espada. As mãos no quadril, os cabelos grisalhos recaindo por seus ombros, e ele nunca a havia visto ficar tão enfurecida.

– Kevin foi Marcado há mais de um ano. Ele se Transformou logo depois disso. Alguma vez eu mencionei o nome dele a você?

– Não, mas...

– Não! Eu não mencionei – ela o interrompeu. – E não fiz isso porque eu não iria, não poderia colocar a Resistência em perigo, e ainda assim aqui estou. De repente trazendo o meu neto até vocês... um neto que é claramente um vampiro vermelho, mas que não tem o cheiro diferente do seu e que age de um modo perfeitamente racional.

– Sylvia, desde os assassinatos de Lenobia e Travis, manter a Resistência em segurança é o meu trabalho. Já aconteceram tantas mortes e, se houver pelo menos um pequeno risco de o seu neto nos comprometer, então nós precisamos tomar todas as precauções. Você acha que me dá prazer decapitar um garoto? Ele não tem culpa por ter sido Marcado como vermelho. Eu não sou um monstro, Sylvia Redbird.

– É claro que você não é, meu amor. – Anastasia levou uma lamparina a óleo até Kevin e a colocou em um nicho na rocha perto deles antes de depositar uma bolsa grande de couro ao lado dele. Ela abriu a bolsa e começou a procurar algo lá dentro enquanto falava: – Sylvia tem razão. Ela está trabalhando conosco por muitos meses e nenhuma vez tentou trazer o neto dela aqui.

– Porque não seria seguro me trazer até aqui antes do que aconteceu – Kevin se esforçou para falar. – Não importa o quanto eu me esforçasse para manter a minha humanidade.

– Fique quietinho. Preciso dar pontos nesse ferimento – Anastasia disse enquanto desenrolava o curativo improvisado. – Sylvia, há várias garrafas de água limpa lá no fundo da caverna. Você pode trazer aqui para mim, por favor?

Sylvia foi apressada até o fundo da caverna, retornando com duas garrafas de um litro de água fresca, que entregou para Anastasia.

– O que mais posso fazer para ajudar?

Anastasia passou para ela uma compressa de gaze.

– Vá secando o sangue enquanto dou os pontos para que eu consiga enxergar o que estou fazendo. – Ela segurou uma agulha longa e curva que estava presa ao fio escuro de sutura. – Kevin, pressinto que isso vá ser um pouco desagradável para nós dois... mais para você do que para mim.

– Tudo bem. Não é tão ruim quanto sentir a minha humanidade escapando de mim.

– O que aconteceu com você? O que mudou você? – Dragon perguntou de repente.

Anastasia levantou rapidamente os olhos para o seu companheiro, que estava em pé perto da entrada da caverna, os braços cruzados, com uma expressão sombria turvando seu belo rosto.

– Você pode interrogá-lo depois que eu der os pontos nele.

– Eu prefiro falar. Vai me distrair um pouco – Kevin disse.

– Muito bem. Vou começar. Primeiro vou colocar álcool sobre o ferimento. Vai doer bastante.

– Estou pronto. Ok, então, o que aconteceu comigo? Bom, eu...! – Kevin perdeu as palavras e deu uma arfada de ar brusca. Era como se Anastasia estivesse derramando fogo líquido nas suas costas, e ele teve que lutar para permanecer consciente.

– Respire, u-we-tsi. Respire. Profundamente, inspire e expire, inspire e expire. Vai passar – Vovó o tranquilizou enquanto secava as suas costas.

Kevin cerrou os punhos e respirou fundo várias vezes junto com sua avó.

– E agora vou começar a dar os pontos. A boa notícia é que o ferimento é longo e reto. Você vai ficar com uma cicatriz, mas deve sarar rápido.

– Melhor isso do que perder a cabeça – Kevin conseguiu falar entre dentes cerrados.

Quando ela começou a dar os pontos, Kevin pensou que ia desmaiar. Ele queria desmaiar, mas, como isso não aconteceu, Kevin voltou a se concentrar na sua história. Ele tentou fingir que estava fora do próprio corpo, em pé ao lado de Dragon, olhando para a noite fria de inverno enquanto falava.

– Três noites atrás, eu era parte de um grupo de soldados vampiros vermelhos e aprendizes novatos que foram arrancados de nossos alojamentos nos túneis embaixo da estação e levados para um mundo alternativo – Kevin fez uma pausa e respirou fundo várias vezes quando a dor nas suas costas ameaçou subjugá-lo.

– O que você quer dizer com um mundo alternativo? – Dragon perguntou.

– Um mundo que é quase como este aqui, só que Neferet não está no poder. A minha irmã está.

As mãos ocupadas de Anastasia fizeram uma pausa.

– Zoey?

– Você conhecia a minha irmã?

– Sim. Ela era uma jovem adorável. Ela entrou na minha aula de Feitiços e Rituais algumas semanas antes de ser assassinada, mas já tinha demonstrado que seria promissora com a magia. Você se lembra dela, não lembra, Bryan?

– Eu lembro que a morte dela foi o começo oficial da guerra de Neferet – Dragon respondeu.

– Neferet a matou – Kevin disse.

– Como você sabe disso? – Dragon perguntou repentinamente.

– Porque no mundo da outra Morada da Noite, Neferet tentou começar uma guerra com humanos da mesma forma... culpando-os pela morte de vampiros. Vampiros que ela mesma matou.

– E a sua irmã morta contou isso pra você? – Dragon falou.

– Não, a minha irmã viva me contou isso... na Morada da Noite de Tulsa, onde ela é uma das várias Grandes Sacerdotisas poderosas que comandam tudo. Zo e o seu grupo derrotaram Neferet e impediram que a guerra acontecesse.

– Garoto, você acabou de cometer o seu primeiro erro. Nós temos espiões no acampamento do Exército Vermelho. São poucos, mas posso conferir com eles essa história de desaparecimento.

– Ótimo – Kevin disse entre dentes cerrados enquanto Anastasia passava a agulha através de outro pedaço de sua carne rasgada. – Quero que você faça isso. Pergunte aos seus homens o que aconteceu com o General Dominick e os seus soldados.

– Vou perguntar. Pode ter certeza.

– Ótimo – Kevin repetiu.

– Mas, até lá, vamos dizer que eu acredito em você. Como o fato de ser atraído para outra versão do nosso mundo restaurou a sua humanidade?

– Foi algo que Nyx fez depois de abençoar Aphrodite com o dom de conceder segundas chances.

– Aphrodite? – Dragon pronunciou o nome com sarcasmo. – Você quer dizer a Sacerdotisa azul que tem visões sobre morte?

– Ela mesma. Só que no outro mundo ela é uma Profetisa de Nyx, tão poderosa quanto bonita.

Dragon bufou.

– Bom, neste mundo ela é praticamente inútil, a menos que você esteja tão iludido com a beleza dela que faça vista grossa para os seus prazeres egoístas e a sua ganância mesquinha.

– Mas, mesmo nesse mundo, ela ainda é uma Profetisa – Kevin argumentou.

– Ela é uma Profetisa que tem visões que raramente consegue interpretar. Antes de Anastasia e eu escaparmos para nos juntar à Resistência, havia rumores de que Neferet estava descontente com ela.

– E por que não estaria? – Anastasia comentou enquanto continuava a fazer a sutura nas costas de Kevin. – Eu abomino tudo que Neferet defende, mas Aphrodite é uma Profetisa horrível. Ela usa a beleza e o dom concedido pela Deusa para manipular os outros. Acredito de verdade que ela retém informação das suas visões, a menos que ache que pode ganhar algo com elas. Não sei por que Neferet não se livra dessa criatura.

– Eu sei. Aphrodite é uma mestra em saber em quanto ela pode abusar ou não de Neferet. Quando vai longe demais, Aphrodite simplesmente tem uma visão que é subitamente clara o bastante para que possa interpretá-la, e, coincidentemente, essa visão também é de grande valor para Neferet – Dragon explicou.

– Ela é diferente no outro mundo – Kevin insistiu. – Ela sacrificou a sua humanidade para salvar os primeiros novatos vermelhos. E desde então, naquele mundo, todos os novatos e vampiros vermelhos têm a capacidade de manter a sua humanidade. Tudo por causa de Aphrodite.

– E por causa dessa diferença, Kevin acredita que pode chegar até a Aphrodite que está neste mundo e convencê-la a fazer o mesmo sacrifício – Vovó Redbird acrescentou.

Houve um longo silêncio durante o qual Kevin tentou, em meio à dor ardente nas suas costas, pensar em algo a acrescentar – alguma coisa que convencesse Dragon de que o que ele estava contando era verdade.

Quando Dragon falou novamente, Kevin escutou uma mudança na sua voz. Muito leve, mas um pouco do sarcasmo e da raiva pareciam ter desaparecido.

– O que faz você pensar que Aphrodite pode fazer essa escolha? A Profetisa que você descreve tem muito pouco em comum com a do nosso mundo.

– Porque mesmo em outro mundo, quem nós somos lá no fundo parece não mudar muito. A única diferença é que nós passamos por experiências de vida diferentes, as quais têm o poder de mudar as nossas personalidades e as nossas reações – Kevin explicou. – Zoey me falou para procurar você e Anastasia neste mundo. Ela disse que vocês me ajudariam a derrotar Neferet, porque vocês a ajudaram no mundo dela.

– Bryan e eu também somos companheiros nesse outro mundo?

Kevin pensou em não contar o que havia acontecido, mas ele afastou aquele pensamento rapidamente. A verdade era uma das poucas forças que ele tinha, e ele não iria começar a mentir e estragar o que já tinha conquistado.

– Vocês eram – ele contou a Anastasia.

– Éramos? – Dragon perguntou.

– Vocês foram mortos. Não sei bem o que aconteceu. Zoey não teve tempo de me contar isso. Só que vocês morreram corajosamente salvando os outros.

– Nós dois estamos mortos? – a voz de Anastasia soou trêmula.

– Estão. Sinto muito – Kevin respondeu.

Anastasia pousou a mão ensanguentada no ombro dele por um instante.

– Não sinta. Se o meu Bryan perecesse, eu não gostaria de viver sem ele.

– E eu não iria dar nem um suspiro em um mundo sem você, meu amor – Dragon afirmou.

Do canto do olho, Kevin viu Anastasia se virar e levantar os olhos para o seu companheiro.

– E é a sua capacidade de amar que faz você maior do que a sua espada. Maior do que um dragão. Pense nisso, Bryan. Se isso for verdade, se Kevin conseguir chegar até Aphrodite e convencê-la a repetir o que fez naquele outro mundo... então a guerra de Neferet mudaria drasticamente.

– Sim – Kevin concordou. – Ela não teria um exército de armas irracionais. Ela teria apenas os oficiais azuis e os Guerreiros Filhos de Erebus, e quantos deles vão permanecer fiéis a ela e lutar se perceberem que Nyx não abençoa essa guerra?

– Ela perderia um pouco de poder, mas talvez não o bastante para acabar com a guerra – Dragon disse pensativamente. – Ela tem sido cuidadosa de apenas colocar em posições importantes Guerreiros que querem ter mais coisas: mais riquezas, mais terras, tudo.

– Mas pelo menos a gente teria uma chance de combatê-los – Kevin insistiu. – Dragon, eu vi o que acontece quando vampiros e novatos vermelhos têm a sua humanidade restaurada, e eu prometo a você que nenhum deles vai querer lutar de novo.

– Onde eles estão, esses outros vampiros e novatos vermelhos alterados? – Dragon perguntou.

– Ainda no outro mundo. Zoey teria que forçá-los a voltar para cá, e ela se recusou a fazer isso. Foi um choque terrível quando eles se recuperaram e se deram conta de tudo que tinham feito. Vários cometeram suicídio antes que pudéssemos detê-los.

– E você? Por que você não ficou devastado? – o Mestre da Espada perguntou.

– Porque eu era diferente desde o momento em que fui Marcado. Eu conservei mais da minha humanidade do que qualquer outro, e por causa disso eu garanti que...

De repente, do lado de fora da caverna vieram os gritos de alerta de um corvo, imediatamente seguidos por um alvoroço. O pássaro voou freneticamente até Anastasia enquanto Erik Night foi apressado até Dragon.

– Perigo! Perigo! Perigo! – o corvo berrou ao pousar no ombro de Anastasia.

– Tina acendeu uma fogueira de alerta! – Erik contou a Dragon.

Kevin estava ocupado demais olhando fixamente para o corvo e pensando se corvos normais conseguiam falar ou se esse em específico tinha poderes sobrenaturais, quando Dragon virou-se e o encarou.

– Seu desgraçado traidor! – Dragon atirou as palavras para Kevin.

– Não! Não fui eu! Não poderia ser. E-eu nem fui para o quartel ontem. Fui direto até a fazenda de Vovó Redbird.

Outro vampiro azul entrou apressado na caverna. Com a respiração ofegante, ele anunciou:

– Soldados do Exército Vermelho estão subindo a montanha!

Dragon Lankford marchou até Kevin e agarrou forte o seu braço, fazendo-o ficar em pé e arrastando-o até a entrada da caverna.

– Antes de matá-lo, você vai me dizer quantos soldados você trouxe até aqui!


7

Outro Stark

– Tenente Dallas, explique de novo para mim por que diabos nós estamos aqui, no meio do nada, em uma noite de inverno congelante, quando eu poderia estar nos meus aposentos com uma fogueira crepitante, venerando o sabor da boca da minha sacerdotisa atual?

O pequeno e jovem vampiro correu até Stark. A sua Marca azul de adulto tinha a forma de relâmpagos, o que fazia sentido por causa da sua estranha afinidade com eletricidade, mas Stark achou que ela ficava mais ridícula naquele rosto que lembrava o de um furão.

– Bom, General, como eu disse a Artus, hoje a nossa varredura de segurança era em Sapulpa e Sand Springs. Lá na mercearia Reasor’s, na esquina da Taft com a Hickory aqui em Sapulpa, o gerente relatou que tinha certeza de que viu Erik Night com um grupo de vampiros azuis que estavam espreitando no estacionamento.

– Bom, Night realmente se juntou à Resistência alguns meses atrás, mas por que nós estamos aqui, se ele foi visto na cidade?

– Porque eu andei pressionando um tenente do Exército Vermelho e ele conseguiu encorajar – Dallas pronunciou a palavra com uma alegria maliciosa – alguns dos moradores locais a admitirem que eles têm notado luzes estranhas vindo desta montanha. A maioria dos caipiras acha que ela é mal-assombrada... eles falaram alguma coisa sem sentido sobre a montanha pertencer ao Povo Creek há gerações. Disseram inclusive que os fantasmas perseguiam os técnicos que perfuravam petróleo no começo dos anos 1900, mas eu não acredito nessa merda. – Eles estavam parados ao lado de uma rodovia denominada Lone Star, que serpenteava pela montanha. Dallas apontou para a cerca com oito arames grossos, que parecia emoldurar toda a grande área selvagem que formava o local chamado Polecat Ridge. – Então, eu dei uma fuçada por aí e encontrei isso.

– Uma cerca? Há fazendas por toda parte nessa região que são cercadas. Por que isso seria um problema? – Stark perguntou.

– Porque isso não é uma fazenda. A montanha é selvagem. Ninguém fez nada nela desde o começo do século passado. Então por que ela é protegida por uma cerca elétrica de alta voltagem?

– Isso é muito? – Stark deu um passo para mais perto da cerca e de fato ouviu um zumbido fraco e sentiu algo diferente no ar.

– Muito. Eu tentei conversar com a velha que é dona da montanha, mas ela não foi muito prestativa... e ela é protegida pelas diretrizes de Neferet porque também é dona das melhores plantações de alfafa em todo o estado. Então eu não pude ser tão persuasivo quanto gostaria.

– Mas ela te deu uma resposta.

– Sim, senhor. Ela falou que tem um rebanho de um tipo especial de veado. Um tipo que Neferet também ama.

– Veado de cauda branca – Stark assentiu. – Neferet gosta de carne de veado. Muito. Não sabia que o fornecedor dela ficava por aqui.

– Sim, essa mesma mulher, Tina, é a dona desta montanha e de todos os campos ao redor. Enfim, ela disse que cria os veados especiais e os deixa soltos na montanha porque ficam mais saudáveis assim, então a carne deles é melhor. Por isso ela tem uma cerca elétrica em volta de toda a propriedade, para manter os veados dentro e os predadores longe.

– Acho que faz sentido. Você perguntou a ela sobre alguma atividade na montanha?

– Sim, senhor. Não consegui nada dela. A velha disse que é silencioso aqui, e por isso ela vive aqui, afastada das pessoas. Ela também disse que vigia a própria montanha, expulsando qualquer intruso, e que ela não precisa, nem quer, a nossa ajuda. Depois disso ela bateu o portão na minha cara.

– Nada de novo – Stark resmungou.

E não era mesmo. Desde a guerra de Neferet, os humanos sofriam. Não que ele estivesse muito preocupado com humanos. A única coisa com que Stark estava muito preocupado era com a sua própria pele – a vida era mais fácil assim –, principalmente nos últimos dias. No entanto, humanos se escondendo atrás de portas fechadas e demonstrando nada além de medo e/ou repugnância por vampiros não ajudava a luta contra a maldita e irritante Resistência.

– Então, quanto eu reportei tudo a Artus, ele disse que a montanha precisava ser inspecionada. E é por isso que nós estamos aqui.

– Tudo bem, então. Essa velha desligou a cerca elétrica? – Stark perguntou, mantendo uma distância segura dos cabos grossos.

– Não, mas a gente não precisa que ela faça isso. Eu consigo colocar a gente aí dentro sem problemas.

– Bom, então faça isso – Stark disse.

Ele deu as costas a Dallas e fez um gesto para o primeiro dos cinco utilitários estacionados atrás do seu veículo na liderança. O motorista obedeceu imediatamente, e soldados vampiros vermelhos e os seus oficiais responsáveis começaram a desembarcar. Stark fez outro gesto para que esperassem, o qual foi passado para a fila atrás, mas ele não precisava ter feito os soldados pararem. Dallas tinha ido até a cerca e colocado a mão no poste mais próximo. Os olhos do jovem vampiro estavam fechados, e a expressão do seu rosto quase indicava que ele estava sentindo prazer – o que não seria uma surpresa para Stark. Ele sempre achou que Dallas era estranho.

Quando Dallas levantou a cabeça no instante seguinte e olhou para Stark, os seus olhos estavam reluzindo com uma luz amarela bizarra.

– Mande os soldados passarem por cima da cerca aqui – Dallas manteve ambas as mãos no poste, indicando com o queixo o local à sua esquerda. – Fale para eles se apressarem. Essa certa tem muitos volts passando por aqui. Eu só posso segurá-los por alguns minutos.

– Vocês ouviram o tenente, façam os homens se mexerem! – Stark gritou.

Stark se afastou e ficou observando os vampiros vermelhos se arrastarem por cima da cerca. Eles parecem umas malditas baratas esfomeadas. Stark não se permitiu estremecer, apesar de sentir como se insetos estivessem rastejando na superfície de sua pele. O Exército Vermelho é necessário, ele lembrou a si mesmo com firmeza. Além do mais, não era como se eles pudessem se sentir ofendidos. Eles não davam a mínima para o quanto eles eram nojentos. Só o que importava para eles era a sua fome insaciável.

– Sua vez, General – as palavras de Dallas tiraram Stark dos seus pensamentos.

Ele rapidamente passou por cima da cerca.

– Ok, vamos nos espalhar e formar uma linha afrouxada, e então vamos subir com essa linha montanha acima.

Eles estavam andando por cerca de quinze minutos, abrindo caminho através de uma vegetação rasteira marrom devido ao inverno e cheia de detritos da floresta. Então encontraram uma estrada de terra acidentada em que mal cabia um quadriciclo, apesar de ser óbvio que ela tinha sido usada recentemente.

– Isso não parece nada bom – Stark disse. – Tenente, você viu algum carro na propriedade daquela senhora?

– Sim, senhor. Vi algumas dessas coisas caras que parecem carrinhos de golfe melhorados. Ela foi dirigindo um deles até o portão para falar comigo.

– Um Polaris – Stark disse, analisando os rastros.

– Perdão, senhor?

Stark levantou os olhos para Dallas.

– Esse é o nome desses veículos. E esses rastros parecem ter sido feitos por um deles. Pode não ser tão ruim quanto eu pensei. A velha senhora pode realmente ter dado uma circulada por aí procurando invasores, mas vamos seguir essa trilha por mais um tempo para ter certeza.

– Sim, senhor!

Depois de mais ou menos trinta minutos de caminhada, ouviu-se um grito à direita de Stark.

– Alto!

Stark pegou o seu arco sempre presente, preso às suas costas, e engatou uma flecha. Seis veados, completamente assustados e de olhos arregalados, passaram saltitando por eles, fazendo os soldados vermelhos se agitarem confusos, enquanto olhavam fixamente a carne de veado em movimento, claramente considerando se deveriam perseguir a presa ou esperar por um jantar mais delicioso e que se movimenta mais devagar com apenas duas pernas.

Stark franziu o cenho de desgosto.

– Dallas! Mantenha esses soldados sob controle. Ninguém mata um veado sem a permissão de Neferet. Cuide para que essas máquinas carnívoras entendam isso.

– Sim, senhor! – Dallas voltou correndo pelo caminho.

Stark podia ouvi-lo gritando para os tenentes do Exército Vermelho. Pela segunda vez naquela noite, ele ficou muito irritado com o fato de o General Dominick e seu pelotão de soldados terem aparentemente desaparecido sem explicações alguns dias atrás. Dominick era amplamente reconhecido como o mais implacável e inteligente dos generais vermelhos, o que significava que os seus soldados eram sempre os mais disciplinados.

– Maldito Exército Vermelho! – Stark resmungou. Ele tentou lembrar a si mesmo para tentar convencer Neferet a considerar a retirada progressiva do máximo possível dos vampiros vermelhos do dia a dia da guerra, e somente usá-los durante as batalhas principais contra os exércitos humanos ou a Resistência. – Eles fazem mais mal do que bem.

Isso sem mencionar que ele achava repugnante que a mordida de qualquer novato ou vampiro Marcado como vermelho fosse venenosa para humanos, inevitavelmente os matando e fazendo com que ressurgissem em três dias como coisas grotescas como zumbis, cuja mordida também era contagiosa.

– E eles têm um mau cheiro horrível.

– Senhor, os soldados estão sob controle – Dallas disse, ofegante, ao chegar correndo perto de Stark.

Stark soltou um grunhido.

– Então vamos em frente de novo. Ficar rastejando por esta montanha não é minha escolha ideal para passar a noite.

A fileira de soldados continuou se movendo, serpenteando pelo caminho, enquanto seguiam o que mal podia ser chamado de estrada de terra. Logo a trilha dobrou drasticamente para a direita, e então seguiu quase em linha reta. Stark suspirou e se concentrou na missão, não gostando nada de sentir o ar mais frio e úmido. Ele tentou lembrar se havia previsão de gelo ou neve. Ele deu uma olhada no seu telefone e praguejou em voz baixa.

É claro que não tem um maldito sinal aqui no meio do nada.

De repente, acima dele, um corvo começou a voar em círculos e a grasnar, como se estivesse irritado por estarem invadindo a sua montanha.

– Vamos apertar o passo – Stark disse a Dallas. – Volte descendo a fila e diga a eles para me acompanharem.

General Stark não esperou por uma resposta. Balançando os braços, ele começou a subir correndo a trilha de terra vermelha, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.


Outro Kevin

Dragon Lankford agarrou o braço de Kevin, puxou-o bruscamente, fazendo com que ele ficasse em pé, e o arrastou até a boca da pequena caverna. A sua espada montante estava desembainhada e ele ficou na frente de Kevin, segurando a ponta da lâmina afiada contra o seu pescoço.

– Quantos são? – Dragon o interpelou.

Vovó Redbird tentou correr para ficar ao lado de Kevin, mas Anastasia segurou o seu pulso, não permitindo que ela fosse até ele.

– Não, minha amiga. Isso foi além da nossa boa vontade. Dragon precisa lidar com o seu neto agora.

– Quantos? – Dragon repetiu, e a espada tirou uma pequena gota de sangue do pescoço de Kevin.

– Mate-me. Corte a minha cabeça. Faça o que quiser, mas isso não vai mudar a minha resposta porque eu estou dizendo a verdade. Eu não sei o que está rolando lá fora. Eu não sei como eles acharam a sua montanha, mas isso não tem nada a ver comigo.

– Então, é só uma coincidência que um tenente do Exército Vermelho apareça aqui na noite em que os soldados do Exército Vermelho fazem o mesmo? – A voz de Dragon estava pesada com uma fúria mal controlada. – Você sabe quantos inocentes estão aqui? Dezenas! Eles estão espalhados ao nosso redor em esconderijos de caça. Humanos e novatos azuis. Alguns são... apenas crianças. Todos procurando segurança e liberdade, e eles vão perder a vida esta noite. Por sua causa!

– Não! – Vovó Redbird gritou. – Kevin estava comigo. Ele está dizendo a verdade! Eu juro pela minha vida.

Dragon se dirigiu apenas a Kevin.

– Ela vai morrer hoje também. De uma maneira horrível. E, se eles deixarem sobrar algo, ela vai acordar como uma máquina de comer, voraz e irracional. A sua alma só pode estar completamente repleta de Trevas para fazer uma coisa dessas.

Kevin virou a cabeça para o outro lado, incapaz de olhar para a sua avó.

– Sinto muito, Vó. Eu nunca deveria ter deixado você me trazer aqui. Eu sabia que era perigoso demais. Eu devia ter espionado Neferet como você me disse para fazer e deixar que você viesse falar com a Resistência no meu lugar. Eu sinto muito, muito mesmo.

– Eles estão vindo pela trilha oeste! – Um vampiro azul que Kevin não reconheceu arrastou-se pelos últimos metros montanha acima até chegar onde eles estavam.

– Apaguem todas as chamas! – Dragon virou a cabeça para olhar para a sua companheira. – Meu amor, leve os inocentes até lá embaixo pela parte de trás da montanha. Pode ser que eles não nos tenham cercado. – O seu olhar duro encontrou Kevin de novo. – O resto de nós vai ficar aqui e ganhar tempo para que vocês escapem.

– Não. Eu não vou deixar você – Anastasia falou baixo, mas com firmeza. – Sylvia está acostumada com a natureza de Oklahoma. Ela pode guiar os inocentes. Eu vou ficar com o meu companheiro. Eu também sei empunhar uma espada, e prefiro morrer a seu lado.

Kevin viu a dor que atravessou os olhos de Dragon Lankford e o desespero que curvou os seus ombros, e ele não conseguia aguentar aquilo.

Que diabos Zoey faria?

Ele sabia o que ela não faria. Zoey Redbird – a Grande Sacerdotisa que comandava a Morada da Noite de Tulsa com força e honestidade – não iria desistir.

– O sangue da minha companheira vai estar nas suas mãos – Dragon triturou as palavras por entre dentes cerrados. – E depois de acabar com você, que tipo de recepção você acha que Nyx vai lhe oferecer? Essa é a parte boa de morrer. Eu vou estar lá, no Bosque da Deusa, para testemunhar a punição de Nyx.

Enquanto falava, Dragon pressionou a espada com mais força contra o pescoço de Kevin.

Kevin reagiu automaticamente. Ele se jogou para trás, gritando:

– Eu faria qualquer coisa para consertar isso! – As suas costas feridas arderam quando ele colidiu com a parede de pedra da caverna, abrindo os poucos pontos que Anastasia já tinha dado. Kevin cambaleou e caiu, enquanto o sangue escorria pelas suas costas e manchava as pedras.

Instantaneamente, houve uma mudança tão grande no ar que penetrou a fúria de Dragon. Ele congelou com a espada sobre a cabeça, pronta para dar um golpe mortal.

Depois de tudo isso, Kevin pensou que foi semelhante ao modo como o ar ficou em volta da fenda entre o seu mundo e o de Zo, mas, naquele momento, tudo que ele conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto quando seres etéreos começaram a se materializar ao redor dele. Alguns se ergueram das rochas de arenito da caverna. Alguns desceram dos céus, como penas flutuando até o chão. Outros ainda pereceram emergir de dentro da casca dos carvalhos antigos, cheios de nós, pendurados precariamente no precipício ao redor deles.

Eles eram muito diferentes entre si. Muitos pareciam um cruzamento entre folhas caídas e borboletas. Então uma leve rajada de vento soprou e eles mudaram de forma, tornando-se repentinamente belas mulheres aladas. Algumas lembravam beija-flores, só que tinham cabeças delicadas de mulheres incrivelmente bonitas e de homens lindos. Alguns pareciam fogos de artifício de Quatro de Julho, só que menores e translúcidos. Vários tinham forma de vaga-lumes... grandes e lindos vaga-lumes que não deviam estar esvoaçando por aí em pleno inverno. E outros ainda pareciam sereias e águas-vivas cintilantes.

Todos estavam descendo sobre Kevin.

– Magia Antiga! Magia Antiga! – grasnou o corvo, empoleirado no ombro de Anastasia.

A bela Sacerdotisa de repente estava agachada ao lado de Kevin, observando as criaturas com curiosidade e reverência.

– Sim, Tatsuwa! Esses espíritos são Magia Antiga. Nunca pensei que veria um, já que a Magia Antiga quase desapareceu do mundo.

Uma figura com asas de borboleta, que era uma mulher voluptuosa do tamanho aproximado da mão de Kevin, inteiramente nua, exceto por um vestido feito de brilho, esvoaçou até ele, concedendo um olhar suplicante.

– O-o que eles querem? – Kevin gaguejou.

– Você os invocou. Pergunte a eles – ela disse.

– Hum, o que vocês querem? – Kevin perguntou inseguro para o espírito flutuante.

“Nós aclamamos o chamado.

Vosso sangue é verdadeiro.

Qual é o vosso desejo

Que devemos realizar?”

Kevin não hesitou.

– Escondam-nos! Não deixem que os vampiros que estão subindo a montanha encontrem nenhum de nós que já estamos aqui em cima – ele fez uma pausa e então acrescentou: – Por favor.

“Se fizermos isso por vós,

O que fará por nós?”

Kevin abriu a boca para responder, mas Anastasia colocou a mão no seu braço e o deteve. Imediatamente, ela sussurrou:

– Tome cuidado. A Magia Antiga é poderosa. E também nunca é gratuita.

– O que você acha que eles querem? – Kevin sussurrou de volta.

– Os espíritos são ligados aos quatro elementos físicos: ar, fogo, água e terra. Encobrir esta montanha deve ser uma tarefa fácil para eles. Ofereça o seu sangue, mas apenas a quantidade que você já verteu.

Kevin limpou a garganta e então respondeu ao espírito cintilante.

– Eu vou pagar vocês com o meu sangue, mas apenas o sangue que eu já derramei. Isso é o suficiente para nos manter a salvo?

O espírito rodopiou no ar e foi cercado por todas as outras diferentes criaturas. Kevin podia ouvir que elas estavam murmurando, mas as palavras eram estranhas. Não como outra língua, mas como um modo diferente de pensar e de formar sons.

Então ela flutuou até pairar acima dele de novo.

“Nós aceitamos vosso preço esta noite

Já que vosso sangue é forte com a Luz.

Nós selamos este acordo convosco.

E é dito – que assim seja!”

Quando Tatsuwa grasniu um lamento, Anastasia se afastou rapidamente do caminho, juntando-se a Dragon, que estava a poucos metros de Kevin, com a espada ainda desembainhada, enquanto os espíritos cobriam o jovem vampiro vermelho. No início Kevin se contraiu, esperando que eles causassem ainda mais dor do que ele já tinha suportado aquela noite, mas o toque deles era estranhamente suave, como chuva fria caindo em uma floresta em chamas. Os espíritos também cobriram toda a parede rochosa da caverna, o chão de terra ao redor dele e até a ponta da espada de Dragon – qualquer lugar onde houvesse uma gota salpicada do seu sangue. Enquanto bebiam, os seus corpos resplandeciam com luz e cor, e eles fizeram tantos sons de estalos e gorjeios animados que fizeram Kevin sorrir.

Então, com a mesma rapidez com que haviam surgido, eles desapareceram.

E a noite ao redor deles mudou totalmente.


Outro Stark

Começou de modo inocente. Stark sentiu a direção da fria brisa da noite se alterar e se acentuar. Ele estava suando por causa da subida da montanha, então o seu rosto úmido registrou instantaneamente a mudança e ele estremeceu, apertando o passo.

E então o céu da noite começou a cuspir gelo.

Stark escorregou em uma pedra, subitamente lisa com o gelo, tão escura quanto a floresta ao redor deles, e teve que girar os braços para não cair. Ele abaixou a cabeça, protegendo-se da chuva fria, e diminuiu o ritmo.

Depois disso a névoa começou, vinda de lugares mais baixos ao redor deles, e erguendo-se das entranhas da montanha. Atrás dele, alguém gritou alto, e alguns instantes depois, Dallas estava ofegante ao seu lado.

– Senhor, os homens estão escorregando. Um dos soldados acabou de cair e espatifou a cabeça contra uma pedra.

Caminhando com dificuldade, Stark parou.

– O tempo virou. Eu devia ter conferido a previsão antes de sair da Morada da Noite.

– Senhor, eu conferi – Dallas disse, enxugando o rosto com as costas da manga do seu casaco encharcado. – A previsão era de frio e tempo firme.

– Isso que dá escutar Travis Meyer e o News on Six – Stark resmungou. – Bom, diga aos oficiais vermelhos para levarem os seus soldados de volta para os utilitários. Você e eu vamos em frente, continuar vasculhando até o topo da montanha para que eu tenha certeza...

Um grupo de vaga-lumes incrivelmente grandes saiu voando de dentro da névoa, esvoaçando rapidamente na chuva de gelo ao redor como se fossem crianças brincando em uma fonte. Stark ficou olhando fixamente para eles através do gelo, da chuva e da neblina enquanto os seus corpos de inseto se alteravam para corpos de mulheres nuas e depois novamente para insetos.

Stark sentiu o seu sangue ficar tão frio quanto o gelo que caía.

– Magia Antiga – ele falou baixo.

– O que foi, senhor? – Então os insetos incandescentes atraíram a visão de Dallas. – Ei, vaga-lumes! Merda, que coisa estranha.

– Não são vaga-lumes. São espíritos. Vamos recuar, Dallas. Diga aos soldados que estamos indo embora. Agora!

Dallas olhou confuso para Stark, mas saiu apressado para fazer o que ele ordenou. Stark fez uma pausa só por um segundo antes de segui-lo trilha abaixo.

Os espíritos eram realmente espetaculares – tão bonitos quanto haviam sido descritos nos tomos antigos que o seu professor de Feitiços e Rituais insistiu que a sua classe avançada lesse, de ponta a ponta. Stark havia ficado imerso na aula de Feitiços e Rituais, principalmente porque ele adorava ler. A metade final do último livro mais avançado usado na aula era dedicada à Magia Antiga e principalmente aos espíritos elementais.

Stark vasculhou a memória enquanto se afastava devagar da nuvem cintilante de criaturas. Os espíritos eram poderosos, mas tão instáveis quanto a Magia Antiga que os constituía – em outras palavras, eles podiam ajudar você em determinado momento, e se voltar contra você no instante seguinte.

O que Dallas falou sobre esta montanha? Era uma terra ancestral da Nação Creek.

– Faz sentido – ele murmurou para si mesmo enquanto continuava o caminho de volta, relutante em desviar o olhar dos espíritos. Eles devem ter sido protetores da terra, aliados da Nação Creek quando os indígenas viviam no local, e não compreendem que o mundo mudou, seguiu em frente. Eles ainda continuavam protegendo a terra.

Ele alcançou a fila de retirada, ordenando aos soldados que andassem o mais rápido possível para sair daquela terra. Dallas correu na frente deles, controlando a eletricidade o suficiente para que o grupo passasse sobre a cerca novamente. Na hora em que Stark chegou ao utilitário e Dallas manobrou o veículo líder em que eles estavam para voltarem para Tulsa, a estrada estava quase intransitável por causa do gelo.

– Senhor, o que diabos aconteceu lá em cima? – Dallas perguntou.

– A confirmação de que nenhum membro da Resistência anda rondando por aquela montanha. Magia Antiga com esse tipo de proteção não admite intrusos. Aquela mulher, Tina, é dona de toda a montanha?

– Sim, senhor.

– Ela deve ter sangue Creek. É por isso que os espíritos a deixam zanzar por ali, fingindo procurar por intrusos – Stark bufou. – Intrusos, caramba! Eu detestaria ver o que a Magia Antiga faria com qualquer um que invadisse aquela terra.

– Bom, pelo menos nós sabemos que os habitantes não estão mentindo – Dallas disse. – Não sei quase nada sobre Magia Antiga, mas eu vi aqueles insetos. Eles brilhavam como luzes. Deve ser isso que as pessoas falaram que viram lá em cima.

– Só pode ser. – Stark hesitou. – Foi só isso que você viu? Apenas insetos brilhantes grandes?

– Sim, isso não é estranho o suficiente?

– É sim – Stark respondeu, perguntando-se por que ele se sentia aliviado por Dallas não ter visto os espíritos se transformando em formas semi-humanas.

– Bom, parece que a gente não tem que se preocupar em vigiar aquela montanha. Ótimo. Muitos espinheiros malditos, pedras e coisas assim para o meu gosto. Além disso, eu odeio o campo. Sou um cara da cidade.

– Tenente, quero que você mantenha a boca fechada sobre o que nós vimos lá em cima. A última coisa que precisamos é de um bando de novatos idiotas pensando que seria uma aventura ir até lá para dar uma olhada na Magia Antiga.

– Como quiser, senhor, mas não pareciam perigosos. Eles parecem vaga-lumes anormalmente grandes, até são bem bonitinhos.

– Dallas, só um daqueles insetos bonitinhos tem a capacidade de devorar você inteiro... e eu quero dizer você inteiro mesmo. Os espíritos conseguem drenar almas tão facilmente quanto drenam sangue.

– Pelas tetas de Nyx! Você está brincando?

Stark deu um olhar duro para ele.

– Parece que estou brincando com você, Tenente? E nunca mais use o nome da Deusa dessa forma perto de mim de novo.

– Sim, senhor. Desculpe, senhor.

– Cale a boca e dirija.

O tenente obedeceu, deixando o seu general contemplando a noite.

A Magia Antiga já deveria ter desaparecido quase completamente do mundo. Os livros dizem que ela só pode ser encontrada na Ilha de Skye, e ninguém tem permissão de entrar lá há séculos. Stark não conseguia imaginar o que os espíritos estavam fazendo ali. O fato de ser uma terra de indígenas americanos que eles ainda estavam protegendo fazia sentido.

Ainda assim não explicava o porquê de estarem despertos e ativos o bastante para serem vistos por habitantes humanos do local.

Será que isso tem alguma coisa a ver com a guerra de Neferet?

Um arrepio de mau pressentimento desceu pela coluna de Stark, mais frio do que o gelo que parou de cair assim que saíram da Lone Star Road.

Stark tinha certeza de que ele sabia a resposta para a sua pergunta. O que ele não sabia era se era um bom ou mau sinal que os espíritos estivessem ficando ativos. Ele também não sabia que diabos fazer com a sua descoberta.

O seu dever era reportar isso a Neferet, mas Stark era um Guerreiro Filho de Erebus juramentado antes de se tornar general de Neferet, e o seu primeiro dever de lealdade era com a Deusa Nyx.

A verdade secreta que Stark mantinha escondida lá no fundo era que ele não confiava em Neferet, nem concordava com a guerra dela.

Claro, ele fazia parte de um grupo muito grande e firme de vampiros azuis que exigiam um melhor tratamento para os humanos. Antes da guerra, ele estava farto daquela besteira de separados-mas-iguais que os políticos humanos empurraram para cima deles por tanto tempo. Ele até apoiou o começo da guerra de Neferet, mas depois de poucos meses ficou óbvio que Neferet nunca quis criar uma ordem mundial onde todos fossem iguais. Neferet queria mandar e subjugar todos os humanos.

Stark não era um vampiro vermelho. Ele tinha princípios morais. Ele manteve a sua humanidade. E ele não era um assassino. Ele era um Guerreiro, que jurou proteger a Grande Sacerdotisa que recebeu de Nyx o dom de liderar a nação dos vampiros.

Mas e se os boatos fossem verdadeiros? E se Neferet não fosse mais uma seguidora de Nyx, e se a Deusa realmente tivesse se afastado da sua Grande Sacerdotisa?

– Eu rezo a Nyx por um sinal... – Stark murmurou para o seu reflexo no vidro escurecido.

– Senhor? Disse algo?

– Só estou falando comigo mesmo – Stark respondeu. Ele fechou a boca, mas o sussurro na sua mente não parou.

Eu tenho rezado por um sinal de que Neferet está seguindo a vontade da Deusa. Isso foi um sinal? Ou a aparição da Magia Antiga é uma indicação do contrário?

Stark esfregou a testa, odiando aquela dor de cabeça que estava aumentando. Até ele ter certeza de que Neferet havia renunciado Nyx, ele iria cumprir o seu dever. Ele iria proteger a sua Grande Sacerdotisa.

No entanto, ele também manteria a sua mente e os seus olhos bem abertos e, pelo menos por enquanto, não contaria a ninguém sobre os detalhes mágicos do que tinha acontecido na montanha aquela noite.


8

Outro Kevin

– Eles bateram em retirada! Todos eles! – um vampiro azul alto e loiro entrou correndo na pequena caverna, tirando gelo de uma tatuagem de adulto formada por nós celtas, enquanto se aproximava de Dragon.

– Cole, você tem certeza? – Dragon perguntou.

– Sim. Estava uma confusão lá fora, mas eu vi o que aconteceu. Foi bem lá no nosso primeiro posto de controle. Um bando de coisas que pareciam vaga-lumes saiu da neblina na frente do General Stark. Ele imediatamente ordenou a retirada. Não consegui chegar perto o bastante para entender o que ele estava dizendo, mas eu ouvi claramente as palavras Magia Antiga, e deu pra ver que ele parecia assustado. Pra valer.

– Oh, graças à Deusa! – Vovó Redbird desabou no chão de pedra bruta da caverna.

– Vó! Você está bem? – Kevin tentou ir até ela, mas as suas pernas se recusaram a funcionar, e ele não conseguiu fazer muito mais do que encostar dolorosamente contra a parede da caverna.

– Sylvia? – Anastasia começou a se afastar de Kevin para ir até a velha senhora, mas Vovó Redbird levantou uma mão para detê-la.

– Eu estou bem. Só precisava sentar. Acho que o meu pico de adrenalina já passou. Por favor, cuide do meu neto e não se preocupe comigo. – Ela abraçou a si mesma e estremeceu.

– Meu amor, você acha que nós podemos acender pelo menos algumas fogueiras de novo? – Anastasia perguntou para Dragon.

O Mestre da Espada olhou para o gelo e a névoa que ainda encobriam a montanha.

– Sim. Se eles voltarem, não será hoje. As estradas estarão intransitáveis e a neblina é excelente para ocultar as fogueiras. Acendam aquela no fundo da caverna. Cole, vá até os esconderijos de caça e diga a todos que é seguro manter as fogueiras acesas enquanto o gelo e a neblina durarem – Dragon disse, e Cole desapareceu na noite. Então Dragon encarou Kevin. – Deu certo. Os seus espíritos nos salvaram.

Kevin deu de ombros e fez uma careta de dor.

– Eles não são meus espíritos, na verdade. Eles só gostam do meu sangue.

– Porque o seu sangue contém o poder dos seus ancestrais, que já foram parte desta terra e destas rochas – Sylvia Redbird afirmou. – E porque é um sangue bom e honesto, não manchado por mentiras e ódio. Você acredita agora, Dragon Lankford?

– Eu acredito que o seu neto nos salvou, mas ainda há a questão sobre como o Exército Vermelho sabia que nós estávamos aqui e por que eles vieram na mesma noite que Kevin.

– Eu não posso responder nenhuma dessas perguntas agora – Kevin disse. – Não enquanto estou aqui. Mas eu posso conseguir respostas para todos nós de dentro da Morada da Noite.

– Você acha que eu deixarei você ir embora?

– Não. Eu acho que você me deixará lutar com vocês. Eu quero fazer parte da Resistência. Eu quero espionar para vocês... para nós.

– Impossível! – Dragon exclamou.

– Por que é impossível, Bryan? – Anastasia se agachou ao lado de Kevin de novo, reexaminando as suas costas, enquanto o seu corvo encontrou um poleiro na parede escarpada da caverna.

Kevin achou que os olhos negros do corvo pareciam tão céticos quanto os de Dragon.

– Ele é um vampiro vermelho! Ele não pode fazer parte da Resistência. Nós estamos combatendo a espécie dele.

– Vocês não estão combatendo a minha espécie – Kevin argumentou. – Não há ninguém mais da minha espécie neste mundo, e é por isso que eu sou o espião perfeito. Ninguém na Morada da Noite vai prestar atenção em um tenente do Exército Vermelho. Eles não dão a mínima para nós, exceto para nos considerar descartáveis. Eu posso ir a qualquer lugar, ouvir o que qualquer um fala... e eles nem vão notar.

– Você também pode ser promovido a general do Exército Vermelho e ter um esquadrão de homens seguindo suas ordens. Por que você escolheria se colocar em risco? – Dragon perguntou.

– Porque eu sou uma pessoa decente! – Kevin desabafou. – Afe, o que há de errado com você? Qualquer um que não seja um monstro ou um idiota ambicioso faria o mesmo.

– Isso não é verdade, Kevin. – Anastasia pousou uma mão suave em seu ombro. – Há muitas pessoas que nós chamaríamos de decentes, tanto vampiros quanto humanos, que não farão nada além de ficar sentados nos bastidores, balançando a cabeça para o estado do mundo.

– Bom, eu acho que, se você é uma pessoa decente e não se levanta contra monstros, então você é pior do que eles – Kevin disse. Ele virou a cabeça e encontrou os olhos azuis inconfundíveis de Anastasia. – Pode ir em frente e começar a me costurar de novo. Estou pronto como jamais estarei.

Ela sorriu gentilmente para ele.

– Isso não vai ser necessário. Não depois de a Magia Antiga ter feito o trabalho. – Anastasia indicou com um gesto as costas dele.

Kevin esticou cuidadosamente o pescoço e encontrou uma cicatriz sensível e elevada e pele limpa onde apenas alguns minutos atrás havia um corte profundo e sangrento.

– Mas isso é impossível!

– Aparentemente, não. Quando os espíritos beberam o seu sangue, eles também tocaram todo o seu ferimento, e o toque deles o curou. Porém, não completamente. Você vai ficar fraco, dolorido e sensível por um tempo, e você vai ficar com uma cicatriz grande e horrível, mas você não precisa mais da minha habilidade em dar pontos.

Vovó Redbird se aproximou de Kevin, inclinando-se para examinar suas costas nuas.

– Isso é extraordinário! U-we-tsi, os espíritos realmente fecharam o seu corte.

– Hum – foi tudo que Kevin pensou em dizer.

– Isso diz algo a você sobre o caráter dele? – Dragon perguntou à sua companheira.

– Só que os espíritos gostam dele e, já que eles são neutros, nem bons nem maus, isso não quer dizer muita coisa – Anastasia respondeu. Então ela se levantou e pegou as mãos calejadas pela espada do seu companheiro. – Bryan, acredito que nós já conhecemos o caráter de Kevin. Ele definitivamente não é como os outros vampiros vermelhos. A gente devia confiar nele – ela afirmou, e Dragon abriu a boca para responder, prestes a protestar, mas as palavras de Anastasia o silenciaram. – Ele é diferente. A sua humanidade está intacta. E ele conseguiu brandir a Magia Antiga. Nem mesmo Neferet consegue fazer isso.

– Ainda – Kevin disse.

Dragon se virou para ele.

– Explique esse ainda.

– No mundo da minha irmã, eles de fato derrotaram Neferet, mas não conseguiram matá-la porque ela se tornou imortal.

Anastasia arfou em choque.

– Ela aprendeu a brandir a Magia Antiga!

– Vó, você está com o diário?

Ela assentiu levemente e indicou o local onde os mantimentos do Polaris tinham sido empilhados, no fundo da pequena caverna.

– Estou. Está na cesta que eu enchi de cookies.

– Eu trouxe uma cópia do diário que Neferet escreveu quando ainda era humana. É do mundo da minha irmã, mas nele há provas de que a Magia Antiga vem influenciando Neferet desde que ela era criança.

– E o fato de o diário ter sido escrito por outra versão de Neferet não significa que não tenha relevância para nós – Vovó disse. – Como Kevin já explicou, quem nós somos em cada mundo permanece essencialmente igual. São apenas as nossas experiências que mudam. Eu vou dar o diário a vocês. Façam cópias dele. Repassem para os outros. Todos nós devemos lê-lo para obter o máximo de informação possível a respeito de maneiras de combater o mal de Neferet.

– Concordo. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos, principalmente se essa ajuda vem na forma de um jovem vampiro que nos traz informações e também consegue brandir Magia Antiga – Anastasia disse.

Dragon suspirou fundo e foi até Kevin, agachando-se ao lado dele, da mesma forma que a sua companheira tinha feito.

– Eu não gosto de ser colocado em uma posição na qual preciso confiar em um inimigo.

– Eu não sou seu inimigo.

– Prove.

– Acabei de tentar provar – Kevin respondeu. – E vou continuar tentando provar isso a vocês. Eu vou para a Morada da Noite espionar para vocês. Vou contar tudo que eu ouvir por lá. Vou ajudar de todas as formas que eu puder.

– O meu neto está falando a verdade, Dragon. Você vai ver – Sylvia Redbird disse, batendo os dentes de frio.

– Vó, você tem que ir para o fundo da caverna onde está a fogueira.

– Eu estou bem aqui. Tem muita fumaça lá atrás.

– Garoto, se você quer fazer algo para cair nas minhas graças, pense em um jeito de fazer com que a Magia Antiga nos ajude a tornar esta caverna habitável – Dragon falou baixo, mais para a noite do que para Kevin, quando se levantou e encarou a chuva congelante e a névoa lá fora.

Kevin olhou para a sua avó e para Anastasia.

– Vocês acham que eu poderia mesmo fazer isso? Conseguir que os espíritos ajudem a deixar esta caverna maior e melhor?

– Claro que sim – Anastasia respondeu sem nenhuma hesitação. – Como eu disse quando eles apareceram, espíritos estão sempre ligados aos elementos, e a terra é um dos elementos. Não seria um exagero imaginar espíritos da terra moldando uma caverna no seio desta montanha.

– Beleza! Eu vou só chamar os espíritos e perguntar a eles...

– Lembre-se, Kevin, você nunca deve abusar da Magia Antiga de modo impertinente – Anastasia o interrompeu. – É uma das magias mais poderosas do mundo... e também uma das mais imprevisíveis.

– Mas os espíritos fizeram exatamente o que eu pedi – Kevin falou.

– Ah, eles sempre mantêm a palavra, desde que sejam pagos. O problema vem com o pagamento – Anastasia disse.

– Por favor, explique – Vovó Redbird pediu.

– É simples e complicado. Simples porque os espíritos concordam com um pagamento por um serviço. Quando é algo parecido com o que acabaram de fazer, uma tarefa específica por um favor específico, tudo normalmente corre bem. Quando o pagamento não é executado imediatamente é que você pode se meter em encrenca, e eu quero dizer uma encrenca profunda envolvendo sua alma, que pode, inclusive, ser fatal.

– Se eu entendi bem o que você disse, então Kevin deveria concordar apenas com um pagamento que seja imediato e muito específico, certo? – Vovó Redbird perguntou.

– Bem, sim e não. Mesmo dessa forma, ele ainda pode ter problemas. Essa é outra parte complicada do processo. Os textos ancestrais alertam que usar tanto poder é perigoso e pode ferir o vampiro que o está brandindo.

– Mas eu já tenho afinidade com os cinco elementos. Assim como a minha irmã no outro mundo que eu acabei de visitar. Ela é uma boa Grande Sacerdotisa, das boas mesmo. Ela derrotou Neferet. Eu realmente acho que ela não foi ferida por isso.

– As afinidades elementais são concedidas por Nyx e, portanto, elas não são Magia Antiga. É impressionante que você tenha essas afinidades, juntamente com seu sangue cherokee. Deve ser esse o motivo pelo qual os espíritos ouviram o seu chamado – Anastasia disse. – E em relação ao que os textos querem dizer quando falam que o vampiro pode ser ferido por lidar com esse poder... sinto muito por simplesmente não ter conhecimento suficiente para explicar melhor. Eu nunca vi Magia Antiga antes, nem ninguém que pudesse invocá-la. Tudo que eu sei é o que li em textos antigos.

– Bom, estou querendo arriscar e usá-la, pelo menos mais uma vez. Você acha que eles vão me ouvir de novo?

Ela deu de ombros.

– Eu não posso responder isso, Kevin. Nem posso responder se você deveria invocá-los de novo. Eu não conheço a natureza da sua alma. Eu não sei o quanto você é suscetível às Trevas.

– Eu conheço – Vovó Redbird afirmou. – A alma dele é boa. Boa de verdade. Ele não será sujeito às Trevas, ao ódio nem ao mal. Mesmo antes de Nyx restaurar a sua humanidade naquele outro mundo, ele combateu a fome e a insanidade que muitos de nós estão chamando de Maldição Vermelha. U-we-tsi, eu acredito que você pode ajudar a endireitar o equilíbrio entre Luz e Trevas porque você pode brandir Magia Antiga. Mas não se esqueça das palavras de Anastasia: o pagamento tem que ser específico e feito imediatamente.

– Eu vou me lembrar disso. Prometo. Mas, hum, vocês acham que eu tenho sangue o suficiente agora para isso?

– Não, você não tem – Anastasia respondeu.

– Eu tenho uma ideia para um pagamento alternativo. – Vovó levantou a mão e a colocou sobre a bolsinha que fazia uma protuberância embaixo da sua blusa.

– Espere aí, não. Você não pode dar a sua bolsa medicinal – Kevin disse.

– Posso e vou. As minhas duas bolsas medicinais.

Kevin colocou a mão sobre a réplica que repousava no meio do seu peito.

– Não sei, Vó. Será que é uma boa ideia abrir mão do seu poder assim?

– Ah, u-we-tsi, uma bolsa medicinal não tem poder por si só. Ela apenas simboliza o poder de quem a fez. E eu posso simplesmente fazer outra, assim como provavelmente a Outra Sylvia Redbird fez no mundo de Zoey – ela puxou a bolsa com miçangas debaixo da sua blusa e levantou a tira de couro por sobre a cabeça, entregando-a para Kevin. – Invoque os seus espíritos.

Kevin pegou a bolsa medicinal depois de apertar a mão fria de sua avó, e então ele levantou os olhos para Dragon.

– Pode me ajudar a ficar em pé?

O poderoso Guerreiro segurou o cotovelo de Kevin, erguendo-o. Kevin ficou em pé, cambaleando levemente quando pontos brilhantes apareceram na sua visão, mas ele logo se estabilizou. As suas costas estavam sensíveis e doloridas de um ombro a outro, mas a sua tontura passou. Ele não ia conseguir correr uma maratona, mas tinha certeza de que não iria cair. De novo.

Então ele percebeu que não tinha a menor ideia do que fazer em seguida.

– Hum, Anastasia, como eu invoco os espíritos?

– Quando eles vieram até você antes, foi na hora em que você tinha aberto o seu ferimento, então estava sangrando bastante, e você tinha acabado de dizer algo sobre querer consertar as coisas.

– Então, você acha que eu deveria me cortar de novo e depois chamá-los?

– Eles já não estão aqui? – Vovó fez um gesto indicando a noite gelada lá fora. – Você não pode simplesmente pedir que eles voltem até você?

Kevin olhou questionador para Anastasia, que deu de ombros e assentiu.

Ele estalou as juntas dos dedos e balançou as mãos enquanto se movia para mais perto da entrada da caverna. Kevin limpou a garganta, respirou fundo e abriu a boca para gritar sabe-a-Deusa-o-quê, mas hesitou. Talvez eu deva pensar antes de falar... ou, mais especificamente, deva rezar. Kevin fechou a boca. Fechou os olhos. E baixou a cabeça.

Por favor, me ajude, Nyx. Isso tudo está muito acima da minha capacidade... e não estou falando só dos espíritos. Eu quero ajudar a Resistência, mas sou só um garoto. Não sou nem tão velho quanto a Zo, nem tão experiente. Eu prometo que vou tentar fazer a coisa certa e seguir o caminho que você quer que eu siga. Você pode me dar uma ajudinha para que eu continue seguindo esse caminho?

Kevin levantou a cabeça e encarou o gelo e a névoa mágica que tinham afastado Stark.

– Espíritos da água nos protegeram com gelo e névoa... – ele murmurou para si mesmo, pensando em voz alta. – E os espíritos são ligados aos elementos. – Kevin pensou bastante. E então ele deu um suspiro gigante. – Espíritos da terra!

Sorrindo, ele se virou e encontrou os olhares confusos que Anastasia, Dragon e sua avó estavam dando na sua direção.

– Acho que descobri! – Ele encarou a noite de novo e, com mais confiança do que sentia, falou com uma voz alta e clara. – Espíritos do ar, fogo, água e terra, eu sou Kevin... – ele hesitou um instante. E então ele sabia exatamente o que precisava dizer e como tinha que dizer. – Eu sou Kevin Redbird e, com a minha afinidade concedida pela Deusa e pelo meu direito de sangue, o mesmo sangue que pulsou forte nas veias daqueles que foram protetores desta terra, eu invoco vocês, principalmente aqueles que são espíritos elementais da terra! Espíritos que já estão por aí na montanha, por favor, venham até mim!

Foi como se a noite inspirasse fundo, segurasse o fôlego e então, ao expirar, soltasse a magia. Anastasia e Vovó Redbird arfaram quando uma revoada de espíritos, alterando a sua forma de vaga-lumes para fadas aladas, subiu voando desde a parte de baixo da montanha até o alto. Eles pairaram diante da caverna, iluminando a noite gelada, de modo que Kevin pôde ver claramente as rochas enormes que pontilhavam a área íngreme ao redor deles começarem a brilhar. Então figuras emergiram, como se elas estivessem encolhidas dentro das pedras dormindo, aguardando o chamado de Kevin. Eles eram maiores do que os espíritos vaga-lumes – tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ou dois anos. Os espíritos da rocha eram inacreditavelmente lindos. Pareciam não ter um gênero definido; a pele dos seus corpos tinha a aparência exata dos minúsculos veios de quartzo compacto que marmorizavam o arenito de Oklahoma de onde emergiram – brilhavam como se fossem acesos por dentro. Kevin percebeu que eles eram o que a princípio ele achara parecido com fogos de artifício de Quatro de Julho. Os seus pés delicados não tocaram o chão quando eles flutuaram na direção dele.

– Magia Antiga! – o corvo de Anastasia grasniu ao levantar voo da caverna.

Uma movimentação à sua direita e à sua esquerda atraíram a atenção de Kevin, e ele assistiu à casca nodosa dos carvalhos antigos e desfolhados pelo inverno ondular se levantando como ondas de calor de uma estrada asfaltada de Oklahoma no verão. De dentro das árvores, os espíritos se materializaram. Kevin teve que conferir se a sua boca não estava aberta (uma olhadela para Dragon mostrou que o Guerreiro estava de olhos arregalados e de boca aberta). Os espíritos das árvores eram as coisas mais perfeitas que ele já tinha visto desde que fora apresentado para Aphrodite no mundo de Zo. Eram todos femininos. A sua pele era de um marrom terroso como casca de árvore, mas, em vez de ser nodosa e antiga, parecia veludo. O cabelo flutuava ao redor de cada uma delas, caindo bem abaixo da cintura, em todos os tons de folhagens: o verde-limão brilhante da primavera, o jade forte do verão e o dourado avermelhado e fúcsia do outono. Elas eram tão únicas como as árvores de onde cada uma surgira. No começo, Kevin achou que os seus corpos eram cobertos de tatuagens, mas, quando elas se moveram graciosamente para mais perto, ele percebeu que elas eram, na verdade, cobertas por uma miríade de diferentes plantas da floresta – samambaias, cogumelos, flores e musgo – em vez de roupas.

Os diferentes tipos de espíritos elementais formaram um semicírculo em volta da boca da caverna, onde eles aguardavam silenciosamente na chuva congelante que ainda caía. A luz dos espíritos vaga-lumes atingiu o gelo que já tinha começado a cobrir a montanha, fazendo aquela pequena área brilhar como um diamante.

– Olá – Kevin disse, esperando que o sorriso enorme que ele não conseguia tirar do rosto não fosse inapropriado. – Hum, obrigado por terem vindo.

Um espírito da árvore foi mais para a frente. Ela era mais alta que as outras, e o seu cabelo era laranja, vermelho e dourado, como um poderoso carvalho no outono. O seu corpo era flexível, curvilíneo e mal coberto pela folhagem delicada de uma avenca.

– Garoto Redbird, não esperávamos que você repetisse o seu chamado, principalmente porque as nossas crianças ainda estão cuidando do seu pedido.

A voz dela era inesperada – agradável e doce, como a sombra de um velho carvalho em um dia quente de Oklahoma, mas também repleta de uma força que fez os galhos nus de todas as árvores próximas tremerem.

– Peço perdão. Eu não queria perturbar vocês – Kevin disse rapidamente.

– Você nos entendeu mal. Não estamos reclamando. Só quisemos demonstrar surpresa. Nós não somos despertados há muitas eras. As crianças se divertiram esta noite. – Ela ergueu uma mão, com a palma para cima, recolhendo o gelo de modo que ele revestiu a sua pele de veludo escura, deixando-a com a cor de cristal de quartzo esfumaçado. – Embora a água possa ter sido exuberante demais. – Ela chacoalhou o gelo da sua mão e do seu braço, e choveu ao redor dela, com as gotas faiscando na pálida luz da lua. – E elas realmente apreciaram o sabor do sangue indígena, por mais distante que seja a linhagem.

Kevin escutou a sua avó dar um grunhido irônico atrás dele, mas a sua atenção continuou focada no espírito.

– As suas crianças nos salvaram hoje – ele disse. – Por favor, agradeça a elas por mim.

O espírito inclinou a sua cabeça para o lado, como um passarinho, analisando-o.

– Você já agradeceu, Garoto Redbird, com o seu sangue. Você não precisava nos chamar para isso.

– Essa não é a única razão pela qual eu chamei vocês. Eu esperava que vocês pudessem me ajudar de novo.

Os olhos dela, escuros e amendoados, faiscaram com um brilho que Kevin achou ser malicioso.

– De qual outro serviço você precisa e qual o pagamento que você propõe, Garoto Redbird?

– São duas coisas – Kevin respondeu. – Primeiro, nós realmente precisamos que esta caverna fique maior e melhor. Sabe, mais ou menos... – ele hesitou e deu uma olhada rápida para Dragon. Então sussurrou para o Guerreiro. – Quantas pessoas mais ou menos precisam caber lá dentro?

Dragon apenas ficou olhando para ele, ainda boquiaberto, mas Anastasia deu um passo à frente rapidamente.

– Seria adorável se a caverna pudesse abrigar cem pessoas.

Kevin pensou que aquilo parecia coisa demais para pedir, mas ele voltou sua atenção para o espírito da árvore e falou com muito mais confiança do que de fato sentia.

– Vai ser ótimo se a caverna for grande o bastante para abrigar cerca de cem pessoas.

O espírito nem piscou ao ouvir o número.

– E o segundo serviço que você requisita?

– O que as suas crianças fizeram por nós esta noite... escondendo-nos do Exército Vermelho e Azul... bom, hum, vocês poderiam continuar a fazer isso? Por favor? – ele disse. Como ela não respondeu, ele acrescentou: – Nós também temos nossas crianças e inocentes que precisam de um lugar seguro, e esta montanha seria perfeita se a caverna fosse maior. Eu prometo que nós vamos respeitar a montanha. Não vamos construir mais nada aqui, e vamos manter tudo completamente limpo e sem bagunça.

– Ah, entendo. Você está pedindo santuário permanente.

Atrás dele, Anastasia sussurrou alarmada.

– Pare, Kevin. Você está pedindo demais.

Kevin a ignorou. Ele já havia medido se estava brincando com a sorte com os espíritos, mas ele percebeu que tinha duas oferendas para eles, então ele podia também pedir por dois serviços.

– Sim. Eu estou pedindo santuário, na forma de uma nova caverna, e a sua proteção, mas não de maneira permanente. Eu só solicito essa proteção até que eu restaure o equilíbrio entre Luz e Trevas neste mundo. Então nós não vamos precisar nos esconder mais.

– E o que você tem a oferecer como pagamento por esses serviços?

Kevin ergueu a bolsa medicinal que estava em volta do seu pescoço e a segurou, junto com a bolsa gêmea, mostrando-as para o espírito. Ela foi para a frente, não exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não mexeram no chão no qual eles pisaram. Ela chegou tão perto de Kevin que ele conseguiu sentir o seu cheiro – ela tinha todos os aromas do outono: a canela das folhas que caem, o frescor acentuado do primeiro dia frio depois de um longo e quente verão, a riqueza das raízes grossas se estendendo para o fundo da terra fértil. Ao se dar conta de que a estava encarando, ele se sacudiu mentalmente quando ela pegou as bolsas.

O espírito levou as bolsas até seu rosto, cheirou-as e colocou a língua para fora, sentido o gosto de cada uma. Ela piscou os olhos, surpresa.

– Elas são de mundos diferentes.

– São – ele confirmou. – Pagamentos de dois mundos diferentes por dois serviços diferentes.

– O seu pagamento é mais interessante do que poderoso. Vamos ver se é interessante o bastante.

O espírito da árvore deu as costas a ele, voltando-se para os outros que se reuniram ao som do seu chamado em um semicírculo frouxo em volta da frente da caverna. Ela falou rapidamente com eles, usando a estranha linguagem que era mais música do que palavras.

Em resposta, um espírito de cada um dos diferentes grupos deu um passo à frente, fazendo uma série de assobios e sons de estalos parecidos. Depois que todos tiveram a sua vez, o espírito da árvore abaixou a cabeça de leve antes de se voltar de novo para Kevin. Quando ela falou, a sua voz entrou em uma cadência musical repetitiva que o fez lembrar as vozes que ele havia escutado quando os outros espíritos aceitaram o seu sangue mais cedo, só que desta vez o poder na voz do espírito fez uma pressão contra a sua pele como a ameaça de uma tempestade com raios e trovões.

“Nós aceitamos este pagamento – esta magia

de mundos feitos em dois

Formada da sabedoria ancestral e dada

com amor para depois

Em troca –

A terra vai se mover

O ar vai escutar

A água será testemunha

E o fogo que aquece e impunha

Mas atenção ao meu comando, Garoto Redbird

Nem uma árvore viva deve destruir

Ou o nosso acordo irá para sempre ruir

E é dito – que assim seja!”

Então o espírito da árvore abriu a boca de um jeito impossivelmente amplo, dando a Kevin uma visão desconcertante dos seus dentes brancos e afiados, e engoliu uma das bolsas por inteiro. Em seguida, com um movimento tão rápido que para Kevin foi só um borrão, ela atirou a segunda bolsa para o ar, onde ela explodiu. Pedaços dela começaram a cair junto com a chuva de gelo, e o tempo desacelerou quando os espíritos começaram a esvoaçar em volta, alimentando-se dos restos da bolsa medicinal de Vovó Redbird como um cardume de piranhas lindas, mas mortais. Durante todo esse processo, eles piaram, assobiaram e cantaram uma canção sem palavras, mas cheia de alegria.

O tempo acelerou de novo, e o espírito da árvore olhou para um local atrás de Kevin, onde Vovó Redbird estava parada em pé, do lado de dentro da entrada da caverna.

– Mulher Sábia, a sua essência é deliciosa. Você controla o seu próprio tipo de poder da terra. Eu irei até você um dia, se alguma vez você precisar de mim.

Vovó Redbird abaixou a cabeça em um reconhecimento respeitoso para o espírito antes de responder.

– Se algum dia eu tiver uma necessidade tão grande que estiver disposta a pagar o seu preço, eu invocarei você, adorável espírito da árvore.

– Você e esse filho do seu sangue podem me chamar de Oak.

Desta vez, quando sua avó abaixou a cabeça, Kevin a imitou.

– Obrigado, Oak – ele falou.

– Você já me agradeceu. E o seu pagamento estava delicioso. Agora, o seu grupo deve sair da caverna enquanto nós trabalhamos.

Dragon e Vovó Redbird saíram da caverna com Kevin, mas Anastasia fez uma pausa na boca da caverna para fazer um chamado lá para dentro.

– Shadowfax, Guinevere! Venham, vocês dois. Sei que está frio e molhado aqui fora, mas vocês têm que sair da caverna.

Lá do fundo, dois gatos emergiram: um gato maine coon enorme, com cara de descontente, e um gato elegante cor de creme que Kevin tinha quase certeza de que era um siamês. Ambos estavam com as orelhas grudadas nas cabeças enquanto caminhavam até Dragon para pular nos seus braços.

– Pronto. Agora, venha para trás com a gente, Anastasia.

A companheira de Dragon se juntou a eles, e Kevin colocou o braço ao redor de sua avó, tentando protegê-la o máximo que podia daquela chuva que congelava os ossos, mas ele ainda estava fraco e se viu cambaleando, a menos que se apoiasse com força nela. De repente Dragon passou os dois gatos para a sua companheira, e então estava ao lado de Kevin, agarrando o seu outro braço, estabilizando-o o suficiente para que ele conseguisse subir entre duas rochas, que quase os protegiam da umidade. Com Dragon de um lado e sua avó de outro, Kevin observou como, em menos tempo do que tinha levado para expulsar o Exército Vermelho da montanha, os espíritos realizaram um milagre. E então, sem nem mais uma palavra, eles se dissolveram de novo em árvores, em pedras e na noite escura e fria.


9

Zoey

– Só faz alguns dias desde que Kevin foi embora, mas sinto como se fossem meses. Por favor, Nyx, cuide dele e não deixe que ele se meta em muitos problemas. – Eu acendi a vela roxa e então a coloquei aos pés da maravilhosa estátua de Nyx que ficava como ponto principal do jardim entre os prédios da escola e o templo da Deusa. Sua chama tremulou ali, acrescentando a sua luzinha alegre às outras velas oferecidas, cada uma representando uma oração que tinha sido elevada à nossa Deusa.

Então eu dei um passo para trás e me sentei no banco esculpido em pedra ao lado da minha melhor amiga, Stevie Rae.

– Sim, Nyx, por favor, fique de olho no irmão de Z no Outro Mundo – Stevie Rae disse. – E eu entendo o que você quer dizer, Z. É esse tempo. Dois dias atrás a gente estava enterrado em neve, e hoje está fazendo quase vinte graus. Faz com que pareça que passou muito mais tempo. Ei, sabe o que é ainda mais estranho do que o clima de Oklahoma?

– Não, porque o clima de Oklahoma é a coisa mais estranha do mundo.

– Né? Mas a coisa ainda mais estranha é que eu sinto falta disso. Muita. Quer dizer, o clima de Chicago é bem louco também, mas não no nível daqui. Eu sinto falta do gelo, do vento e de como as tempestades aparecem do nada como um estouro da boiada que cai do céu.

– Aham – eu respondi automaticamente, com os olhos fixos no modo como a luz das velas brincava através da pele de mármore de Nyx, enquanto minha mente estava bem longe. Um mundo inteiro de distância, para ser mais precisa.

– Você ficaria surpresa com todas as coisas de que vai sentir falta quando sair de casa.

– Sim. – Meu olhar se desviou da estátua e se voltou para a noite perfeitamente clara e cheia de estrelas.

– Como carrapicho-de-carneiro. Sabe, aquele tipo que machuca quando você puxa o espinho para fora da pele e também quando ele entra em você.

– Aham.

– Ah, e carrapato. Eu morro de saudade de carrapato.

– Sim, eu também.

– Hum, Z. Você não.

– Certo.

– Zoey Redbird, pare de sonhar acordada!

Stevie Rae deu um cutucão no meu ombro. Com força.

– Ei! O que foi isso?

– Z, sério? O que eu acabei de dizer?

Eu mordi a bochecha.

– Hum, alguma coisa sobre lã? O que não faz muito sentido. Você está bem? Eu estava falando sério quando disse que você e Rephaim não precisam voltar para Chicago. Vocês não precisariam ter ficado lá nesse último ano se eu soubesse que você estava triste.

Stevie Rae se virou no banco para me encarar.

– Zoey, você confia em mim, não confia?

– É claro que confio em você.

– Então, por favor, me conte o que tem de errado.

Eu suspirei.

– Não tem nada...

Stevie Rae levantou a mão rápido, com a palma para fora, com um sinal para parar.

– Não. Conte essa pra outro. Eu sei que é mentira e, depois de tudo que a gente passou, é quase ofensivo.

– Ei, você sabe que eu jamais ofenderia você de propósito – eu disse, sentindo-me péssima por ter feito minha melhor amiga se sentir péssima.

– Então me conte o que tem de errado.

Suspirei de novo.

– Estou preocupada com Kevin. Bem, com o Outro Kevin. Não o Kevin daqui. Na verdade, eu e ele vamos nos encontrar no Andolini’s para comer uma pizza antes que as férias de inverno dele acabem.

– Só isso?

– Bom, sim. Quase. Quer dizer, nós ainda não sabemos o que fez todas as rosas ficarem escuras e nojentas antes da visão de Aphrodite, mas, se foi Neferet, eu esperaria que ela fizesse algo mais. Qualquer coisa mais do que isso. E os Guerreiros que fazem guarda na gruta dizem que nada mais aconteceu por lá.

– As rosas voltaram ao normal.

– O quê? Voltaram? Como você sabe disso?

Stevie Rae abriu o sorriso.

– O jardim de rosas é mais uma das milhares de coisas de Tulsa da qual eu sinto falta. Rephaim me fez uma surpresa noite passada e fomos dar um passeio pelos jardins depois de jantar no Wild Fork. Foi quando ele me deu isto. – Ela apalpou o colar de prata cintilando no seu pescoço. Pendurada na correntinha brilhante, havia uma réplica perfeita do estado de Oklahoma como um pequeno talismã.

– Own, que lindo. Eu nem tinha reparado. Desculpe.

– Z, tem muita coisa que você não está reparando nos últimos dias. Eu... eu queria que você me deixasse ajudar.

– Não há nada que você possa fazer. Eu só tenho que descobrir um jeito de parar de me preocupar com Kevin – e de pensar em Neferet... na Neferet que está lá, no comando, provavelmente massacrando milhões de inocentes, assim como ela assassinou a Outra Zoey! Mas eu não deixei a minha boca pronunciar essas palavras em voz alta. Se eu deixasse, tinha medo de não parar mais, de não parar de falar sobre Neferet, de não parar de pensar que eu precisava ajudar Kevin.

E além disso havia Heath. O Heath vivo. O Outro Heath, que estava de luto pela Outra Zoey, que eu havia acabado de ver Neferet assassinar.

– É só o Kevin? – Stevie Rae perguntou.

– Sim. Não.

– Hum, Z, qual dos dois?

– Não – eu disse com tristeza. – Também tem a idiota da Neferet e qualquer mal novinho em folha que ela está aprontando. Além disso, bom, tem Heath – então eu me esforcei para continuar rápido. – E a minha mãe. Ela está viva lá também. E tem Outra Vovó Redbird. Você consegue imaginar como deve ter sido difícil a minha morte para ela?

– Z! Aí está você! – Kramisha chegou falando alto e usando um par de botas de salto vermelhas brilhantes na altura do joelho. – Chega pra lá, Stevie Rae. Eu tenho muito mais peso na minha bunda do que vocês duas, branquelas magrinhas.

Ela empurrou Stevie Rae com o quadril, que deslizou para mais perto de mim, e nós nos ajeitamos rápido para abrir espaço para Kramisha.

– Ei, eu não sou branca. Ou pelo menos não sou cem por cento branca – eu protestei.

– Desculpe. Esqueci que você tem um pouco de cor aí, Z. Mas a sua bunda ainda é pequena.

– Gostei das suas botas novas – Stevie Rae falou. – Elas têm a cor exata da sua peruca. Como você faz isso?

– Talento. Puro talento. E essas botas não são novas, mana. Mas este macacão colante de mulher-gato é. Que tal? Miau! – Ela fingiu dar um chiado de gato para Stevie Rae, que começou a rir.

– Kramisha, eu te amo! E senti falta tanto de você quanto de Tulsa – Stevie Rae disse.

– Você vai me amar mais ainda daqui a um segundo. Z, eu quero ir para Chicago.

– Hum? – eu perguntei. – Mas você mal começou a reconstrução do Restaurante da Estação.

– Olha só, todo mundo sabe que Damien e Outro Jack podem fazer um trabalho melhor do que eu nessa reconstrução. Z, eles são gays. E eles chamaram mais gays.

Eu revirei os olhos.

– Kramisha, isso é um estereótipo horrível.

– Diga que isso não é verdade que eu calo a boca. – Ela fez uma pausa e, como eu não disse nada porque, bem, Damien, Outro Jack e Toby, o diretor do Centro de Igualdade de Oklahoma, eram todos super incríveis em design de interiores, ela continuou. – Onde eu estava? Ah sim – Kramisha se virou para Stevie Rae. – Você quer voltar para Chicago?

– Bem, hum, não exatamente, não de modo permanente, mas Z e eu já falamos sobre voltar para Tulsa de vez assim que eu deixar as coisas organizadas na Morada da Noite de Chicago.

– “Organizadas” quer dizer “depois de escolher a sua substituta”? – Kramisha perguntou.

– Imagino que sim. Certo, Z?

– Claro. A menos que você já tenha alguém em mente, como Damien tinha – eu disse.

– Queria ter, mas não escolhi ninguém. Há algumas Grandes Sacerdotisas que têm potencial, mas ninguém que se destaque – ela falou.

– Eu vou fazer isso – Kramisha afirmou.

– Fazer o quê? Você está me deixando bem confusa, Kramisha. Vá direto ao ponto – eu pedi.

– Certo. A questão é que eu não posso voltar para a estação. Não agora. Eu preciso me dar um tempo. Eu... eu ainda consigo ouvir os gritos. – Kramisha fez uma pausa e tirou algumas mechas vermelhas e brilhantes do seu rosto com uma mão trêmula. – Stevie Rae é uma Grande Sacerdotisa vampira vermelha. Ela e Rephaim se encaixam bem na estação. Os novatos gostam deles, o que eu acho meio estranho, já que ele é um pássaro boa parte do tempo, mas que seja. Não gosto de julgar. – Ela deu de ombros. – E você sabe que sou boa em organizar tudo. Eu vou para Chicago e deixo tudo organizado e encaminhado e, quando isso já estiver resolvido, talvez os gritos que eu ouço à noite já tenham sido resolvidos também, e então eu posso vir para casa de vez – Kramisha concluiu apressada.

– Eu não sabia – eu falei em voz baixa, estendendo o braço por cima de Stevie Rae para pegar a mão de Kramisha. – Kramisha, sinto muito.

– Você anda distraída. Ninguém te culpa por isso, Z. O Outro Kevin passou só um tempinho aqui, mas todo mundo que conheceu o seu mano gostou dele. Muito.

Eu sacudi a cabeça.

– Não, eu sou a sua Grande Sacerdotisa, e eu estou fazendo um trabalho ruim.

– Você vai voltar a ser o que era logo, assim como eu. A gente só precisa de tempo e um pouco de descanso.

– Você não vai ter muito descanso se for para Chicago. Aquela Morada da Noite é agitada pra caramba – Stevie Rae disse. – E eles não têm nem um programa equestre. Andei falando com Lenobia sobre...

– Sei tudo sobre isso. Também andei falando com Lenobia – Kramisha falou.

– Ela quer ir para Chicago com você? – eu perguntei, sem saber ao certo se deveria ficar surpresa, irritada ou aliviada por obviamente haver um monte de coisas rolando ao meu redor sobre as quais eu não tinha a menor ideia.

– Só o suficiente para resolver a questão dos cavalos. O que você acha, Grande Sacerdotisa?

O que eu acho? Eu encarei a estátua de Nyx. Acho que eu preciso descobrir um jeito de ajudar Kevin sem ferrar totalmente com a minha própria vida. Decidi falar outra coisa em voz alta.

– Eu acho que você é altamente capaz. Você e Lenobia vão fazer um belo trabalho, desde que Stevie Rae não se importe de você assumir o lugar dela imediatamente.

– Isso significa que Rephaim e eu podemos ficar aqui e não precisamos mais ir embora?

– É isso que significa, sim – eu respondi.

– Então eu não me importo nem um pouquinho! Kramisha, você me deixou mais feliz do que urubu em cima de carniça! – Stevie Rae atirou os braços ao redor de Kramisha, que deu um grunhido, abraçou-a rapidamente de volta e então se afastou, endireitando a sua peruca.

– Cuidado com o cabelo. Sei que não parece, mas todo esse glamour pode se estragar rapidamente se o cabelo estiver errado.

Eu abri a boca para perguntar para Kramisha em quanto tempo ela estaria pronta para partir quando a primeira sensação me atingiu. Ela começou no meio do peito, apenas um pequeno calor começando a espalhar, mas não tão pequeno que passasse despercebido. A sensação pulsou e cresceu, como se eu tivesse acabado de subir correndo as escadas de um estádio em um dia quente (o que eu absolutamente não faria, a menos que alguém estivesse me perseguindo).

Eu tossi. Enxuguei o meu rosto, que de repente ficou suado. Limpei a garganta. Tossi de novo.

A minha mão se levantou como se eu não tivesse nenhum controle sobre ela e foi até o centro do meu peito. Minha palma pressionou a minha pele.

Não havia nada ali. Nenhum calor. Nada.

Mas eu jurava que tinha sentido algo. Alguma coisa quente, forte e estranhamente familiar.

– Zoey! Você está me ouvindo?

Eu olhei para cima e vi Stevie Rae em pé sobre mim com Kramisha ao seu lado. Eu ainda estava sentada no banco, mas elas tinham se levantado e estavam debruçadas sobre mim, obviamente preocupadas.

– Sim. Eu estou te ouvindo. Eu... eu estou bem. Eu acho.

– O que aconteceu? Você congelou com a mão sobre o peito, quase como se estivesse se agarrando às suas pérolas. Só que você não está usando um colar de pérolas – Kramisha falou.

– Não sei. Foi uma sensação estranha. Já passou.

O som de pés correndo veio por trás de nós, e de repente Stark estava lá, agachado ao meu lado, com as mãos nos meus joelhos, enquanto ele analisava o meu rosto.

– Zoey! O que foi?

– Você sentiu também?

– Calor? E alguma outra coisa. Algo que não consegui identificar. – Ele tocou o meu rosto, tirando o meu cabelo da minha bochecha úmida. – Z, a sua respiração está ok? O seu peito está doendo?

– Não, não doeu. Não senti dor nenhuma. Só calor e... uma sensação estranha. – Eu estava aliviada e com medo ao mesmo tempo. Se Stark sentiu também, eu não tinha imaginado aquilo. Mas, por outro lado, se Stark sentiu, o que quer que tenha acontecido foi real. E isso podia significar más notícias de verdade.

– Acho que a gente tem que levar Z para a enfermaria para que ela possa ser examinada – Stevie Rae disse.

Rephaim devia estar com Stark, porque de repente ele estava ali também, segurando a mão de Stevie Rae e me analisando com uma concentração típica de pássaro.

– Enfermaria? Que diabos está rolando? Z, você se machucou?

Eu desviei os olhos de Rephaim e vi Aphrodite em pé ao lado de Darius (Deusa, será que estavam todos no Ginásio com Stark?). Ela estava com as mãos no quadril e me olhava intensamente, com os olhos estreitos, com os quais ela provavelmente queria demonstrar preocupação, mas que na verdade estavam mais dizendo algo como “AiminhaDeusa, por que você está me enchendo agora?”.

– Eu não preciso ir para a enfermaria. Estou bem. Sério – eu insisti.

– E isso não foi algo que Z fez para si mesma – Stark afirmou. – Foi algo que aconteceu com ela.

– Isso não faz algum sentido – Kramisha disse.

– Ou, dito corretamente, isso não tem nenhum sentido. Gramática: errada. Sentimento: certo – Aphrodite provocou.

– Isso tem sentido sim – eu falei rapidamente, antes que Kramisha conseguisse espetar Aphrodite verbalmente. – Stark quis dizer que não tem nada de errado comigo. Que, seja o que for que nós sentimos, foi algo que aconteceu fora de mim. E isso foi mais estranho do que assustador.

– Ei, o que está acontecendo aqui? – Damien perguntou quando ele e Outro Jack se juntaram ao grupo. Ambos estavam segurando velas votivas perfeitas que eles obviamente tinham a intenção de acender aos pés de Nyx. – Z, você está bem?

Eu suspirei. Às vezes, era realmente como se eu tivesse zero privacidade.

– Estou bem. Não foi nada.

– Não diga isso – Stark falou sério quando sentou ao meu lado, colocando o seu braço ao meu redor de modo protetor. – Você está bem agora. Nós estamos bem, mas não quer dizer que não foi nada. Alguma coisa aconteceu. Algo que tocou você ou a mim ou a nós dois.

Foi a vez de Damien se agachar ao meu lado.

– Conte-me o que você sentiu.

Eu descrevi o súbito calor e observei Damien ficar cada vez mais pálido enquanto Stark assentia em concordância com a minha descrição. Mas, antes que Damien pudesse dizer qualquer coisa, Aphrodite se adiantou.

– Ah, que merda, seus imbecis! É óbvio o que acabou de acontecer.

– Aphrodite, é super ofensivo chamar a gente de imbecis – Stevie Rae protestou.

– Caipira, é só um chute, mas aposto que, antes de eu me juntar a este grupo improvisado, você fez pelo menos uma comparação terrível que tinha a ver com a sua mamãe ou com carrapatos. Acertei?

– Quase – Kramisha falou. – Tinha a ver com urubu em cima de carniça, o que é nojento. – Ela olhou para Stevie Rae e deu um sorriso de desculpas. – Só estou dizendo a verdade.

– Certo – Aphrodite continuou. – E isso é ofensivo, mas você vai continuar com suas analogias de caipira e, já que você vai fazer isso, também vou continuar chamando um imbecil de imbecil quando estiver presenciando vocês agindo feito imbecis.

– Ai minha Deusa, parem de discutir! – Eu senti como se minha cabeça pudesse explodir. – Aphrodite, você realmente sabe o que aconteceu?

– Claro que sim – ela respondeu. – É Magia Antiga. E aquele som de tapa na cara que você ouviu metaforicamente está te dando vontade de cobrir o rosto de vergonha enquanto você se dá conta de que estou certa.

– Ela está certa – Damien disse enquanto se levantava e segurava a mão de Outro Jack de novo. – Era o que eu estava pensando também.

Eu apenas fiquei sentada, incapaz de dizer qualquer coisa porque eu estava lembrando do tempo que eu passei na Ilha de Skye, do talismã de mármore de Skye que eu trouxe para Tulsa. Daquele calor e do poder daquela magia, e de como ela quase me engoliu e me transformou em alguém tão parecido com Neferet que não merecia continuar sobrevivendo.

– Z?

Eu podia sentir a preocupação de Stark e deixei que ela me tirasse dos meus pensamentos.

– Aphrodite e Damien estão certos – eu afirmei. – Não percebi isso na hora porque foi só um eco distante da real sensação de brandir a Magia Antiga.

– Então, isso só pode significar que alguém está usando Magia Antiga de novo – Stevie Rae concluiu.

– E isso é ruim – Rephaim falou.

– Ruim mesmo – Kramisha concordou.

– Você deveria ligar para a Rainha Sgiach – Aphrodite sugeriu. – Ela é a especialista em Magia Antiga.

– Eu adoraria – eu disse. – Mas ela está de luto, o que significa que ela se retirou totalmente do mundo exterior. Eu sei. Eu venho tentando falar com ela uma vez por semana, e já fiz isso ontem. Ela ainda está totalmente off-line e o telefone dela só chama, chama, e ninguém atende.

– Ela ainda está sem atender o telefone? Quanto tempo já faz, quase um ano desde que o Touro Branco atacou Skye na mesma noite em que Neferet nos atacou aqui? Já era de imaginar que ela pelo menos estivesse dando uma olhada no Facebook – Aphrodite falou.

Eu levantei os olhos para Aphrodite. Ela era minha amiga, uma poderosa Profetisa de Nyx e, com a sua nova Marca azul e vermelha, uma vampira adulta, mas ainda assim ela podia soar como uma criança mimada e egoísta.

– Ela e Seoras foram companheiros por séculos. Acho que um ano de luto não é nada perto disso. Você já teria seguido em frente se Darius tivesse sido assassinado naquela noite?

Aphrodite empalideceu e se recostou em Darius.

– Não. Não, não teria. Você está certa, Z. Peço desculpas por ter soado como uma imbecil.

– Aphrodite, você sabe que Damien podia ajudar você a melhorar o seu vocabulário para que você não tenha que usar palavras como... – Stevie Rae tinha começado um novo sermão quando a segunda onda daquela sensação me atingiu.

Eu ofeguei e coloquei meus braços ao redor do meu corpo, enquanto Stark me abraçava forte.

– Está tudo bem. Está tudo bem. A gente está bem. Vai passar – Stark murmurou frases para me tranquilizar.

– O que foi? O que está acontecendo? – Aphrodite chegou mais perto de mim, ombro a ombro com Damien.

– Você está com dor? – Damien perguntou.

– Nã-não – eu respondi com voz trêmula. – Eu só sinto como... como...

– Como se alguém estivesse pisando no seu túmulo – Stark concluiu por mim.

– A-alguém que usa Magia Antiga – eu acrescentei e Stark assentiu em concordância.

Como meu Guerreiro Juramentado, Stark compartilhava as minhas sensações. A ligação Grande Sacerdotisa-Guerreiro era estabelecida dessa forma para que nossos protetores sempre soubessem quando precisávamos deles. Mas havia momentos, como agora, em que eu preferia poder apertar um botão e não fazer ele passar por essas coisas estranhas que aconteciam frequentemente comigo.

– Está sumindo – Stark disse.

Eu soltei um longo suspiro de alívio.

– Sim. Acabou.

– Z, de onde isso está vindo? – Stevie Rae perguntou.

– Não tenho ideia – respondi. – Stark, você sabe de algo?

Ele balançou a cabeça.

– Não, acho que eu não estou tendo a sensação de fato, mas apenas um eco do que você está experimentando.

– Bom, está ligado a você – Damien falou. – Seja a magia propriamente dita ou a pessoa que está mexendo com ela.

– E se Sgiach invocou Magia Antiga? Será que pode ser isso que você sentiu? Vocês duas ficaram muito próximas – Stevie Rae deu um palpite.

– Não acho que seja isso – eu respondi. – A Rainha Sgiach é guardiã da Magia Antiga, e eu sei que ela se manifesta na ilha dela com muita frequência, mas, a menos que eu esteja lá com ela, nunca senti nada.

– Ela usou Magia Antiga na batalha contra o Touro Branco na noite em que sepultamos Neferet – Damien lembrou. – Você não sentiu nada?

Balancei a cabeça.

– Não.

– Merda! Será que pode ser Neferet? – Aphrodite disse.

De repente, senti um calafrio.

– Não sei.

– Bom, descubra! – Aphrodite exclamou.

Eu franzi o cenho para ela.

– Você é a Profetisa. Que tal você descobrir?

Ela atirou o longo cabelo loiro para trás.

– Não funciona desse jeito e você sabe disso.

– Além disso, você não precisa de nenhuma Profetisa. Você só precisa de uma Grande Sacerdotisa que possa invocar Magia Antiga. Conhece alguma, Z? – Kramisha perguntou, dando um olhar aguçado na minha direção.

Eu metaforicamente dei um tapa na minha testa.

– Eu devo ser uma imbecil.

– Z! – Stevie Rae bufou.

Fiz um gesto para evitar o que provavelmente seria um sermão politicamente correto enquanto Aphrodite caiu na gargalhada.

– Desculpe. Eu só estava brincando. Na maior parte. Eu sou a Grande Sacerdotisa de quem Kramisha estava falando.

– Não gosto de você mexendo com Magia Antiga – Stark falou.

– Eu não vou mexer com isso – eu argumentei. – Vou só dar uma invocada rápida, só isso.

– Nunca é só isso quando Magia Antiga está envolvida – Stark rebateu sombriamente.

Eu suspirei e concordei silenciosamente com ele.

– Será que a gente deve ir até Skye? Apesar de ela estar de luto, não acredito que a Rainha Sgiach recusaria dar passagem a você.

– Lá é longe demais – Stevie Rae protestou. – Tem que haver um jeito mais fácil. Ou pelo menos um lugar mais perto.

– Eu sei de um lugar mais perto – Rephaim disse.

A atenção de todo mundo se voltou para o jovem Cherokee alto e bonito.

– Ok, estou ouvindo – eu o incentivei a continuar.

– Tem Magia Antiga aqui. Bem aqui nos jardins da escola – ele falou em voz baixa, mas gravemente. – Eu sei porque eu vim dela.

Eu me endireitei no banco, como se o que Rephaim acabou de dizer tivesse entrado na minha mente. O meu olhar se perdeu pelos jardins da escola na direção leste, onde a distância eu mal podia distinguir a silhueta escura de um carvalho enorme e quebrado.

– Rephaim está certo. Há um jeito mais perto, mas eu não tenho muita certeza se vai ser muito mais fácil – eu afirmei.

O olhar de Stark seguiu o meu, e eu o escutei resmungar baixinho.

– Ah, que inferno.


10

Zoey

– Não sei se essa é uma boa ideia – Stevie Rae disse.

– Eu tenho certeza de que não é – Stark falou.

– Zoey, você não deveria fazer um círculo antes de tentar invocar Magia Antiga? – Rephaim perguntou. – Shaylin ainda está aqui, não está? Posso ir chamá-la. E eu vi Shaunee indo para a aula de Teatro com Erik. Posso falar para ela, caso você precise dela aqui também.

– Uau! Definitivamente essa árvore não se parece com a que está no meu velho mundo – Outro Jack exclamou.

– Ok, escutem bem. – Eu dei as costas para o carvalho destruído e encarei os meus amigos. – Eu não vou fazer um círculo. Quero fazer isso de um jeito rápido e simples, sem precisar focar muita energia em Magia Antiga. – Eu me virei para Rephaim. – Obrigada por me lembrar que essa árvore estava aqui. Queria que você e Stevie Rae ficassem – o meu olhar desviou dele e abarcou Aphrodite e Stark –, mas eu quero que todos os outros, exceto Stark e Aphrodite, vão embora. Minha intuição me diz para não tentar fazer um espetáculo para invocar Magia Antiga e, quanto mais gente estiver aqui, maior a bagunça. Eu faria isso sozinha, mas conheço o meu Guerreiro o bastante para saber que isso não é possível.

– Com certeza – Stark afirmou, com jeito de Guerreiro valentão, enquanto olhava sobre o meu ombro para a árvore quebrada, em cuja direção eu nem tinha olhado ainda.

– E Aphrodite é, bom... – minhas palavras sumiram quando percebi que não sabia muito bem como descrever o que Aphrodite havia se tornado.

– Estranhamente ligada a Nyx e poderosa? – Stevie Rae sugeriu.

– Que tal incrivelmente ligada a Nyx e poderosa? – Aphrodite a corrigiu, estreitando os olhos.

– As duas coisas – eu disse.

– E eu vou usar a minha posição de Grande Sacerdotisa e ficar bem aqui com Z – Stevie Rae falou.

– Eu fico com Stevie Rae – Rephaim acrescentou.

– Exatamente como eu esperava – eu concordei.

– O que nós podemos fazer enquanto isso? – Damien perguntou, entrelaçando os dedos com os de Outro Jack.

– Obrigada pela compreensão – eu agradeci. – Você e Jack podem cuidar para que todos os estudantes fiquem lá dentro.

– Claro – Damien respondeu. – Está na metade da segunda aula. Vamos enviar um e-mail de emergência para todos os professores. Ninguém pode ir a lugar nenhum por mais ou menos uns trinta minutos.

– E se alguém sair, Damien e eu vamos enxotar a pessoa direto de volta para a aula – Outro Jack completou, mostrando as covinhas para mim.

– Mas você tem certeza absoluta de que não quer que eu fique? – Damien perguntou. – Eu poderia fazer anotações sobre o que acontecer.

– Na verdade, o que me ajudaria ainda mais do que isso seria se você pudesse pegar aqueles livros sobre Magia Antiga na área restrita do Centro de Mídia, e marcar tudo que você achar que eu preciso ler sobre o assunto.

– Eu posso fazer isso, Z.

– Posso ajudar também? – Outro Jack se ofereceu, olhando para mim com olhos grandes e ansiosos. – Quer dizer, assim que a gente avisar os professores para não deixarem os novatos saírem das salas.

– Claro – eu respondi. – Eu agradeço.

Outro Jack deu um pulinho de alegria, que me fez sorrir, e então ele e Damien saíram apressados de mãos dadas.

– Bom, da minha parte, não preciso ver Magia Antiga nem qualquer coisa do tipo – Kramisha disse. – Tenho que fazer as malas. Z, se um poema vier até mim, eu mando uma mensagem pra você. Beleza?

– Sim – eu respondi, desejando secretamente não receber nenhum poema profético maluco enviado para mim via mensagem de texto com a fonte roxa brilhante que Kramisha usava para escrever.

– Grande Sacerdotisa, eu gostaria de permanecer com Aphrodite.

Meus olhos encontraram o olhar sério de Darius. Eu suspirei, mas assenti.

– Sim, eu entendo isso. Você pode ficar.

Darius fez uma reverência respeitosa para mim, com o punho sobre o coração.

– Ok, Z. Você encontra a gente no refeitório depois? Já está quase na hora do almoço e eu estou ficando irritada de fome – Kramisha disse.

– Sim, combinado. Não vou demorar. – Eu esperava que, ao falar em voz alta, pudesse transformar isso em realidade.

Enquanto meus amigos seguiam de volta para o prédio principal da escola, eu finalmente voltei minha atenção para a árvore rachada.

A aparência dela era horrível. Conforme eu a observei, percebi que deveria ter mandado arrumar tudo meses atrás. Estava assustador. Eu sabia que os estudantes evitavam o muro leste por causa daquilo, e imagino que parte do motivo que me fez adiar fazer qualquer coisa ali era porque aquilo desencorajava novatos a usarem o alçapão escondido no muro atrás da árvore para saírem escondidos do campus. Mas, por outro lado, agora eu era a Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Como se eu fosse realmente tomar conhecimento de cada novato que estava saindo escondido do campus. Era muito improvável.

– Z? Você está bem? – Stark perguntou.

Eu assenti.

– Sim, só estou pensando em mandar arrumar essa bagunça.

– Não. Deixe assim – Aphrodite falou. – Se você quiser fazer algo, faça uma defumação e um círculo de sal para proteção, mas deixe do jeito que está.

Eu me virei para ela.

– Por quê?

Ela indicou a ruína maléfica da árvore sem folhas e o buraco criado na terra de onde Kalona e os seus Raven Mockers haviam saído em uma explosão em um tempo que parecia muito, muito distante.

– Eu posso estar errada, mas para mim parece que essa bagunça é uma lição visível do que acontece quando você brinca com poderes em que é melhor não mexer.

Os meus olhos focaram nos galhos escuros feito garras, onde as folhas se recusavam a nascer.

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho razão. Então, você vai invocar Magia Antiga ou o quê?

Eu queria poder escolher “ou o quê”, mas sabia que essa não era uma opção.

– Alguém tem uma faca?

Juntos, Darius e Stark tiraram adagas que pareciam muito perigosas de sabe-a-Deusa-onde em seus corpos extremamente armados. Eu estendi a mão, com a palma para cima, e falei para Stark:

– Faça um corte.

Ele franziu a testa.

– Que tal eu me cortar e você usar o meu sangue?

– James Stark, eu sou a sua Grande Sacerdotisa e a sua Rainha. Eu disse para você me cortar. Então me corte.

Ele ainda estava franzindo a testa, mas desta vez fez o que eu pedi, rapidamente abrindo um corte raso na parte mais carnuda da palma da minha mão. A adaga dele era tão afiada que eu sequer senti dor. Fechei a mão e a apertei de leve para que o sangue se juntasse em uma quantidade razoável.

– Aphrodite e Darius, por favor, fiquem à minha esquerda. Stark, Stevie Rae e Rephaim, fiquem aqui do lado direito. Eu vou caminhar até a árvore. Deixem-me ir um pouco na frente de vocês. Não façam nada enquanto eu ainda estiver falando coisas com sentido, mas se algo estranho demais acontecer...

– Se alguma merda estranha acontecer, eu vou carregar você para fora de lá – Stark afirmou.

– Não – eu falei, cortando-o. – Coisas estranhas vão acontecer. É Magia Antiga. Não faça nada, a menos que eu pare de me comunicar com você, ou que eu seja puxada para dentro da, hum, árvore. – Fiz uma pausa, esforçando-me para não estremecer ao lembrar da última vez que a Magia Antiga havia me tocado ali. Da última vez eu quase havia me perdido. Encontrei o olhar preocupado de Stark e minha voz suavizou. – Você vai saber se alguma coisa estiver dando errado. Você vai sentir. Só não faça nada a não ser que dê tudo errado. Ok?

– Ok – ele respondeu com relutância.

– Eu te amo e sinto muito que isso esteja te estressando – eu disse.

Os ombros de Stark relaxaram um pouco.

– Eu também te amo, Z, e estresse faz parte do trabalho de um Guerreiro.

Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo e então encarei a árvore. Levantei a minha mão fechada diante de mim e inspirei profundamente três vezes para me centrar. Então hesitei.

– Bom, que inferno. Não sei quem eu devo invocar – eu falei.

– Você me disse que gostou dos espíritos elementais que responderam ao seu chamado em Skye – Stark lembrou.

– Sim, mas aquilo era diferente – eu respondi.

– Não exatamente. Pare de se preocupar tanto com o fato de ser Magia Antiga. Pense nisso em termos mais simples. É uma árvore velha toda ferrada. É só invocar os espíritos da terra – Stevie Rae sugeriu. – É o que eu faria.

– Sim, você está certa. Espíritos da terra. Isso parece o correto – eu concordei nervosamente.

– E pare de ficar tremendo tanto. Eles são só elementais. Você tem afinidade com todos os elementos. Imagine que você está invocando a terra para um círculo – Aphrodite reforçou.

– Essa é mesmo uma boa ideia – eu disse.

– Claro que é. Eu sou cheia de boas ideias. – Ela atirou o seu cabelo comprido e loiro para trás e levantou suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas para mim.

– E se eu tentar ajudar? – Stevie Rae veio para o meu lado. – Não sei muito sobre Magia Antiga, mas eu sou da terra. Vamos invocar juntas. Como a gente faz no círculo.

– Ok, isso faz sentido. Stevie Rae, você começa, e eu vou usar o meu sangue como se eu estivesse acendendo uma vela na terra.

– Facinho! – Stevie Rae limpou a garganta e falou para a árvore quebrada. – Eu sou Stevie Rae, Grande Sacerdotisa vampira vermelha de Nyx, que me presenteou com a afinidade com a terra. Com o poder concedido pela Deusa, eu gostaria de invocar os espíritos ancestrais da terra. – Então ela assentiu e deu um passo atrás, deixando que eu liderasse a invocação final.

Eu estendi a mão de novo, inspirei fundo e disse:

– Espíritos da terra! Espíritos das árvores da Magia Antiga! Eu sou Zoey Redbird. Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx, e eu consigo brandir a Magia Antiga. Com o poder ancestral no meu sangue, eu os invoco e peço que apareçam para mim. – Então, como se eu estivesse atirando uma mão cheia de água para longe de mim, arremessei o meu sangue na casca de árvore nodosa e quebradiça.

Nada aconteceu por um instante, e eu senti o meu coração afundar no peito. Eu ia mesmo ter que voar até Skye e incomodar Sgiach em seu luto? Será que isso poderia ser feito? Ou talvez eu devesse tentar falar com o Conselho Supremo dos Vampiros, o Europeu, aquele que não estava particularmente satisfeito com o fato de os meus amigos e eu termos assumido a liderança na América do Norte em vez deles...

– Ei, Z. Acorde. Tem alguém aqui – Aphrodite sussurrou.

Eu me sacudi mentalmente e fiquei olhando uma figura emergir do centro da árvore partida. Ela era obviamente um espírito da árvore. Alta e graciosa, tinha pele escura – da cor de casca de árvore à meia-noite –, mas não havia nada de rústico nela. Ao contrário, sua pele parecia incrivelmente suave e macia – e havia muita pele visível, pois o vestuário que ela estava usando era composto de delicadas folhagens de samambaia. Quanto mais eu olhava, mais me dava conta de que a samambaia parecia estar rente à sua pele, como uma pintura corporal ou mesmo uma tatuagem. Ela piscou para mim com olhos grandes, escuros e bonitos.

– Olá – eu disse. – Obrigada por atender ao meu chamado.

O espírito inclinou a cabeça para o lado com um movimento parecido com o de um passarinho. Isso fez o seu cabelo espetacular, da cor das folhas do outono, ondular como se estivesse sendo mexido por um vento que afetava apenas o espírito.

Eu estava tentando descobrir como persuadi-la a falar comigo quando o espírito inspirou profundamente, e então os seus olhos grandes e escuros ficaram ainda maiores.

– Outro Redbird? Esta noite está mesmo muito interessante.

Ela saiu do meio da árvore despedaçada, dando um olhar triste para ela enquanto passava a mão no tronco partido. Ela não estava exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não fizeram som nenhum nem remexeram o gramado marrom do inverno sobre o qual ela caminhava. O espírito parou diante de mim, se inclinou para a frente e me cheirou.

– Você é, de fato, uma Garota Redbird.

– Como você sabe o meu nome? – eu falei sem pensar.

– Eu acabei de encontrar outros do seu sangue. Um garoto jovem e uma mulher – a voz musical do espírito hesitou antes de continuar. – Mas eles não estão neste mundo. Que estranho.

– Espere aí, você está falando do meu irmão, Kevin?

– O Garoto Redbird... sim, acho que ele se chama Kevin.

– Quem era a mulher? Z, eu pensei que você estivesse, ahn, morta do lado de lá – Stevie Rae sussurrou.

O espírito voltou sua atenção para Stevie Rae, que sorria nervosamente e acenou, dizendo:

– E aí! Sou Stevie Rae. Prazer em te conhecer.

– Eu não a conheço, mas posso sentir a força da sua ligação com a terra. Como um espírito da árvore, eu aprecio isso. Pode me chamar de Oak.

– Obrigada, Oak – Stevie Rae fez uma reverência respeitosa.

Oak começou a farejar o ar de novo e, ao fazer isso, ela chegou mais perto de Rephaim, que estava tão imóvel que pensei que ele nem estivesse respirando.

– O que é você? Eu sinto o cheiro de Magia Antiga nos seus ossos, mas ela foi modificada.

– Sou Rephaim. Filho de Kalona. Eu fui um Raven Mocker.

– Portanto, não humano. Nem corvo. Mas algo modificado para fundir ambos em um só.

– Modificados por Nyx – eu me manifestei, sentindo a necessidade de ter algum tipo de controle sobre a conversa. – Rephaim conquistou o perdão da Deusa, e ela concedeu a ele o corpo de um garoto.

– Mas só do pôr do sol até o nascer do sol – Rephaim concluiu por mim. – Enquanto o sol está no céu, eu sou um corvo.

O espírito continuou a encarar Rephaim, farejando o ar ao redor dele, receoso.

– É uma punição pelos atos sombrios que você já cometeu que a Deusa permite que o corvo assuma o seu corpo.

Rephaim empinou o queixo.

– Sim. Nyx é justa. O meu passado não é algo do qual me orgulho.

– Exceto pelo ano passado – Stevie Rae disse, pegando a mão de Rephaim. – Ele escolheu a Luz, e Nyx o perdoou.

– Então, Oak, você não é deste mundo? – Aphrodite perguntou.

A cabeça de Oak girou, feito uma coruja, para observar Aphrodite.

– Eu não a conheço, Profetisa.

– Ainda assim você me chamou de Profetisa.

O espírito assentiu, fazendo o seu cabelo longo e multicolorido brilhar ao redor com um som parecido com o do vento derrubando as folhas do outono.

– A Magia Antiga reconhece uma Profetisa de Nyx. Houve um tempo, no passado distante, em que nós estivemos ao lado das Profetisas de Nyx, seguindo as ordens da Deusa. Infelizmente, esse tempo já passou, mas nós nos lembramos dele – Oak disse de forma enigmática antes de olhar para Darius. – Eu também não o conheço, Guerreiro – e então o olhar dela encontrou Stark. – Você, eu reconheço. O Garoto Redbird pediu santuário para se proteger de você e do seu exército, embora sua Marca fosse azul, não vermelha.

– Você é do Outro Mundo! – Stark exclamou. – Você conheceu Kevin Redbird lá, certo? Mas quem é a outra mulher Redbird? – Stark se virou para mim. – Será que a sua irmã foi Marcada no Outro Mundo sem Kevin saber?

Eu comecei a abrir a boca, mas a voz de Oak me interrompeu.

– Tantas perguntas, mas eu não recebi nenhuma oferta de pagamento. – Oak virou a cabeça e olhou sombriamente para a árvore quebrada na qual ela tinha se materializado. – E eu fui invocada através de um lugar que foi manchado pelas Trevas e pela destruição.

– Eu sou responsável por sua invocação. Peço desculpas. Eu realmente tenho perguntas a fazer, mas eu também tenho o seu pagamento. – Eu abri a mão, mostrando a Oak a ferida ensanguentada que ainda pingava.

Oak farejou delicadamente a palma da minha mão. Ela lambeu os seus lábios carnudos, lembrando estranhamente como eu costumava fazer quando tinha noite de festival de psaghetti no refeitório, mas então ela me surpreendeu ao desviar a sua atenção do meu sangue para encontrar o meu olhar.

– Você oferece um pagamento aceitável, mas eu prefiro outra coisa.

– Que tipo de pagamento você quer? – Senti a necessidade de prender a respiração enquanto esperava pela resposta dela.

Oak virou a cabeça para olhar sobre o seu ombro para a árvore destroçada.

– O pagamento que eu quero pela informação que você busca é que você limpe a abominação que aconteceu aqui, e restaure o equilíbrio deste lugar.

Eu pisquei em choque, mas ainda consegui dizer:

– Eu posso fazer isso.

A cabeça dela girou de novo para mim e a sua voz se tornou ritmada, como se ela estivesse recitando um belo poema.

“Eu aceito o pagamento do equilíbrio a esta árvore restaurado

Grande Sacerdotisa – você prometeu isso de bom grado

Eu concordo em fornecer informação

Eu concordo com a verdade dita na canção

Pergunte, então, Garota Redbird

Mas escute bem, para que minhas palavras acate

E se você esquecer do pagamento aqui rebate

Saiba que há outras formas de pagar antes que a mate...”

Oak não atirou sangue no ar nem fez nenhum outro tipo de floreio dramático, mas, no instante em que terminou de falar o feitiço de amarração, o ar ao redor dela brilhou como se alguém tivesse soprado purpurina sobre o pátio da escola. Tentei não pensar nas outras formas com que a Magia Antiga podia me fazer pagar pela promessa e fiz a minha primeira pergunta.

– Você conhece o meu irmão, Kevin?

– Conheço. Ele se parece muito com você.

– Então, você é de outro mundo?

– Para as fadas ancestrais, todos os mundos são um só. Nós prestamos pouca atenção no véu que os separam.

– A outra mulher Redbird que você mencionou. Você pode me dizer quem ela é?

– Sim, Garota Redbird. Ela é uma Mulher Sábia, uma do seu sangue. Ela é formidável. Eu realmente me deliciei com as suas bolsas medicinais. Elas não foram pagamentos poderosos pelos nossos serviços, mas foram saborosas.

– Ela está falando de Vovó Redbird! – Stevie Rae exclamou.

Eu assenti.

– Ela também falou em bolsas medicinais... no plural. Oak, a Mulher Sábia da qual você está falando deve ser minha avó. Ela e Kevin estão lidando com Magia Antiga no Outro Mundo?

– A Mulher Sábia não invocou Magia Antiga, mas, como respeito pelo seu sangue ancestral, eu responderia se ela me chamasse e precisasse da minha assistência. Foi o Garoto Redbird. Ele requisitou nossa ajuda. – Os olhos escuros de Oak se viraram para Stark. – Ele precisava de proteção contra um Guerreiro muito parecido com este que lhe pertence.

– Kevin deve estar trabalhando com a Resistência – Stark disse.

– Onde Kevin e minha avó estavam quando eles usaram Magia Antiga? – eu perguntei.

– Em uma montanha não muito longe daqui. É lá que o povo deles se reúne e se esconde daqueles que os caçam.

– É isso. O Outro Kevin se juntou à Resistência – Darius concluiu.

– E você realmente não me viu lá em nenhum lugar? – Aphrodite perguntou ao espírito.

Oak olhou atentamente para ela.

– Não. Você não faz parte do povo do Garoto Redbird.

– Olha, que merda – Aphrodite falou.

– Por que isso faz tanta diferença? – Rephaim perguntou para Aphrodite.

Stevie Rae respondeu por ela.

– Porque Aphrodite é a razão pela qual novatos vermelhos e vampiros vermelhos no nosso mundo podem escolher manter a sua humanidade. Sem ela, todos nós seríamos monstros, como o pobre Outro Jack já foi.

O que Stevie Rae disse deu um cutucão na minha memória, e de repente eu tinha outra pergunta a fazer para o espírito.

– Oak, você realmente é feita de Magia Antiga, certo?

Quase pareceu que o espírito se segurou para não rir.

– É claro, Garota Redbird. Do que mais eu seria feita?

– Bom, eu não sei, mas estou confusa. Pensei que Magia Antiga não tomasse partido nessa batalha entre Luz e Trevas. E mesmo assim você está aqui, contando que protegeu o meu irmão e o seu povo contra o Exército Vermelho, e que o pagamento que você quer é que eu limpe as Trevas desta árvore. Isso soa como se você estivesse tomando partido... não que eu me importe. Eu estou feliz que você esteja escolhendo a Luz. Só me pergunto por quê.

– Você está parcialmente correta, Garota Redbird. A Magia Antiga não escolhe lados, já que vemos as muitas camadas que compõem a Luz e as Trevas, e nós compreendemos profundamente que ninguém é completamente bom nem completamente mau. Eu concedi santuário ao seu irmão porque aceitei o pagamento dele, e não porque fiquei do lado dele contra as Trevas. Em relação a essa árvore, os espíritos elementais não são neutros quando uma abominação é cometida contra a natureza. E essa árvore, este lugar de poder elemental, foi de fato profanado, o que é uma abominação contra a natureza. Isso tem que ser consertado.

– Isso tem sentido, Z – Stark disse. – Ela soa muito como Sgiach, quando chegamos na ilha. Ela não sairia da ilha para combater as Trevas, mas, quando as Trevas invadiram a sua ilha, Sgiach lutou contra elas.

– Ah, a Rainha Sgiach. Nós ficamos tristes pela perda do Guerreiro dela.

– Você a conhece! – eu exclamei.

– Sim. Há muitos séculos.

– Como ela está?

– Em luto profundo. – E então Oak fechou a boca, deixando claro que não ia falar mais nada sobre a Rainha Sgiach, a Grande Cortadora de Cabeças.

– Ok, então, como o meu irmão está no Outro Mundo? – eu perguntei.

– O ferimento dele se curou. Nós concedemos santuário ao povo dele na montanha. Ele brande Magia Antiga com maestria.

– E o ferimento dele? – a minha pergunta saiu como um grito agudo.

– Ele se curou – Oak repetiu, como se pensasse que eu podia ser meio devagar.

Eu queria perguntar mais sobre Kevin ter se ferido, mas Aphrodite agarrou meu pulso e falou urgentemente para mim:

– Kevin está brandindo Magia Antiga. Foi isso que você sentiu.

– Sim, eu sei.

– Z – ela parecia exasperada –, lembre-se de como é brandir Magia Antiga.

E então eu percebi o que Aphrodite estava dizendo. Kevin estava encrencado, e ele provavelmente não sabia disso.

– Oak, você pode levar uma mensagem minha para Kevin?

– O seu pagamento foi por informação. Não para ser uma mensageira.

Eu baixei os olhos para a minha mão. A ferida tinha começado a coagular, mas eu sabia que podia abri-la de novo com a unha.

– Sangue. Eu pagarei com o meu sangue para você levar uma mensagem para o meu irmão.

– Não, Sacerdotisa. Você me julga mal. Não sou sua mensageira. Não tenho nenhum compromisso com você. Você me ofereceu um pagamento por informação. Eu dei essa informação. Agora você tem que cumprir o que me deve. Faça isso, e depois talvez me peça outra tarefa. Apenas tenha certeza de que o pagamento que você oferece é atraente...

E sem fazer nenhum barulho, Oak deu as costas para nós e, em um puf de névoa, ela desapareceu no meio da árvore caída.


11

Outro Kevin

Água da chuva gotejava do teto encurvado de pedra da caverna e formava poças, lama e barro ao redor dos pés de Kevin. Ele enxugou o rosto com a manga do seu casaco e espirrou violentamente.

– Acho que eu prefiro gelo do que essa droga de garoa e névoa. Se isso continuar por muito tempo, vai virar uma primavera de Oklahoma precoce com a tríade de coisas pé no saco que sempre vêm junto: tornados envoltos em chuva, pólen de ambrósia3 e carrapatos – Kevin resmungou para si mesmo.

– Ei, levante a cabeça! Podia ser bem pior. Que inferno, seria bem pior se você não tivesse nem vindo até aqui. Pelo menos estamos seguros, aquecidos e relativamente secos aqui.

Kevin sorriu ironicamente para o vampiro baixo, mas poderosamente musculoso, que pareceu se materializar de repente ao lado dele.

– Cara, você poderia ser menos silencioso? Esse jeito lento de andar não é bom para a minha ansiedade.

– Não há nada de errado com a sua ansiedade, Kevin querido. Mas Dragon não deveria importunar você andando por aí feito um espírito. – A adorável mulher com o véu de um longo cabelo loiro com mechas prateadas tocou o ombro de Kevin delicadamente, embora o afeto no seu olhar fosse todo direcionado a Dragon. – Principalmente com a quantidade de espíritos que temos por aqui. Eles podem ficar com inveja.

Dragon Lankford levantou as mãos em sinal de rendição.

– Anastasia, meu amor, não deixe que se diga que eu afronto os espíritos. – Ele fez uma pausa e então perguntou a Kevin: – Como eles são?

– Os espíritos? – Kevin disse, enxugando mais água da chuva do seu rosto enquanto saía da entrada da caverna muito maior e melhor.

– Sim, os espíritos. Você se lembra deles, certo?

– Ah, Bryan, deixe o garoto em paz. São os espíritos dele. É claro que ele se lembra deles. Todos nós lembramos deles e somos gratos – Anastasia Lankford repreendeu o seu companheiro, apesar de dizer isso deslizando o braço em volta da cintura dele com intimidade e recostando a cabeça rapidamente em seu ombro, o que Kevin achava que tirava totalmente a bronca que estava em suas palavras. Afinal de contas, que cara não levaria um sermão da bela Sacerdotisa numa boa se ela estivesse ao mesmo tempo encostando sua bochecha macia no ombro dele?

Em meio ao silêncio crescente, Dragon Lankford estalou os dedos algumas vezes na frente do rosto de Kevin, fazendo-o piscar e dar um pulo para trás – e se dar conta de que ele estava sentado lá encarando Anastasia como um menino de escola apaixonado.

Cara, eu preciso de uma namorada. Kevin suspirou internamente e se sacudiu.

– Desculpe. Eu estava pensando.

– Percebi. – Dragon deu um olhar divertido para ele.

Kevin devolveu o olhar com o seu próprio sorriso.

– Eu estava realmente pensando em mais coisas além da beleza da sua companheira.

– Bem, obrigada, Kevin querido. – Os cantos dos olhos de Anastasia se enrugaram de modo cativante.

Dragon limpou a garganta.

– Que outras coisas são essas em que você estava pensando?

– Que eu realmente preciso ir embora. – Kevin levantou a mão quando Anastasia começou a protestar. – Não, já faz três dias. As estradas estão limpas. O Exército Vermelho não voltou. – Kevin fez uma pausa e gesticulou para o local que antes era o fundo da minúscula caverna, mas agora era uma entrada em arco perfeita para um sistema de cavernas e túneis que serpenteavam como um labirinto, adentro da montanha rochosa. Mesmo de onde ele e os Lankfords estavam, todos podiam ver pessoas – novatos azuis, vampiros e humanos – apressadas indo de lá para cá, preparando o jantar, remendando roupas rasgadas, fervendo ervas para o chá e outras tarefas caseiras. Gatos caminhavam distraídos por ali, atrapalhando o caminho, mas também mantendo a população de ratos e de toupeiras sob controle. E de algum lugar mais lá embaixo na caverna, o aroma de chili se levantou, fazendo Kevin salivar. – Está tudo funcionando. A caverna está aquecida, seca e bem ventilada, e os espíritos estão mantendo a montanha encoberta com névoa. Já está na hora de eu ir embora.

– Eu concordo – Vovó Redbird chegou até a entrada da caverna, vindo do ponto mais fundo do seu interior recém-concluído. – Está tão agradável e aquecido lá atrás! Não sei como os espíritos fizeram isso, mas o sistema de ventilação é um milagre. Quase não tem fumaça nenhuma em nenhum lugar. Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Kevin, eu concordo com você. Se você demorar muito mais para voltar para a Morada da Noite, a sua reaparição vai levantar suspeitas.

– Mas Kevin voltar já não será suspeito por si só? – Anastasia questionou. – De acordo com o que ele nos contou, um grupo inteiro de novatos e soldados do Exército Vermelho e um general vermelho desapareceram. Como você vai explicar onde esteve? E onde eles estão?

Kevin soltou um longo suspiro.

– Andei pensando nisso e tenho uma ideia. Eu vou mentir.

Dragon deu risada.

– Obviamente!

– O que você quer dizer com isso, u-we-tsi?

– Bom, se alguém me perguntar sobre o restante do meu grupo, vou dizer que não sei nada sobre isso porque o meu general, que está morto lá no mundo da minha irmã, me mandou em uma missão de reconhecimento alguns dias atrás. E eu fui. Não encontrei nada de mais, mas aí acabei me perdendo.

– Acabou se perdendo? – Dragon bufou.

– Ah, eles vão acreditar. E também não vão me perguntar mais nada sobre o general. Pense na maneira como os vampiros vermelhos agem. Mesmo os oficiais não são muito mais do que máquinas de comer. O General Dominick era o meu oficial superior, mas até ele era basicamente um babaca desgraçado e do mal, que controlava os seus soldados com ameaças e medo. Para um vampiro vermelho, ele era considerado esperto, mas na verdade ele não pensava muito além de quem nós poderíamos atacar em seguida. – Kevin balançou a cabeça de desgosto. – Acredite em mim, sei tudo sobre isso. Eu estou me escondendo no Exército Vermelho há quase um ano, e nenhum deles jamais suspeitou que eu fosse diferente.

– Mas, Kevin, você tem um cheiro diferente agora – Anastasia lembrou.

– Essa foi a última coisa que eu andei tentando resolver. Tenho quase certeza de que nenhum vampiro azul vai prestar atenção suficiente em mim para reparar que eu não tenho um fedor.

– Mas “quase” não é bom o bastante, u-we-tsi.

– Os vampiros vermelhos vão reparar, não vão? – Anastasia perguntou delicadamente.

– Acho que eles podem reparar. Bom, não os soldados comuns, mas alguém como um dos generais vermelhos... tenho quase certeza de que iriam notar sim.

– O que Kevin pode fazer em relação a isso? – Dragon perguntou.

– Bom, eu posso pensar em jogar um feitiço sobre ele... algo que tenha um cheiro junto – Anastasia refletiu. – Mas qualquer Sacerdotisa que cruzar o caminho dele poderia facilmente perceber o rastro de energia do feitiço. E, se você estiver em qualquer lugar perto de Neferet, ela reconheceria o meu feitiço imediatamente.

– Então essa ideia está definitivamente fora de questão – Dragon afirmou.

– Que tal algo mais simples? – Vovó Redbird sugeriu. – Kevin, qual a intensidade que esse cheiro precisa ter?

Kevin deu de ombros.

– Não tenho certeza. Quando eu era um vampiro vermelho, nunca percebia o fedor.

– Depende do tipo de vampiro vermelho – Dragon explicou. – Os soldados fedem como cadáver e bolor. Já os oficiais, especialmente os oficiais de patentes mais elevadas, não possuem um cheiro tão ruim.

– Então, um oficial, como o Kevin, não tem o aroma muito mais forte do que o de um perfume de mulher? – Vovó perguntou.

– Acho que é uma boa comparação – Dragon respondeu. – Se a mulher exagerou e colocou perfume demais.

– Bom, u-we-tsi, isso vai parecer repugnante, mas acho que você deveria usar o sangue de um vampiro vermelho como se fosse perfume.

– Você quer que eu passe perfume de sangue em mim?

Vovó sorriu.

– Talvez funcione melhor se espalhar um pouco de sangue na sua pele em lugares que não possam ser vistos.

– Que nojento – Kevin resmungou.

– Porém prático – Anastasia disse.

– Sim, acho que vocês estão certas – Kevin falou. – Cara, eu queria poder fazer só uma tentativa sem o perfume de sangue fedido.

– Você não pode – Dragon afirmou. – Eles vão descobrir você, e vão nos descobrir em seguida.

– Eu jamais contaria a eles onde vocês estão! – Kevin protestou.

Anastasia colocou a mão no ombro dele.

– Não por livre e espontânea vontade, mas depois que eles torturarem você e o deixarem passar fome... bom, vamos apenas dizer que é melhor ficar fedido.

– Sim, você está certa. Então vou voltar para a estação hoje à noite, depois de conseguir um pouco de sangue de vampiro vermelho. Não vou gostar disso. – Kevin estremeceu e então estalou as juntas dos dedos. – Mas vou fazer tudo que tiver de ser feito. Ok, eu já tenho um plano, mas quero a contribuição de vocês.

– Claro – Anastasia disse, e os quatro foram até os bancos de pedra que os espíritos haviam esculpido de algum modo na parede da caverna. O corvo enorme que nunca ficava longe da Sacerdotisa voou para dentro da caverna e esticou suas asas escuras no ar frio, aterrissando em um afloramento rochoso em cima de Anastasia. – O que você está pensando, Kevin?

– Nós precisamos de Aphrodite.

– Aphrodite? – Dragon grunhiu.

– Antes que você reclame, apenas pense no que eu contei antes. O que aconteceria se não existisse mais o Exército Vermelho para Neferet usar como uma máquina de comer em tempos de guerra?

Dragon suspirou e assentiu.

– Sim, é verdade. Sem o Exército Vermelho, não seria mais tão fácil para Neferet ganhar a guerra.

– Exatamente – Kevin concordou.

– Então você deve saber que o risco compensa – Vovó Redbird disse.

– Certo. Vou pedir para Johnny B levar vocês até onde nós escondemos o Polaris. – Dragon voltou seu olhar sombrio para Vovó Redbird. – Sylvia, quero que saiba que você tem um lugar aqui conosco se preferir ficar.

– Obrigada, Dragon, mas eu preciso voltar para a minha fazenda. Eu sou protegida, então não corro perigo e posso ajudar mais lá fora do que me escondendo aqui.

– Como eu vou enviar mensagens para vocês aqui? – Kevin perguntou. – Vou tentar voltar para cá o maior número de vezes que conseguir, mas tenho que ter cem por cento de certeza de que ninguém está me seguindo. E se eu tiver informações que vocês precisam, mas não conseguir escapar?

– Isso é fácil – Anastasia respondeu, levantando os seus grandes olhos azuis na direção do corvo. – Vou enviar Tatsuwa para encontrá-lo todo dia. Ele vai voar em círculos sobre você. Se você tiver uma mensagem para nós, escreva em um pedaço de papel e dê a ele. Tatsuwa vai trazer a mensagem para mim. Da mesma forma, se nós tivermos uma mensagem para enviar, ele vai levá-la até você.

– Hum, como ele vai me encontrar? – Kevin deu uma olhada rápida para o corvo, e o grande pássaro grasnou para ele.

– Ah, você não precisa se preocupar com isso. Se você estiver ao ar livre, Tatsuwa vai encontrá-lo. A visão dele é tão aguçada quanto a sua inteligência.

– Anastasia, minha querida, eu já tinha visto o seu corvo adorável antes, e ele parece estar sempre perto de você, mas eu não tinha ouvido antes você o chamando pelo nome até recentemente. Eu queria dizer que gostei que você escolheu como nome dele uma palavra indígena – Vovó Redbird falou, aproximando-se do pássaro o bastante para acariciar suas penas pretas e brilhantes.

– Tatsuwa significa corvo em Cherokee? – Anastasia pareceu surpresa.

– Sim – Vovó Redbird respondeu. – Se você não sabia disso, como foi que deu esse nome a ele?

O sorriso brilhante de Anastasia iluminou a caverna quando ela olhou carinhosamente para o pássaro.

– Eu não o nomeei. Ele me disse o seu nome, não foi, Tatsuwa?

– Tatsuwa! – o corvo falou tão claramente quanto a Sacerdotisa que ele tinha escolhido como sua.

– Às vezes eu acho que os dois são mais próximos do que eu e ela – Dragon resmungou.

– Ciumento! – Tatsuwa grasnou.

Anastasia riu musicalmente.

– Ah, Tatsuwa, pare de provocar Bryan.

O pássaro saltou do seu poleiro e andou gingando até Anastasia, aconchegando-se ao lado dela, enquanto ela usava um dedo longo e fino para fazer carinho na penugem em cima do seu bico.

– Quantas palavras ele sabe falar? – Kevin perguntou, totalmente intrigado com o estranho pássaro negro.

– Ah, Tatsuwa não apenas imita palavras. Ele realmente fala – Anastasia explicou. Ela beijou o topo da cabeça do grande pássaro, e Kevin pôde jurar que ouviu a criatura ronronar.

– Um ta-tsu-wa é um aliado poderoso – Vovó Redbird afirmou. – Quando eles se ligam a alguém, essa ligação é para a vida toda.

– Se ao menos eu soubesse disso quando o encontrei, congelando e quase completamente sem penas no inverno passado – Dragon resmungou.

– Oh, Bryan, você nunca teria deixado ele sofrer e ficar para morrer – sua bela companheira falou. – Tatsuwa e eu somos gratos pelo seu bom coração.

– Obrigado, Bryan – o pássaro disse, soando igual Anastasia de um jeito desconcertante.

– Eu estabeleci o limite de ele não dormir conosco – Dragon disse.

– Meu amor, você sabe que ele prefere o ninho dele.

– Feito com os seus cabelos.

– Sério? – Kevin perguntou para Anastasia.

– Apenas parcialmente. O resto é feito com um dos meus velhos suéteres. E ele não arrancou o cabelo da minha cabeça. Ele é ótimo em limpar as minhas escovas.

Os olhos da Sacerdotisa faiscaram quando ela beijou o topo da cabeça negra lustrosa do corvo de novo.

– Humpf – Dragon resmungou. Então ele voltou seu olhar sarcástico para Kevin. – Mas o que tudo isso significa é que o pássaro é bizarramente inteligente e vai fazer qualquer coisa que Anastasia pedir.

– Ok, bom, acho que ele vai ser o meu celular então. É estranho, mas não tão estranho quanto o fato de ele dormir em um ninho feito com os cabelos da sua companheira. – Kevin levantou e se alongou, fazendo só uma pequena careta ao sentir uma fisgada na cicatriz do seu ferimento. – Você está pronta, Vó?

– Totalmente. – Vovó Redbird se levantou e fez mais uma longa carícia no corvo antes de abraçar Anastasia e depois o companheiro dela. – Obrigada por confiarem em mim.

– E em mim. – Kevin estendeu a mão para Anastasia, que sorriu docemente antes de abraçá-lo e de beijar sua bochecha.

– É tão fácil confiar em você quanto na sua avó – disse a Sacerdotisa.

– Bom, só depois que a gente supera essa sua Marca vermelha. – Dragon também puxou Kevin para um abraço com tapinha nas costas. – Fique em segurança, Kevin Redbird. Você pode ser a nossa única esperança de acabar com essa guerra sem nos render e condenar o nosso mundo às Trevas.

– Ei, sem pressão, certo? – Kevin se esforçou para não estalar os nós dos dedos.

Quando ele e sua avó saíram da caverna seguindo Johnny B, Tatsuwa passou voando por eles e então Kevin ouviu o pássaro chamando no vento:

– Garoto Redbird... Garoto Redbird... Garoto Redbird...

3 Causador de muitos casos de alergia no hemisfério norte. (N.T.)


12

Outro Kevin

– U-we-tsi, você tem certeza disso? – Vovó Redbird perguntou enquanto se inclinava sobre o assento, procurando algo dentro da grande cesta que ocupava a maior parte do banco traseiro do carro. Ela havia parado em uma das vagas na parte mais escura do estacionamento da Utica Square, bem no fundo.

– Não, mas eu tenho certeza de que você não pode me levar até a escola. Você está sob a proteção de Neferet, mas nenhum humano racional jamais iria entrar em um carro com um vampiro vermelho, a menos que estivesse prestes a ser devorado.

– Ah, aqui está! Eu sabia que tinha um desses aqui atrás. Coloque isso. Tem um capuz e deve ser grande o bastante para puxar para baixo para cobrir o seu rosto. – Vovó entregou a ele um velho moletom escuro que tinha um leve cheiro de lavanda, e ele o vestiu. Então ela abriu a cesta de novo e pegou uma bolsa de couro com uma tira grossa para colocar sobre o ombro. – Aqui, pegue isto também. Coloquei aí dentro algumas coisas que acho que você pode precisar. E, não, eu não quis dizer que eu deveria levá-lo de carro até lá. Entendo que isso é impossível e você pode facilmente ir a pé até a Morada da Noite. Estou preocupada com o seu perfume de sangue.

Vovó Redbird franziu o nariz quando disse as últimas palavras.

Kevin riu, colocou a tira da bolsa sobre o ombro e a abraçou.

– Você não precisa se preocupar com isso. Já pensei em tudo.

– Sei que isso é algo que você precisa fazer, mas me deixa muito angustiada pensar em você matando um novato ou vampiro vermelho.

– Vó, eu não vou matar ninguém.

– Então, você vai apenas cortar um vampiro vermelho para pegar o sangue de que precisa?

– Vó, eu tenho uma ideia melhor que essa. Vou visitar o necrotério da escola.

Vovó Redbird o abraçou forte.

– Oh, u-we-tsi, fico tão feliz em ouvir isso! – Então ambos riram como criancinhas por causa do ridículo de ficar feliz por alguém visitar um necrotério.

Finalmente, Kevin deu um beijo na bochecha dela.

– Prometa que não vai fazer nada que possa te machucar.

Ela segurou o rosto dele com as mãos e sorriu amorosamente, olhando nos olhos dele.

– Não posso prometer isso, mas prometo que vou ser sábia e pensar um pouco antes de agir.

– Acho que vou ter que me contentar com essa promessa.

– Acho que sim. – Vovó o beijou. – Vá com a proteção da Grande Deusa, u-we-tsi, e lembre-se sempre de como eu tenho orgulho de você.

Kevin odiou deixar sua avó para trás. Ele teve que se esforçar para não começar imediatamente a imaginar hordas de vampiros vermelhos insaciáveis atacando a sua fazenda para devorá-la por ajudar a Resistência.

Vovó está sob a proteção de Neferet.

Ninguém no Exército Vermelho ou Azul sabe que ela faz parte da Resistência.

Eu realmente preciso relaxar.

Pensamentos sobre a sua avó e a Resistência ficaram revirando sem parar na cabeça de Kevin enquanto ele cortava caminho pela Rua Vinte e Dois e seguia pela Avenida Yorktown em direção ao lado leste da Morada da Noite.

Era tarde – apenas algumas horas antes do amanhecer –, mas ele não estava preocupado. Visitar Zoey tinha dado a ele uma percepção maior da Morada da Noite, e ele sabia onde poderia se esconder em segurança do sol e de vampiros curiosos. Se os dois mundos fossem realmente mais parecidos do que diferentes. Se esta Morada da Noite não tiver sido construída como a de Zo...

Kevin balançou a cabeça. Não tem motivo para ficar pessimista a não ser que eu precise. Se tudo mais falhasse, ele sempre podia se fingir de bobo e ser apenas outro vampiro vermelho que tinha perdido o ônibus de antes do amanhecer para os túneis da estação. Com sorte, os vampiros azuis o deixariam ficar em um dos quartos escurecidos no dormitório e não iriam atirá-lo no meio da rua para fritar.

O muro de pedra que rodeava a Morada da Noite surgiu subitamente à sua direita, parecendo austero, intimidador e basicamente nada parecido com o da Morada da Noite iluminada e receptiva que a sua irmã comandava.

Por um instante, uma saudade profunda apertou, e Kevin desejou mais do que qualquer coisa que ele pudesse sair correndo para o Woodward Park e descobrir um jeito de reabrir o portal entre os mundos e deslizar de volta por ele – para nunca mais voltar.

– Mas e se eu realmente fizesse isso? O que iria acontecer com Vovó aqui? Ela nunca iria parar de se preocupar comigo e nunca iria sair do luto por perder Zo e eu – ele disse a si mesmo.

E agora havia Dragon, Anastasia e o restante da Resistência. Eles iriam achar que ele havia sido pego e morto, ou que tinha mentido para eles. Provavelmente iriam abandonar a caverna na montanha, o que seria realmente terrível. Não, Kevin não podia ir embora. Não importava o quanto ele quisesse isso.

Postes de rua feitos para parecer que eram do começo dos anos 1900, inclusive com as chamas tremulantes do gás, projetavam sombras em movimento pelo muro enorme. Kevin atravessou a Yorktown para se juntar a elas enquanto sua visão sobrenaturalmente aguçada começava a vasculhar a parede, procurando a pedra antiga e retangular em que estava inscrito 1926 – o ano em que o muro que circundava a escola havia sido terminado. Ele estalou as juntas dos dedos nervoso enquanto procurava, sem nem ter certeza de que ela estava mesmo ali. Zo tinha contado a ele sobre essa pedra – que era um tijolo específico no muro leste da escola que, na verdade, era parte de um sistema de alçapão acionado por molas. Esse tijolo no muro não parecia muito diferente dos outros, mas ela disse que do lado de fora ele estava marcado e que era através desse alçapão que novatos escapavam para fora do campus há quase um século.

Pelo menos era assim no mundo dela.

Aquele era o primeiro teste – a primeira vez em que ele iria ver o quanto os dois mundos eram parecidos em sua estrutura.

Quando os olhos dele avistaram a inscrição 1926, ele sentiu uma onda de alívio. O tijolo estava na altura dos seus olhos. Ele respirou fundo e o pressionou.

Houve um clique baixo quando algum mecanismo se abriu, e então o muro pareceu dar um suspiro ao aparecer um vão – com espaço apenas suficiente para alguém passar apertado por ele – naquela obra de alvenaria antes aparentemente perfeita.

Depois que entrou, ele empurrou o tijolo de novo e a porta se fechou, e então Kevin fez uma pausa. Ele se agachou contra o muro, desejando que a escuridão antes do amanhecer estivesse menos límpida e com mais névoa, chuva ou até gelo, mas, depois que o seu olhar fez uma varredura pelos jardins da escola, ele começou a relaxar. Aquela não era a Morada da Noite da sua irmã. Não havia garotos humanos se misturando aos novatos, azuis e vermelhos, brincando pelo jardim. Tudo o que Kevin viu foi um gramado meticulosamente bem-cuidado, alguns gatos furtivos e Guerreiros Filhos de Erebus de guarda em cada uma das portas do prédio principal.

Kevin definitivamente iria evitar o prédio principal.

Mantendo-se perto o bastante do muro para se misturar às sombras bruxuleantes da iluminação a gás, Kevin começou a correr. Ele seguiu o muro todo até passar pelo Templo de Nyx. Ao passar por ali, ele lançou um olhar nostálgico naquela direção. Ele nunca se esqueceria da sensação de amor e aceitação que experimentou com Zoey e os seus amigos dentro do Templo da Deusa. Esse lugar parecia quase exatamente igual a esse templo, embora não houvesse nem perto da mesma quantidade de velas brilhando através das janelas e ele não sentisse nem um pingo de aroma de baunilha ou lavanda.

É Neferet. Ela não está honrando a Deusa como Zo faz.

Esse pensamento deixou Kevin irritado e muito triste.

Logo depois do Templo de Nyx, o muro começou a fazer uma curva para a direita, onde ele corria paralelo à Rua Utica, e não muito depois disso Kevin avistou o prédio solitário que ele procurava, construído com a mesma pedra do muro e do resto da Morada da Noite, só que esse edifício era diferente.

Não que parecesse muito diferente. Ele era pequeno – realmente uma versão em miniatura do Templo de Nyx. Tinha um jardim de meditação estilo japonês adjacente que era emoldurado em três lados por um mausoléu, que guardava os corpos cinzentos dos novatos azuis que haviam rejeitado a Transformação.

– E apenas dos novatos azuis – Kevin murmurou para si mesmo. – Os novatos vermelhos são retirados do necrotério, queimados e então as suas cinzas são jogadas fora. Literalmente. Como lixo mesmo, eles são coletados com o resto do lixo da escola toda semana. Espero que hoje não tenha sido o dia da coleta.

Kevin se aproximou do mausoléu. Ele teria que atravessar o jardim de meditação para entrar no necrotério em si, mas ele não previa nenhum problema nessa hora. O necrotério não era exatamente um lugar efervescente da Morada da Noite. Na verdade, dificilmente alguém ia até lá, já que Neferet encorajava os novatos a “não ficar de luto por aqueles que se mostraram indignos”.

A areia do jardim de meditação continuou silenciosa sob os pés de Kevin e, apesar de a área parecer deserta, ele ficou satisfeito com a existência de biombos de madeira decorados que seccionavam o jardim, criando alcovas particulares de sombras.

Não muito longe, ele conseguiu ver a porta de madeira arqueada que era a entrada para o necrotério. Kevin estava quase deixando que a tensão saísse dos seus ombros quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento.

No meio do jardim de meditação havia uma bela estátua de Nyx. Aquela estátua em particular retratava Nyx como a deusa piedosa Kwan Yin. Feita de um onírico ônix branco, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, ela estava acesa por dentro e era a única luz no sereno jardim.

Na frente da estátua havia um banco de madeira simples, muito parecido com os bancos dentro de cada alcova de meditação, porém maior. No banco estava sentada uma figura solitária, com o rosto levantado, contemplando a Deusa.

Merda! Uma Sacerdotisa!

Kevin se enfiou rápida e silenciosamente na alcova de meditação mais próxima. Ele estava analisando a mulher sentada no banco, tentando ter uma visão mais clara do seu rosto e pensando que ela parecia familiar, quando outra pessoa entrou apressada no jardim, vindo da direção oposta, como se estivesse chegando do prédio principal da escola. Ela caminhou a passos largos até o banco, fazendo uma grande encenação ao baixar os olhos para a Sacerdotisa que estava sentada sozinha. Kevin se espremeu no canto da sua alcova e rezou para que nenhuma das duas o descobrisse ali.

– Aí está você! Um dos Guerreiros disse que viu você vindo nesta direção, mas eu tinha certeza de que ele estava errado. Eu inclusive falei isso para ele. Eu disse: “Por que a adorável Aphrodite iria querer passar um tempo no jardim do necrotério?”. Mas, como não consegui encontrar você em lugar nenhum e como você se recusa a atender o seu telefone, eu resolvi vir aqui procurar você.

Kevin sentiu um tranco de choque elétrico. Aquela era Aphrodite! E então a sua mente alcançou o seu choque quando ele reconheceu a voz da segunda Sacerdotisa.

O som do suspiro de Aphrodite atravessou a areia até Kevin.

– Olá, Neferet. Respondendo à sua pergunta, eu venho bastante aqui porque dificilmente alguém está por aqui. Gosto de ter tempo para pensar. Sozinha. É por isso que o meu telefone está desligado.

– Minha querida, isso seria aceitável se você fosse qualquer outra Sacerdotisa, mas você não é. Você é minha Profetisa.

– Não é como se eu estivesse tendo uma visão neste exato momento.

Kevin sorriu ao ouvir a voz sexy e sarcástica de Aphrodite. Ele raramente tinha visto Neferet tão de perto. Ele nunca tinha falado com ela, mas havia testemunhado como os outros vampiros a tratavam – com respeito e uma dose segura de medo. Aphrodite, não. Aphrodite falava com Neferet como se elas estivessem no mesmo patamar, e ela estivesse irritada por ter sido interrompida.

– Neste momento você não está, mas você teve uma visão mais cedo.

Aphrodite se levantou e encarou a Grande Sacerdotisa mais alta.

– Você colocou espiões para me observar?

– Espiões? Não. Só aqueles que são leais e que cumprem o seu papel de me informar sobre qualquer coisa que eu possa considerar importante, e o fato de a minha Profetisa ter uma visão e esconder isso de mim definitivamente é importante.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo, o qual capturou a luz suave da imagem da Deusa e brilhou como fios de ouro.

– Ah, que merda! Eu não estou escondendo nada. Eu achei seriamente que vir até o necrotério poderia ajudar. Não estou vendo nada além de morte nas minhas visões. A visão de hoje não foi diferente. Você quer saber o que eu vi? Novatos e vampiros azuis sendo massacrados em um campo por uma horda nojenta de vampiros vermelhos. Na verdade, a única coisa que eu posso dizer especificamente, além de quem estava massacrando quem, é que era um campo de trigo de inverno que tinha acabado de ser cortado. Tinha um cheiro muito bom, até o fedor dos vampiros vermelhos tomar conta de tudo. Nada mais estava muito claro. Apenas morte, sangue, massacre e pânico em um campo infestado de soldados vermelhos.

– Qual campo? Onde? – Neferet falou rispidamente.

– Eu não sei! Neferet, eu continuo tentando fazer você entender que eu sempre tenho as minhas visões do ponto de vista de alguém que está morrendo, normalmente de um jeito horrível. Por isso que é tão difícil compreendê-las. Portanto, como as minhas malditas visões são tão cheias de morte, faz sentido que eu possa encontrar uma resposta perto do necrotério. Tipo, você acha que eu quero dar uma voltinha aqui? Cai na real. Este lugar não é o meu estilo.

– Oh, então você quer a real? – Neferet disse com voz baixa. Kevin sentiu a sua alma estremecer quando Neferet deslizou para mais perto de Aphrodite, fazendo a jovem vampira dar um passo para trás na areia do jardim. – O que é real é que há um movimento de Resistência do meu próprio povo lutando contra mim. O que é real é que a cada dia novatos azuis, vampiros azuis e até humanos fracos e repugnantes desertam nosso exército. Eles vão embora! Como se eu não soubesse o que é melhor para eles! Como se eu não fosse a Grande Sacerdotisa!

– Bom, você realmente não é a Grande Sacerdotisa de nenhum humano – Aphrodite respondeu.

Rápida como uma víbora, Neferet atacou Aphrodite. O tapa ecoou por aquele espaço sereno, e Kevin se encolheu em um reflexo de empatia.

– Nunca diga o que eu sou ou deixo de ser! Tudo o que eu quero é que você me diga como alcançar o fim da Resistência. Se você não consegue fazer isso, você tem menos utilidade para mim do que um vampiro vermelho raivoso e recém-Transformado. Pelo menos eles lutam por mim. Refresque a minha memória, minha querida, o que é que você faz por mim?

– Eu sou sua Profetisa.

– Mesmo? As suas visões se tornaram nada mais do que disparates confusos e sem sentido.

– Mas eu só posso ver o que Nyx permite que eu...

– Talvez você conseguisse trabalhar melhor se rastejasse menos diante de Nyx e passasse mais tempo servindo a sua Grande Sacerdotisa! – Neferet a interrompeu.

– Neferet, eu sou uma Profetisa de Nyx. O meu poder vem da Deusa. Se eu não rastejar, como você diz, então eu não tenho nenhuma visão.

– Então talvez você deva procurar poder em outro lugar, minha querida. Ou você prefere que eu a envie junto com o Exército Vermelho no próximo confronto deles contra nossos inimigos? Melhor ainda, alguns generais meus sugeriram que eu deveria ser mais presente para meus soldados vermelhos. – Neferet fez uma pausa e Kevin viu que ela estremeceu de asco. – Mas eu simplesmente não suporto o cheiro e a burrice deles. Eles realmente não são nada além de animais raivosos. Talvez você seja a minha resposta para o pedido dos generais. Talvez você deva transferir as suas coisas para a estação e virar a Profetisa deles. Você pode até ir para a guerra com eles. Ver a morte de verdade em vez de suas visões complicadas pode ser uma experiência de iluminação para você! Você pode se acostumar com isso e começar a ser capaz de pensar um pouco durante as suas visões.

Kevin ficou estarrecido com as palavras de Neferet. A estação e os túneis eram pouco mais do que celas para o Exército Vermelho e os novatos vermelhos recém-Marcados. Tudo fedia lá embaixo – até Kevin tinha se sentido enojado. E era imundo – realmente asqueroso, com restos de humanos em decomposição espalhados como bonecas quebradas gigantes, que o exército comia. Os novatos e vampiros vermelhos que habitavam aquele lugar não eram muito distantes de animais. Kevin odiava só imaginar o que ser forçada a viver com eles faria com Aphrodite.

– Eu vou para onde você mandar, mas prometo que estar cercada pelo Exército Vermelho não vai ajudar as minhas visões em nada – Aphrodite tentou soar forte, como se ela particularmente não se importasse para onde Neferet iria enviá-la, mas Kevin conseguiu escutar o pânico dela, levemente encoberto pela indiferença.

– Você tem que descobrir o que vai ajudar as suas visões! Se você não começar a me dar alguma informação que eu possa usar, vai perder os seus aposentos suntuosos, o seu serviço de quarto e o seu abastecimento inesgotável de champanhe e de vampiros azuis viris com quem você vadia o dia todo. Tudo isso – Neferet fez um gesto nervoso que abarcou o jardim sereno, o terreno da escola e o pequeno e organizado necrotério – será substituído por túneis úmidos, fétidos e morte, já que eu estou começando a acreditar que os seus dons são relevantes apenas para os mortos. Então, da próxima vez que nos falarmos, espero que você consiga lembrar de mais detalhes a respeito de sua última visão. Ou pode ir arrumando a sua mala Louis Vuitton e se preparando para a mudança.

Com um rodopio do seu vestido longo de seda, Neferet deu as costas a Aphrodite e saiu com passadas firmes, deixando a sua Profetisa em pé sozinha nas areias do jardim de meditação iluminadas pela lua.

Kevin permaneceu ali, observando Aphrodite silenciosamente. Assim que Neferet saiu, os ombros da jovem Profetisa desabaram. Ela esfregou a lateral do rosto onde havia sido atingida, e Kevin teve quase certeza de que ouviu ela segurar um soluço.

E então ela fez algo que Kevin não esperava de jeito nenhum. Aphrodite não foi embora. Ela não voltou para o aconchego e a opulência dos seus aposentos no prédio principal da Morada da Noite. Em vez disso, ela se virou e por um instante ele pensou que ela estava vindo na direção da sua alcova. A mente de Kevin zuniu, freneticamente testando e descartando mentiras que ele poderia contar, desculpas que ele poderia dar por estar ali.

Ela parou e desabou no banco em que estava sentada antes de Neferet a interromper. Com um suspiro que soou como se tivesse saído das profundezas da sua alma, ela tirou do pé direito um sapato de salto brilhante que parecia muito desconfortável e começou a fazer pequenos desenhos na areia com o que ele podia ver claramente que era o seu dedão, a unha pintada de rosa.

– Nyx, ela é tão horrível! – Aphrodite disse para a estátua. – Talvez eu deva dizer para Neferet que ela está ficando velha. Ela não está, claro, aquela vaca. Mas, se eu começar a perguntar se ela está dormindo direito e mencionar pés de galinha e peitos caídos, sabe, no geral... não sobre ela especificamente, ela vai ficar tão paranoica que pode ser que ela foque mais no espelho dela do que em mim – ela soltou outro longo suspiro derrotado. – Não quero contar para ela tudo que eu vejo. Eu... eu não suporto saber que sou a causa de mais mortes. Lenobia, Travis e todos aqueles cavalos... – A voz de Aphrodite se perdeu em um soluço. Então ela enxugou os olhos com raiva e levantou a cabeça para a Deusa. – Nyx, ela é a sua Grande Sacerdotisa, mas eu simplesmente não entendo. Ela é terrível. Eu a odeio mais do que odeio aquelas lojas de departamento baratas e horríveis onde tudo está sempre em liquidação e os caipiras que compram lá precisam ficar remexendo em araras e mais araras cheias de porcarias bregas sem o benefício de provadores com lustres de cristal e taças de champanhe.

Ela estremeceu delicadamente.

Pego completamente desprevenido pela comparação muito bizarra e muito no estilo de Aphrodite, Kevin riu alto.

A atitude de Aphrodite mudou instantaneamente. A sua espinha ficou ereta. Ela atirou o cabelo para trás e franziu os olhos azuis que faziam uma varredura no jardim de meditação.

– Quem é que está aí?

Kevin congelou. Então, lembrando do moletom que Vovó tinha lhe dado, ele puxou o capuz sobre a cabeça o máximo que podia – esperando fortemente que o capuz e as sombras fossem o bastante para encobrir a sua tatuagem vermelha.

Aphrodite levantou, colocando o seu pé arqueado de volta no sapato brilhante. Ela deu alguns passos no jardim de meditação, na direção exata da alcova de Kevin.

– Eu já perguntei, quem está aí?

– De-desculpe. Eu não queria perturbar você – ele gaguejou, pensando que era mais inteligente admitir a sua presença do que ser descoberto fugindo nas sombras.

Ela marchou até a alcova de meditação e parou diante dele, com as mãos no quadril.

– O que é? Que merda você quer de mim? Saber o futuro? Conhecer a Deusa? Me conhecer? – ela zombou dele, e o seu rosto bonito virou algo maldoso e cheio de ódio. – Bom, você está sem sorte. Não posso ajudar você com nenhuma dessas coisas.

– E-eu não estou aqui porque quero alguma coisa de você! – Kevin falou honestamente, sem pensar. A sua mente estava acelerando como um carrinho de bate-bate no Festival Rooster Days,4 chocando-se contra ideias e quicando quando ele as rejeitava.

– Ah, é claro que não. Todo mundo quer alguma coisa de mim – Aphrodite afirmou, e Kevin viu que um lampejo de emoção bruta, com amargura e repleta de dor, cruzou o rosto dela. – Quanto tempo faz que você está aí?

Ele abriu a boca para tentar responder, mas ela não deu chance para ele começar.

– Você trabalha pra ela? Ela colocou você aqui para me espionar? Se foi isso, escute aqui e escute bem: eu não ligo se você vai contar para ela que porra eu falei. Eu vou mentir. Vou dizer a ela que estava sentada rezando para Nyx e que você me interrompeu bem na hora em que eu estava tendo uma resposta da Deusa. Ela vai acreditar em mim porque, não importa o quanto ela goste de transar com homens, Neferet, na verdade, não gosta de homens. E ela nunca, jamais confia neles. Então, seja lá quem você for, se for falar de mim para Neferet, ela vai acabar acreditando em mim e odiando você, porque ela precisa de poucos pretextos para odiar qualquer homem.

Kevin ficou atordoado com a profundidade da crueldade na voz dela. A Profetisa linda e triste, que apenas alguns segundos atrás estava sentada melancolicamente em um banco conversando com a sua Deusa, tinha se transformado em alguém detestável.

Devagar, de maneira bem clara, Kevin disse:

– Ah, eu acredito. Você obviamente sabe do que está falando. Vocês se parecem muito.

Aphrodite deu um solavanco para trás, como se ele tivesse dado outro tapa na sua bochecha.

– Quem é você?

Kevin se pressionou contra a alcova, desejando que ele pudesse se tornar uma sombra.

– Eu não sou ninguém. Neferet não me mandou até aqui. Eu não tinha ideia de que ela estaria aqui. Eu não tinha ideia de que você estaria aqui.

– Então que diabos você quer? – Aphrodite perguntou de novo.

Ela parecia tão fria, tão diferente da sua Aphrodite, que a irritação de Kevin começou a cozinhar em fogo brando junto com o seu medo. Se ela gritasse, um Guerreiro Filho de Erebus certamente a ouviria. Ele seria arrastado para fora dos jardins por perturbar a Profetisa de Neferet e se tornaria o centro das atenções – sem nem ter seu perfume fedido de sangue.

Ele seria descoberto como alguém diferente, e isso seria péssimo em vários níveis. Então ele endureceu a sua voz e abasteceu a sua irritação com o seu medo.

– Ei, eu já disse. Não quero nada de você. Não queria nem estar aqui... neste lugar horrível que tem cheiro de morte neste maldito mundo horrível!

Ele pôde ver que as suas palavras a abalaram. Houve um longo silêncio enquanto ela ficou encarando a sombra sentada que era Kevin. Quando ela falou, a sua voz tinha perdido aquela ponta de amargura, e a sua pergunta simples o surpreendeu.

– Você perdeu alguém que amava?

Aquela pergunta penetrou na mente dele, trazendo com ela imagens de um mundo perdido, uma vida deixada para trás. Zoey, rindo com a sua Horda Nerd. Vovó Redbird, dando a ele uma bolsa medicinal e tentando não chorar ao dizer adeus. A Aphrodite do outro mundo, sorrindo para ele enquanto os seus olhos faiscavam como pedras preciosas com humor e aquele seu tipo especial e sarcástico de inteligência. Damien e Jack, de mãos dadas e parecendo tão, mas tão felizes e apaixonados, e novatos vermelhos e azuis divertindo-se pacificamente na neve, rodeados por gatos e amor. Sempre o amor.

– Sim – ele perdeu a voz e teve que limpar a garganta antes de continuar. – Sim. Eu perdi o meu mundo inteiro.

O rosto dela mudou. Ele se suavizou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto impecável, e Kevin pensou que ele nunca tinha visto ninguém mais triste nem mais bonita.

– É, eu também. Eu me perdi. Sinto a mesma coisa.

Então ela se virou e saiu do jardim de meditação sem nem mais uma palavra ou olhar na direção dele.

4 O festival mais antigo de Oklahoma. (N.T.)


13

Outro Kevin

Kevin tomou uma decisão rapidamente. Ele poderia ir embora – imediatamente. Poderia fugir, correr para a Utica Square, ligar para Vovó e voltar para a montanha. Ou ele podia levantar a bunda daquele banco no qual estava praticamente colado e entrar no necrotério para coletar um pouco de sangue fedido de vampiro vermelho para camuflar o seu cheiro e continuar com o trabalho que ele havia se disposto a fazer.

Ele sabia o que Zoey faria.

Kevin se mexeu o mais rápido e o mais silenciosamente possível. O seu olhar vasculhou a área enquanto os seus ouvidos se esforçaram para escutar até o menor dos sons de alguém se aproximando enquanto ele atravessava o jardim de meditação em direção à porta do necrotério. Quando ele chegou lá, não hesitou. Kevin abriu a porta e entrou.

Ele já tinha estado no necrotério apenas uma vez. Foi com o General Dominick logo antes de ele ser promovido a tenente. Eles haviam tido uma briga com um grupo de humanos que haviam formado uma milícia a leste de Broken Arrow, no meio de algumas terras do estado que já haviam sido um campo de escoteiros no passado, mas que agora era um lugar desleixado, com trilhas abandonadas e cobertas de vegetação. Os humanos tinham se recusado a desistir. Neferet enviou o Exército Vermelho.

Foi um massacre brutal. Todos os humanos foram mortos. O Exército Vermelho perdeu uma dúzia de soldados. O general havia pedido por voluntários para trazer os corpos dos vampiros vermelhos que tombaram de volta para a Morada da Noite, e Kevin imediatamente se candidatou, pensando que dirigir um caminhão militar cheio de vampiros mortos empilhados era muito melhor do que ficar lá e se juntar ao resto do exército enquanto eles despedaçavam os humanos e os devoravam. O General Dominick havia ficado impressionado com a habilidade de Kevin de liderar essa missão e imediatamente o promoveu de cargo.

Assim, Kevin sabia exatamente aonde estava indo – embora não estivesse ansioso para chegar lá.

Ele seguiu pelo corredor da entrada até o final, ignorando as portas que estavam enfileiradas à direita e à esquerda. Elas davam para salas cheias de vampiros azuis que haviam morrido durante as batalhas e de novatos azuis que rejeitaram a Transformação. Não havia nenhum vampiro vermelho em nenhuma dessas salas, já que Neferet fazia questão de manter os seus Exércitos Vermelho e Azul separados, até mesmo na morte.

Não havia nenhuma sinalização em nenhuma dessas portas, exceto na última delas, no final do corredor. Essa porta estava marcada claramente com um grande X vermelho. Kevin não hesitou. Ele abriu a porta e entrou silenciosamente no quarto escuro.

O cheiro foi a primeira coisa que o atingiu. A sala era fria, mantida daquela forma para que os corpos não entrassem em decomposição antes que pudessem ser queimados e então descartados como lixo. Não havia quase nada na sala, exceto mesas e armários de metal alinhados contra uma parede. Ele rapidamente contou dez mesas. Apenas uma delas estava ocupada. Desviando o olhar dessa mesa, Kevin foi rapidamente até os armários e começou a vasculhar os suprimentos médicos.

Levou pouco tempo para encontrar um vidro com tampa.

Kevin pegou o vidro e foi até a mesa ocupada. Um corpo jazia ali, coberto por um lençol ensanguentado.

É só fazer isso. Só faça logo e acabe com o sofrimento.

Kevin levantou o lençol do corpo e suspirou com tristeza.

– Caramba, cara, isso deve ter doído.

A causa da morte do jovem vampiro vermelho era óbvia. Algo tinha esmagado a sua cabeça. Todo o lado direito da cabeça, da maçã do rosto para cima, estava um horror. Kevin queria desviar os olhos. Ele não queria olhar para o rosto daquele cara, mas não conseguia evitar.

O vampiro morto era tão jovem! O seu rosto, congelado pela morte, estava medonho do lado ferido, mas no restante dele parecia que ele mal tinha dezoito anos.

– Você não deve ter se Transformado há muito tempo – ele falou em voz baixa para o cadáver. – Eu também não. Eu me lembro tão bem de me Transformar. Lembro de como fiquei com medo, sabendo que a minha humanidade estava escapando de mim. Eu ainda não sei o que é pior. Perder totalmente a sua humanidade e virar uma máquina de comer, ou manter a humanidade e compreender muito bem a sua monstruosidade. – Kevin colocou a mão no ombro frio e sem vida do garoto. – Sinto muito. Vou tentar fazer o melhor que posso para evitar que outras pessoas virem monstros, mas eu preciso da sua ajuda. Isso não vai ser agradável, e fico realmente feliz que você não pode sentir nada, mas assim mesmo eu sinto muito por ter que fazer isso com você. Ok, bom, vou acabar logo com isso e depois eu cubro você de novo.

Primeiro, Kevin levantou o braço do vampiro morto, virando-o para ter acesso ao lado de baixo do antebraço.

– De novo, cara, desculpe.

Então, ele pressionou a unha do seu dedo indicador com força contra a pele flácida, cortando devagar a veia principal do pulso até o cotovelo. A pele se partiu facilmente sob a unha sobrenaturalmente afiada de Kevin, e ele trabalhou rápido, apertando e pressionando para fazer o sangue estagnado e coagulado passar para dentro do vidro.

O cheiro era terrível – ainda pior do que o de vampiros vermelhos vivos, que já era péssimo. Kevin continuou mesmo assim, passando para o outro braço e depois finalmente rolando o corpo de lado para expor mais sangue estagnado. Era um trabalho demorado. O sangue era pegajoso e estava coagulado, e era totalmente repugnante ordenhar sangue do corpo morto como se fosse uma vaca. Finalmente, Kevin se viu tendo que enfiar os dedos dentro dos cortes que ele fez para tirar aquela coisa viscosa para fora. Com o vidro cheio, ele finalmente colocou a tampa antes de ir até a pia.

Cuidadosamente, Kevin levantou o moletom e a camiseta que estava usando por baixo. Com uma careta de nojo, ele esfregou uma linha de gosma sangrenta com cheiro podre na barriga, logo acima da cintura da sua calça jeans. Ele também puxou as mangas para cima, esfregando mais sangue nas dobras dos seus cotovelos. Satisfeito com o trabalho, pois agora ele passaria em um teste de cheiro de vampiro vermelho, lavou as mãos e o vidro e então pegou um monte de papel toalha em um dispenser de metal posicionado sobre a pia. Kevin molhou metade dos papéis toalha e então foi de novo até o corpo.

– Nunca mais vou comer nada que pareça geleia de morango. Jamais – Kevin disse para o cadáver. – Não vou deixar você assim. Não que alguém fosse notar. Eles vão levar você na maca de rodinhas e colocá-lo dentro do crematório sem nem olhar para você. Mas assim mesmo... não é certo deixar você assim.

Kevin limpou o sangue do corpo, colocando as roupas de volta no lugar e até secando a mesa. Quando o vampiro morto pareceu quase arrumado, Kevin colocou a mão de novo no ombro do garoto morto.

– Obrigado. O seu sangue vai fazer com que eu não seja pego... para que eles não saibam que eu sou diferente. Eu vou mudar as coisas por aqui. Dou a minha palavra. Vou ser parte de um milagre. Sei que isso pode acontecer porque eu já presenciei isso antes. Eu já senti. E agora eu vivo isso. Eu vou garantir que vampiros vermelhos não sejam mais monstros. Eu prometo. – Kevin baixou a cabeça e sussurrou para a sua Deusa: – Obrigado, Nyx. Por favor, receba este garoto no seu bosque. Ele não pediu por esse destino. Não importa quem ele era quando humano, bom ou mau, ele não merecia isso.

Então, devagar, Kevin puxou o lençol ensanguentado sobre o corpo do jovem vampiro vermelho.

Kevin enfiou o vidro dentro do bolso interno da mochila – bem longe dos cookies deliciosos da sua avó. Então ele colocou a tira da mochila sobre o ombro de novo e foi até a porta, abrindo-a apenas o suficiente para espiar o corredor e dando um suspiro de alívio ao ver que estava deserto.

Sem perder nem mais um segundo, Kevin se apressou pelo corredor e saiu pela porta. Ele contornou discretamente o lado do necrotério que dava para o resto dos jardins da escola e analisou a área. Uma sensação familiar de apreensão terrível subiu pela sua espinha quando ele percebeu que, em vez de um céu preto, o mundo ao redor dele tinha começado a se alterar para cinza e rosa.

O amanhecer! Kevin quis dar um chute nele próprio. É claro que eu me sinto apreensivo. Em quinze minutos, o sol vai se levantar e fritar a minha bunda!

Ele não tinha tempo a perder. Puxando o capuz para cobrir a maior parte do seu rosto, Kevin caminhou rapidamente com confiança pelo jardim da escola.

Ele não viu nenhum novato, e os únicos vampiros que ele notou eram Guerreiros Filhos de Erebus pegando o turno do dia e aliviando os vigias da noite. Kevin atravessou o campus até a entrada dos fundos do Ginásio e do centro equestre abandonado. Ele manteve o rosto virado para o outro lado quando passou por dois Guerreiros que estavam discutindo as instruções para os oficiais que Neferet havia anunciado, de que eles deveriam comparecer ao auditório às 2000 horas5 do dia seguinte.

Ele teve que dar tudo de si para não socar o ar e gritar “Ótimo!”. Um informe para os oficiais era exatamente tudo que ele precisava – e o que Dragon precisava ouvir!

Quando Kevin entrou no Ginásio, ele seguiu pelo corredor, virando algumas vezes até chegar a uma porta comum, que ele esperava desesperadamente que desse para o porão, assim como era no mundo de Zo. Ele tentou abrir a maçaneta da porta, e ela estava trancada!

– Droga! – Kevin sussurrou a palavra. – Agora o que é que eu vou fazer?

Se alguém o visse durante as horas de luz do dia, ele seria pego. Vampiros vermelhos nunca ficavam na Morada da Noite depois do amanhecer. Ele não podia nem fingir ignorância e dizer que estava perdido. Ninguém acreditaria nele. Desde o momento em que um novato era Marcado como vermelho e trazido para a Morada da Noite, era incutido dentro dele que ele tinha que estar nos túneis antes do nascer do sol. A única exceção era se o vampiro vermelho estivesse em uma missão do Exército Vermelho.

A mente de Kevin acelerou e rejeitou uma ideia após a outra. Ele simplesmente não tinha mais tempo. Ele precisava se esconder no porão.

Ele precisava de ajuda.

– Droga, se pelo menos eu conseguisse passar por aquele buraco da fechadura como o ar... – Kevin murmurou para si mesmo enquanto estalava os dedos. Ele queria ter conhecido esta Morada da Noite como ele conhecia os túneis, assim saberia onde se esconder e ficar seguro até...

Ele teve uma ideia! Ele não tinha tempo para pensar se estava cometendo um erro. Ele não tinha tempo para pensar melhor. Ele só teve tempo para fechar os olhos e respirar profundamente algumas vezes para se acalmar. Então ele abriu os olhos, encarou o leste e fez a invocação.

– Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder no meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim!

A resposta veio rápido e de forma desconcertante. Diante dele, várias fadas brilhantes parecidas com vaga-lumes brotaram de repente, pairando na altura dos seus olhos, trazendo com elas a sensação de alguma coisa rastejando na pele que Kevin tinha todas as vezes que invocava Magia Antiga.

– Garoto Redbird! Você nos chamou de novo! E nós viemos! Nós viemos! – Elas ficaram esvoaçando de um lado para o outro, mudando de lugar enquanto os seus corpinhos se alteravam de insetos para mulheres aladas e depois para insetos de novo.

– Muito obrigado mesmo! Ok, eu só preciso de uma coisa, mas tem que ser muito rápido. – Ele apontou para o buraco da fechadura na porta. – Vocês podem entrar ali e destrancar essa porta? Eu tenho que entrar aí imediatamente.

– Nós podemos fazer isso – disse uma fada esvoaçante.

– Mas qual é o pagamento? Qual é o pagamento? – gorjeou a outra.

Ele abriu a boca para dizer às fadas que iria pagar com mais sangue, mas um espírito risonho, que mostrava muitos dentes afiados quando ria, interrompeu Kevin antes que ele conseguisse falar.

– Nada de sangue desta vez! Nós queremos algo especial!

– Sim – a primeira fada concordou. – Especial!

Kevin teve vontade de arrancar os cabelos de frustração e se perguntou brevemente se os espíritos considerariam o seu cabelo um pagamento especial. Felizmente, ele teve outra ideia. Ele enfiou a mão dentro da bolsa de sua avó e pegou um cheiroso cookie de chocolate e lavanda feito em casa. Erguendo-o para que vissem, ele sorriu para os espíritos.

– Bom, é impossível alguma coisa ser mais especial do que este cookie. Ele foi feito pela minha avó, a Mulher Sábia que estava na montanha comigo. Vocês sabem, vocês comeram uma das bolsas medicinais dela.

– Ooooooh! – Os espíritos ficaram ainda mais brilhantes enquanto pairavam no ar ao redor do cookie. Então, juntas, para que as suas vozes ecoassem misteriosamente nas paredes de pedra ao redor dele, as fadas falaram de modo ritmado:

“Um pagamento especial nós vemos sim

Oferecido por ti e aceito por mim.

O nosso acordo está selado – que assim seja!”

A revoada de espíritos do ar de Magia Antiga atacou o cookie como uma nuvem de gafanhotos. Kevin deu um gritinho e o soltou enquanto eles devoravam cada migalha. Então, sem nenhuma hesitação, os espíritos incandescentes mergulharam para baixo, passando através do buraco da fechadura, por baixo da porta e pelo vão do batente.

Kevin ficou parado ali, perguntando-se o que iria acontecer em seguida, quando ele ouviu o trinco girar. Ele segurou a maçaneta e empurrou a porta. Ela se abriu facilmente. Ele a fechou atrás de si e, quando se virou para seguir seu caminho descendo a escada íngreme até o porão, um único espírito apareceu, flutuando perto de sua cabeça.

– Obrigado – Kevin agradeceu. – Vocês me ajudaram muito.

– Nós gostamos do seu chamado, Garoto Redbird. Nós gostamos do seu pagamento. Chame quando precisar de nós, mas não se esqueça de que nós gostamos de pagamento especial... pagamento especial... – enquanto o espírito falava, a sua aparência continuou a se alterar de um grande vaga-lume para uma bela mulher alada e então para algo com mais braços e pernas do que ela deveria ter e uma boca que parecia crescer sem parar, até que o rosto dela pareceu se dividir no meio.

E então, em um lampejo de luz, o espírito desapareceu, deixando Kevin com uma terrível sensação de apreensão.


Zoey

– Z? Você está aí? – Stark me chamou ao entrar nos nossos aposentos. – Recebi sua mensagem de texto para vir encontrar você.

– Você chegou cedo! – eu gritei do banheiro. – Não se mexa!

– Ahn?

– Eu disse “não se mexa”! Fique aí na porta. Feche os olhos!

– É pra eu fechar os olhos?

Eu escutei o tom confuso na voz dele, de quem estava achando graça, mas eu realmente não queria que ele estragasse a minha surpresa.

– Se você não quer fechar os olhos, então vire de costas.

– Ok! Ok! Estou fechando os olhos. Ahn, Z. O que você está fazendo?

O que eu estava fazendo? Eu estava tentando compensar o meu Guerreiro por deixá-lo totalmente preocupado e ser romântica ao mesmo tempo.

– Aguente aí. Você vai ver em um segundo!

– Eu achei que você nem voltaria para cá até depois do nascer do sol. Você não estava na estação com Damien e Kramisha?

– Sim! – eu gritei da porta do banheiro. – Bom, fiquei lá um tempo, mas Aphrodite decidiu palpitar na decoração do restaurante, e eu tive que ir embora.

– Ficaram se bicando muito?

– Pois é – eu disse. – Ok, estou saindo. Mantenha os olhos fechados até eu falar pra você abrir, ok?

– Como quiser, minha Rainha.

Eu senti o sorriso na voz dele, o que me fez sorrir de volta, e então dei uma última conferida em mim mesma no espelho. Eu não usava muita maquiagem no geral. Na verdade, eu tinha uma questão em relação à maquiagem. Eu detestava que a sociedade dissesse que tínhamos que usar isso para “parecer o nosso melhor”. Parecer o nosso melhor? Com um monte de porcaria espalhada por todo o rosto, escondendo tudo o que realmente somos? Hum, não. Eu concordo com a fabulosa Alicia Keys – eu não quero cobrir o meu rosto, nem a minha mente, nem a minha alma, não quero cobrir nada. Então, eu ajeitei o meu cabelo e sorri para a minha cara recém-lavada. Pronta!

Coloquei a cabeça para fora do banheiro para dar uma espiada. Nada de Stark. Descalça, entrei pisando de leve no nosso quarto, endireitando a toalha de piquenique que eu havia estendido no chão e afofando as almofadas que eu tinha disposto ali perfeitamente para nos sentarmos.

– Z?

– Fique de olhos fechados! – Atravessei rapidamente o quarto até a sala de estar e sorri quando vi o meu Guerreiro ainda parado na frente da porta com os olhos fechados. Fui até ele e peguei a sua mão.

– Posso abrir os olhos agora?

– Não, só quando eu disser que pode, mas me siga.

– Eu vou trombar com alguma coisa.

– Não seja um crianção. Eu guio você. – Eu o conduzi devagar ao redor da mesa de café e de outros obstáculos, finalmente colocando-o ao lado da toalha de piquenique. – Ok, aguente aí só mais um segundo. – Eu o deixei parado ali e fui rapidamente até o outro lado da toalha, apertando o controle remoto da grande TV que estava pendurada na parede, conferindo para ter certeza de que estava sem som. Então eu ajeitei nervosamente meu cabelo de novo antes de dar a autorização. – Ok, pode abrir os olhos agora!

Ele abriu, e os seus lábios se curvaram naquele meio-sorriso sexy que eu amava tanto.

– Z! Você está praticamente nua!

Eu senti minhas bochechas ficando vermelhas, mas abri um sorriso para ele.

– Não, estou com uma das suas camisetas.

– Sim, minha camiseta velha e esburacada que é totalmente transparente. Caramba, Z! Em mim ela não fica assim!

– Hihi! – eu ri. – Então, você está com fome?

– Só se for fome de você!

– Não, seu tonto. Bom, sim, seu tonto, mas que tal a gente comer algo de verdade primeiro? – Apontei para o piquenique que eu havia preparado.

Com relutância, ele desviou o olhar do meu corpo para conferir o que estava sobre a toalha.

– Z, isso são nachos? Com tudo para colocar neles?

– Aham! Eu inclusive coloquei pimenta-jalapeño. Um monte, porque, apesar de eu achar que elas são as pimentas do inferno enviadas para queimar as bocas até você pedir arrego, sei que você gosta delas.

Sentei em uma das almofadas e dei tapinhas na outra do meu lado, indicando para Stark se juntar a mim.

– Nachos são a minha comida preferida – ele falou ao se sentar.

– Eu sei.

Ele ergueu um copo gelado, cheirou e então deu um gole grande antes de exclamar:

– E Dr. Pepper! Você trouxe Dr. Pepper para mim!

– Eu sei o quanto você adora isso, apesar de eu discordar totalmente de você porque isso é...

– Uma abominação de refrigerante de cola – ele terminou a frase por mim.

– Sim, é exatamente isso.

Ele estendeu a mão para pegar um nacho e o seu olhar se levantou para a tela da TV.

– Caramba, Z! Game of Thrones? Você vai mesmo assistir a um episódio comigo?

– Vou assistir a quantos episódios você quiser.

– Mas você odeia Game of Thrones.

– Não, eu não odeio. Eu não assisto porque Cersei me lembra demais a loucura de Neferet, mas não tem que ser tudo sempre do meu jeito, então podemos assistir.

Stark me encarou.

– O que você fez com a minha Zoey?

Eu dei um empurrãozinho no ombro dele com o meu.

– Ah, para com isso.

– Sério, eu estou encrencado?

– Claro que não!

– Ah, droga. – Ele soltou o nacho e virou meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. – O que você fez?

Eu suspirei.

– Eu tenho agido como uma idiota egoísta desde que Kevin foi embora, e sinto muito. Sinto muito mesmo, Stark. Sei que você anda preocupado, e esta é minha maneira de pedir desculpas.

– Ei, é normal que você tenha andado preocupada, principalmente sabendo que Kev está usando Magia Antiga.

– Normal, sim, mas é muito imaturo da minha parte estar tão distraída com o fato de você estar estressado por minha causa e as minhas Grandes Sacerdotisas terem que tocar o barco enquanto estou desse jeito. Eu vou fazer melhor do que isso, prometo.

Stark tocou o meu rosto com delicadeza.

– Você sempre faz o melhor, Z. Eu sabia que você ia dar a volta por cima.

– Você entende o quanto eu te amo? – falei sem pensar.

– Sim, mas é bom ouvir você dizer isso.

Ele devorou um nacho que estava coberto com queijo pastoso e jalapeños e depois lambeu o queijo extra que ficou nos seus dedos enquanto engolia.

– Você é tão bom. Você sempre está aqui por mim, mas também me dá espaço para lidar com as minhas coisas sozinha. Isso significa muito para mim, principalmente porque eu sei que você pode sentir o quanto estou distraída.

– Não acho que você está distraída nesse momento. – Ele se inclinou e tocou os meus lábios com os seus.

Eu sorri.

– Não, você tem cem por cento da minha atenção agora. E eu sei que o sol vai nascer logo, mas, se você conseguir ficar acordado um pouco, prometo que, enquanto você estiver consciente, vai ter cem por cento de mim.

Eu coloquei os braços em volta dos seus ombros largos e o puxei para mim. Os nossos lábios se encontraram de novo, e o beijo se aprofundou. Eu amei o gosto dele, uma mistura do chiclete de hortelã que estava mascando, da doçura nojenta do Dr. Pepper – que de repente não era nojenta de modo algum – e do salgado dos nachos.

Enquanto ele me pressionava contra as almofadas, os seus lábios desceram pelo meu pescoço, dando beijos e mordidinhas na minha pele, o que me fez gemer e me deixou arrepiada.

– Que tal se a gente não dormir? – A voz dele era baixa, e o seu hálito era quente e sexy contra a minha pele. – Que tal eu beijar cada centímetro de você, depois a gente come nachos, assiste a Game of Thrones, e então eu beijo cada centímetro de você de novo?

Ele colocou a língua para fora quando começou a encontrar os buracos na sua velha camiseta, beijando os meus seios através deles.

– Mas você tem que dar aula amanhã – eu soei sem fôlego, como se tivesse acabado de subir correndo vários lances de escada.

– Amanhã é aula de esgrima, não de arco. Damien pode me substituir. Ele é o melhor espadachim mesmo.

Devagar, ele começou a tirar a camiseta por sobre a minha cabeça.

– Caramba, Z! Você realmente não está usando nada exceto a minha camiseta.

– Surpresa! – eu exclamei.

E então o meu peito começou a esquentar e o meu estômago se contraiu.

– Zoey? – Stark falou abruptamente, puxando a minha camiseta para baixo e me encarando. – Está acontecendo de novo, não está?

Em meio a lágrimas de medo e frustração, eu assenti.

– Kevin está usando Magia Antiga de novo – eu falei cheia de tristeza. – E ele não tem a menor ideia de como está se metendo em encrenca.

– Shhh, eu sei, eu sei. Venha cá, minha Rainha.

Stark me puxou para os seus braços e me abraçou enquanto aquele calor terrivelmente familiar diminuía, deixando apenas um enjoo no meu estômago e a clareza sobre o que eu tinha que fazer. Agora. Eu precisava parar de pensar sobre isso. Parar de ficar pesando as consequências. E simplesmente... fazer.

Ah. Inferno.

5 No horário militar, 2000 horas equivale a 20 horas ou 8h00 PM. (N.T.)


14

Outro Kevin

Kevin despertou de repente e, nos seus primeiros minutos de consciência, ele achou que estava de volta aos túneis embaixo da estação – antes mesmo de ter se deslocado para o mundo de Zoey, antes do retorno da sua humanidade. Um gosto amargo de desespero inundou a sua boca com náusea ao pensar em tentar controlar a fome e manter a sanidade.

Então ele se sentou, bateu a cabeça em um dos engradados de madeira entre os quais estava encolhido, e a sua memória acordou junto com ele. Kevin congelou e olhou silenciosamente em volta. Nada se mexeu. Ninguém tinha entrado no porão. Ele conferiu o seu relógio interno – os vampiros vermelhos sempre sabiam a hora exata do nascer e do pôr do sol.

– Dezessete horas e vinte e dois minutos. Pôr do sol – ele falou para si mesmo por força do hábito. Kevin havia feito isso muitas vezes no último ano, desde que tinha sido Marcado como um novato vermelho e depois se Transformado. Foi uma forma que encontrou de tentar manter a sua sanidade durante aquele tempo horrível, e agora isso o reconfortava. Ele se alongou, fazendo só uma pequena careta para a dor que o seu ferimento ainda causava, embora ele se sentisse muito bem. – Com fome, mas bem. – Então ele se lembrou, e o seu rosto se abriu em um sorriso de gratidão. – Os cookies da Vovó!

Kevin pegou a mochila e tirou vários cookies de dentro dela. Ao fazer isso, sua mão topou com alguma coisa dura. Perguntando-se o que mais a sua avó tinha colocado ali, ele espiou o interior da bolsa e deu um suspiro longo e feliz.

Ele tirou a garrafa térmica metálica que estava no fundo da bolsa, abriu a tampa, cheirou e facilmente reconheceu o aroma de sangue.

– Ela pensou em tudo! – ele bebeu ruidosamente o sangue da garrafa fria enquanto comia os cookies.

Kevin não precisava ter um abastecimento constante de sangue. Ele não iria perder a cabeça nem atacar alguém na rua como um vampiro vermelho normal faria depois de alguns dias sem beber, mas as suas costas ainda precisavam se curar e o sangue definitivamente ia deixá-lo mais forte.

– Obrigado, Vó – ele disse entre mordidas nos cookies e sentiu uma onda de saudade de casa.

Pelo resto do tempo que levou para Kevin terminar o seu café da manhã, ele se permitiu desejar que pudesse sair daquele porão e daquela Morada da Noite, ir até a casa de sua avó e ficar com ela comendo cookies e trabalhando na fazenda de lavandas, ignorando esse mundo todo ferrado. Quando terminou de comer, ele espanou os farelos de sua blusa e, junto com eles, expulsou de sua mente aquele desejo egoísta e impossível.

Ele conferiu o seu relógio interno infalível, percebendo que tinha cerca de duas horas até a reunião de briefing que Neferet havia convocado.

– Ok, eu tenho que ficar aqui embaixo pelo menos o tempo suficiente para que os primeiros ônibus tragam os novatos e vampiros vermelhos dos túneis para treinar com os Guerreiros Filhos de Erebus. Então, posso explorar um pouco, já que não fiz nada além de desmaiar quando vim da primeira vez.

Ele encontrou o interruptor para acender as arandelas da parede, transformando o porão escuro em um lugar estranho que quase parecia um cemitério submerso, com as sombras tremulantes da iluminação a gás que bruxuleavam pelas várias fileiras de caixas de madeira compridas em pilhas de duas ou três.

– Bom, é diferente do porão da Morada da Noite de Zo, com certeza.

Zo dissera a ele que poderia haver uma variedade de armas escondidas no porão, mas ali definitivamente não tinha nenhuma espada com pedras preciosas nem bestas antigas de valor incalculável à vista. Só havia caixas de madeira. Um monte delas.

Ele tentou abrir uma, mas estava fechada com pregos. Ele procurou pela sala grande e ampla, e não levou muito tempo para encontrar um pé-de-cabra em uma pilha de martelos, pregos e outras pequenas ferramentas descartadas. Trabalhando com cuidado, para que pudesse fechar a caixa de novo depois de verificar o conteúdo, Kevin levantou a tampa da primeira caixa.

A princípio, quando ele olhou para dentro, a sua mente não registrou o que estava vendo. Ele estendeu a mão e tocou em uma daquelas coisas, e a verdade fez com que Kevin se sentisse tão quente e tonto que ele deu vários passos cambaleantes para trás.

– Fique calmo, Kev – ele disse a si mesmo. Ele estalou os nós dos dedos. Sacudiu as mãos. Passou os dedos pelo seu cabelo escuro. E então voltou até a caixa.

As armas eram enormes e tinham uma aparência estranha, e então ele viu que havia um papel guardado junto na caixa. Nele, Kevin leu: LANÇADOR DE GRANADAS MULTITIRO EX-41.

– Isso é ruim. Isso é muito ruim.

Ele não queria olhar o que tinha nas outras caixas, mas precisava fazer isso – assim, ele abriu cada um dos cinquenta engradados que mais pareciam caixões. Metade tinha lançadores de granadas acompanhados da munição. O resto continha metralhadoras M16, mais um monte de munição e um punhado de granadas.

A mente de Kevin zunia em um princípio de pânico enquanto ele memorizava tudo que viu. Ele tinha que alertar Dragon. Os exércitos de Neferet haviam assumido o controle de Oklahoma, Texas, Arkansas e Kansas em uma expansão coordenada de ataques surpresa no meio da noite. Esse controle tinha se espalhado como um incêndio para Louisiana, Missouri, Nebraska e Iowa. Eles destruíram os depósitos de armas da Guarda Nacional em cada um desses estados e confiscaram veículos militares. Mantendo a tradição dos vampiros, eles não haviam utilizado armas modernas. Os dentes e as garras do Exército Vermelho, assim como a habilidade de controlar as mentes dos humanos, haviam sido o suficiente para derrotar a pequena Resistência humana.

Porém, Kevin sabia que, assim como Neferet continuava pressionando – com sua guerra declarada contra todos os humanos –, ela estava encontrando cada vez mais oposição. Os humanos estavam levantando barricadas nas fronteiras estaduais. Como Kevin era apenas um tenente no Exército Vermelho, ele não ficava a par do “como” e do “porquê” das táticas militares, mas tinha escutado o General Dominick reclamar que Neferet estava gastando tempo demais tentando negociar com os governadores de cada estado. Ele, é claro, achava melhor atacar, atacar, atacar.

– Aparentemente, Neferet também acha isso – Kevin disse sombriamente. – A diferença é que ela quer atacar com armas modernas – e então outro pensamento o esmagou. – Merda! Este não deve ser o único esconderijo de armas que ela tem! Todos aqueles depósitos de armas... merda! Merda! Merda! Claro, os exércitos queimaram tudo, mas eu aposto a minha humanidade que eles não queimaram as armas que encontraram dentro deles.

Ele ficou andando em círculos.

– Isso muda tudo. A Resistência precisa agir imediatamente! Nós temos que depor Neferet e acabar com essa guerra antes que ela comece a usar essas armas. E eu tenho que mandar uma mensagem para Dragon. Agora.

Kevin conferiu seu relógio interno de novo. Ele tinha cerca de quarenta e cinco minutos antes do briefing de Neferet, o que deveria ser tempo suficiente para caminhar sem destino próprio pelos jardins da escola, esperando que o corvo de Anastasia o encontrasse.

Ele tomou cuidado para que os engradados parecessem intocados antes de reaplicar o perfume de sangue nojento. Então ele colocou a mochila de Vovó sobre o ombro e subiu dois degraus de cada vez, parando na frente da porta. Decidindo que a melhor coisa a fazer seria não tentar se esgueirar, ele prendeu a respiração e abriu a porta, saindo rapidamente para o corredor. Ele tinha dado só um passo quando uma voz atrás dele pareceu preencher o ambiente – e congelou o seu coração.

– Ei! Que diabos você estava fazendo lá embaixo?

Kevin se virou para ver o General Stark e um dos seus tenentes se aproximando dele. Ainda por cima, Stark parecia irritado.

– Desculpe, senhor. Eu devo ter virado no lugar errado – Kevin fez uma grande demonstração ficando rapidamente em posição de sentido e evitando o contato visual.

– Essa porta deveria estar trancada. Ordens de Neferet – Stark afirmou.

– Desculpe, senhor – Kevin repetiu, ainda em posição de sentido. – Não estava trancada.

– Dallas, Artus tem as chaves. Encontre-o e tranque essa maldita porta.

– Sim, vou fazer isso, general. – O tenente de Stark começou a ir embora, mas então deu um tapa na sua testa e se virou. – Acabei de perceber quem é esse garoto. Ele é um dos tenentes do General Dominick.

– Dominick? O general vermelho que sumiu com um pelotão inteiro de novatos e soldados vermelhos? – Stark perguntou, com seus olhos aguçados examinando Kevin.

– Sim, ele mesmo, senhor – Dallas respondeu.

Stark deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Kevin.

– Quem é você?

– Tenente Heffer, senhor!

– Sob o comando de quem?

– General Dominick, senhor!

– E onde está o seu general, Tenente Heffer?

– Perdão, senhor?

Stark suspirou alto.

– Vampiros vermelhos são mesmo um pé-no-saco – Stark falou para Dallas como se Kevin não estivesse diante dele em posição de sentido, escutando cada palavra.

– Sim, eles são muito burros. Até os oficiais. – Dallas chegou bem perto do rosto de Kevin. – Ei! O general fez uma pergunta, garoto! Responda, porra!

– E-eu não sei onde o meu general está. – Kevin se concentrou em se parecer com qualquer outro tenente do Exército Vermelho: prestativo e confuso.

– Quando foi a última vez que você o viu? – Stark perguntou.

– Vários dias atrás, senhor. Ele me deu ordens, e eu estava cumprindo essa missão desde então.

Dallas bufou.

– Essa missão incluía invadir um porão trancado?

– Não, Tenente! Isso foi um erro.

– O que você fez lá embaixo? – Stark o questionou.

– Nada. Quando vi que estava no lugar errado, eu saí, senhor.

– Onde diabos você deveria estar? – Dallas quis saber.

– Treinando. Eu voltei da minha missão e então era hora de treinar. Pensei que ia encontrar o General Dominick nos túneis hoje à noite e dar o meu relatório.

– Qual era a sua missão, Tenente? – Stark perguntou.

– Cinco dias atrás, o General Dominick me enviou para Stroud. Ele tinha ouvido falar que a Resistência encontrou esconderijos naquela área e eu deveria fazer um reconhecimento por lá e depois voltar para um relatório. – Stroud ficava mais ou menos no meio do caminho entre Tulsa e Oklahoma City, e não perto o bastante de Sapulpa para causar algum problema para Dragon e a Resistência, então desviar a atenção de Stark para lá não pareceu uma má ideia para Kev.

– Você não achou que tinha algo estranho quando não conseguiu encontrar o seu general e o resto do seu pelotão? – Stark perguntou.

– Senhor, eu acabei de voltar. Agora mesmo.

– Ah, que merda, dá um tempo. Você espera que o General Stark acredite que levou cinco dias para você checar uma bosta de cidade como Stroud? – Dallas zombou.

– Não, Tenente. E-eu me perdi.

– Isso só piora – Dallas resmungou.

– Explique-se, Tenente – Stark ordenou.

Evitando contato visual, Kevin falou rapidamente e com cuidado.

– Senhor, o General Dominick me deu ordens para verificar a área de Stroud, procurando membros da Resistência. Eu fiz isso. Comecei pela cidade. Não encontrei nenhum sinal da Resistência por lá, mas ouvi rumores de que havia uma atividade incomum perto do Rio Deep Fork. Como o general ordenou, eu me abriguei na cidade e no dia seguinte fui até o rio. Encontrei sinais de acampamentos, mas nada específico da Resistência. Quando tentei sair de lá, percebi que estava perdido. Não encontrei nenhuma estrada principal até o pôr do sol de hoje. Então eu confisquei um carro e voltei imediatamente para a Morada da Noite.

– Perdido por dias... que imbecil – Dallas murmurou.

– E você não teve nenhum contato com o General Dominick desde que ele deu essas ordens a você? – Stark perguntou.

– Não, senhor. Nenhum.

– Você não pensou em ligar para alguém com o seu celular quando ficou perdido? Ou você só não pensou nessa possibilidade? – Dallas zombou de Kevin.

Kevin resistiu ao impulso de dar um soco naquela cara estreita, e não demonstrou qualquer sinal de emoção, exceto confusão, respondendo imediatamente.

– Eu pensei, mas não tinha sinal de celular, Tenente.

– Tenente Heffer, o General Dominick mencionou para onde ele e os seus soldados estavam indo? – Stark questionou.

Kevin deixou o seu rosto mostrar surpresa.

– É claro, senhor. Ele disse que ia marchar seguindo ordens.

– Ordens? De quem? – Stark perguntou.

– Perdão, senhor, mas essa informação não chega até minha patente.

– Sim, está certo. Eles estavam indo em qual direção? – Stark continuou o interrogatório.

Então Kevin começou a levar Stark para um rastro totalmente falso, na direção oposta de Sapulpa, da Resistência e da sua montanha protegida por Magia Antiga.

– Ele disse que a milícia estadual estava vindo pelo Novo México e atravessando o Texas pelo Rio Vermelho. Acredito que o general estava indo para Elmer para preparar uma emboscada.

– A milícia do Novo México? Isso é bobagem. Não se ouve um pio de nenhuma das milícias dos nossos estados vizinhos há meses. Ele está inventando coisas. É uma perda de tempo conversar com ele. Com qualquer um deles – Dallas disse, balançando a cabeça de desgosto.

Stark ignorou Dallas.

– Não, alguma coisa definitivamente parece errada. Meu instinto me diz isso há semanas. Tem coisas acontecendo que a gente não sabe. Heffer, quero que você venha comigo.

– Sim, senhor! É uma honra, senhor!

Dallas revirou os olhos.

– General, ele fede.

– Todos eles fedem, mas este garoto vampiro vermelho nos deu a única pista que tivemos sobre um general desaparecido e os seus soldados. Vá pegar aquela chave com Artus e depois nos encontre no auditório para o briefing de Neferet.

– Sim, senhor – Dallas disse antes de dar outro olhar de nojo para Kevin e sair correndo.

– Ok, siga-me, Tenente. E não se perca.

– Sim, senhor!

A mente de Kevin estava em um turbilhão enquanto ele seguia o General Stark. Ele precisava ir à reunião de briefing, mas também tinha que dar um jeito de se livrar de Stark e do babaca do Dallas para ir lá fora e esperar que o corvo de Anastasia o encontrasse. Dragon precisava saber sobre o esconderijo de armas. Ainda hoje.

– Ei, chega de andar feito uma lesma! – Stark falou rispidamente para Kevin, que estava, de fato, andando feito uma lesma.

– Sim, senhor! – Ele acelerou o passo e estava bem atrás de Stark ao sair do Ginásio e entrar no corredor que levava à entrada da escola e ao auditório quando uma voz familiar, sexy e sarcástica interrompeu o seu plano de fuga.

– E aí, Cara do Arco. Eu diria “que bom ver você”, mas nós dois sabemos que isso é mentira.

Stark fez uma pausa para cumprimentá-la quando ela entrou no corredor, vindo dos aposentos das Sacerdotisas. Kevin começou a analisar Aphrodite, reparando em nuances que ele não tinha sido capaz de ver na escuridão dos jardins do necrotério.

Ela parece cansada. Muito cansada. E magra. Quase frágil. Esta Aphrodite usava muito mais maquiagem do que a do mundo de Zo, e Kevin se perguntou se poderia ser para tentar encobrir olheiras e estresse. E a boca dela está diferente também. Mais dura. Como se ela não sorrisse nunca. Aquilo fez o coração dele doer, e ele quis colocar os braços em volta dela e dizer que tudo ia ficar bem. Inconscientemente, os seus pés começaram a dar um passo em frente quando a voz de Stark o trouxe de volta para a realidade.

– Desde quando mentir é um problema para você, Aphrodite? E não me chame assim.

– Oh, tudo bem, sinto muito. Eu me esqueço de que agora você é o General Cara do Arco. Viva. Todos nós ficamos tão elevados com essa guerra. – Ela franziu o nariz lindo e perfeito ao olhar para Kevin, logo atrás de Stark. – Eca. Isso fede.

– Ele também é um tenente no exército da sua Grande Sacerdotisa e coloca a sua vida em risco toda vez que sai desta Morada da Noite. Acho que o cheiro não faria nenhuma maldita diferença para você se só ele se colocasse entre você e uma turba de humanos.

Aphrodite fez uma cena, olhando em volta do corredor, o qual estava ficando cada vez mais apinhado de soldados, Guerreiros Filhos de Erebus e Sacerdotisas indo na direção do auditório.

– Engraçado, mas eu não estou vendo nenhum humano por perto.

– Engraçado? Sabe o que eu acho engraçado? O boato que eu ouvi de que você pode se juntar ao Exército Vermelho, então o meu conselho é que é melhor você já ir se acostumando com esse cheiro. – Stark fez um movimento de cabeça na direção de Kevin. – Vamos, Tenente. – Ele se curvou para Aphrodite de modo zombeteiro. – Tenha um ótimo dia, Profetisa.

 


C O N T I N U A

No instante em que Kevin passou entre os mundos, ele conseguiu sentir: aquela terrível e desesperadora sensação de estar perdido. O estranhamento que era o efeito do feitiço de Zoey – aquele que o havia atraído e depois devolvido para o seu próprio mundo – era avassalador. A sensação de estar irremediavelmente perdido era tão forte, tão urgente, que o fez lembrar de um dia de primavera quando tinha sete anos e havia ido fazer compras com sua mãe no Super Target da Rua Setenta e Um em Tulsa. Ele havia se afastado enquanto a mãe e as irmãs estavam olhando roupas femininas. Quando se deu conta, estava sentado no meio do departamento de eletrodomésticos chorando incontrolavelmente.
Essa era a mesma sensação terrível, só que agora não haveria nenhum funcionário amigável para reconfortá-lo enquanto ele esperava que sua mãe respondesse ao aviso de criança perdida que soava pelo alto-falante. Sim, ele era um vampiro completamente Transformado – um tenente no Exército Vermelho –, mas, definitivamente, havia momentos em que ele desejava que alguém o salvasse.
– Não é possível, Kev. Recomponha-se – ele murmurou para si mesmo.
Com um forte barulho de sopro, como do ar sendo expirado, o bizarro buraco entre os dois mundos desapareceu, deixando apenas uma sorveira, deslocada em seu verde abundante, no espaço onde o tecido entre os mundos havia rompido. Enquanto a linha de comunicação com sua irmã Zoey se fechava – juntamente com o mundo dela, no qual ele se sentiu mais em casa do que no seu próprio –, Kevin desejou mais do que qualquer coisa que pudesse retornar ao seu eu de sete anos, sentar e chorar para que sua mãe o salvasse.
Só que ele não era mais criança, e a sua mãe havia parado de ser mamãe anos atrás, então Kevin fez o que havia aconselhado a si mesmo: ele se recompôs. Para se reconfortar, ele tocou a bolsinha pendurada por uma tira de couro em seu pescoço e se tranquilizou por ela ter feito a viagem junto com ele. Conferiu o bolso interno da sua jaqueta para se certificar de que a cópia do diário de Neferet ainda estava ali, e então analisou o cenário ao seu redor.
Estava escuro, assim como quando ele deixou o mundo de Zo, e frio – embora não houvesse nenhuma neve cobrindo o gramado marrom do inverno. Ele olhou para a sua direita. Não havia um muro de pedra fechando a tumba da Grande Sacerdotisa Neferet. Havia apenas uma gruta e um pequeno lago meio congelado.
É porque neste mundo Neferet está livre e no comando. Só pensar isso fez com que o seu nível de estresse aumentasse.

 


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Kevin estalou as juntas dos dedos enquanto levantava o olhar, seguindo a colina acima da gruta. Como esperado, carvalhos antigos formavam um pano de fundo para moitas enormes de azaleias adormecidas.

– Aqui com certeza é o Woodward Park, mas não aquele do qual eu acabei de sair – Kevin suspirou.

Ok, uma coisa de cada vez, é só o que eu posso fazer, mas eu preciso realmente fazer algo de fato, e não apenas ficar parado aqui estalando os dedos e me sentindo péssimo.

Kevin tinha um plano, mas era um que fazia o seu estômago se contrair de nervoso. Ele tinha que encontrar alguém e não tinha certeza se as coisas iam transcorrer muito bem. As pessoas eram as mesmas, mas perturbadoramente diferentes aqui, e ele não a via há mais de um ano.

E se ela não quisesse vê-lo de jeito nenhum? Ou pior, e se ela o visse, mas o rejeitasse – se recusasse a ver que ele era diferente dos outros e não o convidasse para entrar? Então que diabos eu vou fazer? E como eu vou aguentar se ela virar as costas para mim?

– Eu tenho que arriscar. Se eu quero tentar acertar as coisas, não tenho muita escolha. Preciso de aliados, e ela é a melhor pessoa em quem consigo pensar – Kevin disse a si mesmo enquanto atravessava o frágil gramado marrom em direção à calçada na Rua Vinte e Um que contornava o parque. Andando rapidamente, ele virou à direita, subindo a pequena ladeira até a fraca iluminação em frente à Utica Square.1

Era uma caminhada curta até as lojas e restaurantes sofisticados que rodeavam a praça, apesar de Kevin se pegar desejando que demorasse mais. O grande e antigo relógio de quatro faces da Utica, que ficava imponente na frente da loja Russell Stover Candies, dizia que já passava da meia-noite, mas o local estava fervilhando com atividade. Desde que Neferet havia assumido o controle de Tulsa e da maior parte do Meio-Oeste, o horário comercial dos humanos havia mudado drasticamente para refletir o fato de que eram os vampiros que mandavam, e não os humanos. As lojas da Utica Square – assim como qualquer outra loja ou restaurante em Tulsa e na área ao redor que os vampiros poderiam querer frequentar – abriam ao anoitecer e fechavam ao nascer do sol.

Havia, é claro, algumas poucas lojas que abriam para os humanos durante o dia – a maioria delas mercearias, postos de gasolina e que providenciavam outras necessidades, mas, comparadas aos negócios frequentados por vampiros, elas eram pobres lembranças de um passado em vias de extinção.

Nesta fria véspera de Natal, a Utica Square estava enfeitada com luzes – não em comemoração ao Natal, mas sim porque Neferet gostava que tudo parecesse brilhante, reluzente e bonito na superfície, não importando o que acontecia logo abaixo das belas aparências.

Vampiros e novatos azuis passaram por Kevin na calçada, mal olhando para ele, o que o tranquilizou. Se um alerta tivesse soado quando ele, General Dominick e outros do seu pelotão do Exército Vermelho foram dados como desaparecidos, os Guerreiros Filhos de Erebus teriam espalhado cartazes em todos os lugares públicos de Tulsa, e Kevin definitivamente seria interrogado.

Os poucos humanos que estavam na rua também reagiram normalmente a ele. Não fizeram contato visual e abriram bastante espaço para que ele passasse, mudando de calçada ou disparando para dentro de qualquer restaurante ou loja por perto, preferindo evitá-lo e também se esquivarem da possibilidade de ele estar com fome o suficiente para agarrá-los e fazer um lanche rápido. Embora a postura “oficial” de Neferet fosse a de desencorajar vampiros vermelhos de se alimentar de humanos em público, a verdade era que a única razão pela qual a Grande Sacerdotisa queria que o Exército Vermelho demonstrasse algum autocontrole era que a alimentação em público costumava causar pânico. Neferet considerava o pânico humano feio e motivo de distração. Então, basicamente, se acontecesse... bem, aconteceu. Normalmente não havia nenhuma consequência para os vampiros, exceto uma pequena advertência.

Kevin costumava ficar perturbado com o fato de ele óbvia e justificadamente apavorar os humanos, mas naquela noite isso o tranquilizou. Ele sabia que o seu cheiro estava diferente – ou, mais especificamente, não estava com cheiro de túmulo – desde que Nyx havia concedido a ele sua humanidade de volta, mas as pessoas de Tulsa estavam tão acostumadas com monstros na noite que não chegavam perto o bastante para notar que ele não era mais o bicho-papão.

Kevin não baixou a guarda, porém. Ele pensou em pegar o ônibus até a estação onde o seu carro estava estacionado, mas só imaginar a possibilidade de encarar novatos vermelhos esfomeados e vampiros vermelhos curiosos deu um aperto no estômago. Que diabos ele iria dizer a eles quando o inevitável acontecesse – quando eles percebessem que ele havia se Transformado irreversivelmente? Ele precisava de tempo e também de um plano.

Mas, principalmente, Kevin precisava de ajuda.

Ele poderia facilmente andar o quarteirão até a Morada da Noite, mas não encontraria nenhuma ajuda por lá, e ele não tinha nenhuma vontade de voltar para esta Morada da Noite. Não agora. Não depois de ele ter passado algum tempo na outra Morada da Noite, onde a sua irmã era a Grande Sacerdotisa e os humanos eram bem-vindos como amigos, não sofriam abusos sendo escravizados e não eram considerados geladeiras de sangue ambulantes.

Havia apenas um lugar para onde Kevin queria ir, e apenas uma pessoa que ele queria ver. De novo, sua mão tocou o volume que estava debaixo de sua camisa perto do coração. Ele pressionou a mão contra a pequena bolsa de couro com miçangas feita a mão, encontrando consolo na sua presença.

Kevin atravessou a Utica Square até os fundos do centro de compras com aparência de vilarejo, passando pela Fleming’s Steakhouse e pelo Ihloff Salon até chegar ao estacionamento, mais escuro e mais silencioso. Estava cheio, então não levou muito tempo até Kevin encontrar o que precisava.

Um homem sozinho, humano e bem-vestido, andava apressado entre os carros, em direção às vagas de estacionamento na frente dos condomínios no estilo de vilas italianas, que se erguiam ali como se um pedaço do Mediterrâneo tivesse sido deslocado da Costa Amalfitana e se estatelado no centro de Tulsa.

Silenciosamente, Kevin o seguiu. Quando o apito do alarme na chave do carro soou, desbloqueando o Audi SUV, Kevin saiu das sombras para encarar o homem.

– Boa noite – Kevin disse.

Os olhos do homem se arregalaram e o seu rosto ficou pálido feito osso. Ele estendeu as sacolas nas suas mãos, em parte como oferenda, em parte como escudo.

– Po-por favor! Eu tenho uma família em casa. Por favor, não me morda. Eu dou tudo que você quiser, mas os meus filhos precisam de mim, e eu não quero morrer.

O estômago de Kevin se revirou. Ele odiava isso. Odiava que apenas a imagem da sua Marca de vampiro vermelho instantaneamente criasse uma sensação de pavor e pânico nos humanos. Kevin encarou o homem nos olhos e falou vagarosa e gentilmente:

– Eu não vou machucá-lo. Você não precisa ter medo – ele disse, e o homem se acalmou. – Você não está sob a proteção de um vampiro? – Kevin perguntou ao ver a mão sem marcas do homem. Os vampiros azuis haviam tatuado a lua crescente nas mãos de humanos sob a sua proteção para que os vampiros vermelhos famintos soubessem que eles estavam fora do cardápio.

– Não de um vampiro específico – o homem respondeu como se estivesse em um sonho quando o poder da mente de Kevin o dominou, deixando-o imóvel e incapaz de fazer qualquer coisa, exceto o que Kevin ordenasse.

– Mas você faz algo para se proteger?

O homem assentiu, sonolento.

– Eu sou o dono do Harvard Meats. Na esquina da Quinze com a Harvard.

– Ah, claro. Eu conheço o lugar. – E Kevin realmente conhecia. Aquele homem não precisava estar sob a proteção de um vampiro específico porque o seu negócio era uma proteção por si só, já que era o açougueiro que fornecia as melhores carnes da cidade para a Morada da Noite e todos os seus restaurantes favoritos. – Está bem, eu quero que você faça o seguinte. Dê as chaves do seu carro para mim. Você está perto de casa?

O homem assentiu novamente.

– Eu moro na esquina da Rua Treze com a Columbia.

– Ótimo. Você vai precisar ir andando para casa. Amanhã registre uma queixa do desaparecimento do seu carro. Diga que você acha que foram garotos do ensino médio... da Union – Kevin acrescentou após uma breve reflexão. Ele tinha estudado na Broken Arrow. BA e Union eram rivais conhecidos, e ele teve que disfarçar o seu sorriso por essa pequena vingança pelo fato de a Union ter vencido o último campeonato estadual de futebol americano.

– Vou registrar a queixa de furto. Por garotos da Union. Amanhã – o homem repetiu automaticamente, entregando as chaves a Kevin.

Kevin hesitou, chamando o homem de volta quando ele se virou, movendo-se mecanicamente para começar a caminhar até sua casa.

– Ei, ahn, você precisa de alguma coisa do carro?

O homem piscou os olhos para ele, como se não tivesse entendido a pergunta.

– Tem alguma coisa no seu carro que você precisa levar para casa? – Kevin reformulou a pergunta, olhando bem nos olhos do homem, aumentando o seu controle sobre ele.

– Sim. O meu laptop – o homem respondeu imediatamente, embora sua voz ainda tivesse um tom sonolento. – E mais alguns presentes para as crianças.

– Pegue-os – Kevin disse. – Rápido.

O homem se mexeu rapidamente, abrindo a porta traseira e retirando um laptop fino e uma sacola cheia de pacotes embrulhados. Então ele se virou para Kevin, esperando receber uma ordem sobre o que fazer em seguida.

– Vá para casa agora. Rápido. Não fale com ninguém. Se você for parado por um Guerreiro, diga que está em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Eu estou em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Mais uma coisa. Este vai ser o melhor Natal da sua vida. Na verdade, vai ser o melhor ano da sua vida. Você vai mostrar para a sua mulher e os seus filhos o quanto você os ama todo dia, e você vai se certificar de que você e a sua família são valiosos para a Morada da Noite escolhendo cortes especiais de carne exclusivos para Neferet. – Kevin fez uma pausa, refletindo, e então continuou: – Prepare a carne marinada em um molho de vinho tinto. Neferet realmente gosta de vinho tinto. Entendido?

– Entendido.

– Ok, agora vá. Rápido!

O homem saiu apressado, apertando o laptop e a sacola de presentes contra o peito como se eles fossem feitos de ouro.

Cantarolando baixinho o grito de guerra da Broken Arrow para si mesmo, Kevin entrou no Audi. Ele se demorou um minuto apreciando o interior agradável antes de dar a partida e sair da Utica Square, e então ele estava no seu caminho até a estrada Muskogee Turnpike, que ficava a um pulo do centro de Tulsa. Quando entrou na estrada em direção ao sul, ligou a rádio 98.5 e tentou deixar a voz anasalada de Blake Shelton com seu sotaque familiar de Oklahoma acalmar seus nervos.

Kevin ainda não sabia muito bem o que faria, mas tinha certeza de quem precisava encontrar para conseguir ajuda e descobrir isso.

O trajeto de uma hora e meia passou voando, e logo Kevin estava saindo da rodovia e serpenteando por uma estrada antiga de duas pistas até chegar ao caminho de terra e cascalho que dividia campos de lavanda adormecidos e finalmente acabava em uma casa de pedra familiar com uma ampla varanda frontal.

O seu estômago deu reviravoltas de nervoso quando ele estalou os dedos e levantou a mão para bater na porta.

Kevin hesitou. E se ela não o convidasse para entrar?

Ele engoliu aquele pensamento horrível no instante em que a porta se abriu, antes mesmo de precisar bater.

– Oi, Vovó Redbird! Sou eu, Kevin.

O único sinal de choque que a mulher deu foi um leve rubor na pele marrom de suas bochechas.

– Já faz um tempo que não nos vemos, mas eu ainda reconheço a minha própria família – Vovó disse. Ela não fez nenhuma menção de convidá-lo para entrar. – O que eu posso fazer por você, Kevin?

– Eu preciso de sua ajuda. Na verdade, eu preciso de mais do que sua ajuda. Eu preciso de um plano. É muita coisa para explicar. Posso entrar, por favor?

– Não fico feliz em dizer isso, mas não. Você não pode entrar. Vejo que você completou a Transformação.

– Sim, meses atrás. Sinto muito por não ter vindo vê-la até hoje, mas você sabe por que não vim. Eu tinha que ter certeza de que conseguiria me controlar. Bom, agora tenho certeza, e a razão de eu ter certeza é inacreditável.

– Desculpe, Kevin. Hoje não é o meu dia para morrer. E, mesmo que fosse, eu não quero encontrar a Grande Deusa depois de o meu neto me transformar em um monstro devorador. Não. Por favor, vá embora, meu filho. Você está partindo o meu coração, e ele já está em mais pedaços do que eu posso contar.

Triste, Vovó Redbird começou a se afastar lentamente da porta.

– Espere, Vovó. Por favor, primeiro olhe isto aqui. – Kevin tirou a bolsinha medicinal do pescoço e a estendeu na frente da Vovó Redbird para que ela pudesse ver.

Ela franziu o cenho, confusa.

– Isso é meu. Mas eu estou com ela... – Ela ergueu a mão automaticamente, levando-a até a tira de couro que prendia uma bolsinha medicinal idêntica ao redor do seu pescoço.

– Vovó, você deu isso para mim.

– Não, Kevin. – Ela levantou a idêntica bolsa com miçangas. – Esta é a minha. Essa daí, bom, é uma cópia estranhamente parecida.

Kevin não podia cruzar a barreira da porta a menos que fosse convidado a entrar, mas a bolsinha definitivamente podia.

– Aqui, olhe só. Você vai ver. – Ele a atirou na direção dela, e Vovó a pegou facilmente.

Ele observou enquanto ela abria a bolsinha e depositava o conteúdo na palma de sua mão. Havia um cristal de ametista roxo e um pedaço de turquesa bruta lapidada em forma de um perfeito coração, assim como um ramo de lavanda, uma pena do peito de uma pomba e um punhado de terra vermelha. A última coisa que caiu da bolsa foi uma tira de papel enrolado com cheiro de lavanda.

Com mãos firmes, Vovó Redbird desenrolou o papel para revelar três palavras, escritas na sua forte letra cursiva.

Confie em Kevin.

Os sagazes olhos castanhos da Vovó encontraram os dele.

– Onde você conseguiu isto?

– Como eu disse, foi você que me deu. Em outra versão do nosso mundo. Depois que Zoey me levou para lá e que Aphrodite e Nyx restauraram a minha humanidade. Vovó, é uma longa história, mas eu juro pela memória de Zoey que você realmente me deu isso e me falou para procurá-la e mostrar isso a você. Eu preciso de você, Vovó. Eu não sei mais aonde ir nem quem devo procurar. Por favor, você vai me deixar entrar? Eu não vou te machucar. Eu nunca vou te machucar.

Sylvia Redbird analisou Kevin cuidadosamente. Então ela abaixou os olhos novamente para as três palavras escritas com sua própria letra no papel que ela mesma fez na fazenda de lavandas que dava plantas tão perfumadas e únicas que os vampiros a deixavam em paz – desde que ela continuasse fornecendo os produtos de lavanda que Neferet tanto apreciava.

– Kevin, eu gostaria de convidá-lo a entrar na minha casa. – A idosa deu um passo para trás, segurando a porta aberta para o seu neto.

Ele entrou na casa e inspirou fundo o ar com aroma de memórias de infância. Através das lágrimas inundando os seus olhos, ele abriu o sorriso para sua avó.

– Estou sentindo cheiro de cookies de chocolate e lavanda?

– Está sim, com certeza. Quer alguns?

– Mais do que qualquer outra coisa do mundo – Kevin respondeu. – Mas, primeiro, por favor, posso te dar um abraço?

– Ah, u-we-tsi, nada me deixaria mais alegre!

Kevin abriu os braços, e a sua pequena, adorável e linda avó se adiantou no seu abraço. E de repente ele se viu soluçando enquanto ela o apertava e acariciava suas costas com carinho, e ele liberava a tristeza, a solidão e o arrependimento de ter deixado sua irmã e voltado para um mundo cheio de batalhas e temores.

– Vai ficar tudo bem agora, u-we-tsi. Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Eu estou aqui...

1 Espécie de shopping ao ar livre de Tulsa. (N.T.)


2

Outro Kevin

– Vovó, estes cookies são os melhores entre todos os mundos!

Vovó Redbird sorriu carinhosamente para Kevin.

– Você devolveu a minha alegria em prepará-los. Eu não tenho ideia de como Neferet os descobriu, mas alguns meses atrás seus capangas do Exército Azul apareceram aqui, insistindo que eu entregasse um pedido semanal de duas dúzias de cookies... para a própria Grande Sacerdotisa. Eu achei estranho, mas isso de fato ajudou a garantir a minha segurança, e enquanto eles estavam aqui também fizeram uma encomenda permanente dos meus sabonetes e cremes... – ela perdeu as palavras quando a compreensão floresceu no seu rosto. – Você fez isso!

Kevin deu de ombros, um pouco envergonhado, enquanto pegava outro cookie.

– Bem, sim. Todo mundo sabe que a sua lavanda é a melhor de Oklahoma. Os seus sabonetes e cremes são incríveis e os seus cookies são especiais e deliciosos. Eu pensei que, se Neferet soubesse sobre eles, iria querer. Ela é daquele tipo que adora coisas que ninguém mais tem, e ninguém tem a sua receita.

– Eu não uso receita.

– Exatamente! São coisas que só você pode fazer. Então, eu mencionei isso para um Guerreiro que é companheiro da Sacerdotisa e que leva o lanche da noite para Neferet. Eu sabia que ela só precisava experimentar um cookie e já ficaria fisgada. Aparentemente, Neferet tem uma queda por doces. Os sabonetes e cremes foram um bônus.

Vovó Redbird não falou nada por um bom tempo. Ela observou o seu neto como se ele fosse um enigma que ela tivesse acabado de desvendar.

– Você já era diferente. Mesmo antes de ser arrastado para aquele Outro Mundo.

Kevin assentiu, falando com a boca cheia de cookies.

– Eu ficava pensando que isso iria mudar... que algum dia eu iria acordar e não seria mais capaz de controlar a minha fome de jeito nenhum. Mas isso não aconteceu.

Vovó colocou a sua mão calejada no rosto dele.

– Ah, u-we-tsi, queria que você tivesse vindo me procurar quando estava pensando nisso.

– Eu não consegui, Vovó. Eu tinha muito medo de me transformar em um monstro. – Kevin estava com a cabeça baixa, encarando fixamente a antiga mesa de madeira. – Eu não podia correr o risco de te machucar.

– Então, mesmo de longe, você arrumou um jeito para que eu ficasse segura... para que eu fosse uma das protegidas.

Kevin assentiu.

– Obrigada – ela disse simplesmente.

Quando Kevin teve certeza de que não ia se dissolver em lágrimas escandalosas de novo, ele encontrou os seus olhos castanhos gentis e sorriu.

– Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter perdido Zoey. Eu sempre soube que ela era a sua favorita.

– Zoey e eu éramos próximas desde que ela nasceu, mas isso acontece muito entre avós e netas. Isso não significa que eu a amasse mais do que eu amo você.

Kevin sentiu lágrimas enchendo seus olhos e ele piscou com força para impedi-las de transbordarem.

– Mesmo?

– Dou minha palavra. Era mais fácil ser próxima de Zoey Passarinha. Ela queria cozinhar comigo, trabalhar no jardim, aprender os costumes do nosso povo.

– E eu queria jogar videogames e contar piadas de peido com os meus amigos – Kevin disse com uma ironia amarga.

Vovó Redbird sorriu com afeto e compreensão.

– Você simplesmente queria ser um menino. Não há nada de errado nisso.

– Eu sei que não posso ocupar o lugar deixado por Zo, mas quero que a gente fique mais próximo. Eu... eu preciso de você, Vovó.

A idosa apertou a mão do neto.

– Eu estou aqui por você. Eu sempre vou estar aqui por você. Você nunca mais vai ficar sozinho de novo, meu u-we-tsi.

Pela primeira vez desde que percebeu que ele precisava voltar para o seu mundo – teria que de alguma forma liderar a Resistência para derrotar Neferet –, Kevin sentiu uma parte do peso terrível que tinha se instalado sobre o seu corpo se evaporar.

– Obrigado, Vovó. Isso torna tudo melhor.

– Fico feliz. Agora, eu tenho algumas perguntas que talvez você possa me ajudar a responder.

– Com certeza! Pode perguntar enquanto eu devoro os cookies.

– Ótima ideia. Então, você estava me contando que a nossa Zoey Passarinha está viva em um mundo alternativo, do qual você acabou de voltar?

– Sim. Ela está. Bom, ela não é exatamente a nossa Zo, mas é bem parecida. Tão parecida quanto aquela Vovó Redbird é parecida com você, quase exatamente igual. É estranho. Legal, mas estranho.

Vovó se sentou diante dele, servindo-se de uma xícara de chá de lavanda cheiroso do bule de ferro desgastado pelo tempo que usava desde que Kevin se entendia por gente.

– Deixe-me ver se compreendi direito. Naquele mundo Zoey é a Grande Sacerdotisa no comando. Não há Neferet e...

– Neferet está lá – Kevin a interrompeu. – Ela está magicamente trancada dentro da gruta no Woodward Park.

– Certo – Vovó Redbird assentiu. – Você disse que ela se tornou imortal?

– Sim. Na verdade, eu não entendi muito bem essa parte, mas acredito em Zo e sua turma. Eles disseram que ela tentou se transformar na Deusa de Tulsa e simplesmente surtou pra caralho, matou um monte de gente... humanos e vampiros. Ahn, desculpe pelo palavrão, Vó.

Ela fez um gesto indicando que as desculpas eram desnecessárias.

– Às vezes é preciso usar uma linguagem forte. A sua descrição é válida.

– Obrigado, Vó. – Kevin apontou para a cópia do diário que Zoey havia lhe dado antes que ele fosse embora do mundo dela. – Zo me disse que isso explica muito sobre o passado de Neferet e as suas motivações. Ela e seus amigos descobriram que a história de Neferet é um ponto fraco dela. Zo acha que talvez a gente possa encontrar algo aí que possa nos ajudar a derrotá-la nesse mundo também.

– Isso faz sentido. Então, Neferet está sepultada. Zoey está no comando. E ela abriu a Morada da Noite de Tulsa para os humanos? De verdade?

– Sim! Você precisava ver... garotos humanos estavam realmente brincando com novatos vermelhos e azuis na neve. Era bizarro, mas muito legal, e Zo e a sua turma... eles dizem que são a Horda Nerd... – Kevin fez uma pausa quando sua avó riu como uma garotinha. – Ela fez a Horda Nerd iniciar programas de estudantes humanos, como o da Morada da Noite de Tulsa, por todo o país. Aparentemente, está indo muito bem, por isso ela ficou super preocupada quando ficou parecendo que Neferet podia estar se movimentando. Zoey sabia que os humanos seriam o segundo alvo dela.

– Porque a própria Zoey seria o primeiro alvo.

– Sim. Elas são inimigas. Hum, Vó, quando eu expliquei a Zo como ela morreu aqui, ela disse que tinha certeza de que Neferet a matou, porque no mundo dela Neferet matou dois professores vampiros exatamente do mesmo jeito, apesar de ela ter encenado os assassinatos para parecer que o Povo da Fé era o responsável.

Vovó Redbird ficou pálida com a menção à morte repulsiva de sua neta. Kevin estendeu a mão sobre a mesa para apertar a mão de sua avó.

– Está tudo bem, Vó. Só precisa lembrar que ela ainda está viva. Ela só não está mais neste lugar.

A velha senhora assentiu rapidamente e deu um gole no chá, tentando se recompor.

– O plano de Neferet em ambos os mundos era criar uma guerra entre humanos e vampiros?

– Sim.

– Zoey e a sua... Horda Nerd foram responsáveis por conseguir detê-la nesse outro mundo?

– Sim – Kevin disse.

– Muito bem, Zoey Passarinha – Vovó Redbird disse baixinho. – Esse outro mundo... o mundo de Zoey... parece um lugar encantador.

– E é. Decorações de Natal por toda parte... humanos e vampiros se misturando... Vovó, eles até transformaram a estação de Tulsa em um restaurante descolado gerenciado por vampiros. Os humanos lotam o lugar toda noite. – Kevin rapidamente decidiu deixar de fora o detalhe complementar de como vampiros e novatos vermelhos do seu mundo tinham destruído o restaurante e comido todo mundo. Vovó não precisava dessa tristeza.

– É mesmo? – ela perguntou, maravilhada.

– Sim! Zo inclusive me contou que eles têm uma feira de produtores nos jardins da Morada da Noite toda semana, e o campus é completamente aberto aos humanos para isso.

– Isso é realmente mágico – ela comentou. – Mas por que você voltou para cá?

– Eu tive que voltar. Eu sou a Zoey.

– U-we-tsi, você vai ter que se explicar melhor do que isso.

– Vó, assim como a Zo naquele mundo, eu tenho afinidade com todos os cinco elementos.

Ela arregalou os olhos com a surpresa feliz.

– Oh, Kevin! Essa é uma notícia incrível.

– Bem, sim e não. Sim, porque é legal e um sinal das boas graças de Nyx. Ei, eu quase esqueci de contar! A tatuagem da Transformação completa de Zo é igual à minha. Só que a dela é azul, claro, mas ela também tem um monte de outras tatuagens, como nas palmas das mãos, em volta da cintura, nas costas e até nas clavículas.

– Ela foi até um tatuador? Parece lindo, mas certamente deve ter levado bastante tempo para fazer.

– Não, Vó, Nyx concedeu a ela essas tatuagens como um sinal de que ela estava no caminho certo – Kevin suspirou. – Eu meio que espero que Nyx possa me ajudar dessa mesma forma. Pelo menos eu saberia que estou fazendo a coisa certa.

– E o que é essa coisa certa que você quer fazer?

Kevin não hesitou.

– Isso me traz à parte não tão incrível. Como eu tenho afinidade com todos os cinco elementos assim como Zo, isso significa que eu também tenho as responsabilidades dadas pela Deusa que ela herdou. Vó, eu tenho que derrotar Neferet, assim como Zo fez no mundo dela, para recuperar o equilíbrio entre Luz e Trevas.

Vovó Redbird não perdeu o compasso.

– E como você planeja fazer isso?

– Não tenho ideia, Vovó. Não tenho ideia. – Ele abriu o sorriso atrevidamente para ela. – Mas aposto que você pode me ajudar a pensar em um plano.

– Se eu não posso, sei quem pode. Kevin, o que você sabe sobre a Resistência?

– Eu sou um tenente no Exército Vermelho de Neferet. A nossa única missão neste momento é encontrar e eliminar todos os membros da Resistência.

– O fato de você ser um tenente pode ajudar. Você tem acesso a informações, como talvez o local onde Neferet acredita que a Resistência está se escondendo, ou como eles conseguem levar pessoas clandestinamente para fora do Meio-Oeste até um lugar seguro?

– Não exatamente. A estratégia fica a cargo de Neferet, os generais do Exército Azul e os Guerreiros Filhos de Erebus. Até nós, vampiros vermelhos que conseguem manter um controle suficiente da nossa humanidade para nos tornarmos oficiais, não somos incluídos no planejamento. Basicamente, os Guerreiros de Neferet nos usam como se fôssemos armas irracionais. Quando eu completei a Transformação, escutei o General Stark falando sobre o Exército Vermelho. Ele nos chamou de descartáveis.

– O General Stark parece desprezível.

– Neste mundo, ele é mesmo. No mundo de Zo, ele é o seu Guerreiro Juramentado e companheiro... um cara realmente bacana.

Aquilo deixou Vovó Redbird pensativa.

– E o General Stark não está errado. Tudo que ele tem que fazer é apontar uma direção para o Exército Vermelho e nos soltar. – Kevin estremeceu. – A maioria dos vampiros vermelhos são máquinas irracionais de comer, feitos para devorar tudo no seu caminho.

– Na verdade, isso é bom para nós – Vovó disse.

– Ahn? – Kevin falou, soando muito como a sua irmã.

– Bom, se o General Stark é um bom rapaz no mundo de Zoey Passarinha, então lá no fundo há bondade nele. Talvez ele possa ser convencido. E você é um oficial. Você tem acesso para ir e vir facilmente na Morada da Noite, certo?

– Sim, imagino que sim, mas só entre o anoitecer e o amanhecer. Durante o dia, nós somos todos banidos para os túneis embaixo da estação.

– Mas ninguém na Morada da Noite... nenhum vampiro... iria imaginar que você está do lado da Resistência.

Kevin se endireitou na cadeira.

– Você está certa, Vovó! Isso nem passaria pela cabeça deles. Eles normalmente não incluem oficiais do Exército Vermelho nas reuniões estratégicas, mas eles não iriam notar se eu estivesse lá, parado por perto esperando receber ordens – ele sorriu. – Eu posso descobrir todo tipo de coisa! – ele hesitou, e o seu sorriso esvaneceu. – O problema é que eu não estou com o cheiro certo, e eles iriam reparar nisso.

Os olhos da Vovó brilharam maliciosamente.

– Deixe que eu cuido disso, u-we-tsi.

– Eca, ok. Então, este é o nosso plano? Você vai me fazer ficar fedido de novo, e eu vou espionar na Morada da Noite e descobrir coisas sobre a Resistência? Vamos ter que descobrir onde eles estão se escondendo antes que o exército os encontre, e avisar para a Resistência tudo que eu descobrir.

– Encontrá-los não é um problema.

– Vovó! Você faz parte da Resistência?

– Como Martin Luther King Jr. resumiu tão bem, “A pior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas sim o silêncio das pessoas boas”. Eu não serei silenciada.

– Caraca, Vó, você faz parte da Resistência!

– Tenho orgulho de dizer que sim, eu faço.

– Eles matariam você se a pegassem. Nossa, Vó. Neferet não ia se importar que você é uma idosa. Você iria morrer – Kevin afirmou.

– Estou ciente disso, mas, Kevin, se eu ficasse parada e não fizesse nada, seria o meu espírito que morreria.

Kevin suspirou pesadamente.

– O meu também. É por isso que eu voltei. Eu tenho que fazer algo, e acho que sou o único que pode fazer isso.

– Isso é muito corajoso da sua parte, u-we-tsi.

– Não, fazer a coisa certa não é corajoso. É só o que pessoas decentes fazem – Kevin respondeu.

– De fato.

– Quero que você me leve até eles – Kevin disse com firmeza.

– Eles?

– A Resistência. Quero falar com eles, e contar o que aconteceu comigo no mundo de Zo.

– Não sei se isso vai funcionar. Eles podem achar que é apenas um inimigo quando olharem para você – Vovó refletiu. – O que pode funcionar melhor é você espionar, contar para mim, e eu levarei as informações até eles.

– Isso seria ótimo, se não fosse por Aphrodite – Kevin falou.

– Aphrodite? A deusa grega do amor?

Kevin sorriu com ar travesso.

– Aposto que ela pensa que é uma deusa, mas imagino que, tecnicamente, ela é uma Profetisa, e não uma deusa.

– Filho, isso não faz sentido.

– Desculpe, Vó. É simples, na verdade. No mundo de Zo, há uma Profetisa de Nyx chamada Aphrodite que tem o poder de conceder segundas chances. Por causa dela, nenhum dos novatos ou vampiros vermelhos perdeu a sua humanidade. Ela está neste mundo também.

– Ah, Grande Deusa! Se isso pudesse acontecer neste mundo também! – Vovó exclamou.

– Sim, se a humanidade dos soldados do Exército Vermelho voltar, Neferet perde as suas armas – Kevin afirmou. – No mundo de Zo, Aphrodite e eu temos uma conexão. – Ele fez uma pausa, ignorando o fato de suas bochechas estarem corando muito. – Ela, hum, falou para eu encontrar a versão dela neste mundo, e que ela me amaria também.

Vovó ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. Kevin limpou a garganta e continuou:

– Além disso, Zo falou que eu tenho que montar o meu próprio círculo. Basicamente, a minha versão da Horda Nerd que ela tem. Eu já sei que pelo menos dois dos vampiros que preciso recrutar são azuis... e que eles estão na Morada da Noite neste exato momento.

– Mas, u-we-tsi, a Resistência está cheia de vampiros azuis. Você não pode simplesmente usá-los para o seu círculo?

– Acho que sim, mas a Horda Nerd de Zo é diferente, assim como ela. Assim como eu. Eles também têm afinidades com os seus elementos.

– O que torna o círculo dela mais poderoso que um círculo comum – Vovó observou.

– Sim. Você entende por que eu tenho que fazer mais do que apenas espionar para a Resistência?

– Entendo. E porque eu entendo isso, tenho muito mais esperanças com relação às nossas chances de sucesso do que eu tinha apenas alguns minutos atrás. – Vovó Redbird deu uma olhada para fora da janela da frente. – O amanhecer já está deixando o horizonte rosa. Vamos dormir, u-we-tsi, e amanhã... amanhã nós vamos até a Resistência.

– Está certo, Vovó – Kevin disse corajosamente antes de enfiar outro cookie na boca e pensar: “Ah, que inferno...”.


3

Outro Kevin

– Sap-a-lup-a? Sério, Vó? Isso aqui é bem no meio do nada – Kevin disse quando sua avó indicou a ele a saída para a rodovia Turner Turnpike.

– Kevin, pronuncie direito.

– Certo. Sapulpa. Mesmo assim... sério, Vó? Por que aqui?

– Porque, como você disse... é no meio do nada. O que significa que é um excelente lugar para o quartel-general da Resistência, já que Sapulpa fica a apenas uns trinta minutos do centro de Tulsa. Perto o bastante para ser útil, mas ainda uma cidade rural com nada que possa interessar os vampiros, com a exceção de vários ranchos que plantam a melhor alfafa do estado.

– Então, eles têm o suficiente para serem protegidos por Neferet, mas não o bastante para despertar o interesse dela para fazer uma visitinha nem nada do tipo.

– Exatamente. Vire à esquerda no próximo semáforo. É a South Hickory. Então siga essa estrada por cerca de um quilômetro e meio até a gente passar por algumas placas. Depois da tabacaria, procure pela Lone Star Road e vire à direita.

– Para onde diabos você está nos levando, Vó?

Ela sorriu angelicalmente.

– Para um desses adoráveis e pequenos ranchos de alfafa, u-we-tsi.

Eles serpentearam pela Lone Star Road, passando por campos verdejantes, alguns deixados ociosos em preparo para a plantação da primavera, e outros já verdes com o trigo de inverno. Como é de praxe em Oklahoma, as casas alternavam-se entre quase mansões e trailers caindo aos pedaços, e então mais mansões.

– Ei, olhe só, Vó. É o trio perfeito dos pobretões de Oklahoma: uma casa de trailer, uma piscina portátil e um colchão velho que aqueles pitbulls estão usando como cama... tudo em um só quintal.

Vovó Redbird franziu o nariz.

– Acho que são boxers, não pitbulls, Kevin.

– Erro meu. É isso que dá forçar estereótipos.

– Bem, definitivamente foi um bom palpite. Vá devagar agora. Está vendo à sua direita, onde aquela cerca branca bonita começa?

– Sim.

– Há um portão logo em frente. Pare ali, abaixe o vidro e aperte o botão do interfone. Deixe que eu prossiga com o resto.

Kevin seguiu as instruções, virando em uma entrada bloqueada por um grande portão de ferro. Ele deu uma rápida olhada em volta enquanto abaixava o vidro e viu que a aparência tranquila e organizada do pequeno rancho não passava de uma fachada.

O portão, assim como a cerca branca bem-cuidada, era cheio de cabos elétricos grossos. O olhar de Kevin seguiu os cabos.

– É uma cerca elétrica poderosa, Vó.

– Sim, estou ciente disso. Aperte o botão do interfone, por favor.

Kevin apertou o botão branco perto do interfone e uma luzinha vermelha se acendeu, chamando atenção para a câmera de alta tecnologia apontada na direção deles.

– Quem é? – saiu do interfone uma voz incisiva de mulher, com uma sinfonia de cães ganindo ao fundo.

– Sylvia Redbird. Ouvi dizer que você tem uma ninhada de cachorrinhos. Gostaria de dar uma olhada neles, se você ainda tiver algum para vender.

Houve uma pausa e então ela disse:

– Estou vendo um vampiro vermelho com você.

Vovó Redbird deslizou para o lado e enfiou sua cabeça ao lado da de Kevin.

– Sou eu, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Vampiros vermelhos não são bem-vindos na minha propriedade, muito menos na minha casa.

– Este vampiro vermelho é diferente. Eu dou a minha palavra – Vovó afirmou.

– É claro que você fala isso. Você está sob o controle dele. Não é não. Você não pode entrar na minha propriedade. Você não pode entrar na minha casa.

– Tina, mande Babos até aqui.

– Cachorros odeiam vampiros vermelhos. Ela vai rosnar, latir e atiçar todos os outros – a voz metálica respondeu.

– Ela vai me adorar. Eu juro, senhora – Kevin disse.

– Você vai ficar feliz por ter corrido esse risco – Vovó acrescentou.

– Está bem. Mas, quando ela começar a latir e ficar louca, eu vou ficar muito chateada com você, Sylvia. E eu estou levando a minha .45 comigo. Um movimento em falso, neto ou não, e eu arranco a cabeça desse vampiro.

– Você deve fazer isso mesmo, Tina – Vovó Redbird respondeu calmamente.

– Já vou aí.

A conexão do interfone se desligou enquanto o portão se abria.

– Não entre com o carro na propriedade dela. Vamos apenas sair do carro – Vovó disse, encontrando os olhos dele. – A cadela vai gostar de você, não vai?

Kevin abriu o sorriso.

– Os cachorros costumavam gostar de mim... antes de eu ser Marcado. E depois, na Morada da Noite de Zo, havia uma labradora dourada super legal chamada Duquesa. Ela me amava. Então acho que vai dar tudo certo.

O som de um motor de carro se aproximando cada vez mais fez Vovó Redbird suspirar.

– Bem, agora é tarde demais se estivermos errados.

– Não estamos errados, Vó. Só observe. Eu consigo lidar com essa parte. Cachorros são simplesmente incríveis! – Kevin deu a volta no carro e parou logo antes da linha de entrada na propriedade, diante do portão aberto.

O motor roncou, derrapando até parar na frente deles. Kevin teve que apertar os olhos diante das luzes ofuscantes do veículo, mas conseguiu ver uma mulher baixa – provavelmente com uma idade próxima à de sua avó. Ela tinha um cabelo desgrenhado com mechas grisalhas onduladas pintadas de roxo, rosa e azul. Era velha, mas seu corpo ainda estava em forma, o que era óbvio, pois estava usando uma calça legging enfiada em botas de cowboy turquesa e um moletom escrito KALE imitando o logo da universidade de Yale2. Apontando uma espingarda .45, ela desceu agilmente do carro, seguida por uma pequena terrier preta malhada.

– Oi, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Boa noite, senhora – Kevin disse educadamente.

– Vamos ver se a noite é boa mesmo – a velha resmungou.

– Ei! É um terrier escocês! – Kevin exclamou. – Eu sempre quis ter um. Acho que eles são os cachorros pequenos mais legais de todos.

Os olhos verdes de Tina analisaram Kevin.

– Você não soa como um vampiro vermelho.

– É porque eu sou um tipo diferente de vampiro vermelho – ele explicou.

– Um tipo bom – Vovó acrescentou.

– Impossível – Tina afirmou.

– Mostre a ela, u-we-tsi.

Kevin se agachou e sorriu para o pequeno terrier.

– E aí, garotinha! Você é muito linda. Que tal vir aqui e me deixar fazer carinho em você?

A cadela o observou tão atentamente quanto a mulher ao seu lado.

– O nome dela é Babos.

– Babos, que nome legal. Oi, Babos. – Ele estendeu a mão. – Venha cá, garota.

A cadelinha hesitou, com as orelhas levantadas para Kevin. Ela ergueu a cabeça e farejou o ar.

– Pena que não tenho nenhuma guloseima para você. Da próxima vez vou lembrar disso, mas eu prometo que sou ótimo em fazer carinho. – Ele fez gestos de coçar o queixo com os dedos. – Venha cá, Babos. Dê uma chance para mim.

O terrier escocês inclinou a cabeça, farejou o ar de novo e então, com uma pequena bufada, saiu trotando diretamente até Kevin, que sorriu e disse que ela era a cachorrinha mais esperta, bonita e doce que ele já tinha visto, cumprindo a sua promessa de coçar o seu queixo peludo enquanto ela balançava o rabo entusiasticamente.

– Uau. Eu nunca teria acreditado nisso se não estivesse vendo com os meus próprios olhos – Tina falou. – O que ele é?

– Eu disse. Ele é meu neto. E ele vai mudar tudo.


– Você tem mesmo um rancho de terriers escoceses! – Kevin não conseguiu evitar o olhar embasbacado enquanto ele e Vovó Redbird seguiam Tina para dentro do rancho espaçoso. Quando eles entraram pela garagem, foram cercados por um grupo de terriers pequenos, com suas cabecinhas em forma de tijolo, variando em cores do dourado ao trigo até o preto e o preto malhado. Kevin tentou contar quantos eram, mas, quando contou quinze deles, desistiu.

– Ahn, Vó, você estava falando sério sobre os filhotes? Cara, espero que sim.

Tina então sorriu para ele – a primeira vez que ela fez algo além de olhar como se ele fosse um inseto espetado em um mostruário de exibição.

– Eu não tenho filhotes agora, mas vão nascer em algumas semanas.

– É um código, u-we-tsi. Humanos ou vampiros azuis e até novatos azuis que são aliados da Resistência vêm ao rancho da Tina e perguntam por filhotes.

– Mas o que eles realmente estão pedindo é proteção – Tina disse.

– Espero que algum dia eu possa ter um filhote – Kevin murmurou enquanto se agachava e aproveitava totalmente o fato de estar sendo acossado por uma horda de terriers escoceses.

– Por que ele é diferente? – Tina perguntou.

– Isso, minha amiga, é uma longa história com a qual nós preferíamos não gastar tempo neste momento, já que a Resistência vai precisar dessa explicação também. Eles estão aqui?

Tina assentiu.

– No topo da montanha. Sabe onde ficam os esconderijos de caça, naquelas árvores adjacentes que dão na passagem do gramado?

– Sei.

– Alguns estão nos esconderijos. Outros estão trabalhando, tentando expandir uma área parecida com uma caverna que descobriram uns dias atrás entre as pedras ao lado da montanha. Eles chegaram na noite passada, com alguns refugiados que precisam levar clandestinamente para fora daqui, a maioria mulheres e crianças. Há uma tempestade de neve se formando. Eles acham que os refugiados vão estar seguros na montanha, pelo menos por uns dias.

Vovó Redbird suspirou.

– Eles ficam vulneráveis demais nesses esconderijos. Há tão pouco abrigo neles. Eu sei que vampiros têm resistência ao clima frio, mas é simplesmente horrível que tenham que correr de um lugar para o outro, como fazem. O estresse de não ter um lugar realmente seguro deve ser muito desgastante.

– Foi por isso que eles ficaram tão animados ao encontrar a caverna – Tina concordou. – Mas Dragon me disse que neste momento ela pode comportar apenas cerca de cinco pessoas, e isso se não se importarem em ficar amontoadas. Eles estão trabalhando para expandi-la, mas você sabe que a montanha é composta, na maior parte, por rochas e terra vermelha dura. Está indo devagar, especialmente no meio do inverno.

– Espere aí, você disse Dragon? Dragon Lankford? – Kevin perguntou.

– Sim. Dragon Lankford era o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa... antes de Neferet começar a guerra – Tina respondeu.

– A companheira dele, Anastasia, está aqui também? – Kevin quis saber, a empolgação aumentando o seu tom de voz.

Tina assentiu.

– Está sim.

– Vovó! Zoey me disse para encontrar Dragon e Anastasia Lankford... que eles com certeza poderiam me ajudar.

– Então nós estamos no caminho certo – Vovó falou com um sorriso.

– Cara, espero que sim. – Kevin se levantou depois de dar mais um abraço nos terriers. – Então, quer dizer que na real a Resistência não tem um quartel-general?

– Eles tinham um quartel-general de verdade, mas isso foi antes de Lenobia e Travis serem seguidos, encurralados e mortos, junto com os seus cavalos... – Tina perdeu as palavras enquanto tentava se recompor, obviamente perturbada demais para continuar.

Vovó Redbird se aproximou de Tina, abraçando-a em solidariedade, e então terminou a explicação.

– Lenobia e Travis tinham criado um quartel-general para a Resistência no meio do Parque Nacional de Keystone. Tem mais de setecentos acres e, exceto pelas áreas próximas à Represa e à Barragem de Keystone, é selvagem e não possui nenhuma construção, apesar de o parque ficar a apenas cerca de uma hora do centro de Tulsa. Era um lugar excelente para um acampamento rústico, principalmente porque Lenobia conseguiu retirar clandestinamente vários cavalos da Morada da Noite quando ela e Travis saíram. Alguém os traiu. Lenobia e Travis ficaram com os cavalos, atraindo o Exército Vermelho para longe do resto da Resistência e dos inocentes que estavam tentando ajudar a encontrar um lugar seguro. Eles foram massacrados. Lenobia, Travis, os membros da Resistência, os inocentes e todos os cavalos.

Kevin abaixou a cabeça, a tristeza e o arrependimento tomando conta dele.

– Você estava lá, não estava? – a voz de Tina soou áspera.

– Não. E eu agradeço a Nyx por isso. Eu ainda era um novato quando isso aconteceu, e novatos nunca tomam parte em combates. Eles ainda não são boas armas. Eles precisam estar completamente Transformados para que a sua humanidade esteja extinta o suficiente para que eles sejam perigosos e descartáveis. – Ele fez uma careta de desgosto. – Mas eu ouvi falar no massacre. O meu general, Dominick, se gabou muito por causa dessa vitória. Aquilo... aquilo me deu nojo. Ainda dá.

– Ainda bem que você não estava lá – Tina disse, com a voz ainda trêmula. – Acho que eu não conseguiria aguentar ter você aqui na minha casa se você estivesse envolvido nisso. Lenobia era uma boa amiga. E aqueles cavalos... – Ela estremeceu. – Não consigo nem pensar no que o Exército Vermelho fez com eles.

– Sinto muito – foi tudo que Kevin conseguiu pensar em dizer.

– Mostre que você sente muito. Não basta me dizer isso. Ajude-nos a impedir Neferet e reverter a tragédia que ela provocou neste mundo, e aí eu vou acreditar que você realmente sente muito – Tina disse.

– Eu vou. Eu juro.

Tina assentiu rapidamente e então fez um gesto para que eles a seguissem para dentro da cozinha, que estava exalando um cheiro delicioso. Com a horda de terriers trotando ao redor dos seus pés, Vovó Redbird e Kevin abriram caminho lentamente atrás de Tina, com cuidado para não pisar em nenhuma patinha.

– Imagino que vocês querem se juntar a eles logo.

– Sim. Seria melhor – Vovó Redbird respondeu.

– Na verdade, vocês vão me fazer economizar a viagem. Eu assei uma dúzia de pães e terminei de enlatar a minha geleia de amora. Nunca soube que vampiros amavam tanto pão fresco e geleia antes de Neferet mudar o nosso mundo, mas eles com certeza amam.

Kevin ficou salivando ao observar Tina terminar de colocar os pacotes de geleia e pão caseiro saído do forno em grandes sacolas de lona.

– Quem não gosta de pão caseiro? – ele comentou. – E o cheiro do seu pão é incrível.

Tina parou para olhar para ele. Ela balançou a cabeça.

– É difícil se acostumar com isso.

– Isso? – Kevin perguntou.

– Acho que você é uma palavra melhor do que isso. O que eu quis dizer foi que é difícil se acostumar a ter um vampiro vermelho que age como uma pessoa normal e racional dentro da minha cozinha – ela bufou, acrescentando: – Quase vale a pena sair com vocês no frio e no escuro só para ver a reação deles.

– Eu não espero que minha aceitação vá ser fácil – Kevin disse.

– Quer ouvir a verdade?

Kevin assentiu.

– Você precisa de um milagre para que eles o aceitem.

– Tudo bem – Kevin sorriu para ela. – Sei de fonte segura que Nyx está me concedendo alguns milagres.

– Para o seu bem, espero que sim. – Tina voltou a encher as sacolas de lona.

– Para o bem de todos nós, eu espero que sim – Vovó reafirmou.

– Ok, Kevin Milagroso, me ajude a carregar isto aqui.

Tina abarrotou Kevin com o máximo de sacolas que conseguia carregar, deixando apenas uma para a sua avó, e então seguiram Tina para fora pela porta de trás e passaram por uma piscina, da qual emergia um vapor semelhante a espíritos errantes.

– Que demais! – Kevin exclamou.

Tina sorriu.

– Isso e os meus terriers são os principais prazeres que me permito. Bem, isso se você não contar o meu amor por macarrão e cerveja artesanal. Eu deixo essa piscina aquecida o inverno inteiro. É lindo boiar nela olhando para as estrelas através do vapor. Faz com que eu esqueça como o nosso mundo está ferrado.

– Minha amiga, ajuda um pouco se eu contar a você que, por causa do que aconteceu com Kevin, nós temos uma chance real de derrotar Neferet? – Vovó Redbird falou.

– Sylvia, eu adoraria acreditar que nós podemos voltar a como tudo era antigamente.

– Que tal mais do que isso? – Kevin interveio. As duas mulheres apontaram olhares curiosos na direção dele. – Que tal um mundo onde humanos e vampiros são aliados e amigos de verdade? Assim como vocês duas são aliadas da Resistência. É mais do que possível. Eu vi. Pode funcionar, e faz do mundo um lugar até melhor do que o que a gente tinha aqui antes de Neferet começar a guerra.

– Filho, você não é daqui, é?

– Na verdade, eu sou. Vamos apenas dizer que eu viajei bastante recentemente.

– Eu quero o mundo de Kevin – Vovó Redbird afirmou, sorrindo carinhosamente para o seu neto.

– Bem, o seu mundo parece bom, meu filho. Mas, para mim, basta ter a paz.

– Senhora, a minha avó me ensinou a não me contentar com pouco – Kevin disse, abrindo um sorriso travesso para a sua avó.

– Ele é um pouco inexperiente, mas acho que devo acreditar nele – Sylvia Redbird falou.

– Vou dizer uma coisa: se conseguir fazer a Resistência confiar em você e aceitá-lo, eu posso acreditar nesse seu mundo – Tina disse. – E posso conseguir um filhote de terrier escocês para você de presente.

Kevin abriu um sorriso como um raio de sol.

– Promete?

– Desde que a gente não esteja em guerra e que você possa dar a ele um bom lar... sim, eu prometo.

– Feito! – Kevin exclamou.

– Feito – Tina concordou. – Ok, coloquem as sacolas aqui e levem o Polaris.

Ela abriu a tampa da caixa de metal presa ao local onde deveria ficar o assento traseiro do veículo. Kevin colocou as sacolas lá dentro depois que Tina afastou os cobertores, caixas de fósforos e bolsas de sangue...

– Sangue! – Kevin exclamou. – Nós vamos levar sangue para eles?

– É claro – Tina disse, perplexa. – Vampiros não sobrevivem só com pão e geleia.

– Mas... sangue!

Tina inclinou a cabeça.

– Meu jovem, nesse mundo em que você diz que os humanos e os vampiros vivem como amigos, eles também curaram o fato de que os vampiros precisam de sangue humano para sobreviver?

– Hum, não.

– Então, os humanos lá devem estar acostumados com os vampiros bebendo sangue, certo?

– Sim, acho que sim – Kevin respondeu.

– Bom, eu sou vegana. Eu realmente não vejo muita diferença entre beber sangue humano e comer um bife malpassado ou um carré de cordeiro sangrento. – Ela deu de ombros. – Eu não comeria nada disso, mas cada um na sua.

– Quem é você? – Kevin falou sem pensar.

– Apenas uma professora de inglês aposentada. Depois que você dá aula numa escolha pública de ensino médio, não se abala com muita coisa.

– Óbvio. Queria ter sido seu aluno. Aposto que sua aula não era um tédio – Kevin disse.

– Eu te digo que não – Tina respondeu. Então ela o surpreendeu ao lhe dar um abraço rápido. – Cuidado. E lembre-se do nosso acordo.

– Sem chance de eu esquecer que você me prometeu um filhotinho!

– Sylvia, você lembra como se chega até a montanha, não?

– Ah, acho que sim. Se não me engano, é só virar à direita – Vovó falou.

– É isso. Lembrem-se de tomar cuidado com o portão. Se tocarem naquela cerca elétrica, ela vai fritar vocês.

– Vou me lembrar disso – Vovó afirmou. Ela fez um gesto para Kevin assumir a direção. – Você dirige, u-we-tsi.

– Devagar e sempre – Tina disse quando Kevin deu a partida no Polaris. – Nós mantemos essas velhas trilhas esburacadas, principalmente depois do que aconteceu em Keystone. Você vai ter que parar e tirar uns galhos do caminho algumas vezes. É de propósito.

– Pensei que você estivesse sob a proteção de Neferet por causa das plantações de alfafa – Vovó Redbird observou.

– Eu estou, mas ultimamente os cachorros têm dado o alerta no meio da noite, e não é por causa de Dragon e do nosso grupo. Acho que o Exército Azul anda farejando por aqui. Lembre-se de contar isso a Dragon.

– Vou dizer – Vovó respondeu.

– Quando vocês chegarem à árvore caída, que é grande demais para tirar do caminho, vai ser a hora em que serão interditados – Tina os avisou.

– Eu tenho o meu código. Estou pronta – Vovó disse.

Tina balançou a cabeça.

– Você sabe que eles vão pensar que você está sob a influência de um vampiro vermelho. Eles podem atacar antes que você consiga convencê-los de não fazerem isso.

– Então eu só tenho que ser mais esperta e mais rápida do que eles – a idosa retrucou.

Tina sorriu ironicamente.

– Boa sorte.

– Obrigado, senhora – Kevin falou.

– Você não precisa me agradecer por ajudar a Resistência, filho. É a coisa certa a fazer.

– Eu não estava agradecendo por isso. Eu agradeci por você confiar em mim. Por me convidar para entrar.

– Ah, entendo. Não me agradeça. Só não faça com que eu me arrependa de confiar em você.

– Eu não vou. Prometo.

Kevin engatou a marcha no Polaris e foi na direção que a sua avó apontou – um caminho de terra que mal dava para ver e que desaparecia na escuridão dos cumes de Oklahoma. Se não tivesse que segurar as duas mãos no volante para contornar buracos e pedras, ele estaria estalando os dedos feito doido.

2 Kale significa couve em inglês. O moletom com a palavra “KALE” estampada, com a mesma letra do blusão tradicional da Universidade Yale (em que se lê apenas “YALE”), já foi usado por Beyoncé em um videoclipe. (N.T.)


4

Zoey

– Zoey! Ah, que bom que eu te achei. Você tem um segundo? – uma voz familiar gritou de algum lugar no corredor.

Fiz força para não suspirar, fixei um sorriso no rosto e me virei, enquanto Damien e Outro Jack abriam caminho pelo corredor lotado na minha direção. Assim que eles me alcançaram, meu sorriso se tornou verdadeiro.

– Oi, Damien e Jack. Vocês estão bem acomodados? Precisam de algo? – perguntei. A felicidade que irradiava deles deixava o meu coração pesado mais leve, pelo menos por um momento.

– Aiminhadeusa! Tudo aqui é simplesmente fabuloso! – Outro Jack exclamou, mirando Damien com seus olhos grandes e cheios de amor.

O sorriso de Damien era para Jack, mas ele também me inclui, compartilhando a alegria.

– Z, a gente tem tudo que precisa... nós temos um ao outro.

– E este mundo mais que demais – Jack acrescentou.

– Sim, concordo com Jack. Na verdade, a gente queria ver se nós podemos ajudar você em algo – Damien disse.

– Bem, certo. Mas o que isso quer dizer?

– A gente queria ficar mais envolvido na nova decoração do Restaurante da Estação – Damien falou.

Jack ficou assentindo feito um boneco de cabeça de mola, apesar de eu ter que admitir que ele é muito mais bonito do que os bonecos de mola em geral.

– Vocês falaram com Kramisha? Na verdade, o projeto é dela – eu disse.

– A gente não quis falar com ela antes de expor a nossa ideia para você – Damien respondeu.

Como os dois apenas ficaram ali parados sorrindo para mim, eu os incentivei a continuar.

– Ok, bom, qual é a ideia?

– Você vai amar! – Jack estava dando pulinhos, mal conseguindo controlar a ansiedade.

– A gente precisa contar para ela – Damien disse.

– Siiiiim, a gente precisa! – Jack concordou.

E, é claro, nenhum dos dois disse nada.

Eu resisti à tentação de estrangular seus pescoços ridiculamente felizes, o que Damien deve ter percebido, pois ele limpou a garganta e explicou.

– Então, você sabe que Kramisha já decidiu decorar o restaurante como uma boate da era das big bands, certo?

– Sim, certo. Todos achamos que era uma ótima ideia – eu disse.

– E é, por isso nós queremos trazer alguns especialistas em boates – Damien falou.

– Os gays! – Jack vibrou.

– Os gays? – eu disse, agora totalmente confusa.

– Na verdade, seria melhor dizer a comunidade LGBTQ – Damien corrigiu. – Eu fui até o Centro de Igualdade... você sabe que não fica longe da estação, não é?

– Sim, claro. O Centro de Igualdade de Oklahoma fica a menos de um quilômetro e meio da Rua Quatro. Eu fui lá outro dia discutir sobre uma parceria com eles para o próximo Show de Arte Mais Cores. Eu ia anunciar isso na nossa próxima newsletter – eu contei.

– A gente já sabe – Jack disse. – Toby nos contou quando estávamos lá, conversando sobre a nossa outra ideia.

Senti que eu estava parecendo uma bola de pingue-pongue entre os dois, então me concentrei em Damien.

– Explique-se, por favor.

– É simples. Toby Jenkins, o diretor do centro...

– Sim, eu conheço Toby – eu assenti.

– Ele é apaixonado por história e ficou entusiasmado de ouvir que nós vamos transformar o restaurante em um clube dançante. Ele gostaria de nos ajudar a fazer não apenas um lugar bonito com boa comida e música. Ele pode nos ajudar a fazer com que seja historicamente preciso. Certificando-se de que o palco, a pista de dança, as mesas, as toalhas e até o uniforme dos garçons sejam tão parecidos com os da era do jazz que as pessoas vão realmente sentir como se estivessem voltando ao passado quando reservarem uma noite no nosso restaurante – Damien explicou.

– Isso parece legal mesmo – eu concordei. – O que me faz lembrar que Toby me disse que tem uma lista de fornecedores que são pró-igualdade e, é claro, esses são os únicos fornecedores que nós devemos contratar. Ele disse que compartilharia essa lista comigo e então, bom... – perdi as palavras quando todos nós pensamos nos acontecimentos dos últimos dias.

– Ei, sem problemas, Z – Damien disse carinhosamente. – Nós vamos cuidar disso pra você.

– Sim, você já tem muita coisa na cabeça. Deixe a gente ajudar com isso – Jack completou.

– Obrigada. Aos dois. Sim, eu aceito a ajuda e acho que a ideia de vocês de trazer Toby e qualquer um que ele recomendar é fantástica. Podem falar para Kramisha que vocês definitivamente têm a minha aprovação.

– Aêêêê! – Jack bateu palmas.

– Você não vai se arrepender, Z. O restaurante vai ser espetacular – Damien prometeu. Ele fez uma pausa e me olhou atentamente. – Você parece cansada.

– Yoga é excelente para o alívio do estresse – Jack sugeriu. – No meu outro mundo, antes de todas aquelas coisas horrendas começarem a acontecer, eu era um professor certificado de yoga. Quer que eu conduza você em alguns alongamentos meditativos?

– Hum, não neste momento – eu respondi. – Mas se você quiser dar algumas aulas de yoga aqui na escola, acho que seria ótimo.

– Ai. Minha. Deusa! Sério? Você está brincando? Você me deixaria mesmo dar aulas?

Como é possível alguém não amar esse garoto? Ele era como um unicórnio cintilante.

– Sim, com certeza. Só espere que eu me reúna com o Conselho da Escola para pensar onde podemos encaixar as suas aulas.

Jack se atirou em meus braços, quase me derrubando.

– Obrigado! Obrigado! Posso tocar música? Yoga é sempre melhor com música. E hot yoga! A gente pode ter isso também?

Eu me desvencilhei de Jack.

– Claro. Hot yoga parece legal – eu menti. Hot yoga? Como se a yoga normal não fosse difícil o bastante. – Faça um programa do curso, com uma lista de suprimentos, para que eu possa informar o Conselho do que você precisa exatamente, e a gente bola alguma coisa.

– Que ótimo, Z. – Damien estava me observando por cima da cabeça exultante de Jack. – Mas parece que você precisa de um pouco de descanso e alívio de estresse agora.

– Você não poderia estar mais certo – eu concordei. – Por isso preciso ir. Estou a caminho da minha terapia de estábulo.

O alívio suavizou a expressão preocupada de Damien.

– Ah, excelente! Escovar Persephone sempre te ajuda a relaxar. Divirta-se. E se alguém perguntar onde você está, eu digo que você está na estação.

– Isso seria maravilhoso. Eu só preciso de uma hora para mim mesma.

– É toda sua. – Damien colocou o braço ao redor de Jack. – Venha. Vamos falar com Kramisha, e então a gente pode dar as boas novas a Toby.

Conversando animadamente com os rostos colados, Jack e Damien foram na direção da entrada da Morada da Noite. Eu observei os dois se afastando, tentando capturar um pouco da felicidade que eles exalavam.

Não funcionou. Eles se foram e tudo que eu senti foi cansaço e tristeza. De novo.

Vamos lá, Z. Recomponha-se e saia dessa! Kevin está de volta onde ele precisa estar, e é isso. Aquele mundo precisa dele. Neste mundo, Heath está morto. A sua mãe está morta. E a gente conseguiu derrotar Neferet pra valer. Controle-se!

Sacudindo-me mentalmente, saí pela porta de trás da escola, virei à esquerda e segui pela calçada até a entrada dos fundos do centro equestre. Caminhei rapidamente, mal assentindo para os novatos que me cumprimentavam. Eu só precisava de um tempo sozinha... um tempo para relaxar e não pensar muito.

No instante em que abri a porta do estábulo, respirei fundo, inalando os aromas reconfortantes de cavalo e feno. A aula já tinha começado, e eu podia ouvir Lenobia na arena, dizendo ao seu grupo de calouros que cavalos não são cachorros grandes, o que me fez sorrir em nostalgia enquanto caminhava até a baia de Persephone. Assim que a égua ruã me viu, ela fez uma saudação baixa e retumbante.

– Bom, oi pra você também, menina bonita! Como você está? – Eu peguei a escova para crinas, outra escova grande e macia e um limpador de casco na prateleira do lado de fora da baia, bem como um punhado de guloseimas de hortelã que eram as suas preferidas, e entrei. Persephone me acariciou com o focinho, obviamente procurando pelos doces, que eu ofereci a ela. Eu sorri e beijei a sua testa ampla enquanto ela lambia delicadamente a hortelã da minha mão. Depois de fazer um pouco mais de carinho e beijar o seu focinho de veludo, a égua voltou a atenção para a sua comida e eu comecei a trabalhar.

Eu amava tratar de cavalos – de Persephone principalmente. E a energia positiva dela sempre me atingia rapidamente. Logo a minha mente se esvaziava e eu não pensava em mais nada, exceto em trançar bem a sua crina e o seu rabo e em cuidar para que os seus cascos ficassem livres até da menor pedrinha.

– Persephone, menina bonita, queria que o meu cabelo brilhasse tanto quanto o seu pelo – eu disse, encostando o queixo no seu pescoço grosso e quente. Ela levantou uma pata, bufou e pareceu muito que ia tirar uma soneca. Por entre as colunas da baia, dei uma espiada no relógio do estábulo. – Droga. Mais uns vinte minutos e essa aula vai terminar, e então os novatos vão se esparramar por todo canto.

O que eu não daria para ser uma novata de novo, sem nenhuma preocupação com o mundo.

Comecei a ir na direção da porta para guardar as escovas quando Persephone bufou de novo e, com um grunhido muito satisfeito, dobrou as longas patas e se estatelou no meio da sua baia cheia de palha.

– Então você estava falando sério em tirar uma soneca, hein? – Eu me virei para a porta e então hesitei. – Bem, por que não? Talvez um pouco de descanso vá me ajudar a sair desse mau humor terrível. – Soltei as escovas e fui até Persephone. A doce égua mal abriu o olho quando eu me aconcheguei, bem na frente das suas patas dianteiras, recostando-me na sua barriga quente. – Mas eu provavelmente não vou dormir de verdade. Não tenho conseguido dormir muito bem ultimamente – contei a ela em meio a um bocejo gigante. Então coloquei a cabeça no ombro dela, fechei os olhos e caí direto no sono.


Toc-toc-toc! Alguém estava esmurrando a minha porta.

Minha porta? Espere aí. Eu estou no estábulo com Persephone. Estão esmurrando a porta da minha baia?

Levantei a cabeça. Tudo escuro... estava tudo muito, muito escuro mesmo. Como poderia estar tão escuro nos estábulos?

Toc-toc-toc!

– Ok, ok! Já vai – eu disse.

Eu disse? Mas eu nem abri a boca.

Uma luz se acendeu e eu dei um pulo em choque.

Eu não estava no estábulo. Eu estava no dormitório. No meu antigo dormitório, mas, na verdade, era parecido com o meu antigo dormitório. As minhas coisas estavam lá, mas a cama de solteiro do outro lado do quarto estava vazia. Stevie Rae não estava em lugar nenhum. As coisas dela também não estavam lá. Era como se ela não existisse.

Toc-toc-toc!

– Ei, estou me vestindo. Psiu! Aguenta aí!

Eu observei enquanto uma versão de mim colocava uma calça jeans e um moletom preto e dourado dos Tigers da Broken Arrow.

Que diabos era isso?

Eu me senti super tonta e enjoada, e então a minha confusão começou a clarear quando eu vi que o meu corpo estava quase completamente transparente, e que eu estava pairando um pouco acima da cama.

Então eu finalmente entendi. Aaah, eu estou dormindo. Isso é um sonho... um sonho sobre quando eu ainda era uma novata. O que, na verdade, fazia sentido. Quer dizer, eu andava tão estressada que estava me escondendo no estábulo, tirando uma soneca com o meu cavalo e desejando muito que eu fosse uma novata sem preocupações. Não é surpreendente que eu estivesse sonhando que era uma novata de novo.

Só que eu não era a novata. Eu estava observando a mim mesma, eu que era uma novata.

Ok, então, tudo bem. Sonhos são esquisitos. Olhei em volta do quarto semifamiliar enquanto “Zoey” corria até a porta. Se Kalona aparecer... de novo... eu acordo desta vez. Na mesma hora.

A Zoey do sonho hesitou diante do pequeno espelho sobre a pia e tentou ajeitar o cabelo de quem tinha acabado de acordar, e eu dei a primeira boa olhada no seu rosto.

Espere aí, isso está errado. Essa novata Zoey tem uma Marca normal, como todos os outros novatos.

Novamente, racionalizei que aquilo não era um grande problema. Quer dizer, se eu estava sonhando em escapar do estresse sendo uma novata, eu definitivamente não queria ser a única novata com uma Marca preenchida. De novo.

A Zoey do sonho abriu uma fresta na porta. Eu vi o seu corpo se contrair com a surpresa, e então ela deu um passo atrás para poder abrir a porta inteira e... mostrar Neferet parada no corredor.

– Ah, que inferno! Corra! Este é um sonho péssimo! – eu gritei.

Mas a Z do sonho não me ouviu – nem a Neferet falsa do sonho.

– Grande Sacerdotisa! Oi. Eu, ahn, posso convidá-la para entrar? – a Zoey do sonho perguntou desajeitadamente.

– Não! Não a deixe entrar no seu quarto! – eu disse, mas, de novo, nenhuma delas me ouviu.

– Ah, não, querida. Sinto muito por acordá-la, já que o sol ainda não se pôs, mas você tem uma visita que parece um pouco perturbada – disse a Neferet do sonho com uma falsa simpatia que me dava nojo.

– Vai se ferrar, Neferet! – eu berrei. Claro que elas não me ouviram, então eu suspirei e esperei para ver qual esquisitice ia acontecer em seguida no sonho, e reconsiderei seriamente a minha postura de nunca falar palavrão.

– Uma visita? Sinto muito, Grande Sacerdotisa, mas não estou entendendo.

– É o seu padrasto. Ele está... – Neferet fez uma pausa e uma careta obviamente contrariada – insistindo muito para que você vá falar com ele. Ele mencionou algo sobre a sua alma imortal.

– Ah, eca! Ele! – a Zoey do sonho disse, e eu ecoei o seu pensamento. Só fale que é para ela dizer que ele vá embora e nunca mais volte!

Mas a Zoey do sonho parecia mais nova e mais legal do que eu – ou talvez apenas mais nova e mais ingênua.

– Ok, eu vou falar com ele.

– Ótimo! Eu vou acompanhá-la até lá e permanecer com você. Ele realmente é um homem desagradável.

– Sim, com certeza, e obrigada por ficar comigo.

Neferet fez um gesto para que a Zoey do sonho a seguisse, o que ela fez, apesar de eu ficar gritando “Não, não vá!”.

E quando a Z do sonho fechou a porta, eu me senti flutuando atrás dela e atravessando a porta fechada.

– Ok, este é o sonho mais estranho que já tive na vida – falei em voz alta para mim mesma enquanto voava atrás da versão de mim e de Neferet no sonho. As duas estavam conversando despreocupadamente, como se a Neferet do sonho fosse mesmo uma Grande Sacerdotisa decente e a Zoey do sonho fosse apenas uma novata recém-Marcada. Quase como quando eu fui Marcada pela primeira vez e Neferet fazia um papel de mãe para mim.

Eu estava muito errada sobre aquilo, mas isto era apenas um sonho. Devia mesmo parecer estranho.

E a Morada da Noite parecia estranha também. De alguma forma, parecia mais escura e vazia do que a minha escola sempre cheia e onde ninguém nunca dormia. Nesse último ano, desde que meus amigos e eu assumimos o comando, nós havíamos expandido tanto os programas humanos/novatos que sempre havia algo acontecendo a qualquer hora.

Ali, não. Tudo estava silencioso, e a luz cada vez mais acuada do sol se pondo não fazia nada para aliviar a sensação de escuridão.

– Hum, a gente não está indo na direção errada? – a pergunta da minha eu do sonho chamou de volta a minha atenção, e eu percebi que Neferet havia guiado a Zoey do sonho para fora pela porta de trás da escola, em vez de na direção dos escritórios administrativos na frente do prédio principal.

– Oh, desculpe. Eu deveria ter explicado. O seu padrasto se recusa a entrar no campus. Um dos Guerreiros o encontrou espreitando lá fora no muro leste. – Neferet fez uma pausa e abriu um sorriso falso. – Isso não foi muito generoso da minha parte. Eu deveria ter escolhido outra palavra no lugar de espreitando.

O rosto da Zoey do sonho se enrubesceu e ela balançou a cabeça de desgosto.

– Não, essa é a palavra perfeita. E sou eu que preciso pedir desculpas. De novo. O meu padrasto é péssimo. Um religioso totalmente hipócrita, cheio de ódio e preconceito. – A eu do sonho estremeceu. – Ser Marcada e então me afastar dele foi um alívio. Eu vou conversar com ele e me certificar de que ele não voltará aqui para incomodar você nem nenhum outro vampiro.

– Ah, querida, por favor, não se preocupe com um humano sendo um incômodo. Não há nada de novo nisso. É o que os homens humanos parecem saber fazer melhor: incomodar quem é melhor do que eles.

A Zoey do sonho pareceu não saber como responder. Nesse instante, Neferet acelerou o passo, então nós duas tivemos que nos apressar para alcançá-la enquanto ela atravessava o gramado, indo direto até o alçapão no muro leste.

– O muro leste. Típico. Coisas horríveis sempre acontecem aqui – resmunguei.

Mas a Zoey do sonho não podia me ouvir, então nós seguimos Neferet até o alçapão, que ela abriu pressionando a pedra em que estava escrito 1926, o ano em que o muro foi construído. Eu flutuei pela passagem atrás delas até a área do lado de fora, bem ao lado do muro. Mesmo que o sol ainda não houvesse se posto, com certeza parecia que sim, pois estava tão escuro abaixo dos braços dos antigos carvalhos gigantes que ficavam em volta do muro que nós estávamos completamente nas sombras.

– John? – a Zoey do sonho chamou, olhando em volta da área escura e vazia. – Sou eu. Zoey. O que você precisa me dizer?

A eu do sonho estava procurando ao redor, com as mãos no quadril, obviamente exasperada. Só que a minha atenção não estava na Zoey do sonho. Estava em Neferet. A Grande Sacerdotisa havia ficado perto do muro, onde eu percebi que uma estaca grossa de madeira havia sido fixada no chão, tipo algo que um fazendeiro usaria para amarrar arame farpado.

Mas não havia cercas de arame farpado no centro de Tulsa. Que diabos estava acontecendo?

Neferet foi até a estaca e abriu uma grande bolsa que estava ali atrás – e desembainhou uma espada longa que parecia muito perigosa.

Eu entendi tudo em um instante. A estaca era parecida demais com aquela na qual eu encontrei a Professora Nolan, com a cabeça decepada.

– Zoey! Saia daí agora! – eu berrei para a minha eu do sonho desavisada, mas aquela Z não fez nada além de olhar em volta procurando pelo padrasto irritante.

Silenciosamente, Neferet se aproximou dela pelas costas, carregando a espada com as duas mãos, parecendo um samurai assassino.

– Aiminhadeusa, se mexa!

A Zoey do sonho não me ouviu, mas ela de fato se mexeu, virando-se de volta para dizer:

– Neferet, acho que ele foi embora. Sinto muito mesmo que isso tenha sido tanta perda de tempo e que você teve que... – Ela perdeu as palavras ao ver a espada de Neferet.

– Ah, querida, não há absolutamente nada a se desculpar. E as coisas saíram exatamente como eu planejei. Quando encontrarem você, vão acreditar que foi trabalho de humanos... do Povo da Fé, na verdade. Eu vou conseguir a minha guerra. – Neferet sorriu de modo irracional, mostrando os dentes, vitoriosa. – E você nunca mais vai ser importunada pelo seu padrasto ridículo de novo. Acho que isso é uma vitória para nós duas.

Os olhos da Zoey do sonho ficaram vidrados com o choque, e ela ficou balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar. Com uma voz de menininha, ela repetiu várias vezes:

– Não, eu não entendo... eu não entendo... eu não...

Eu gritei quando Neferet girou em uma curva tão graciosa quanto mortal e, com apenas um golpe, cortou a cabeça da Zoey do sonho. O sangue se espalhou por toda parte quando o corpo desabou, contorcendo-se espasmodicamente.

Tanto sangue! Há tanto sangue!

Eu não conseguia parar de gritar. Eu queria fechar os olhos. Eu queria acordar, mas eu estava congelada no lugar, pairando sobre a minha eu do sonho, enquanto Neferet limpava a sua espada no chão. Depois ela voltou até a bolsa para tirar de lá uma corda e uma placa rústica, artesanal, na qual estavam rabiscados os dizeres: A FEITICEIRA NÃO DEIXARÁS VIVER! ÊXODO 22:18.

Eu reconheci aquela citação da Bíblia. Foi a mesma encontrada sobre o corpo crucificado e sem cabeça da Professora Nolan.

E então eu a escutei. Eu me escutei. O meu olhar desviou de Neferet e se voltou para a cabeça cortada que tinha rolado até parar em uma poça de sangue abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Quando eu olhei horrorizada, os olhos se abriram de repente, e a minha própria voz explodiu na minha cabeça.

Você tem que ajudar Kevin a detê-la – nada mais importa!

Atrás de mim, alguém segurou o meu ombro, e eu gritei tão alto que parecia que a minha voz estava rasgando...

– Z! Sou eu! Está tudo bem!

Ainda gritando, eu me sentei, dando de cara com Stark e quase quebrando o seu nariz. Persephone bufou e colocou as orelhas para trás, como se estivesse procurando algo para atacar.

– Shhh, está tudo bem, doce égua – Lenobia apareceu repentinamente, acalmando Persephone e lançando um olhar preocupado na minha direção.

– Stark? – Eu olhei freneticamente em volta, com meu coração batendo tão forte e rápido que eu podia senti-lo nas minhas têmporas. Estou na baia com Persephone. Foi só um sonho. Não foi real.

– Ei, sim, é claro que sou eu. Que diabos está acontecendo? Eu senti o seu medo como um ferro em brasa. O que aconteceu?

Eu abri a boca para contar a ele sobre o sonho... e não consegui. Porque eu percebi que estava errada. Não tinha sido só um sonho. Era uma mensagem. Uma mensagem que eu tinha que guardar para mim mesma, ao menos por enquanto.

– Stark! – Eu deixei que ele me puxasse para dentro dos seus braços fortes e seguros. – Sinto muito. – Virei a cabeça para poder ver Lenobia. Persephone tinha se levantado e estava recostada contra a Mestra dos Cavalos, parecendo assustada e preocupada. – Ah, não! Eu assustei Persephone também! – Eu me levantei com a ajuda de Stark e fui até a égua para acariciá-la e beijá-la. – Sinto muito, muito mesmo, menina bonita. Eu estou bem. Está tudo bem.

– Não. Não está. Eu senti o seu medo, seu pavor. O. Que. Diabos. Aconteceu? – Stark perguntou.

Eu tentei dar uma risada, mas saiu mais parecido com um soluço.

– Isso é realmente constrangedor. Foi só um sonho.

– Na maioria das vezes, seus sonhos são mais do que apenas imagens da sua imaginação – Lenobia disse, não de um jeito rude. – Da última vez que um sonho a despertou, era Kalona.

– Só que não era realmente Kalona – Stark acrescentou. – Então, o que foi?

Eu enxuguei o suor do meu rosto.

– Gente, eu realmente sinto muito. Não foi nada como os sonhos com Kalona ou o não Kalona. Eram só aranhas.

– Aranhas? – Lenobia perguntou.

Eu assenti e estremeci.

– Aranhas.

Stark suspirou e me puxou de novo para os seus braços.

– Ela morre de medo de aranha – ele explicou para Lenobia.

– No meu sonho, eu caí em um poço cheio delas. Foi horrível – eu menti, sentindo-me tão horrível por isso quanto o próprio poço cheio de aranhas.

– Bom, que alívio – Lenobia disse. – Mas, Zoey, se você tem tanto pavor de aranhas, você realmente deveria procurar uma terapia com hipnose. Uma das Grandes Sacerdotisas da Morada da Noite de Saint Louis é especialista nisso. Tenho certeza de que ela pode ajudar você.

– Obrigada. Vou me lembrar disso. Eu normalmente não me incomodo muito com a minha fobia de aranha.

– Mas você anda estressada e sem dormir direito – Stark falou. – Então, um pouco de terapia talvez fosse bom pra você.

– É, talvez. Se eu tiver outro sonho como esse, com certeza vou procurar.

Stark deu um beijo na minha testa.

– Ei, será que um festival de psaghetti vai fazer você se sentir melhor? Você dormiu na hora do almoço, e já é quase hora do jantar.

Eu não demonstrei como fiquei chocada ao descobrir que tinha dormido por horas em vez de por uns vinte minutos. Em vez disso, eu assenti e tentei demonstrar entusiasmo.

– Psaghetti sempre faz com que eu me sinta melhor.

– Foi o que pensei – Stark disse, segurando a minha mão. – Foi um longo dia para mim também. Vamos comer.

– Boa ideia. – Dei um beijo em Persephone de novo e sorri envergonhada para Lenobia enquanto saíamos da baia. – Desculpe por assustar você. Estou realmente me sentindo idiota por isso.

Lenobia estava olhando para mim com seu olhar cinza e esperto.

– Você está perdoada – ela falou. – E, Grande Sacerdotisa, se precisar conversar, lembre-se de que estou sempre aqui a seu dispor.

– Obrigada! Vou me lembrar disso – falei, fechando a porta da baia.

De mãos dadas, Stark e eu saímos do estábulo, na direção do refeitório.

Eu vou falar sobre isso, mas só quando tiver decidido exatamente o que fazer e como. Verdade seja dita, eu já tinha uma ideia. Dei uma olhada em Stark, sabendo que ele seria o meu maior obstáculo. Ele ia ficar bravo. Muito bravo mesmo.

Ah, que inferno...


5

Outro Kevin

– Você parece estar com frio, Vó. Da próxima vez que eu for tirar um desses galhos do caminho, vou pegar um cobertor na caixa lá atrás. Não quero que você fique doente.

A idosa gesticulou para afastar a preocupação do seu neto.

– U-we-tsi, eu ainda me purifico naquele córrego que corre atrás da minha casa. Está sempre frio. Estou bem. E nós já estamos quase no topo da montanha. Acho que, da próxima vez que a gente parar, não estaremos mais sozinhos.

– O que é esta terra? – Kevin olhou em volta, apertando os olhos através da escuridão para a área selvagem de uma montanha de Oklahoma, cheia de carvalhos antigos, relva na altura da cintura e muitas e muitas rochas de arenito.

Vovó indicou a estrada de terra irregular em que o robusto Polaris estava sacolejando.

– Estas são velhas trilhas da época em que o petróleo foi descoberto, e quando digo velhas, quero dizer velhas mesmo. Elas foram feitas por volta de 1901 e, para a nossa sorte, abandonadas em 1902, bem antes de pensarem em colonizar tudo isso ou pelo menos em alargar estes caminhos e pavimentá-los. A família de Tina por parte de mãe era líder do Povo Creek, e a propriedade desta enorme porção de terra passou para ela. Tina a protege há décadas.

– Então, a cerca elétrica já existia antes de a guerra começar?

– Não. Isso foi uma melhoria que ela fez no último ano. Discretamente, usando apenas o trabalho daqueles que são aliados à Resistência. Ela sabe que aquilo não iria deter um ataque do Exército Vermelho, mas a cerca tem o efeito de dissuadir bisbilhoteiros aleatórios e caçadores clandestinos.

– Aposto que deve ser bem bonito aqui durante o dia. É fácil imaginar como seria esse lugar há cem anos.

– É mesmo.

– Mas seria mais divertido imaginar se não tivesse tantas aranhas. Sem para-brisa nem capota nesta coisa, a gente é tipo um imã para aranhas. – Kevin fez uma careta quando ergueu o galho grosso que ele tinha quebrado na primeira parada, balançando-o na frente dele e de Vovó, tentando retirar teias de aranha do caminho antes que acabassem parando no meio delas.

– Aranhas comem carrapatos e mosquitos, u-we-tsi. Elas são apenas um mero inconveniente para nós. – Ela levantou as sobrancelhas. – A menos que, como Zoey Passarinha, você também tenha pavor delas.

– Vó, a minha masculinidade diz que é melhor eu não responder a essa pergunta.

Kevin seguiu em frente, aproveitando o som da risada doce de sua avó. Logo, porém, ele percebeu que não tinha escolha a não ser deixar que as teias de aranha decorassem todo o seu corpo, já que ele tinha que manter as duas mãos no volante e se concentrar para que o Polaris não capotasse quando o caminho foi ficando cada vez mais traiçoeiro. Os seus faróis iluminaram uma árvore enorme, caída como um gigante adormecido sobre a trilha, e ele diminuiu a velocidade até quase ficarem parados.

– Essa deve ser a barricada final – ele disse.

– Prepare-se, u-we-tsi. Dirija direto até a árvore e então pare. Desligue o motor imediatamente.

Kevin engoliu o nervoso e fez o que ela disse. Dirigiu até a enorme árvore caída, estacionou o veículo e desligou o motor. Assim que ele fez isso, a sua pequena e velha avó o deixou totalmente chocado ao subir com agilidade para o banco elevado da parte de trás do Polaris, tão perto dele que sua perna estava pressionada contra o braço dele. Ela levantou a cabeça através das barras estabilizadoras, respirou fundo e então gritou.

– Estou tentando colher pés de mostarda à luz da lua. É nessa hora que eles ficam mais potentes!

– Isso é verdade, Vó?

– Claro que não. É o meu código. Agora, shiu.

Houve um barulho como o do vento farfalhando através da grama alta e meia dúzia de vampiros azuis desceram dos carvalhos enormes ao redor deles – com espadas levantadas de prontidão, enquanto formavam um círculo que foi se fechando em volta do Polaris.

Um vampiro baixo e corpulento, em cuja face havia uma intrincada tatuagem com dois dragões cuspindo fogo, deu alguns passos à frente, ficando a poucos metros de Kevin. Ele empunhava uma espada longa com as duas mãos, e a sua atenção estava concentrada no vampiro vermelho.

– Vampiro vermelho, liberte Sylvia Redbird. Ela não merece perder a vida junto com você hoje.

Sylvia cuidadosamente se colocou na frente de Kevin, ficando empoleirada entre o seu neto e a espada do vampiro azul.

– Merry meet, Dragon.

Dragon Lankford estreitou os olhos e continuou a não falar diretamente com a idosa, dando uma ordem para Kevin.

– Liberte-a.

Devagar, com cuidado, Kevin levantou as mãos do volante, mantendo-as estendidas, com as palmas voltadas para fora.

– Minha avó está completamente livre.

– Sylvia, venha para cá – Dragon disse.

– Só se você me der sua palavra de que vai me escutar antes de decapitar o meu neto.

Dragon voltou o olhar rapidamente para a velha senhora.

– Seu neto?

– Sim, meu amigo. Este é Kevin. Ele vem em paz como seu aliado, assim como eu.

O olhar duro e vazio de Dragon se voltou de novo para Kevin.

– Então eu sinto muito pela dor que essa morte vai causar a você.

– Dragon, você precisa me escutar. Se não fizer isso, se você o massacrar sem pensar, como você vai ser diferente de Neferet e do seu exército de monstros vermelhos?

Dragon Lankford fez uma pausa longa o suficiente para olhar com tristeza para Sylvia de novo.

– Eu não a culpo por trazê-lo aqui. Você está claramente sob a influência dele. Você vai me perdoar quando recobrar a consciência.

A visão de Kevin, que era aguçada de modo sobrenatural, conseguiu perceber o que estava prestes a acontecer um instante antes de Dragon atacar. Kevin só conseguiu pensar no que a longa espada afiada igual a uma navalha poderia fazer na sua pequena e velha avó. Ele se mexeu com uma velocidade estonteante quando Dragon deu o bote, atirando-se na frente dela enquanto pegava o seu galho de proteção contra aranhas e desviava o golpe da espada. Deslocado para o lado, o golpe que era destinado a decapitar sua cabeça acabou riscando as suas costas de ombro a ombro.

No começo, ele não sentiu nenhuma dor – apenas um puxão e o súbito calor do seu sangue jorrando pelas costas.

Vovó Redbird gritou e caiu sobre o corpo de Kevin, bloqueando o próximo golpe fatal de Dragon.

– Cheire o sangue dele! – Sylvia berrou. – Cheire, Dragon! O sangue dele não é como o dos outros vampiros vermelhos! – Pressionada contra o corpo ensanguentado do seu neto, a raiva de Sylvia era quase palpável. – Você vai ter que me matar para atingi-lo!

– Bryan, espere.

Em meio à confusão do choque, Kevin observou uma mulher se aproximar do Mestre da Espada e gentilmente tocar o seu braço. A beleza dela era etérea, fazendo-a parecer com uma das fadas ancestrais. Kevin achou que o seu longo cabelo loiro parecia irradiar luz própria. E um corvo enorme estava empoleirado serenamente no seu ombro.

– Meu amor, a nossa amiga Sylvia está certa. O sangue desse garoto não tem cheiro de morte.

Aquilo fez a espada de Dragon hesitar. O Guerreiro respirou fundo, e então arregalou os olhos. Ele deu um passo à frente, facilmente retirando Vovó Redbird de cima de Kevin e depositando-a ao lado da trilha, perto da mulher com o corvo. Dragon então pressionou a espada contra o pescoço de Kevin.

– Isso é magia negra? O Exército Vermelho aprendeu a disfarçar o seu cheiro? – Dragon o interpelou.

– Não – Kevin respondeu de modo ofegante, tentando falar em meio à dor ardente em suas costas. – Não é magia negra... é amor. Nyx intercedeu por mim e devolveu a minha humanidade. Por favor, não machuque a minha avó.

E então a beleza etérea novamente estava lá. Facilmente afastando a espada assassina para o lado, ela tocou o rosto de Kevin, sorrindo docemente para ele. Então ele percebeu quem aquela bela devia ser: Anastasia, a companheira de Dragon Lankford.

– Bryan, olhe além da sua raiva e veja este garoto.

Lentamente, Dragon colocou a longa espada na bainha presa às suas costas. Então ele deu um passo à frente, ficando a um palmo de distância de Kevin, que estava fazendo o melhor que podia para não desabar sobre o volante. O Guerreiro o cheirou e analisou a sua Marca.

– O que você é? – ele finalmente perguntou.

– Um garoto vampiro que você quase matou – disse Sylvia Redbird ao abrir caminho e passar por Dragon. – Esta ferida precisa de um curativo. Ele está perdendo muito sangue.

– Nós vamos cuidar dele. Você consegue andar? – a mulher encantadora perguntou a Kevin.

Dragon falou antes que Kevin conseguisse fazer a sua voz sair.

– Não, Anastasia. Diferente ou não, ele ainda é um vampiro vermelho e, portanto, nosso inimigo. Eu preciso acabar com ele.

– Meu amor, nós não podemos perder a nossa capacidade de demonstrar misericórdia ou, como Sylvia resumiu tão bem, não vai haver diferença entre nós e os monstros de Neferet. Confie em mim. Tenho um pressentimento bom sobre este garoto.

Dragon olhou para a sua companheira por um longo momento antes de assentir. Era um aceno leve, mas, ainda assim, ele havia assentido.

– Vamos cuidar dele e ouvir a sua história. Nós não somos monstros.

Anastasia beijou o rosto de Dragon enquanto o corvo em seu ombro observava Kevin com olhos escuros e inteligentes.

– É claro que não somos. – Ela se virou de novo para Kevin e repetiu a pergunta: – Você consegue andar?

– Sim. Acho que sim. – Ele começou a tirar as pernas para fora do Polaris. Antes que conseguisse se conter, Kevin arfou com a pontada de dor. Pontos brilhantes de luz brotaram na sua visão. Ele teria caído se Anastasia não o tivesse segurado.

– Eu... eu si-sinto muito – ele disse, batendo os dentes.

– Bryan! Este garoto está terrivelmente ferido – disse a bela, enquanto o seu corvo levantava voo, grasnando indignado.

– Há bolsas de sangue e cobertores no contêiner, junto com o resto dos mantimentos que Tina enviou. – Vovó Redbird foi apressada até o porta-malas do Polaris, voltando para o lado de Kevin com dois cobertores enrolados e o braço cheio de bolsas de sangue. Ela desenrolou o cobertor na trilha, no espaço entre o Polaris e a árvore caída, e arremessou o outro cobertor para Dragon. – Use essa espada para algo além de machucar crianças. Corte isso em tiras.

Kevin achou ter ouvido Dragon resmungar “Sim, senhora”, mas era difícil ter certeza com o zumbido nos seus ouvidos.

– U-we-tsi, Anastasia e eu vamos ajudar você a se deitar naquele cobertor. Depois nós vamos fazer um curativo nesse ferimento. Mas primeiro beba uma dessas bolsas de sangue. Isso vai ajudar.

– A-Anastasia? – Kevin gaguejou. – Vo-você é a companheira de Dragon, ce-certo? Mi-minha irmã me disse para en-encontrar vocês. Mas ela nã-não falou que você tinha um pássaro. – As mãos dele estavam tremendo demais para segurar a bolsa de sangue, então Vovó a segurou perto dos seus lábios enquanto ele bebia a primeira bolsa, depois a segunda, e, por fim, a terceira.

– Sim, é claro que sou a companheira de Dragon, e Tatsuwa não é um pássaro. Ele é um corvo. Se ele ouvisse você o chamando de pássaro, nunca o perdoaria – Anastasia falou com Kevin com uma voz calma e tranquilizadora. – Ok, vamos colocar você no cobertor.

Ela voltou o olhar aguçado para o seu companheiro e, antes que Kevin pudesse se dar conta, uma onda de dor e surpresa ameaçou inundá-lo quando o compacto Guerreiro o carregou para fora do veículo, como se ele não pesasse mais do que uma criança pequena. Então ele o levou até o cobertor e o soltou sobre ele, de bruços.

Determinado a não chorar, Kevin mordeu com força a parte interna da sua bochecha enquanto sua avó e Anastasia pressionavam tiras de cobertor contra a ferida encharcada de sangue. Elas o ajudaram a se sentar para que conseguissem enfaixá-lo em volta do peito e em cima dos braços.

– Eu me sinto estranho – Kevin disse. – Tipo como se eu estivesse flutuando.

– O corte é longo e profundo, mas você vai se recuperar – Anastasia prometeu. – Eu vou dar pontos para fechá-lo assim que nós o levarmos de volta conosco.

– Você é muito bonita – Kevin falou sem pensar.

– Grumpf – Dragon grunhiu de onde estava, bem perto da sua mulher, ainda observando Kevin com desconfiança.

– Obrigada. E você está sendo um ótimo paciente – Anastasia respondeu, ignorando o seu companheiro.

– Pronto. Isso é o melhor que nós podemos fazer aqui. – Vovó Redbird terminou o curativo. – Acho que é melhor ele não tentar andar. O sangramento ainda não parou de fato. Quanto mais ele se mexer, pior vai ficar.

– Concordo. – Anastasia olhou para o seu companheiro e ergueu uma sobrancelha loira e arqueada. – Bryan?

Dragon Bryan Lankford suspirou.

– Johnny B e Erik... peguem o resto dos mantimentos no Polaris.

– Erik? – Kevin virou o rosto para poder ver o vampiro jovem e alto. – Erik Night?

Erik deu uma olhada rápida na direção dele.

– Sim, eu sou Erik Night.

– Eu amei você como o Super-Homem! Mas, ahn, achei que você tivesse morrido. Foi o que falaram no Exército Vermelho.

Erik bufou.

– A única coisa que está morta em mim é a minha carreira de ator... morta pelas merdas que Neferet fez.

– Ei! Chega de conversa fiada. Vocês dois, peguem os mantimentos como eu mandei. – Dragon deu um olhar fulminante para Kevin antes de se voltar para Vovó Redbird. – Sylvia, imagino que você virá junto com o seu neto e não voltará para o rancho de Tina hoje.

– Imaginou certo.

Dragon suspirou de novo.

– Drew, esconda o Polaris. É melhor que os outros se espalhem pela montanha para ter certeza de que o Exército Vermelho não os estava seguindo. E eu quero dizer até lá embaixo da montanha. Verifiquem todos os caminhos, principalmente os que vêm da Lone Star Road. – Ele ergueu a voz e chamou: – Erik! Pensando bem, deixe Johnny B descarregar os suprimentos. É melhor você descer até o lado da montanha que dá para a casa de Tina, e verificar se ela não acendeu uma fogueira de alerta.

– Pode deixar!

– Ninguém está me seguindo. Eles não sabem que estou aqui – Kevin afirmou.

– É melhor você não falar – Dragon disse a ele.

– Não dói mais nem menos se eu falar – Kevin respondeu, tentando sorrir para o vampiro carrancudo.

– Eu quis dizer que é melhor para mim. – Em um movimento, Dragon se inclinou e colocou os braços em volta de Kevin, levantando-o como se ele fosse um bombeiro resgatando uma vítima e colocando-o sobre suas costas largas. Então o Guerreiro se voltou para a sua companheira.

– Eu sigo vocês.

– É claro, meu amor – disse Anastasia.

A última coisa que Kevin ouviu antes de felizmente ficar inconsciente foi a risada musical de Anastasia Lankford e o grasnido do seu corvo que voava em círculo acima deles.


6

Outro Kevin

Kevin recobrou a consciência ao ouvir o barulho de uma discussão.

– Ele não vai conseguir subir em nenhum dos esconderijos de caça. Nós precisamos levá-lo para a caverna – Anastasia estava dizendo.

– Eu não acho isso uma boa ideia – Dragon retorquiu. – Se ele souber que nós estamos escavando uma caverna, então existe o risco de que o Exército Vermelho descubra isso também.

– Meu amor, o garoto já sabe como as coisas funcionam aqui. Ela sabe que Tina é uma aliada. Se ele nos trair, vai ser como o Keystone Park de novo, e nós nunca vamos conseguir voltar para cá – Anastasia falou.

– Kevin não vai trair vocês – a avó afirmou. – Dragon Lankford, você pode sentir pelo cheiro que ele não é como os outros. Ele não age como os outros. Há uma explicação para o que aconteceu com ele, mas essa explicação não será relevante se o meu neto morrer da ferida que você infligiu.

Foi preciso várias tentativas, mas finalmente Kevin fez a sua voz soar. Apesar de mal conseguir pronunciar mais alto do que um sussurro, o seu rosto estava perto do ouvido de Dragon, e o Mestre da Espada não teve dificuldade em escutá-lo.

– Por favor, me coloque no chão.

– Kevin? Você está acordado? – Vovó Redbird estendeu a mão para tirar o cabelo cheio de suor de Kevin dos seus olhos.

– Po-por favor. Eu prefiro sangrar até a morte do que continuar sendo carregado.

– Bryan Lankford, leve este garoto até a caverna. Agora.

Kevin sentiu o suspiro de Dragon, mas o poderoso Guerreiro fez o que sua companheira ordenou. Ele seguiu por um caminho estreito, que, pelo que Kevin conseguiu ver, era uma área plana e coberta por grama no alto da montanha. Eles desceram contornando várias rochas enormes de arenito e finalmente chegaram a uma abertura estreita voltada para o precipício. Uma luz pálida e trêmula vinda de dentro projetava sombras que bruxuleavam nas pedras. Dragon fez uma pausa, enquanto Anastasia deslizava para dentro. Momentos depois, três figuras encapuzadas saíram apressadas. Eles não olharam para cima, apenas mantiveram suas cabeças abaixadas, escondendo os rostos ao passar por Dragon, Kevin e Vovó Redbird.

– Ok, tragam o garoto para dentro – a voz de Anastasia chegou até eles.

Dragon virou-se de lado para que ele e a sua carga conseguissem entrar. Então, sem a menor cerimônia, ele largou Kevin no chão de pedra da pequena caverna, e o mundo de Kevin ficou temporariamente cinza com pontos brilhantes.

– Você poderia ter sido mais gentil – Anastasia disse.

– Eu poderia tê-lo matado e poupado todos nós dos problemas que ele vai trazer – Dragon replicou.

– O meu neto traz esperança, não problemas, Dragon Lankford – Vovó Redbird disse com firmeza.

– Sylvia, perdoe-me por dizer isso, mas é claro que você pensaria dessa maneira. Ele é sua família. A grande lealdade que você demonstra por ele é admirável, seja ela justificada ou não – Dragon respondeu.

Conforme a visão de Kevin ficou mais clara, ele viu sua avó encarar o Mestre da Espada. As mãos no quadril, os cabelos grisalhos recaindo por seus ombros, e ele nunca a havia visto ficar tão enfurecida.

– Kevin foi Marcado há mais de um ano. Ele se Transformou logo depois disso. Alguma vez eu mencionei o nome dele a você?

– Não, mas...

– Não! Eu não mencionei – ela o interrompeu. – E não fiz isso porque eu não iria, não poderia colocar a Resistência em perigo, e ainda assim aqui estou. De repente trazendo o meu neto até vocês... um neto que é claramente um vampiro vermelho, mas que não tem o cheiro diferente do seu e que age de um modo perfeitamente racional.

– Sylvia, desde os assassinatos de Lenobia e Travis, manter a Resistência em segurança é o meu trabalho. Já aconteceram tantas mortes e, se houver pelo menos um pequeno risco de o seu neto nos comprometer, então nós precisamos tomar todas as precauções. Você acha que me dá prazer decapitar um garoto? Ele não tem culpa por ter sido Marcado como vermelho. Eu não sou um monstro, Sylvia Redbird.

– É claro que você não é, meu amor. – Anastasia levou uma lamparina a óleo até Kevin e a colocou em um nicho na rocha perto deles antes de depositar uma bolsa grande de couro ao lado dele. Ela abriu a bolsa e começou a procurar algo lá dentro enquanto falava: – Sylvia tem razão. Ela está trabalhando conosco por muitos meses e nenhuma vez tentou trazer o neto dela aqui.

– Porque não seria seguro me trazer até aqui antes do que aconteceu – Kevin se esforçou para falar. – Não importa o quanto eu me esforçasse para manter a minha humanidade.

– Fique quietinho. Preciso dar pontos nesse ferimento – Anastasia disse enquanto desenrolava o curativo improvisado. – Sylvia, há várias garrafas de água limpa lá no fundo da caverna. Você pode trazer aqui para mim, por favor?

Sylvia foi apressada até o fundo da caverna, retornando com duas garrafas de um litro de água fresca, que entregou para Anastasia.

– O que mais posso fazer para ajudar?

Anastasia passou para ela uma compressa de gaze.

– Vá secando o sangue enquanto dou os pontos para que eu consiga enxergar o que estou fazendo. – Ela segurou uma agulha longa e curva que estava presa ao fio escuro de sutura. – Kevin, pressinto que isso vá ser um pouco desagradável para nós dois... mais para você do que para mim.

– Tudo bem. Não é tão ruim quanto sentir a minha humanidade escapando de mim.

– O que aconteceu com você? O que mudou você? – Dragon perguntou de repente.

Anastasia levantou rapidamente os olhos para o seu companheiro, que estava em pé perto da entrada da caverna, os braços cruzados, com uma expressão sombria turvando seu belo rosto.

– Você pode interrogá-lo depois que eu der os pontos nele.

– Eu prefiro falar. Vai me distrair um pouco – Kevin disse.

– Muito bem. Vou começar. Primeiro vou colocar álcool sobre o ferimento. Vai doer bastante.

– Estou pronto. Ok, então, o que aconteceu comigo? Bom, eu...! – Kevin perdeu as palavras e deu uma arfada de ar brusca. Era como se Anastasia estivesse derramando fogo líquido nas suas costas, e ele teve que lutar para permanecer consciente.

– Respire, u-we-tsi. Respire. Profundamente, inspire e expire, inspire e expire. Vai passar – Vovó o tranquilizou enquanto secava as suas costas.

Kevin cerrou os punhos e respirou fundo várias vezes junto com sua avó.

– E agora vou começar a dar os pontos. A boa notícia é que o ferimento é longo e reto. Você vai ficar com uma cicatriz, mas deve sarar rápido.

– Melhor isso do que perder a cabeça – Kevin conseguiu falar entre dentes cerrados.

Quando ela começou a dar os pontos, Kevin pensou que ia desmaiar. Ele queria desmaiar, mas, como isso não aconteceu, Kevin voltou a se concentrar na sua história. Ele tentou fingir que estava fora do próprio corpo, em pé ao lado de Dragon, olhando para a noite fria de inverno enquanto falava.

– Três noites atrás, eu era parte de um grupo de soldados vampiros vermelhos e aprendizes novatos que foram arrancados de nossos alojamentos nos túneis embaixo da estação e levados para um mundo alternativo – Kevin fez uma pausa e respirou fundo várias vezes quando a dor nas suas costas ameaçou subjugá-lo.

– O que você quer dizer com um mundo alternativo? – Dragon perguntou.

– Um mundo que é quase como este aqui, só que Neferet não está no poder. A minha irmã está.

As mãos ocupadas de Anastasia fizeram uma pausa.

– Zoey?

– Você conhecia a minha irmã?

– Sim. Ela era uma jovem adorável. Ela entrou na minha aula de Feitiços e Rituais algumas semanas antes de ser assassinada, mas já tinha demonstrado que seria promissora com a magia. Você se lembra dela, não lembra, Bryan?

– Eu lembro que a morte dela foi o começo oficial da guerra de Neferet – Dragon respondeu.

– Neferet a matou – Kevin disse.

– Como você sabe disso? – Dragon perguntou repentinamente.

– Porque no mundo da outra Morada da Noite, Neferet tentou começar uma guerra com humanos da mesma forma... culpando-os pela morte de vampiros. Vampiros que ela mesma matou.

– E a sua irmã morta contou isso pra você? – Dragon falou.

– Não, a minha irmã viva me contou isso... na Morada da Noite de Tulsa, onde ela é uma das várias Grandes Sacerdotisas poderosas que comandam tudo. Zo e o seu grupo derrotaram Neferet e impediram que a guerra acontecesse.

– Garoto, você acabou de cometer o seu primeiro erro. Nós temos espiões no acampamento do Exército Vermelho. São poucos, mas posso conferir com eles essa história de desaparecimento.

– Ótimo – Kevin disse entre dentes cerrados enquanto Anastasia passava a agulha através de outro pedaço de sua carne rasgada. – Quero que você faça isso. Pergunte aos seus homens o que aconteceu com o General Dominick e os seus soldados.

– Vou perguntar. Pode ter certeza.

– Ótimo – Kevin repetiu.

– Mas, até lá, vamos dizer que eu acredito em você. Como o fato de ser atraído para outra versão do nosso mundo restaurou a sua humanidade?

– Foi algo que Nyx fez depois de abençoar Aphrodite com o dom de conceder segundas chances.

– Aphrodite? – Dragon pronunciou o nome com sarcasmo. – Você quer dizer a Sacerdotisa azul que tem visões sobre morte?

– Ela mesma. Só que no outro mundo ela é uma Profetisa de Nyx, tão poderosa quanto bonita.

Dragon bufou.

– Bom, neste mundo ela é praticamente inútil, a menos que você esteja tão iludido com a beleza dela que faça vista grossa para os seus prazeres egoístas e a sua ganância mesquinha.

– Mas, mesmo nesse mundo, ela ainda é uma Profetisa – Kevin argumentou.

– Ela é uma Profetisa que tem visões que raramente consegue interpretar. Antes de Anastasia e eu escaparmos para nos juntar à Resistência, havia rumores de que Neferet estava descontente com ela.

– E por que não estaria? – Anastasia comentou enquanto continuava a fazer a sutura nas costas de Kevin. – Eu abomino tudo que Neferet defende, mas Aphrodite é uma Profetisa horrível. Ela usa a beleza e o dom concedido pela Deusa para manipular os outros. Acredito de verdade que ela retém informação das suas visões, a menos que ache que pode ganhar algo com elas. Não sei por que Neferet não se livra dessa criatura.

– Eu sei. Aphrodite é uma mestra em saber em quanto ela pode abusar ou não de Neferet. Quando vai longe demais, Aphrodite simplesmente tem uma visão que é subitamente clara o bastante para que possa interpretá-la, e, coincidentemente, essa visão também é de grande valor para Neferet – Dragon explicou.

– Ela é diferente no outro mundo – Kevin insistiu. – Ela sacrificou a sua humanidade para salvar os primeiros novatos vermelhos. E desde então, naquele mundo, todos os novatos e vampiros vermelhos têm a capacidade de manter a sua humanidade. Tudo por causa de Aphrodite.

– E por causa dessa diferença, Kevin acredita que pode chegar até a Aphrodite que está neste mundo e convencê-la a fazer o mesmo sacrifício – Vovó Redbird acrescentou.

Houve um longo silêncio durante o qual Kevin tentou, em meio à dor ardente nas suas costas, pensar em algo a acrescentar – alguma coisa que convencesse Dragon de que o que ele estava contando era verdade.

Quando Dragon falou novamente, Kevin escutou uma mudança na sua voz. Muito leve, mas um pouco do sarcasmo e da raiva pareciam ter desaparecido.

– O que faz você pensar que Aphrodite pode fazer essa escolha? A Profetisa que você descreve tem muito pouco em comum com a do nosso mundo.

– Porque mesmo em outro mundo, quem nós somos lá no fundo parece não mudar muito. A única diferença é que nós passamos por experiências de vida diferentes, as quais têm o poder de mudar as nossas personalidades e as nossas reações – Kevin explicou. – Zoey me falou para procurar você e Anastasia neste mundo. Ela disse que vocês me ajudariam a derrotar Neferet, porque vocês a ajudaram no mundo dela.

– Bryan e eu também somos companheiros nesse outro mundo?

Kevin pensou em não contar o que havia acontecido, mas ele afastou aquele pensamento rapidamente. A verdade era uma das poucas forças que ele tinha, e ele não iria começar a mentir e estragar o que já tinha conquistado.

– Vocês eram – ele contou a Anastasia.

– Éramos? – Dragon perguntou.

– Vocês foram mortos. Não sei bem o que aconteceu. Zoey não teve tempo de me contar isso. Só que vocês morreram corajosamente salvando os outros.

– Nós dois estamos mortos? – a voz de Anastasia soou trêmula.

– Estão. Sinto muito – Kevin respondeu.

Anastasia pousou a mão ensanguentada no ombro dele por um instante.

– Não sinta. Se o meu Bryan perecesse, eu não gostaria de viver sem ele.

– E eu não iria dar nem um suspiro em um mundo sem você, meu amor – Dragon afirmou.

Do canto do olho, Kevin viu Anastasia se virar e levantar os olhos para o seu companheiro.

– E é a sua capacidade de amar que faz você maior do que a sua espada. Maior do que um dragão. Pense nisso, Bryan. Se isso for verdade, se Kevin conseguir chegar até Aphrodite e convencê-la a repetir o que fez naquele outro mundo... então a guerra de Neferet mudaria drasticamente.

– Sim – Kevin concordou. – Ela não teria um exército de armas irracionais. Ela teria apenas os oficiais azuis e os Guerreiros Filhos de Erebus, e quantos deles vão permanecer fiéis a ela e lutar se perceberem que Nyx não abençoa essa guerra?

– Ela perderia um pouco de poder, mas talvez não o bastante para acabar com a guerra – Dragon disse pensativamente. – Ela tem sido cuidadosa de apenas colocar em posições importantes Guerreiros que querem ter mais coisas: mais riquezas, mais terras, tudo.

– Mas pelo menos a gente teria uma chance de combatê-los – Kevin insistiu. – Dragon, eu vi o que acontece quando vampiros e novatos vermelhos têm a sua humanidade restaurada, e eu prometo a você que nenhum deles vai querer lutar de novo.

– Onde eles estão, esses outros vampiros e novatos vermelhos alterados? – Dragon perguntou.

– Ainda no outro mundo. Zoey teria que forçá-los a voltar para cá, e ela se recusou a fazer isso. Foi um choque terrível quando eles se recuperaram e se deram conta de tudo que tinham feito. Vários cometeram suicídio antes que pudéssemos detê-los.

– E você? Por que você não ficou devastado? – o Mestre da Espada perguntou.

– Porque eu era diferente desde o momento em que fui Marcado. Eu conservei mais da minha humanidade do que qualquer outro, e por causa disso eu garanti que...

De repente, do lado de fora da caverna vieram os gritos de alerta de um corvo, imediatamente seguidos por um alvoroço. O pássaro voou freneticamente até Anastasia enquanto Erik Night foi apressado até Dragon.

– Perigo! Perigo! Perigo! – o corvo berrou ao pousar no ombro de Anastasia.

– Tina acendeu uma fogueira de alerta! – Erik contou a Dragon.

Kevin estava ocupado demais olhando fixamente para o corvo e pensando se corvos normais conseguiam falar ou se esse em específico tinha poderes sobrenaturais, quando Dragon virou-se e o encarou.

– Seu desgraçado traidor! – Dragon atirou as palavras para Kevin.

– Não! Não fui eu! Não poderia ser. E-eu nem fui para o quartel ontem. Fui direto até a fazenda de Vovó Redbird.

Outro vampiro azul entrou apressado na caverna. Com a respiração ofegante, ele anunciou:

– Soldados do Exército Vermelho estão subindo a montanha!

Dragon Lankford marchou até Kevin e agarrou forte o seu braço, fazendo-o ficar em pé e arrastando-o até a entrada da caverna.

– Antes de matá-lo, você vai me dizer quantos soldados você trouxe até aqui!


7

Outro Stark

– Tenente Dallas, explique de novo para mim por que diabos nós estamos aqui, no meio do nada, em uma noite de inverno congelante, quando eu poderia estar nos meus aposentos com uma fogueira crepitante, venerando o sabor da boca da minha sacerdotisa atual?

O pequeno e jovem vampiro correu até Stark. A sua Marca azul de adulto tinha a forma de relâmpagos, o que fazia sentido por causa da sua estranha afinidade com eletricidade, mas Stark achou que ela ficava mais ridícula naquele rosto que lembrava o de um furão.

– Bom, General, como eu disse a Artus, hoje a nossa varredura de segurança era em Sapulpa e Sand Springs. Lá na mercearia Reasor’s, na esquina da Taft com a Hickory aqui em Sapulpa, o gerente relatou que tinha certeza de que viu Erik Night com um grupo de vampiros azuis que estavam espreitando no estacionamento.

– Bom, Night realmente se juntou à Resistência alguns meses atrás, mas por que nós estamos aqui, se ele foi visto na cidade?

– Porque eu andei pressionando um tenente do Exército Vermelho e ele conseguiu encorajar – Dallas pronunciou a palavra com uma alegria maliciosa – alguns dos moradores locais a admitirem que eles têm notado luzes estranhas vindo desta montanha. A maioria dos caipiras acha que ela é mal-assombrada... eles falaram alguma coisa sem sentido sobre a montanha pertencer ao Povo Creek há gerações. Disseram inclusive que os fantasmas perseguiam os técnicos que perfuravam petróleo no começo dos anos 1900, mas eu não acredito nessa merda. – Eles estavam parados ao lado de uma rodovia denominada Lone Star, que serpenteava pela montanha. Dallas apontou para a cerca com oito arames grossos, que parecia emoldurar toda a grande área selvagem que formava o local chamado Polecat Ridge. – Então, eu dei uma fuçada por aí e encontrei isso.

– Uma cerca? Há fazendas por toda parte nessa região que são cercadas. Por que isso seria um problema? – Stark perguntou.

– Porque isso não é uma fazenda. A montanha é selvagem. Ninguém fez nada nela desde o começo do século passado. Então por que ela é protegida por uma cerca elétrica de alta voltagem?

– Isso é muito? – Stark deu um passo para mais perto da cerca e de fato ouviu um zumbido fraco e sentiu algo diferente no ar.

– Muito. Eu tentei conversar com a velha que é dona da montanha, mas ela não foi muito prestativa... e ela é protegida pelas diretrizes de Neferet porque também é dona das melhores plantações de alfafa em todo o estado. Então eu não pude ser tão persuasivo quanto gostaria.

– Mas ela te deu uma resposta.

– Sim, senhor. Ela falou que tem um rebanho de um tipo especial de veado. Um tipo que Neferet também ama.

– Veado de cauda branca – Stark assentiu. – Neferet gosta de carne de veado. Muito. Não sabia que o fornecedor dela ficava por aqui.

– Sim, essa mesma mulher, Tina, é a dona desta montanha e de todos os campos ao redor. Enfim, ela disse que cria os veados especiais e os deixa soltos na montanha porque ficam mais saudáveis assim, então a carne deles é melhor. Por isso ela tem uma cerca elétrica em volta de toda a propriedade, para manter os veados dentro e os predadores longe.

– Acho que faz sentido. Você perguntou a ela sobre alguma atividade na montanha?

– Sim, senhor. Não consegui nada dela. A velha disse que é silencioso aqui, e por isso ela vive aqui, afastada das pessoas. Ela também disse que vigia a própria montanha, expulsando qualquer intruso, e que ela não precisa, nem quer, a nossa ajuda. Depois disso ela bateu o portão na minha cara.

– Nada de novo – Stark resmungou.

E não era mesmo. Desde a guerra de Neferet, os humanos sofriam. Não que ele estivesse muito preocupado com humanos. A única coisa com que Stark estava muito preocupado era com a sua própria pele – a vida era mais fácil assim –, principalmente nos últimos dias. No entanto, humanos se escondendo atrás de portas fechadas e demonstrando nada além de medo e/ou repugnância por vampiros não ajudava a luta contra a maldita e irritante Resistência.

– Então, quanto eu reportei tudo a Artus, ele disse que a montanha precisava ser inspecionada. E é por isso que nós estamos aqui.

– Tudo bem, então. Essa velha desligou a cerca elétrica? – Stark perguntou, mantendo uma distância segura dos cabos grossos.

– Não, mas a gente não precisa que ela faça isso. Eu consigo colocar a gente aí dentro sem problemas.

– Bom, então faça isso – Stark disse.

Ele deu as costas a Dallas e fez um gesto para o primeiro dos cinco utilitários estacionados atrás do seu veículo na liderança. O motorista obedeceu imediatamente, e soldados vampiros vermelhos e os seus oficiais responsáveis começaram a desembarcar. Stark fez outro gesto para que esperassem, o qual foi passado para a fila atrás, mas ele não precisava ter feito os soldados pararem. Dallas tinha ido até a cerca e colocado a mão no poste mais próximo. Os olhos do jovem vampiro estavam fechados, e a expressão do seu rosto quase indicava que ele estava sentindo prazer – o que não seria uma surpresa para Stark. Ele sempre achou que Dallas era estranho.

Quando Dallas levantou a cabeça no instante seguinte e olhou para Stark, os seus olhos estavam reluzindo com uma luz amarela bizarra.

– Mande os soldados passarem por cima da cerca aqui – Dallas manteve ambas as mãos no poste, indicando com o queixo o local à sua esquerda. – Fale para eles se apressarem. Essa certa tem muitos volts passando por aqui. Eu só posso segurá-los por alguns minutos.

– Vocês ouviram o tenente, façam os homens se mexerem! – Stark gritou.

Stark se afastou e ficou observando os vampiros vermelhos se arrastarem por cima da cerca. Eles parecem umas malditas baratas esfomeadas. Stark não se permitiu estremecer, apesar de sentir como se insetos estivessem rastejando na superfície de sua pele. O Exército Vermelho é necessário, ele lembrou a si mesmo com firmeza. Além do mais, não era como se eles pudessem se sentir ofendidos. Eles não davam a mínima para o quanto eles eram nojentos. Só o que importava para eles era a sua fome insaciável.

– Sua vez, General – as palavras de Dallas tiraram Stark dos seus pensamentos.

Ele rapidamente passou por cima da cerca.

– Ok, vamos nos espalhar e formar uma linha afrouxada, e então vamos subir com essa linha montanha acima.

Eles estavam andando por cerca de quinze minutos, abrindo caminho através de uma vegetação rasteira marrom devido ao inverno e cheia de detritos da floresta. Então encontraram uma estrada de terra acidentada em que mal cabia um quadriciclo, apesar de ser óbvio que ela tinha sido usada recentemente.

– Isso não parece nada bom – Stark disse. – Tenente, você viu algum carro na propriedade daquela senhora?

– Sim, senhor. Vi algumas dessas coisas caras que parecem carrinhos de golfe melhorados. Ela foi dirigindo um deles até o portão para falar comigo.

– Um Polaris – Stark disse, analisando os rastros.

– Perdão, senhor?

Stark levantou os olhos para Dallas.

– Esse é o nome desses veículos. E esses rastros parecem ter sido feitos por um deles. Pode não ser tão ruim quanto eu pensei. A velha senhora pode realmente ter dado uma circulada por aí procurando invasores, mas vamos seguir essa trilha por mais um tempo para ter certeza.

– Sim, senhor!

Depois de mais ou menos trinta minutos de caminhada, ouviu-se um grito à direita de Stark.

– Alto!

Stark pegou o seu arco sempre presente, preso às suas costas, e engatou uma flecha. Seis veados, completamente assustados e de olhos arregalados, passaram saltitando por eles, fazendo os soldados vermelhos se agitarem confusos, enquanto olhavam fixamente a carne de veado em movimento, claramente considerando se deveriam perseguir a presa ou esperar por um jantar mais delicioso e que se movimenta mais devagar com apenas duas pernas.

Stark franziu o cenho de desgosto.

– Dallas! Mantenha esses soldados sob controle. Ninguém mata um veado sem a permissão de Neferet. Cuide para que essas máquinas carnívoras entendam isso.

– Sim, senhor! – Dallas voltou correndo pelo caminho.

Stark podia ouvi-lo gritando para os tenentes do Exército Vermelho. Pela segunda vez naquela noite, ele ficou muito irritado com o fato de o General Dominick e seu pelotão de soldados terem aparentemente desaparecido sem explicações alguns dias atrás. Dominick era amplamente reconhecido como o mais implacável e inteligente dos generais vermelhos, o que significava que os seus soldados eram sempre os mais disciplinados.

– Maldito Exército Vermelho! – Stark resmungou. Ele tentou lembrar a si mesmo para tentar convencer Neferet a considerar a retirada progressiva do máximo possível dos vampiros vermelhos do dia a dia da guerra, e somente usá-los durante as batalhas principais contra os exércitos humanos ou a Resistência. – Eles fazem mais mal do que bem.

Isso sem mencionar que ele achava repugnante que a mordida de qualquer novato ou vampiro Marcado como vermelho fosse venenosa para humanos, inevitavelmente os matando e fazendo com que ressurgissem em três dias como coisas grotescas como zumbis, cuja mordida também era contagiosa.

– E eles têm um mau cheiro horrível.

– Senhor, os soldados estão sob controle – Dallas disse, ofegante, ao chegar correndo perto de Stark.

Stark soltou um grunhido.

– Então vamos em frente de novo. Ficar rastejando por esta montanha não é minha escolha ideal para passar a noite.

A fileira de soldados continuou se movendo, serpenteando pelo caminho, enquanto seguiam o que mal podia ser chamado de estrada de terra. Logo a trilha dobrou drasticamente para a direita, e então seguiu quase em linha reta. Stark suspirou e se concentrou na missão, não gostando nada de sentir o ar mais frio e úmido. Ele tentou lembrar se havia previsão de gelo ou neve. Ele deu uma olhada no seu telefone e praguejou em voz baixa.

É claro que não tem um maldito sinal aqui no meio do nada.

De repente, acima dele, um corvo começou a voar em círculos e a grasnar, como se estivesse irritado por estarem invadindo a sua montanha.

– Vamos apertar o passo – Stark disse a Dallas. – Volte descendo a fila e diga a eles para me acompanharem.

General Stark não esperou por uma resposta. Balançando os braços, ele começou a subir correndo a trilha de terra vermelha, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.


Outro Kevin

Dragon Lankford agarrou o braço de Kevin, puxou-o bruscamente, fazendo com que ele ficasse em pé, e o arrastou até a boca da pequena caverna. A sua espada montante estava desembainhada e ele ficou na frente de Kevin, segurando a ponta da lâmina afiada contra o seu pescoço.

– Quantos são? – Dragon o interpelou.

Vovó Redbird tentou correr para ficar ao lado de Kevin, mas Anastasia segurou o seu pulso, não permitindo que ela fosse até ele.

– Não, minha amiga. Isso foi além da nossa boa vontade. Dragon precisa lidar com o seu neto agora.

– Quantos? – Dragon repetiu, e a espada tirou uma pequena gota de sangue do pescoço de Kevin.

– Mate-me. Corte a minha cabeça. Faça o que quiser, mas isso não vai mudar a minha resposta porque eu estou dizendo a verdade. Eu não sei o que está rolando lá fora. Eu não sei como eles acharam a sua montanha, mas isso não tem nada a ver comigo.

– Então, é só uma coincidência que um tenente do Exército Vermelho apareça aqui na noite em que os soldados do Exército Vermelho fazem o mesmo? – A voz de Dragon estava pesada com uma fúria mal controlada. – Você sabe quantos inocentes estão aqui? Dezenas! Eles estão espalhados ao nosso redor em esconderijos de caça. Humanos e novatos azuis. Alguns são... apenas crianças. Todos procurando segurança e liberdade, e eles vão perder a vida esta noite. Por sua causa!

– Não! – Vovó Redbird gritou. – Kevin estava comigo. Ele está dizendo a verdade! Eu juro pela minha vida.

Dragon se dirigiu apenas a Kevin.

– Ela vai morrer hoje também. De uma maneira horrível. E, se eles deixarem sobrar algo, ela vai acordar como uma máquina de comer, voraz e irracional. A sua alma só pode estar completamente repleta de Trevas para fazer uma coisa dessas.

Kevin virou a cabeça para o outro lado, incapaz de olhar para a sua avó.

– Sinto muito, Vó. Eu nunca deveria ter deixado você me trazer aqui. Eu sabia que era perigoso demais. Eu devia ter espionado Neferet como você me disse para fazer e deixar que você viesse falar com a Resistência no meu lugar. Eu sinto muito, muito mesmo.

– Eles estão vindo pela trilha oeste! – Um vampiro azul que Kevin não reconheceu arrastou-se pelos últimos metros montanha acima até chegar onde eles estavam.

– Apaguem todas as chamas! – Dragon virou a cabeça para olhar para a sua companheira. – Meu amor, leve os inocentes até lá embaixo pela parte de trás da montanha. Pode ser que eles não nos tenham cercado. – O seu olhar duro encontrou Kevin de novo. – O resto de nós vai ficar aqui e ganhar tempo para que vocês escapem.

– Não. Eu não vou deixar você – Anastasia falou baixo, mas com firmeza. – Sylvia está acostumada com a natureza de Oklahoma. Ela pode guiar os inocentes. Eu vou ficar com o meu companheiro. Eu também sei empunhar uma espada, e prefiro morrer a seu lado.

Kevin viu a dor que atravessou os olhos de Dragon Lankford e o desespero que curvou os seus ombros, e ele não conseguia aguentar aquilo.

Que diabos Zoey faria?

Ele sabia o que ela não faria. Zoey Redbird – a Grande Sacerdotisa que comandava a Morada da Noite de Tulsa com força e honestidade – não iria desistir.

– O sangue da minha companheira vai estar nas suas mãos – Dragon triturou as palavras por entre dentes cerrados. – E depois de acabar com você, que tipo de recepção você acha que Nyx vai lhe oferecer? Essa é a parte boa de morrer. Eu vou estar lá, no Bosque da Deusa, para testemunhar a punição de Nyx.

Enquanto falava, Dragon pressionou a espada com mais força contra o pescoço de Kevin.

Kevin reagiu automaticamente. Ele se jogou para trás, gritando:

– Eu faria qualquer coisa para consertar isso! – As suas costas feridas arderam quando ele colidiu com a parede de pedra da caverna, abrindo os poucos pontos que Anastasia já tinha dado. Kevin cambaleou e caiu, enquanto o sangue escorria pelas suas costas e manchava as pedras.

Instantaneamente, houve uma mudança tão grande no ar que penetrou a fúria de Dragon. Ele congelou com a espada sobre a cabeça, pronta para dar um golpe mortal.

Depois de tudo isso, Kevin pensou que foi semelhante ao modo como o ar ficou em volta da fenda entre o seu mundo e o de Zo, mas, naquele momento, tudo que ele conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto quando seres etéreos começaram a se materializar ao redor dele. Alguns se ergueram das rochas de arenito da caverna. Alguns desceram dos céus, como penas flutuando até o chão. Outros ainda pereceram emergir de dentro da casca dos carvalhos antigos, cheios de nós, pendurados precariamente no precipício ao redor deles.

Eles eram muito diferentes entre si. Muitos pareciam um cruzamento entre folhas caídas e borboletas. Então uma leve rajada de vento soprou e eles mudaram de forma, tornando-se repentinamente belas mulheres aladas. Algumas lembravam beija-flores, só que tinham cabeças delicadas de mulheres incrivelmente bonitas e de homens lindos. Alguns pareciam fogos de artifício de Quatro de Julho, só que menores e translúcidos. Vários tinham forma de vaga-lumes... grandes e lindos vaga-lumes que não deviam estar esvoaçando por aí em pleno inverno. E outros ainda pareciam sereias e águas-vivas cintilantes.

Todos estavam descendo sobre Kevin.

– Magia Antiga! Magia Antiga! – grasnou o corvo, empoleirado no ombro de Anastasia.

A bela Sacerdotisa de repente estava agachada ao lado de Kevin, observando as criaturas com curiosidade e reverência.

– Sim, Tatsuwa! Esses espíritos são Magia Antiga. Nunca pensei que veria um, já que a Magia Antiga quase desapareceu do mundo.

Uma figura com asas de borboleta, que era uma mulher voluptuosa do tamanho aproximado da mão de Kevin, inteiramente nua, exceto por um vestido feito de brilho, esvoaçou até ele, concedendo um olhar suplicante.

– O-o que eles querem? – Kevin gaguejou.

– Você os invocou. Pergunte a eles – ela disse.

– Hum, o que vocês querem? – Kevin perguntou inseguro para o espírito flutuante.

“Nós aclamamos o chamado.

Vosso sangue é verdadeiro.

Qual é o vosso desejo

Que devemos realizar?”

Kevin não hesitou.

– Escondam-nos! Não deixem que os vampiros que estão subindo a montanha encontrem nenhum de nós que já estamos aqui em cima – ele fez uma pausa e então acrescentou: – Por favor.

“Se fizermos isso por vós,

O que fará por nós?”

Kevin abriu a boca para responder, mas Anastasia colocou a mão no seu braço e o deteve. Imediatamente, ela sussurrou:

– Tome cuidado. A Magia Antiga é poderosa. E também nunca é gratuita.

– O que você acha que eles querem? – Kevin sussurrou de volta.

– Os espíritos são ligados aos quatro elementos físicos: ar, fogo, água e terra. Encobrir esta montanha deve ser uma tarefa fácil para eles. Ofereça o seu sangue, mas apenas a quantidade que você já verteu.

Kevin limpou a garganta e então respondeu ao espírito cintilante.

– Eu vou pagar vocês com o meu sangue, mas apenas o sangue que eu já derramei. Isso é o suficiente para nos manter a salvo?

O espírito rodopiou no ar e foi cercado por todas as outras diferentes criaturas. Kevin podia ouvir que elas estavam murmurando, mas as palavras eram estranhas. Não como outra língua, mas como um modo diferente de pensar e de formar sons.

Então ela flutuou até pairar acima dele de novo.

“Nós aceitamos vosso preço esta noite

Já que vosso sangue é forte com a Luz.

Nós selamos este acordo convosco.

E é dito – que assim seja!”

Quando Tatsuwa grasniu um lamento, Anastasia se afastou rapidamente do caminho, juntando-se a Dragon, que estava a poucos metros de Kevin, com a espada ainda desembainhada, enquanto os espíritos cobriam o jovem vampiro vermelho. No início Kevin se contraiu, esperando que eles causassem ainda mais dor do que ele já tinha suportado aquela noite, mas o toque deles era estranhamente suave, como chuva fria caindo em uma floresta em chamas. Os espíritos também cobriram toda a parede rochosa da caverna, o chão de terra ao redor dele e até a ponta da espada de Dragon – qualquer lugar onde houvesse uma gota salpicada do seu sangue. Enquanto bebiam, os seus corpos resplandeciam com luz e cor, e eles fizeram tantos sons de estalos e gorjeios animados que fizeram Kevin sorrir.

Então, com a mesma rapidez com que haviam surgido, eles desapareceram.

E a noite ao redor deles mudou totalmente.


Outro Stark

Começou de modo inocente. Stark sentiu a direção da fria brisa da noite se alterar e se acentuar. Ele estava suando por causa da subida da montanha, então o seu rosto úmido registrou instantaneamente a mudança e ele estremeceu, apertando o passo.

E então o céu da noite começou a cuspir gelo.

Stark escorregou em uma pedra, subitamente lisa com o gelo, tão escura quanto a floresta ao redor deles, e teve que girar os braços para não cair. Ele abaixou a cabeça, protegendo-se da chuva fria, e diminuiu o ritmo.

Depois disso a névoa começou, vinda de lugares mais baixos ao redor deles, e erguendo-se das entranhas da montanha. Atrás dele, alguém gritou alto, e alguns instantes depois, Dallas estava ofegante ao seu lado.

– Senhor, os homens estão escorregando. Um dos soldados acabou de cair e espatifou a cabeça contra uma pedra.

Caminhando com dificuldade, Stark parou.

– O tempo virou. Eu devia ter conferido a previsão antes de sair da Morada da Noite.

– Senhor, eu conferi – Dallas disse, enxugando o rosto com as costas da manga do seu casaco encharcado. – A previsão era de frio e tempo firme.

– Isso que dá escutar Travis Meyer e o News on Six – Stark resmungou. – Bom, diga aos oficiais vermelhos para levarem os seus soldados de volta para os utilitários. Você e eu vamos em frente, continuar vasculhando até o topo da montanha para que eu tenha certeza...

Um grupo de vaga-lumes incrivelmente grandes saiu voando de dentro da névoa, esvoaçando rapidamente na chuva de gelo ao redor como se fossem crianças brincando em uma fonte. Stark ficou olhando fixamente para eles através do gelo, da chuva e da neblina enquanto os seus corpos de inseto se alteravam para corpos de mulheres nuas e depois novamente para insetos.

Stark sentiu o seu sangue ficar tão frio quanto o gelo que caía.

– Magia Antiga – ele falou baixo.

– O que foi, senhor? – Então os insetos incandescentes atraíram a visão de Dallas. – Ei, vaga-lumes! Merda, que coisa estranha.

– Não são vaga-lumes. São espíritos. Vamos recuar, Dallas. Diga aos soldados que estamos indo embora. Agora!

Dallas olhou confuso para Stark, mas saiu apressado para fazer o que ele ordenou. Stark fez uma pausa só por um segundo antes de segui-lo trilha abaixo.

Os espíritos eram realmente espetaculares – tão bonitos quanto haviam sido descritos nos tomos antigos que o seu professor de Feitiços e Rituais insistiu que a sua classe avançada lesse, de ponta a ponta. Stark havia ficado imerso na aula de Feitiços e Rituais, principalmente porque ele adorava ler. A metade final do último livro mais avançado usado na aula era dedicada à Magia Antiga e principalmente aos espíritos elementais.

Stark vasculhou a memória enquanto se afastava devagar da nuvem cintilante de criaturas. Os espíritos eram poderosos, mas tão instáveis quanto a Magia Antiga que os constituía – em outras palavras, eles podiam ajudar você em determinado momento, e se voltar contra você no instante seguinte.

O que Dallas falou sobre esta montanha? Era uma terra ancestral da Nação Creek.

– Faz sentido – ele murmurou para si mesmo enquanto continuava o caminho de volta, relutante em desviar o olhar dos espíritos. Eles devem ter sido protetores da terra, aliados da Nação Creek quando os indígenas viviam no local, e não compreendem que o mundo mudou, seguiu em frente. Eles ainda continuavam protegendo a terra.

Ele alcançou a fila de retirada, ordenando aos soldados que andassem o mais rápido possível para sair daquela terra. Dallas correu na frente deles, controlando a eletricidade o suficiente para que o grupo passasse sobre a cerca novamente. Na hora em que Stark chegou ao utilitário e Dallas manobrou o veículo líder em que eles estavam para voltarem para Tulsa, a estrada estava quase intransitável por causa do gelo.

– Senhor, o que diabos aconteceu lá em cima? – Dallas perguntou.

– A confirmação de que nenhum membro da Resistência anda rondando por aquela montanha. Magia Antiga com esse tipo de proteção não admite intrusos. Aquela mulher, Tina, é dona de toda a montanha?

– Sim, senhor.

– Ela deve ter sangue Creek. É por isso que os espíritos a deixam zanzar por ali, fingindo procurar por intrusos – Stark bufou. – Intrusos, caramba! Eu detestaria ver o que a Magia Antiga faria com qualquer um que invadisse aquela terra.

– Bom, pelo menos nós sabemos que os habitantes não estão mentindo – Dallas disse. – Não sei quase nada sobre Magia Antiga, mas eu vi aqueles insetos. Eles brilhavam como luzes. Deve ser isso que as pessoas falaram que viram lá em cima.

– Só pode ser. – Stark hesitou. – Foi só isso que você viu? Apenas insetos brilhantes grandes?

– Sim, isso não é estranho o suficiente?

– É sim – Stark respondeu, perguntando-se por que ele se sentia aliviado por Dallas não ter visto os espíritos se transformando em formas semi-humanas.

– Bom, parece que a gente não tem que se preocupar em vigiar aquela montanha. Ótimo. Muitos espinheiros malditos, pedras e coisas assim para o meu gosto. Além disso, eu odeio o campo. Sou um cara da cidade.

– Tenente, quero que você mantenha a boca fechada sobre o que nós vimos lá em cima. A última coisa que precisamos é de um bando de novatos idiotas pensando que seria uma aventura ir até lá para dar uma olhada na Magia Antiga.

– Como quiser, senhor, mas não pareciam perigosos. Eles parecem vaga-lumes anormalmente grandes, até são bem bonitinhos.

– Dallas, só um daqueles insetos bonitinhos tem a capacidade de devorar você inteiro... e eu quero dizer você inteiro mesmo. Os espíritos conseguem drenar almas tão facilmente quanto drenam sangue.

– Pelas tetas de Nyx! Você está brincando?

Stark deu um olhar duro para ele.

– Parece que estou brincando com você, Tenente? E nunca mais use o nome da Deusa dessa forma perto de mim de novo.

– Sim, senhor. Desculpe, senhor.

– Cale a boca e dirija.

O tenente obedeceu, deixando o seu general contemplando a noite.

A Magia Antiga já deveria ter desaparecido quase completamente do mundo. Os livros dizem que ela só pode ser encontrada na Ilha de Skye, e ninguém tem permissão de entrar lá há séculos. Stark não conseguia imaginar o que os espíritos estavam fazendo ali. O fato de ser uma terra de indígenas americanos que eles ainda estavam protegendo fazia sentido.

Ainda assim não explicava o porquê de estarem despertos e ativos o bastante para serem vistos por habitantes humanos do local.

Será que isso tem alguma coisa a ver com a guerra de Neferet?

Um arrepio de mau pressentimento desceu pela coluna de Stark, mais frio do que o gelo que parou de cair assim que saíram da Lone Star Road.

Stark tinha certeza de que ele sabia a resposta para a sua pergunta. O que ele não sabia era se era um bom ou mau sinal que os espíritos estivessem ficando ativos. Ele também não sabia que diabos fazer com a sua descoberta.

O seu dever era reportar isso a Neferet, mas Stark era um Guerreiro Filho de Erebus juramentado antes de se tornar general de Neferet, e o seu primeiro dever de lealdade era com a Deusa Nyx.

A verdade secreta que Stark mantinha escondida lá no fundo era que ele não confiava em Neferet, nem concordava com a guerra dela.

Claro, ele fazia parte de um grupo muito grande e firme de vampiros azuis que exigiam um melhor tratamento para os humanos. Antes da guerra, ele estava farto daquela besteira de separados-mas-iguais que os políticos humanos empurraram para cima deles por tanto tempo. Ele até apoiou o começo da guerra de Neferet, mas depois de poucos meses ficou óbvio que Neferet nunca quis criar uma ordem mundial onde todos fossem iguais. Neferet queria mandar e subjugar todos os humanos.

Stark não era um vampiro vermelho. Ele tinha princípios morais. Ele manteve a sua humanidade. E ele não era um assassino. Ele era um Guerreiro, que jurou proteger a Grande Sacerdotisa que recebeu de Nyx o dom de liderar a nação dos vampiros.

Mas e se os boatos fossem verdadeiros? E se Neferet não fosse mais uma seguidora de Nyx, e se a Deusa realmente tivesse se afastado da sua Grande Sacerdotisa?

– Eu rezo a Nyx por um sinal... – Stark murmurou para o seu reflexo no vidro escurecido.

– Senhor? Disse algo?

– Só estou falando comigo mesmo – Stark respondeu. Ele fechou a boca, mas o sussurro na sua mente não parou.

Eu tenho rezado por um sinal de que Neferet está seguindo a vontade da Deusa. Isso foi um sinal? Ou a aparição da Magia Antiga é uma indicação do contrário?

Stark esfregou a testa, odiando aquela dor de cabeça que estava aumentando. Até ele ter certeza de que Neferet havia renunciado Nyx, ele iria cumprir o seu dever. Ele iria proteger a sua Grande Sacerdotisa.

No entanto, ele também manteria a sua mente e os seus olhos bem abertos e, pelo menos por enquanto, não contaria a ninguém sobre os detalhes mágicos do que tinha acontecido na montanha aquela noite.


8

Outro Kevin

– Eles bateram em retirada! Todos eles! – um vampiro azul alto e loiro entrou correndo na pequena caverna, tirando gelo de uma tatuagem de adulto formada por nós celtas, enquanto se aproximava de Dragon.

– Cole, você tem certeza? – Dragon perguntou.

– Sim. Estava uma confusão lá fora, mas eu vi o que aconteceu. Foi bem lá no nosso primeiro posto de controle. Um bando de coisas que pareciam vaga-lumes saiu da neblina na frente do General Stark. Ele imediatamente ordenou a retirada. Não consegui chegar perto o bastante para entender o que ele estava dizendo, mas eu ouvi claramente as palavras Magia Antiga, e deu pra ver que ele parecia assustado. Pra valer.

– Oh, graças à Deusa! – Vovó Redbird desabou no chão de pedra bruta da caverna.

– Vó! Você está bem? – Kevin tentou ir até ela, mas as suas pernas se recusaram a funcionar, e ele não conseguiu fazer muito mais do que encostar dolorosamente contra a parede da caverna.

– Sylvia? – Anastasia começou a se afastar de Kevin para ir até a velha senhora, mas Vovó Redbird levantou uma mão para detê-la.

– Eu estou bem. Só precisava sentar. Acho que o meu pico de adrenalina já passou. Por favor, cuide do meu neto e não se preocupe comigo. – Ela abraçou a si mesma e estremeceu.

– Meu amor, você acha que nós podemos acender pelo menos algumas fogueiras de novo? – Anastasia perguntou para Dragon.

O Mestre da Espada olhou para o gelo e a névoa que ainda encobriam a montanha.

– Sim. Se eles voltarem, não será hoje. As estradas estarão intransitáveis e a neblina é excelente para ocultar as fogueiras. Acendam aquela no fundo da caverna. Cole, vá até os esconderijos de caça e diga a todos que é seguro manter as fogueiras acesas enquanto o gelo e a neblina durarem – Dragon disse, e Cole desapareceu na noite. Então Dragon encarou Kevin. – Deu certo. Os seus espíritos nos salvaram.

Kevin deu de ombros e fez uma careta de dor.

– Eles não são meus espíritos, na verdade. Eles só gostam do meu sangue.

– Porque o seu sangue contém o poder dos seus ancestrais, que já foram parte desta terra e destas rochas – Sylvia Redbird afirmou. – E porque é um sangue bom e honesto, não manchado por mentiras e ódio. Você acredita agora, Dragon Lankford?

– Eu acredito que o seu neto nos salvou, mas ainda há a questão sobre como o Exército Vermelho sabia que nós estávamos aqui e por que eles vieram na mesma noite que Kevin.

– Eu não posso responder nenhuma dessas perguntas agora – Kevin disse. – Não enquanto estou aqui. Mas eu posso conseguir respostas para todos nós de dentro da Morada da Noite.

– Você acha que eu deixarei você ir embora?

– Não. Eu acho que você me deixará lutar com vocês. Eu quero fazer parte da Resistência. Eu quero espionar para vocês... para nós.

– Impossível! – Dragon exclamou.

– Por que é impossível, Bryan? – Anastasia se agachou ao lado de Kevin de novo, reexaminando as suas costas, enquanto o seu corvo encontrou um poleiro na parede escarpada da caverna.

Kevin achou que os olhos negros do corvo pareciam tão céticos quanto os de Dragon.

– Ele é um vampiro vermelho! Ele não pode fazer parte da Resistência. Nós estamos combatendo a espécie dele.

– Vocês não estão combatendo a minha espécie – Kevin argumentou. – Não há ninguém mais da minha espécie neste mundo, e é por isso que eu sou o espião perfeito. Ninguém na Morada da Noite vai prestar atenção em um tenente do Exército Vermelho. Eles não dão a mínima para nós, exceto para nos considerar descartáveis. Eu posso ir a qualquer lugar, ouvir o que qualquer um fala... e eles nem vão notar.

– Você também pode ser promovido a general do Exército Vermelho e ter um esquadrão de homens seguindo suas ordens. Por que você escolheria se colocar em risco? – Dragon perguntou.

– Porque eu sou uma pessoa decente! – Kevin desabafou. – Afe, o que há de errado com você? Qualquer um que não seja um monstro ou um idiota ambicioso faria o mesmo.

– Isso não é verdade, Kevin. – Anastasia pousou uma mão suave em seu ombro. – Há muitas pessoas que nós chamaríamos de decentes, tanto vampiros quanto humanos, que não farão nada além de ficar sentados nos bastidores, balançando a cabeça para o estado do mundo.

– Bom, eu acho que, se você é uma pessoa decente e não se levanta contra monstros, então você é pior do que eles – Kevin disse. Ele virou a cabeça e encontrou os olhos azuis inconfundíveis de Anastasia. – Pode ir em frente e começar a me costurar de novo. Estou pronto como jamais estarei.

Ela sorriu gentilmente para ele.

– Isso não vai ser necessário. Não depois de a Magia Antiga ter feito o trabalho. – Anastasia indicou com um gesto as costas dele.

Kevin esticou cuidadosamente o pescoço e encontrou uma cicatriz sensível e elevada e pele limpa onde apenas alguns minutos atrás havia um corte profundo e sangrento.

– Mas isso é impossível!

– Aparentemente, não. Quando os espíritos beberam o seu sangue, eles também tocaram todo o seu ferimento, e o toque deles o curou. Porém, não completamente. Você vai ficar fraco, dolorido e sensível por um tempo, e você vai ficar com uma cicatriz grande e horrível, mas você não precisa mais da minha habilidade em dar pontos.

Vovó Redbird se aproximou de Kevin, inclinando-se para examinar suas costas nuas.

– Isso é extraordinário! U-we-tsi, os espíritos realmente fecharam o seu corte.

– Hum – foi tudo que Kevin pensou em dizer.

– Isso diz algo a você sobre o caráter dele? – Dragon perguntou à sua companheira.

– Só que os espíritos gostam dele e, já que eles são neutros, nem bons nem maus, isso não quer dizer muita coisa – Anastasia respondeu. Então ela se levantou e pegou as mãos calejadas pela espada do seu companheiro. – Bryan, acredito que nós já conhecemos o caráter de Kevin. Ele definitivamente não é como os outros vampiros vermelhos. A gente devia confiar nele – ela afirmou, e Dragon abriu a boca para responder, prestes a protestar, mas as palavras de Anastasia o silenciaram. – Ele é diferente. A sua humanidade está intacta. E ele conseguiu brandir a Magia Antiga. Nem mesmo Neferet consegue fazer isso.

– Ainda – Kevin disse.

Dragon se virou para ele.

– Explique esse ainda.

– No mundo da minha irmã, eles de fato derrotaram Neferet, mas não conseguiram matá-la porque ela se tornou imortal.

Anastasia arfou em choque.

– Ela aprendeu a brandir a Magia Antiga!

– Vó, você está com o diário?

Ela assentiu levemente e indicou o local onde os mantimentos do Polaris tinham sido empilhados, no fundo da pequena caverna.

– Estou. Está na cesta que eu enchi de cookies.

– Eu trouxe uma cópia do diário que Neferet escreveu quando ainda era humana. É do mundo da minha irmã, mas nele há provas de que a Magia Antiga vem influenciando Neferet desde que ela era criança.

– E o fato de o diário ter sido escrito por outra versão de Neferet não significa que não tenha relevância para nós – Vovó disse. – Como Kevin já explicou, quem nós somos em cada mundo permanece essencialmente igual. São apenas as nossas experiências que mudam. Eu vou dar o diário a vocês. Façam cópias dele. Repassem para os outros. Todos nós devemos lê-lo para obter o máximo de informação possível a respeito de maneiras de combater o mal de Neferet.

– Concordo. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos, principalmente se essa ajuda vem na forma de um jovem vampiro que nos traz informações e também consegue brandir Magia Antiga – Anastasia disse.

Dragon suspirou fundo e foi até Kevin, agachando-se ao lado dele, da mesma forma que a sua companheira tinha feito.

– Eu não gosto de ser colocado em uma posição na qual preciso confiar em um inimigo.

– Eu não sou seu inimigo.

– Prove.

– Acabei de tentar provar – Kevin respondeu. – E vou continuar tentando provar isso a vocês. Eu vou para a Morada da Noite espionar para vocês. Vou contar tudo que eu ouvir por lá. Vou ajudar de todas as formas que eu puder.

– O meu neto está falando a verdade, Dragon. Você vai ver – Sylvia Redbird disse, batendo os dentes de frio.

– Vó, você tem que ir para o fundo da caverna onde está a fogueira.

– Eu estou bem aqui. Tem muita fumaça lá atrás.

– Garoto, se você quer fazer algo para cair nas minhas graças, pense em um jeito de fazer com que a Magia Antiga nos ajude a tornar esta caverna habitável – Dragon falou baixo, mais para a noite do que para Kevin, quando se levantou e encarou a chuva congelante e a névoa lá fora.

Kevin olhou para a sua avó e para Anastasia.

– Vocês acham que eu poderia mesmo fazer isso? Conseguir que os espíritos ajudem a deixar esta caverna maior e melhor?

– Claro que sim – Anastasia respondeu sem nenhuma hesitação. – Como eu disse quando eles apareceram, espíritos estão sempre ligados aos elementos, e a terra é um dos elementos. Não seria um exagero imaginar espíritos da terra moldando uma caverna no seio desta montanha.

– Beleza! Eu vou só chamar os espíritos e perguntar a eles...

– Lembre-se, Kevin, você nunca deve abusar da Magia Antiga de modo impertinente – Anastasia o interrompeu. – É uma das magias mais poderosas do mundo... e também uma das mais imprevisíveis.

– Mas os espíritos fizeram exatamente o que eu pedi – Kevin falou.

– Ah, eles sempre mantêm a palavra, desde que sejam pagos. O problema vem com o pagamento – Anastasia disse.

– Por favor, explique – Vovó Redbird pediu.

– É simples e complicado. Simples porque os espíritos concordam com um pagamento por um serviço. Quando é algo parecido com o que acabaram de fazer, uma tarefa específica por um favor específico, tudo normalmente corre bem. Quando o pagamento não é executado imediatamente é que você pode se meter em encrenca, e eu quero dizer uma encrenca profunda envolvendo sua alma, que pode, inclusive, ser fatal.

– Se eu entendi bem o que você disse, então Kevin deveria concordar apenas com um pagamento que seja imediato e muito específico, certo? – Vovó Redbird perguntou.

– Bem, sim e não. Mesmo dessa forma, ele ainda pode ter problemas. Essa é outra parte complicada do processo. Os textos ancestrais alertam que usar tanto poder é perigoso e pode ferir o vampiro que o está brandindo.

– Mas eu já tenho afinidade com os cinco elementos. Assim como a minha irmã no outro mundo que eu acabei de visitar. Ela é uma boa Grande Sacerdotisa, das boas mesmo. Ela derrotou Neferet. Eu realmente acho que ela não foi ferida por isso.

– As afinidades elementais são concedidas por Nyx e, portanto, elas não são Magia Antiga. É impressionante que você tenha essas afinidades, juntamente com seu sangue cherokee. Deve ser esse o motivo pelo qual os espíritos ouviram o seu chamado – Anastasia disse. – E em relação ao que os textos querem dizer quando falam que o vampiro pode ser ferido por lidar com esse poder... sinto muito por simplesmente não ter conhecimento suficiente para explicar melhor. Eu nunca vi Magia Antiga antes, nem ninguém que pudesse invocá-la. Tudo que eu sei é o que li em textos antigos.

– Bom, estou querendo arriscar e usá-la, pelo menos mais uma vez. Você acha que eles vão me ouvir de novo?

Ela deu de ombros.

– Eu não posso responder isso, Kevin. Nem posso responder se você deveria invocá-los de novo. Eu não conheço a natureza da sua alma. Eu não sei o quanto você é suscetível às Trevas.

– Eu conheço – Vovó Redbird afirmou. – A alma dele é boa. Boa de verdade. Ele não será sujeito às Trevas, ao ódio nem ao mal. Mesmo antes de Nyx restaurar a sua humanidade naquele outro mundo, ele combateu a fome e a insanidade que muitos de nós estão chamando de Maldição Vermelha. U-we-tsi, eu acredito que você pode ajudar a endireitar o equilíbrio entre Luz e Trevas porque você pode brandir Magia Antiga. Mas não se esqueça das palavras de Anastasia: o pagamento tem que ser específico e feito imediatamente.

– Eu vou me lembrar disso. Prometo. Mas, hum, vocês acham que eu tenho sangue o suficiente agora para isso?

– Não, você não tem – Anastasia respondeu.

– Eu tenho uma ideia para um pagamento alternativo. – Vovó levantou a mão e a colocou sobre a bolsinha que fazia uma protuberância embaixo da sua blusa.

– Espere aí, não. Você não pode dar a sua bolsa medicinal – Kevin disse.

– Posso e vou. As minhas duas bolsas medicinais.

Kevin colocou a mão sobre a réplica que repousava no meio do seu peito.

– Não sei, Vó. Será que é uma boa ideia abrir mão do seu poder assim?

– Ah, u-we-tsi, uma bolsa medicinal não tem poder por si só. Ela apenas simboliza o poder de quem a fez. E eu posso simplesmente fazer outra, assim como provavelmente a Outra Sylvia Redbird fez no mundo de Zoey – ela puxou a bolsa com miçangas debaixo da sua blusa e levantou a tira de couro por sobre a cabeça, entregando-a para Kevin. – Invoque os seus espíritos.

Kevin pegou a bolsa medicinal depois de apertar a mão fria de sua avó, e então ele levantou os olhos para Dragon.

– Pode me ajudar a ficar em pé?

O poderoso Guerreiro segurou o cotovelo de Kevin, erguendo-o. Kevin ficou em pé, cambaleando levemente quando pontos brilhantes apareceram na sua visão, mas ele logo se estabilizou. As suas costas estavam sensíveis e doloridas de um ombro a outro, mas a sua tontura passou. Ele não ia conseguir correr uma maratona, mas tinha certeza de que não iria cair. De novo.

Então ele percebeu que não tinha a menor ideia do que fazer em seguida.

– Hum, Anastasia, como eu invoco os espíritos?

– Quando eles vieram até você antes, foi na hora em que você tinha aberto o seu ferimento, então estava sangrando bastante, e você tinha acabado de dizer algo sobre querer consertar as coisas.

– Então, você acha que eu deveria me cortar de novo e depois chamá-los?

– Eles já não estão aqui? – Vovó fez um gesto indicando a noite gelada lá fora. – Você não pode simplesmente pedir que eles voltem até você?

Kevin olhou questionador para Anastasia, que deu de ombros e assentiu.

Ele estalou as juntas dos dedos e balançou as mãos enquanto se movia para mais perto da entrada da caverna. Kevin limpou a garganta, respirou fundo e abriu a boca para gritar sabe-a-Deusa-o-quê, mas hesitou. Talvez eu deva pensar antes de falar... ou, mais especificamente, deva rezar. Kevin fechou a boca. Fechou os olhos. E baixou a cabeça.

Por favor, me ajude, Nyx. Isso tudo está muito acima da minha capacidade... e não estou falando só dos espíritos. Eu quero ajudar a Resistência, mas sou só um garoto. Não sou nem tão velho quanto a Zo, nem tão experiente. Eu prometo que vou tentar fazer a coisa certa e seguir o caminho que você quer que eu siga. Você pode me dar uma ajudinha para que eu continue seguindo esse caminho?

Kevin levantou a cabeça e encarou o gelo e a névoa mágica que tinham afastado Stark.

– Espíritos da água nos protegeram com gelo e névoa... – ele murmurou para si mesmo, pensando em voz alta. – E os espíritos são ligados aos elementos. – Kevin pensou bastante. E então ele deu um suspiro gigante. – Espíritos da terra!

Sorrindo, ele se virou e encontrou os olhares confusos que Anastasia, Dragon e sua avó estavam dando na sua direção.

– Acho que descobri! – Ele encarou a noite de novo e, com mais confiança do que sentia, falou com uma voz alta e clara. – Espíritos do ar, fogo, água e terra, eu sou Kevin... – ele hesitou um instante. E então ele sabia exatamente o que precisava dizer e como tinha que dizer. – Eu sou Kevin Redbird e, com a minha afinidade concedida pela Deusa e pelo meu direito de sangue, o mesmo sangue que pulsou forte nas veias daqueles que foram protetores desta terra, eu invoco vocês, principalmente aqueles que são espíritos elementais da terra! Espíritos que já estão por aí na montanha, por favor, venham até mim!

Foi como se a noite inspirasse fundo, segurasse o fôlego e então, ao expirar, soltasse a magia. Anastasia e Vovó Redbird arfaram quando uma revoada de espíritos, alterando a sua forma de vaga-lumes para fadas aladas, subiu voando desde a parte de baixo da montanha até o alto. Eles pairaram diante da caverna, iluminando a noite gelada, de modo que Kevin pôde ver claramente as rochas enormes que pontilhavam a área íngreme ao redor deles começarem a brilhar. Então figuras emergiram, como se elas estivessem encolhidas dentro das pedras dormindo, aguardando o chamado de Kevin. Eles eram maiores do que os espíritos vaga-lumes – tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ou dois anos. Os espíritos da rocha eram inacreditavelmente lindos. Pareciam não ter um gênero definido; a pele dos seus corpos tinha a aparência exata dos minúsculos veios de quartzo compacto que marmorizavam o arenito de Oklahoma de onde emergiram – brilhavam como se fossem acesos por dentro. Kevin percebeu que eles eram o que a princípio ele achara parecido com fogos de artifício de Quatro de Julho. Os seus pés delicados não tocaram o chão quando eles flutuaram na direção dele.

– Magia Antiga! – o corvo de Anastasia grasniu ao levantar voo da caverna.

Uma movimentação à sua direita e à sua esquerda atraíram a atenção de Kevin, e ele assistiu à casca nodosa dos carvalhos antigos e desfolhados pelo inverno ondular se levantando como ondas de calor de uma estrada asfaltada de Oklahoma no verão. De dentro das árvores, os espíritos se materializaram. Kevin teve que conferir se a sua boca não estava aberta (uma olhadela para Dragon mostrou que o Guerreiro estava de olhos arregalados e de boca aberta). Os espíritos das árvores eram as coisas mais perfeitas que ele já tinha visto desde que fora apresentado para Aphrodite no mundo de Zo. Eram todos femininos. A sua pele era de um marrom terroso como casca de árvore, mas, em vez de ser nodosa e antiga, parecia veludo. O cabelo flutuava ao redor de cada uma delas, caindo bem abaixo da cintura, em todos os tons de folhagens: o verde-limão brilhante da primavera, o jade forte do verão e o dourado avermelhado e fúcsia do outono. Elas eram tão únicas como as árvores de onde cada uma surgira. No começo, Kevin achou que os seus corpos eram cobertos de tatuagens, mas, quando elas se moveram graciosamente para mais perto, ele percebeu que elas eram, na verdade, cobertas por uma miríade de diferentes plantas da floresta – samambaias, cogumelos, flores e musgo – em vez de roupas.

Os diferentes tipos de espíritos elementais formaram um semicírculo em volta da boca da caverna, onde eles aguardavam silenciosamente na chuva congelante que ainda caía. A luz dos espíritos vaga-lumes atingiu o gelo que já tinha começado a cobrir a montanha, fazendo aquela pequena área brilhar como um diamante.

– Olá – Kevin disse, esperando que o sorriso enorme que ele não conseguia tirar do rosto não fosse inapropriado. – Hum, obrigado por terem vindo.

Um espírito da árvore foi mais para a frente. Ela era mais alta que as outras, e o seu cabelo era laranja, vermelho e dourado, como um poderoso carvalho no outono. O seu corpo era flexível, curvilíneo e mal coberto pela folhagem delicada de uma avenca.

– Garoto Redbird, não esperávamos que você repetisse o seu chamado, principalmente porque as nossas crianças ainda estão cuidando do seu pedido.

A voz dela era inesperada – agradável e doce, como a sombra de um velho carvalho em um dia quente de Oklahoma, mas também repleta de uma força que fez os galhos nus de todas as árvores próximas tremerem.

– Peço perdão. Eu não queria perturbar vocês – Kevin disse rapidamente.

– Você nos entendeu mal. Não estamos reclamando. Só quisemos demonstrar surpresa. Nós não somos despertados há muitas eras. As crianças se divertiram esta noite. – Ela ergueu uma mão, com a palma para cima, recolhendo o gelo de modo que ele revestiu a sua pele de veludo escura, deixando-a com a cor de cristal de quartzo esfumaçado. – Embora a água possa ter sido exuberante demais. – Ela chacoalhou o gelo da sua mão e do seu braço, e choveu ao redor dela, com as gotas faiscando na pálida luz da lua. – E elas realmente apreciaram o sabor do sangue indígena, por mais distante que seja a linhagem.

Kevin escutou a sua avó dar um grunhido irônico atrás dele, mas a sua atenção continuou focada no espírito.

– As suas crianças nos salvaram hoje – ele disse. – Por favor, agradeça a elas por mim.

O espírito inclinou a sua cabeça para o lado, como um passarinho, analisando-o.

– Você já agradeceu, Garoto Redbird, com o seu sangue. Você não precisava nos chamar para isso.

– Essa não é a única razão pela qual eu chamei vocês. Eu esperava que vocês pudessem me ajudar de novo.

Os olhos dela, escuros e amendoados, faiscaram com um brilho que Kevin achou ser malicioso.

– De qual outro serviço você precisa e qual o pagamento que você propõe, Garoto Redbird?

– São duas coisas – Kevin respondeu. – Primeiro, nós realmente precisamos que esta caverna fique maior e melhor. Sabe, mais ou menos... – ele hesitou e deu uma olhada rápida para Dragon. Então sussurrou para o Guerreiro. – Quantas pessoas mais ou menos precisam caber lá dentro?

Dragon apenas ficou olhando para ele, ainda boquiaberto, mas Anastasia deu um passo à frente rapidamente.

– Seria adorável se a caverna pudesse abrigar cem pessoas.

Kevin pensou que aquilo parecia coisa demais para pedir, mas ele voltou sua atenção para o espírito da árvore e falou com muito mais confiança do que de fato sentia.

– Vai ser ótimo se a caverna for grande o bastante para abrigar cerca de cem pessoas.

O espírito nem piscou ao ouvir o número.

– E o segundo serviço que você requisita?

– O que as suas crianças fizeram por nós esta noite... escondendo-nos do Exército Vermelho e Azul... bom, hum, vocês poderiam continuar a fazer isso? Por favor? – ele disse. Como ela não respondeu, ele acrescentou: – Nós também temos nossas crianças e inocentes que precisam de um lugar seguro, e esta montanha seria perfeita se a caverna fosse maior. Eu prometo que nós vamos respeitar a montanha. Não vamos construir mais nada aqui, e vamos manter tudo completamente limpo e sem bagunça.

– Ah, entendo. Você está pedindo santuário permanente.

Atrás dele, Anastasia sussurrou alarmada.

– Pare, Kevin. Você está pedindo demais.

Kevin a ignorou. Ele já havia medido se estava brincando com a sorte com os espíritos, mas ele percebeu que tinha duas oferendas para eles, então ele podia também pedir por dois serviços.

– Sim. Eu estou pedindo santuário, na forma de uma nova caverna, e a sua proteção, mas não de maneira permanente. Eu só solicito essa proteção até que eu restaure o equilíbrio entre Luz e Trevas neste mundo. Então nós não vamos precisar nos esconder mais.

– E o que você tem a oferecer como pagamento por esses serviços?

Kevin ergueu a bolsa medicinal que estava em volta do seu pescoço e a segurou, junto com a bolsa gêmea, mostrando-as para o espírito. Ela foi para a frente, não exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não mexeram no chão no qual eles pisaram. Ela chegou tão perto de Kevin que ele conseguiu sentir o seu cheiro – ela tinha todos os aromas do outono: a canela das folhas que caem, o frescor acentuado do primeiro dia frio depois de um longo e quente verão, a riqueza das raízes grossas se estendendo para o fundo da terra fértil. Ao se dar conta de que a estava encarando, ele se sacudiu mentalmente quando ela pegou as bolsas.

O espírito levou as bolsas até seu rosto, cheirou-as e colocou a língua para fora, sentido o gosto de cada uma. Ela piscou os olhos, surpresa.

– Elas são de mundos diferentes.

– São – ele confirmou. – Pagamentos de dois mundos diferentes por dois serviços diferentes.

– O seu pagamento é mais interessante do que poderoso. Vamos ver se é interessante o bastante.

O espírito da árvore deu as costas a ele, voltando-se para os outros que se reuniram ao som do seu chamado em um semicírculo frouxo em volta da frente da caverna. Ela falou rapidamente com eles, usando a estranha linguagem que era mais música do que palavras.

Em resposta, um espírito de cada um dos diferentes grupos deu um passo à frente, fazendo uma série de assobios e sons de estalos parecidos. Depois que todos tiveram a sua vez, o espírito da árvore abaixou a cabeça de leve antes de se voltar de novo para Kevin. Quando ela falou, a sua voz entrou em uma cadência musical repetitiva que o fez lembrar as vozes que ele havia escutado quando os outros espíritos aceitaram o seu sangue mais cedo, só que desta vez o poder na voz do espírito fez uma pressão contra a sua pele como a ameaça de uma tempestade com raios e trovões.

“Nós aceitamos este pagamento – esta magia

de mundos feitos em dois

Formada da sabedoria ancestral e dada

com amor para depois

Em troca –

A terra vai se mover

O ar vai escutar

A água será testemunha

E o fogo que aquece e impunha

Mas atenção ao meu comando, Garoto Redbird

Nem uma árvore viva deve destruir

Ou o nosso acordo irá para sempre ruir

E é dito – que assim seja!”

Então o espírito da árvore abriu a boca de um jeito impossivelmente amplo, dando a Kevin uma visão desconcertante dos seus dentes brancos e afiados, e engoliu uma das bolsas por inteiro. Em seguida, com um movimento tão rápido que para Kevin foi só um borrão, ela atirou a segunda bolsa para o ar, onde ela explodiu. Pedaços dela começaram a cair junto com a chuva de gelo, e o tempo desacelerou quando os espíritos começaram a esvoaçar em volta, alimentando-se dos restos da bolsa medicinal de Vovó Redbird como um cardume de piranhas lindas, mas mortais. Durante todo esse processo, eles piaram, assobiaram e cantaram uma canção sem palavras, mas cheia de alegria.

O tempo acelerou de novo, e o espírito da árvore olhou para um local atrás de Kevin, onde Vovó Redbird estava parada em pé, do lado de dentro da entrada da caverna.

– Mulher Sábia, a sua essência é deliciosa. Você controla o seu próprio tipo de poder da terra. Eu irei até você um dia, se alguma vez você precisar de mim.

Vovó Redbird abaixou a cabeça em um reconhecimento respeitoso para o espírito antes de responder.

– Se algum dia eu tiver uma necessidade tão grande que estiver disposta a pagar o seu preço, eu invocarei você, adorável espírito da árvore.

– Você e esse filho do seu sangue podem me chamar de Oak.

Desta vez, quando sua avó abaixou a cabeça, Kevin a imitou.

– Obrigado, Oak – ele falou.

– Você já me agradeceu. E o seu pagamento estava delicioso. Agora, o seu grupo deve sair da caverna enquanto nós trabalhamos.

Dragon e Vovó Redbird saíram da caverna com Kevin, mas Anastasia fez uma pausa na boca da caverna para fazer um chamado lá para dentro.

– Shadowfax, Guinevere! Venham, vocês dois. Sei que está frio e molhado aqui fora, mas vocês têm que sair da caverna.

Lá do fundo, dois gatos emergiram: um gato maine coon enorme, com cara de descontente, e um gato elegante cor de creme que Kevin tinha quase certeza de que era um siamês. Ambos estavam com as orelhas grudadas nas cabeças enquanto caminhavam até Dragon para pular nos seus braços.

– Pronto. Agora, venha para trás com a gente, Anastasia.

A companheira de Dragon se juntou a eles, e Kevin colocou o braço ao redor de sua avó, tentando protegê-la o máximo que podia daquela chuva que congelava os ossos, mas ele ainda estava fraco e se viu cambaleando, a menos que se apoiasse com força nela. De repente Dragon passou os dois gatos para a sua companheira, e então estava ao lado de Kevin, agarrando o seu outro braço, estabilizando-o o suficiente para que ele conseguisse subir entre duas rochas, que quase os protegiam da umidade. Com Dragon de um lado e sua avó de outro, Kevin observou como, em menos tempo do que tinha levado para expulsar o Exército Vermelho da montanha, os espíritos realizaram um milagre. E então, sem nem mais uma palavra, eles se dissolveram de novo em árvores, em pedras e na noite escura e fria.


9

Zoey

– Só faz alguns dias desde que Kevin foi embora, mas sinto como se fossem meses. Por favor, Nyx, cuide dele e não deixe que ele se meta em muitos problemas. – Eu acendi a vela roxa e então a coloquei aos pés da maravilhosa estátua de Nyx que ficava como ponto principal do jardim entre os prédios da escola e o templo da Deusa. Sua chama tremulou ali, acrescentando a sua luzinha alegre às outras velas oferecidas, cada uma representando uma oração que tinha sido elevada à nossa Deusa.

Então eu dei um passo para trás e me sentei no banco esculpido em pedra ao lado da minha melhor amiga, Stevie Rae.

– Sim, Nyx, por favor, fique de olho no irmão de Z no Outro Mundo – Stevie Rae disse. – E eu entendo o que você quer dizer, Z. É esse tempo. Dois dias atrás a gente estava enterrado em neve, e hoje está fazendo quase vinte graus. Faz com que pareça que passou muito mais tempo. Ei, sabe o que é ainda mais estranho do que o clima de Oklahoma?

– Não, porque o clima de Oklahoma é a coisa mais estranha do mundo.

– Né? Mas a coisa ainda mais estranha é que eu sinto falta disso. Muita. Quer dizer, o clima de Chicago é bem louco também, mas não no nível daqui. Eu sinto falta do gelo, do vento e de como as tempestades aparecem do nada como um estouro da boiada que cai do céu.

– Aham – eu respondi automaticamente, com os olhos fixos no modo como a luz das velas brincava através da pele de mármore de Nyx, enquanto minha mente estava bem longe. Um mundo inteiro de distância, para ser mais precisa.

– Você ficaria surpresa com todas as coisas de que vai sentir falta quando sair de casa.

– Sim. – Meu olhar se desviou da estátua e se voltou para a noite perfeitamente clara e cheia de estrelas.

– Como carrapicho-de-carneiro. Sabe, aquele tipo que machuca quando você puxa o espinho para fora da pele e também quando ele entra em você.

– Aham.

– Ah, e carrapato. Eu morro de saudade de carrapato.

– Sim, eu também.

– Hum, Z. Você não.

– Certo.

– Zoey Redbird, pare de sonhar acordada!

Stevie Rae deu um cutucão no meu ombro. Com força.

– Ei! O que foi isso?

– Z, sério? O que eu acabei de dizer?

Eu mordi a bochecha.

– Hum, alguma coisa sobre lã? O que não faz muito sentido. Você está bem? Eu estava falando sério quando disse que você e Rephaim não precisam voltar para Chicago. Vocês não precisariam ter ficado lá nesse último ano se eu soubesse que você estava triste.

Stevie Rae se virou no banco para me encarar.

– Zoey, você confia em mim, não confia?

– É claro que confio em você.

– Então, por favor, me conte o que tem de errado.

Eu suspirei.

– Não tem nada...

Stevie Rae levantou a mão rápido, com a palma para fora, com um sinal para parar.

– Não. Conte essa pra outro. Eu sei que é mentira e, depois de tudo que a gente passou, é quase ofensivo.

– Ei, você sabe que eu jamais ofenderia você de propósito – eu disse, sentindo-me péssima por ter feito minha melhor amiga se sentir péssima.

– Então me conte o que tem de errado.

Suspirei de novo.

– Estou preocupada com Kevin. Bem, com o Outro Kevin. Não o Kevin daqui. Na verdade, eu e ele vamos nos encontrar no Andolini’s para comer uma pizza antes que as férias de inverno dele acabem.

– Só isso?

– Bom, sim. Quase. Quer dizer, nós ainda não sabemos o que fez todas as rosas ficarem escuras e nojentas antes da visão de Aphrodite, mas, se foi Neferet, eu esperaria que ela fizesse algo mais. Qualquer coisa mais do que isso. E os Guerreiros que fazem guarda na gruta dizem que nada mais aconteceu por lá.

– As rosas voltaram ao normal.

– O quê? Voltaram? Como você sabe disso?

Stevie Rae abriu o sorriso.

– O jardim de rosas é mais uma das milhares de coisas de Tulsa da qual eu sinto falta. Rephaim me fez uma surpresa noite passada e fomos dar um passeio pelos jardins depois de jantar no Wild Fork. Foi quando ele me deu isto. – Ela apalpou o colar de prata cintilando no seu pescoço. Pendurada na correntinha brilhante, havia uma réplica perfeita do estado de Oklahoma como um pequeno talismã.

– Own, que lindo. Eu nem tinha reparado. Desculpe.

– Z, tem muita coisa que você não está reparando nos últimos dias. Eu... eu queria que você me deixasse ajudar.

– Não há nada que você possa fazer. Eu só tenho que descobrir um jeito de parar de me preocupar com Kevin – e de pensar em Neferet... na Neferet que está lá, no comando, provavelmente massacrando milhões de inocentes, assim como ela assassinou a Outra Zoey! Mas eu não deixei a minha boca pronunciar essas palavras em voz alta. Se eu deixasse, tinha medo de não parar mais, de não parar de falar sobre Neferet, de não parar de pensar que eu precisava ajudar Kevin.

E além disso havia Heath. O Heath vivo. O Outro Heath, que estava de luto pela Outra Zoey, que eu havia acabado de ver Neferet assassinar.

– É só o Kevin? – Stevie Rae perguntou.

– Sim. Não.

– Hum, Z, qual dos dois?

– Não – eu disse com tristeza. – Também tem a idiota da Neferet e qualquer mal novinho em folha que ela está aprontando. Além disso, bom, tem Heath – então eu me esforcei para continuar rápido. – E a minha mãe. Ela está viva lá também. E tem Outra Vovó Redbird. Você consegue imaginar como deve ter sido difícil a minha morte para ela?

– Z! Aí está você! – Kramisha chegou falando alto e usando um par de botas de salto vermelhas brilhantes na altura do joelho. – Chega pra lá, Stevie Rae. Eu tenho muito mais peso na minha bunda do que vocês duas, branquelas magrinhas.

Ela empurrou Stevie Rae com o quadril, que deslizou para mais perto de mim, e nós nos ajeitamos rápido para abrir espaço para Kramisha.

– Ei, eu não sou branca. Ou pelo menos não sou cem por cento branca – eu protestei.

– Desculpe. Esqueci que você tem um pouco de cor aí, Z. Mas a sua bunda ainda é pequena.

– Gostei das suas botas novas – Stevie Rae falou. – Elas têm a cor exata da sua peruca. Como você faz isso?

– Talento. Puro talento. E essas botas não são novas, mana. Mas este macacão colante de mulher-gato é. Que tal? Miau! – Ela fingiu dar um chiado de gato para Stevie Rae, que começou a rir.

– Kramisha, eu te amo! E senti falta tanto de você quanto de Tulsa – Stevie Rae disse.

– Você vai me amar mais ainda daqui a um segundo. Z, eu quero ir para Chicago.

– Hum? – eu perguntei. – Mas você mal começou a reconstrução do Restaurante da Estação.

– Olha só, todo mundo sabe que Damien e Outro Jack podem fazer um trabalho melhor do que eu nessa reconstrução. Z, eles são gays. E eles chamaram mais gays.

Eu revirei os olhos.

– Kramisha, isso é um estereótipo horrível.

– Diga que isso não é verdade que eu calo a boca. – Ela fez uma pausa e, como eu não disse nada porque, bem, Damien, Outro Jack e Toby, o diretor do Centro de Igualdade de Oklahoma, eram todos super incríveis em design de interiores, ela continuou. – Onde eu estava? Ah sim – Kramisha se virou para Stevie Rae. – Você quer voltar para Chicago?

– Bem, hum, não exatamente, não de modo permanente, mas Z e eu já falamos sobre voltar para Tulsa de vez assim que eu deixar as coisas organizadas na Morada da Noite de Chicago.

– “Organizadas” quer dizer “depois de escolher a sua substituta”? – Kramisha perguntou.

– Imagino que sim. Certo, Z?

– Claro. A menos que você já tenha alguém em mente, como Damien tinha – eu disse.

– Queria ter, mas não escolhi ninguém. Há algumas Grandes Sacerdotisas que têm potencial, mas ninguém que se destaque – ela falou.

– Eu vou fazer isso – Kramisha afirmou.

– Fazer o quê? Você está me deixando bem confusa, Kramisha. Vá direto ao ponto – eu pedi.

– Certo. A questão é que eu não posso voltar para a estação. Não agora. Eu preciso me dar um tempo. Eu... eu ainda consigo ouvir os gritos. – Kramisha fez uma pausa e tirou algumas mechas vermelhas e brilhantes do seu rosto com uma mão trêmula. – Stevie Rae é uma Grande Sacerdotisa vampira vermelha. Ela e Rephaim se encaixam bem na estação. Os novatos gostam deles, o que eu acho meio estranho, já que ele é um pássaro boa parte do tempo, mas que seja. Não gosto de julgar. – Ela deu de ombros. – E você sabe que sou boa em organizar tudo. Eu vou para Chicago e deixo tudo organizado e encaminhado e, quando isso já estiver resolvido, talvez os gritos que eu ouço à noite já tenham sido resolvidos também, e então eu posso vir para casa de vez – Kramisha concluiu apressada.

– Eu não sabia – eu falei em voz baixa, estendendo o braço por cima de Stevie Rae para pegar a mão de Kramisha. – Kramisha, sinto muito.

– Você anda distraída. Ninguém te culpa por isso, Z. O Outro Kevin passou só um tempinho aqui, mas todo mundo que conheceu o seu mano gostou dele. Muito.

Eu sacudi a cabeça.

– Não, eu sou a sua Grande Sacerdotisa, e eu estou fazendo um trabalho ruim.

– Você vai voltar a ser o que era logo, assim como eu. A gente só precisa de tempo e um pouco de descanso.

– Você não vai ter muito descanso se for para Chicago. Aquela Morada da Noite é agitada pra caramba – Stevie Rae disse. – E eles não têm nem um programa equestre. Andei falando com Lenobia sobre...

– Sei tudo sobre isso. Também andei falando com Lenobia – Kramisha falou.

– Ela quer ir para Chicago com você? – eu perguntei, sem saber ao certo se deveria ficar surpresa, irritada ou aliviada por obviamente haver um monte de coisas rolando ao meu redor sobre as quais eu não tinha a menor ideia.

– Só o suficiente para resolver a questão dos cavalos. O que você acha, Grande Sacerdotisa?

O que eu acho? Eu encarei a estátua de Nyx. Acho que eu preciso descobrir um jeito de ajudar Kevin sem ferrar totalmente com a minha própria vida. Decidi falar outra coisa em voz alta.

– Eu acho que você é altamente capaz. Você e Lenobia vão fazer um belo trabalho, desde que Stevie Rae não se importe de você assumir o lugar dela imediatamente.

– Isso significa que Rephaim e eu podemos ficar aqui e não precisamos mais ir embora?

– É isso que significa, sim – eu respondi.

– Então eu não me importo nem um pouquinho! Kramisha, você me deixou mais feliz do que urubu em cima de carniça! – Stevie Rae atirou os braços ao redor de Kramisha, que deu um grunhido, abraçou-a rapidamente de volta e então se afastou, endireitando a sua peruca.

– Cuidado com o cabelo. Sei que não parece, mas todo esse glamour pode se estragar rapidamente se o cabelo estiver errado.

Eu abri a boca para perguntar para Kramisha em quanto tempo ela estaria pronta para partir quando a primeira sensação me atingiu. Ela começou no meio do peito, apenas um pequeno calor começando a espalhar, mas não tão pequeno que passasse despercebido. A sensação pulsou e cresceu, como se eu tivesse acabado de subir correndo as escadas de um estádio em um dia quente (o que eu absolutamente não faria, a menos que alguém estivesse me perseguindo).

Eu tossi. Enxuguei o meu rosto, que de repente ficou suado. Limpei a garganta. Tossi de novo.

A minha mão se levantou como se eu não tivesse nenhum controle sobre ela e foi até o centro do meu peito. Minha palma pressionou a minha pele.

Não havia nada ali. Nenhum calor. Nada.

Mas eu jurava que tinha sentido algo. Alguma coisa quente, forte e estranhamente familiar.

– Zoey! Você está me ouvindo?

Eu olhei para cima e vi Stevie Rae em pé sobre mim com Kramisha ao seu lado. Eu ainda estava sentada no banco, mas elas tinham se levantado e estavam debruçadas sobre mim, obviamente preocupadas.

– Sim. Eu estou te ouvindo. Eu... eu estou bem. Eu acho.

– O que aconteceu? Você congelou com a mão sobre o peito, quase como se estivesse se agarrando às suas pérolas. Só que você não está usando um colar de pérolas – Kramisha falou.

– Não sei. Foi uma sensação estranha. Já passou.

O som de pés correndo veio por trás de nós, e de repente Stark estava lá, agachado ao meu lado, com as mãos nos meus joelhos, enquanto ele analisava o meu rosto.

– Zoey! O que foi?

– Você sentiu também?

– Calor? E alguma outra coisa. Algo que não consegui identificar. – Ele tocou o meu rosto, tirando o meu cabelo da minha bochecha úmida. – Z, a sua respiração está ok? O seu peito está doendo?

– Não, não doeu. Não senti dor nenhuma. Só calor e... uma sensação estranha. – Eu estava aliviada e com medo ao mesmo tempo. Se Stark sentiu também, eu não tinha imaginado aquilo. Mas, por outro lado, se Stark sentiu, o que quer que tenha acontecido foi real. E isso podia significar más notícias de verdade.

– Acho que a gente tem que levar Z para a enfermaria para que ela possa ser examinada – Stevie Rae disse.

Rephaim devia estar com Stark, porque de repente ele estava ali também, segurando a mão de Stevie Rae e me analisando com uma concentração típica de pássaro.

– Enfermaria? Que diabos está rolando? Z, você se machucou?

Eu desviei os olhos de Rephaim e vi Aphrodite em pé ao lado de Darius (Deusa, será que estavam todos no Ginásio com Stark?). Ela estava com as mãos no quadril e me olhava intensamente, com os olhos estreitos, com os quais ela provavelmente queria demonstrar preocupação, mas que na verdade estavam mais dizendo algo como “AiminhaDeusa, por que você está me enchendo agora?”.

– Eu não preciso ir para a enfermaria. Estou bem. Sério – eu insisti.

– E isso não foi algo que Z fez para si mesma – Stark afirmou. – Foi algo que aconteceu com ela.

– Isso não faz algum sentido – Kramisha disse.

– Ou, dito corretamente, isso não tem nenhum sentido. Gramática: errada. Sentimento: certo – Aphrodite provocou.

– Isso tem sentido sim – eu falei rapidamente, antes que Kramisha conseguisse espetar Aphrodite verbalmente. – Stark quis dizer que não tem nada de errado comigo. Que, seja o que for que nós sentimos, foi algo que aconteceu fora de mim. E isso foi mais estranho do que assustador.

– Ei, o que está acontecendo aqui? – Damien perguntou quando ele e Outro Jack se juntaram ao grupo. Ambos estavam segurando velas votivas perfeitas que eles obviamente tinham a intenção de acender aos pés de Nyx. – Z, você está bem?

Eu suspirei. Às vezes, era realmente como se eu tivesse zero privacidade.

– Estou bem. Não foi nada.

– Não diga isso – Stark falou sério quando sentou ao meu lado, colocando o seu braço ao meu redor de modo protetor. – Você está bem agora. Nós estamos bem, mas não quer dizer que não foi nada. Alguma coisa aconteceu. Algo que tocou você ou a mim ou a nós dois.

Foi a vez de Damien se agachar ao meu lado.

– Conte-me o que você sentiu.

Eu descrevi o súbito calor e observei Damien ficar cada vez mais pálido enquanto Stark assentia em concordância com a minha descrição. Mas, antes que Damien pudesse dizer qualquer coisa, Aphrodite se adiantou.

– Ah, que merda, seus imbecis! É óbvio o que acabou de acontecer.

– Aphrodite, é super ofensivo chamar a gente de imbecis – Stevie Rae protestou.

– Caipira, é só um chute, mas aposto que, antes de eu me juntar a este grupo improvisado, você fez pelo menos uma comparação terrível que tinha a ver com a sua mamãe ou com carrapatos. Acertei?

– Quase – Kramisha falou. – Tinha a ver com urubu em cima de carniça, o que é nojento. – Ela olhou para Stevie Rae e deu um sorriso de desculpas. – Só estou dizendo a verdade.

– Certo – Aphrodite continuou. – E isso é ofensivo, mas você vai continuar com suas analogias de caipira e, já que você vai fazer isso, também vou continuar chamando um imbecil de imbecil quando estiver presenciando vocês agindo feito imbecis.

– Ai minha Deusa, parem de discutir! – Eu senti como se minha cabeça pudesse explodir. – Aphrodite, você realmente sabe o que aconteceu?

– Claro que sim – ela respondeu. – É Magia Antiga. E aquele som de tapa na cara que você ouviu metaforicamente está te dando vontade de cobrir o rosto de vergonha enquanto você se dá conta de que estou certa.

– Ela está certa – Damien disse enquanto se levantava e segurava a mão de Outro Jack de novo. – Era o que eu estava pensando também.

Eu apenas fiquei sentada, incapaz de dizer qualquer coisa porque eu estava lembrando do tempo que eu passei na Ilha de Skye, do talismã de mármore de Skye que eu trouxe para Tulsa. Daquele calor e do poder daquela magia, e de como ela quase me engoliu e me transformou em alguém tão parecido com Neferet que não merecia continuar sobrevivendo.

– Z?

Eu podia sentir a preocupação de Stark e deixei que ela me tirasse dos meus pensamentos.

– Aphrodite e Damien estão certos – eu afirmei. – Não percebi isso na hora porque foi só um eco distante da real sensação de brandir a Magia Antiga.

– Então, isso só pode significar que alguém está usando Magia Antiga de novo – Stevie Rae concluiu.

– E isso é ruim – Rephaim falou.

– Ruim mesmo – Kramisha concordou.

– Você deveria ligar para a Rainha Sgiach – Aphrodite sugeriu. – Ela é a especialista em Magia Antiga.

– Eu adoraria – eu disse. – Mas ela está de luto, o que significa que ela se retirou totalmente do mundo exterior. Eu sei. Eu venho tentando falar com ela uma vez por semana, e já fiz isso ontem. Ela ainda está totalmente off-line e o telefone dela só chama, chama, e ninguém atende.

– Ela ainda está sem atender o telefone? Quanto tempo já faz, quase um ano desde que o Touro Branco atacou Skye na mesma noite em que Neferet nos atacou aqui? Já era de imaginar que ela pelo menos estivesse dando uma olhada no Facebook – Aphrodite falou.

Eu levantei os olhos para Aphrodite. Ela era minha amiga, uma poderosa Profetisa de Nyx e, com a sua nova Marca azul e vermelha, uma vampira adulta, mas ainda assim ela podia soar como uma criança mimada e egoísta.

– Ela e Seoras foram companheiros por séculos. Acho que um ano de luto não é nada perto disso. Você já teria seguido em frente se Darius tivesse sido assassinado naquela noite?

Aphrodite empalideceu e se recostou em Darius.

– Não. Não, não teria. Você está certa, Z. Peço desculpas por ter soado como uma imbecil.

– Aphrodite, você sabe que Damien podia ajudar você a melhorar o seu vocabulário para que você não tenha que usar palavras como... – Stevie Rae tinha começado um novo sermão quando a segunda onda daquela sensação me atingiu.

Eu ofeguei e coloquei meus braços ao redor do meu corpo, enquanto Stark me abraçava forte.

– Está tudo bem. Está tudo bem. A gente está bem. Vai passar – Stark murmurou frases para me tranquilizar.

– O que foi? O que está acontecendo? – Aphrodite chegou mais perto de mim, ombro a ombro com Damien.

– Você está com dor? – Damien perguntou.

– Nã-não – eu respondi com voz trêmula. – Eu só sinto como... como...

– Como se alguém estivesse pisando no seu túmulo – Stark concluiu por mim.

– A-alguém que usa Magia Antiga – eu acrescentei e Stark assentiu em concordância.

Como meu Guerreiro Juramentado, Stark compartilhava as minhas sensações. A ligação Grande Sacerdotisa-Guerreiro era estabelecida dessa forma para que nossos protetores sempre soubessem quando precisávamos deles. Mas havia momentos, como agora, em que eu preferia poder apertar um botão e não fazer ele passar por essas coisas estranhas que aconteciam frequentemente comigo.

– Está sumindo – Stark disse.

Eu soltei um longo suspiro de alívio.

– Sim. Acabou.

– Z, de onde isso está vindo? – Stevie Rae perguntou.

– Não tenho ideia – respondi. – Stark, você sabe de algo?

Ele balançou a cabeça.

– Não, acho que eu não estou tendo a sensação de fato, mas apenas um eco do que você está experimentando.

– Bom, está ligado a você – Damien falou. – Seja a magia propriamente dita ou a pessoa que está mexendo com ela.

– E se Sgiach invocou Magia Antiga? Será que pode ser isso que você sentiu? Vocês duas ficaram muito próximas – Stevie Rae deu um palpite.

– Não acho que seja isso – eu respondi. – A Rainha Sgiach é guardiã da Magia Antiga, e eu sei que ela se manifesta na ilha dela com muita frequência, mas, a menos que eu esteja lá com ela, nunca senti nada.

– Ela usou Magia Antiga na batalha contra o Touro Branco na noite em que sepultamos Neferet – Damien lembrou. – Você não sentiu nada?

Balancei a cabeça.

– Não.

– Merda! Será que pode ser Neferet? – Aphrodite disse.

De repente, senti um calafrio.

– Não sei.

– Bom, descubra! – Aphrodite exclamou.

Eu franzi o cenho para ela.

– Você é a Profetisa. Que tal você descobrir?

Ela atirou o longo cabelo loiro para trás.

– Não funciona desse jeito e você sabe disso.

– Além disso, você não precisa de nenhuma Profetisa. Você só precisa de uma Grande Sacerdotisa que possa invocar Magia Antiga. Conhece alguma, Z? – Kramisha perguntou, dando um olhar aguçado na minha direção.

Eu metaforicamente dei um tapa na minha testa.

– Eu devo ser uma imbecil.

– Z! – Stevie Rae bufou.

Fiz um gesto para evitar o que provavelmente seria um sermão politicamente correto enquanto Aphrodite caiu na gargalhada.

– Desculpe. Eu só estava brincando. Na maior parte. Eu sou a Grande Sacerdotisa de quem Kramisha estava falando.

– Não gosto de você mexendo com Magia Antiga – Stark falou.

– Eu não vou mexer com isso – eu argumentei. – Vou só dar uma invocada rápida, só isso.

– Nunca é só isso quando Magia Antiga está envolvida – Stark rebateu sombriamente.

Eu suspirei e concordei silenciosamente com ele.

– Será que a gente deve ir até Skye? Apesar de ela estar de luto, não acredito que a Rainha Sgiach recusaria dar passagem a você.

– Lá é longe demais – Stevie Rae protestou. – Tem que haver um jeito mais fácil. Ou pelo menos um lugar mais perto.

– Eu sei de um lugar mais perto – Rephaim disse.

A atenção de todo mundo se voltou para o jovem Cherokee alto e bonito.

– Ok, estou ouvindo – eu o incentivei a continuar.

– Tem Magia Antiga aqui. Bem aqui nos jardins da escola – ele falou em voz baixa, mas gravemente. – Eu sei porque eu vim dela.

Eu me endireitei no banco, como se o que Rephaim acabou de dizer tivesse entrado na minha mente. O meu olhar se perdeu pelos jardins da escola na direção leste, onde a distância eu mal podia distinguir a silhueta escura de um carvalho enorme e quebrado.

– Rephaim está certo. Há um jeito mais perto, mas eu não tenho muita certeza se vai ser muito mais fácil – eu afirmei.

O olhar de Stark seguiu o meu, e eu o escutei resmungar baixinho.

– Ah, que inferno.


10

Zoey

– Não sei se essa é uma boa ideia – Stevie Rae disse.

– Eu tenho certeza de que não é – Stark falou.

– Zoey, você não deveria fazer um círculo antes de tentar invocar Magia Antiga? – Rephaim perguntou. – Shaylin ainda está aqui, não está? Posso ir chamá-la. E eu vi Shaunee indo para a aula de Teatro com Erik. Posso falar para ela, caso você precise dela aqui também.

– Uau! Definitivamente essa árvore não se parece com a que está no meu velho mundo – Outro Jack exclamou.

– Ok, escutem bem. – Eu dei as costas para o carvalho destruído e encarei os meus amigos. – Eu não vou fazer um círculo. Quero fazer isso de um jeito rápido e simples, sem precisar focar muita energia em Magia Antiga. – Eu me virei para Rephaim. – Obrigada por me lembrar que essa árvore estava aqui. Queria que você e Stevie Rae ficassem – o meu olhar desviou dele e abarcou Aphrodite e Stark –, mas eu quero que todos os outros, exceto Stark e Aphrodite, vão embora. Minha intuição me diz para não tentar fazer um espetáculo para invocar Magia Antiga e, quanto mais gente estiver aqui, maior a bagunça. Eu faria isso sozinha, mas conheço o meu Guerreiro o bastante para saber que isso não é possível.

– Com certeza – Stark afirmou, com jeito de Guerreiro valentão, enquanto olhava sobre o meu ombro para a árvore quebrada, em cuja direção eu nem tinha olhado ainda.

– E Aphrodite é, bom... – minhas palavras sumiram quando percebi que não sabia muito bem como descrever o que Aphrodite havia se tornado.

– Estranhamente ligada a Nyx e poderosa? – Stevie Rae sugeriu.

– Que tal incrivelmente ligada a Nyx e poderosa? – Aphrodite a corrigiu, estreitando os olhos.

– As duas coisas – eu disse.

– E eu vou usar a minha posição de Grande Sacerdotisa e ficar bem aqui com Z – Stevie Rae falou.

– Eu fico com Stevie Rae – Rephaim acrescentou.

– Exatamente como eu esperava – eu concordei.

– O que nós podemos fazer enquanto isso? – Damien perguntou, entrelaçando os dedos com os de Outro Jack.

– Obrigada pela compreensão – eu agradeci. – Você e Jack podem cuidar para que todos os estudantes fiquem lá dentro.

– Claro – Damien respondeu. – Está na metade da segunda aula. Vamos enviar um e-mail de emergência para todos os professores. Ninguém pode ir a lugar nenhum por mais ou menos uns trinta minutos.

– E se alguém sair, Damien e eu vamos enxotar a pessoa direto de volta para a aula – Outro Jack completou, mostrando as covinhas para mim.

– Mas você tem certeza absoluta de que não quer que eu fique? – Damien perguntou. – Eu poderia fazer anotações sobre o que acontecer.

– Na verdade, o que me ajudaria ainda mais do que isso seria se você pudesse pegar aqueles livros sobre Magia Antiga na área restrita do Centro de Mídia, e marcar tudo que você achar que eu preciso ler sobre o assunto.

– Eu posso fazer isso, Z.

– Posso ajudar também? – Outro Jack se ofereceu, olhando para mim com olhos grandes e ansiosos. – Quer dizer, assim que a gente avisar os professores para não deixarem os novatos saírem das salas.

– Claro – eu respondi. – Eu agradeço.

Outro Jack deu um pulinho de alegria, que me fez sorrir, e então ele e Damien saíram apressados de mãos dadas.

– Bom, da minha parte, não preciso ver Magia Antiga nem qualquer coisa do tipo – Kramisha disse. – Tenho que fazer as malas. Z, se um poema vier até mim, eu mando uma mensagem pra você. Beleza?

– Sim – eu respondi, desejando secretamente não receber nenhum poema profético maluco enviado para mim via mensagem de texto com a fonte roxa brilhante que Kramisha usava para escrever.

– Grande Sacerdotisa, eu gostaria de permanecer com Aphrodite.

Meus olhos encontraram o olhar sério de Darius. Eu suspirei, mas assenti.

– Sim, eu entendo isso. Você pode ficar.

Darius fez uma reverência respeitosa para mim, com o punho sobre o coração.

– Ok, Z. Você encontra a gente no refeitório depois? Já está quase na hora do almoço e eu estou ficando irritada de fome – Kramisha disse.

– Sim, combinado. Não vou demorar. – Eu esperava que, ao falar em voz alta, pudesse transformar isso em realidade.

Enquanto meus amigos seguiam de volta para o prédio principal da escola, eu finalmente voltei minha atenção para a árvore rachada.

A aparência dela era horrível. Conforme eu a observei, percebi que deveria ter mandado arrumar tudo meses atrás. Estava assustador. Eu sabia que os estudantes evitavam o muro leste por causa daquilo, e imagino que parte do motivo que me fez adiar fazer qualquer coisa ali era porque aquilo desencorajava novatos a usarem o alçapão escondido no muro atrás da árvore para saírem escondidos do campus. Mas, por outro lado, agora eu era a Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Como se eu fosse realmente tomar conhecimento de cada novato que estava saindo escondido do campus. Era muito improvável.

– Z? Você está bem? – Stark perguntou.

Eu assenti.

– Sim, só estou pensando em mandar arrumar essa bagunça.

– Não. Deixe assim – Aphrodite falou. – Se você quiser fazer algo, faça uma defumação e um círculo de sal para proteção, mas deixe do jeito que está.

Eu me virei para ela.

– Por quê?

Ela indicou a ruína maléfica da árvore sem folhas e o buraco criado na terra de onde Kalona e os seus Raven Mockers haviam saído em uma explosão em um tempo que parecia muito, muito distante.

– Eu posso estar errada, mas para mim parece que essa bagunça é uma lição visível do que acontece quando você brinca com poderes em que é melhor não mexer.

Os meus olhos focaram nos galhos escuros feito garras, onde as folhas se recusavam a nascer.

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho razão. Então, você vai invocar Magia Antiga ou o quê?

Eu queria poder escolher “ou o quê”, mas sabia que essa não era uma opção.

– Alguém tem uma faca?

Juntos, Darius e Stark tiraram adagas que pareciam muito perigosas de sabe-a-Deusa-onde em seus corpos extremamente armados. Eu estendi a mão, com a palma para cima, e falei para Stark:

– Faça um corte.

Ele franziu a testa.

– Que tal eu me cortar e você usar o meu sangue?

– James Stark, eu sou a sua Grande Sacerdotisa e a sua Rainha. Eu disse para você me cortar. Então me corte.

Ele ainda estava franzindo a testa, mas desta vez fez o que eu pedi, rapidamente abrindo um corte raso na parte mais carnuda da palma da minha mão. A adaga dele era tão afiada que eu sequer senti dor. Fechei a mão e a apertei de leve para que o sangue se juntasse em uma quantidade razoável.

– Aphrodite e Darius, por favor, fiquem à minha esquerda. Stark, Stevie Rae e Rephaim, fiquem aqui do lado direito. Eu vou caminhar até a árvore. Deixem-me ir um pouco na frente de vocês. Não façam nada enquanto eu ainda estiver falando coisas com sentido, mas se algo estranho demais acontecer...

– Se alguma merda estranha acontecer, eu vou carregar você para fora de lá – Stark afirmou.

– Não – eu falei, cortando-o. – Coisas estranhas vão acontecer. É Magia Antiga. Não faça nada, a menos que eu pare de me comunicar com você, ou que eu seja puxada para dentro da, hum, árvore. – Fiz uma pausa, esforçando-me para não estremecer ao lembrar da última vez que a Magia Antiga havia me tocado ali. Da última vez eu quase havia me perdido. Encontrei o olhar preocupado de Stark e minha voz suavizou. – Você vai saber se alguma coisa estiver dando errado. Você vai sentir. Só não faça nada a não ser que dê tudo errado. Ok?

– Ok – ele respondeu com relutância.

– Eu te amo e sinto muito que isso esteja te estressando – eu disse.

Os ombros de Stark relaxaram um pouco.

– Eu também te amo, Z, e estresse faz parte do trabalho de um Guerreiro.

Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo e então encarei a árvore. Levantei a minha mão fechada diante de mim e inspirei profundamente três vezes para me centrar. Então hesitei.

– Bom, que inferno. Não sei quem eu devo invocar – eu falei.

– Você me disse que gostou dos espíritos elementais que responderam ao seu chamado em Skye – Stark lembrou.

– Sim, mas aquilo era diferente – eu respondi.

– Não exatamente. Pare de se preocupar tanto com o fato de ser Magia Antiga. Pense nisso em termos mais simples. É uma árvore velha toda ferrada. É só invocar os espíritos da terra – Stevie Rae sugeriu. – É o que eu faria.

– Sim, você está certa. Espíritos da terra. Isso parece o correto – eu concordei nervosamente.

– E pare de ficar tremendo tanto. Eles são só elementais. Você tem afinidade com todos os elementos. Imagine que você está invocando a terra para um círculo – Aphrodite reforçou.

– Essa é mesmo uma boa ideia – eu disse.

– Claro que é. Eu sou cheia de boas ideias. – Ela atirou o seu cabelo comprido e loiro para trás e levantou suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas para mim.

– E se eu tentar ajudar? – Stevie Rae veio para o meu lado. – Não sei muito sobre Magia Antiga, mas eu sou da terra. Vamos invocar juntas. Como a gente faz no círculo.

– Ok, isso faz sentido. Stevie Rae, você começa, e eu vou usar o meu sangue como se eu estivesse acendendo uma vela na terra.

– Facinho! – Stevie Rae limpou a garganta e falou para a árvore quebrada. – Eu sou Stevie Rae, Grande Sacerdotisa vampira vermelha de Nyx, que me presenteou com a afinidade com a terra. Com o poder concedido pela Deusa, eu gostaria de invocar os espíritos ancestrais da terra. – Então ela assentiu e deu um passo atrás, deixando que eu liderasse a invocação final.

Eu estendi a mão de novo, inspirei fundo e disse:

– Espíritos da terra! Espíritos das árvores da Magia Antiga! Eu sou Zoey Redbird. Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx, e eu consigo brandir a Magia Antiga. Com o poder ancestral no meu sangue, eu os invoco e peço que apareçam para mim. – Então, como se eu estivesse atirando uma mão cheia de água para longe de mim, arremessei o meu sangue na casca de árvore nodosa e quebradiça.

Nada aconteceu por um instante, e eu senti o meu coração afundar no peito. Eu ia mesmo ter que voar até Skye e incomodar Sgiach em seu luto? Será que isso poderia ser feito? Ou talvez eu devesse tentar falar com o Conselho Supremo dos Vampiros, o Europeu, aquele que não estava particularmente satisfeito com o fato de os meus amigos e eu termos assumido a liderança na América do Norte em vez deles...

– Ei, Z. Acorde. Tem alguém aqui – Aphrodite sussurrou.

Eu me sacudi mentalmente e fiquei olhando uma figura emergir do centro da árvore partida. Ela era obviamente um espírito da árvore. Alta e graciosa, tinha pele escura – da cor de casca de árvore à meia-noite –, mas não havia nada de rústico nela. Ao contrário, sua pele parecia incrivelmente suave e macia – e havia muita pele visível, pois o vestuário que ela estava usando era composto de delicadas folhagens de samambaia. Quanto mais eu olhava, mais me dava conta de que a samambaia parecia estar rente à sua pele, como uma pintura corporal ou mesmo uma tatuagem. Ela piscou para mim com olhos grandes, escuros e bonitos.

– Olá – eu disse. – Obrigada por atender ao meu chamado.

O espírito inclinou a cabeça para o lado com um movimento parecido com o de um passarinho. Isso fez o seu cabelo espetacular, da cor das folhas do outono, ondular como se estivesse sendo mexido por um vento que afetava apenas o espírito.

Eu estava tentando descobrir como persuadi-la a falar comigo quando o espírito inspirou profundamente, e então os seus olhos grandes e escuros ficaram ainda maiores.

– Outro Redbird? Esta noite está mesmo muito interessante.

Ela saiu do meio da árvore despedaçada, dando um olhar triste para ela enquanto passava a mão no tronco partido. Ela não estava exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não fizeram som nenhum nem remexeram o gramado marrom do inverno sobre o qual ela caminhava. O espírito parou diante de mim, se inclinou para a frente e me cheirou.

– Você é, de fato, uma Garota Redbird.

– Como você sabe o meu nome? – eu falei sem pensar.

– Eu acabei de encontrar outros do seu sangue. Um garoto jovem e uma mulher – a voz musical do espírito hesitou antes de continuar. – Mas eles não estão neste mundo. Que estranho.

– Espere aí, você está falando do meu irmão, Kevin?

– O Garoto Redbird... sim, acho que ele se chama Kevin.

– Quem era a mulher? Z, eu pensei que você estivesse, ahn, morta do lado de lá – Stevie Rae sussurrou.

O espírito voltou sua atenção para Stevie Rae, que sorria nervosamente e acenou, dizendo:

– E aí! Sou Stevie Rae. Prazer em te conhecer.

– Eu não a conheço, mas posso sentir a força da sua ligação com a terra. Como um espírito da árvore, eu aprecio isso. Pode me chamar de Oak.

– Obrigada, Oak – Stevie Rae fez uma reverência respeitosa.

Oak começou a farejar o ar de novo e, ao fazer isso, ela chegou mais perto de Rephaim, que estava tão imóvel que pensei que ele nem estivesse respirando.

– O que é você? Eu sinto o cheiro de Magia Antiga nos seus ossos, mas ela foi modificada.

– Sou Rephaim. Filho de Kalona. Eu fui um Raven Mocker.

– Portanto, não humano. Nem corvo. Mas algo modificado para fundir ambos em um só.

– Modificados por Nyx – eu me manifestei, sentindo a necessidade de ter algum tipo de controle sobre a conversa. – Rephaim conquistou o perdão da Deusa, e ela concedeu a ele o corpo de um garoto.

– Mas só do pôr do sol até o nascer do sol – Rephaim concluiu por mim. – Enquanto o sol está no céu, eu sou um corvo.

O espírito continuou a encarar Rephaim, farejando o ar ao redor dele, receoso.

– É uma punição pelos atos sombrios que você já cometeu que a Deusa permite que o corvo assuma o seu corpo.

Rephaim empinou o queixo.

– Sim. Nyx é justa. O meu passado não é algo do qual me orgulho.

– Exceto pelo ano passado – Stevie Rae disse, pegando a mão de Rephaim. – Ele escolheu a Luz, e Nyx o perdoou.

– Então, Oak, você não é deste mundo? – Aphrodite perguntou.

A cabeça de Oak girou, feito uma coruja, para observar Aphrodite.

– Eu não a conheço, Profetisa.

– Ainda assim você me chamou de Profetisa.

O espírito assentiu, fazendo o seu cabelo longo e multicolorido brilhar ao redor com um som parecido com o do vento derrubando as folhas do outono.

– A Magia Antiga reconhece uma Profetisa de Nyx. Houve um tempo, no passado distante, em que nós estivemos ao lado das Profetisas de Nyx, seguindo as ordens da Deusa. Infelizmente, esse tempo já passou, mas nós nos lembramos dele – Oak disse de forma enigmática antes de olhar para Darius. – Eu também não o conheço, Guerreiro – e então o olhar dela encontrou Stark. – Você, eu reconheço. O Garoto Redbird pediu santuário para se proteger de você e do seu exército, embora sua Marca fosse azul, não vermelha.

– Você é do Outro Mundo! – Stark exclamou. – Você conheceu Kevin Redbird lá, certo? Mas quem é a outra mulher Redbird? – Stark se virou para mim. – Será que a sua irmã foi Marcada no Outro Mundo sem Kevin saber?

Eu comecei a abrir a boca, mas a voz de Oak me interrompeu.

– Tantas perguntas, mas eu não recebi nenhuma oferta de pagamento. – Oak virou a cabeça e olhou sombriamente para a árvore quebrada na qual ela tinha se materializado. – E eu fui invocada através de um lugar que foi manchado pelas Trevas e pela destruição.

– Eu sou responsável por sua invocação. Peço desculpas. Eu realmente tenho perguntas a fazer, mas eu também tenho o seu pagamento. – Eu abri a mão, mostrando a Oak a ferida ensanguentada que ainda pingava.

Oak farejou delicadamente a palma da minha mão. Ela lambeu os seus lábios carnudos, lembrando estranhamente como eu costumava fazer quando tinha noite de festival de psaghetti no refeitório, mas então ela me surpreendeu ao desviar a sua atenção do meu sangue para encontrar o meu olhar.

– Você oferece um pagamento aceitável, mas eu prefiro outra coisa.

– Que tipo de pagamento você quer? – Senti a necessidade de prender a respiração enquanto esperava pela resposta dela.

Oak virou a cabeça para olhar sobre o seu ombro para a árvore destroçada.

– O pagamento que eu quero pela informação que você busca é que você limpe a abominação que aconteceu aqui, e restaure o equilíbrio deste lugar.

Eu pisquei em choque, mas ainda consegui dizer:

– Eu posso fazer isso.

A cabeça dela girou de novo para mim e a sua voz se tornou ritmada, como se ela estivesse recitando um belo poema.

“Eu aceito o pagamento do equilíbrio a esta árvore restaurado

Grande Sacerdotisa – você prometeu isso de bom grado

Eu concordo em fornecer informação

Eu concordo com a verdade dita na canção

Pergunte, então, Garota Redbird

Mas escute bem, para que minhas palavras acate

E se você esquecer do pagamento aqui rebate

Saiba que há outras formas de pagar antes que a mate...”

Oak não atirou sangue no ar nem fez nenhum outro tipo de floreio dramático, mas, no instante em que terminou de falar o feitiço de amarração, o ar ao redor dela brilhou como se alguém tivesse soprado purpurina sobre o pátio da escola. Tentei não pensar nas outras formas com que a Magia Antiga podia me fazer pagar pela promessa e fiz a minha primeira pergunta.

– Você conhece o meu irmão, Kevin?

– Conheço. Ele se parece muito com você.

– Então, você é de outro mundo?

– Para as fadas ancestrais, todos os mundos são um só. Nós prestamos pouca atenção no véu que os separam.

– A outra mulher Redbird que você mencionou. Você pode me dizer quem ela é?

– Sim, Garota Redbird. Ela é uma Mulher Sábia, uma do seu sangue. Ela é formidável. Eu realmente me deliciei com as suas bolsas medicinais. Elas não foram pagamentos poderosos pelos nossos serviços, mas foram saborosas.

– Ela está falando de Vovó Redbird! – Stevie Rae exclamou.

Eu assenti.

– Ela também falou em bolsas medicinais... no plural. Oak, a Mulher Sábia da qual você está falando deve ser minha avó. Ela e Kevin estão lidando com Magia Antiga no Outro Mundo?

– A Mulher Sábia não invocou Magia Antiga, mas, como respeito pelo seu sangue ancestral, eu responderia se ela me chamasse e precisasse da minha assistência. Foi o Garoto Redbird. Ele requisitou nossa ajuda. – Os olhos escuros de Oak se viraram para Stark. – Ele precisava de proteção contra um Guerreiro muito parecido com este que lhe pertence.

– Kevin deve estar trabalhando com a Resistência – Stark disse.

– Onde Kevin e minha avó estavam quando eles usaram Magia Antiga? – eu perguntei.

– Em uma montanha não muito longe daqui. É lá que o povo deles se reúne e se esconde daqueles que os caçam.

– É isso. O Outro Kevin se juntou à Resistência – Darius concluiu.

– E você realmente não me viu lá em nenhum lugar? – Aphrodite perguntou ao espírito.

Oak olhou atentamente para ela.

– Não. Você não faz parte do povo do Garoto Redbird.

– Olha, que merda – Aphrodite falou.

– Por que isso faz tanta diferença? – Rephaim perguntou para Aphrodite.

Stevie Rae respondeu por ela.

– Porque Aphrodite é a razão pela qual novatos vermelhos e vampiros vermelhos no nosso mundo podem escolher manter a sua humanidade. Sem ela, todos nós seríamos monstros, como o pobre Outro Jack já foi.

O que Stevie Rae disse deu um cutucão na minha memória, e de repente eu tinha outra pergunta a fazer para o espírito.

– Oak, você realmente é feita de Magia Antiga, certo?

Quase pareceu que o espírito se segurou para não rir.

– É claro, Garota Redbird. Do que mais eu seria feita?

– Bom, eu não sei, mas estou confusa. Pensei que Magia Antiga não tomasse partido nessa batalha entre Luz e Trevas. E mesmo assim você está aqui, contando que protegeu o meu irmão e o seu povo contra o Exército Vermelho, e que o pagamento que você quer é que eu limpe as Trevas desta árvore. Isso soa como se você estivesse tomando partido... não que eu me importe. Eu estou feliz que você esteja escolhendo a Luz. Só me pergunto por quê.

– Você está parcialmente correta, Garota Redbird. A Magia Antiga não escolhe lados, já que vemos as muitas camadas que compõem a Luz e as Trevas, e nós compreendemos profundamente que ninguém é completamente bom nem completamente mau. Eu concedi santuário ao seu irmão porque aceitei o pagamento dele, e não porque fiquei do lado dele contra as Trevas. Em relação a essa árvore, os espíritos elementais não são neutros quando uma abominação é cometida contra a natureza. E essa árvore, este lugar de poder elemental, foi de fato profanado, o que é uma abominação contra a natureza. Isso tem que ser consertado.

– Isso tem sentido, Z – Stark disse. – Ela soa muito como Sgiach, quando chegamos na ilha. Ela não sairia da ilha para combater as Trevas, mas, quando as Trevas invadiram a sua ilha, Sgiach lutou contra elas.

– Ah, a Rainha Sgiach. Nós ficamos tristes pela perda do Guerreiro dela.

– Você a conhece! – eu exclamei.

– Sim. Há muitos séculos.

– Como ela está?

– Em luto profundo. – E então Oak fechou a boca, deixando claro que não ia falar mais nada sobre a Rainha Sgiach, a Grande Cortadora de Cabeças.

– Ok, então, como o meu irmão está no Outro Mundo? – eu perguntei.

– O ferimento dele se curou. Nós concedemos santuário ao povo dele na montanha. Ele brande Magia Antiga com maestria.

– E o ferimento dele? – a minha pergunta saiu como um grito agudo.

– Ele se curou – Oak repetiu, como se pensasse que eu podia ser meio devagar.

Eu queria perguntar mais sobre Kevin ter se ferido, mas Aphrodite agarrou meu pulso e falou urgentemente para mim:

– Kevin está brandindo Magia Antiga. Foi isso que você sentiu.

– Sim, eu sei.

– Z – ela parecia exasperada –, lembre-se de como é brandir Magia Antiga.

E então eu percebi o que Aphrodite estava dizendo. Kevin estava encrencado, e ele provavelmente não sabia disso.

– Oak, você pode levar uma mensagem minha para Kevin?

– O seu pagamento foi por informação. Não para ser uma mensageira.

Eu baixei os olhos para a minha mão. A ferida tinha começado a coagular, mas eu sabia que podia abri-la de novo com a unha.

– Sangue. Eu pagarei com o meu sangue para você levar uma mensagem para o meu irmão.

– Não, Sacerdotisa. Você me julga mal. Não sou sua mensageira. Não tenho nenhum compromisso com você. Você me ofereceu um pagamento por informação. Eu dei essa informação. Agora você tem que cumprir o que me deve. Faça isso, e depois talvez me peça outra tarefa. Apenas tenha certeza de que o pagamento que você oferece é atraente...

E sem fazer nenhum barulho, Oak deu as costas para nós e, em um puf de névoa, ela desapareceu no meio da árvore caída.


11

Outro Kevin

Água da chuva gotejava do teto encurvado de pedra da caverna e formava poças, lama e barro ao redor dos pés de Kevin. Ele enxugou o rosto com a manga do seu casaco e espirrou violentamente.

– Acho que eu prefiro gelo do que essa droga de garoa e névoa. Se isso continuar por muito tempo, vai virar uma primavera de Oklahoma precoce com a tríade de coisas pé no saco que sempre vêm junto: tornados envoltos em chuva, pólen de ambrósia3 e carrapatos – Kevin resmungou para si mesmo.

– Ei, levante a cabeça! Podia ser bem pior. Que inferno, seria bem pior se você não tivesse nem vindo até aqui. Pelo menos estamos seguros, aquecidos e relativamente secos aqui.

Kevin sorriu ironicamente para o vampiro baixo, mas poderosamente musculoso, que pareceu se materializar de repente ao lado dele.

– Cara, você poderia ser menos silencioso? Esse jeito lento de andar não é bom para a minha ansiedade.

– Não há nada de errado com a sua ansiedade, Kevin querido. Mas Dragon não deveria importunar você andando por aí feito um espírito. – A adorável mulher com o véu de um longo cabelo loiro com mechas prateadas tocou o ombro de Kevin delicadamente, embora o afeto no seu olhar fosse todo direcionado a Dragon. – Principalmente com a quantidade de espíritos que temos por aqui. Eles podem ficar com inveja.

Dragon Lankford levantou as mãos em sinal de rendição.

– Anastasia, meu amor, não deixe que se diga que eu afronto os espíritos. – Ele fez uma pausa e então perguntou a Kevin: – Como eles são?

– Os espíritos? – Kevin disse, enxugando mais água da chuva do seu rosto enquanto saía da entrada da caverna muito maior e melhor.

– Sim, os espíritos. Você se lembra deles, certo?

– Ah, Bryan, deixe o garoto em paz. São os espíritos dele. É claro que ele se lembra deles. Todos nós lembramos deles e somos gratos – Anastasia Lankford repreendeu o seu companheiro, apesar de dizer isso deslizando o braço em volta da cintura dele com intimidade e recostando a cabeça rapidamente em seu ombro, o que Kevin achava que tirava totalmente a bronca que estava em suas palavras. Afinal de contas, que cara não levaria um sermão da bela Sacerdotisa numa boa se ela estivesse ao mesmo tempo encostando sua bochecha macia no ombro dele?

Em meio ao silêncio crescente, Dragon Lankford estalou os dedos algumas vezes na frente do rosto de Kevin, fazendo-o piscar e dar um pulo para trás – e se dar conta de que ele estava sentado lá encarando Anastasia como um menino de escola apaixonado.

Cara, eu preciso de uma namorada. Kevin suspirou internamente e se sacudiu.

– Desculpe. Eu estava pensando.

– Percebi. – Dragon deu um olhar divertido para ele.

Kevin devolveu o olhar com o seu próprio sorriso.

– Eu estava realmente pensando em mais coisas além da beleza da sua companheira.

– Bem, obrigada, Kevin querido. – Os cantos dos olhos de Anastasia se enrugaram de modo cativante.

Dragon limpou a garganta.

– Que outras coisas são essas em que você estava pensando?

– Que eu realmente preciso ir embora. – Kevin levantou a mão quando Anastasia começou a protestar. – Não, já faz três dias. As estradas estão limpas. O Exército Vermelho não voltou. – Kevin fez uma pausa e gesticulou para o local que antes era o fundo da minúscula caverna, mas agora era uma entrada em arco perfeita para um sistema de cavernas e túneis que serpenteavam como um labirinto, adentro da montanha rochosa. Mesmo de onde ele e os Lankfords estavam, todos podiam ver pessoas – novatos azuis, vampiros e humanos – apressadas indo de lá para cá, preparando o jantar, remendando roupas rasgadas, fervendo ervas para o chá e outras tarefas caseiras. Gatos caminhavam distraídos por ali, atrapalhando o caminho, mas também mantendo a população de ratos e de toupeiras sob controle. E de algum lugar mais lá embaixo na caverna, o aroma de chili se levantou, fazendo Kevin salivar. – Está tudo funcionando. A caverna está aquecida, seca e bem ventilada, e os espíritos estão mantendo a montanha encoberta com névoa. Já está na hora de eu ir embora.

– Eu concordo – Vovó Redbird chegou até a entrada da caverna, vindo do ponto mais fundo do seu interior recém-concluído. – Está tão agradável e aquecido lá atrás! Não sei como os espíritos fizeram isso, mas o sistema de ventilação é um milagre. Quase não tem fumaça nenhuma em nenhum lugar. Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Kevin, eu concordo com você. Se você demorar muito mais para voltar para a Morada da Noite, a sua reaparição vai levantar suspeitas.

– Mas Kevin voltar já não será suspeito por si só? – Anastasia questionou. – De acordo com o que ele nos contou, um grupo inteiro de novatos e soldados do Exército Vermelho e um general vermelho desapareceram. Como você vai explicar onde esteve? E onde eles estão?

Kevin soltou um longo suspiro.

– Andei pensando nisso e tenho uma ideia. Eu vou mentir.

Dragon deu risada.

– Obviamente!

– O que você quer dizer com isso, u-we-tsi?

– Bom, se alguém me perguntar sobre o restante do meu grupo, vou dizer que não sei nada sobre isso porque o meu general, que está morto lá no mundo da minha irmã, me mandou em uma missão de reconhecimento alguns dias atrás. E eu fui. Não encontrei nada de mais, mas aí acabei me perdendo.

– Acabou se perdendo? – Dragon bufou.

– Ah, eles vão acreditar. E também não vão me perguntar mais nada sobre o general. Pense na maneira como os vampiros vermelhos agem. Mesmo os oficiais não são muito mais do que máquinas de comer. O General Dominick era o meu oficial superior, mas até ele era basicamente um babaca desgraçado e do mal, que controlava os seus soldados com ameaças e medo. Para um vampiro vermelho, ele era considerado esperto, mas na verdade ele não pensava muito além de quem nós poderíamos atacar em seguida. – Kevin balançou a cabeça de desgosto. – Acredite em mim, sei tudo sobre isso. Eu estou me escondendo no Exército Vermelho há quase um ano, e nenhum deles jamais suspeitou que eu fosse diferente.

– Mas, Kevin, você tem um cheiro diferente agora – Anastasia lembrou.

– Essa foi a última coisa que eu andei tentando resolver. Tenho quase certeza de que nenhum vampiro azul vai prestar atenção suficiente em mim para reparar que eu não tenho um fedor.

– Mas “quase” não é bom o bastante, u-we-tsi.

– Os vampiros vermelhos vão reparar, não vão? – Anastasia perguntou delicadamente.

– Acho que eles podem reparar. Bom, não os soldados comuns, mas alguém como um dos generais vermelhos... tenho quase certeza de que iriam notar sim.

– O que Kevin pode fazer em relação a isso? – Dragon perguntou.

– Bom, eu posso pensar em jogar um feitiço sobre ele... algo que tenha um cheiro junto – Anastasia refletiu. – Mas qualquer Sacerdotisa que cruzar o caminho dele poderia facilmente perceber o rastro de energia do feitiço. E, se você estiver em qualquer lugar perto de Neferet, ela reconheceria o meu feitiço imediatamente.

– Então essa ideia está definitivamente fora de questão – Dragon afirmou.

– Que tal algo mais simples? – Vovó Redbird sugeriu. – Kevin, qual a intensidade que esse cheiro precisa ter?

Kevin deu de ombros.

– Não tenho certeza. Quando eu era um vampiro vermelho, nunca percebia o fedor.

– Depende do tipo de vampiro vermelho – Dragon explicou. – Os soldados fedem como cadáver e bolor. Já os oficiais, especialmente os oficiais de patentes mais elevadas, não possuem um cheiro tão ruim.

– Então, um oficial, como o Kevin, não tem o aroma muito mais forte do que o de um perfume de mulher? – Vovó perguntou.

– Acho que é uma boa comparação – Dragon respondeu. – Se a mulher exagerou e colocou perfume demais.

– Bom, u-we-tsi, isso vai parecer repugnante, mas acho que você deveria usar o sangue de um vampiro vermelho como se fosse perfume.

– Você quer que eu passe perfume de sangue em mim?

Vovó sorriu.

– Talvez funcione melhor se espalhar um pouco de sangue na sua pele em lugares que não possam ser vistos.

– Que nojento – Kevin resmungou.

– Porém prático – Anastasia disse.

– Sim, acho que vocês estão certas – Kevin falou. – Cara, eu queria poder fazer só uma tentativa sem o perfume de sangue fedido.

– Você não pode – Dragon afirmou. – Eles vão descobrir você, e vão nos descobrir em seguida.

– Eu jamais contaria a eles onde vocês estão! – Kevin protestou.

Anastasia colocou a mão no ombro dele.

– Não por livre e espontânea vontade, mas depois que eles torturarem você e o deixarem passar fome... bom, vamos apenas dizer que é melhor ficar fedido.

– Sim, você está certa. Então vou voltar para a estação hoje à noite, depois de conseguir um pouco de sangue de vampiro vermelho. Não vou gostar disso. – Kevin estremeceu e então estalou as juntas dos dedos. – Mas vou fazer tudo que tiver de ser feito. Ok, eu já tenho um plano, mas quero a contribuição de vocês.

– Claro – Anastasia disse, e os quatro foram até os bancos de pedra que os espíritos haviam esculpido de algum modo na parede da caverna. O corvo enorme que nunca ficava longe da Sacerdotisa voou para dentro da caverna e esticou suas asas escuras no ar frio, aterrissando em um afloramento rochoso em cima de Anastasia. – O que você está pensando, Kevin?

– Nós precisamos de Aphrodite.

– Aphrodite? – Dragon grunhiu.

– Antes que você reclame, apenas pense no que eu contei antes. O que aconteceria se não existisse mais o Exército Vermelho para Neferet usar como uma máquina de comer em tempos de guerra?

Dragon suspirou e assentiu.

– Sim, é verdade. Sem o Exército Vermelho, não seria mais tão fácil para Neferet ganhar a guerra.

– Exatamente – Kevin concordou.

– Então você deve saber que o risco compensa – Vovó Redbird disse.

– Certo. Vou pedir para Johnny B levar vocês até onde nós escondemos o Polaris. – Dragon voltou seu olhar sombrio para Vovó Redbird. – Sylvia, quero que saiba que você tem um lugar aqui conosco se preferir ficar.

– Obrigada, Dragon, mas eu preciso voltar para a minha fazenda. Eu sou protegida, então não corro perigo e posso ajudar mais lá fora do que me escondendo aqui.

– Como eu vou enviar mensagens para vocês aqui? – Kevin perguntou. – Vou tentar voltar para cá o maior número de vezes que conseguir, mas tenho que ter cem por cento de certeza de que ninguém está me seguindo. E se eu tiver informações que vocês precisam, mas não conseguir escapar?

– Isso é fácil – Anastasia respondeu, levantando os seus grandes olhos azuis na direção do corvo. – Vou enviar Tatsuwa para encontrá-lo todo dia. Ele vai voar em círculos sobre você. Se você tiver uma mensagem para nós, escreva em um pedaço de papel e dê a ele. Tatsuwa vai trazer a mensagem para mim. Da mesma forma, se nós tivermos uma mensagem para enviar, ele vai levá-la até você.

– Hum, como ele vai me encontrar? – Kevin deu uma olhada rápida para o corvo, e o grande pássaro grasnou para ele.

– Ah, você não precisa se preocupar com isso. Se você estiver ao ar livre, Tatsuwa vai encontrá-lo. A visão dele é tão aguçada quanto a sua inteligência.

– Anastasia, minha querida, eu já tinha visto o seu corvo adorável antes, e ele parece estar sempre perto de você, mas eu não tinha ouvido antes você o chamando pelo nome até recentemente. Eu queria dizer que gostei que você escolheu como nome dele uma palavra indígena – Vovó Redbird falou, aproximando-se do pássaro o bastante para acariciar suas penas pretas e brilhantes.

– Tatsuwa significa corvo em Cherokee? – Anastasia pareceu surpresa.

– Sim – Vovó Redbird respondeu. – Se você não sabia disso, como foi que deu esse nome a ele?

O sorriso brilhante de Anastasia iluminou a caverna quando ela olhou carinhosamente para o pássaro.

– Eu não o nomeei. Ele me disse o seu nome, não foi, Tatsuwa?

– Tatsuwa! – o corvo falou tão claramente quanto a Sacerdotisa que ele tinha escolhido como sua.

– Às vezes eu acho que os dois são mais próximos do que eu e ela – Dragon resmungou.

– Ciumento! – Tatsuwa grasnou.

Anastasia riu musicalmente.

– Ah, Tatsuwa, pare de provocar Bryan.

O pássaro saltou do seu poleiro e andou gingando até Anastasia, aconchegando-se ao lado dela, enquanto ela usava um dedo longo e fino para fazer carinho na penugem em cima do seu bico.

– Quantas palavras ele sabe falar? – Kevin perguntou, totalmente intrigado com o estranho pássaro negro.

– Ah, Tatsuwa não apenas imita palavras. Ele realmente fala – Anastasia explicou. Ela beijou o topo da cabeça do grande pássaro, e Kevin pôde jurar que ouviu a criatura ronronar.

– Um ta-tsu-wa é um aliado poderoso – Vovó Redbird afirmou. – Quando eles se ligam a alguém, essa ligação é para a vida toda.

– Se ao menos eu soubesse disso quando o encontrei, congelando e quase completamente sem penas no inverno passado – Dragon resmungou.

– Oh, Bryan, você nunca teria deixado ele sofrer e ficar para morrer – sua bela companheira falou. – Tatsuwa e eu somos gratos pelo seu bom coração.

– Obrigado, Bryan – o pássaro disse, soando igual Anastasia de um jeito desconcertante.

– Eu estabeleci o limite de ele não dormir conosco – Dragon disse.

– Meu amor, você sabe que ele prefere o ninho dele.

– Feito com os seus cabelos.

– Sério? – Kevin perguntou para Anastasia.

– Apenas parcialmente. O resto é feito com um dos meus velhos suéteres. E ele não arrancou o cabelo da minha cabeça. Ele é ótimo em limpar as minhas escovas.

Os olhos da Sacerdotisa faiscaram quando ela beijou o topo da cabeça negra lustrosa do corvo de novo.

– Humpf – Dragon resmungou. Então ele voltou seu olhar sarcástico para Kevin. – Mas o que tudo isso significa é que o pássaro é bizarramente inteligente e vai fazer qualquer coisa que Anastasia pedir.

– Ok, bom, acho que ele vai ser o meu celular então. É estranho, mas não tão estranho quanto o fato de ele dormir em um ninho feito com os cabelos da sua companheira. – Kevin levantou e se alongou, fazendo só uma pequena careta ao sentir uma fisgada na cicatriz do seu ferimento. – Você está pronta, Vó?

– Totalmente. – Vovó Redbird se levantou e fez mais uma longa carícia no corvo antes de abraçar Anastasia e depois o companheiro dela. – Obrigada por confiarem em mim.

– E em mim. – Kevin estendeu a mão para Anastasia, que sorriu docemente antes de abraçá-lo e de beijar sua bochecha.

– É tão fácil confiar em você quanto na sua avó – disse a Sacerdotisa.

– Bom, só depois que a gente supera essa sua Marca vermelha. – Dragon também puxou Kevin para um abraço com tapinha nas costas. – Fique em segurança, Kevin Redbird. Você pode ser a nossa única esperança de acabar com essa guerra sem nos render e condenar o nosso mundo às Trevas.

– Ei, sem pressão, certo? – Kevin se esforçou para não estalar os nós dos dedos.

Quando ele e sua avó saíram da caverna seguindo Johnny B, Tatsuwa passou voando por eles e então Kevin ouviu o pássaro chamando no vento:

– Garoto Redbird... Garoto Redbird... Garoto Redbird...

3 Causador de muitos casos de alergia no hemisfério norte. (N.T.)


12

Outro Kevin

– U-we-tsi, você tem certeza disso? – Vovó Redbird perguntou enquanto se inclinava sobre o assento, procurando algo dentro da grande cesta que ocupava a maior parte do banco traseiro do carro. Ela havia parado em uma das vagas na parte mais escura do estacionamento da Utica Square, bem no fundo.

– Não, mas eu tenho certeza de que você não pode me levar até a escola. Você está sob a proteção de Neferet, mas nenhum humano racional jamais iria entrar em um carro com um vampiro vermelho, a menos que estivesse prestes a ser devorado.

– Ah, aqui está! Eu sabia que tinha um desses aqui atrás. Coloque isso. Tem um capuz e deve ser grande o bastante para puxar para baixo para cobrir o seu rosto. – Vovó entregou a ele um velho moletom escuro que tinha um leve cheiro de lavanda, e ele o vestiu. Então ela abriu a cesta de novo e pegou uma bolsa de couro com uma tira grossa para colocar sobre o ombro. – Aqui, pegue isto também. Coloquei aí dentro algumas coisas que acho que você pode precisar. E, não, eu não quis dizer que eu deveria levá-lo de carro até lá. Entendo que isso é impossível e você pode facilmente ir a pé até a Morada da Noite. Estou preocupada com o seu perfume de sangue.

Vovó Redbird franziu o nariz quando disse as últimas palavras.

Kevin riu, colocou a tira da bolsa sobre o ombro e a abraçou.

– Você não precisa se preocupar com isso. Já pensei em tudo.

– Sei que isso é algo que você precisa fazer, mas me deixa muito angustiada pensar em você matando um novato ou vampiro vermelho.

– Vó, eu não vou matar ninguém.

– Então, você vai apenas cortar um vampiro vermelho para pegar o sangue de que precisa?

– Vó, eu tenho uma ideia melhor que essa. Vou visitar o necrotério da escola.

Vovó Redbird o abraçou forte.

– Oh, u-we-tsi, fico tão feliz em ouvir isso! – Então ambos riram como criancinhas por causa do ridículo de ficar feliz por alguém visitar um necrotério.

Finalmente, Kevin deu um beijo na bochecha dela.

– Prometa que não vai fazer nada que possa te machucar.

Ela segurou o rosto dele com as mãos e sorriu amorosamente, olhando nos olhos dele.

– Não posso prometer isso, mas prometo que vou ser sábia e pensar um pouco antes de agir.

– Acho que vou ter que me contentar com essa promessa.

– Acho que sim. – Vovó o beijou. – Vá com a proteção da Grande Deusa, u-we-tsi, e lembre-se sempre de como eu tenho orgulho de você.

Kevin odiou deixar sua avó para trás. Ele teve que se esforçar para não começar imediatamente a imaginar hordas de vampiros vermelhos insaciáveis atacando a sua fazenda para devorá-la por ajudar a Resistência.

Vovó está sob a proteção de Neferet.

Ninguém no Exército Vermelho ou Azul sabe que ela faz parte da Resistência.

Eu realmente preciso relaxar.

Pensamentos sobre a sua avó e a Resistência ficaram revirando sem parar na cabeça de Kevin enquanto ele cortava caminho pela Rua Vinte e Dois e seguia pela Avenida Yorktown em direção ao lado leste da Morada da Noite.

Era tarde – apenas algumas horas antes do amanhecer –, mas ele não estava preocupado. Visitar Zoey tinha dado a ele uma percepção maior da Morada da Noite, e ele sabia onde poderia se esconder em segurança do sol e de vampiros curiosos. Se os dois mundos fossem realmente mais parecidos do que diferentes. Se esta Morada da Noite não tiver sido construída como a de Zo...

Kevin balançou a cabeça. Não tem motivo para ficar pessimista a não ser que eu precise. Se tudo mais falhasse, ele sempre podia se fingir de bobo e ser apenas outro vampiro vermelho que tinha perdido o ônibus de antes do amanhecer para os túneis da estação. Com sorte, os vampiros azuis o deixariam ficar em um dos quartos escurecidos no dormitório e não iriam atirá-lo no meio da rua para fritar.

O muro de pedra que rodeava a Morada da Noite surgiu subitamente à sua direita, parecendo austero, intimidador e basicamente nada parecido com o da Morada da Noite iluminada e receptiva que a sua irmã comandava.

Por um instante, uma saudade profunda apertou, e Kevin desejou mais do que qualquer coisa que ele pudesse sair correndo para o Woodward Park e descobrir um jeito de reabrir o portal entre os mundos e deslizar de volta por ele – para nunca mais voltar.

– Mas e se eu realmente fizesse isso? O que iria acontecer com Vovó aqui? Ela nunca iria parar de se preocupar comigo e nunca iria sair do luto por perder Zo e eu – ele disse a si mesmo.

E agora havia Dragon, Anastasia e o restante da Resistência. Eles iriam achar que ele havia sido pego e morto, ou que tinha mentido para eles. Provavelmente iriam abandonar a caverna na montanha, o que seria realmente terrível. Não, Kevin não podia ir embora. Não importava o quanto ele quisesse isso.

Postes de rua feitos para parecer que eram do começo dos anos 1900, inclusive com as chamas tremulantes do gás, projetavam sombras em movimento pelo muro enorme. Kevin atravessou a Yorktown para se juntar a elas enquanto sua visão sobrenaturalmente aguçada começava a vasculhar a parede, procurando a pedra antiga e retangular em que estava inscrito 1926 – o ano em que o muro que circundava a escola havia sido terminado. Ele estalou as juntas dos dedos nervoso enquanto procurava, sem nem ter certeza de que ela estava mesmo ali. Zo tinha contado a ele sobre essa pedra – que era um tijolo específico no muro leste da escola que, na verdade, era parte de um sistema de alçapão acionado por molas. Esse tijolo no muro não parecia muito diferente dos outros, mas ela disse que do lado de fora ele estava marcado e que era através desse alçapão que novatos escapavam para fora do campus há quase um século.

Pelo menos era assim no mundo dela.

Aquele era o primeiro teste – a primeira vez em que ele iria ver o quanto os dois mundos eram parecidos em sua estrutura.

Quando os olhos dele avistaram a inscrição 1926, ele sentiu uma onda de alívio. O tijolo estava na altura dos seus olhos. Ele respirou fundo e o pressionou.

Houve um clique baixo quando algum mecanismo se abriu, e então o muro pareceu dar um suspiro ao aparecer um vão – com espaço apenas suficiente para alguém passar apertado por ele – naquela obra de alvenaria antes aparentemente perfeita.

Depois que entrou, ele empurrou o tijolo de novo e a porta se fechou, e então Kevin fez uma pausa. Ele se agachou contra o muro, desejando que a escuridão antes do amanhecer estivesse menos límpida e com mais névoa, chuva ou até gelo, mas, depois que o seu olhar fez uma varredura pelos jardins da escola, ele começou a relaxar. Aquela não era a Morada da Noite da sua irmã. Não havia garotos humanos se misturando aos novatos, azuis e vermelhos, brincando pelo jardim. Tudo o que Kevin viu foi um gramado meticulosamente bem-cuidado, alguns gatos furtivos e Guerreiros Filhos de Erebus de guarda em cada uma das portas do prédio principal.

Kevin definitivamente iria evitar o prédio principal.

Mantendo-se perto o bastante do muro para se misturar às sombras bruxuleantes da iluminação a gás, Kevin começou a correr. Ele seguiu o muro todo até passar pelo Templo de Nyx. Ao passar por ali, ele lançou um olhar nostálgico naquela direção. Ele nunca se esqueceria da sensação de amor e aceitação que experimentou com Zoey e os seus amigos dentro do Templo da Deusa. Esse lugar parecia quase exatamente igual a esse templo, embora não houvesse nem perto da mesma quantidade de velas brilhando através das janelas e ele não sentisse nem um pingo de aroma de baunilha ou lavanda.

É Neferet. Ela não está honrando a Deusa como Zo faz.

Esse pensamento deixou Kevin irritado e muito triste.

Logo depois do Templo de Nyx, o muro começou a fazer uma curva para a direita, onde ele corria paralelo à Rua Utica, e não muito depois disso Kevin avistou o prédio solitário que ele procurava, construído com a mesma pedra do muro e do resto da Morada da Noite, só que esse edifício era diferente.

Não que parecesse muito diferente. Ele era pequeno – realmente uma versão em miniatura do Templo de Nyx. Tinha um jardim de meditação estilo japonês adjacente que era emoldurado em três lados por um mausoléu, que guardava os corpos cinzentos dos novatos azuis que haviam rejeitado a Transformação.

– E apenas dos novatos azuis – Kevin murmurou para si mesmo. – Os novatos vermelhos são retirados do necrotério, queimados e então as suas cinzas são jogadas fora. Literalmente. Como lixo mesmo, eles são coletados com o resto do lixo da escola toda semana. Espero que hoje não tenha sido o dia da coleta.

Kevin se aproximou do mausoléu. Ele teria que atravessar o jardim de meditação para entrar no necrotério em si, mas ele não previa nenhum problema nessa hora. O necrotério não era exatamente um lugar efervescente da Morada da Noite. Na verdade, dificilmente alguém ia até lá, já que Neferet encorajava os novatos a “não ficar de luto por aqueles que se mostraram indignos”.

A areia do jardim de meditação continuou silenciosa sob os pés de Kevin e, apesar de a área parecer deserta, ele ficou satisfeito com a existência de biombos de madeira decorados que seccionavam o jardim, criando alcovas particulares de sombras.

Não muito longe, ele conseguiu ver a porta de madeira arqueada que era a entrada para o necrotério. Kevin estava quase deixando que a tensão saísse dos seus ombros quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento.

No meio do jardim de meditação havia uma bela estátua de Nyx. Aquela estátua em particular retratava Nyx como a deusa piedosa Kwan Yin. Feita de um onírico ônix branco, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, ela estava acesa por dentro e era a única luz no sereno jardim.

Na frente da estátua havia um banco de madeira simples, muito parecido com os bancos dentro de cada alcova de meditação, porém maior. No banco estava sentada uma figura solitária, com o rosto levantado, contemplando a Deusa.

Merda! Uma Sacerdotisa!

Kevin se enfiou rápida e silenciosamente na alcova de meditação mais próxima. Ele estava analisando a mulher sentada no banco, tentando ter uma visão mais clara do seu rosto e pensando que ela parecia familiar, quando outra pessoa entrou apressada no jardim, vindo da direção oposta, como se estivesse chegando do prédio principal da escola. Ela caminhou a passos largos até o banco, fazendo uma grande encenação ao baixar os olhos para a Sacerdotisa que estava sentada sozinha. Kevin se espremeu no canto da sua alcova e rezou para que nenhuma das duas o descobrisse ali.

– Aí está você! Um dos Guerreiros disse que viu você vindo nesta direção, mas eu tinha certeza de que ele estava errado. Eu inclusive falei isso para ele. Eu disse: “Por que a adorável Aphrodite iria querer passar um tempo no jardim do necrotério?”. Mas, como não consegui encontrar você em lugar nenhum e como você se recusa a atender o seu telefone, eu resolvi vir aqui procurar você.

Kevin sentiu um tranco de choque elétrico. Aquela era Aphrodite! E então a sua mente alcançou o seu choque quando ele reconheceu a voz da segunda Sacerdotisa.

O som do suspiro de Aphrodite atravessou a areia até Kevin.

– Olá, Neferet. Respondendo à sua pergunta, eu venho bastante aqui porque dificilmente alguém está por aqui. Gosto de ter tempo para pensar. Sozinha. É por isso que o meu telefone está desligado.

– Minha querida, isso seria aceitável se você fosse qualquer outra Sacerdotisa, mas você não é. Você é minha Profetisa.

– Não é como se eu estivesse tendo uma visão neste exato momento.

Kevin sorriu ao ouvir a voz sexy e sarcástica de Aphrodite. Ele raramente tinha visto Neferet tão de perto. Ele nunca tinha falado com ela, mas havia testemunhado como os outros vampiros a tratavam – com respeito e uma dose segura de medo. Aphrodite, não. Aphrodite falava com Neferet como se elas estivessem no mesmo patamar, e ela estivesse irritada por ter sido interrompida.

– Neste momento você não está, mas você teve uma visão mais cedo.

Aphrodite se levantou e encarou a Grande Sacerdotisa mais alta.

– Você colocou espiões para me observar?

– Espiões? Não. Só aqueles que são leais e que cumprem o seu papel de me informar sobre qualquer coisa que eu possa considerar importante, e o fato de a minha Profetisa ter uma visão e esconder isso de mim definitivamente é importante.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo, o qual capturou a luz suave da imagem da Deusa e brilhou como fios de ouro.

– Ah, que merda! Eu não estou escondendo nada. Eu achei seriamente que vir até o necrotério poderia ajudar. Não estou vendo nada além de morte nas minhas visões. A visão de hoje não foi diferente. Você quer saber o que eu vi? Novatos e vampiros azuis sendo massacrados em um campo por uma horda nojenta de vampiros vermelhos. Na verdade, a única coisa que eu posso dizer especificamente, além de quem estava massacrando quem, é que era um campo de trigo de inverno que tinha acabado de ser cortado. Tinha um cheiro muito bom, até o fedor dos vampiros vermelhos tomar conta de tudo. Nada mais estava muito claro. Apenas morte, sangue, massacre e pânico em um campo infestado de soldados vermelhos.

– Qual campo? Onde? – Neferet falou rispidamente.

– Eu não sei! Neferet, eu continuo tentando fazer você entender que eu sempre tenho as minhas visões do ponto de vista de alguém que está morrendo, normalmente de um jeito horrível. Por isso que é tão difícil compreendê-las. Portanto, como as minhas malditas visões são tão cheias de morte, faz sentido que eu possa encontrar uma resposta perto do necrotério. Tipo, você acha que eu quero dar uma voltinha aqui? Cai na real. Este lugar não é o meu estilo.

– Oh, então você quer a real? – Neferet disse com voz baixa. Kevin sentiu a sua alma estremecer quando Neferet deslizou para mais perto de Aphrodite, fazendo a jovem vampira dar um passo para trás na areia do jardim. – O que é real é que há um movimento de Resistência do meu próprio povo lutando contra mim. O que é real é que a cada dia novatos azuis, vampiros azuis e até humanos fracos e repugnantes desertam nosso exército. Eles vão embora! Como se eu não soubesse o que é melhor para eles! Como se eu não fosse a Grande Sacerdotisa!

– Bom, você realmente não é a Grande Sacerdotisa de nenhum humano – Aphrodite respondeu.

Rápida como uma víbora, Neferet atacou Aphrodite. O tapa ecoou por aquele espaço sereno, e Kevin se encolheu em um reflexo de empatia.

– Nunca diga o que eu sou ou deixo de ser! Tudo o que eu quero é que você me diga como alcançar o fim da Resistência. Se você não consegue fazer isso, você tem menos utilidade para mim do que um vampiro vermelho raivoso e recém-Transformado. Pelo menos eles lutam por mim. Refresque a minha memória, minha querida, o que é que você faz por mim?

– Eu sou sua Profetisa.

– Mesmo? As suas visões se tornaram nada mais do que disparates confusos e sem sentido.

– Mas eu só posso ver o que Nyx permite que eu...

– Talvez você conseguisse trabalhar melhor se rastejasse menos diante de Nyx e passasse mais tempo servindo a sua Grande Sacerdotisa! – Neferet a interrompeu.

– Neferet, eu sou uma Profetisa de Nyx. O meu poder vem da Deusa. Se eu não rastejar, como você diz, então eu não tenho nenhuma visão.

– Então talvez você deva procurar poder em outro lugar, minha querida. Ou você prefere que eu a envie junto com o Exército Vermelho no próximo confronto deles contra nossos inimigos? Melhor ainda, alguns generais meus sugeriram que eu deveria ser mais presente para meus soldados vermelhos. – Neferet fez uma pausa e Kevin viu que ela estremeceu de asco. – Mas eu simplesmente não suporto o cheiro e a burrice deles. Eles realmente não são nada além de animais raivosos. Talvez você seja a minha resposta para o pedido dos generais. Talvez você deva transferir as suas coisas para a estação e virar a Profetisa deles. Você pode até ir para a guerra com eles. Ver a morte de verdade em vez de suas visões complicadas pode ser uma experiência de iluminação para você! Você pode se acostumar com isso e começar a ser capaz de pensar um pouco durante as suas visões.

Kevin ficou estarrecido com as palavras de Neferet. A estação e os túneis eram pouco mais do que celas para o Exército Vermelho e os novatos vermelhos recém-Marcados. Tudo fedia lá embaixo – até Kevin tinha se sentido enojado. E era imundo – realmente asqueroso, com restos de humanos em decomposição espalhados como bonecas quebradas gigantes, que o exército comia. Os novatos e vampiros vermelhos que habitavam aquele lugar não eram muito distantes de animais. Kevin odiava só imaginar o que ser forçada a viver com eles faria com Aphrodite.

– Eu vou para onde você mandar, mas prometo que estar cercada pelo Exército Vermelho não vai ajudar as minhas visões em nada – Aphrodite tentou soar forte, como se ela particularmente não se importasse para onde Neferet iria enviá-la, mas Kevin conseguiu escutar o pânico dela, levemente encoberto pela indiferença.

– Você tem que descobrir o que vai ajudar as suas visões! Se você não começar a me dar alguma informação que eu possa usar, vai perder os seus aposentos suntuosos, o seu serviço de quarto e o seu abastecimento inesgotável de champanhe e de vampiros azuis viris com quem você vadia o dia todo. Tudo isso – Neferet fez um gesto nervoso que abarcou o jardim sereno, o terreno da escola e o pequeno e organizado necrotério – será substituído por túneis úmidos, fétidos e morte, já que eu estou começando a acreditar que os seus dons são relevantes apenas para os mortos. Então, da próxima vez que nos falarmos, espero que você consiga lembrar de mais detalhes a respeito de sua última visão. Ou pode ir arrumando a sua mala Louis Vuitton e se preparando para a mudança.

Com um rodopio do seu vestido longo de seda, Neferet deu as costas a Aphrodite e saiu com passadas firmes, deixando a sua Profetisa em pé sozinha nas areias do jardim de meditação iluminadas pela lua.

Kevin permaneceu ali, observando Aphrodite silenciosamente. Assim que Neferet saiu, os ombros da jovem Profetisa desabaram. Ela esfregou a lateral do rosto onde havia sido atingida, e Kevin teve quase certeza de que ouviu ela segurar um soluço.

E então ela fez algo que Kevin não esperava de jeito nenhum. Aphrodite não foi embora. Ela não voltou para o aconchego e a opulência dos seus aposentos no prédio principal da Morada da Noite. Em vez disso, ela se virou e por um instante ele pensou que ela estava vindo na direção da sua alcova. A mente de Kevin zuniu, freneticamente testando e descartando mentiras que ele poderia contar, desculpas que ele poderia dar por estar ali.

Ela parou e desabou no banco em que estava sentada antes de Neferet a interromper. Com um suspiro que soou como se tivesse saído das profundezas da sua alma, ela tirou do pé direito um sapato de salto brilhante que parecia muito desconfortável e começou a fazer pequenos desenhos na areia com o que ele podia ver claramente que era o seu dedão, a unha pintada de rosa.

– Nyx, ela é tão horrível! – Aphrodite disse para a estátua. – Talvez eu deva dizer para Neferet que ela está ficando velha. Ela não está, claro, aquela vaca. Mas, se eu começar a perguntar se ela está dormindo direito e mencionar pés de galinha e peitos caídos, sabe, no geral... não sobre ela especificamente, ela vai ficar tão paranoica que pode ser que ela foque mais no espelho dela do que em mim – ela soltou outro longo suspiro derrotado. – Não quero contar para ela tudo que eu vejo. Eu... eu não suporto saber que sou a causa de mais mortes. Lenobia, Travis e todos aqueles cavalos... – A voz de Aphrodite se perdeu em um soluço. Então ela enxugou os olhos com raiva e levantou a cabeça para a Deusa. – Nyx, ela é a sua Grande Sacerdotisa, mas eu simplesmente não entendo. Ela é terrível. Eu a odeio mais do que odeio aquelas lojas de departamento baratas e horríveis onde tudo está sempre em liquidação e os caipiras que compram lá precisam ficar remexendo em araras e mais araras cheias de porcarias bregas sem o benefício de provadores com lustres de cristal e taças de champanhe.

Ela estremeceu delicadamente.

Pego completamente desprevenido pela comparação muito bizarra e muito no estilo de Aphrodite, Kevin riu alto.

A atitude de Aphrodite mudou instantaneamente. A sua espinha ficou ereta. Ela atirou o cabelo para trás e franziu os olhos azuis que faziam uma varredura no jardim de meditação.

– Quem é que está aí?

Kevin congelou. Então, lembrando do moletom que Vovó tinha lhe dado, ele puxou o capuz sobre a cabeça o máximo que podia – esperando fortemente que o capuz e as sombras fossem o bastante para encobrir a sua tatuagem vermelha.

Aphrodite levantou, colocando o seu pé arqueado de volta no sapato brilhante. Ela deu alguns passos no jardim de meditação, na direção exata da alcova de Kevin.

– Eu já perguntei, quem está aí?

– De-desculpe. Eu não queria perturbar você – ele gaguejou, pensando que era mais inteligente admitir a sua presença do que ser descoberto fugindo nas sombras.

Ela marchou até a alcova de meditação e parou diante dele, com as mãos no quadril.

– O que é? Que merda você quer de mim? Saber o futuro? Conhecer a Deusa? Me conhecer? – ela zombou dele, e o seu rosto bonito virou algo maldoso e cheio de ódio. – Bom, você está sem sorte. Não posso ajudar você com nenhuma dessas coisas.

– E-eu não estou aqui porque quero alguma coisa de você! – Kevin falou honestamente, sem pensar. A sua mente estava acelerando como um carrinho de bate-bate no Festival Rooster Days,4 chocando-se contra ideias e quicando quando ele as rejeitava.

– Ah, é claro que não. Todo mundo quer alguma coisa de mim – Aphrodite afirmou, e Kevin viu que um lampejo de emoção bruta, com amargura e repleta de dor, cruzou o rosto dela. – Quanto tempo faz que você está aí?

Ele abriu a boca para tentar responder, mas ela não deu chance para ele começar.

– Você trabalha pra ela? Ela colocou você aqui para me espionar? Se foi isso, escute aqui e escute bem: eu não ligo se você vai contar para ela que porra eu falei. Eu vou mentir. Vou dizer a ela que estava sentada rezando para Nyx e que você me interrompeu bem na hora em que eu estava tendo uma resposta da Deusa. Ela vai acreditar em mim porque, não importa o quanto ela goste de transar com homens, Neferet, na verdade, não gosta de homens. E ela nunca, jamais confia neles. Então, seja lá quem você for, se for falar de mim para Neferet, ela vai acabar acreditando em mim e odiando você, porque ela precisa de poucos pretextos para odiar qualquer homem.

Kevin ficou atordoado com a profundidade da crueldade na voz dela. A Profetisa linda e triste, que apenas alguns segundos atrás estava sentada melancolicamente em um banco conversando com a sua Deusa, tinha se transformado em alguém detestável.

Devagar, de maneira bem clara, Kevin disse:

– Ah, eu acredito. Você obviamente sabe do que está falando. Vocês se parecem muito.

Aphrodite deu um solavanco para trás, como se ele tivesse dado outro tapa na sua bochecha.

– Quem é você?

Kevin se pressionou contra a alcova, desejando que ele pudesse se tornar uma sombra.

– Eu não sou ninguém. Neferet não me mandou até aqui. Eu não tinha ideia de que ela estaria aqui. Eu não tinha ideia de que você estaria aqui.

– Então que diabos você quer? – Aphrodite perguntou de novo.

Ela parecia tão fria, tão diferente da sua Aphrodite, que a irritação de Kevin começou a cozinhar em fogo brando junto com o seu medo. Se ela gritasse, um Guerreiro Filho de Erebus certamente a ouviria. Ele seria arrastado para fora dos jardins por perturbar a Profetisa de Neferet e se tornaria o centro das atenções – sem nem ter seu perfume fedido de sangue.

Ele seria descoberto como alguém diferente, e isso seria péssimo em vários níveis. Então ele endureceu a sua voz e abasteceu a sua irritação com o seu medo.

– Ei, eu já disse. Não quero nada de você. Não queria nem estar aqui... neste lugar horrível que tem cheiro de morte neste maldito mundo horrível!

Ele pôde ver que as suas palavras a abalaram. Houve um longo silêncio enquanto ela ficou encarando a sombra sentada que era Kevin. Quando ela falou, a sua voz tinha perdido aquela ponta de amargura, e a sua pergunta simples o surpreendeu.

– Você perdeu alguém que amava?

Aquela pergunta penetrou na mente dele, trazendo com ela imagens de um mundo perdido, uma vida deixada para trás. Zoey, rindo com a sua Horda Nerd. Vovó Redbird, dando a ele uma bolsa medicinal e tentando não chorar ao dizer adeus. A Aphrodite do outro mundo, sorrindo para ele enquanto os seus olhos faiscavam como pedras preciosas com humor e aquele seu tipo especial e sarcástico de inteligência. Damien e Jack, de mãos dadas e parecendo tão, mas tão felizes e apaixonados, e novatos vermelhos e azuis divertindo-se pacificamente na neve, rodeados por gatos e amor. Sempre o amor.

– Sim – ele perdeu a voz e teve que limpar a garganta antes de continuar. – Sim. Eu perdi o meu mundo inteiro.

O rosto dela mudou. Ele se suavizou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto impecável, e Kevin pensou que ele nunca tinha visto ninguém mais triste nem mais bonita.

– É, eu também. Eu me perdi. Sinto a mesma coisa.

Então ela se virou e saiu do jardim de meditação sem nem mais uma palavra ou olhar na direção dele.

4 O festival mais antigo de Oklahoma. (N.T.)


13

Outro Kevin

Kevin tomou uma decisão rapidamente. Ele poderia ir embora – imediatamente. Poderia fugir, correr para a Utica Square, ligar para Vovó e voltar para a montanha. Ou ele podia levantar a bunda daquele banco no qual estava praticamente colado e entrar no necrotério para coletar um pouco de sangue fedido de vampiro vermelho para camuflar o seu cheiro e continuar com o trabalho que ele havia se disposto a fazer.

Ele sabia o que Zoey faria.

Kevin se mexeu o mais rápido e o mais silenciosamente possível. O seu olhar vasculhou a área enquanto os seus ouvidos se esforçaram para escutar até o menor dos sons de alguém se aproximando enquanto ele atravessava o jardim de meditação em direção à porta do necrotério. Quando ele chegou lá, não hesitou. Kevin abriu a porta e entrou.

Ele já tinha estado no necrotério apenas uma vez. Foi com o General Dominick logo antes de ele ser promovido a tenente. Eles haviam tido uma briga com um grupo de humanos que haviam formado uma milícia a leste de Broken Arrow, no meio de algumas terras do estado que já haviam sido um campo de escoteiros no passado, mas que agora era um lugar desleixado, com trilhas abandonadas e cobertas de vegetação. Os humanos tinham se recusado a desistir. Neferet enviou o Exército Vermelho.

Foi um massacre brutal. Todos os humanos foram mortos. O Exército Vermelho perdeu uma dúzia de soldados. O general havia pedido por voluntários para trazer os corpos dos vampiros vermelhos que tombaram de volta para a Morada da Noite, e Kevin imediatamente se candidatou, pensando que dirigir um caminhão militar cheio de vampiros mortos empilhados era muito melhor do que ficar lá e se juntar ao resto do exército enquanto eles despedaçavam os humanos e os devoravam. O General Dominick havia ficado impressionado com a habilidade de Kevin de liderar essa missão e imediatamente o promoveu de cargo.

Assim, Kevin sabia exatamente aonde estava indo – embora não estivesse ansioso para chegar lá.

Ele seguiu pelo corredor da entrada até o final, ignorando as portas que estavam enfileiradas à direita e à esquerda. Elas davam para salas cheias de vampiros azuis que haviam morrido durante as batalhas e de novatos azuis que rejeitaram a Transformação. Não havia nenhum vampiro vermelho em nenhuma dessas salas, já que Neferet fazia questão de manter os seus Exércitos Vermelho e Azul separados, até mesmo na morte.

Não havia nenhuma sinalização em nenhuma dessas portas, exceto na última delas, no final do corredor. Essa porta estava marcada claramente com um grande X vermelho. Kevin não hesitou. Ele abriu a porta e entrou silenciosamente no quarto escuro.

O cheiro foi a primeira coisa que o atingiu. A sala era fria, mantida daquela forma para que os corpos não entrassem em decomposição antes que pudessem ser queimados e então descartados como lixo. Não havia quase nada na sala, exceto mesas e armários de metal alinhados contra uma parede. Ele rapidamente contou dez mesas. Apenas uma delas estava ocupada. Desviando o olhar dessa mesa, Kevin foi rapidamente até os armários e começou a vasculhar os suprimentos médicos.

Levou pouco tempo para encontrar um vidro com tampa.

Kevin pegou o vidro e foi até a mesa ocupada. Um corpo jazia ali, coberto por um lençol ensanguentado.

É só fazer isso. Só faça logo e acabe com o sofrimento.

Kevin levantou o lençol do corpo e suspirou com tristeza.

– Caramba, cara, isso deve ter doído.

A causa da morte do jovem vampiro vermelho era óbvia. Algo tinha esmagado a sua cabeça. Todo o lado direito da cabeça, da maçã do rosto para cima, estava um horror. Kevin queria desviar os olhos. Ele não queria olhar para o rosto daquele cara, mas não conseguia evitar.

O vampiro morto era tão jovem! O seu rosto, congelado pela morte, estava medonho do lado ferido, mas no restante dele parecia que ele mal tinha dezoito anos.

– Você não deve ter se Transformado há muito tempo – ele falou em voz baixa para o cadáver. – Eu também não. Eu me lembro tão bem de me Transformar. Lembro de como fiquei com medo, sabendo que a minha humanidade estava escapando de mim. Eu ainda não sei o que é pior. Perder totalmente a sua humanidade e virar uma máquina de comer, ou manter a humanidade e compreender muito bem a sua monstruosidade. – Kevin colocou a mão no ombro frio e sem vida do garoto. – Sinto muito. Vou tentar fazer o melhor que posso para evitar que outras pessoas virem monstros, mas eu preciso da sua ajuda. Isso não vai ser agradável, e fico realmente feliz que você não pode sentir nada, mas assim mesmo eu sinto muito por ter que fazer isso com você. Ok, bom, vou acabar logo com isso e depois eu cubro você de novo.

Primeiro, Kevin levantou o braço do vampiro morto, virando-o para ter acesso ao lado de baixo do antebraço.

– De novo, cara, desculpe.

Então, ele pressionou a unha do seu dedo indicador com força contra a pele flácida, cortando devagar a veia principal do pulso até o cotovelo. A pele se partiu facilmente sob a unha sobrenaturalmente afiada de Kevin, e ele trabalhou rápido, apertando e pressionando para fazer o sangue estagnado e coagulado passar para dentro do vidro.

O cheiro era terrível – ainda pior do que o de vampiros vermelhos vivos, que já era péssimo. Kevin continuou mesmo assim, passando para o outro braço e depois finalmente rolando o corpo de lado para expor mais sangue estagnado. Era um trabalho demorado. O sangue era pegajoso e estava coagulado, e era totalmente repugnante ordenhar sangue do corpo morto como se fosse uma vaca. Finalmente, Kevin se viu tendo que enfiar os dedos dentro dos cortes que ele fez para tirar aquela coisa viscosa para fora. Com o vidro cheio, ele finalmente colocou a tampa antes de ir até a pia.

Cuidadosamente, Kevin levantou o moletom e a camiseta que estava usando por baixo. Com uma careta de nojo, ele esfregou uma linha de gosma sangrenta com cheiro podre na barriga, logo acima da cintura da sua calça jeans. Ele também puxou as mangas para cima, esfregando mais sangue nas dobras dos seus cotovelos. Satisfeito com o trabalho, pois agora ele passaria em um teste de cheiro de vampiro vermelho, lavou as mãos e o vidro e então pegou um monte de papel toalha em um dispenser de metal posicionado sobre a pia. Kevin molhou metade dos papéis toalha e então foi de novo até o corpo.

– Nunca mais vou comer nada que pareça geleia de morango. Jamais – Kevin disse para o cadáver. – Não vou deixar você assim. Não que alguém fosse notar. Eles vão levar você na maca de rodinhas e colocá-lo dentro do crematório sem nem olhar para você. Mas assim mesmo... não é certo deixar você assim.

Kevin limpou o sangue do corpo, colocando as roupas de volta no lugar e até secando a mesa. Quando o vampiro morto pareceu quase arrumado, Kevin colocou a mão de novo no ombro do garoto morto.

– Obrigado. O seu sangue vai fazer com que eu não seja pego... para que eles não saibam que eu sou diferente. Eu vou mudar as coisas por aqui. Dou a minha palavra. Vou ser parte de um milagre. Sei que isso pode acontecer porque eu já presenciei isso antes. Eu já senti. E agora eu vivo isso. Eu vou garantir que vampiros vermelhos não sejam mais monstros. Eu prometo. – Kevin baixou a cabeça e sussurrou para a sua Deusa: – Obrigado, Nyx. Por favor, receba este garoto no seu bosque. Ele não pediu por esse destino. Não importa quem ele era quando humano, bom ou mau, ele não merecia isso.

Então, devagar, Kevin puxou o lençol ensanguentado sobre o corpo do jovem vampiro vermelho.

Kevin enfiou o vidro dentro do bolso interno da mochila – bem longe dos cookies deliciosos da sua avó. Então ele colocou a tira da mochila sobre o ombro de novo e foi até a porta, abrindo-a apenas o suficiente para espiar o corredor e dando um suspiro de alívio ao ver que estava deserto.

Sem perder nem mais um segundo, Kevin se apressou pelo corredor e saiu pela porta. Ele contornou discretamente o lado do necrotério que dava para o resto dos jardins da escola e analisou a área. Uma sensação familiar de apreensão terrível subiu pela sua espinha quando ele percebeu que, em vez de um céu preto, o mundo ao redor dele tinha começado a se alterar para cinza e rosa.

O amanhecer! Kevin quis dar um chute nele próprio. É claro que eu me sinto apreensivo. Em quinze minutos, o sol vai se levantar e fritar a minha bunda!

Ele não tinha tempo a perder. Puxando o capuz para cobrir a maior parte do seu rosto, Kevin caminhou rapidamente com confiança pelo jardim da escola.

Ele não viu nenhum novato, e os únicos vampiros que ele notou eram Guerreiros Filhos de Erebus pegando o turno do dia e aliviando os vigias da noite. Kevin atravessou o campus até a entrada dos fundos do Ginásio e do centro equestre abandonado. Ele manteve o rosto virado para o outro lado quando passou por dois Guerreiros que estavam discutindo as instruções para os oficiais que Neferet havia anunciado, de que eles deveriam comparecer ao auditório às 2000 horas5 do dia seguinte.

Ele teve que dar tudo de si para não socar o ar e gritar “Ótimo!”. Um informe para os oficiais era exatamente tudo que ele precisava – e o que Dragon precisava ouvir!

Quando Kevin entrou no Ginásio, ele seguiu pelo corredor, virando algumas vezes até chegar a uma porta comum, que ele esperava desesperadamente que desse para o porão, assim como era no mundo de Zo. Ele tentou abrir a maçaneta da porta, e ela estava trancada!

– Droga! – Kevin sussurrou a palavra. – Agora o que é que eu vou fazer?

Se alguém o visse durante as horas de luz do dia, ele seria pego. Vampiros vermelhos nunca ficavam na Morada da Noite depois do amanhecer. Ele não podia nem fingir ignorância e dizer que estava perdido. Ninguém acreditaria nele. Desde o momento em que um novato era Marcado como vermelho e trazido para a Morada da Noite, era incutido dentro dele que ele tinha que estar nos túneis antes do nascer do sol. A única exceção era se o vampiro vermelho estivesse em uma missão do Exército Vermelho.

A mente de Kevin acelerou e rejeitou uma ideia após a outra. Ele simplesmente não tinha mais tempo. Ele precisava se esconder no porão.

Ele precisava de ajuda.

– Droga, se pelo menos eu conseguisse passar por aquele buraco da fechadura como o ar... – Kevin murmurou para si mesmo enquanto estalava os dedos. Ele queria ter conhecido esta Morada da Noite como ele conhecia os túneis, assim saberia onde se esconder e ficar seguro até...

Ele teve uma ideia! Ele não tinha tempo para pensar se estava cometendo um erro. Ele não tinha tempo para pensar melhor. Ele só teve tempo para fechar os olhos e respirar profundamente algumas vezes para se acalmar. Então ele abriu os olhos, encarou o leste e fez a invocação.

– Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder no meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim!

A resposta veio rápido e de forma desconcertante. Diante dele, várias fadas brilhantes parecidas com vaga-lumes brotaram de repente, pairando na altura dos seus olhos, trazendo com elas a sensação de alguma coisa rastejando na pele que Kevin tinha todas as vezes que invocava Magia Antiga.

– Garoto Redbird! Você nos chamou de novo! E nós viemos! Nós viemos! – Elas ficaram esvoaçando de um lado para o outro, mudando de lugar enquanto os seus corpinhos se alteravam de insetos para mulheres aladas e depois para insetos de novo.

– Muito obrigado mesmo! Ok, eu só preciso de uma coisa, mas tem que ser muito rápido. – Ele apontou para o buraco da fechadura na porta. – Vocês podem entrar ali e destrancar essa porta? Eu tenho que entrar aí imediatamente.

– Nós podemos fazer isso – disse uma fada esvoaçante.

– Mas qual é o pagamento? Qual é o pagamento? – gorjeou a outra.

Ele abriu a boca para dizer às fadas que iria pagar com mais sangue, mas um espírito risonho, que mostrava muitos dentes afiados quando ria, interrompeu Kevin antes que ele conseguisse falar.

– Nada de sangue desta vez! Nós queremos algo especial!

– Sim – a primeira fada concordou. – Especial!

Kevin teve vontade de arrancar os cabelos de frustração e se perguntou brevemente se os espíritos considerariam o seu cabelo um pagamento especial. Felizmente, ele teve outra ideia. Ele enfiou a mão dentro da bolsa de sua avó e pegou um cheiroso cookie de chocolate e lavanda feito em casa. Erguendo-o para que vissem, ele sorriu para os espíritos.

– Bom, é impossível alguma coisa ser mais especial do que este cookie. Ele foi feito pela minha avó, a Mulher Sábia que estava na montanha comigo. Vocês sabem, vocês comeram uma das bolsas medicinais dela.

– Ooooooh! – Os espíritos ficaram ainda mais brilhantes enquanto pairavam no ar ao redor do cookie. Então, juntas, para que as suas vozes ecoassem misteriosamente nas paredes de pedra ao redor dele, as fadas falaram de modo ritmado:

“Um pagamento especial nós vemos sim

Oferecido por ti e aceito por mim.

O nosso acordo está selado – que assim seja!”

A revoada de espíritos do ar de Magia Antiga atacou o cookie como uma nuvem de gafanhotos. Kevin deu um gritinho e o soltou enquanto eles devoravam cada migalha. Então, sem nenhuma hesitação, os espíritos incandescentes mergulharam para baixo, passando através do buraco da fechadura, por baixo da porta e pelo vão do batente.

Kevin ficou parado ali, perguntando-se o que iria acontecer em seguida, quando ele ouviu o trinco girar. Ele segurou a maçaneta e empurrou a porta. Ela se abriu facilmente. Ele a fechou atrás de si e, quando se virou para seguir seu caminho descendo a escada íngreme até o porão, um único espírito apareceu, flutuando perto de sua cabeça.

– Obrigado – Kevin agradeceu. – Vocês me ajudaram muito.

– Nós gostamos do seu chamado, Garoto Redbird. Nós gostamos do seu pagamento. Chame quando precisar de nós, mas não se esqueça de que nós gostamos de pagamento especial... pagamento especial... – enquanto o espírito falava, a sua aparência continuou a se alterar de um grande vaga-lume para uma bela mulher alada e então para algo com mais braços e pernas do que ela deveria ter e uma boca que parecia crescer sem parar, até que o rosto dela pareceu se dividir no meio.

E então, em um lampejo de luz, o espírito desapareceu, deixando Kevin com uma terrível sensação de apreensão.


Zoey

– Z? Você está aí? – Stark me chamou ao entrar nos nossos aposentos. – Recebi sua mensagem de texto para vir encontrar você.

– Você chegou cedo! – eu gritei do banheiro. – Não se mexa!

– Ahn?

– Eu disse “não se mexa”! Fique aí na porta. Feche os olhos!

– É pra eu fechar os olhos?

Eu escutei o tom confuso na voz dele, de quem estava achando graça, mas eu realmente não queria que ele estragasse a minha surpresa.

– Se você não quer fechar os olhos, então vire de costas.

– Ok! Ok! Estou fechando os olhos. Ahn, Z. O que você está fazendo?

O que eu estava fazendo? Eu estava tentando compensar o meu Guerreiro por deixá-lo totalmente preocupado e ser romântica ao mesmo tempo.

– Aguente aí. Você vai ver em um segundo!

– Eu achei que você nem voltaria para cá até depois do nascer do sol. Você não estava na estação com Damien e Kramisha?

– Sim! – eu gritei da porta do banheiro. – Bom, fiquei lá um tempo, mas Aphrodite decidiu palpitar na decoração do restaurante, e eu tive que ir embora.

– Ficaram se bicando muito?

– Pois é – eu disse. – Ok, estou saindo. Mantenha os olhos fechados até eu falar pra você abrir, ok?

– Como quiser, minha Rainha.

Eu senti o sorriso na voz dele, o que me fez sorrir de volta, e então dei uma última conferida em mim mesma no espelho. Eu não usava muita maquiagem no geral. Na verdade, eu tinha uma questão em relação à maquiagem. Eu detestava que a sociedade dissesse que tínhamos que usar isso para “parecer o nosso melhor”. Parecer o nosso melhor? Com um monte de porcaria espalhada por todo o rosto, escondendo tudo o que realmente somos? Hum, não. Eu concordo com a fabulosa Alicia Keys – eu não quero cobrir o meu rosto, nem a minha mente, nem a minha alma, não quero cobrir nada. Então, eu ajeitei o meu cabelo e sorri para a minha cara recém-lavada. Pronta!

Coloquei a cabeça para fora do banheiro para dar uma espiada. Nada de Stark. Descalça, entrei pisando de leve no nosso quarto, endireitando a toalha de piquenique que eu havia estendido no chão e afofando as almofadas que eu tinha disposto ali perfeitamente para nos sentarmos.

– Z?

– Fique de olhos fechados! – Atravessei rapidamente o quarto até a sala de estar e sorri quando vi o meu Guerreiro ainda parado na frente da porta com os olhos fechados. Fui até ele e peguei a sua mão.

– Posso abrir os olhos agora?

– Não, só quando eu disser que pode, mas me siga.

– Eu vou trombar com alguma coisa.

– Não seja um crianção. Eu guio você. – Eu o conduzi devagar ao redor da mesa de café e de outros obstáculos, finalmente colocando-o ao lado da toalha de piquenique. – Ok, aguente aí só mais um segundo. – Eu o deixei parado ali e fui rapidamente até o outro lado da toalha, apertando o controle remoto da grande TV que estava pendurada na parede, conferindo para ter certeza de que estava sem som. Então eu ajeitei nervosamente meu cabelo de novo antes de dar a autorização. – Ok, pode abrir os olhos agora!

Ele abriu, e os seus lábios se curvaram naquele meio-sorriso sexy que eu amava tanto.

– Z! Você está praticamente nua!

Eu senti minhas bochechas ficando vermelhas, mas abri um sorriso para ele.

– Não, estou com uma das suas camisetas.

– Sim, minha camiseta velha e esburacada que é totalmente transparente. Caramba, Z! Em mim ela não fica assim!

– Hihi! – eu ri. – Então, você está com fome?

– Só se for fome de você!

– Não, seu tonto. Bom, sim, seu tonto, mas que tal a gente comer algo de verdade primeiro? – Apontei para o piquenique que eu havia preparado.

Com relutância, ele desviou o olhar do meu corpo para conferir o que estava sobre a toalha.

– Z, isso são nachos? Com tudo para colocar neles?

– Aham! Eu inclusive coloquei pimenta-jalapeño. Um monte, porque, apesar de eu achar que elas são as pimentas do inferno enviadas para queimar as bocas até você pedir arrego, sei que você gosta delas.

Sentei em uma das almofadas e dei tapinhas na outra do meu lado, indicando para Stark se juntar a mim.

– Nachos são a minha comida preferida – ele falou ao se sentar.

– Eu sei.

Ele ergueu um copo gelado, cheirou e então deu um gole grande antes de exclamar:

– E Dr. Pepper! Você trouxe Dr. Pepper para mim!

– Eu sei o quanto você adora isso, apesar de eu discordar totalmente de você porque isso é...

– Uma abominação de refrigerante de cola – ele terminou a frase por mim.

– Sim, é exatamente isso.

Ele estendeu a mão para pegar um nacho e o seu olhar se levantou para a tela da TV.

– Caramba, Z! Game of Thrones? Você vai mesmo assistir a um episódio comigo?

– Vou assistir a quantos episódios você quiser.

– Mas você odeia Game of Thrones.

– Não, eu não odeio. Eu não assisto porque Cersei me lembra demais a loucura de Neferet, mas não tem que ser tudo sempre do meu jeito, então podemos assistir.

Stark me encarou.

– O que você fez com a minha Zoey?

Eu dei um empurrãozinho no ombro dele com o meu.

– Ah, para com isso.

– Sério, eu estou encrencado?

– Claro que não!

– Ah, droga. – Ele soltou o nacho e virou meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. – O que você fez?

Eu suspirei.

– Eu tenho agido como uma idiota egoísta desde que Kevin foi embora, e sinto muito. Sinto muito mesmo, Stark. Sei que você anda preocupado, e esta é minha maneira de pedir desculpas.

– Ei, é normal que você tenha andado preocupada, principalmente sabendo que Kev está usando Magia Antiga.

– Normal, sim, mas é muito imaturo da minha parte estar tão distraída com o fato de você estar estressado por minha causa e as minhas Grandes Sacerdotisas terem que tocar o barco enquanto estou desse jeito. Eu vou fazer melhor do que isso, prometo.

Stark tocou o meu rosto com delicadeza.

– Você sempre faz o melhor, Z. Eu sabia que você ia dar a volta por cima.

– Você entende o quanto eu te amo? – falei sem pensar.

– Sim, mas é bom ouvir você dizer isso.

Ele devorou um nacho que estava coberto com queijo pastoso e jalapeños e depois lambeu o queijo extra que ficou nos seus dedos enquanto engolia.

– Você é tão bom. Você sempre está aqui por mim, mas também me dá espaço para lidar com as minhas coisas sozinha. Isso significa muito para mim, principalmente porque eu sei que você pode sentir o quanto estou distraída.

– Não acho que você está distraída nesse momento. – Ele se inclinou e tocou os meus lábios com os seus.

Eu sorri.

– Não, você tem cem por cento da minha atenção agora. E eu sei que o sol vai nascer logo, mas, se você conseguir ficar acordado um pouco, prometo que, enquanto você estiver consciente, vai ter cem por cento de mim.

Eu coloquei os braços em volta dos seus ombros largos e o puxei para mim. Os nossos lábios se encontraram de novo, e o beijo se aprofundou. Eu amei o gosto dele, uma mistura do chiclete de hortelã que estava mascando, da doçura nojenta do Dr. Pepper – que de repente não era nojenta de modo algum – e do salgado dos nachos.

Enquanto ele me pressionava contra as almofadas, os seus lábios desceram pelo meu pescoço, dando beijos e mordidinhas na minha pele, o que me fez gemer e me deixou arrepiada.

– Que tal se a gente não dormir? – A voz dele era baixa, e o seu hálito era quente e sexy contra a minha pele. – Que tal eu beijar cada centímetro de você, depois a gente come nachos, assiste a Game of Thrones, e então eu beijo cada centímetro de você de novo?

Ele colocou a língua para fora quando começou a encontrar os buracos na sua velha camiseta, beijando os meus seios através deles.

– Mas você tem que dar aula amanhã – eu soei sem fôlego, como se tivesse acabado de subir correndo vários lances de escada.

– Amanhã é aula de esgrima, não de arco. Damien pode me substituir. Ele é o melhor espadachim mesmo.

Devagar, ele começou a tirar a camiseta por sobre a minha cabeça.

– Caramba, Z! Você realmente não está usando nada exceto a minha camiseta.

– Surpresa! – eu exclamei.

E então o meu peito começou a esquentar e o meu estômago se contraiu.

– Zoey? – Stark falou abruptamente, puxando a minha camiseta para baixo e me encarando. – Está acontecendo de novo, não está?

Em meio a lágrimas de medo e frustração, eu assenti.

– Kevin está usando Magia Antiga de novo – eu falei cheia de tristeza. – E ele não tem a menor ideia de como está se metendo em encrenca.

– Shhh, eu sei, eu sei. Venha cá, minha Rainha.

Stark me puxou para os seus braços e me abraçou enquanto aquele calor terrivelmente familiar diminuía, deixando apenas um enjoo no meu estômago e a clareza sobre o que eu tinha que fazer. Agora. Eu precisava parar de pensar sobre isso. Parar de ficar pesando as consequências. E simplesmente... fazer.

Ah. Inferno.

5 No horário militar, 2000 horas equivale a 20 horas ou 8h00 PM. (N.T.)


14

Outro Kevin

Kevin despertou de repente e, nos seus primeiros minutos de consciência, ele achou que estava de volta aos túneis embaixo da estação – antes mesmo de ter se deslocado para o mundo de Zoey, antes do retorno da sua humanidade. Um gosto amargo de desespero inundou a sua boca com náusea ao pensar em tentar controlar a fome e manter a sanidade.

Então ele se sentou, bateu a cabeça em um dos engradados de madeira entre os quais estava encolhido, e a sua memória acordou junto com ele. Kevin congelou e olhou silenciosamente em volta. Nada se mexeu. Ninguém tinha entrado no porão. Ele conferiu o seu relógio interno – os vampiros vermelhos sempre sabiam a hora exata do nascer e do pôr do sol.

– Dezessete horas e vinte e dois minutos. Pôr do sol – ele falou para si mesmo por força do hábito. Kevin havia feito isso muitas vezes no último ano, desde que tinha sido Marcado como um novato vermelho e depois se Transformado. Foi uma forma que encontrou de tentar manter a sua sanidade durante aquele tempo horrível, e agora isso o reconfortava. Ele se alongou, fazendo só uma pequena careta para a dor que o seu ferimento ainda causava, embora ele se sentisse muito bem. – Com fome, mas bem. – Então ele se lembrou, e o seu rosto se abriu em um sorriso de gratidão. – Os cookies da Vovó!

Kevin pegou a mochila e tirou vários cookies de dentro dela. Ao fazer isso, sua mão topou com alguma coisa dura. Perguntando-se o que mais a sua avó tinha colocado ali, ele espiou o interior da bolsa e deu um suspiro longo e feliz.

Ele tirou a garrafa térmica metálica que estava no fundo da bolsa, abriu a tampa, cheirou e facilmente reconheceu o aroma de sangue.

– Ela pensou em tudo! – ele bebeu ruidosamente o sangue da garrafa fria enquanto comia os cookies.

Kevin não precisava ter um abastecimento constante de sangue. Ele não iria perder a cabeça nem atacar alguém na rua como um vampiro vermelho normal faria depois de alguns dias sem beber, mas as suas costas ainda precisavam se curar e o sangue definitivamente ia deixá-lo mais forte.

– Obrigado, Vó – ele disse entre mordidas nos cookies e sentiu uma onda de saudade de casa.

Pelo resto do tempo que levou para Kevin terminar o seu café da manhã, ele se permitiu desejar que pudesse sair daquele porão e daquela Morada da Noite, ir até a casa de sua avó e ficar com ela comendo cookies e trabalhando na fazenda de lavandas, ignorando esse mundo todo ferrado. Quando terminou de comer, ele espanou os farelos de sua blusa e, junto com eles, expulsou de sua mente aquele desejo egoísta e impossível.

Ele conferiu o seu relógio interno infalível, percebendo que tinha cerca de duas horas até a reunião de briefing que Neferet havia convocado.

– Ok, eu tenho que ficar aqui embaixo pelo menos o tempo suficiente para que os primeiros ônibus tragam os novatos e vampiros vermelhos dos túneis para treinar com os Guerreiros Filhos de Erebus. Então, posso explorar um pouco, já que não fiz nada além de desmaiar quando vim da primeira vez.

Ele encontrou o interruptor para acender as arandelas da parede, transformando o porão escuro em um lugar estranho que quase parecia um cemitério submerso, com as sombras tremulantes da iluminação a gás que bruxuleavam pelas várias fileiras de caixas de madeira compridas em pilhas de duas ou três.

– Bom, é diferente do porão da Morada da Noite de Zo, com certeza.

Zo dissera a ele que poderia haver uma variedade de armas escondidas no porão, mas ali definitivamente não tinha nenhuma espada com pedras preciosas nem bestas antigas de valor incalculável à vista. Só havia caixas de madeira. Um monte delas.

Ele tentou abrir uma, mas estava fechada com pregos. Ele procurou pela sala grande e ampla, e não levou muito tempo para encontrar um pé-de-cabra em uma pilha de martelos, pregos e outras pequenas ferramentas descartadas. Trabalhando com cuidado, para que pudesse fechar a caixa de novo depois de verificar o conteúdo, Kevin levantou a tampa da primeira caixa.

A princípio, quando ele olhou para dentro, a sua mente não registrou o que estava vendo. Ele estendeu a mão e tocou em uma daquelas coisas, e a verdade fez com que Kevin se sentisse tão quente e tonto que ele deu vários passos cambaleantes para trás.

– Fique calmo, Kev – ele disse a si mesmo. Ele estalou os nós dos dedos. Sacudiu as mãos. Passou os dedos pelo seu cabelo escuro. E então voltou até a caixa.

As armas eram enormes e tinham uma aparência estranha, e então ele viu que havia um papel guardado junto na caixa. Nele, Kevin leu: LANÇADOR DE GRANADAS MULTITIRO EX-41.

– Isso é ruim. Isso é muito ruim.

Ele não queria olhar o que tinha nas outras caixas, mas precisava fazer isso – assim, ele abriu cada um dos cinquenta engradados que mais pareciam caixões. Metade tinha lançadores de granadas acompanhados da munição. O resto continha metralhadoras M16, mais um monte de munição e um punhado de granadas.

A mente de Kevin zunia em um princípio de pânico enquanto ele memorizava tudo que viu. Ele tinha que alertar Dragon. Os exércitos de Neferet haviam assumido o controle de Oklahoma, Texas, Arkansas e Kansas em uma expansão coordenada de ataques surpresa no meio da noite. Esse controle tinha se espalhado como um incêndio para Louisiana, Missouri, Nebraska e Iowa. Eles destruíram os depósitos de armas da Guarda Nacional em cada um desses estados e confiscaram veículos militares. Mantendo a tradição dos vampiros, eles não haviam utilizado armas modernas. Os dentes e as garras do Exército Vermelho, assim como a habilidade de controlar as mentes dos humanos, haviam sido o suficiente para derrotar a pequena Resistência humana.

Porém, Kevin sabia que, assim como Neferet continuava pressionando – com sua guerra declarada contra todos os humanos –, ela estava encontrando cada vez mais oposição. Os humanos estavam levantando barricadas nas fronteiras estaduais. Como Kevin era apenas um tenente no Exército Vermelho, ele não ficava a par do “como” e do “porquê” das táticas militares, mas tinha escutado o General Dominick reclamar que Neferet estava gastando tempo demais tentando negociar com os governadores de cada estado. Ele, é claro, achava melhor atacar, atacar, atacar.

– Aparentemente, Neferet também acha isso – Kevin disse sombriamente. – A diferença é que ela quer atacar com armas modernas – e então outro pensamento o esmagou. – Merda! Este não deve ser o único esconderijo de armas que ela tem! Todos aqueles depósitos de armas... merda! Merda! Merda! Claro, os exércitos queimaram tudo, mas eu aposto a minha humanidade que eles não queimaram as armas que encontraram dentro deles.

Ele ficou andando em círculos.

– Isso muda tudo. A Resistência precisa agir imediatamente! Nós temos que depor Neferet e acabar com essa guerra antes que ela comece a usar essas armas. E eu tenho que mandar uma mensagem para Dragon. Agora.

Kevin conferiu seu relógio interno de novo. Ele tinha cerca de quarenta e cinco minutos antes do briefing de Neferet, o que deveria ser tempo suficiente para caminhar sem destino próprio pelos jardins da escola, esperando que o corvo de Anastasia o encontrasse.

Ele tomou cuidado para que os engradados parecessem intocados antes de reaplicar o perfume de sangue nojento. Então ele colocou a mochila de Vovó sobre o ombro e subiu dois degraus de cada vez, parando na frente da porta. Decidindo que a melhor coisa a fazer seria não tentar se esgueirar, ele prendeu a respiração e abriu a porta, saindo rapidamente para o corredor. Ele tinha dado só um passo quando uma voz atrás dele pareceu preencher o ambiente – e congelou o seu coração.

– Ei! Que diabos você estava fazendo lá embaixo?

Kevin se virou para ver o General Stark e um dos seus tenentes se aproximando dele. Ainda por cima, Stark parecia irritado.

– Desculpe, senhor. Eu devo ter virado no lugar errado – Kevin fez uma grande demonstração ficando rapidamente em posição de sentido e evitando o contato visual.

– Essa porta deveria estar trancada. Ordens de Neferet – Stark afirmou.

– Desculpe, senhor – Kevin repetiu, ainda em posição de sentido. – Não estava trancada.

– Dallas, Artus tem as chaves. Encontre-o e tranque essa maldita porta.

– Sim, vou fazer isso, general. – O tenente de Stark começou a ir embora, mas então deu um tapa na sua testa e se virou. – Acabei de perceber quem é esse garoto. Ele é um dos tenentes do General Dominick.

– Dominick? O general vermelho que sumiu com um pelotão inteiro de novatos e soldados vermelhos? – Stark perguntou, com seus olhos aguçados examinando Kevin.

– Sim, ele mesmo, senhor – Dallas respondeu.

Stark deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Kevin.

– Quem é você?

– Tenente Heffer, senhor!

– Sob o comando de quem?

– General Dominick, senhor!

– E onde está o seu general, Tenente Heffer?

– Perdão, senhor?

Stark suspirou alto.

– Vampiros vermelhos são mesmo um pé-no-saco – Stark falou para Dallas como se Kevin não estivesse diante dele em posição de sentido, escutando cada palavra.

– Sim, eles são muito burros. Até os oficiais. – Dallas chegou bem perto do rosto de Kevin. – Ei! O general fez uma pergunta, garoto! Responda, porra!

– E-eu não sei onde o meu general está. – Kevin se concentrou em se parecer com qualquer outro tenente do Exército Vermelho: prestativo e confuso.

– Quando foi a última vez que você o viu? – Stark perguntou.

– Vários dias atrás, senhor. Ele me deu ordens, e eu estava cumprindo essa missão desde então.

Dallas bufou.

– Essa missão incluía invadir um porão trancado?

– Não, Tenente! Isso foi um erro.

– O que você fez lá embaixo? – Stark o questionou.

– Nada. Quando vi que estava no lugar errado, eu saí, senhor.

– Onde diabos você deveria estar? – Dallas quis saber.

– Treinando. Eu voltei da minha missão e então era hora de treinar. Pensei que ia encontrar o General Dominick nos túneis hoje à noite e dar o meu relatório.

– Qual era a sua missão, Tenente? – Stark perguntou.

– Cinco dias atrás, o General Dominick me enviou para Stroud. Ele tinha ouvido falar que a Resistência encontrou esconderijos naquela área e eu deveria fazer um reconhecimento por lá e depois voltar para um relatório. – Stroud ficava mais ou menos no meio do caminho entre Tulsa e Oklahoma City, e não perto o bastante de Sapulpa para causar algum problema para Dragon e a Resistência, então desviar a atenção de Stark para lá não pareceu uma má ideia para Kev.

– Você não achou que tinha algo estranho quando não conseguiu encontrar o seu general e o resto do seu pelotão? – Stark perguntou.

– Senhor, eu acabei de voltar. Agora mesmo.

– Ah, que merda, dá um tempo. Você espera que o General Stark acredite que levou cinco dias para você checar uma bosta de cidade como Stroud? – Dallas zombou.

– Não, Tenente. E-eu me perdi.

– Isso só piora – Dallas resmungou.

– Explique-se, Tenente – Stark ordenou.

Evitando contato visual, Kevin falou rapidamente e com cuidado.

– Senhor, o General Dominick me deu ordens para verificar a área de Stroud, procurando membros da Resistência. Eu fiz isso. Comecei pela cidade. Não encontrei nenhum sinal da Resistência por lá, mas ouvi rumores de que havia uma atividade incomum perto do Rio Deep Fork. Como o general ordenou, eu me abriguei na cidade e no dia seguinte fui até o rio. Encontrei sinais de acampamentos, mas nada específico da Resistência. Quando tentei sair de lá, percebi que estava perdido. Não encontrei nenhuma estrada principal até o pôr do sol de hoje. Então eu confisquei um carro e voltei imediatamente para a Morada da Noite.

– Perdido por dias... que imbecil – Dallas murmurou.

– E você não teve nenhum contato com o General Dominick desde que ele deu essas ordens a você? – Stark perguntou.

– Não, senhor. Nenhum.

– Você não pensou em ligar para alguém com o seu celular quando ficou perdido? Ou você só não pensou nessa possibilidade? – Dallas zombou de Kevin.

Kevin resistiu ao impulso de dar um soco naquela cara estreita, e não demonstrou qualquer sinal de emoção, exceto confusão, respondendo imediatamente.

– Eu pensei, mas não tinha sinal de celular, Tenente.

– Tenente Heffer, o General Dominick mencionou para onde ele e os seus soldados estavam indo? – Stark questionou.

Kevin deixou o seu rosto mostrar surpresa.

– É claro, senhor. Ele disse que ia marchar seguindo ordens.

– Ordens? De quem? – Stark perguntou.

– Perdão, senhor, mas essa informação não chega até minha patente.

– Sim, está certo. Eles estavam indo em qual direção? – Stark continuou o interrogatório.

Então Kevin começou a levar Stark para um rastro totalmente falso, na direção oposta de Sapulpa, da Resistência e da sua montanha protegida por Magia Antiga.

– Ele disse que a milícia estadual estava vindo pelo Novo México e atravessando o Texas pelo Rio Vermelho. Acredito que o general estava indo para Elmer para preparar uma emboscada.

– A milícia do Novo México? Isso é bobagem. Não se ouve um pio de nenhuma das milícias dos nossos estados vizinhos há meses. Ele está inventando coisas. É uma perda de tempo conversar com ele. Com qualquer um deles – Dallas disse, balançando a cabeça de desgosto.

Stark ignorou Dallas.

– Não, alguma coisa definitivamente parece errada. Meu instinto me diz isso há semanas. Tem coisas acontecendo que a gente não sabe. Heffer, quero que você venha comigo.

– Sim, senhor! É uma honra, senhor!

Dallas revirou os olhos.

– General, ele fede.

– Todos eles fedem, mas este garoto vampiro vermelho nos deu a única pista que tivemos sobre um general desaparecido e os seus soldados. Vá pegar aquela chave com Artus e depois nos encontre no auditório para o briefing de Neferet.

– Sim, senhor – Dallas disse antes de dar outro olhar de nojo para Kevin e sair correndo.

– Ok, siga-me, Tenente. E não se perca.

– Sim, senhor!

A mente de Kevin estava em um turbilhão enquanto ele seguia o General Stark. Ele precisava ir à reunião de briefing, mas também tinha que dar um jeito de se livrar de Stark e do babaca do Dallas para ir lá fora e esperar que o corvo de Anastasia o encontrasse. Dragon precisava saber sobre o esconderijo de armas. Ainda hoje.

– Ei, chega de andar feito uma lesma! – Stark falou rispidamente para Kevin, que estava, de fato, andando feito uma lesma.

– Sim, senhor! – Ele acelerou o passo e estava bem atrás de Stark ao sair do Ginásio e entrar no corredor que levava à entrada da escola e ao auditório quando uma voz familiar, sexy e sarcástica interrompeu o seu plano de fuga.

– E aí, Cara do Arco. Eu diria “que bom ver você”, mas nós dois sabemos que isso é mentira.

Stark fez uma pausa para cumprimentá-la quando ela entrou no corredor, vindo dos aposentos das Sacerdotisas. Kevin começou a analisar Aphrodite, reparando em nuances que ele não tinha sido capaz de ver na escuridão dos jardins do necrotério.

Ela parece cansada. Muito cansada. E magra. Quase frágil. Esta Aphrodite usava muito mais maquiagem do que a do mundo de Zo, e Kevin se perguntou se poderia ser para tentar encobrir olheiras e estresse. E a boca dela está diferente também. Mais dura. Como se ela não sorrisse nunca. Aquilo fez o coração dele doer, e ele quis colocar os braços em volta dela e dizer que tudo ia ficar bem. Inconscientemente, os seus pés começaram a dar um passo em frente quando a voz de Stark o trouxe de volta para a realidade.

– Desde quando mentir é um problema para você, Aphrodite? E não me chame assim.

– Oh, tudo bem, sinto muito. Eu me esqueço de que agora você é o General Cara do Arco. Viva. Todos nós ficamos tão elevados com essa guerra. – Ela franziu o nariz lindo e perfeito ao olhar para Kevin, logo atrás de Stark. – Eca. Isso fede.

– Ele também é um tenente no exército da sua Grande Sacerdotisa e coloca a sua vida em risco toda vez que sai desta Morada da Noite. Acho que o cheiro não faria nenhuma maldita diferença para você se só ele se colocasse entre você e uma turba de humanos.

Aphrodite fez uma cena, olhando em volta do corredor, o qual estava ficando cada vez mais apinhado de soldados, Guerreiros Filhos de Erebus e Sacerdotisas indo na direção do auditório.

– Engraçado, mas eu não estou vendo nenhum humano por perto.

– Engraçado? Sabe o que eu acho engraçado? O boato que eu ouvi de que você pode se juntar ao Exército Vermelho, então o meu conselho é que é melhor você já ir se acostumando com esse cheiro. – Stark fez um movimento de cabeça na direção de Kevin. – Vamos, Tenente. – Ele se curvou para Aphrodite de modo zombeteiro. – Tenha um ótimo dia, Profetisa.

 


C O N T I N U A

No instante em que Kevin passou entre os mundos, ele conseguiu sentir: aquela terrível e desesperadora sensação de estar perdido. O estranhamento que era o efeito do feitiço de Zoey – aquele que o havia atraído e depois devolvido para o seu próprio mundo – era avassalador. A sensação de estar irremediavelmente perdido era tão forte, tão urgente, que o fez lembrar de um dia de primavera quando tinha sete anos e havia ido fazer compras com sua mãe no Super Target da Rua Setenta e Um em Tulsa. Ele havia se afastado enquanto a mãe e as irmãs estavam olhando roupas femininas. Quando se deu conta, estava sentado no meio do departamento de eletrodomésticos chorando incontrolavelmente.
Essa era a mesma sensação terrível, só que agora não haveria nenhum funcionário amigável para reconfortá-lo enquanto ele esperava que sua mãe respondesse ao aviso de criança perdida que soava pelo alto-falante. Sim, ele era um vampiro completamente Transformado – um tenente no Exército Vermelho –, mas, definitivamente, havia momentos em que ele desejava que alguém o salvasse.
– Não é possível, Kev. Recomponha-se – ele murmurou para si mesmo.
Com um forte barulho de sopro, como do ar sendo expirado, o bizarro buraco entre os dois mundos desapareceu, deixando apenas uma sorveira, deslocada em seu verde abundante, no espaço onde o tecido entre os mundos havia rompido. Enquanto a linha de comunicação com sua irmã Zoey se fechava – juntamente com o mundo dela, no qual ele se sentiu mais em casa do que no seu próprio –, Kevin desejou mais do que qualquer coisa que pudesse retornar ao seu eu de sete anos, sentar e chorar para que sua mãe o salvasse.
Só que ele não era mais criança, e a sua mãe havia parado de ser mamãe anos atrás, então Kevin fez o que havia aconselhado a si mesmo: ele se recompôs. Para se reconfortar, ele tocou a bolsinha pendurada por uma tira de couro em seu pescoço e se tranquilizou por ela ter feito a viagem junto com ele. Conferiu o bolso interno da sua jaqueta para se certificar de que a cópia do diário de Neferet ainda estava ali, e então analisou o cenário ao seu redor.
Estava escuro, assim como quando ele deixou o mundo de Zo, e frio – embora não houvesse nenhuma neve cobrindo o gramado marrom do inverno. Ele olhou para a sua direita. Não havia um muro de pedra fechando a tumba da Grande Sacerdotisa Neferet. Havia apenas uma gruta e um pequeno lago meio congelado.
É porque neste mundo Neferet está livre e no comando. Só pensar isso fez com que o seu nível de estresse aumentasse.

 


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Kevin estalou as juntas dos dedos enquanto levantava o olhar, seguindo a colina acima da gruta. Como esperado, carvalhos antigos formavam um pano de fundo para moitas enormes de azaleias adormecidas.

– Aqui com certeza é o Woodward Park, mas não aquele do qual eu acabei de sair – Kevin suspirou.

Ok, uma coisa de cada vez, é só o que eu posso fazer, mas eu preciso realmente fazer algo de fato, e não apenas ficar parado aqui estalando os dedos e me sentindo péssimo.

Kevin tinha um plano, mas era um que fazia o seu estômago se contrair de nervoso. Ele tinha que encontrar alguém e não tinha certeza se as coisas iam transcorrer muito bem. As pessoas eram as mesmas, mas perturbadoramente diferentes aqui, e ele não a via há mais de um ano.

E se ela não quisesse vê-lo de jeito nenhum? Ou pior, e se ela o visse, mas o rejeitasse – se recusasse a ver que ele era diferente dos outros e não o convidasse para entrar? Então que diabos eu vou fazer? E como eu vou aguentar se ela virar as costas para mim?

– Eu tenho que arriscar. Se eu quero tentar acertar as coisas, não tenho muita escolha. Preciso de aliados, e ela é a melhor pessoa em quem consigo pensar – Kevin disse a si mesmo enquanto atravessava o frágil gramado marrom em direção à calçada na Rua Vinte e Um que contornava o parque. Andando rapidamente, ele virou à direita, subindo a pequena ladeira até a fraca iluminação em frente à Utica Square.1

Era uma caminhada curta até as lojas e restaurantes sofisticados que rodeavam a praça, apesar de Kevin se pegar desejando que demorasse mais. O grande e antigo relógio de quatro faces da Utica, que ficava imponente na frente da loja Russell Stover Candies, dizia que já passava da meia-noite, mas o local estava fervilhando com atividade. Desde que Neferet havia assumido o controle de Tulsa e da maior parte do Meio-Oeste, o horário comercial dos humanos havia mudado drasticamente para refletir o fato de que eram os vampiros que mandavam, e não os humanos. As lojas da Utica Square – assim como qualquer outra loja ou restaurante em Tulsa e na área ao redor que os vampiros poderiam querer frequentar – abriam ao anoitecer e fechavam ao nascer do sol.

Havia, é claro, algumas poucas lojas que abriam para os humanos durante o dia – a maioria delas mercearias, postos de gasolina e que providenciavam outras necessidades, mas, comparadas aos negócios frequentados por vampiros, elas eram pobres lembranças de um passado em vias de extinção.

Nesta fria véspera de Natal, a Utica Square estava enfeitada com luzes – não em comemoração ao Natal, mas sim porque Neferet gostava que tudo parecesse brilhante, reluzente e bonito na superfície, não importando o que acontecia logo abaixo das belas aparências.

Vampiros e novatos azuis passaram por Kevin na calçada, mal olhando para ele, o que o tranquilizou. Se um alerta tivesse soado quando ele, General Dominick e outros do seu pelotão do Exército Vermelho foram dados como desaparecidos, os Guerreiros Filhos de Erebus teriam espalhado cartazes em todos os lugares públicos de Tulsa, e Kevin definitivamente seria interrogado.

Os poucos humanos que estavam na rua também reagiram normalmente a ele. Não fizeram contato visual e abriram bastante espaço para que ele passasse, mudando de calçada ou disparando para dentro de qualquer restaurante ou loja por perto, preferindo evitá-lo e também se esquivarem da possibilidade de ele estar com fome o suficiente para agarrá-los e fazer um lanche rápido. Embora a postura “oficial” de Neferet fosse a de desencorajar vampiros vermelhos de se alimentar de humanos em público, a verdade era que a única razão pela qual a Grande Sacerdotisa queria que o Exército Vermelho demonstrasse algum autocontrole era que a alimentação em público costumava causar pânico. Neferet considerava o pânico humano feio e motivo de distração. Então, basicamente, se acontecesse... bem, aconteceu. Normalmente não havia nenhuma consequência para os vampiros, exceto uma pequena advertência.

Kevin costumava ficar perturbado com o fato de ele óbvia e justificadamente apavorar os humanos, mas naquela noite isso o tranquilizou. Ele sabia que o seu cheiro estava diferente – ou, mais especificamente, não estava com cheiro de túmulo – desde que Nyx havia concedido a ele sua humanidade de volta, mas as pessoas de Tulsa estavam tão acostumadas com monstros na noite que não chegavam perto o bastante para notar que ele não era mais o bicho-papão.

Kevin não baixou a guarda, porém. Ele pensou em pegar o ônibus até a estação onde o seu carro estava estacionado, mas só imaginar a possibilidade de encarar novatos vermelhos esfomeados e vampiros vermelhos curiosos deu um aperto no estômago. Que diabos ele iria dizer a eles quando o inevitável acontecesse – quando eles percebessem que ele havia se Transformado irreversivelmente? Ele precisava de tempo e também de um plano.

Mas, principalmente, Kevin precisava de ajuda.

Ele poderia facilmente andar o quarteirão até a Morada da Noite, mas não encontraria nenhuma ajuda por lá, e ele não tinha nenhuma vontade de voltar para esta Morada da Noite. Não agora. Não depois de ele ter passado algum tempo na outra Morada da Noite, onde a sua irmã era a Grande Sacerdotisa e os humanos eram bem-vindos como amigos, não sofriam abusos sendo escravizados e não eram considerados geladeiras de sangue ambulantes.

Havia apenas um lugar para onde Kevin queria ir, e apenas uma pessoa que ele queria ver. De novo, sua mão tocou o volume que estava debaixo de sua camisa perto do coração. Ele pressionou a mão contra a pequena bolsa de couro com miçangas feita a mão, encontrando consolo na sua presença.

Kevin atravessou a Utica Square até os fundos do centro de compras com aparência de vilarejo, passando pela Fleming’s Steakhouse e pelo Ihloff Salon até chegar ao estacionamento, mais escuro e mais silencioso. Estava cheio, então não levou muito tempo até Kevin encontrar o que precisava.

Um homem sozinho, humano e bem-vestido, andava apressado entre os carros, em direção às vagas de estacionamento na frente dos condomínios no estilo de vilas italianas, que se erguiam ali como se um pedaço do Mediterrâneo tivesse sido deslocado da Costa Amalfitana e se estatelado no centro de Tulsa.

Silenciosamente, Kevin o seguiu. Quando o apito do alarme na chave do carro soou, desbloqueando o Audi SUV, Kevin saiu das sombras para encarar o homem.

– Boa noite – Kevin disse.

Os olhos do homem se arregalaram e o seu rosto ficou pálido feito osso. Ele estendeu as sacolas nas suas mãos, em parte como oferenda, em parte como escudo.

– Po-por favor! Eu tenho uma família em casa. Por favor, não me morda. Eu dou tudo que você quiser, mas os meus filhos precisam de mim, e eu não quero morrer.

O estômago de Kevin se revirou. Ele odiava isso. Odiava que apenas a imagem da sua Marca de vampiro vermelho instantaneamente criasse uma sensação de pavor e pânico nos humanos. Kevin encarou o homem nos olhos e falou vagarosa e gentilmente:

– Eu não vou machucá-lo. Você não precisa ter medo – ele disse, e o homem se acalmou. – Você não está sob a proteção de um vampiro? – Kevin perguntou ao ver a mão sem marcas do homem. Os vampiros azuis haviam tatuado a lua crescente nas mãos de humanos sob a sua proteção para que os vampiros vermelhos famintos soubessem que eles estavam fora do cardápio.

– Não de um vampiro específico – o homem respondeu como se estivesse em um sonho quando o poder da mente de Kevin o dominou, deixando-o imóvel e incapaz de fazer qualquer coisa, exceto o que Kevin ordenasse.

– Mas você faz algo para se proteger?

O homem assentiu, sonolento.

– Eu sou o dono do Harvard Meats. Na esquina da Quinze com a Harvard.

– Ah, claro. Eu conheço o lugar. – E Kevin realmente conhecia. Aquele homem não precisava estar sob a proteção de um vampiro específico porque o seu negócio era uma proteção por si só, já que era o açougueiro que fornecia as melhores carnes da cidade para a Morada da Noite e todos os seus restaurantes favoritos. – Está bem, eu quero que você faça o seguinte. Dê as chaves do seu carro para mim. Você está perto de casa?

O homem assentiu novamente.

– Eu moro na esquina da Rua Treze com a Columbia.

– Ótimo. Você vai precisar ir andando para casa. Amanhã registre uma queixa do desaparecimento do seu carro. Diga que você acha que foram garotos do ensino médio... da Union – Kevin acrescentou após uma breve reflexão. Ele tinha estudado na Broken Arrow. BA e Union eram rivais conhecidos, e ele teve que disfarçar o seu sorriso por essa pequena vingança pelo fato de a Union ter vencido o último campeonato estadual de futebol americano.

– Vou registrar a queixa de furto. Por garotos da Union. Amanhã – o homem repetiu automaticamente, entregando as chaves a Kevin.

Kevin hesitou, chamando o homem de volta quando ele se virou, movendo-se mecanicamente para começar a caminhar até sua casa.

– Ei, ahn, você precisa de alguma coisa do carro?

O homem piscou os olhos para ele, como se não tivesse entendido a pergunta.

– Tem alguma coisa no seu carro que você precisa levar para casa? – Kevin reformulou a pergunta, olhando bem nos olhos do homem, aumentando o seu controle sobre ele.

– Sim. O meu laptop – o homem respondeu imediatamente, embora sua voz ainda tivesse um tom sonolento. – E mais alguns presentes para as crianças.

– Pegue-os – Kevin disse. – Rápido.

O homem se mexeu rapidamente, abrindo a porta traseira e retirando um laptop fino e uma sacola cheia de pacotes embrulhados. Então ele se virou para Kevin, esperando receber uma ordem sobre o que fazer em seguida.

– Vá para casa agora. Rápido. Não fale com ninguém. Se você for parado por um Guerreiro, diga que está em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Eu estou em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Mais uma coisa. Este vai ser o melhor Natal da sua vida. Na verdade, vai ser o melhor ano da sua vida. Você vai mostrar para a sua mulher e os seus filhos o quanto você os ama todo dia, e você vai se certificar de que você e a sua família são valiosos para a Morada da Noite escolhendo cortes especiais de carne exclusivos para Neferet. – Kevin fez uma pausa, refletindo, e então continuou: – Prepare a carne marinada em um molho de vinho tinto. Neferet realmente gosta de vinho tinto. Entendido?

– Entendido.

– Ok, agora vá. Rápido!

O homem saiu apressado, apertando o laptop e a sacola de presentes contra o peito como se eles fossem feitos de ouro.

Cantarolando baixinho o grito de guerra da Broken Arrow para si mesmo, Kevin entrou no Audi. Ele se demorou um minuto apreciando o interior agradável antes de dar a partida e sair da Utica Square, e então ele estava no seu caminho até a estrada Muskogee Turnpike, que ficava a um pulo do centro de Tulsa. Quando entrou na estrada em direção ao sul, ligou a rádio 98.5 e tentou deixar a voz anasalada de Blake Shelton com seu sotaque familiar de Oklahoma acalmar seus nervos.

Kevin ainda não sabia muito bem o que faria, mas tinha certeza de quem precisava encontrar para conseguir ajuda e descobrir isso.

O trajeto de uma hora e meia passou voando, e logo Kevin estava saindo da rodovia e serpenteando por uma estrada antiga de duas pistas até chegar ao caminho de terra e cascalho que dividia campos de lavanda adormecidos e finalmente acabava em uma casa de pedra familiar com uma ampla varanda frontal.

O seu estômago deu reviravoltas de nervoso quando ele estalou os dedos e levantou a mão para bater na porta.

Kevin hesitou. E se ela não o convidasse para entrar?

Ele engoliu aquele pensamento horrível no instante em que a porta se abriu, antes mesmo de precisar bater.

– Oi, Vovó Redbird! Sou eu, Kevin.

O único sinal de choque que a mulher deu foi um leve rubor na pele marrom de suas bochechas.

– Já faz um tempo que não nos vemos, mas eu ainda reconheço a minha própria família – Vovó disse. Ela não fez nenhuma menção de convidá-lo para entrar. – O que eu posso fazer por você, Kevin?

– Eu preciso de sua ajuda. Na verdade, eu preciso de mais do que sua ajuda. Eu preciso de um plano. É muita coisa para explicar. Posso entrar, por favor?

– Não fico feliz em dizer isso, mas não. Você não pode entrar. Vejo que você completou a Transformação.

– Sim, meses atrás. Sinto muito por não ter vindo vê-la até hoje, mas você sabe por que não vim. Eu tinha que ter certeza de que conseguiria me controlar. Bom, agora tenho certeza, e a razão de eu ter certeza é inacreditável.

– Desculpe, Kevin. Hoje não é o meu dia para morrer. E, mesmo que fosse, eu não quero encontrar a Grande Deusa depois de o meu neto me transformar em um monstro devorador. Não. Por favor, vá embora, meu filho. Você está partindo o meu coração, e ele já está em mais pedaços do que eu posso contar.

Triste, Vovó Redbird começou a se afastar lentamente da porta.

– Espere, Vovó. Por favor, primeiro olhe isto aqui. – Kevin tirou a bolsinha medicinal do pescoço e a estendeu na frente da Vovó Redbird para que ela pudesse ver.

Ela franziu o cenho, confusa.

– Isso é meu. Mas eu estou com ela... – Ela ergueu a mão automaticamente, levando-a até a tira de couro que prendia uma bolsinha medicinal idêntica ao redor do seu pescoço.

– Vovó, você deu isso para mim.

– Não, Kevin. – Ela levantou a idêntica bolsa com miçangas. – Esta é a minha. Essa daí, bom, é uma cópia estranhamente parecida.

Kevin não podia cruzar a barreira da porta a menos que fosse convidado a entrar, mas a bolsinha definitivamente podia.

– Aqui, olhe só. Você vai ver. – Ele a atirou na direção dela, e Vovó a pegou facilmente.

Ele observou enquanto ela abria a bolsinha e depositava o conteúdo na palma de sua mão. Havia um cristal de ametista roxo e um pedaço de turquesa bruta lapidada em forma de um perfeito coração, assim como um ramo de lavanda, uma pena do peito de uma pomba e um punhado de terra vermelha. A última coisa que caiu da bolsa foi uma tira de papel enrolado com cheiro de lavanda.

Com mãos firmes, Vovó Redbird desenrolou o papel para revelar três palavras, escritas na sua forte letra cursiva.

Confie em Kevin.

Os sagazes olhos castanhos da Vovó encontraram os dele.

– Onde você conseguiu isto?

– Como eu disse, foi você que me deu. Em outra versão do nosso mundo. Depois que Zoey me levou para lá e que Aphrodite e Nyx restauraram a minha humanidade. Vovó, é uma longa história, mas eu juro pela memória de Zoey que você realmente me deu isso e me falou para procurá-la e mostrar isso a você. Eu preciso de você, Vovó. Eu não sei mais aonde ir nem quem devo procurar. Por favor, você vai me deixar entrar? Eu não vou te machucar. Eu nunca vou te machucar.

Sylvia Redbird analisou Kevin cuidadosamente. Então ela abaixou os olhos novamente para as três palavras escritas com sua própria letra no papel que ela mesma fez na fazenda de lavandas que dava plantas tão perfumadas e únicas que os vampiros a deixavam em paz – desde que ela continuasse fornecendo os produtos de lavanda que Neferet tanto apreciava.

– Kevin, eu gostaria de convidá-lo a entrar na minha casa. – A idosa deu um passo para trás, segurando a porta aberta para o seu neto.

Ele entrou na casa e inspirou fundo o ar com aroma de memórias de infância. Através das lágrimas inundando os seus olhos, ele abriu o sorriso para sua avó.

– Estou sentindo cheiro de cookies de chocolate e lavanda?

– Está sim, com certeza. Quer alguns?

– Mais do que qualquer outra coisa do mundo – Kevin respondeu. – Mas, primeiro, por favor, posso te dar um abraço?

– Ah, u-we-tsi, nada me deixaria mais alegre!

Kevin abriu os braços, e a sua pequena, adorável e linda avó se adiantou no seu abraço. E de repente ele se viu soluçando enquanto ela o apertava e acariciava suas costas com carinho, e ele liberava a tristeza, a solidão e o arrependimento de ter deixado sua irmã e voltado para um mundo cheio de batalhas e temores.

– Vai ficar tudo bem agora, u-we-tsi. Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Eu estou aqui...

1 Espécie de shopping ao ar livre de Tulsa. (N.T.)


2

Outro Kevin

– Vovó, estes cookies são os melhores entre todos os mundos!

Vovó Redbird sorriu carinhosamente para Kevin.

– Você devolveu a minha alegria em prepará-los. Eu não tenho ideia de como Neferet os descobriu, mas alguns meses atrás seus capangas do Exército Azul apareceram aqui, insistindo que eu entregasse um pedido semanal de duas dúzias de cookies... para a própria Grande Sacerdotisa. Eu achei estranho, mas isso de fato ajudou a garantir a minha segurança, e enquanto eles estavam aqui também fizeram uma encomenda permanente dos meus sabonetes e cremes... – ela perdeu as palavras quando a compreensão floresceu no seu rosto. – Você fez isso!

Kevin deu de ombros, um pouco envergonhado, enquanto pegava outro cookie.

– Bem, sim. Todo mundo sabe que a sua lavanda é a melhor de Oklahoma. Os seus sabonetes e cremes são incríveis e os seus cookies são especiais e deliciosos. Eu pensei que, se Neferet soubesse sobre eles, iria querer. Ela é daquele tipo que adora coisas que ninguém mais tem, e ninguém tem a sua receita.

– Eu não uso receita.

– Exatamente! São coisas que só você pode fazer. Então, eu mencionei isso para um Guerreiro que é companheiro da Sacerdotisa e que leva o lanche da noite para Neferet. Eu sabia que ela só precisava experimentar um cookie e já ficaria fisgada. Aparentemente, Neferet tem uma queda por doces. Os sabonetes e cremes foram um bônus.

Vovó Redbird não falou nada por um bom tempo. Ela observou o seu neto como se ele fosse um enigma que ela tivesse acabado de desvendar.

– Você já era diferente. Mesmo antes de ser arrastado para aquele Outro Mundo.

Kevin assentiu, falando com a boca cheia de cookies.

– Eu ficava pensando que isso iria mudar... que algum dia eu iria acordar e não seria mais capaz de controlar a minha fome de jeito nenhum. Mas isso não aconteceu.

Vovó colocou a sua mão calejada no rosto dele.

– Ah, u-we-tsi, queria que você tivesse vindo me procurar quando estava pensando nisso.

– Eu não consegui, Vovó. Eu tinha muito medo de me transformar em um monstro. – Kevin estava com a cabeça baixa, encarando fixamente a antiga mesa de madeira. – Eu não podia correr o risco de te machucar.

– Então, mesmo de longe, você arrumou um jeito para que eu ficasse segura... para que eu fosse uma das protegidas.

Kevin assentiu.

– Obrigada – ela disse simplesmente.

Quando Kevin teve certeza de que não ia se dissolver em lágrimas escandalosas de novo, ele encontrou os seus olhos castanhos gentis e sorriu.

– Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter perdido Zoey. Eu sempre soube que ela era a sua favorita.

– Zoey e eu éramos próximas desde que ela nasceu, mas isso acontece muito entre avós e netas. Isso não significa que eu a amasse mais do que eu amo você.

Kevin sentiu lágrimas enchendo seus olhos e ele piscou com força para impedi-las de transbordarem.

– Mesmo?

– Dou minha palavra. Era mais fácil ser próxima de Zoey Passarinha. Ela queria cozinhar comigo, trabalhar no jardim, aprender os costumes do nosso povo.

– E eu queria jogar videogames e contar piadas de peido com os meus amigos – Kevin disse com uma ironia amarga.

Vovó Redbird sorriu com afeto e compreensão.

– Você simplesmente queria ser um menino. Não há nada de errado nisso.

– Eu sei que não posso ocupar o lugar deixado por Zo, mas quero que a gente fique mais próximo. Eu... eu preciso de você, Vovó.

A idosa apertou a mão do neto.

– Eu estou aqui por você. Eu sempre vou estar aqui por você. Você nunca mais vai ficar sozinho de novo, meu u-we-tsi.

Pela primeira vez desde que percebeu que ele precisava voltar para o seu mundo – teria que de alguma forma liderar a Resistência para derrotar Neferet –, Kevin sentiu uma parte do peso terrível que tinha se instalado sobre o seu corpo se evaporar.

– Obrigado, Vovó. Isso torna tudo melhor.

– Fico feliz. Agora, eu tenho algumas perguntas que talvez você possa me ajudar a responder.

– Com certeza! Pode perguntar enquanto eu devoro os cookies.

– Ótima ideia. Então, você estava me contando que a nossa Zoey Passarinha está viva em um mundo alternativo, do qual você acabou de voltar?

– Sim. Ela está. Bom, ela não é exatamente a nossa Zo, mas é bem parecida. Tão parecida quanto aquela Vovó Redbird é parecida com você, quase exatamente igual. É estranho. Legal, mas estranho.

Vovó se sentou diante dele, servindo-se de uma xícara de chá de lavanda cheiroso do bule de ferro desgastado pelo tempo que usava desde que Kevin se entendia por gente.

– Deixe-me ver se compreendi direito. Naquele mundo Zoey é a Grande Sacerdotisa no comando. Não há Neferet e...

– Neferet está lá – Kevin a interrompeu. – Ela está magicamente trancada dentro da gruta no Woodward Park.

– Certo – Vovó Redbird assentiu. – Você disse que ela se tornou imortal?

– Sim. Na verdade, eu não entendi muito bem essa parte, mas acredito em Zo e sua turma. Eles disseram que ela tentou se transformar na Deusa de Tulsa e simplesmente surtou pra caralho, matou um monte de gente... humanos e vampiros. Ahn, desculpe pelo palavrão, Vó.

Ela fez um gesto indicando que as desculpas eram desnecessárias.

– Às vezes é preciso usar uma linguagem forte. A sua descrição é válida.

– Obrigado, Vó. – Kevin apontou para a cópia do diário que Zoey havia lhe dado antes que ele fosse embora do mundo dela. – Zo me disse que isso explica muito sobre o passado de Neferet e as suas motivações. Ela e seus amigos descobriram que a história de Neferet é um ponto fraco dela. Zo acha que talvez a gente possa encontrar algo aí que possa nos ajudar a derrotá-la nesse mundo também.

– Isso faz sentido. Então, Neferet está sepultada. Zoey está no comando. E ela abriu a Morada da Noite de Tulsa para os humanos? De verdade?

– Sim! Você precisava ver... garotos humanos estavam realmente brincando com novatos vermelhos e azuis na neve. Era bizarro, mas muito legal, e Zo e a sua turma... eles dizem que são a Horda Nerd... – Kevin fez uma pausa quando sua avó riu como uma garotinha. – Ela fez a Horda Nerd iniciar programas de estudantes humanos, como o da Morada da Noite de Tulsa, por todo o país. Aparentemente, está indo muito bem, por isso ela ficou super preocupada quando ficou parecendo que Neferet podia estar se movimentando. Zoey sabia que os humanos seriam o segundo alvo dela.

– Porque a própria Zoey seria o primeiro alvo.

– Sim. Elas são inimigas. Hum, Vó, quando eu expliquei a Zo como ela morreu aqui, ela disse que tinha certeza de que Neferet a matou, porque no mundo dela Neferet matou dois professores vampiros exatamente do mesmo jeito, apesar de ela ter encenado os assassinatos para parecer que o Povo da Fé era o responsável.

Vovó Redbird ficou pálida com a menção à morte repulsiva de sua neta. Kevin estendeu a mão sobre a mesa para apertar a mão de sua avó.

– Está tudo bem, Vó. Só precisa lembrar que ela ainda está viva. Ela só não está mais neste lugar.

A velha senhora assentiu rapidamente e deu um gole no chá, tentando se recompor.

– O plano de Neferet em ambos os mundos era criar uma guerra entre humanos e vampiros?

– Sim.

– Zoey e a sua... Horda Nerd foram responsáveis por conseguir detê-la nesse outro mundo?

– Sim – Kevin disse.

– Muito bem, Zoey Passarinha – Vovó Redbird disse baixinho. – Esse outro mundo... o mundo de Zoey... parece um lugar encantador.

– E é. Decorações de Natal por toda parte... humanos e vampiros se misturando... Vovó, eles até transformaram a estação de Tulsa em um restaurante descolado gerenciado por vampiros. Os humanos lotam o lugar toda noite. – Kevin rapidamente decidiu deixar de fora o detalhe complementar de como vampiros e novatos vermelhos do seu mundo tinham destruído o restaurante e comido todo mundo. Vovó não precisava dessa tristeza.

– É mesmo? – ela perguntou, maravilhada.

– Sim! Zo inclusive me contou que eles têm uma feira de produtores nos jardins da Morada da Noite toda semana, e o campus é completamente aberto aos humanos para isso.

– Isso é realmente mágico – ela comentou. – Mas por que você voltou para cá?

– Eu tive que voltar. Eu sou a Zoey.

– U-we-tsi, você vai ter que se explicar melhor do que isso.

– Vó, assim como a Zo naquele mundo, eu tenho afinidade com todos os cinco elementos.

Ela arregalou os olhos com a surpresa feliz.

– Oh, Kevin! Essa é uma notícia incrível.

– Bem, sim e não. Sim, porque é legal e um sinal das boas graças de Nyx. Ei, eu quase esqueci de contar! A tatuagem da Transformação completa de Zo é igual à minha. Só que a dela é azul, claro, mas ela também tem um monte de outras tatuagens, como nas palmas das mãos, em volta da cintura, nas costas e até nas clavículas.

– Ela foi até um tatuador? Parece lindo, mas certamente deve ter levado bastante tempo para fazer.

– Não, Vó, Nyx concedeu a ela essas tatuagens como um sinal de que ela estava no caminho certo – Kevin suspirou. – Eu meio que espero que Nyx possa me ajudar dessa mesma forma. Pelo menos eu saberia que estou fazendo a coisa certa.

– E o que é essa coisa certa que você quer fazer?

Kevin não hesitou.

– Isso me traz à parte não tão incrível. Como eu tenho afinidade com todos os cinco elementos assim como Zo, isso significa que eu também tenho as responsabilidades dadas pela Deusa que ela herdou. Vó, eu tenho que derrotar Neferet, assim como Zo fez no mundo dela, para recuperar o equilíbrio entre Luz e Trevas.

Vovó Redbird não perdeu o compasso.

– E como você planeja fazer isso?

– Não tenho ideia, Vovó. Não tenho ideia. – Ele abriu o sorriso atrevidamente para ela. – Mas aposto que você pode me ajudar a pensar em um plano.

– Se eu não posso, sei quem pode. Kevin, o que você sabe sobre a Resistência?

– Eu sou um tenente no Exército Vermelho de Neferet. A nossa única missão neste momento é encontrar e eliminar todos os membros da Resistência.

– O fato de você ser um tenente pode ajudar. Você tem acesso a informações, como talvez o local onde Neferet acredita que a Resistência está se escondendo, ou como eles conseguem levar pessoas clandestinamente para fora do Meio-Oeste até um lugar seguro?

– Não exatamente. A estratégia fica a cargo de Neferet, os generais do Exército Azul e os Guerreiros Filhos de Erebus. Até nós, vampiros vermelhos que conseguem manter um controle suficiente da nossa humanidade para nos tornarmos oficiais, não somos incluídos no planejamento. Basicamente, os Guerreiros de Neferet nos usam como se fôssemos armas irracionais. Quando eu completei a Transformação, escutei o General Stark falando sobre o Exército Vermelho. Ele nos chamou de descartáveis.

– O General Stark parece desprezível.

– Neste mundo, ele é mesmo. No mundo de Zo, ele é o seu Guerreiro Juramentado e companheiro... um cara realmente bacana.

Aquilo deixou Vovó Redbird pensativa.

– E o General Stark não está errado. Tudo que ele tem que fazer é apontar uma direção para o Exército Vermelho e nos soltar. – Kevin estremeceu. – A maioria dos vampiros vermelhos são máquinas irracionais de comer, feitos para devorar tudo no seu caminho.

– Na verdade, isso é bom para nós – Vovó disse.

– Ahn? – Kevin falou, soando muito como a sua irmã.

– Bom, se o General Stark é um bom rapaz no mundo de Zoey Passarinha, então lá no fundo há bondade nele. Talvez ele possa ser convencido. E você é um oficial. Você tem acesso para ir e vir facilmente na Morada da Noite, certo?

– Sim, imagino que sim, mas só entre o anoitecer e o amanhecer. Durante o dia, nós somos todos banidos para os túneis embaixo da estação.

– Mas ninguém na Morada da Noite... nenhum vampiro... iria imaginar que você está do lado da Resistência.

Kevin se endireitou na cadeira.

– Você está certa, Vovó! Isso nem passaria pela cabeça deles. Eles normalmente não incluem oficiais do Exército Vermelho nas reuniões estratégicas, mas eles não iriam notar se eu estivesse lá, parado por perto esperando receber ordens – ele sorriu. – Eu posso descobrir todo tipo de coisa! – ele hesitou, e o seu sorriso esvaneceu. – O problema é que eu não estou com o cheiro certo, e eles iriam reparar nisso.

Os olhos da Vovó brilharam maliciosamente.

– Deixe que eu cuido disso, u-we-tsi.

– Eca, ok. Então, este é o nosso plano? Você vai me fazer ficar fedido de novo, e eu vou espionar na Morada da Noite e descobrir coisas sobre a Resistência? Vamos ter que descobrir onde eles estão se escondendo antes que o exército os encontre, e avisar para a Resistência tudo que eu descobrir.

– Encontrá-los não é um problema.

– Vovó! Você faz parte da Resistência?

– Como Martin Luther King Jr. resumiu tão bem, “A pior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas sim o silêncio das pessoas boas”. Eu não serei silenciada.

– Caraca, Vó, você faz parte da Resistência!

– Tenho orgulho de dizer que sim, eu faço.

– Eles matariam você se a pegassem. Nossa, Vó. Neferet não ia se importar que você é uma idosa. Você iria morrer – Kevin afirmou.

– Estou ciente disso, mas, Kevin, se eu ficasse parada e não fizesse nada, seria o meu espírito que morreria.

Kevin suspirou pesadamente.

– O meu também. É por isso que eu voltei. Eu tenho que fazer algo, e acho que sou o único que pode fazer isso.

– Isso é muito corajoso da sua parte, u-we-tsi.

– Não, fazer a coisa certa não é corajoso. É só o que pessoas decentes fazem – Kevin respondeu.

– De fato.

– Quero que você me leve até eles – Kevin disse com firmeza.

– Eles?

– A Resistência. Quero falar com eles, e contar o que aconteceu comigo no mundo de Zo.

– Não sei se isso vai funcionar. Eles podem achar que é apenas um inimigo quando olharem para você – Vovó refletiu. – O que pode funcionar melhor é você espionar, contar para mim, e eu levarei as informações até eles.

– Isso seria ótimo, se não fosse por Aphrodite – Kevin falou.

– Aphrodite? A deusa grega do amor?

Kevin sorriu com ar travesso.

– Aposto que ela pensa que é uma deusa, mas imagino que, tecnicamente, ela é uma Profetisa, e não uma deusa.

– Filho, isso não faz sentido.

– Desculpe, Vó. É simples, na verdade. No mundo de Zo, há uma Profetisa de Nyx chamada Aphrodite que tem o poder de conceder segundas chances. Por causa dela, nenhum dos novatos ou vampiros vermelhos perdeu a sua humanidade. Ela está neste mundo também.

– Ah, Grande Deusa! Se isso pudesse acontecer neste mundo também! – Vovó exclamou.

– Sim, se a humanidade dos soldados do Exército Vermelho voltar, Neferet perde as suas armas – Kevin afirmou. – No mundo de Zo, Aphrodite e eu temos uma conexão. – Ele fez uma pausa, ignorando o fato de suas bochechas estarem corando muito. – Ela, hum, falou para eu encontrar a versão dela neste mundo, e que ela me amaria também.

Vovó ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. Kevin limpou a garganta e continuou:

– Além disso, Zo falou que eu tenho que montar o meu próprio círculo. Basicamente, a minha versão da Horda Nerd que ela tem. Eu já sei que pelo menos dois dos vampiros que preciso recrutar são azuis... e que eles estão na Morada da Noite neste exato momento.

– Mas, u-we-tsi, a Resistência está cheia de vampiros azuis. Você não pode simplesmente usá-los para o seu círculo?

– Acho que sim, mas a Horda Nerd de Zo é diferente, assim como ela. Assim como eu. Eles também têm afinidades com os seus elementos.

– O que torna o círculo dela mais poderoso que um círculo comum – Vovó observou.

– Sim. Você entende por que eu tenho que fazer mais do que apenas espionar para a Resistência?

– Entendo. E porque eu entendo isso, tenho muito mais esperanças com relação às nossas chances de sucesso do que eu tinha apenas alguns minutos atrás. – Vovó Redbird deu uma olhada para fora da janela da frente. – O amanhecer já está deixando o horizonte rosa. Vamos dormir, u-we-tsi, e amanhã... amanhã nós vamos até a Resistência.

– Está certo, Vovó – Kevin disse corajosamente antes de enfiar outro cookie na boca e pensar: “Ah, que inferno...”.


3

Outro Kevin

– Sap-a-lup-a? Sério, Vó? Isso aqui é bem no meio do nada – Kevin disse quando sua avó indicou a ele a saída para a rodovia Turner Turnpike.

– Kevin, pronuncie direito.

– Certo. Sapulpa. Mesmo assim... sério, Vó? Por que aqui?

– Porque, como você disse... é no meio do nada. O que significa que é um excelente lugar para o quartel-general da Resistência, já que Sapulpa fica a apenas uns trinta minutos do centro de Tulsa. Perto o bastante para ser útil, mas ainda uma cidade rural com nada que possa interessar os vampiros, com a exceção de vários ranchos que plantam a melhor alfafa do estado.

– Então, eles têm o suficiente para serem protegidos por Neferet, mas não o bastante para despertar o interesse dela para fazer uma visitinha nem nada do tipo.

– Exatamente. Vire à esquerda no próximo semáforo. É a South Hickory. Então siga essa estrada por cerca de um quilômetro e meio até a gente passar por algumas placas. Depois da tabacaria, procure pela Lone Star Road e vire à direita.

– Para onde diabos você está nos levando, Vó?

Ela sorriu angelicalmente.

– Para um desses adoráveis e pequenos ranchos de alfafa, u-we-tsi.

Eles serpentearam pela Lone Star Road, passando por campos verdejantes, alguns deixados ociosos em preparo para a plantação da primavera, e outros já verdes com o trigo de inverno. Como é de praxe em Oklahoma, as casas alternavam-se entre quase mansões e trailers caindo aos pedaços, e então mais mansões.

– Ei, olhe só, Vó. É o trio perfeito dos pobretões de Oklahoma: uma casa de trailer, uma piscina portátil e um colchão velho que aqueles pitbulls estão usando como cama... tudo em um só quintal.

Vovó Redbird franziu o nariz.

– Acho que são boxers, não pitbulls, Kevin.

– Erro meu. É isso que dá forçar estereótipos.

– Bem, definitivamente foi um bom palpite. Vá devagar agora. Está vendo à sua direita, onde aquela cerca branca bonita começa?

– Sim.

– Há um portão logo em frente. Pare ali, abaixe o vidro e aperte o botão do interfone. Deixe que eu prossiga com o resto.

Kevin seguiu as instruções, virando em uma entrada bloqueada por um grande portão de ferro. Ele deu uma rápida olhada em volta enquanto abaixava o vidro e viu que a aparência tranquila e organizada do pequeno rancho não passava de uma fachada.

O portão, assim como a cerca branca bem-cuidada, era cheio de cabos elétricos grossos. O olhar de Kevin seguiu os cabos.

– É uma cerca elétrica poderosa, Vó.

– Sim, estou ciente disso. Aperte o botão do interfone, por favor.

Kevin apertou o botão branco perto do interfone e uma luzinha vermelha se acendeu, chamando atenção para a câmera de alta tecnologia apontada na direção deles.

– Quem é? – saiu do interfone uma voz incisiva de mulher, com uma sinfonia de cães ganindo ao fundo.

– Sylvia Redbird. Ouvi dizer que você tem uma ninhada de cachorrinhos. Gostaria de dar uma olhada neles, se você ainda tiver algum para vender.

Houve uma pausa e então ela disse:

– Estou vendo um vampiro vermelho com você.

Vovó Redbird deslizou para o lado e enfiou sua cabeça ao lado da de Kevin.

– Sou eu, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Vampiros vermelhos não são bem-vindos na minha propriedade, muito menos na minha casa.

– Este vampiro vermelho é diferente. Eu dou a minha palavra – Vovó afirmou.

– É claro que você fala isso. Você está sob o controle dele. Não é não. Você não pode entrar na minha propriedade. Você não pode entrar na minha casa.

– Tina, mande Babos até aqui.

– Cachorros odeiam vampiros vermelhos. Ela vai rosnar, latir e atiçar todos os outros – a voz metálica respondeu.

– Ela vai me adorar. Eu juro, senhora – Kevin disse.

– Você vai ficar feliz por ter corrido esse risco – Vovó acrescentou.

– Está bem. Mas, quando ela começar a latir e ficar louca, eu vou ficar muito chateada com você, Sylvia. E eu estou levando a minha .45 comigo. Um movimento em falso, neto ou não, e eu arranco a cabeça desse vampiro.

– Você deve fazer isso mesmo, Tina – Vovó Redbird respondeu calmamente.

– Já vou aí.

A conexão do interfone se desligou enquanto o portão se abria.

– Não entre com o carro na propriedade dela. Vamos apenas sair do carro – Vovó disse, encontrando os olhos dele. – A cadela vai gostar de você, não vai?

Kevin abriu o sorriso.

– Os cachorros costumavam gostar de mim... antes de eu ser Marcado. E depois, na Morada da Noite de Zo, havia uma labradora dourada super legal chamada Duquesa. Ela me amava. Então acho que vai dar tudo certo.

O som de um motor de carro se aproximando cada vez mais fez Vovó Redbird suspirar.

– Bem, agora é tarde demais se estivermos errados.

– Não estamos errados, Vó. Só observe. Eu consigo lidar com essa parte. Cachorros são simplesmente incríveis! – Kevin deu a volta no carro e parou logo antes da linha de entrada na propriedade, diante do portão aberto.

O motor roncou, derrapando até parar na frente deles. Kevin teve que apertar os olhos diante das luzes ofuscantes do veículo, mas conseguiu ver uma mulher baixa – provavelmente com uma idade próxima à de sua avó. Ela tinha um cabelo desgrenhado com mechas grisalhas onduladas pintadas de roxo, rosa e azul. Era velha, mas seu corpo ainda estava em forma, o que era óbvio, pois estava usando uma calça legging enfiada em botas de cowboy turquesa e um moletom escrito KALE imitando o logo da universidade de Yale2. Apontando uma espingarda .45, ela desceu agilmente do carro, seguida por uma pequena terrier preta malhada.

– Oi, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Boa noite, senhora – Kevin disse educadamente.

– Vamos ver se a noite é boa mesmo – a velha resmungou.

– Ei! É um terrier escocês! – Kevin exclamou. – Eu sempre quis ter um. Acho que eles são os cachorros pequenos mais legais de todos.

Os olhos verdes de Tina analisaram Kevin.

– Você não soa como um vampiro vermelho.

– É porque eu sou um tipo diferente de vampiro vermelho – ele explicou.

– Um tipo bom – Vovó acrescentou.

– Impossível – Tina afirmou.

– Mostre a ela, u-we-tsi.

Kevin se agachou e sorriu para o pequeno terrier.

– E aí, garotinha! Você é muito linda. Que tal vir aqui e me deixar fazer carinho em você?

A cadela o observou tão atentamente quanto a mulher ao seu lado.

– O nome dela é Babos.

– Babos, que nome legal. Oi, Babos. – Ele estendeu a mão. – Venha cá, garota.

A cadelinha hesitou, com as orelhas levantadas para Kevin. Ela ergueu a cabeça e farejou o ar.

– Pena que não tenho nenhuma guloseima para você. Da próxima vez vou lembrar disso, mas eu prometo que sou ótimo em fazer carinho. – Ele fez gestos de coçar o queixo com os dedos. – Venha cá, Babos. Dê uma chance para mim.

O terrier escocês inclinou a cabeça, farejou o ar de novo e então, com uma pequena bufada, saiu trotando diretamente até Kevin, que sorriu e disse que ela era a cachorrinha mais esperta, bonita e doce que ele já tinha visto, cumprindo a sua promessa de coçar o seu queixo peludo enquanto ela balançava o rabo entusiasticamente.

– Uau. Eu nunca teria acreditado nisso se não estivesse vendo com os meus próprios olhos – Tina falou. – O que ele é?

– Eu disse. Ele é meu neto. E ele vai mudar tudo.


– Você tem mesmo um rancho de terriers escoceses! – Kevin não conseguiu evitar o olhar embasbacado enquanto ele e Vovó Redbird seguiam Tina para dentro do rancho espaçoso. Quando eles entraram pela garagem, foram cercados por um grupo de terriers pequenos, com suas cabecinhas em forma de tijolo, variando em cores do dourado ao trigo até o preto e o preto malhado. Kevin tentou contar quantos eram, mas, quando contou quinze deles, desistiu.

– Ahn, Vó, você estava falando sério sobre os filhotes? Cara, espero que sim.

Tina então sorriu para ele – a primeira vez que ela fez algo além de olhar como se ele fosse um inseto espetado em um mostruário de exibição.

– Eu não tenho filhotes agora, mas vão nascer em algumas semanas.

– É um código, u-we-tsi. Humanos ou vampiros azuis e até novatos azuis que são aliados da Resistência vêm ao rancho da Tina e perguntam por filhotes.

– Mas o que eles realmente estão pedindo é proteção – Tina disse.

– Espero que algum dia eu possa ter um filhote – Kevin murmurou enquanto se agachava e aproveitava totalmente o fato de estar sendo acossado por uma horda de terriers escoceses.

– Por que ele é diferente? – Tina perguntou.

– Isso, minha amiga, é uma longa história com a qual nós preferíamos não gastar tempo neste momento, já que a Resistência vai precisar dessa explicação também. Eles estão aqui?

Tina assentiu.

– No topo da montanha. Sabe onde ficam os esconderijos de caça, naquelas árvores adjacentes que dão na passagem do gramado?

– Sei.

– Alguns estão nos esconderijos. Outros estão trabalhando, tentando expandir uma área parecida com uma caverna que descobriram uns dias atrás entre as pedras ao lado da montanha. Eles chegaram na noite passada, com alguns refugiados que precisam levar clandestinamente para fora daqui, a maioria mulheres e crianças. Há uma tempestade de neve se formando. Eles acham que os refugiados vão estar seguros na montanha, pelo menos por uns dias.

Vovó Redbird suspirou.

– Eles ficam vulneráveis demais nesses esconderijos. Há tão pouco abrigo neles. Eu sei que vampiros têm resistência ao clima frio, mas é simplesmente horrível que tenham que correr de um lugar para o outro, como fazem. O estresse de não ter um lugar realmente seguro deve ser muito desgastante.

– Foi por isso que eles ficaram tão animados ao encontrar a caverna – Tina concordou. – Mas Dragon me disse que neste momento ela pode comportar apenas cerca de cinco pessoas, e isso se não se importarem em ficar amontoadas. Eles estão trabalhando para expandi-la, mas você sabe que a montanha é composta, na maior parte, por rochas e terra vermelha dura. Está indo devagar, especialmente no meio do inverno.

– Espere aí, você disse Dragon? Dragon Lankford? – Kevin perguntou.

– Sim. Dragon Lankford era o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa... antes de Neferet começar a guerra – Tina respondeu.

– A companheira dele, Anastasia, está aqui também? – Kevin quis saber, a empolgação aumentando o seu tom de voz.

Tina assentiu.

– Está sim.

– Vovó! Zoey me disse para encontrar Dragon e Anastasia Lankford... que eles com certeza poderiam me ajudar.

– Então nós estamos no caminho certo – Vovó falou com um sorriso.

– Cara, espero que sim. – Kevin se levantou depois de dar mais um abraço nos terriers. – Então, quer dizer que na real a Resistência não tem um quartel-general?

– Eles tinham um quartel-general de verdade, mas isso foi antes de Lenobia e Travis serem seguidos, encurralados e mortos, junto com os seus cavalos... – Tina perdeu as palavras enquanto tentava se recompor, obviamente perturbada demais para continuar.

Vovó Redbird se aproximou de Tina, abraçando-a em solidariedade, e então terminou a explicação.

– Lenobia e Travis tinham criado um quartel-general para a Resistência no meio do Parque Nacional de Keystone. Tem mais de setecentos acres e, exceto pelas áreas próximas à Represa e à Barragem de Keystone, é selvagem e não possui nenhuma construção, apesar de o parque ficar a apenas cerca de uma hora do centro de Tulsa. Era um lugar excelente para um acampamento rústico, principalmente porque Lenobia conseguiu retirar clandestinamente vários cavalos da Morada da Noite quando ela e Travis saíram. Alguém os traiu. Lenobia e Travis ficaram com os cavalos, atraindo o Exército Vermelho para longe do resto da Resistência e dos inocentes que estavam tentando ajudar a encontrar um lugar seguro. Eles foram massacrados. Lenobia, Travis, os membros da Resistência, os inocentes e todos os cavalos.

Kevin abaixou a cabeça, a tristeza e o arrependimento tomando conta dele.

– Você estava lá, não estava? – a voz de Tina soou áspera.

– Não. E eu agradeço a Nyx por isso. Eu ainda era um novato quando isso aconteceu, e novatos nunca tomam parte em combates. Eles ainda não são boas armas. Eles precisam estar completamente Transformados para que a sua humanidade esteja extinta o suficiente para que eles sejam perigosos e descartáveis. – Ele fez uma careta de desgosto. – Mas eu ouvi falar no massacre. O meu general, Dominick, se gabou muito por causa dessa vitória. Aquilo... aquilo me deu nojo. Ainda dá.

– Ainda bem que você não estava lá – Tina disse, com a voz ainda trêmula. – Acho que eu não conseguiria aguentar ter você aqui na minha casa se você estivesse envolvido nisso. Lenobia era uma boa amiga. E aqueles cavalos... – Ela estremeceu. – Não consigo nem pensar no que o Exército Vermelho fez com eles.

– Sinto muito – foi tudo que Kevin conseguiu pensar em dizer.

– Mostre que você sente muito. Não basta me dizer isso. Ajude-nos a impedir Neferet e reverter a tragédia que ela provocou neste mundo, e aí eu vou acreditar que você realmente sente muito – Tina disse.

– Eu vou. Eu juro.

Tina assentiu rapidamente e então fez um gesto para que eles a seguissem para dentro da cozinha, que estava exalando um cheiro delicioso. Com a horda de terriers trotando ao redor dos seus pés, Vovó Redbird e Kevin abriram caminho lentamente atrás de Tina, com cuidado para não pisar em nenhuma patinha.

– Imagino que vocês querem se juntar a eles logo.

– Sim. Seria melhor – Vovó Redbird respondeu.

– Na verdade, vocês vão me fazer economizar a viagem. Eu assei uma dúzia de pães e terminei de enlatar a minha geleia de amora. Nunca soube que vampiros amavam tanto pão fresco e geleia antes de Neferet mudar o nosso mundo, mas eles com certeza amam.

Kevin ficou salivando ao observar Tina terminar de colocar os pacotes de geleia e pão caseiro saído do forno em grandes sacolas de lona.

– Quem não gosta de pão caseiro? – ele comentou. – E o cheiro do seu pão é incrível.

Tina parou para olhar para ele. Ela balançou a cabeça.

– É difícil se acostumar com isso.

– Isso? – Kevin perguntou.

– Acho que você é uma palavra melhor do que isso. O que eu quis dizer foi que é difícil se acostumar a ter um vampiro vermelho que age como uma pessoa normal e racional dentro da minha cozinha – ela bufou, acrescentando: – Quase vale a pena sair com vocês no frio e no escuro só para ver a reação deles.

– Eu não espero que minha aceitação vá ser fácil – Kevin disse.

– Quer ouvir a verdade?

Kevin assentiu.

– Você precisa de um milagre para que eles o aceitem.

– Tudo bem – Kevin sorriu para ela. – Sei de fonte segura que Nyx está me concedendo alguns milagres.

– Para o seu bem, espero que sim. – Tina voltou a encher as sacolas de lona.

– Para o bem de todos nós, eu espero que sim – Vovó reafirmou.

– Ok, Kevin Milagroso, me ajude a carregar isto aqui.

Tina abarrotou Kevin com o máximo de sacolas que conseguia carregar, deixando apenas uma para a sua avó, e então seguiram Tina para fora pela porta de trás e passaram por uma piscina, da qual emergia um vapor semelhante a espíritos errantes.

– Que demais! – Kevin exclamou.

Tina sorriu.

– Isso e os meus terriers são os principais prazeres que me permito. Bem, isso se você não contar o meu amor por macarrão e cerveja artesanal. Eu deixo essa piscina aquecida o inverno inteiro. É lindo boiar nela olhando para as estrelas através do vapor. Faz com que eu esqueça como o nosso mundo está ferrado.

– Minha amiga, ajuda um pouco se eu contar a você que, por causa do que aconteceu com Kevin, nós temos uma chance real de derrotar Neferet? – Vovó Redbird falou.

– Sylvia, eu adoraria acreditar que nós podemos voltar a como tudo era antigamente.

– Que tal mais do que isso? – Kevin interveio. As duas mulheres apontaram olhares curiosos na direção dele. – Que tal um mundo onde humanos e vampiros são aliados e amigos de verdade? Assim como vocês duas são aliadas da Resistência. É mais do que possível. Eu vi. Pode funcionar, e faz do mundo um lugar até melhor do que o que a gente tinha aqui antes de Neferet começar a guerra.

– Filho, você não é daqui, é?

– Na verdade, eu sou. Vamos apenas dizer que eu viajei bastante recentemente.

– Eu quero o mundo de Kevin – Vovó Redbird afirmou, sorrindo carinhosamente para o seu neto.

– Bem, o seu mundo parece bom, meu filho. Mas, para mim, basta ter a paz.

– Senhora, a minha avó me ensinou a não me contentar com pouco – Kevin disse, abrindo um sorriso travesso para a sua avó.

– Ele é um pouco inexperiente, mas acho que devo acreditar nele – Sylvia Redbird falou.

– Vou dizer uma coisa: se conseguir fazer a Resistência confiar em você e aceitá-lo, eu posso acreditar nesse seu mundo – Tina disse. – E posso conseguir um filhote de terrier escocês para você de presente.

Kevin abriu um sorriso como um raio de sol.

– Promete?

– Desde que a gente não esteja em guerra e que você possa dar a ele um bom lar... sim, eu prometo.

– Feito! – Kevin exclamou.

– Feito – Tina concordou. – Ok, coloquem as sacolas aqui e levem o Polaris.

Ela abriu a tampa da caixa de metal presa ao local onde deveria ficar o assento traseiro do veículo. Kevin colocou as sacolas lá dentro depois que Tina afastou os cobertores, caixas de fósforos e bolsas de sangue...

– Sangue! – Kevin exclamou. – Nós vamos levar sangue para eles?

– É claro – Tina disse, perplexa. – Vampiros não sobrevivem só com pão e geleia.

– Mas... sangue!

Tina inclinou a cabeça.

– Meu jovem, nesse mundo em que você diz que os humanos e os vampiros vivem como amigos, eles também curaram o fato de que os vampiros precisam de sangue humano para sobreviver?

– Hum, não.

– Então, os humanos lá devem estar acostumados com os vampiros bebendo sangue, certo?

– Sim, acho que sim – Kevin respondeu.

– Bom, eu sou vegana. Eu realmente não vejo muita diferença entre beber sangue humano e comer um bife malpassado ou um carré de cordeiro sangrento. – Ela deu de ombros. – Eu não comeria nada disso, mas cada um na sua.

– Quem é você? – Kevin falou sem pensar.

– Apenas uma professora de inglês aposentada. Depois que você dá aula numa escolha pública de ensino médio, não se abala com muita coisa.

– Óbvio. Queria ter sido seu aluno. Aposto que sua aula não era um tédio – Kevin disse.

– Eu te digo que não – Tina respondeu. Então ela o surpreendeu ao lhe dar um abraço rápido. – Cuidado. E lembre-se do nosso acordo.

– Sem chance de eu esquecer que você me prometeu um filhotinho!

– Sylvia, você lembra como se chega até a montanha, não?

– Ah, acho que sim. Se não me engano, é só virar à direita – Vovó falou.

– É isso. Lembrem-se de tomar cuidado com o portão. Se tocarem naquela cerca elétrica, ela vai fritar vocês.

– Vou me lembrar disso – Vovó afirmou. Ela fez um gesto para Kevin assumir a direção. – Você dirige, u-we-tsi.

– Devagar e sempre – Tina disse quando Kevin deu a partida no Polaris. – Nós mantemos essas velhas trilhas esburacadas, principalmente depois do que aconteceu em Keystone. Você vai ter que parar e tirar uns galhos do caminho algumas vezes. É de propósito.

– Pensei que você estivesse sob a proteção de Neferet por causa das plantações de alfafa – Vovó Redbird observou.

– Eu estou, mas ultimamente os cachorros têm dado o alerta no meio da noite, e não é por causa de Dragon e do nosso grupo. Acho que o Exército Azul anda farejando por aqui. Lembre-se de contar isso a Dragon.

– Vou dizer – Vovó respondeu.

– Quando vocês chegarem à árvore caída, que é grande demais para tirar do caminho, vai ser a hora em que serão interditados – Tina os avisou.

– Eu tenho o meu código. Estou pronta – Vovó disse.

Tina balançou a cabeça.

– Você sabe que eles vão pensar que você está sob a influência de um vampiro vermelho. Eles podem atacar antes que você consiga convencê-los de não fazerem isso.

– Então eu só tenho que ser mais esperta e mais rápida do que eles – a idosa retrucou.

Tina sorriu ironicamente.

– Boa sorte.

– Obrigado, senhora – Kevin falou.

– Você não precisa me agradecer por ajudar a Resistência, filho. É a coisa certa a fazer.

– Eu não estava agradecendo por isso. Eu agradeci por você confiar em mim. Por me convidar para entrar.

– Ah, entendo. Não me agradeça. Só não faça com que eu me arrependa de confiar em você.

– Eu não vou. Prometo.

Kevin engatou a marcha no Polaris e foi na direção que a sua avó apontou – um caminho de terra que mal dava para ver e que desaparecia na escuridão dos cumes de Oklahoma. Se não tivesse que segurar as duas mãos no volante para contornar buracos e pedras, ele estaria estalando os dedos feito doido.

2 Kale significa couve em inglês. O moletom com a palavra “KALE” estampada, com a mesma letra do blusão tradicional da Universidade Yale (em que se lê apenas “YALE”), já foi usado por Beyoncé em um videoclipe. (N.T.)


4

Zoey

– Zoey! Ah, que bom que eu te achei. Você tem um segundo? – uma voz familiar gritou de algum lugar no corredor.

Fiz força para não suspirar, fixei um sorriso no rosto e me virei, enquanto Damien e Outro Jack abriam caminho pelo corredor lotado na minha direção. Assim que eles me alcançaram, meu sorriso se tornou verdadeiro.

– Oi, Damien e Jack. Vocês estão bem acomodados? Precisam de algo? – perguntei. A felicidade que irradiava deles deixava o meu coração pesado mais leve, pelo menos por um momento.

– Aiminhadeusa! Tudo aqui é simplesmente fabuloso! – Outro Jack exclamou, mirando Damien com seus olhos grandes e cheios de amor.

O sorriso de Damien era para Jack, mas ele também me inclui, compartilhando a alegria.

– Z, a gente tem tudo que precisa... nós temos um ao outro.

– E este mundo mais que demais – Jack acrescentou.

– Sim, concordo com Jack. Na verdade, a gente queria ver se nós podemos ajudar você em algo – Damien disse.

– Bem, certo. Mas o que isso quer dizer?

– A gente queria ficar mais envolvido na nova decoração do Restaurante da Estação – Damien falou.

Jack ficou assentindo feito um boneco de cabeça de mola, apesar de eu ter que admitir que ele é muito mais bonito do que os bonecos de mola em geral.

– Vocês falaram com Kramisha? Na verdade, o projeto é dela – eu disse.

– A gente não quis falar com ela antes de expor a nossa ideia para você – Damien respondeu.

Como os dois apenas ficaram ali parados sorrindo para mim, eu os incentivei a continuar.

– Ok, bom, qual é a ideia?

– Você vai amar! – Jack estava dando pulinhos, mal conseguindo controlar a ansiedade.

– A gente precisa contar para ela – Damien disse.

– Siiiiim, a gente precisa! – Jack concordou.

E, é claro, nenhum dos dois disse nada.

Eu resisti à tentação de estrangular seus pescoços ridiculamente felizes, o que Damien deve ter percebido, pois ele limpou a garganta e explicou.

– Então, você sabe que Kramisha já decidiu decorar o restaurante como uma boate da era das big bands, certo?

– Sim, certo. Todos achamos que era uma ótima ideia – eu disse.

– E é, por isso nós queremos trazer alguns especialistas em boates – Damien falou.

– Os gays! – Jack vibrou.

– Os gays? – eu disse, agora totalmente confusa.

– Na verdade, seria melhor dizer a comunidade LGBTQ – Damien corrigiu. – Eu fui até o Centro de Igualdade... você sabe que não fica longe da estação, não é?

– Sim, claro. O Centro de Igualdade de Oklahoma fica a menos de um quilômetro e meio da Rua Quatro. Eu fui lá outro dia discutir sobre uma parceria com eles para o próximo Show de Arte Mais Cores. Eu ia anunciar isso na nossa próxima newsletter – eu contei.

– A gente já sabe – Jack disse. – Toby nos contou quando estávamos lá, conversando sobre a nossa outra ideia.

Senti que eu estava parecendo uma bola de pingue-pongue entre os dois, então me concentrei em Damien.

– Explique-se, por favor.

– É simples. Toby Jenkins, o diretor do centro...

– Sim, eu conheço Toby – eu assenti.

– Ele é apaixonado por história e ficou entusiasmado de ouvir que nós vamos transformar o restaurante em um clube dançante. Ele gostaria de nos ajudar a fazer não apenas um lugar bonito com boa comida e música. Ele pode nos ajudar a fazer com que seja historicamente preciso. Certificando-se de que o palco, a pista de dança, as mesas, as toalhas e até o uniforme dos garçons sejam tão parecidos com os da era do jazz que as pessoas vão realmente sentir como se estivessem voltando ao passado quando reservarem uma noite no nosso restaurante – Damien explicou.

– Isso parece legal mesmo – eu concordei. – O que me faz lembrar que Toby me disse que tem uma lista de fornecedores que são pró-igualdade e, é claro, esses são os únicos fornecedores que nós devemos contratar. Ele disse que compartilharia essa lista comigo e então, bom... – perdi as palavras quando todos nós pensamos nos acontecimentos dos últimos dias.

– Ei, sem problemas, Z – Damien disse carinhosamente. – Nós vamos cuidar disso pra você.

– Sim, você já tem muita coisa na cabeça. Deixe a gente ajudar com isso – Jack completou.

– Obrigada. Aos dois. Sim, eu aceito a ajuda e acho que a ideia de vocês de trazer Toby e qualquer um que ele recomendar é fantástica. Podem falar para Kramisha que vocês definitivamente têm a minha aprovação.

– Aêêêê! – Jack bateu palmas.

– Você não vai se arrepender, Z. O restaurante vai ser espetacular – Damien prometeu. Ele fez uma pausa e me olhou atentamente. – Você parece cansada.

– Yoga é excelente para o alívio do estresse – Jack sugeriu. – No meu outro mundo, antes de todas aquelas coisas horrendas começarem a acontecer, eu era um professor certificado de yoga. Quer que eu conduza você em alguns alongamentos meditativos?

– Hum, não neste momento – eu respondi. – Mas se você quiser dar algumas aulas de yoga aqui na escola, acho que seria ótimo.

– Ai. Minha. Deusa! Sério? Você está brincando? Você me deixaria mesmo dar aulas?

Como é possível alguém não amar esse garoto? Ele era como um unicórnio cintilante.

– Sim, com certeza. Só espere que eu me reúna com o Conselho da Escola para pensar onde podemos encaixar as suas aulas.

Jack se atirou em meus braços, quase me derrubando.

– Obrigado! Obrigado! Posso tocar música? Yoga é sempre melhor com música. E hot yoga! A gente pode ter isso também?

Eu me desvencilhei de Jack.

– Claro. Hot yoga parece legal – eu menti. Hot yoga? Como se a yoga normal não fosse difícil o bastante. – Faça um programa do curso, com uma lista de suprimentos, para que eu possa informar o Conselho do que você precisa exatamente, e a gente bola alguma coisa.

– Que ótimo, Z. – Damien estava me observando por cima da cabeça exultante de Jack. – Mas parece que você precisa de um pouco de descanso e alívio de estresse agora.

– Você não poderia estar mais certo – eu concordei. – Por isso preciso ir. Estou a caminho da minha terapia de estábulo.

O alívio suavizou a expressão preocupada de Damien.

– Ah, excelente! Escovar Persephone sempre te ajuda a relaxar. Divirta-se. E se alguém perguntar onde você está, eu digo que você está na estação.

– Isso seria maravilhoso. Eu só preciso de uma hora para mim mesma.

– É toda sua. – Damien colocou o braço ao redor de Jack. – Venha. Vamos falar com Kramisha, e então a gente pode dar as boas novas a Toby.

Conversando animadamente com os rostos colados, Jack e Damien foram na direção da entrada da Morada da Noite. Eu observei os dois se afastando, tentando capturar um pouco da felicidade que eles exalavam.

Não funcionou. Eles se foram e tudo que eu senti foi cansaço e tristeza. De novo.

Vamos lá, Z. Recomponha-se e saia dessa! Kevin está de volta onde ele precisa estar, e é isso. Aquele mundo precisa dele. Neste mundo, Heath está morto. A sua mãe está morta. E a gente conseguiu derrotar Neferet pra valer. Controle-se!

Sacudindo-me mentalmente, saí pela porta de trás da escola, virei à esquerda e segui pela calçada até a entrada dos fundos do centro equestre. Caminhei rapidamente, mal assentindo para os novatos que me cumprimentavam. Eu só precisava de um tempo sozinha... um tempo para relaxar e não pensar muito.

No instante em que abri a porta do estábulo, respirei fundo, inalando os aromas reconfortantes de cavalo e feno. A aula já tinha começado, e eu podia ouvir Lenobia na arena, dizendo ao seu grupo de calouros que cavalos não são cachorros grandes, o que me fez sorrir em nostalgia enquanto caminhava até a baia de Persephone. Assim que a égua ruã me viu, ela fez uma saudação baixa e retumbante.

– Bom, oi pra você também, menina bonita! Como você está? – Eu peguei a escova para crinas, outra escova grande e macia e um limpador de casco na prateleira do lado de fora da baia, bem como um punhado de guloseimas de hortelã que eram as suas preferidas, e entrei. Persephone me acariciou com o focinho, obviamente procurando pelos doces, que eu ofereci a ela. Eu sorri e beijei a sua testa ampla enquanto ela lambia delicadamente a hortelã da minha mão. Depois de fazer um pouco mais de carinho e beijar o seu focinho de veludo, a égua voltou a atenção para a sua comida e eu comecei a trabalhar.

Eu amava tratar de cavalos – de Persephone principalmente. E a energia positiva dela sempre me atingia rapidamente. Logo a minha mente se esvaziava e eu não pensava em mais nada, exceto em trançar bem a sua crina e o seu rabo e em cuidar para que os seus cascos ficassem livres até da menor pedrinha.

– Persephone, menina bonita, queria que o meu cabelo brilhasse tanto quanto o seu pelo – eu disse, encostando o queixo no seu pescoço grosso e quente. Ela levantou uma pata, bufou e pareceu muito que ia tirar uma soneca. Por entre as colunas da baia, dei uma espiada no relógio do estábulo. – Droga. Mais uns vinte minutos e essa aula vai terminar, e então os novatos vão se esparramar por todo canto.

O que eu não daria para ser uma novata de novo, sem nenhuma preocupação com o mundo.

Comecei a ir na direção da porta para guardar as escovas quando Persephone bufou de novo e, com um grunhido muito satisfeito, dobrou as longas patas e se estatelou no meio da sua baia cheia de palha.

– Então você estava falando sério em tirar uma soneca, hein? – Eu me virei para a porta e então hesitei. – Bem, por que não? Talvez um pouco de descanso vá me ajudar a sair desse mau humor terrível. – Soltei as escovas e fui até Persephone. A doce égua mal abriu o olho quando eu me aconcheguei, bem na frente das suas patas dianteiras, recostando-me na sua barriga quente. – Mas eu provavelmente não vou dormir de verdade. Não tenho conseguido dormir muito bem ultimamente – contei a ela em meio a um bocejo gigante. Então coloquei a cabeça no ombro dela, fechei os olhos e caí direto no sono.


Toc-toc-toc! Alguém estava esmurrando a minha porta.

Minha porta? Espere aí. Eu estou no estábulo com Persephone. Estão esmurrando a porta da minha baia?

Levantei a cabeça. Tudo escuro... estava tudo muito, muito escuro mesmo. Como poderia estar tão escuro nos estábulos?

Toc-toc-toc!

– Ok, ok! Já vai – eu disse.

Eu disse? Mas eu nem abri a boca.

Uma luz se acendeu e eu dei um pulo em choque.

Eu não estava no estábulo. Eu estava no dormitório. No meu antigo dormitório, mas, na verdade, era parecido com o meu antigo dormitório. As minhas coisas estavam lá, mas a cama de solteiro do outro lado do quarto estava vazia. Stevie Rae não estava em lugar nenhum. As coisas dela também não estavam lá. Era como se ela não existisse.

Toc-toc-toc!

– Ei, estou me vestindo. Psiu! Aguenta aí!

Eu observei enquanto uma versão de mim colocava uma calça jeans e um moletom preto e dourado dos Tigers da Broken Arrow.

Que diabos era isso?

Eu me senti super tonta e enjoada, e então a minha confusão começou a clarear quando eu vi que o meu corpo estava quase completamente transparente, e que eu estava pairando um pouco acima da cama.

Então eu finalmente entendi. Aaah, eu estou dormindo. Isso é um sonho... um sonho sobre quando eu ainda era uma novata. O que, na verdade, fazia sentido. Quer dizer, eu andava tão estressada que estava me escondendo no estábulo, tirando uma soneca com o meu cavalo e desejando muito que eu fosse uma novata sem preocupações. Não é surpreendente que eu estivesse sonhando que era uma novata de novo.

Só que eu não era a novata. Eu estava observando a mim mesma, eu que era uma novata.

Ok, então, tudo bem. Sonhos são esquisitos. Olhei em volta do quarto semifamiliar enquanto “Zoey” corria até a porta. Se Kalona aparecer... de novo... eu acordo desta vez. Na mesma hora.

A Zoey do sonho hesitou diante do pequeno espelho sobre a pia e tentou ajeitar o cabelo de quem tinha acabado de acordar, e eu dei a primeira boa olhada no seu rosto.

Espere aí, isso está errado. Essa novata Zoey tem uma Marca normal, como todos os outros novatos.

Novamente, racionalizei que aquilo não era um grande problema. Quer dizer, se eu estava sonhando em escapar do estresse sendo uma novata, eu definitivamente não queria ser a única novata com uma Marca preenchida. De novo.

A Zoey do sonho abriu uma fresta na porta. Eu vi o seu corpo se contrair com a surpresa, e então ela deu um passo atrás para poder abrir a porta inteira e... mostrar Neferet parada no corredor.

– Ah, que inferno! Corra! Este é um sonho péssimo! – eu gritei.

Mas a Z do sonho não me ouviu – nem a Neferet falsa do sonho.

– Grande Sacerdotisa! Oi. Eu, ahn, posso convidá-la para entrar? – a Zoey do sonho perguntou desajeitadamente.

– Não! Não a deixe entrar no seu quarto! – eu disse, mas, de novo, nenhuma delas me ouviu.

– Ah, não, querida. Sinto muito por acordá-la, já que o sol ainda não se pôs, mas você tem uma visita que parece um pouco perturbada – disse a Neferet do sonho com uma falsa simpatia que me dava nojo.

– Vai se ferrar, Neferet! – eu berrei. Claro que elas não me ouviram, então eu suspirei e esperei para ver qual esquisitice ia acontecer em seguida no sonho, e reconsiderei seriamente a minha postura de nunca falar palavrão.

– Uma visita? Sinto muito, Grande Sacerdotisa, mas não estou entendendo.

– É o seu padrasto. Ele está... – Neferet fez uma pausa e uma careta obviamente contrariada – insistindo muito para que você vá falar com ele. Ele mencionou algo sobre a sua alma imortal.

– Ah, eca! Ele! – a Zoey do sonho disse, e eu ecoei o seu pensamento. Só fale que é para ela dizer que ele vá embora e nunca mais volte!

Mas a Zoey do sonho parecia mais nova e mais legal do que eu – ou talvez apenas mais nova e mais ingênua.

– Ok, eu vou falar com ele.

– Ótimo! Eu vou acompanhá-la até lá e permanecer com você. Ele realmente é um homem desagradável.

– Sim, com certeza, e obrigada por ficar comigo.

Neferet fez um gesto para que a Zoey do sonho a seguisse, o que ela fez, apesar de eu ficar gritando “Não, não vá!”.

E quando a Z do sonho fechou a porta, eu me senti flutuando atrás dela e atravessando a porta fechada.

– Ok, este é o sonho mais estranho que já tive na vida – falei em voz alta para mim mesma enquanto voava atrás da versão de mim e de Neferet no sonho. As duas estavam conversando despreocupadamente, como se a Neferet do sonho fosse mesmo uma Grande Sacerdotisa decente e a Zoey do sonho fosse apenas uma novata recém-Marcada. Quase como quando eu fui Marcada pela primeira vez e Neferet fazia um papel de mãe para mim.

Eu estava muito errada sobre aquilo, mas isto era apenas um sonho. Devia mesmo parecer estranho.

E a Morada da Noite parecia estranha também. De alguma forma, parecia mais escura e vazia do que a minha escola sempre cheia e onde ninguém nunca dormia. Nesse último ano, desde que meus amigos e eu assumimos o comando, nós havíamos expandido tanto os programas humanos/novatos que sempre havia algo acontecendo a qualquer hora.

Ali, não. Tudo estava silencioso, e a luz cada vez mais acuada do sol se pondo não fazia nada para aliviar a sensação de escuridão.

– Hum, a gente não está indo na direção errada? – a pergunta da minha eu do sonho chamou de volta a minha atenção, e eu percebi que Neferet havia guiado a Zoey do sonho para fora pela porta de trás da escola, em vez de na direção dos escritórios administrativos na frente do prédio principal.

– Oh, desculpe. Eu deveria ter explicado. O seu padrasto se recusa a entrar no campus. Um dos Guerreiros o encontrou espreitando lá fora no muro leste. – Neferet fez uma pausa e abriu um sorriso falso. – Isso não foi muito generoso da minha parte. Eu deveria ter escolhido outra palavra no lugar de espreitando.

O rosto da Zoey do sonho se enrubesceu e ela balançou a cabeça de desgosto.

– Não, essa é a palavra perfeita. E sou eu que preciso pedir desculpas. De novo. O meu padrasto é péssimo. Um religioso totalmente hipócrita, cheio de ódio e preconceito. – A eu do sonho estremeceu. – Ser Marcada e então me afastar dele foi um alívio. Eu vou conversar com ele e me certificar de que ele não voltará aqui para incomodar você nem nenhum outro vampiro.

– Ah, querida, por favor, não se preocupe com um humano sendo um incômodo. Não há nada de novo nisso. É o que os homens humanos parecem saber fazer melhor: incomodar quem é melhor do que eles.

A Zoey do sonho pareceu não saber como responder. Nesse instante, Neferet acelerou o passo, então nós duas tivemos que nos apressar para alcançá-la enquanto ela atravessava o gramado, indo direto até o alçapão no muro leste.

– O muro leste. Típico. Coisas horríveis sempre acontecem aqui – resmunguei.

Mas a Zoey do sonho não podia me ouvir, então nós seguimos Neferet até o alçapão, que ela abriu pressionando a pedra em que estava escrito 1926, o ano em que o muro foi construído. Eu flutuei pela passagem atrás delas até a área do lado de fora, bem ao lado do muro. Mesmo que o sol ainda não houvesse se posto, com certeza parecia que sim, pois estava tão escuro abaixo dos braços dos antigos carvalhos gigantes que ficavam em volta do muro que nós estávamos completamente nas sombras.

– John? – a Zoey do sonho chamou, olhando em volta da área escura e vazia. – Sou eu. Zoey. O que você precisa me dizer?

A eu do sonho estava procurando ao redor, com as mãos no quadril, obviamente exasperada. Só que a minha atenção não estava na Zoey do sonho. Estava em Neferet. A Grande Sacerdotisa havia ficado perto do muro, onde eu percebi que uma estaca grossa de madeira havia sido fixada no chão, tipo algo que um fazendeiro usaria para amarrar arame farpado.

Mas não havia cercas de arame farpado no centro de Tulsa. Que diabos estava acontecendo?

Neferet foi até a estaca e abriu uma grande bolsa que estava ali atrás – e desembainhou uma espada longa que parecia muito perigosa.

Eu entendi tudo em um instante. A estaca era parecida demais com aquela na qual eu encontrei a Professora Nolan, com a cabeça decepada.

– Zoey! Saia daí agora! – eu berrei para a minha eu do sonho desavisada, mas aquela Z não fez nada além de olhar em volta procurando pelo padrasto irritante.

Silenciosamente, Neferet se aproximou dela pelas costas, carregando a espada com as duas mãos, parecendo um samurai assassino.

– Aiminhadeusa, se mexa!

A Zoey do sonho não me ouviu, mas ela de fato se mexeu, virando-se de volta para dizer:

– Neferet, acho que ele foi embora. Sinto muito mesmo que isso tenha sido tanta perda de tempo e que você teve que... – Ela perdeu as palavras ao ver a espada de Neferet.

– Ah, querida, não há absolutamente nada a se desculpar. E as coisas saíram exatamente como eu planejei. Quando encontrarem você, vão acreditar que foi trabalho de humanos... do Povo da Fé, na verdade. Eu vou conseguir a minha guerra. – Neferet sorriu de modo irracional, mostrando os dentes, vitoriosa. – E você nunca mais vai ser importunada pelo seu padrasto ridículo de novo. Acho que isso é uma vitória para nós duas.

Os olhos da Zoey do sonho ficaram vidrados com o choque, e ela ficou balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar. Com uma voz de menininha, ela repetiu várias vezes:

– Não, eu não entendo... eu não entendo... eu não...

Eu gritei quando Neferet girou em uma curva tão graciosa quanto mortal e, com apenas um golpe, cortou a cabeça da Zoey do sonho. O sangue se espalhou por toda parte quando o corpo desabou, contorcendo-se espasmodicamente.

Tanto sangue! Há tanto sangue!

Eu não conseguia parar de gritar. Eu queria fechar os olhos. Eu queria acordar, mas eu estava congelada no lugar, pairando sobre a minha eu do sonho, enquanto Neferet limpava a sua espada no chão. Depois ela voltou até a bolsa para tirar de lá uma corda e uma placa rústica, artesanal, na qual estavam rabiscados os dizeres: A FEITICEIRA NÃO DEIXARÁS VIVER! ÊXODO 22:18.

Eu reconheci aquela citação da Bíblia. Foi a mesma encontrada sobre o corpo crucificado e sem cabeça da Professora Nolan.

E então eu a escutei. Eu me escutei. O meu olhar desviou de Neferet e se voltou para a cabeça cortada que tinha rolado até parar em uma poça de sangue abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Quando eu olhei horrorizada, os olhos se abriram de repente, e a minha própria voz explodiu na minha cabeça.

Você tem que ajudar Kevin a detê-la – nada mais importa!

Atrás de mim, alguém segurou o meu ombro, e eu gritei tão alto que parecia que a minha voz estava rasgando...

– Z! Sou eu! Está tudo bem!

Ainda gritando, eu me sentei, dando de cara com Stark e quase quebrando o seu nariz. Persephone bufou e colocou as orelhas para trás, como se estivesse procurando algo para atacar.

– Shhh, está tudo bem, doce égua – Lenobia apareceu repentinamente, acalmando Persephone e lançando um olhar preocupado na minha direção.

– Stark? – Eu olhei freneticamente em volta, com meu coração batendo tão forte e rápido que eu podia senti-lo nas minhas têmporas. Estou na baia com Persephone. Foi só um sonho. Não foi real.

– Ei, sim, é claro que sou eu. Que diabos está acontecendo? Eu senti o seu medo como um ferro em brasa. O que aconteceu?

Eu abri a boca para contar a ele sobre o sonho... e não consegui. Porque eu percebi que estava errada. Não tinha sido só um sonho. Era uma mensagem. Uma mensagem que eu tinha que guardar para mim mesma, ao menos por enquanto.

– Stark! – Eu deixei que ele me puxasse para dentro dos seus braços fortes e seguros. – Sinto muito. – Virei a cabeça para poder ver Lenobia. Persephone tinha se levantado e estava recostada contra a Mestra dos Cavalos, parecendo assustada e preocupada. – Ah, não! Eu assustei Persephone também! – Eu me levantei com a ajuda de Stark e fui até a égua para acariciá-la e beijá-la. – Sinto muito, muito mesmo, menina bonita. Eu estou bem. Está tudo bem.

– Não. Não está. Eu senti o seu medo, seu pavor. O. Que. Diabos. Aconteceu? – Stark perguntou.

Eu tentei dar uma risada, mas saiu mais parecido com um soluço.

– Isso é realmente constrangedor. Foi só um sonho.

– Na maioria das vezes, seus sonhos são mais do que apenas imagens da sua imaginação – Lenobia disse, não de um jeito rude. – Da última vez que um sonho a despertou, era Kalona.

– Só que não era realmente Kalona – Stark acrescentou. – Então, o que foi?

Eu enxuguei o suor do meu rosto.

– Gente, eu realmente sinto muito. Não foi nada como os sonhos com Kalona ou o não Kalona. Eram só aranhas.

– Aranhas? – Lenobia perguntou.

Eu assenti e estremeci.

– Aranhas.

Stark suspirou e me puxou de novo para os seus braços.

– Ela morre de medo de aranha – ele explicou para Lenobia.

– No meu sonho, eu caí em um poço cheio delas. Foi horrível – eu menti, sentindo-me tão horrível por isso quanto o próprio poço cheio de aranhas.

– Bom, que alívio – Lenobia disse. – Mas, Zoey, se você tem tanto pavor de aranhas, você realmente deveria procurar uma terapia com hipnose. Uma das Grandes Sacerdotisas da Morada da Noite de Saint Louis é especialista nisso. Tenho certeza de que ela pode ajudar você.

– Obrigada. Vou me lembrar disso. Eu normalmente não me incomodo muito com a minha fobia de aranha.

– Mas você anda estressada e sem dormir direito – Stark falou. – Então, um pouco de terapia talvez fosse bom pra você.

– É, talvez. Se eu tiver outro sonho como esse, com certeza vou procurar.

Stark deu um beijo na minha testa.

– Ei, será que um festival de psaghetti vai fazer você se sentir melhor? Você dormiu na hora do almoço, e já é quase hora do jantar.

Eu não demonstrei como fiquei chocada ao descobrir que tinha dormido por horas em vez de por uns vinte minutos. Em vez disso, eu assenti e tentei demonstrar entusiasmo.

– Psaghetti sempre faz com que eu me sinta melhor.

– Foi o que pensei – Stark disse, segurando a minha mão. – Foi um longo dia para mim também. Vamos comer.

– Boa ideia. – Dei um beijo em Persephone de novo e sorri envergonhada para Lenobia enquanto saíamos da baia. – Desculpe por assustar você. Estou realmente me sentindo idiota por isso.

Lenobia estava olhando para mim com seu olhar cinza e esperto.

– Você está perdoada – ela falou. – E, Grande Sacerdotisa, se precisar conversar, lembre-se de que estou sempre aqui a seu dispor.

– Obrigada! Vou me lembrar disso – falei, fechando a porta da baia.

De mãos dadas, Stark e eu saímos do estábulo, na direção do refeitório.

Eu vou falar sobre isso, mas só quando tiver decidido exatamente o que fazer e como. Verdade seja dita, eu já tinha uma ideia. Dei uma olhada em Stark, sabendo que ele seria o meu maior obstáculo. Ele ia ficar bravo. Muito bravo mesmo.

Ah, que inferno...


5

Outro Kevin

– Você parece estar com frio, Vó. Da próxima vez que eu for tirar um desses galhos do caminho, vou pegar um cobertor na caixa lá atrás. Não quero que você fique doente.

A idosa gesticulou para afastar a preocupação do seu neto.

– U-we-tsi, eu ainda me purifico naquele córrego que corre atrás da minha casa. Está sempre frio. Estou bem. E nós já estamos quase no topo da montanha. Acho que, da próxima vez que a gente parar, não estaremos mais sozinhos.

– O que é esta terra? – Kevin olhou em volta, apertando os olhos através da escuridão para a área selvagem de uma montanha de Oklahoma, cheia de carvalhos antigos, relva na altura da cintura e muitas e muitas rochas de arenito.

Vovó indicou a estrada de terra irregular em que o robusto Polaris estava sacolejando.

– Estas são velhas trilhas da época em que o petróleo foi descoberto, e quando digo velhas, quero dizer velhas mesmo. Elas foram feitas por volta de 1901 e, para a nossa sorte, abandonadas em 1902, bem antes de pensarem em colonizar tudo isso ou pelo menos em alargar estes caminhos e pavimentá-los. A família de Tina por parte de mãe era líder do Povo Creek, e a propriedade desta enorme porção de terra passou para ela. Tina a protege há décadas.

– Então, a cerca elétrica já existia antes de a guerra começar?

– Não. Isso foi uma melhoria que ela fez no último ano. Discretamente, usando apenas o trabalho daqueles que são aliados à Resistência. Ela sabe que aquilo não iria deter um ataque do Exército Vermelho, mas a cerca tem o efeito de dissuadir bisbilhoteiros aleatórios e caçadores clandestinos.

– Aposto que deve ser bem bonito aqui durante o dia. É fácil imaginar como seria esse lugar há cem anos.

– É mesmo.

– Mas seria mais divertido imaginar se não tivesse tantas aranhas. Sem para-brisa nem capota nesta coisa, a gente é tipo um imã para aranhas. – Kevin fez uma careta quando ergueu o galho grosso que ele tinha quebrado na primeira parada, balançando-o na frente dele e de Vovó, tentando retirar teias de aranha do caminho antes que acabassem parando no meio delas.

– Aranhas comem carrapatos e mosquitos, u-we-tsi. Elas são apenas um mero inconveniente para nós. – Ela levantou as sobrancelhas. – A menos que, como Zoey Passarinha, você também tenha pavor delas.

– Vó, a minha masculinidade diz que é melhor eu não responder a essa pergunta.

Kevin seguiu em frente, aproveitando o som da risada doce de sua avó. Logo, porém, ele percebeu que não tinha escolha a não ser deixar que as teias de aranha decorassem todo o seu corpo, já que ele tinha que manter as duas mãos no volante e se concentrar para que o Polaris não capotasse quando o caminho foi ficando cada vez mais traiçoeiro. Os seus faróis iluminaram uma árvore enorme, caída como um gigante adormecido sobre a trilha, e ele diminuiu a velocidade até quase ficarem parados.

– Essa deve ser a barricada final – ele disse.

– Prepare-se, u-we-tsi. Dirija direto até a árvore e então pare. Desligue o motor imediatamente.

Kevin engoliu o nervoso e fez o que ela disse. Dirigiu até a enorme árvore caída, estacionou o veículo e desligou o motor. Assim que ele fez isso, a sua pequena e velha avó o deixou totalmente chocado ao subir com agilidade para o banco elevado da parte de trás do Polaris, tão perto dele que sua perna estava pressionada contra o braço dele. Ela levantou a cabeça através das barras estabilizadoras, respirou fundo e então gritou.

– Estou tentando colher pés de mostarda à luz da lua. É nessa hora que eles ficam mais potentes!

– Isso é verdade, Vó?

– Claro que não. É o meu código. Agora, shiu.

Houve um barulho como o do vento farfalhando através da grama alta e meia dúzia de vampiros azuis desceram dos carvalhos enormes ao redor deles – com espadas levantadas de prontidão, enquanto formavam um círculo que foi se fechando em volta do Polaris.

Um vampiro baixo e corpulento, em cuja face havia uma intrincada tatuagem com dois dragões cuspindo fogo, deu alguns passos à frente, ficando a poucos metros de Kevin. Ele empunhava uma espada longa com as duas mãos, e a sua atenção estava concentrada no vampiro vermelho.

– Vampiro vermelho, liberte Sylvia Redbird. Ela não merece perder a vida junto com você hoje.

Sylvia cuidadosamente se colocou na frente de Kevin, ficando empoleirada entre o seu neto e a espada do vampiro azul.

– Merry meet, Dragon.

Dragon Lankford estreitou os olhos e continuou a não falar diretamente com a idosa, dando uma ordem para Kevin.

– Liberte-a.

Devagar, com cuidado, Kevin levantou as mãos do volante, mantendo-as estendidas, com as palmas voltadas para fora.

– Minha avó está completamente livre.

– Sylvia, venha para cá – Dragon disse.

– Só se você me der sua palavra de que vai me escutar antes de decapitar o meu neto.

Dragon voltou o olhar rapidamente para a velha senhora.

– Seu neto?

– Sim, meu amigo. Este é Kevin. Ele vem em paz como seu aliado, assim como eu.

O olhar duro e vazio de Dragon se voltou de novo para Kevin.

– Então eu sinto muito pela dor que essa morte vai causar a você.

– Dragon, você precisa me escutar. Se não fizer isso, se você o massacrar sem pensar, como você vai ser diferente de Neferet e do seu exército de monstros vermelhos?

Dragon Lankford fez uma pausa longa o suficiente para olhar com tristeza para Sylvia de novo.

– Eu não a culpo por trazê-lo aqui. Você está claramente sob a influência dele. Você vai me perdoar quando recobrar a consciência.

A visão de Kevin, que era aguçada de modo sobrenatural, conseguiu perceber o que estava prestes a acontecer um instante antes de Dragon atacar. Kevin só conseguiu pensar no que a longa espada afiada igual a uma navalha poderia fazer na sua pequena e velha avó. Ele se mexeu com uma velocidade estonteante quando Dragon deu o bote, atirando-se na frente dela enquanto pegava o seu galho de proteção contra aranhas e desviava o golpe da espada. Deslocado para o lado, o golpe que era destinado a decapitar sua cabeça acabou riscando as suas costas de ombro a ombro.

No começo, ele não sentiu nenhuma dor – apenas um puxão e o súbito calor do seu sangue jorrando pelas costas.

Vovó Redbird gritou e caiu sobre o corpo de Kevin, bloqueando o próximo golpe fatal de Dragon.

– Cheire o sangue dele! – Sylvia berrou. – Cheire, Dragon! O sangue dele não é como o dos outros vampiros vermelhos! – Pressionada contra o corpo ensanguentado do seu neto, a raiva de Sylvia era quase palpável. – Você vai ter que me matar para atingi-lo!

– Bryan, espere.

Em meio à confusão do choque, Kevin observou uma mulher se aproximar do Mestre da Espada e gentilmente tocar o seu braço. A beleza dela era etérea, fazendo-a parecer com uma das fadas ancestrais. Kevin achou que o seu longo cabelo loiro parecia irradiar luz própria. E um corvo enorme estava empoleirado serenamente no seu ombro.

– Meu amor, a nossa amiga Sylvia está certa. O sangue desse garoto não tem cheiro de morte.

Aquilo fez a espada de Dragon hesitar. O Guerreiro respirou fundo, e então arregalou os olhos. Ele deu um passo à frente, facilmente retirando Vovó Redbird de cima de Kevin e depositando-a ao lado da trilha, perto da mulher com o corvo. Dragon então pressionou a espada contra o pescoço de Kevin.

– Isso é magia negra? O Exército Vermelho aprendeu a disfarçar o seu cheiro? – Dragon o interpelou.

– Não – Kevin respondeu de modo ofegante, tentando falar em meio à dor ardente em suas costas. – Não é magia negra... é amor. Nyx intercedeu por mim e devolveu a minha humanidade. Por favor, não machuque a minha avó.

E então a beleza etérea novamente estava lá. Facilmente afastando a espada assassina para o lado, ela tocou o rosto de Kevin, sorrindo docemente para ele. Então ele percebeu quem aquela bela devia ser: Anastasia, a companheira de Dragon Lankford.

– Bryan, olhe além da sua raiva e veja este garoto.

Lentamente, Dragon colocou a longa espada na bainha presa às suas costas. Então ele deu um passo à frente, ficando a um palmo de distância de Kevin, que estava fazendo o melhor que podia para não desabar sobre o volante. O Guerreiro o cheirou e analisou a sua Marca.

– O que você é? – ele finalmente perguntou.

– Um garoto vampiro que você quase matou – disse Sylvia Redbird ao abrir caminho e passar por Dragon. – Esta ferida precisa de um curativo. Ele está perdendo muito sangue.

– Nós vamos cuidar dele. Você consegue andar? – a mulher encantadora perguntou a Kevin.

Dragon falou antes que Kevin conseguisse fazer a sua voz sair.

– Não, Anastasia. Diferente ou não, ele ainda é um vampiro vermelho e, portanto, nosso inimigo. Eu preciso acabar com ele.

– Meu amor, nós não podemos perder a nossa capacidade de demonstrar misericórdia ou, como Sylvia resumiu tão bem, não vai haver diferença entre nós e os monstros de Neferet. Confie em mim. Tenho um pressentimento bom sobre este garoto.

Dragon olhou para a sua companheira por um longo momento antes de assentir. Era um aceno leve, mas, ainda assim, ele havia assentido.

– Vamos cuidar dele e ouvir a sua história. Nós não somos monstros.

Anastasia beijou o rosto de Dragon enquanto o corvo em seu ombro observava Kevin com olhos escuros e inteligentes.

– É claro que não somos. – Ela se virou de novo para Kevin e repetiu a pergunta: – Você consegue andar?

– Sim. Acho que sim. – Ele começou a tirar as pernas para fora do Polaris. Antes que conseguisse se conter, Kevin arfou com a pontada de dor. Pontos brilhantes de luz brotaram na sua visão. Ele teria caído se Anastasia não o tivesse segurado.

– Eu... eu si-sinto muito – ele disse, batendo os dentes.

– Bryan! Este garoto está terrivelmente ferido – disse a bela, enquanto o seu corvo levantava voo, grasnando indignado.

– Há bolsas de sangue e cobertores no contêiner, junto com o resto dos mantimentos que Tina enviou. – Vovó Redbird foi apressada até o porta-malas do Polaris, voltando para o lado de Kevin com dois cobertores enrolados e o braço cheio de bolsas de sangue. Ela desenrolou o cobertor na trilha, no espaço entre o Polaris e a árvore caída, e arremessou o outro cobertor para Dragon. – Use essa espada para algo além de machucar crianças. Corte isso em tiras.

Kevin achou ter ouvido Dragon resmungar “Sim, senhora”, mas era difícil ter certeza com o zumbido nos seus ouvidos.

– U-we-tsi, Anastasia e eu vamos ajudar você a se deitar naquele cobertor. Depois nós vamos fazer um curativo nesse ferimento. Mas primeiro beba uma dessas bolsas de sangue. Isso vai ajudar.

– A-Anastasia? – Kevin gaguejou. – Vo-você é a companheira de Dragon, ce-certo? Mi-minha irmã me disse para en-encontrar vocês. Mas ela nã-não falou que você tinha um pássaro. – As mãos dele estavam tremendo demais para segurar a bolsa de sangue, então Vovó a segurou perto dos seus lábios enquanto ele bebia a primeira bolsa, depois a segunda, e, por fim, a terceira.

– Sim, é claro que sou a companheira de Dragon, e Tatsuwa não é um pássaro. Ele é um corvo. Se ele ouvisse você o chamando de pássaro, nunca o perdoaria – Anastasia falou com Kevin com uma voz calma e tranquilizadora. – Ok, vamos colocar você no cobertor.

Ela voltou o olhar aguçado para o seu companheiro e, antes que Kevin pudesse se dar conta, uma onda de dor e surpresa ameaçou inundá-lo quando o compacto Guerreiro o carregou para fora do veículo, como se ele não pesasse mais do que uma criança pequena. Então ele o levou até o cobertor e o soltou sobre ele, de bruços.

Determinado a não chorar, Kevin mordeu com força a parte interna da sua bochecha enquanto sua avó e Anastasia pressionavam tiras de cobertor contra a ferida encharcada de sangue. Elas o ajudaram a se sentar para que conseguissem enfaixá-lo em volta do peito e em cima dos braços.

– Eu me sinto estranho – Kevin disse. – Tipo como se eu estivesse flutuando.

– O corte é longo e profundo, mas você vai se recuperar – Anastasia prometeu. – Eu vou dar pontos para fechá-lo assim que nós o levarmos de volta conosco.

– Você é muito bonita – Kevin falou sem pensar.

– Grumpf – Dragon grunhiu de onde estava, bem perto da sua mulher, ainda observando Kevin com desconfiança.

– Obrigada. E você está sendo um ótimo paciente – Anastasia respondeu, ignorando o seu companheiro.

– Pronto. Isso é o melhor que nós podemos fazer aqui. – Vovó Redbird terminou o curativo. – Acho que é melhor ele não tentar andar. O sangramento ainda não parou de fato. Quanto mais ele se mexer, pior vai ficar.

– Concordo. – Anastasia olhou para o seu companheiro e ergueu uma sobrancelha loira e arqueada. – Bryan?

Dragon Bryan Lankford suspirou.

– Johnny B e Erik... peguem o resto dos mantimentos no Polaris.

– Erik? – Kevin virou o rosto para poder ver o vampiro jovem e alto. – Erik Night?

Erik deu uma olhada rápida na direção dele.

– Sim, eu sou Erik Night.

– Eu amei você como o Super-Homem! Mas, ahn, achei que você tivesse morrido. Foi o que falaram no Exército Vermelho.

Erik bufou.

– A única coisa que está morta em mim é a minha carreira de ator... morta pelas merdas que Neferet fez.

– Ei! Chega de conversa fiada. Vocês dois, peguem os mantimentos como eu mandei. – Dragon deu um olhar fulminante para Kevin antes de se voltar para Vovó Redbird. – Sylvia, imagino que você virá junto com o seu neto e não voltará para o rancho de Tina hoje.

– Imaginou certo.

Dragon suspirou de novo.

– Drew, esconda o Polaris. É melhor que os outros se espalhem pela montanha para ter certeza de que o Exército Vermelho não os estava seguindo. E eu quero dizer até lá embaixo da montanha. Verifiquem todos os caminhos, principalmente os que vêm da Lone Star Road. – Ele ergueu a voz e chamou: – Erik! Pensando bem, deixe Johnny B descarregar os suprimentos. É melhor você descer até o lado da montanha que dá para a casa de Tina, e verificar se ela não acendeu uma fogueira de alerta.

– Pode deixar!

– Ninguém está me seguindo. Eles não sabem que estou aqui – Kevin afirmou.

– É melhor você não falar – Dragon disse a ele.

– Não dói mais nem menos se eu falar – Kevin respondeu, tentando sorrir para o vampiro carrancudo.

– Eu quis dizer que é melhor para mim. – Em um movimento, Dragon se inclinou e colocou os braços em volta de Kevin, levantando-o como se ele fosse um bombeiro resgatando uma vítima e colocando-o sobre suas costas largas. Então o Guerreiro se voltou para a sua companheira.

– Eu sigo vocês.

– É claro, meu amor – disse Anastasia.

A última coisa que Kevin ouviu antes de felizmente ficar inconsciente foi a risada musical de Anastasia Lankford e o grasnido do seu corvo que voava em círculo acima deles.


6

Outro Kevin

Kevin recobrou a consciência ao ouvir o barulho de uma discussão.

– Ele não vai conseguir subir em nenhum dos esconderijos de caça. Nós precisamos levá-lo para a caverna – Anastasia estava dizendo.

– Eu não acho isso uma boa ideia – Dragon retorquiu. – Se ele souber que nós estamos escavando uma caverna, então existe o risco de que o Exército Vermelho descubra isso também.

– Meu amor, o garoto já sabe como as coisas funcionam aqui. Ela sabe que Tina é uma aliada. Se ele nos trair, vai ser como o Keystone Park de novo, e nós nunca vamos conseguir voltar para cá – Anastasia falou.

– Kevin não vai trair vocês – a avó afirmou. – Dragon Lankford, você pode sentir pelo cheiro que ele não é como os outros. Ele não age como os outros. Há uma explicação para o que aconteceu com ele, mas essa explicação não será relevante se o meu neto morrer da ferida que você infligiu.

Foi preciso várias tentativas, mas finalmente Kevin fez a sua voz soar. Apesar de mal conseguir pronunciar mais alto do que um sussurro, o seu rosto estava perto do ouvido de Dragon, e o Mestre da Espada não teve dificuldade em escutá-lo.

– Por favor, me coloque no chão.

– Kevin? Você está acordado? – Vovó Redbird estendeu a mão para tirar o cabelo cheio de suor de Kevin dos seus olhos.

– Po-por favor. Eu prefiro sangrar até a morte do que continuar sendo carregado.

– Bryan Lankford, leve este garoto até a caverna. Agora.

Kevin sentiu o suspiro de Dragon, mas o poderoso Guerreiro fez o que sua companheira ordenou. Ele seguiu por um caminho estreito, que, pelo que Kevin conseguiu ver, era uma área plana e coberta por grama no alto da montanha. Eles desceram contornando várias rochas enormes de arenito e finalmente chegaram a uma abertura estreita voltada para o precipício. Uma luz pálida e trêmula vinda de dentro projetava sombras que bruxuleavam nas pedras. Dragon fez uma pausa, enquanto Anastasia deslizava para dentro. Momentos depois, três figuras encapuzadas saíram apressadas. Eles não olharam para cima, apenas mantiveram suas cabeças abaixadas, escondendo os rostos ao passar por Dragon, Kevin e Vovó Redbird.

– Ok, tragam o garoto para dentro – a voz de Anastasia chegou até eles.

Dragon virou-se de lado para que ele e a sua carga conseguissem entrar. Então, sem a menor cerimônia, ele largou Kevin no chão de pedra da pequena caverna, e o mundo de Kevin ficou temporariamente cinza com pontos brilhantes.

– Você poderia ter sido mais gentil – Anastasia disse.

– Eu poderia tê-lo matado e poupado todos nós dos problemas que ele vai trazer – Dragon replicou.

– O meu neto traz esperança, não problemas, Dragon Lankford – Vovó Redbird disse com firmeza.

– Sylvia, perdoe-me por dizer isso, mas é claro que você pensaria dessa maneira. Ele é sua família. A grande lealdade que você demonstra por ele é admirável, seja ela justificada ou não – Dragon respondeu.

Conforme a visão de Kevin ficou mais clara, ele viu sua avó encarar o Mestre da Espada. As mãos no quadril, os cabelos grisalhos recaindo por seus ombros, e ele nunca a havia visto ficar tão enfurecida.

– Kevin foi Marcado há mais de um ano. Ele se Transformou logo depois disso. Alguma vez eu mencionei o nome dele a você?

– Não, mas...

– Não! Eu não mencionei – ela o interrompeu. – E não fiz isso porque eu não iria, não poderia colocar a Resistência em perigo, e ainda assim aqui estou. De repente trazendo o meu neto até vocês... um neto que é claramente um vampiro vermelho, mas que não tem o cheiro diferente do seu e que age de um modo perfeitamente racional.

– Sylvia, desde os assassinatos de Lenobia e Travis, manter a Resistência em segurança é o meu trabalho. Já aconteceram tantas mortes e, se houver pelo menos um pequeno risco de o seu neto nos comprometer, então nós precisamos tomar todas as precauções. Você acha que me dá prazer decapitar um garoto? Ele não tem culpa por ter sido Marcado como vermelho. Eu não sou um monstro, Sylvia Redbird.

– É claro que você não é, meu amor. – Anastasia levou uma lamparina a óleo até Kevin e a colocou em um nicho na rocha perto deles antes de depositar uma bolsa grande de couro ao lado dele. Ela abriu a bolsa e começou a procurar algo lá dentro enquanto falava: – Sylvia tem razão. Ela está trabalhando conosco por muitos meses e nenhuma vez tentou trazer o neto dela aqui.

– Porque não seria seguro me trazer até aqui antes do que aconteceu – Kevin se esforçou para falar. – Não importa o quanto eu me esforçasse para manter a minha humanidade.

– Fique quietinho. Preciso dar pontos nesse ferimento – Anastasia disse enquanto desenrolava o curativo improvisado. – Sylvia, há várias garrafas de água limpa lá no fundo da caverna. Você pode trazer aqui para mim, por favor?

Sylvia foi apressada até o fundo da caverna, retornando com duas garrafas de um litro de água fresca, que entregou para Anastasia.

– O que mais posso fazer para ajudar?

Anastasia passou para ela uma compressa de gaze.

– Vá secando o sangue enquanto dou os pontos para que eu consiga enxergar o que estou fazendo. – Ela segurou uma agulha longa e curva que estava presa ao fio escuro de sutura. – Kevin, pressinto que isso vá ser um pouco desagradável para nós dois... mais para você do que para mim.

– Tudo bem. Não é tão ruim quanto sentir a minha humanidade escapando de mim.

– O que aconteceu com você? O que mudou você? – Dragon perguntou de repente.

Anastasia levantou rapidamente os olhos para o seu companheiro, que estava em pé perto da entrada da caverna, os braços cruzados, com uma expressão sombria turvando seu belo rosto.

– Você pode interrogá-lo depois que eu der os pontos nele.

– Eu prefiro falar. Vai me distrair um pouco – Kevin disse.

– Muito bem. Vou começar. Primeiro vou colocar álcool sobre o ferimento. Vai doer bastante.

– Estou pronto. Ok, então, o que aconteceu comigo? Bom, eu...! – Kevin perdeu as palavras e deu uma arfada de ar brusca. Era como se Anastasia estivesse derramando fogo líquido nas suas costas, e ele teve que lutar para permanecer consciente.

– Respire, u-we-tsi. Respire. Profundamente, inspire e expire, inspire e expire. Vai passar – Vovó o tranquilizou enquanto secava as suas costas.

Kevin cerrou os punhos e respirou fundo várias vezes junto com sua avó.

– E agora vou começar a dar os pontos. A boa notícia é que o ferimento é longo e reto. Você vai ficar com uma cicatriz, mas deve sarar rápido.

– Melhor isso do que perder a cabeça – Kevin conseguiu falar entre dentes cerrados.

Quando ela começou a dar os pontos, Kevin pensou que ia desmaiar. Ele queria desmaiar, mas, como isso não aconteceu, Kevin voltou a se concentrar na sua história. Ele tentou fingir que estava fora do próprio corpo, em pé ao lado de Dragon, olhando para a noite fria de inverno enquanto falava.

– Três noites atrás, eu era parte de um grupo de soldados vampiros vermelhos e aprendizes novatos que foram arrancados de nossos alojamentos nos túneis embaixo da estação e levados para um mundo alternativo – Kevin fez uma pausa e respirou fundo várias vezes quando a dor nas suas costas ameaçou subjugá-lo.

– O que você quer dizer com um mundo alternativo? – Dragon perguntou.

– Um mundo que é quase como este aqui, só que Neferet não está no poder. A minha irmã está.

As mãos ocupadas de Anastasia fizeram uma pausa.

– Zoey?

– Você conhecia a minha irmã?

– Sim. Ela era uma jovem adorável. Ela entrou na minha aula de Feitiços e Rituais algumas semanas antes de ser assassinada, mas já tinha demonstrado que seria promissora com a magia. Você se lembra dela, não lembra, Bryan?

– Eu lembro que a morte dela foi o começo oficial da guerra de Neferet – Dragon respondeu.

– Neferet a matou – Kevin disse.

– Como você sabe disso? – Dragon perguntou repentinamente.

– Porque no mundo da outra Morada da Noite, Neferet tentou começar uma guerra com humanos da mesma forma... culpando-os pela morte de vampiros. Vampiros que ela mesma matou.

– E a sua irmã morta contou isso pra você? – Dragon falou.

– Não, a minha irmã viva me contou isso... na Morada da Noite de Tulsa, onde ela é uma das várias Grandes Sacerdotisas poderosas que comandam tudo. Zo e o seu grupo derrotaram Neferet e impediram que a guerra acontecesse.

– Garoto, você acabou de cometer o seu primeiro erro. Nós temos espiões no acampamento do Exército Vermelho. São poucos, mas posso conferir com eles essa história de desaparecimento.

– Ótimo – Kevin disse entre dentes cerrados enquanto Anastasia passava a agulha através de outro pedaço de sua carne rasgada. – Quero que você faça isso. Pergunte aos seus homens o que aconteceu com o General Dominick e os seus soldados.

– Vou perguntar. Pode ter certeza.

– Ótimo – Kevin repetiu.

– Mas, até lá, vamos dizer que eu acredito em você. Como o fato de ser atraído para outra versão do nosso mundo restaurou a sua humanidade?

– Foi algo que Nyx fez depois de abençoar Aphrodite com o dom de conceder segundas chances.

– Aphrodite? – Dragon pronunciou o nome com sarcasmo. – Você quer dizer a Sacerdotisa azul que tem visões sobre morte?

– Ela mesma. Só que no outro mundo ela é uma Profetisa de Nyx, tão poderosa quanto bonita.

Dragon bufou.

– Bom, neste mundo ela é praticamente inútil, a menos que você esteja tão iludido com a beleza dela que faça vista grossa para os seus prazeres egoístas e a sua ganância mesquinha.

– Mas, mesmo nesse mundo, ela ainda é uma Profetisa – Kevin argumentou.

– Ela é uma Profetisa que tem visões que raramente consegue interpretar. Antes de Anastasia e eu escaparmos para nos juntar à Resistência, havia rumores de que Neferet estava descontente com ela.

– E por que não estaria? – Anastasia comentou enquanto continuava a fazer a sutura nas costas de Kevin. – Eu abomino tudo que Neferet defende, mas Aphrodite é uma Profetisa horrível. Ela usa a beleza e o dom concedido pela Deusa para manipular os outros. Acredito de verdade que ela retém informação das suas visões, a menos que ache que pode ganhar algo com elas. Não sei por que Neferet não se livra dessa criatura.

– Eu sei. Aphrodite é uma mestra em saber em quanto ela pode abusar ou não de Neferet. Quando vai longe demais, Aphrodite simplesmente tem uma visão que é subitamente clara o bastante para que possa interpretá-la, e, coincidentemente, essa visão também é de grande valor para Neferet – Dragon explicou.

– Ela é diferente no outro mundo – Kevin insistiu. – Ela sacrificou a sua humanidade para salvar os primeiros novatos vermelhos. E desde então, naquele mundo, todos os novatos e vampiros vermelhos têm a capacidade de manter a sua humanidade. Tudo por causa de Aphrodite.

– E por causa dessa diferença, Kevin acredita que pode chegar até a Aphrodite que está neste mundo e convencê-la a fazer o mesmo sacrifício – Vovó Redbird acrescentou.

Houve um longo silêncio durante o qual Kevin tentou, em meio à dor ardente nas suas costas, pensar em algo a acrescentar – alguma coisa que convencesse Dragon de que o que ele estava contando era verdade.

Quando Dragon falou novamente, Kevin escutou uma mudança na sua voz. Muito leve, mas um pouco do sarcasmo e da raiva pareciam ter desaparecido.

– O que faz você pensar que Aphrodite pode fazer essa escolha? A Profetisa que você descreve tem muito pouco em comum com a do nosso mundo.

– Porque mesmo em outro mundo, quem nós somos lá no fundo parece não mudar muito. A única diferença é que nós passamos por experiências de vida diferentes, as quais têm o poder de mudar as nossas personalidades e as nossas reações – Kevin explicou. – Zoey me falou para procurar você e Anastasia neste mundo. Ela disse que vocês me ajudariam a derrotar Neferet, porque vocês a ajudaram no mundo dela.

– Bryan e eu também somos companheiros nesse outro mundo?

Kevin pensou em não contar o que havia acontecido, mas ele afastou aquele pensamento rapidamente. A verdade era uma das poucas forças que ele tinha, e ele não iria começar a mentir e estragar o que já tinha conquistado.

– Vocês eram – ele contou a Anastasia.

– Éramos? – Dragon perguntou.

– Vocês foram mortos. Não sei bem o que aconteceu. Zoey não teve tempo de me contar isso. Só que vocês morreram corajosamente salvando os outros.

– Nós dois estamos mortos? – a voz de Anastasia soou trêmula.

– Estão. Sinto muito – Kevin respondeu.

Anastasia pousou a mão ensanguentada no ombro dele por um instante.

– Não sinta. Se o meu Bryan perecesse, eu não gostaria de viver sem ele.

– E eu não iria dar nem um suspiro em um mundo sem você, meu amor – Dragon afirmou.

Do canto do olho, Kevin viu Anastasia se virar e levantar os olhos para o seu companheiro.

– E é a sua capacidade de amar que faz você maior do que a sua espada. Maior do que um dragão. Pense nisso, Bryan. Se isso for verdade, se Kevin conseguir chegar até Aphrodite e convencê-la a repetir o que fez naquele outro mundo... então a guerra de Neferet mudaria drasticamente.

– Sim – Kevin concordou. – Ela não teria um exército de armas irracionais. Ela teria apenas os oficiais azuis e os Guerreiros Filhos de Erebus, e quantos deles vão permanecer fiéis a ela e lutar se perceberem que Nyx não abençoa essa guerra?

– Ela perderia um pouco de poder, mas talvez não o bastante para acabar com a guerra – Dragon disse pensativamente. – Ela tem sido cuidadosa de apenas colocar em posições importantes Guerreiros que querem ter mais coisas: mais riquezas, mais terras, tudo.

– Mas pelo menos a gente teria uma chance de combatê-los – Kevin insistiu. – Dragon, eu vi o que acontece quando vampiros e novatos vermelhos têm a sua humanidade restaurada, e eu prometo a você que nenhum deles vai querer lutar de novo.

– Onde eles estão, esses outros vampiros e novatos vermelhos alterados? – Dragon perguntou.

– Ainda no outro mundo. Zoey teria que forçá-los a voltar para cá, e ela se recusou a fazer isso. Foi um choque terrível quando eles se recuperaram e se deram conta de tudo que tinham feito. Vários cometeram suicídio antes que pudéssemos detê-los.

– E você? Por que você não ficou devastado? – o Mestre da Espada perguntou.

– Porque eu era diferente desde o momento em que fui Marcado. Eu conservei mais da minha humanidade do que qualquer outro, e por causa disso eu garanti que...

De repente, do lado de fora da caverna vieram os gritos de alerta de um corvo, imediatamente seguidos por um alvoroço. O pássaro voou freneticamente até Anastasia enquanto Erik Night foi apressado até Dragon.

– Perigo! Perigo! Perigo! – o corvo berrou ao pousar no ombro de Anastasia.

– Tina acendeu uma fogueira de alerta! – Erik contou a Dragon.

Kevin estava ocupado demais olhando fixamente para o corvo e pensando se corvos normais conseguiam falar ou se esse em específico tinha poderes sobrenaturais, quando Dragon virou-se e o encarou.

– Seu desgraçado traidor! – Dragon atirou as palavras para Kevin.

– Não! Não fui eu! Não poderia ser. E-eu nem fui para o quartel ontem. Fui direto até a fazenda de Vovó Redbird.

Outro vampiro azul entrou apressado na caverna. Com a respiração ofegante, ele anunciou:

– Soldados do Exército Vermelho estão subindo a montanha!

Dragon Lankford marchou até Kevin e agarrou forte o seu braço, fazendo-o ficar em pé e arrastando-o até a entrada da caverna.

– Antes de matá-lo, você vai me dizer quantos soldados você trouxe até aqui!


7

Outro Stark

– Tenente Dallas, explique de novo para mim por que diabos nós estamos aqui, no meio do nada, em uma noite de inverno congelante, quando eu poderia estar nos meus aposentos com uma fogueira crepitante, venerando o sabor da boca da minha sacerdotisa atual?

O pequeno e jovem vampiro correu até Stark. A sua Marca azul de adulto tinha a forma de relâmpagos, o que fazia sentido por causa da sua estranha afinidade com eletricidade, mas Stark achou que ela ficava mais ridícula naquele rosto que lembrava o de um furão.

– Bom, General, como eu disse a Artus, hoje a nossa varredura de segurança era em Sapulpa e Sand Springs. Lá na mercearia Reasor’s, na esquina da Taft com a Hickory aqui em Sapulpa, o gerente relatou que tinha certeza de que viu Erik Night com um grupo de vampiros azuis que estavam espreitando no estacionamento.

– Bom, Night realmente se juntou à Resistência alguns meses atrás, mas por que nós estamos aqui, se ele foi visto na cidade?

– Porque eu andei pressionando um tenente do Exército Vermelho e ele conseguiu encorajar – Dallas pronunciou a palavra com uma alegria maliciosa – alguns dos moradores locais a admitirem que eles têm notado luzes estranhas vindo desta montanha. A maioria dos caipiras acha que ela é mal-assombrada... eles falaram alguma coisa sem sentido sobre a montanha pertencer ao Povo Creek há gerações. Disseram inclusive que os fantasmas perseguiam os técnicos que perfuravam petróleo no começo dos anos 1900, mas eu não acredito nessa merda. – Eles estavam parados ao lado de uma rodovia denominada Lone Star, que serpenteava pela montanha. Dallas apontou para a cerca com oito arames grossos, que parecia emoldurar toda a grande área selvagem que formava o local chamado Polecat Ridge. – Então, eu dei uma fuçada por aí e encontrei isso.

– Uma cerca? Há fazendas por toda parte nessa região que são cercadas. Por que isso seria um problema? – Stark perguntou.

– Porque isso não é uma fazenda. A montanha é selvagem. Ninguém fez nada nela desde o começo do século passado. Então por que ela é protegida por uma cerca elétrica de alta voltagem?

– Isso é muito? – Stark deu um passo para mais perto da cerca e de fato ouviu um zumbido fraco e sentiu algo diferente no ar.

– Muito. Eu tentei conversar com a velha que é dona da montanha, mas ela não foi muito prestativa... e ela é protegida pelas diretrizes de Neferet porque também é dona das melhores plantações de alfafa em todo o estado. Então eu não pude ser tão persuasivo quanto gostaria.

– Mas ela te deu uma resposta.

– Sim, senhor. Ela falou que tem um rebanho de um tipo especial de veado. Um tipo que Neferet também ama.

– Veado de cauda branca – Stark assentiu. – Neferet gosta de carne de veado. Muito. Não sabia que o fornecedor dela ficava por aqui.

– Sim, essa mesma mulher, Tina, é a dona desta montanha e de todos os campos ao redor. Enfim, ela disse que cria os veados especiais e os deixa soltos na montanha porque ficam mais saudáveis assim, então a carne deles é melhor. Por isso ela tem uma cerca elétrica em volta de toda a propriedade, para manter os veados dentro e os predadores longe.

– Acho que faz sentido. Você perguntou a ela sobre alguma atividade na montanha?

– Sim, senhor. Não consegui nada dela. A velha disse que é silencioso aqui, e por isso ela vive aqui, afastada das pessoas. Ela também disse que vigia a própria montanha, expulsando qualquer intruso, e que ela não precisa, nem quer, a nossa ajuda. Depois disso ela bateu o portão na minha cara.

– Nada de novo – Stark resmungou.

E não era mesmo. Desde a guerra de Neferet, os humanos sofriam. Não que ele estivesse muito preocupado com humanos. A única coisa com que Stark estava muito preocupado era com a sua própria pele – a vida era mais fácil assim –, principalmente nos últimos dias. No entanto, humanos se escondendo atrás de portas fechadas e demonstrando nada além de medo e/ou repugnância por vampiros não ajudava a luta contra a maldita e irritante Resistência.

– Então, quanto eu reportei tudo a Artus, ele disse que a montanha precisava ser inspecionada. E é por isso que nós estamos aqui.

– Tudo bem, então. Essa velha desligou a cerca elétrica? – Stark perguntou, mantendo uma distância segura dos cabos grossos.

– Não, mas a gente não precisa que ela faça isso. Eu consigo colocar a gente aí dentro sem problemas.

– Bom, então faça isso – Stark disse.

Ele deu as costas a Dallas e fez um gesto para o primeiro dos cinco utilitários estacionados atrás do seu veículo na liderança. O motorista obedeceu imediatamente, e soldados vampiros vermelhos e os seus oficiais responsáveis começaram a desembarcar. Stark fez outro gesto para que esperassem, o qual foi passado para a fila atrás, mas ele não precisava ter feito os soldados pararem. Dallas tinha ido até a cerca e colocado a mão no poste mais próximo. Os olhos do jovem vampiro estavam fechados, e a expressão do seu rosto quase indicava que ele estava sentindo prazer – o que não seria uma surpresa para Stark. Ele sempre achou que Dallas era estranho.

Quando Dallas levantou a cabeça no instante seguinte e olhou para Stark, os seus olhos estavam reluzindo com uma luz amarela bizarra.

– Mande os soldados passarem por cima da cerca aqui – Dallas manteve ambas as mãos no poste, indicando com o queixo o local à sua esquerda. – Fale para eles se apressarem. Essa certa tem muitos volts passando por aqui. Eu só posso segurá-los por alguns minutos.

– Vocês ouviram o tenente, façam os homens se mexerem! – Stark gritou.

Stark se afastou e ficou observando os vampiros vermelhos se arrastarem por cima da cerca. Eles parecem umas malditas baratas esfomeadas. Stark não se permitiu estremecer, apesar de sentir como se insetos estivessem rastejando na superfície de sua pele. O Exército Vermelho é necessário, ele lembrou a si mesmo com firmeza. Além do mais, não era como se eles pudessem se sentir ofendidos. Eles não davam a mínima para o quanto eles eram nojentos. Só o que importava para eles era a sua fome insaciável.

– Sua vez, General – as palavras de Dallas tiraram Stark dos seus pensamentos.

Ele rapidamente passou por cima da cerca.

– Ok, vamos nos espalhar e formar uma linha afrouxada, e então vamos subir com essa linha montanha acima.

Eles estavam andando por cerca de quinze minutos, abrindo caminho através de uma vegetação rasteira marrom devido ao inverno e cheia de detritos da floresta. Então encontraram uma estrada de terra acidentada em que mal cabia um quadriciclo, apesar de ser óbvio que ela tinha sido usada recentemente.

– Isso não parece nada bom – Stark disse. – Tenente, você viu algum carro na propriedade daquela senhora?

– Sim, senhor. Vi algumas dessas coisas caras que parecem carrinhos de golfe melhorados. Ela foi dirigindo um deles até o portão para falar comigo.

– Um Polaris – Stark disse, analisando os rastros.

– Perdão, senhor?

Stark levantou os olhos para Dallas.

– Esse é o nome desses veículos. E esses rastros parecem ter sido feitos por um deles. Pode não ser tão ruim quanto eu pensei. A velha senhora pode realmente ter dado uma circulada por aí procurando invasores, mas vamos seguir essa trilha por mais um tempo para ter certeza.

– Sim, senhor!

Depois de mais ou menos trinta minutos de caminhada, ouviu-se um grito à direita de Stark.

– Alto!

Stark pegou o seu arco sempre presente, preso às suas costas, e engatou uma flecha. Seis veados, completamente assustados e de olhos arregalados, passaram saltitando por eles, fazendo os soldados vermelhos se agitarem confusos, enquanto olhavam fixamente a carne de veado em movimento, claramente considerando se deveriam perseguir a presa ou esperar por um jantar mais delicioso e que se movimenta mais devagar com apenas duas pernas.

Stark franziu o cenho de desgosto.

– Dallas! Mantenha esses soldados sob controle. Ninguém mata um veado sem a permissão de Neferet. Cuide para que essas máquinas carnívoras entendam isso.

– Sim, senhor! – Dallas voltou correndo pelo caminho.

Stark podia ouvi-lo gritando para os tenentes do Exército Vermelho. Pela segunda vez naquela noite, ele ficou muito irritado com o fato de o General Dominick e seu pelotão de soldados terem aparentemente desaparecido sem explicações alguns dias atrás. Dominick era amplamente reconhecido como o mais implacável e inteligente dos generais vermelhos, o que significava que os seus soldados eram sempre os mais disciplinados.

– Maldito Exército Vermelho! – Stark resmungou. Ele tentou lembrar a si mesmo para tentar convencer Neferet a considerar a retirada progressiva do máximo possível dos vampiros vermelhos do dia a dia da guerra, e somente usá-los durante as batalhas principais contra os exércitos humanos ou a Resistência. – Eles fazem mais mal do que bem.

Isso sem mencionar que ele achava repugnante que a mordida de qualquer novato ou vampiro Marcado como vermelho fosse venenosa para humanos, inevitavelmente os matando e fazendo com que ressurgissem em três dias como coisas grotescas como zumbis, cuja mordida também era contagiosa.

– E eles têm um mau cheiro horrível.

– Senhor, os soldados estão sob controle – Dallas disse, ofegante, ao chegar correndo perto de Stark.

Stark soltou um grunhido.

– Então vamos em frente de novo. Ficar rastejando por esta montanha não é minha escolha ideal para passar a noite.

A fileira de soldados continuou se movendo, serpenteando pelo caminho, enquanto seguiam o que mal podia ser chamado de estrada de terra. Logo a trilha dobrou drasticamente para a direita, e então seguiu quase em linha reta. Stark suspirou e se concentrou na missão, não gostando nada de sentir o ar mais frio e úmido. Ele tentou lembrar se havia previsão de gelo ou neve. Ele deu uma olhada no seu telefone e praguejou em voz baixa.

É claro que não tem um maldito sinal aqui no meio do nada.

De repente, acima dele, um corvo começou a voar em círculos e a grasnar, como se estivesse irritado por estarem invadindo a sua montanha.

– Vamos apertar o passo – Stark disse a Dallas. – Volte descendo a fila e diga a eles para me acompanharem.

General Stark não esperou por uma resposta. Balançando os braços, ele começou a subir correndo a trilha de terra vermelha, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.


Outro Kevin

Dragon Lankford agarrou o braço de Kevin, puxou-o bruscamente, fazendo com que ele ficasse em pé, e o arrastou até a boca da pequena caverna. A sua espada montante estava desembainhada e ele ficou na frente de Kevin, segurando a ponta da lâmina afiada contra o seu pescoço.

– Quantos são? – Dragon o interpelou.

Vovó Redbird tentou correr para ficar ao lado de Kevin, mas Anastasia segurou o seu pulso, não permitindo que ela fosse até ele.

– Não, minha amiga. Isso foi além da nossa boa vontade. Dragon precisa lidar com o seu neto agora.

– Quantos? – Dragon repetiu, e a espada tirou uma pequena gota de sangue do pescoço de Kevin.

– Mate-me. Corte a minha cabeça. Faça o que quiser, mas isso não vai mudar a minha resposta porque eu estou dizendo a verdade. Eu não sei o que está rolando lá fora. Eu não sei como eles acharam a sua montanha, mas isso não tem nada a ver comigo.

– Então, é só uma coincidência que um tenente do Exército Vermelho apareça aqui na noite em que os soldados do Exército Vermelho fazem o mesmo? – A voz de Dragon estava pesada com uma fúria mal controlada. – Você sabe quantos inocentes estão aqui? Dezenas! Eles estão espalhados ao nosso redor em esconderijos de caça. Humanos e novatos azuis. Alguns são... apenas crianças. Todos procurando segurança e liberdade, e eles vão perder a vida esta noite. Por sua causa!

– Não! – Vovó Redbird gritou. – Kevin estava comigo. Ele está dizendo a verdade! Eu juro pela minha vida.

Dragon se dirigiu apenas a Kevin.

– Ela vai morrer hoje também. De uma maneira horrível. E, se eles deixarem sobrar algo, ela vai acordar como uma máquina de comer, voraz e irracional. A sua alma só pode estar completamente repleta de Trevas para fazer uma coisa dessas.

Kevin virou a cabeça para o outro lado, incapaz de olhar para a sua avó.

– Sinto muito, Vó. Eu nunca deveria ter deixado você me trazer aqui. Eu sabia que era perigoso demais. Eu devia ter espionado Neferet como você me disse para fazer e deixar que você viesse falar com a Resistência no meu lugar. Eu sinto muito, muito mesmo.

– Eles estão vindo pela trilha oeste! – Um vampiro azul que Kevin não reconheceu arrastou-se pelos últimos metros montanha acima até chegar onde eles estavam.

– Apaguem todas as chamas! – Dragon virou a cabeça para olhar para a sua companheira. – Meu amor, leve os inocentes até lá embaixo pela parte de trás da montanha. Pode ser que eles não nos tenham cercado. – O seu olhar duro encontrou Kevin de novo. – O resto de nós vai ficar aqui e ganhar tempo para que vocês escapem.

– Não. Eu não vou deixar você – Anastasia falou baixo, mas com firmeza. – Sylvia está acostumada com a natureza de Oklahoma. Ela pode guiar os inocentes. Eu vou ficar com o meu companheiro. Eu também sei empunhar uma espada, e prefiro morrer a seu lado.

Kevin viu a dor que atravessou os olhos de Dragon Lankford e o desespero que curvou os seus ombros, e ele não conseguia aguentar aquilo.

Que diabos Zoey faria?

Ele sabia o que ela não faria. Zoey Redbird – a Grande Sacerdotisa que comandava a Morada da Noite de Tulsa com força e honestidade – não iria desistir.

– O sangue da minha companheira vai estar nas suas mãos – Dragon triturou as palavras por entre dentes cerrados. – E depois de acabar com você, que tipo de recepção você acha que Nyx vai lhe oferecer? Essa é a parte boa de morrer. Eu vou estar lá, no Bosque da Deusa, para testemunhar a punição de Nyx.

Enquanto falava, Dragon pressionou a espada com mais força contra o pescoço de Kevin.

Kevin reagiu automaticamente. Ele se jogou para trás, gritando:

– Eu faria qualquer coisa para consertar isso! – As suas costas feridas arderam quando ele colidiu com a parede de pedra da caverna, abrindo os poucos pontos que Anastasia já tinha dado. Kevin cambaleou e caiu, enquanto o sangue escorria pelas suas costas e manchava as pedras.

Instantaneamente, houve uma mudança tão grande no ar que penetrou a fúria de Dragon. Ele congelou com a espada sobre a cabeça, pronta para dar um golpe mortal.

Depois de tudo isso, Kevin pensou que foi semelhante ao modo como o ar ficou em volta da fenda entre o seu mundo e o de Zo, mas, naquele momento, tudo que ele conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto quando seres etéreos começaram a se materializar ao redor dele. Alguns se ergueram das rochas de arenito da caverna. Alguns desceram dos céus, como penas flutuando até o chão. Outros ainda pereceram emergir de dentro da casca dos carvalhos antigos, cheios de nós, pendurados precariamente no precipício ao redor deles.

Eles eram muito diferentes entre si. Muitos pareciam um cruzamento entre folhas caídas e borboletas. Então uma leve rajada de vento soprou e eles mudaram de forma, tornando-se repentinamente belas mulheres aladas. Algumas lembravam beija-flores, só que tinham cabeças delicadas de mulheres incrivelmente bonitas e de homens lindos. Alguns pareciam fogos de artifício de Quatro de Julho, só que menores e translúcidos. Vários tinham forma de vaga-lumes... grandes e lindos vaga-lumes que não deviam estar esvoaçando por aí em pleno inverno. E outros ainda pareciam sereias e águas-vivas cintilantes.

Todos estavam descendo sobre Kevin.

– Magia Antiga! Magia Antiga! – grasnou o corvo, empoleirado no ombro de Anastasia.

A bela Sacerdotisa de repente estava agachada ao lado de Kevin, observando as criaturas com curiosidade e reverência.

– Sim, Tatsuwa! Esses espíritos são Magia Antiga. Nunca pensei que veria um, já que a Magia Antiga quase desapareceu do mundo.

Uma figura com asas de borboleta, que era uma mulher voluptuosa do tamanho aproximado da mão de Kevin, inteiramente nua, exceto por um vestido feito de brilho, esvoaçou até ele, concedendo um olhar suplicante.

– O-o que eles querem? – Kevin gaguejou.

– Você os invocou. Pergunte a eles – ela disse.

– Hum, o que vocês querem? – Kevin perguntou inseguro para o espírito flutuante.

“Nós aclamamos o chamado.

Vosso sangue é verdadeiro.

Qual é o vosso desejo

Que devemos realizar?”

Kevin não hesitou.

– Escondam-nos! Não deixem que os vampiros que estão subindo a montanha encontrem nenhum de nós que já estamos aqui em cima – ele fez uma pausa e então acrescentou: – Por favor.

“Se fizermos isso por vós,

O que fará por nós?”

Kevin abriu a boca para responder, mas Anastasia colocou a mão no seu braço e o deteve. Imediatamente, ela sussurrou:

– Tome cuidado. A Magia Antiga é poderosa. E também nunca é gratuita.

– O que você acha que eles querem? – Kevin sussurrou de volta.

– Os espíritos são ligados aos quatro elementos físicos: ar, fogo, água e terra. Encobrir esta montanha deve ser uma tarefa fácil para eles. Ofereça o seu sangue, mas apenas a quantidade que você já verteu.

Kevin limpou a garganta e então respondeu ao espírito cintilante.

– Eu vou pagar vocês com o meu sangue, mas apenas o sangue que eu já derramei. Isso é o suficiente para nos manter a salvo?

O espírito rodopiou no ar e foi cercado por todas as outras diferentes criaturas. Kevin podia ouvir que elas estavam murmurando, mas as palavras eram estranhas. Não como outra língua, mas como um modo diferente de pensar e de formar sons.

Então ela flutuou até pairar acima dele de novo.

“Nós aceitamos vosso preço esta noite

Já que vosso sangue é forte com a Luz.

Nós selamos este acordo convosco.

E é dito – que assim seja!”

Quando Tatsuwa grasniu um lamento, Anastasia se afastou rapidamente do caminho, juntando-se a Dragon, que estava a poucos metros de Kevin, com a espada ainda desembainhada, enquanto os espíritos cobriam o jovem vampiro vermelho. No início Kevin se contraiu, esperando que eles causassem ainda mais dor do que ele já tinha suportado aquela noite, mas o toque deles era estranhamente suave, como chuva fria caindo em uma floresta em chamas. Os espíritos também cobriram toda a parede rochosa da caverna, o chão de terra ao redor dele e até a ponta da espada de Dragon – qualquer lugar onde houvesse uma gota salpicada do seu sangue. Enquanto bebiam, os seus corpos resplandeciam com luz e cor, e eles fizeram tantos sons de estalos e gorjeios animados que fizeram Kevin sorrir.

Então, com a mesma rapidez com que haviam surgido, eles desapareceram.

E a noite ao redor deles mudou totalmente.


Outro Stark

Começou de modo inocente. Stark sentiu a direção da fria brisa da noite se alterar e se acentuar. Ele estava suando por causa da subida da montanha, então o seu rosto úmido registrou instantaneamente a mudança e ele estremeceu, apertando o passo.

E então o céu da noite começou a cuspir gelo.

Stark escorregou em uma pedra, subitamente lisa com o gelo, tão escura quanto a floresta ao redor deles, e teve que girar os braços para não cair. Ele abaixou a cabeça, protegendo-se da chuva fria, e diminuiu o ritmo.

Depois disso a névoa começou, vinda de lugares mais baixos ao redor deles, e erguendo-se das entranhas da montanha. Atrás dele, alguém gritou alto, e alguns instantes depois, Dallas estava ofegante ao seu lado.

– Senhor, os homens estão escorregando. Um dos soldados acabou de cair e espatifou a cabeça contra uma pedra.

Caminhando com dificuldade, Stark parou.

– O tempo virou. Eu devia ter conferido a previsão antes de sair da Morada da Noite.

– Senhor, eu conferi – Dallas disse, enxugando o rosto com as costas da manga do seu casaco encharcado. – A previsão era de frio e tempo firme.

– Isso que dá escutar Travis Meyer e o News on Six – Stark resmungou. – Bom, diga aos oficiais vermelhos para levarem os seus soldados de volta para os utilitários. Você e eu vamos em frente, continuar vasculhando até o topo da montanha para que eu tenha certeza...

Um grupo de vaga-lumes incrivelmente grandes saiu voando de dentro da névoa, esvoaçando rapidamente na chuva de gelo ao redor como se fossem crianças brincando em uma fonte. Stark ficou olhando fixamente para eles através do gelo, da chuva e da neblina enquanto os seus corpos de inseto se alteravam para corpos de mulheres nuas e depois novamente para insetos.

Stark sentiu o seu sangue ficar tão frio quanto o gelo que caía.

– Magia Antiga – ele falou baixo.

– O que foi, senhor? – Então os insetos incandescentes atraíram a visão de Dallas. – Ei, vaga-lumes! Merda, que coisa estranha.

– Não são vaga-lumes. São espíritos. Vamos recuar, Dallas. Diga aos soldados que estamos indo embora. Agora!

Dallas olhou confuso para Stark, mas saiu apressado para fazer o que ele ordenou. Stark fez uma pausa só por um segundo antes de segui-lo trilha abaixo.

Os espíritos eram realmente espetaculares – tão bonitos quanto haviam sido descritos nos tomos antigos que o seu professor de Feitiços e Rituais insistiu que a sua classe avançada lesse, de ponta a ponta. Stark havia ficado imerso na aula de Feitiços e Rituais, principalmente porque ele adorava ler. A metade final do último livro mais avançado usado na aula era dedicada à Magia Antiga e principalmente aos espíritos elementais.

Stark vasculhou a memória enquanto se afastava devagar da nuvem cintilante de criaturas. Os espíritos eram poderosos, mas tão instáveis quanto a Magia Antiga que os constituía – em outras palavras, eles podiam ajudar você em determinado momento, e se voltar contra você no instante seguinte.

O que Dallas falou sobre esta montanha? Era uma terra ancestral da Nação Creek.

– Faz sentido – ele murmurou para si mesmo enquanto continuava o caminho de volta, relutante em desviar o olhar dos espíritos. Eles devem ter sido protetores da terra, aliados da Nação Creek quando os indígenas viviam no local, e não compreendem que o mundo mudou, seguiu em frente. Eles ainda continuavam protegendo a terra.

Ele alcançou a fila de retirada, ordenando aos soldados que andassem o mais rápido possível para sair daquela terra. Dallas correu na frente deles, controlando a eletricidade o suficiente para que o grupo passasse sobre a cerca novamente. Na hora em que Stark chegou ao utilitário e Dallas manobrou o veículo líder em que eles estavam para voltarem para Tulsa, a estrada estava quase intransitável por causa do gelo.

– Senhor, o que diabos aconteceu lá em cima? – Dallas perguntou.

– A confirmação de que nenhum membro da Resistência anda rondando por aquela montanha. Magia Antiga com esse tipo de proteção não admite intrusos. Aquela mulher, Tina, é dona de toda a montanha?

– Sim, senhor.

– Ela deve ter sangue Creek. É por isso que os espíritos a deixam zanzar por ali, fingindo procurar por intrusos – Stark bufou. – Intrusos, caramba! Eu detestaria ver o que a Magia Antiga faria com qualquer um que invadisse aquela terra.

– Bom, pelo menos nós sabemos que os habitantes não estão mentindo – Dallas disse. – Não sei quase nada sobre Magia Antiga, mas eu vi aqueles insetos. Eles brilhavam como luzes. Deve ser isso que as pessoas falaram que viram lá em cima.

– Só pode ser. – Stark hesitou. – Foi só isso que você viu? Apenas insetos brilhantes grandes?

– Sim, isso não é estranho o suficiente?

– É sim – Stark respondeu, perguntando-se por que ele se sentia aliviado por Dallas não ter visto os espíritos se transformando em formas semi-humanas.

– Bom, parece que a gente não tem que se preocupar em vigiar aquela montanha. Ótimo. Muitos espinheiros malditos, pedras e coisas assim para o meu gosto. Além disso, eu odeio o campo. Sou um cara da cidade.

– Tenente, quero que você mantenha a boca fechada sobre o que nós vimos lá em cima. A última coisa que precisamos é de um bando de novatos idiotas pensando que seria uma aventura ir até lá para dar uma olhada na Magia Antiga.

– Como quiser, senhor, mas não pareciam perigosos. Eles parecem vaga-lumes anormalmente grandes, até são bem bonitinhos.

– Dallas, só um daqueles insetos bonitinhos tem a capacidade de devorar você inteiro... e eu quero dizer você inteiro mesmo. Os espíritos conseguem drenar almas tão facilmente quanto drenam sangue.

– Pelas tetas de Nyx! Você está brincando?

Stark deu um olhar duro para ele.

– Parece que estou brincando com você, Tenente? E nunca mais use o nome da Deusa dessa forma perto de mim de novo.

– Sim, senhor. Desculpe, senhor.

– Cale a boca e dirija.

O tenente obedeceu, deixando o seu general contemplando a noite.

A Magia Antiga já deveria ter desaparecido quase completamente do mundo. Os livros dizem que ela só pode ser encontrada na Ilha de Skye, e ninguém tem permissão de entrar lá há séculos. Stark não conseguia imaginar o que os espíritos estavam fazendo ali. O fato de ser uma terra de indígenas americanos que eles ainda estavam protegendo fazia sentido.

Ainda assim não explicava o porquê de estarem despertos e ativos o bastante para serem vistos por habitantes humanos do local.

Será que isso tem alguma coisa a ver com a guerra de Neferet?

Um arrepio de mau pressentimento desceu pela coluna de Stark, mais frio do que o gelo que parou de cair assim que saíram da Lone Star Road.

Stark tinha certeza de que ele sabia a resposta para a sua pergunta. O que ele não sabia era se era um bom ou mau sinal que os espíritos estivessem ficando ativos. Ele também não sabia que diabos fazer com a sua descoberta.

O seu dever era reportar isso a Neferet, mas Stark era um Guerreiro Filho de Erebus juramentado antes de se tornar general de Neferet, e o seu primeiro dever de lealdade era com a Deusa Nyx.

A verdade secreta que Stark mantinha escondida lá no fundo era que ele não confiava em Neferet, nem concordava com a guerra dela.

Claro, ele fazia parte de um grupo muito grande e firme de vampiros azuis que exigiam um melhor tratamento para os humanos. Antes da guerra, ele estava farto daquela besteira de separados-mas-iguais que os políticos humanos empurraram para cima deles por tanto tempo. Ele até apoiou o começo da guerra de Neferet, mas depois de poucos meses ficou óbvio que Neferet nunca quis criar uma ordem mundial onde todos fossem iguais. Neferet queria mandar e subjugar todos os humanos.

Stark não era um vampiro vermelho. Ele tinha princípios morais. Ele manteve a sua humanidade. E ele não era um assassino. Ele era um Guerreiro, que jurou proteger a Grande Sacerdotisa que recebeu de Nyx o dom de liderar a nação dos vampiros.

Mas e se os boatos fossem verdadeiros? E se Neferet não fosse mais uma seguidora de Nyx, e se a Deusa realmente tivesse se afastado da sua Grande Sacerdotisa?

– Eu rezo a Nyx por um sinal... – Stark murmurou para o seu reflexo no vidro escurecido.

– Senhor? Disse algo?

– Só estou falando comigo mesmo – Stark respondeu. Ele fechou a boca, mas o sussurro na sua mente não parou.

Eu tenho rezado por um sinal de que Neferet está seguindo a vontade da Deusa. Isso foi um sinal? Ou a aparição da Magia Antiga é uma indicação do contrário?

Stark esfregou a testa, odiando aquela dor de cabeça que estava aumentando. Até ele ter certeza de que Neferet havia renunciado Nyx, ele iria cumprir o seu dever. Ele iria proteger a sua Grande Sacerdotisa.

No entanto, ele também manteria a sua mente e os seus olhos bem abertos e, pelo menos por enquanto, não contaria a ninguém sobre os detalhes mágicos do que tinha acontecido na montanha aquela noite.


8

Outro Kevin

– Eles bateram em retirada! Todos eles! – um vampiro azul alto e loiro entrou correndo na pequena caverna, tirando gelo de uma tatuagem de adulto formada por nós celtas, enquanto se aproximava de Dragon.

– Cole, você tem certeza? – Dragon perguntou.

– Sim. Estava uma confusão lá fora, mas eu vi o que aconteceu. Foi bem lá no nosso primeiro posto de controle. Um bando de coisas que pareciam vaga-lumes saiu da neblina na frente do General Stark. Ele imediatamente ordenou a retirada. Não consegui chegar perto o bastante para entender o que ele estava dizendo, mas eu ouvi claramente as palavras Magia Antiga, e deu pra ver que ele parecia assustado. Pra valer.

– Oh, graças à Deusa! – Vovó Redbird desabou no chão de pedra bruta da caverna.

– Vó! Você está bem? – Kevin tentou ir até ela, mas as suas pernas se recusaram a funcionar, e ele não conseguiu fazer muito mais do que encostar dolorosamente contra a parede da caverna.

– Sylvia? – Anastasia começou a se afastar de Kevin para ir até a velha senhora, mas Vovó Redbird levantou uma mão para detê-la.

– Eu estou bem. Só precisava sentar. Acho que o meu pico de adrenalina já passou. Por favor, cuide do meu neto e não se preocupe comigo. – Ela abraçou a si mesma e estremeceu.

– Meu amor, você acha que nós podemos acender pelo menos algumas fogueiras de novo? – Anastasia perguntou para Dragon.

O Mestre da Espada olhou para o gelo e a névoa que ainda encobriam a montanha.

– Sim. Se eles voltarem, não será hoje. As estradas estarão intransitáveis e a neblina é excelente para ocultar as fogueiras. Acendam aquela no fundo da caverna. Cole, vá até os esconderijos de caça e diga a todos que é seguro manter as fogueiras acesas enquanto o gelo e a neblina durarem – Dragon disse, e Cole desapareceu na noite. Então Dragon encarou Kevin. – Deu certo. Os seus espíritos nos salvaram.

Kevin deu de ombros e fez uma careta de dor.

– Eles não são meus espíritos, na verdade. Eles só gostam do meu sangue.

– Porque o seu sangue contém o poder dos seus ancestrais, que já foram parte desta terra e destas rochas – Sylvia Redbird afirmou. – E porque é um sangue bom e honesto, não manchado por mentiras e ódio. Você acredita agora, Dragon Lankford?

– Eu acredito que o seu neto nos salvou, mas ainda há a questão sobre como o Exército Vermelho sabia que nós estávamos aqui e por que eles vieram na mesma noite que Kevin.

– Eu não posso responder nenhuma dessas perguntas agora – Kevin disse. – Não enquanto estou aqui. Mas eu posso conseguir respostas para todos nós de dentro da Morada da Noite.

– Você acha que eu deixarei você ir embora?

– Não. Eu acho que você me deixará lutar com vocês. Eu quero fazer parte da Resistência. Eu quero espionar para vocês... para nós.

– Impossível! – Dragon exclamou.

– Por que é impossível, Bryan? – Anastasia se agachou ao lado de Kevin de novo, reexaminando as suas costas, enquanto o seu corvo encontrou um poleiro na parede escarpada da caverna.

Kevin achou que os olhos negros do corvo pareciam tão céticos quanto os de Dragon.

– Ele é um vampiro vermelho! Ele não pode fazer parte da Resistência. Nós estamos combatendo a espécie dele.

– Vocês não estão combatendo a minha espécie – Kevin argumentou. – Não há ninguém mais da minha espécie neste mundo, e é por isso que eu sou o espião perfeito. Ninguém na Morada da Noite vai prestar atenção em um tenente do Exército Vermelho. Eles não dão a mínima para nós, exceto para nos considerar descartáveis. Eu posso ir a qualquer lugar, ouvir o que qualquer um fala... e eles nem vão notar.

– Você também pode ser promovido a general do Exército Vermelho e ter um esquadrão de homens seguindo suas ordens. Por que você escolheria se colocar em risco? – Dragon perguntou.

– Porque eu sou uma pessoa decente! – Kevin desabafou. – Afe, o que há de errado com você? Qualquer um que não seja um monstro ou um idiota ambicioso faria o mesmo.

– Isso não é verdade, Kevin. – Anastasia pousou uma mão suave em seu ombro. – Há muitas pessoas que nós chamaríamos de decentes, tanto vampiros quanto humanos, que não farão nada além de ficar sentados nos bastidores, balançando a cabeça para o estado do mundo.

– Bom, eu acho que, se você é uma pessoa decente e não se levanta contra monstros, então você é pior do que eles – Kevin disse. Ele virou a cabeça e encontrou os olhos azuis inconfundíveis de Anastasia. – Pode ir em frente e começar a me costurar de novo. Estou pronto como jamais estarei.

Ela sorriu gentilmente para ele.

– Isso não vai ser necessário. Não depois de a Magia Antiga ter feito o trabalho. – Anastasia indicou com um gesto as costas dele.

Kevin esticou cuidadosamente o pescoço e encontrou uma cicatriz sensível e elevada e pele limpa onde apenas alguns minutos atrás havia um corte profundo e sangrento.

– Mas isso é impossível!

– Aparentemente, não. Quando os espíritos beberam o seu sangue, eles também tocaram todo o seu ferimento, e o toque deles o curou. Porém, não completamente. Você vai ficar fraco, dolorido e sensível por um tempo, e você vai ficar com uma cicatriz grande e horrível, mas você não precisa mais da minha habilidade em dar pontos.

Vovó Redbird se aproximou de Kevin, inclinando-se para examinar suas costas nuas.

– Isso é extraordinário! U-we-tsi, os espíritos realmente fecharam o seu corte.

– Hum – foi tudo que Kevin pensou em dizer.

– Isso diz algo a você sobre o caráter dele? – Dragon perguntou à sua companheira.

– Só que os espíritos gostam dele e, já que eles são neutros, nem bons nem maus, isso não quer dizer muita coisa – Anastasia respondeu. Então ela se levantou e pegou as mãos calejadas pela espada do seu companheiro. – Bryan, acredito que nós já conhecemos o caráter de Kevin. Ele definitivamente não é como os outros vampiros vermelhos. A gente devia confiar nele – ela afirmou, e Dragon abriu a boca para responder, prestes a protestar, mas as palavras de Anastasia o silenciaram. – Ele é diferente. A sua humanidade está intacta. E ele conseguiu brandir a Magia Antiga. Nem mesmo Neferet consegue fazer isso.

– Ainda – Kevin disse.

Dragon se virou para ele.

– Explique esse ainda.

– No mundo da minha irmã, eles de fato derrotaram Neferet, mas não conseguiram matá-la porque ela se tornou imortal.

Anastasia arfou em choque.

– Ela aprendeu a brandir a Magia Antiga!

– Vó, você está com o diário?

Ela assentiu levemente e indicou o local onde os mantimentos do Polaris tinham sido empilhados, no fundo da pequena caverna.

– Estou. Está na cesta que eu enchi de cookies.

– Eu trouxe uma cópia do diário que Neferet escreveu quando ainda era humana. É do mundo da minha irmã, mas nele há provas de que a Magia Antiga vem influenciando Neferet desde que ela era criança.

– E o fato de o diário ter sido escrito por outra versão de Neferet não significa que não tenha relevância para nós – Vovó disse. – Como Kevin já explicou, quem nós somos em cada mundo permanece essencialmente igual. São apenas as nossas experiências que mudam. Eu vou dar o diário a vocês. Façam cópias dele. Repassem para os outros. Todos nós devemos lê-lo para obter o máximo de informação possível a respeito de maneiras de combater o mal de Neferet.

– Concordo. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos, principalmente se essa ajuda vem na forma de um jovem vampiro que nos traz informações e também consegue brandir Magia Antiga – Anastasia disse.

Dragon suspirou fundo e foi até Kevin, agachando-se ao lado dele, da mesma forma que a sua companheira tinha feito.

– Eu não gosto de ser colocado em uma posição na qual preciso confiar em um inimigo.

– Eu não sou seu inimigo.

– Prove.

– Acabei de tentar provar – Kevin respondeu. – E vou continuar tentando provar isso a vocês. Eu vou para a Morada da Noite espionar para vocês. Vou contar tudo que eu ouvir por lá. Vou ajudar de todas as formas que eu puder.

– O meu neto está falando a verdade, Dragon. Você vai ver – Sylvia Redbird disse, batendo os dentes de frio.

– Vó, você tem que ir para o fundo da caverna onde está a fogueira.

– Eu estou bem aqui. Tem muita fumaça lá atrás.

– Garoto, se você quer fazer algo para cair nas minhas graças, pense em um jeito de fazer com que a Magia Antiga nos ajude a tornar esta caverna habitável – Dragon falou baixo, mais para a noite do que para Kevin, quando se levantou e encarou a chuva congelante e a névoa lá fora.

Kevin olhou para a sua avó e para Anastasia.

– Vocês acham que eu poderia mesmo fazer isso? Conseguir que os espíritos ajudem a deixar esta caverna maior e melhor?

– Claro que sim – Anastasia respondeu sem nenhuma hesitação. – Como eu disse quando eles apareceram, espíritos estão sempre ligados aos elementos, e a terra é um dos elementos. Não seria um exagero imaginar espíritos da terra moldando uma caverna no seio desta montanha.

– Beleza! Eu vou só chamar os espíritos e perguntar a eles...

– Lembre-se, Kevin, você nunca deve abusar da Magia Antiga de modo impertinente – Anastasia o interrompeu. – É uma das magias mais poderosas do mundo... e também uma das mais imprevisíveis.

– Mas os espíritos fizeram exatamente o que eu pedi – Kevin falou.

– Ah, eles sempre mantêm a palavra, desde que sejam pagos. O problema vem com o pagamento – Anastasia disse.

– Por favor, explique – Vovó Redbird pediu.

– É simples e complicado. Simples porque os espíritos concordam com um pagamento por um serviço. Quando é algo parecido com o que acabaram de fazer, uma tarefa específica por um favor específico, tudo normalmente corre bem. Quando o pagamento não é executado imediatamente é que você pode se meter em encrenca, e eu quero dizer uma encrenca profunda envolvendo sua alma, que pode, inclusive, ser fatal.

– Se eu entendi bem o que você disse, então Kevin deveria concordar apenas com um pagamento que seja imediato e muito específico, certo? – Vovó Redbird perguntou.

– Bem, sim e não. Mesmo dessa forma, ele ainda pode ter problemas. Essa é outra parte complicada do processo. Os textos ancestrais alertam que usar tanto poder é perigoso e pode ferir o vampiro que o está brandindo.

– Mas eu já tenho afinidade com os cinco elementos. Assim como a minha irmã no outro mundo que eu acabei de visitar. Ela é uma boa Grande Sacerdotisa, das boas mesmo. Ela derrotou Neferet. Eu realmente acho que ela não foi ferida por isso.

– As afinidades elementais são concedidas por Nyx e, portanto, elas não são Magia Antiga. É impressionante que você tenha essas afinidades, juntamente com seu sangue cherokee. Deve ser esse o motivo pelo qual os espíritos ouviram o seu chamado – Anastasia disse. – E em relação ao que os textos querem dizer quando falam que o vampiro pode ser ferido por lidar com esse poder... sinto muito por simplesmente não ter conhecimento suficiente para explicar melhor. Eu nunca vi Magia Antiga antes, nem ninguém que pudesse invocá-la. Tudo que eu sei é o que li em textos antigos.

– Bom, estou querendo arriscar e usá-la, pelo menos mais uma vez. Você acha que eles vão me ouvir de novo?

Ela deu de ombros.

– Eu não posso responder isso, Kevin. Nem posso responder se você deveria invocá-los de novo. Eu não conheço a natureza da sua alma. Eu não sei o quanto você é suscetível às Trevas.

– Eu conheço – Vovó Redbird afirmou. – A alma dele é boa. Boa de verdade. Ele não será sujeito às Trevas, ao ódio nem ao mal. Mesmo antes de Nyx restaurar a sua humanidade naquele outro mundo, ele combateu a fome e a insanidade que muitos de nós estão chamando de Maldição Vermelha. U-we-tsi, eu acredito que você pode ajudar a endireitar o equilíbrio entre Luz e Trevas porque você pode brandir Magia Antiga. Mas não se esqueça das palavras de Anastasia: o pagamento tem que ser específico e feito imediatamente.

– Eu vou me lembrar disso. Prometo. Mas, hum, vocês acham que eu tenho sangue o suficiente agora para isso?

– Não, você não tem – Anastasia respondeu.

– Eu tenho uma ideia para um pagamento alternativo. – Vovó levantou a mão e a colocou sobre a bolsinha que fazia uma protuberância embaixo da sua blusa.

– Espere aí, não. Você não pode dar a sua bolsa medicinal – Kevin disse.

– Posso e vou. As minhas duas bolsas medicinais.

Kevin colocou a mão sobre a réplica que repousava no meio do seu peito.

– Não sei, Vó. Será que é uma boa ideia abrir mão do seu poder assim?

– Ah, u-we-tsi, uma bolsa medicinal não tem poder por si só. Ela apenas simboliza o poder de quem a fez. E eu posso simplesmente fazer outra, assim como provavelmente a Outra Sylvia Redbird fez no mundo de Zoey – ela puxou a bolsa com miçangas debaixo da sua blusa e levantou a tira de couro por sobre a cabeça, entregando-a para Kevin. – Invoque os seus espíritos.

Kevin pegou a bolsa medicinal depois de apertar a mão fria de sua avó, e então ele levantou os olhos para Dragon.

– Pode me ajudar a ficar em pé?

O poderoso Guerreiro segurou o cotovelo de Kevin, erguendo-o. Kevin ficou em pé, cambaleando levemente quando pontos brilhantes apareceram na sua visão, mas ele logo se estabilizou. As suas costas estavam sensíveis e doloridas de um ombro a outro, mas a sua tontura passou. Ele não ia conseguir correr uma maratona, mas tinha certeza de que não iria cair. De novo.

Então ele percebeu que não tinha a menor ideia do que fazer em seguida.

– Hum, Anastasia, como eu invoco os espíritos?

– Quando eles vieram até você antes, foi na hora em que você tinha aberto o seu ferimento, então estava sangrando bastante, e você tinha acabado de dizer algo sobre querer consertar as coisas.

– Então, você acha que eu deveria me cortar de novo e depois chamá-los?

– Eles já não estão aqui? – Vovó fez um gesto indicando a noite gelada lá fora. – Você não pode simplesmente pedir que eles voltem até você?

Kevin olhou questionador para Anastasia, que deu de ombros e assentiu.

Ele estalou as juntas dos dedos e balançou as mãos enquanto se movia para mais perto da entrada da caverna. Kevin limpou a garganta, respirou fundo e abriu a boca para gritar sabe-a-Deusa-o-quê, mas hesitou. Talvez eu deva pensar antes de falar... ou, mais especificamente, deva rezar. Kevin fechou a boca. Fechou os olhos. E baixou a cabeça.

Por favor, me ajude, Nyx. Isso tudo está muito acima da minha capacidade... e não estou falando só dos espíritos. Eu quero ajudar a Resistência, mas sou só um garoto. Não sou nem tão velho quanto a Zo, nem tão experiente. Eu prometo que vou tentar fazer a coisa certa e seguir o caminho que você quer que eu siga. Você pode me dar uma ajudinha para que eu continue seguindo esse caminho?

Kevin levantou a cabeça e encarou o gelo e a névoa mágica que tinham afastado Stark.

– Espíritos da água nos protegeram com gelo e névoa... – ele murmurou para si mesmo, pensando em voz alta. – E os espíritos são ligados aos elementos. – Kevin pensou bastante. E então ele deu um suspiro gigante. – Espíritos da terra!

Sorrindo, ele se virou e encontrou os olhares confusos que Anastasia, Dragon e sua avó estavam dando na sua direção.

– Acho que descobri! – Ele encarou a noite de novo e, com mais confiança do que sentia, falou com uma voz alta e clara. – Espíritos do ar, fogo, água e terra, eu sou Kevin... – ele hesitou um instante. E então ele sabia exatamente o que precisava dizer e como tinha que dizer. – Eu sou Kevin Redbird e, com a minha afinidade concedida pela Deusa e pelo meu direito de sangue, o mesmo sangue que pulsou forte nas veias daqueles que foram protetores desta terra, eu invoco vocês, principalmente aqueles que são espíritos elementais da terra! Espíritos que já estão por aí na montanha, por favor, venham até mim!

Foi como se a noite inspirasse fundo, segurasse o fôlego e então, ao expirar, soltasse a magia. Anastasia e Vovó Redbird arfaram quando uma revoada de espíritos, alterando a sua forma de vaga-lumes para fadas aladas, subiu voando desde a parte de baixo da montanha até o alto. Eles pairaram diante da caverna, iluminando a noite gelada, de modo que Kevin pôde ver claramente as rochas enormes que pontilhavam a área íngreme ao redor deles começarem a brilhar. Então figuras emergiram, como se elas estivessem encolhidas dentro das pedras dormindo, aguardando o chamado de Kevin. Eles eram maiores do que os espíritos vaga-lumes – tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ou dois anos. Os espíritos da rocha eram inacreditavelmente lindos. Pareciam não ter um gênero definido; a pele dos seus corpos tinha a aparência exata dos minúsculos veios de quartzo compacto que marmorizavam o arenito de Oklahoma de onde emergiram – brilhavam como se fossem acesos por dentro. Kevin percebeu que eles eram o que a princípio ele achara parecido com fogos de artifício de Quatro de Julho. Os seus pés delicados não tocaram o chão quando eles flutuaram na direção dele.

– Magia Antiga! – o corvo de Anastasia grasniu ao levantar voo da caverna.

Uma movimentação à sua direita e à sua esquerda atraíram a atenção de Kevin, e ele assistiu à casca nodosa dos carvalhos antigos e desfolhados pelo inverno ondular se levantando como ondas de calor de uma estrada asfaltada de Oklahoma no verão. De dentro das árvores, os espíritos se materializaram. Kevin teve que conferir se a sua boca não estava aberta (uma olhadela para Dragon mostrou que o Guerreiro estava de olhos arregalados e de boca aberta). Os espíritos das árvores eram as coisas mais perfeitas que ele já tinha visto desde que fora apresentado para Aphrodite no mundo de Zo. Eram todos femininos. A sua pele era de um marrom terroso como casca de árvore, mas, em vez de ser nodosa e antiga, parecia veludo. O cabelo flutuava ao redor de cada uma delas, caindo bem abaixo da cintura, em todos os tons de folhagens: o verde-limão brilhante da primavera, o jade forte do verão e o dourado avermelhado e fúcsia do outono. Elas eram tão únicas como as árvores de onde cada uma surgira. No começo, Kevin achou que os seus corpos eram cobertos de tatuagens, mas, quando elas se moveram graciosamente para mais perto, ele percebeu que elas eram, na verdade, cobertas por uma miríade de diferentes plantas da floresta – samambaias, cogumelos, flores e musgo – em vez de roupas.

Os diferentes tipos de espíritos elementais formaram um semicírculo em volta da boca da caverna, onde eles aguardavam silenciosamente na chuva congelante que ainda caía. A luz dos espíritos vaga-lumes atingiu o gelo que já tinha começado a cobrir a montanha, fazendo aquela pequena área brilhar como um diamante.

– Olá – Kevin disse, esperando que o sorriso enorme que ele não conseguia tirar do rosto não fosse inapropriado. – Hum, obrigado por terem vindo.

Um espírito da árvore foi mais para a frente. Ela era mais alta que as outras, e o seu cabelo era laranja, vermelho e dourado, como um poderoso carvalho no outono. O seu corpo era flexível, curvilíneo e mal coberto pela folhagem delicada de uma avenca.

– Garoto Redbird, não esperávamos que você repetisse o seu chamado, principalmente porque as nossas crianças ainda estão cuidando do seu pedido.

A voz dela era inesperada – agradável e doce, como a sombra de um velho carvalho em um dia quente de Oklahoma, mas também repleta de uma força que fez os galhos nus de todas as árvores próximas tremerem.

– Peço perdão. Eu não queria perturbar vocês – Kevin disse rapidamente.

– Você nos entendeu mal. Não estamos reclamando. Só quisemos demonstrar surpresa. Nós não somos despertados há muitas eras. As crianças se divertiram esta noite. – Ela ergueu uma mão, com a palma para cima, recolhendo o gelo de modo que ele revestiu a sua pele de veludo escura, deixando-a com a cor de cristal de quartzo esfumaçado. – Embora a água possa ter sido exuberante demais. – Ela chacoalhou o gelo da sua mão e do seu braço, e choveu ao redor dela, com as gotas faiscando na pálida luz da lua. – E elas realmente apreciaram o sabor do sangue indígena, por mais distante que seja a linhagem.

Kevin escutou a sua avó dar um grunhido irônico atrás dele, mas a sua atenção continuou focada no espírito.

– As suas crianças nos salvaram hoje – ele disse. – Por favor, agradeça a elas por mim.

O espírito inclinou a sua cabeça para o lado, como um passarinho, analisando-o.

– Você já agradeceu, Garoto Redbird, com o seu sangue. Você não precisava nos chamar para isso.

– Essa não é a única razão pela qual eu chamei vocês. Eu esperava que vocês pudessem me ajudar de novo.

Os olhos dela, escuros e amendoados, faiscaram com um brilho que Kevin achou ser malicioso.

– De qual outro serviço você precisa e qual o pagamento que você propõe, Garoto Redbird?

– São duas coisas – Kevin respondeu. – Primeiro, nós realmente precisamos que esta caverna fique maior e melhor. Sabe, mais ou menos... – ele hesitou e deu uma olhada rápida para Dragon. Então sussurrou para o Guerreiro. – Quantas pessoas mais ou menos precisam caber lá dentro?

Dragon apenas ficou olhando para ele, ainda boquiaberto, mas Anastasia deu um passo à frente rapidamente.

– Seria adorável se a caverna pudesse abrigar cem pessoas.

Kevin pensou que aquilo parecia coisa demais para pedir, mas ele voltou sua atenção para o espírito da árvore e falou com muito mais confiança do que de fato sentia.

– Vai ser ótimo se a caverna for grande o bastante para abrigar cerca de cem pessoas.

O espírito nem piscou ao ouvir o número.

– E o segundo serviço que você requisita?

– O que as suas crianças fizeram por nós esta noite... escondendo-nos do Exército Vermelho e Azul... bom, hum, vocês poderiam continuar a fazer isso? Por favor? – ele disse. Como ela não respondeu, ele acrescentou: – Nós também temos nossas crianças e inocentes que precisam de um lugar seguro, e esta montanha seria perfeita se a caverna fosse maior. Eu prometo que nós vamos respeitar a montanha. Não vamos construir mais nada aqui, e vamos manter tudo completamente limpo e sem bagunça.

– Ah, entendo. Você está pedindo santuário permanente.

Atrás dele, Anastasia sussurrou alarmada.

– Pare, Kevin. Você está pedindo demais.

Kevin a ignorou. Ele já havia medido se estava brincando com a sorte com os espíritos, mas ele percebeu que tinha duas oferendas para eles, então ele podia também pedir por dois serviços.

– Sim. Eu estou pedindo santuário, na forma de uma nova caverna, e a sua proteção, mas não de maneira permanente. Eu só solicito essa proteção até que eu restaure o equilíbrio entre Luz e Trevas neste mundo. Então nós não vamos precisar nos esconder mais.

– E o que você tem a oferecer como pagamento por esses serviços?

Kevin ergueu a bolsa medicinal que estava em volta do seu pescoço e a segurou, junto com a bolsa gêmea, mostrando-as para o espírito. Ela foi para a frente, não exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não mexeram no chão no qual eles pisaram. Ela chegou tão perto de Kevin que ele conseguiu sentir o seu cheiro – ela tinha todos os aromas do outono: a canela das folhas que caem, o frescor acentuado do primeiro dia frio depois de um longo e quente verão, a riqueza das raízes grossas se estendendo para o fundo da terra fértil. Ao se dar conta de que a estava encarando, ele se sacudiu mentalmente quando ela pegou as bolsas.

O espírito levou as bolsas até seu rosto, cheirou-as e colocou a língua para fora, sentido o gosto de cada uma. Ela piscou os olhos, surpresa.

– Elas são de mundos diferentes.

– São – ele confirmou. – Pagamentos de dois mundos diferentes por dois serviços diferentes.

– O seu pagamento é mais interessante do que poderoso. Vamos ver se é interessante o bastante.

O espírito da árvore deu as costas a ele, voltando-se para os outros que se reuniram ao som do seu chamado em um semicírculo frouxo em volta da frente da caverna. Ela falou rapidamente com eles, usando a estranha linguagem que era mais música do que palavras.

Em resposta, um espírito de cada um dos diferentes grupos deu um passo à frente, fazendo uma série de assobios e sons de estalos parecidos. Depois que todos tiveram a sua vez, o espírito da árvore abaixou a cabeça de leve antes de se voltar de novo para Kevin. Quando ela falou, a sua voz entrou em uma cadência musical repetitiva que o fez lembrar as vozes que ele havia escutado quando os outros espíritos aceitaram o seu sangue mais cedo, só que desta vez o poder na voz do espírito fez uma pressão contra a sua pele como a ameaça de uma tempestade com raios e trovões.

“Nós aceitamos este pagamento – esta magia

de mundos feitos em dois

Formada da sabedoria ancestral e dada

com amor para depois

Em troca –

A terra vai se mover

O ar vai escutar

A água será testemunha

E o fogo que aquece e impunha

Mas atenção ao meu comando, Garoto Redbird

Nem uma árvore viva deve destruir

Ou o nosso acordo irá para sempre ruir

E é dito – que assim seja!”

Então o espírito da árvore abriu a boca de um jeito impossivelmente amplo, dando a Kevin uma visão desconcertante dos seus dentes brancos e afiados, e engoliu uma das bolsas por inteiro. Em seguida, com um movimento tão rápido que para Kevin foi só um borrão, ela atirou a segunda bolsa para o ar, onde ela explodiu. Pedaços dela começaram a cair junto com a chuva de gelo, e o tempo desacelerou quando os espíritos começaram a esvoaçar em volta, alimentando-se dos restos da bolsa medicinal de Vovó Redbird como um cardume de piranhas lindas, mas mortais. Durante todo esse processo, eles piaram, assobiaram e cantaram uma canção sem palavras, mas cheia de alegria.

O tempo acelerou de novo, e o espírito da árvore olhou para um local atrás de Kevin, onde Vovó Redbird estava parada em pé, do lado de dentro da entrada da caverna.

– Mulher Sábia, a sua essência é deliciosa. Você controla o seu próprio tipo de poder da terra. Eu irei até você um dia, se alguma vez você precisar de mim.

Vovó Redbird abaixou a cabeça em um reconhecimento respeitoso para o espírito antes de responder.

– Se algum dia eu tiver uma necessidade tão grande que estiver disposta a pagar o seu preço, eu invocarei você, adorável espírito da árvore.

– Você e esse filho do seu sangue podem me chamar de Oak.

Desta vez, quando sua avó abaixou a cabeça, Kevin a imitou.

– Obrigado, Oak – ele falou.

– Você já me agradeceu. E o seu pagamento estava delicioso. Agora, o seu grupo deve sair da caverna enquanto nós trabalhamos.

Dragon e Vovó Redbird saíram da caverna com Kevin, mas Anastasia fez uma pausa na boca da caverna para fazer um chamado lá para dentro.

– Shadowfax, Guinevere! Venham, vocês dois. Sei que está frio e molhado aqui fora, mas vocês têm que sair da caverna.

Lá do fundo, dois gatos emergiram: um gato maine coon enorme, com cara de descontente, e um gato elegante cor de creme que Kevin tinha quase certeza de que era um siamês. Ambos estavam com as orelhas grudadas nas cabeças enquanto caminhavam até Dragon para pular nos seus braços.

– Pronto. Agora, venha para trás com a gente, Anastasia.

A companheira de Dragon se juntou a eles, e Kevin colocou o braço ao redor de sua avó, tentando protegê-la o máximo que podia daquela chuva que congelava os ossos, mas ele ainda estava fraco e se viu cambaleando, a menos que se apoiasse com força nela. De repente Dragon passou os dois gatos para a sua companheira, e então estava ao lado de Kevin, agarrando o seu outro braço, estabilizando-o o suficiente para que ele conseguisse subir entre duas rochas, que quase os protegiam da umidade. Com Dragon de um lado e sua avó de outro, Kevin observou como, em menos tempo do que tinha levado para expulsar o Exército Vermelho da montanha, os espíritos realizaram um milagre. E então, sem nem mais uma palavra, eles se dissolveram de novo em árvores, em pedras e na noite escura e fria.


9

Zoey

– Só faz alguns dias desde que Kevin foi embora, mas sinto como se fossem meses. Por favor, Nyx, cuide dele e não deixe que ele se meta em muitos problemas. – Eu acendi a vela roxa e então a coloquei aos pés da maravilhosa estátua de Nyx que ficava como ponto principal do jardim entre os prédios da escola e o templo da Deusa. Sua chama tremulou ali, acrescentando a sua luzinha alegre às outras velas oferecidas, cada uma representando uma oração que tinha sido elevada à nossa Deusa.

Então eu dei um passo para trás e me sentei no banco esculpido em pedra ao lado da minha melhor amiga, Stevie Rae.

– Sim, Nyx, por favor, fique de olho no irmão de Z no Outro Mundo – Stevie Rae disse. – E eu entendo o que você quer dizer, Z. É esse tempo. Dois dias atrás a gente estava enterrado em neve, e hoje está fazendo quase vinte graus. Faz com que pareça que passou muito mais tempo. Ei, sabe o que é ainda mais estranho do que o clima de Oklahoma?

– Não, porque o clima de Oklahoma é a coisa mais estranha do mundo.

– Né? Mas a coisa ainda mais estranha é que eu sinto falta disso. Muita. Quer dizer, o clima de Chicago é bem louco também, mas não no nível daqui. Eu sinto falta do gelo, do vento e de como as tempestades aparecem do nada como um estouro da boiada que cai do céu.

– Aham – eu respondi automaticamente, com os olhos fixos no modo como a luz das velas brincava através da pele de mármore de Nyx, enquanto minha mente estava bem longe. Um mundo inteiro de distância, para ser mais precisa.

– Você ficaria surpresa com todas as coisas de que vai sentir falta quando sair de casa.

– Sim. – Meu olhar se desviou da estátua e se voltou para a noite perfeitamente clara e cheia de estrelas.

– Como carrapicho-de-carneiro. Sabe, aquele tipo que machuca quando você puxa o espinho para fora da pele e também quando ele entra em você.

– Aham.

– Ah, e carrapato. Eu morro de saudade de carrapato.

– Sim, eu também.

– Hum, Z. Você não.

– Certo.

– Zoey Redbird, pare de sonhar acordada!

Stevie Rae deu um cutucão no meu ombro. Com força.

– Ei! O que foi isso?

– Z, sério? O que eu acabei de dizer?

Eu mordi a bochecha.

– Hum, alguma coisa sobre lã? O que não faz muito sentido. Você está bem? Eu estava falando sério quando disse que você e Rephaim não precisam voltar para Chicago. Vocês não precisariam ter ficado lá nesse último ano se eu soubesse que você estava triste.

Stevie Rae se virou no banco para me encarar.

– Zoey, você confia em mim, não confia?

– É claro que confio em você.

– Então, por favor, me conte o que tem de errado.

Eu suspirei.

– Não tem nada...

Stevie Rae levantou a mão rápido, com a palma para fora, com um sinal para parar.

– Não. Conte essa pra outro. Eu sei que é mentira e, depois de tudo que a gente passou, é quase ofensivo.

– Ei, você sabe que eu jamais ofenderia você de propósito – eu disse, sentindo-me péssima por ter feito minha melhor amiga se sentir péssima.

– Então me conte o que tem de errado.

Suspirei de novo.

– Estou preocupada com Kevin. Bem, com o Outro Kevin. Não o Kevin daqui. Na verdade, eu e ele vamos nos encontrar no Andolini’s para comer uma pizza antes que as férias de inverno dele acabem.

– Só isso?

– Bom, sim. Quase. Quer dizer, nós ainda não sabemos o que fez todas as rosas ficarem escuras e nojentas antes da visão de Aphrodite, mas, se foi Neferet, eu esperaria que ela fizesse algo mais. Qualquer coisa mais do que isso. E os Guerreiros que fazem guarda na gruta dizem que nada mais aconteceu por lá.

– As rosas voltaram ao normal.

– O quê? Voltaram? Como você sabe disso?

Stevie Rae abriu o sorriso.

– O jardim de rosas é mais uma das milhares de coisas de Tulsa da qual eu sinto falta. Rephaim me fez uma surpresa noite passada e fomos dar um passeio pelos jardins depois de jantar no Wild Fork. Foi quando ele me deu isto. – Ela apalpou o colar de prata cintilando no seu pescoço. Pendurada na correntinha brilhante, havia uma réplica perfeita do estado de Oklahoma como um pequeno talismã.

– Own, que lindo. Eu nem tinha reparado. Desculpe.

– Z, tem muita coisa que você não está reparando nos últimos dias. Eu... eu queria que você me deixasse ajudar.

– Não há nada que você possa fazer. Eu só tenho que descobrir um jeito de parar de me preocupar com Kevin – e de pensar em Neferet... na Neferet que está lá, no comando, provavelmente massacrando milhões de inocentes, assim como ela assassinou a Outra Zoey! Mas eu não deixei a minha boca pronunciar essas palavras em voz alta. Se eu deixasse, tinha medo de não parar mais, de não parar de falar sobre Neferet, de não parar de pensar que eu precisava ajudar Kevin.

E além disso havia Heath. O Heath vivo. O Outro Heath, que estava de luto pela Outra Zoey, que eu havia acabado de ver Neferet assassinar.

– É só o Kevin? – Stevie Rae perguntou.

– Sim. Não.

– Hum, Z, qual dos dois?

– Não – eu disse com tristeza. – Também tem a idiota da Neferet e qualquer mal novinho em folha que ela está aprontando. Além disso, bom, tem Heath – então eu me esforcei para continuar rápido. – E a minha mãe. Ela está viva lá também. E tem Outra Vovó Redbird. Você consegue imaginar como deve ter sido difícil a minha morte para ela?

– Z! Aí está você! – Kramisha chegou falando alto e usando um par de botas de salto vermelhas brilhantes na altura do joelho. – Chega pra lá, Stevie Rae. Eu tenho muito mais peso na minha bunda do que vocês duas, branquelas magrinhas.

Ela empurrou Stevie Rae com o quadril, que deslizou para mais perto de mim, e nós nos ajeitamos rápido para abrir espaço para Kramisha.

– Ei, eu não sou branca. Ou pelo menos não sou cem por cento branca – eu protestei.

– Desculpe. Esqueci que você tem um pouco de cor aí, Z. Mas a sua bunda ainda é pequena.

– Gostei das suas botas novas – Stevie Rae falou. – Elas têm a cor exata da sua peruca. Como você faz isso?

– Talento. Puro talento. E essas botas não são novas, mana. Mas este macacão colante de mulher-gato é. Que tal? Miau! – Ela fingiu dar um chiado de gato para Stevie Rae, que começou a rir.

– Kramisha, eu te amo! E senti falta tanto de você quanto de Tulsa – Stevie Rae disse.

– Você vai me amar mais ainda daqui a um segundo. Z, eu quero ir para Chicago.

– Hum? – eu perguntei. – Mas você mal começou a reconstrução do Restaurante da Estação.

– Olha só, todo mundo sabe que Damien e Outro Jack podem fazer um trabalho melhor do que eu nessa reconstrução. Z, eles são gays. E eles chamaram mais gays.

Eu revirei os olhos.

– Kramisha, isso é um estereótipo horrível.

– Diga que isso não é verdade que eu calo a boca. – Ela fez uma pausa e, como eu não disse nada porque, bem, Damien, Outro Jack e Toby, o diretor do Centro de Igualdade de Oklahoma, eram todos super incríveis em design de interiores, ela continuou. – Onde eu estava? Ah sim – Kramisha se virou para Stevie Rae. – Você quer voltar para Chicago?

– Bem, hum, não exatamente, não de modo permanente, mas Z e eu já falamos sobre voltar para Tulsa de vez assim que eu deixar as coisas organizadas na Morada da Noite de Chicago.

– “Organizadas” quer dizer “depois de escolher a sua substituta”? – Kramisha perguntou.

– Imagino que sim. Certo, Z?

– Claro. A menos que você já tenha alguém em mente, como Damien tinha – eu disse.

– Queria ter, mas não escolhi ninguém. Há algumas Grandes Sacerdotisas que têm potencial, mas ninguém que se destaque – ela falou.

– Eu vou fazer isso – Kramisha afirmou.

– Fazer o quê? Você está me deixando bem confusa, Kramisha. Vá direto ao ponto – eu pedi.

– Certo. A questão é que eu não posso voltar para a estação. Não agora. Eu preciso me dar um tempo. Eu... eu ainda consigo ouvir os gritos. – Kramisha fez uma pausa e tirou algumas mechas vermelhas e brilhantes do seu rosto com uma mão trêmula. – Stevie Rae é uma Grande Sacerdotisa vampira vermelha. Ela e Rephaim se encaixam bem na estação. Os novatos gostam deles, o que eu acho meio estranho, já que ele é um pássaro boa parte do tempo, mas que seja. Não gosto de julgar. – Ela deu de ombros. – E você sabe que sou boa em organizar tudo. Eu vou para Chicago e deixo tudo organizado e encaminhado e, quando isso já estiver resolvido, talvez os gritos que eu ouço à noite já tenham sido resolvidos também, e então eu posso vir para casa de vez – Kramisha concluiu apressada.

– Eu não sabia – eu falei em voz baixa, estendendo o braço por cima de Stevie Rae para pegar a mão de Kramisha. – Kramisha, sinto muito.

– Você anda distraída. Ninguém te culpa por isso, Z. O Outro Kevin passou só um tempinho aqui, mas todo mundo que conheceu o seu mano gostou dele. Muito.

Eu sacudi a cabeça.

– Não, eu sou a sua Grande Sacerdotisa, e eu estou fazendo um trabalho ruim.

– Você vai voltar a ser o que era logo, assim como eu. A gente só precisa de tempo e um pouco de descanso.

– Você não vai ter muito descanso se for para Chicago. Aquela Morada da Noite é agitada pra caramba – Stevie Rae disse. – E eles não têm nem um programa equestre. Andei falando com Lenobia sobre...

– Sei tudo sobre isso. Também andei falando com Lenobia – Kramisha falou.

– Ela quer ir para Chicago com você? – eu perguntei, sem saber ao certo se deveria ficar surpresa, irritada ou aliviada por obviamente haver um monte de coisas rolando ao meu redor sobre as quais eu não tinha a menor ideia.

– Só o suficiente para resolver a questão dos cavalos. O que você acha, Grande Sacerdotisa?

O que eu acho? Eu encarei a estátua de Nyx. Acho que eu preciso descobrir um jeito de ajudar Kevin sem ferrar totalmente com a minha própria vida. Decidi falar outra coisa em voz alta.

– Eu acho que você é altamente capaz. Você e Lenobia vão fazer um belo trabalho, desde que Stevie Rae não se importe de você assumir o lugar dela imediatamente.

– Isso significa que Rephaim e eu podemos ficar aqui e não precisamos mais ir embora?

– É isso que significa, sim – eu respondi.

– Então eu não me importo nem um pouquinho! Kramisha, você me deixou mais feliz do que urubu em cima de carniça! – Stevie Rae atirou os braços ao redor de Kramisha, que deu um grunhido, abraçou-a rapidamente de volta e então se afastou, endireitando a sua peruca.

– Cuidado com o cabelo. Sei que não parece, mas todo esse glamour pode se estragar rapidamente se o cabelo estiver errado.

Eu abri a boca para perguntar para Kramisha em quanto tempo ela estaria pronta para partir quando a primeira sensação me atingiu. Ela começou no meio do peito, apenas um pequeno calor começando a espalhar, mas não tão pequeno que passasse despercebido. A sensação pulsou e cresceu, como se eu tivesse acabado de subir correndo as escadas de um estádio em um dia quente (o que eu absolutamente não faria, a menos que alguém estivesse me perseguindo).

Eu tossi. Enxuguei o meu rosto, que de repente ficou suado. Limpei a garganta. Tossi de novo.

A minha mão se levantou como se eu não tivesse nenhum controle sobre ela e foi até o centro do meu peito. Minha palma pressionou a minha pele.

Não havia nada ali. Nenhum calor. Nada.

Mas eu jurava que tinha sentido algo. Alguma coisa quente, forte e estranhamente familiar.

– Zoey! Você está me ouvindo?

Eu olhei para cima e vi Stevie Rae em pé sobre mim com Kramisha ao seu lado. Eu ainda estava sentada no banco, mas elas tinham se levantado e estavam debruçadas sobre mim, obviamente preocupadas.

– Sim. Eu estou te ouvindo. Eu... eu estou bem. Eu acho.

– O que aconteceu? Você congelou com a mão sobre o peito, quase como se estivesse se agarrando às suas pérolas. Só que você não está usando um colar de pérolas – Kramisha falou.

– Não sei. Foi uma sensação estranha. Já passou.

O som de pés correndo veio por trás de nós, e de repente Stark estava lá, agachado ao meu lado, com as mãos nos meus joelhos, enquanto ele analisava o meu rosto.

– Zoey! O que foi?

– Você sentiu também?

– Calor? E alguma outra coisa. Algo que não consegui identificar. – Ele tocou o meu rosto, tirando o meu cabelo da minha bochecha úmida. – Z, a sua respiração está ok? O seu peito está doendo?

– Não, não doeu. Não senti dor nenhuma. Só calor e... uma sensação estranha. – Eu estava aliviada e com medo ao mesmo tempo. Se Stark sentiu também, eu não tinha imaginado aquilo. Mas, por outro lado, se Stark sentiu, o que quer que tenha acontecido foi real. E isso podia significar más notícias de verdade.

– Acho que a gente tem que levar Z para a enfermaria para que ela possa ser examinada – Stevie Rae disse.

Rephaim devia estar com Stark, porque de repente ele estava ali também, segurando a mão de Stevie Rae e me analisando com uma concentração típica de pássaro.

– Enfermaria? Que diabos está rolando? Z, você se machucou?

Eu desviei os olhos de Rephaim e vi Aphrodite em pé ao lado de Darius (Deusa, será que estavam todos no Ginásio com Stark?). Ela estava com as mãos no quadril e me olhava intensamente, com os olhos estreitos, com os quais ela provavelmente queria demonstrar preocupação, mas que na verdade estavam mais dizendo algo como “AiminhaDeusa, por que você está me enchendo agora?”.

– Eu não preciso ir para a enfermaria. Estou bem. Sério – eu insisti.

– E isso não foi algo que Z fez para si mesma – Stark afirmou. – Foi algo que aconteceu com ela.

– Isso não faz algum sentido – Kramisha disse.

– Ou, dito corretamente, isso não tem nenhum sentido. Gramática: errada. Sentimento: certo – Aphrodite provocou.

– Isso tem sentido sim – eu falei rapidamente, antes que Kramisha conseguisse espetar Aphrodite verbalmente. – Stark quis dizer que não tem nada de errado comigo. Que, seja o que for que nós sentimos, foi algo que aconteceu fora de mim. E isso foi mais estranho do que assustador.

– Ei, o que está acontecendo aqui? – Damien perguntou quando ele e Outro Jack se juntaram ao grupo. Ambos estavam segurando velas votivas perfeitas que eles obviamente tinham a intenção de acender aos pés de Nyx. – Z, você está bem?

Eu suspirei. Às vezes, era realmente como se eu tivesse zero privacidade.

– Estou bem. Não foi nada.

– Não diga isso – Stark falou sério quando sentou ao meu lado, colocando o seu braço ao meu redor de modo protetor. – Você está bem agora. Nós estamos bem, mas não quer dizer que não foi nada. Alguma coisa aconteceu. Algo que tocou você ou a mim ou a nós dois.

Foi a vez de Damien se agachar ao meu lado.

– Conte-me o que você sentiu.

Eu descrevi o súbito calor e observei Damien ficar cada vez mais pálido enquanto Stark assentia em concordância com a minha descrição. Mas, antes que Damien pudesse dizer qualquer coisa, Aphrodite se adiantou.

– Ah, que merda, seus imbecis! É óbvio o que acabou de acontecer.

– Aphrodite, é super ofensivo chamar a gente de imbecis – Stevie Rae protestou.

– Caipira, é só um chute, mas aposto que, antes de eu me juntar a este grupo improvisado, você fez pelo menos uma comparação terrível que tinha a ver com a sua mamãe ou com carrapatos. Acertei?

– Quase – Kramisha falou. – Tinha a ver com urubu em cima de carniça, o que é nojento. – Ela olhou para Stevie Rae e deu um sorriso de desculpas. – Só estou dizendo a verdade.

– Certo – Aphrodite continuou. – E isso é ofensivo, mas você vai continuar com suas analogias de caipira e, já que você vai fazer isso, também vou continuar chamando um imbecil de imbecil quando estiver presenciando vocês agindo feito imbecis.

– Ai minha Deusa, parem de discutir! – Eu senti como se minha cabeça pudesse explodir. – Aphrodite, você realmente sabe o que aconteceu?

– Claro que sim – ela respondeu. – É Magia Antiga. E aquele som de tapa na cara que você ouviu metaforicamente está te dando vontade de cobrir o rosto de vergonha enquanto você se dá conta de que estou certa.

– Ela está certa – Damien disse enquanto se levantava e segurava a mão de Outro Jack de novo. – Era o que eu estava pensando também.

Eu apenas fiquei sentada, incapaz de dizer qualquer coisa porque eu estava lembrando do tempo que eu passei na Ilha de Skye, do talismã de mármore de Skye que eu trouxe para Tulsa. Daquele calor e do poder daquela magia, e de como ela quase me engoliu e me transformou em alguém tão parecido com Neferet que não merecia continuar sobrevivendo.

– Z?

Eu podia sentir a preocupação de Stark e deixei que ela me tirasse dos meus pensamentos.

– Aphrodite e Damien estão certos – eu afirmei. – Não percebi isso na hora porque foi só um eco distante da real sensação de brandir a Magia Antiga.

– Então, isso só pode significar que alguém está usando Magia Antiga de novo – Stevie Rae concluiu.

– E isso é ruim – Rephaim falou.

– Ruim mesmo – Kramisha concordou.

– Você deveria ligar para a Rainha Sgiach – Aphrodite sugeriu. – Ela é a especialista em Magia Antiga.

– Eu adoraria – eu disse. – Mas ela está de luto, o que significa que ela se retirou totalmente do mundo exterior. Eu sei. Eu venho tentando falar com ela uma vez por semana, e já fiz isso ontem. Ela ainda está totalmente off-line e o telefone dela só chama, chama, e ninguém atende.

– Ela ainda está sem atender o telefone? Quanto tempo já faz, quase um ano desde que o Touro Branco atacou Skye na mesma noite em que Neferet nos atacou aqui? Já era de imaginar que ela pelo menos estivesse dando uma olhada no Facebook – Aphrodite falou.

Eu levantei os olhos para Aphrodite. Ela era minha amiga, uma poderosa Profetisa de Nyx e, com a sua nova Marca azul e vermelha, uma vampira adulta, mas ainda assim ela podia soar como uma criança mimada e egoísta.

– Ela e Seoras foram companheiros por séculos. Acho que um ano de luto não é nada perto disso. Você já teria seguido em frente se Darius tivesse sido assassinado naquela noite?

Aphrodite empalideceu e se recostou em Darius.

– Não. Não, não teria. Você está certa, Z. Peço desculpas por ter soado como uma imbecil.

– Aphrodite, você sabe que Damien podia ajudar você a melhorar o seu vocabulário para que você não tenha que usar palavras como... – Stevie Rae tinha começado um novo sermão quando a segunda onda daquela sensação me atingiu.

Eu ofeguei e coloquei meus braços ao redor do meu corpo, enquanto Stark me abraçava forte.

– Está tudo bem. Está tudo bem. A gente está bem. Vai passar – Stark murmurou frases para me tranquilizar.

– O que foi? O que está acontecendo? – Aphrodite chegou mais perto de mim, ombro a ombro com Damien.

– Você está com dor? – Damien perguntou.

– Nã-não – eu respondi com voz trêmula. – Eu só sinto como... como...

– Como se alguém estivesse pisando no seu túmulo – Stark concluiu por mim.

– A-alguém que usa Magia Antiga – eu acrescentei e Stark assentiu em concordância.

Como meu Guerreiro Juramentado, Stark compartilhava as minhas sensações. A ligação Grande Sacerdotisa-Guerreiro era estabelecida dessa forma para que nossos protetores sempre soubessem quando precisávamos deles. Mas havia momentos, como agora, em que eu preferia poder apertar um botão e não fazer ele passar por essas coisas estranhas que aconteciam frequentemente comigo.

– Está sumindo – Stark disse.

Eu soltei um longo suspiro de alívio.

– Sim. Acabou.

– Z, de onde isso está vindo? – Stevie Rae perguntou.

– Não tenho ideia – respondi. – Stark, você sabe de algo?

Ele balançou a cabeça.

– Não, acho que eu não estou tendo a sensação de fato, mas apenas um eco do que você está experimentando.

– Bom, está ligado a você – Damien falou. – Seja a magia propriamente dita ou a pessoa que está mexendo com ela.

– E se Sgiach invocou Magia Antiga? Será que pode ser isso que você sentiu? Vocês duas ficaram muito próximas – Stevie Rae deu um palpite.

– Não acho que seja isso – eu respondi. – A Rainha Sgiach é guardiã da Magia Antiga, e eu sei que ela se manifesta na ilha dela com muita frequência, mas, a menos que eu esteja lá com ela, nunca senti nada.

– Ela usou Magia Antiga na batalha contra o Touro Branco na noite em que sepultamos Neferet – Damien lembrou. – Você não sentiu nada?

Balancei a cabeça.

– Não.

– Merda! Será que pode ser Neferet? – Aphrodite disse.

De repente, senti um calafrio.

– Não sei.

– Bom, descubra! – Aphrodite exclamou.

Eu franzi o cenho para ela.

– Você é a Profetisa. Que tal você descobrir?

Ela atirou o longo cabelo loiro para trás.

– Não funciona desse jeito e você sabe disso.

– Além disso, você não precisa de nenhuma Profetisa. Você só precisa de uma Grande Sacerdotisa que possa invocar Magia Antiga. Conhece alguma, Z? – Kramisha perguntou, dando um olhar aguçado na minha direção.

Eu metaforicamente dei um tapa na minha testa.

– Eu devo ser uma imbecil.

– Z! – Stevie Rae bufou.

Fiz um gesto para evitar o que provavelmente seria um sermão politicamente correto enquanto Aphrodite caiu na gargalhada.

– Desculpe. Eu só estava brincando. Na maior parte. Eu sou a Grande Sacerdotisa de quem Kramisha estava falando.

– Não gosto de você mexendo com Magia Antiga – Stark falou.

– Eu não vou mexer com isso – eu argumentei. – Vou só dar uma invocada rápida, só isso.

– Nunca é só isso quando Magia Antiga está envolvida – Stark rebateu sombriamente.

Eu suspirei e concordei silenciosamente com ele.

– Será que a gente deve ir até Skye? Apesar de ela estar de luto, não acredito que a Rainha Sgiach recusaria dar passagem a você.

– Lá é longe demais – Stevie Rae protestou. – Tem que haver um jeito mais fácil. Ou pelo menos um lugar mais perto.

– Eu sei de um lugar mais perto – Rephaim disse.

A atenção de todo mundo se voltou para o jovem Cherokee alto e bonito.

– Ok, estou ouvindo – eu o incentivei a continuar.

– Tem Magia Antiga aqui. Bem aqui nos jardins da escola – ele falou em voz baixa, mas gravemente. – Eu sei porque eu vim dela.

Eu me endireitei no banco, como se o que Rephaim acabou de dizer tivesse entrado na minha mente. O meu olhar se perdeu pelos jardins da escola na direção leste, onde a distância eu mal podia distinguir a silhueta escura de um carvalho enorme e quebrado.

– Rephaim está certo. Há um jeito mais perto, mas eu não tenho muita certeza se vai ser muito mais fácil – eu afirmei.

O olhar de Stark seguiu o meu, e eu o escutei resmungar baixinho.

– Ah, que inferno.


10

Zoey

– Não sei se essa é uma boa ideia – Stevie Rae disse.

– Eu tenho certeza de que não é – Stark falou.

– Zoey, você não deveria fazer um círculo antes de tentar invocar Magia Antiga? – Rephaim perguntou. – Shaylin ainda está aqui, não está? Posso ir chamá-la. E eu vi Shaunee indo para a aula de Teatro com Erik. Posso falar para ela, caso você precise dela aqui também.

– Uau! Definitivamente essa árvore não se parece com a que está no meu velho mundo – Outro Jack exclamou.

– Ok, escutem bem. – Eu dei as costas para o carvalho destruído e encarei os meus amigos. – Eu não vou fazer um círculo. Quero fazer isso de um jeito rápido e simples, sem precisar focar muita energia em Magia Antiga. – Eu me virei para Rephaim. – Obrigada por me lembrar que essa árvore estava aqui. Queria que você e Stevie Rae ficassem – o meu olhar desviou dele e abarcou Aphrodite e Stark –, mas eu quero que todos os outros, exceto Stark e Aphrodite, vão embora. Minha intuição me diz para não tentar fazer um espetáculo para invocar Magia Antiga e, quanto mais gente estiver aqui, maior a bagunça. Eu faria isso sozinha, mas conheço o meu Guerreiro o bastante para saber que isso não é possível.

– Com certeza – Stark afirmou, com jeito de Guerreiro valentão, enquanto olhava sobre o meu ombro para a árvore quebrada, em cuja direção eu nem tinha olhado ainda.

– E Aphrodite é, bom... – minhas palavras sumiram quando percebi que não sabia muito bem como descrever o que Aphrodite havia se tornado.

– Estranhamente ligada a Nyx e poderosa? – Stevie Rae sugeriu.

– Que tal incrivelmente ligada a Nyx e poderosa? – Aphrodite a corrigiu, estreitando os olhos.

– As duas coisas – eu disse.

– E eu vou usar a minha posição de Grande Sacerdotisa e ficar bem aqui com Z – Stevie Rae falou.

– Eu fico com Stevie Rae – Rephaim acrescentou.

– Exatamente como eu esperava – eu concordei.

– O que nós podemos fazer enquanto isso? – Damien perguntou, entrelaçando os dedos com os de Outro Jack.

– Obrigada pela compreensão – eu agradeci. – Você e Jack podem cuidar para que todos os estudantes fiquem lá dentro.

– Claro – Damien respondeu. – Está na metade da segunda aula. Vamos enviar um e-mail de emergência para todos os professores. Ninguém pode ir a lugar nenhum por mais ou menos uns trinta minutos.

– E se alguém sair, Damien e eu vamos enxotar a pessoa direto de volta para a aula – Outro Jack completou, mostrando as covinhas para mim.

– Mas você tem certeza absoluta de que não quer que eu fique? – Damien perguntou. – Eu poderia fazer anotações sobre o que acontecer.

– Na verdade, o que me ajudaria ainda mais do que isso seria se você pudesse pegar aqueles livros sobre Magia Antiga na área restrita do Centro de Mídia, e marcar tudo que você achar que eu preciso ler sobre o assunto.

– Eu posso fazer isso, Z.

– Posso ajudar também? – Outro Jack se ofereceu, olhando para mim com olhos grandes e ansiosos. – Quer dizer, assim que a gente avisar os professores para não deixarem os novatos saírem das salas.

– Claro – eu respondi. – Eu agradeço.

Outro Jack deu um pulinho de alegria, que me fez sorrir, e então ele e Damien saíram apressados de mãos dadas.

– Bom, da minha parte, não preciso ver Magia Antiga nem qualquer coisa do tipo – Kramisha disse. – Tenho que fazer as malas. Z, se um poema vier até mim, eu mando uma mensagem pra você. Beleza?

– Sim – eu respondi, desejando secretamente não receber nenhum poema profético maluco enviado para mim via mensagem de texto com a fonte roxa brilhante que Kramisha usava para escrever.

– Grande Sacerdotisa, eu gostaria de permanecer com Aphrodite.

Meus olhos encontraram o olhar sério de Darius. Eu suspirei, mas assenti.

– Sim, eu entendo isso. Você pode ficar.

Darius fez uma reverência respeitosa para mim, com o punho sobre o coração.

– Ok, Z. Você encontra a gente no refeitório depois? Já está quase na hora do almoço e eu estou ficando irritada de fome – Kramisha disse.

– Sim, combinado. Não vou demorar. – Eu esperava que, ao falar em voz alta, pudesse transformar isso em realidade.

Enquanto meus amigos seguiam de volta para o prédio principal da escola, eu finalmente voltei minha atenção para a árvore rachada.

A aparência dela era horrível. Conforme eu a observei, percebi que deveria ter mandado arrumar tudo meses atrás. Estava assustador. Eu sabia que os estudantes evitavam o muro leste por causa daquilo, e imagino que parte do motivo que me fez adiar fazer qualquer coisa ali era porque aquilo desencorajava novatos a usarem o alçapão escondido no muro atrás da árvore para saírem escondidos do campus. Mas, por outro lado, agora eu era a Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Como se eu fosse realmente tomar conhecimento de cada novato que estava saindo escondido do campus. Era muito improvável.

– Z? Você está bem? – Stark perguntou.

Eu assenti.

– Sim, só estou pensando em mandar arrumar essa bagunça.

– Não. Deixe assim – Aphrodite falou. – Se você quiser fazer algo, faça uma defumação e um círculo de sal para proteção, mas deixe do jeito que está.

Eu me virei para ela.

– Por quê?

Ela indicou a ruína maléfica da árvore sem folhas e o buraco criado na terra de onde Kalona e os seus Raven Mockers haviam saído em uma explosão em um tempo que parecia muito, muito distante.

– Eu posso estar errada, mas para mim parece que essa bagunça é uma lição visível do que acontece quando você brinca com poderes em que é melhor não mexer.

Os meus olhos focaram nos galhos escuros feito garras, onde as folhas se recusavam a nascer.

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho razão. Então, você vai invocar Magia Antiga ou o quê?

Eu queria poder escolher “ou o quê”, mas sabia que essa não era uma opção.

– Alguém tem uma faca?

Juntos, Darius e Stark tiraram adagas que pareciam muito perigosas de sabe-a-Deusa-onde em seus corpos extremamente armados. Eu estendi a mão, com a palma para cima, e falei para Stark:

– Faça um corte.

Ele franziu a testa.

– Que tal eu me cortar e você usar o meu sangue?

– James Stark, eu sou a sua Grande Sacerdotisa e a sua Rainha. Eu disse para você me cortar. Então me corte.

Ele ainda estava franzindo a testa, mas desta vez fez o que eu pedi, rapidamente abrindo um corte raso na parte mais carnuda da palma da minha mão. A adaga dele era tão afiada que eu sequer senti dor. Fechei a mão e a apertei de leve para que o sangue se juntasse em uma quantidade razoável.

– Aphrodite e Darius, por favor, fiquem à minha esquerda. Stark, Stevie Rae e Rephaim, fiquem aqui do lado direito. Eu vou caminhar até a árvore. Deixem-me ir um pouco na frente de vocês. Não façam nada enquanto eu ainda estiver falando coisas com sentido, mas se algo estranho demais acontecer...

– Se alguma merda estranha acontecer, eu vou carregar você para fora de lá – Stark afirmou.

– Não – eu falei, cortando-o. – Coisas estranhas vão acontecer. É Magia Antiga. Não faça nada, a menos que eu pare de me comunicar com você, ou que eu seja puxada para dentro da, hum, árvore. – Fiz uma pausa, esforçando-me para não estremecer ao lembrar da última vez que a Magia Antiga havia me tocado ali. Da última vez eu quase havia me perdido. Encontrei o olhar preocupado de Stark e minha voz suavizou. – Você vai saber se alguma coisa estiver dando errado. Você vai sentir. Só não faça nada a não ser que dê tudo errado. Ok?

– Ok – ele respondeu com relutância.

– Eu te amo e sinto muito que isso esteja te estressando – eu disse.

Os ombros de Stark relaxaram um pouco.

– Eu também te amo, Z, e estresse faz parte do trabalho de um Guerreiro.

Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo e então encarei a árvore. Levantei a minha mão fechada diante de mim e inspirei profundamente três vezes para me centrar. Então hesitei.

– Bom, que inferno. Não sei quem eu devo invocar – eu falei.

– Você me disse que gostou dos espíritos elementais que responderam ao seu chamado em Skye – Stark lembrou.

– Sim, mas aquilo era diferente – eu respondi.

– Não exatamente. Pare de se preocupar tanto com o fato de ser Magia Antiga. Pense nisso em termos mais simples. É uma árvore velha toda ferrada. É só invocar os espíritos da terra – Stevie Rae sugeriu. – É o que eu faria.

– Sim, você está certa. Espíritos da terra. Isso parece o correto – eu concordei nervosamente.

– E pare de ficar tremendo tanto. Eles são só elementais. Você tem afinidade com todos os elementos. Imagine que você está invocando a terra para um círculo – Aphrodite reforçou.

– Essa é mesmo uma boa ideia – eu disse.

– Claro que é. Eu sou cheia de boas ideias. – Ela atirou o seu cabelo comprido e loiro para trás e levantou suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas para mim.

– E se eu tentar ajudar? – Stevie Rae veio para o meu lado. – Não sei muito sobre Magia Antiga, mas eu sou da terra. Vamos invocar juntas. Como a gente faz no círculo.

– Ok, isso faz sentido. Stevie Rae, você começa, e eu vou usar o meu sangue como se eu estivesse acendendo uma vela na terra.

– Facinho! – Stevie Rae limpou a garganta e falou para a árvore quebrada. – Eu sou Stevie Rae, Grande Sacerdotisa vampira vermelha de Nyx, que me presenteou com a afinidade com a terra. Com o poder concedido pela Deusa, eu gostaria de invocar os espíritos ancestrais da terra. – Então ela assentiu e deu um passo atrás, deixando que eu liderasse a invocação final.

Eu estendi a mão de novo, inspirei fundo e disse:

– Espíritos da terra! Espíritos das árvores da Magia Antiga! Eu sou Zoey Redbird. Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx, e eu consigo brandir a Magia Antiga. Com o poder ancestral no meu sangue, eu os invoco e peço que apareçam para mim. – Então, como se eu estivesse atirando uma mão cheia de água para longe de mim, arremessei o meu sangue na casca de árvore nodosa e quebradiça.

Nada aconteceu por um instante, e eu senti o meu coração afundar no peito. Eu ia mesmo ter que voar até Skye e incomodar Sgiach em seu luto? Será que isso poderia ser feito? Ou talvez eu devesse tentar falar com o Conselho Supremo dos Vampiros, o Europeu, aquele que não estava particularmente satisfeito com o fato de os meus amigos e eu termos assumido a liderança na América do Norte em vez deles...

– Ei, Z. Acorde. Tem alguém aqui – Aphrodite sussurrou.

Eu me sacudi mentalmente e fiquei olhando uma figura emergir do centro da árvore partida. Ela era obviamente um espírito da árvore. Alta e graciosa, tinha pele escura – da cor de casca de árvore à meia-noite –, mas não havia nada de rústico nela. Ao contrário, sua pele parecia incrivelmente suave e macia – e havia muita pele visível, pois o vestuário que ela estava usando era composto de delicadas folhagens de samambaia. Quanto mais eu olhava, mais me dava conta de que a samambaia parecia estar rente à sua pele, como uma pintura corporal ou mesmo uma tatuagem. Ela piscou para mim com olhos grandes, escuros e bonitos.

– Olá – eu disse. – Obrigada por atender ao meu chamado.

O espírito inclinou a cabeça para o lado com um movimento parecido com o de um passarinho. Isso fez o seu cabelo espetacular, da cor das folhas do outono, ondular como se estivesse sendo mexido por um vento que afetava apenas o espírito.

Eu estava tentando descobrir como persuadi-la a falar comigo quando o espírito inspirou profundamente, e então os seus olhos grandes e escuros ficaram ainda maiores.

– Outro Redbird? Esta noite está mesmo muito interessante.

Ela saiu do meio da árvore despedaçada, dando um olhar triste para ela enquanto passava a mão no tronco partido. Ela não estava exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não fizeram som nenhum nem remexeram o gramado marrom do inverno sobre o qual ela caminhava. O espírito parou diante de mim, se inclinou para a frente e me cheirou.

– Você é, de fato, uma Garota Redbird.

– Como você sabe o meu nome? – eu falei sem pensar.

– Eu acabei de encontrar outros do seu sangue. Um garoto jovem e uma mulher – a voz musical do espírito hesitou antes de continuar. – Mas eles não estão neste mundo. Que estranho.

– Espere aí, você está falando do meu irmão, Kevin?

– O Garoto Redbird... sim, acho que ele se chama Kevin.

– Quem era a mulher? Z, eu pensei que você estivesse, ahn, morta do lado de lá – Stevie Rae sussurrou.

O espírito voltou sua atenção para Stevie Rae, que sorria nervosamente e acenou, dizendo:

– E aí! Sou Stevie Rae. Prazer em te conhecer.

– Eu não a conheço, mas posso sentir a força da sua ligação com a terra. Como um espírito da árvore, eu aprecio isso. Pode me chamar de Oak.

– Obrigada, Oak – Stevie Rae fez uma reverência respeitosa.

Oak começou a farejar o ar de novo e, ao fazer isso, ela chegou mais perto de Rephaim, que estava tão imóvel que pensei que ele nem estivesse respirando.

– O que é você? Eu sinto o cheiro de Magia Antiga nos seus ossos, mas ela foi modificada.

– Sou Rephaim. Filho de Kalona. Eu fui um Raven Mocker.

– Portanto, não humano. Nem corvo. Mas algo modificado para fundir ambos em um só.

– Modificados por Nyx – eu me manifestei, sentindo a necessidade de ter algum tipo de controle sobre a conversa. – Rephaim conquistou o perdão da Deusa, e ela concedeu a ele o corpo de um garoto.

– Mas só do pôr do sol até o nascer do sol – Rephaim concluiu por mim. – Enquanto o sol está no céu, eu sou um corvo.

O espírito continuou a encarar Rephaim, farejando o ar ao redor dele, receoso.

– É uma punição pelos atos sombrios que você já cometeu que a Deusa permite que o corvo assuma o seu corpo.

Rephaim empinou o queixo.

– Sim. Nyx é justa. O meu passado não é algo do qual me orgulho.

– Exceto pelo ano passado – Stevie Rae disse, pegando a mão de Rephaim. – Ele escolheu a Luz, e Nyx o perdoou.

– Então, Oak, você não é deste mundo? – Aphrodite perguntou.

A cabeça de Oak girou, feito uma coruja, para observar Aphrodite.

– Eu não a conheço, Profetisa.

– Ainda assim você me chamou de Profetisa.

O espírito assentiu, fazendo o seu cabelo longo e multicolorido brilhar ao redor com um som parecido com o do vento derrubando as folhas do outono.

– A Magia Antiga reconhece uma Profetisa de Nyx. Houve um tempo, no passado distante, em que nós estivemos ao lado das Profetisas de Nyx, seguindo as ordens da Deusa. Infelizmente, esse tempo já passou, mas nós nos lembramos dele – Oak disse de forma enigmática antes de olhar para Darius. – Eu também não o conheço, Guerreiro – e então o olhar dela encontrou Stark. – Você, eu reconheço. O Garoto Redbird pediu santuário para se proteger de você e do seu exército, embora sua Marca fosse azul, não vermelha.

– Você é do Outro Mundo! – Stark exclamou. – Você conheceu Kevin Redbird lá, certo? Mas quem é a outra mulher Redbird? – Stark se virou para mim. – Será que a sua irmã foi Marcada no Outro Mundo sem Kevin saber?

Eu comecei a abrir a boca, mas a voz de Oak me interrompeu.

– Tantas perguntas, mas eu não recebi nenhuma oferta de pagamento. – Oak virou a cabeça e olhou sombriamente para a árvore quebrada na qual ela tinha se materializado. – E eu fui invocada através de um lugar que foi manchado pelas Trevas e pela destruição.

– Eu sou responsável por sua invocação. Peço desculpas. Eu realmente tenho perguntas a fazer, mas eu também tenho o seu pagamento. – Eu abri a mão, mostrando a Oak a ferida ensanguentada que ainda pingava.

Oak farejou delicadamente a palma da minha mão. Ela lambeu os seus lábios carnudos, lembrando estranhamente como eu costumava fazer quando tinha noite de festival de psaghetti no refeitório, mas então ela me surpreendeu ao desviar a sua atenção do meu sangue para encontrar o meu olhar.

– Você oferece um pagamento aceitável, mas eu prefiro outra coisa.

– Que tipo de pagamento você quer? – Senti a necessidade de prender a respiração enquanto esperava pela resposta dela.

Oak virou a cabeça para olhar sobre o seu ombro para a árvore destroçada.

– O pagamento que eu quero pela informação que você busca é que você limpe a abominação que aconteceu aqui, e restaure o equilíbrio deste lugar.

Eu pisquei em choque, mas ainda consegui dizer:

– Eu posso fazer isso.

A cabeça dela girou de novo para mim e a sua voz se tornou ritmada, como se ela estivesse recitando um belo poema.

“Eu aceito o pagamento do equilíbrio a esta árvore restaurado

Grande Sacerdotisa – você prometeu isso de bom grado

Eu concordo em fornecer informação

Eu concordo com a verdade dita na canção

Pergunte, então, Garota Redbird

Mas escute bem, para que minhas palavras acate

E se você esquecer do pagamento aqui rebate

Saiba que há outras formas de pagar antes que a mate...”

Oak não atirou sangue no ar nem fez nenhum outro tipo de floreio dramático, mas, no instante em que terminou de falar o feitiço de amarração, o ar ao redor dela brilhou como se alguém tivesse soprado purpurina sobre o pátio da escola. Tentei não pensar nas outras formas com que a Magia Antiga podia me fazer pagar pela promessa e fiz a minha primeira pergunta.

– Você conhece o meu irmão, Kevin?

– Conheço. Ele se parece muito com você.

– Então, você é de outro mundo?

– Para as fadas ancestrais, todos os mundos são um só. Nós prestamos pouca atenção no véu que os separam.

– A outra mulher Redbird que você mencionou. Você pode me dizer quem ela é?

– Sim, Garota Redbird. Ela é uma Mulher Sábia, uma do seu sangue. Ela é formidável. Eu realmente me deliciei com as suas bolsas medicinais. Elas não foram pagamentos poderosos pelos nossos serviços, mas foram saborosas.

– Ela está falando de Vovó Redbird! – Stevie Rae exclamou.

Eu assenti.

– Ela também falou em bolsas medicinais... no plural. Oak, a Mulher Sábia da qual você está falando deve ser minha avó. Ela e Kevin estão lidando com Magia Antiga no Outro Mundo?

– A Mulher Sábia não invocou Magia Antiga, mas, como respeito pelo seu sangue ancestral, eu responderia se ela me chamasse e precisasse da minha assistência. Foi o Garoto Redbird. Ele requisitou nossa ajuda. – Os olhos escuros de Oak se viraram para Stark. – Ele precisava de proteção contra um Guerreiro muito parecido com este que lhe pertence.

– Kevin deve estar trabalhando com a Resistência – Stark disse.

– Onde Kevin e minha avó estavam quando eles usaram Magia Antiga? – eu perguntei.

– Em uma montanha não muito longe daqui. É lá que o povo deles se reúne e se esconde daqueles que os caçam.

– É isso. O Outro Kevin se juntou à Resistência – Darius concluiu.

– E você realmente não me viu lá em nenhum lugar? – Aphrodite perguntou ao espírito.

Oak olhou atentamente para ela.

– Não. Você não faz parte do povo do Garoto Redbird.

– Olha, que merda – Aphrodite falou.

– Por que isso faz tanta diferença? – Rephaim perguntou para Aphrodite.

Stevie Rae respondeu por ela.

– Porque Aphrodite é a razão pela qual novatos vermelhos e vampiros vermelhos no nosso mundo podem escolher manter a sua humanidade. Sem ela, todos nós seríamos monstros, como o pobre Outro Jack já foi.

O que Stevie Rae disse deu um cutucão na minha memória, e de repente eu tinha outra pergunta a fazer para o espírito.

– Oak, você realmente é feita de Magia Antiga, certo?

Quase pareceu que o espírito se segurou para não rir.

– É claro, Garota Redbird. Do que mais eu seria feita?

– Bom, eu não sei, mas estou confusa. Pensei que Magia Antiga não tomasse partido nessa batalha entre Luz e Trevas. E mesmo assim você está aqui, contando que protegeu o meu irmão e o seu povo contra o Exército Vermelho, e que o pagamento que você quer é que eu limpe as Trevas desta árvore. Isso soa como se você estivesse tomando partido... não que eu me importe. Eu estou feliz que você esteja escolhendo a Luz. Só me pergunto por quê.

– Você está parcialmente correta, Garota Redbird. A Magia Antiga não escolhe lados, já que vemos as muitas camadas que compõem a Luz e as Trevas, e nós compreendemos profundamente que ninguém é completamente bom nem completamente mau. Eu concedi santuário ao seu irmão porque aceitei o pagamento dele, e não porque fiquei do lado dele contra as Trevas. Em relação a essa árvore, os espíritos elementais não são neutros quando uma abominação é cometida contra a natureza. E essa árvore, este lugar de poder elemental, foi de fato profanado, o que é uma abominação contra a natureza. Isso tem que ser consertado.

– Isso tem sentido, Z – Stark disse. – Ela soa muito como Sgiach, quando chegamos na ilha. Ela não sairia da ilha para combater as Trevas, mas, quando as Trevas invadiram a sua ilha, Sgiach lutou contra elas.

– Ah, a Rainha Sgiach. Nós ficamos tristes pela perda do Guerreiro dela.

– Você a conhece! – eu exclamei.

– Sim. Há muitos séculos.

– Como ela está?

– Em luto profundo. – E então Oak fechou a boca, deixando claro que não ia falar mais nada sobre a Rainha Sgiach, a Grande Cortadora de Cabeças.

– Ok, então, como o meu irmão está no Outro Mundo? – eu perguntei.

– O ferimento dele se curou. Nós concedemos santuário ao povo dele na montanha. Ele brande Magia Antiga com maestria.

– E o ferimento dele? – a minha pergunta saiu como um grito agudo.

– Ele se curou – Oak repetiu, como se pensasse que eu podia ser meio devagar.

Eu queria perguntar mais sobre Kevin ter se ferido, mas Aphrodite agarrou meu pulso e falou urgentemente para mim:

– Kevin está brandindo Magia Antiga. Foi isso que você sentiu.

– Sim, eu sei.

– Z – ela parecia exasperada –, lembre-se de como é brandir Magia Antiga.

E então eu percebi o que Aphrodite estava dizendo. Kevin estava encrencado, e ele provavelmente não sabia disso.

– Oak, você pode levar uma mensagem minha para Kevin?

– O seu pagamento foi por informação. Não para ser uma mensageira.

Eu baixei os olhos para a minha mão. A ferida tinha começado a coagular, mas eu sabia que podia abri-la de novo com a unha.

– Sangue. Eu pagarei com o meu sangue para você levar uma mensagem para o meu irmão.

– Não, Sacerdotisa. Você me julga mal. Não sou sua mensageira. Não tenho nenhum compromisso com você. Você me ofereceu um pagamento por informação. Eu dei essa informação. Agora você tem que cumprir o que me deve. Faça isso, e depois talvez me peça outra tarefa. Apenas tenha certeza de que o pagamento que você oferece é atraente...

E sem fazer nenhum barulho, Oak deu as costas para nós e, em um puf de névoa, ela desapareceu no meio da árvore caída.


11

Outro Kevin

Água da chuva gotejava do teto encurvado de pedra da caverna e formava poças, lama e barro ao redor dos pés de Kevin. Ele enxugou o rosto com a manga do seu casaco e espirrou violentamente.

– Acho que eu prefiro gelo do que essa droga de garoa e névoa. Se isso continuar por muito tempo, vai virar uma primavera de Oklahoma precoce com a tríade de coisas pé no saco que sempre vêm junto: tornados envoltos em chuva, pólen de ambrósia3 e carrapatos – Kevin resmungou para si mesmo.

– Ei, levante a cabeça! Podia ser bem pior. Que inferno, seria bem pior se você não tivesse nem vindo até aqui. Pelo menos estamos seguros, aquecidos e relativamente secos aqui.

Kevin sorriu ironicamente para o vampiro baixo, mas poderosamente musculoso, que pareceu se materializar de repente ao lado dele.

– Cara, você poderia ser menos silencioso? Esse jeito lento de andar não é bom para a minha ansiedade.

– Não há nada de errado com a sua ansiedade, Kevin querido. Mas Dragon não deveria importunar você andando por aí feito um espírito. – A adorável mulher com o véu de um longo cabelo loiro com mechas prateadas tocou o ombro de Kevin delicadamente, embora o afeto no seu olhar fosse todo direcionado a Dragon. – Principalmente com a quantidade de espíritos que temos por aqui. Eles podem ficar com inveja.

Dragon Lankford levantou as mãos em sinal de rendição.

– Anastasia, meu amor, não deixe que se diga que eu afronto os espíritos. – Ele fez uma pausa e então perguntou a Kevin: – Como eles são?

– Os espíritos? – Kevin disse, enxugando mais água da chuva do seu rosto enquanto saía da entrada da caverna muito maior e melhor.

– Sim, os espíritos. Você se lembra deles, certo?

– Ah, Bryan, deixe o garoto em paz. São os espíritos dele. É claro que ele se lembra deles. Todos nós lembramos deles e somos gratos – Anastasia Lankford repreendeu o seu companheiro, apesar de dizer isso deslizando o braço em volta da cintura dele com intimidade e recostando a cabeça rapidamente em seu ombro, o que Kevin achava que tirava totalmente a bronca que estava em suas palavras. Afinal de contas, que cara não levaria um sermão da bela Sacerdotisa numa boa se ela estivesse ao mesmo tempo encostando sua bochecha macia no ombro dele?

Em meio ao silêncio crescente, Dragon Lankford estalou os dedos algumas vezes na frente do rosto de Kevin, fazendo-o piscar e dar um pulo para trás – e se dar conta de que ele estava sentado lá encarando Anastasia como um menino de escola apaixonado.

Cara, eu preciso de uma namorada. Kevin suspirou internamente e se sacudiu.

– Desculpe. Eu estava pensando.

– Percebi. – Dragon deu um olhar divertido para ele.

Kevin devolveu o olhar com o seu próprio sorriso.

– Eu estava realmente pensando em mais coisas além da beleza da sua companheira.

– Bem, obrigada, Kevin querido. – Os cantos dos olhos de Anastasia se enrugaram de modo cativante.

Dragon limpou a garganta.

– Que outras coisas são essas em que você estava pensando?

– Que eu realmente preciso ir embora. – Kevin levantou a mão quando Anastasia começou a protestar. – Não, já faz três dias. As estradas estão limpas. O Exército Vermelho não voltou. – Kevin fez uma pausa e gesticulou para o local que antes era o fundo da minúscula caverna, mas agora era uma entrada em arco perfeita para um sistema de cavernas e túneis que serpenteavam como um labirinto, adentro da montanha rochosa. Mesmo de onde ele e os Lankfords estavam, todos podiam ver pessoas – novatos azuis, vampiros e humanos – apressadas indo de lá para cá, preparando o jantar, remendando roupas rasgadas, fervendo ervas para o chá e outras tarefas caseiras. Gatos caminhavam distraídos por ali, atrapalhando o caminho, mas também mantendo a população de ratos e de toupeiras sob controle. E de algum lugar mais lá embaixo na caverna, o aroma de chili se levantou, fazendo Kevin salivar. – Está tudo funcionando. A caverna está aquecida, seca e bem ventilada, e os espíritos estão mantendo a montanha encoberta com névoa. Já está na hora de eu ir embora.

– Eu concordo – Vovó Redbird chegou até a entrada da caverna, vindo do ponto mais fundo do seu interior recém-concluído. – Está tão agradável e aquecido lá atrás! Não sei como os espíritos fizeram isso, mas o sistema de ventilação é um milagre. Quase não tem fumaça nenhuma em nenhum lugar. Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Kevin, eu concordo com você. Se você demorar muito mais para voltar para a Morada da Noite, a sua reaparição vai levantar suspeitas.

– Mas Kevin voltar já não será suspeito por si só? – Anastasia questionou. – De acordo com o que ele nos contou, um grupo inteiro de novatos e soldados do Exército Vermelho e um general vermelho desapareceram. Como você vai explicar onde esteve? E onde eles estão?

Kevin soltou um longo suspiro.

– Andei pensando nisso e tenho uma ideia. Eu vou mentir.

Dragon deu risada.

– Obviamente!

– O que você quer dizer com isso, u-we-tsi?

– Bom, se alguém me perguntar sobre o restante do meu grupo, vou dizer que não sei nada sobre isso porque o meu general, que está morto lá no mundo da minha irmã, me mandou em uma missão de reconhecimento alguns dias atrás. E eu fui. Não encontrei nada de mais, mas aí acabei me perdendo.

– Acabou se perdendo? – Dragon bufou.

– Ah, eles vão acreditar. E também não vão me perguntar mais nada sobre o general. Pense na maneira como os vampiros vermelhos agem. Mesmo os oficiais não são muito mais do que máquinas de comer. O General Dominick era o meu oficial superior, mas até ele era basicamente um babaca desgraçado e do mal, que controlava os seus soldados com ameaças e medo. Para um vampiro vermelho, ele era considerado esperto, mas na verdade ele não pensava muito além de quem nós poderíamos atacar em seguida. – Kevin balançou a cabeça de desgosto. – Acredite em mim, sei tudo sobre isso. Eu estou me escondendo no Exército Vermelho há quase um ano, e nenhum deles jamais suspeitou que eu fosse diferente.

– Mas, Kevin, você tem um cheiro diferente agora – Anastasia lembrou.

– Essa foi a última coisa que eu andei tentando resolver. Tenho quase certeza de que nenhum vampiro azul vai prestar atenção suficiente em mim para reparar que eu não tenho um fedor.

– Mas “quase” não é bom o bastante, u-we-tsi.

– Os vampiros vermelhos vão reparar, não vão? – Anastasia perguntou delicadamente.

– Acho que eles podem reparar. Bom, não os soldados comuns, mas alguém como um dos generais vermelhos... tenho quase certeza de que iriam notar sim.

– O que Kevin pode fazer em relação a isso? – Dragon perguntou.

– Bom, eu posso pensar em jogar um feitiço sobre ele... algo que tenha um cheiro junto – Anastasia refletiu. – Mas qualquer Sacerdotisa que cruzar o caminho dele poderia facilmente perceber o rastro de energia do feitiço. E, se você estiver em qualquer lugar perto de Neferet, ela reconheceria o meu feitiço imediatamente.

– Então essa ideia está definitivamente fora de questão – Dragon afirmou.

– Que tal algo mais simples? – Vovó Redbird sugeriu. – Kevin, qual a intensidade que esse cheiro precisa ter?

Kevin deu de ombros.

– Não tenho certeza. Quando eu era um vampiro vermelho, nunca percebia o fedor.

– Depende do tipo de vampiro vermelho – Dragon explicou. – Os soldados fedem como cadáver e bolor. Já os oficiais, especialmente os oficiais de patentes mais elevadas, não possuem um cheiro tão ruim.

– Então, um oficial, como o Kevin, não tem o aroma muito mais forte do que o de um perfume de mulher? – Vovó perguntou.

– Acho que é uma boa comparação – Dragon respondeu. – Se a mulher exagerou e colocou perfume demais.

– Bom, u-we-tsi, isso vai parecer repugnante, mas acho que você deveria usar o sangue de um vampiro vermelho como se fosse perfume.

– Você quer que eu passe perfume de sangue em mim?

Vovó sorriu.

– Talvez funcione melhor se espalhar um pouco de sangue na sua pele em lugares que não possam ser vistos.

– Que nojento – Kevin resmungou.

– Porém prático – Anastasia disse.

– Sim, acho que vocês estão certas – Kevin falou. – Cara, eu queria poder fazer só uma tentativa sem o perfume de sangue fedido.

– Você não pode – Dragon afirmou. – Eles vão descobrir você, e vão nos descobrir em seguida.

– Eu jamais contaria a eles onde vocês estão! – Kevin protestou.

Anastasia colocou a mão no ombro dele.

– Não por livre e espontânea vontade, mas depois que eles torturarem você e o deixarem passar fome... bom, vamos apenas dizer que é melhor ficar fedido.

– Sim, você está certa. Então vou voltar para a estação hoje à noite, depois de conseguir um pouco de sangue de vampiro vermelho. Não vou gostar disso. – Kevin estremeceu e então estalou as juntas dos dedos. – Mas vou fazer tudo que tiver de ser feito. Ok, eu já tenho um plano, mas quero a contribuição de vocês.

– Claro – Anastasia disse, e os quatro foram até os bancos de pedra que os espíritos haviam esculpido de algum modo na parede da caverna. O corvo enorme que nunca ficava longe da Sacerdotisa voou para dentro da caverna e esticou suas asas escuras no ar frio, aterrissando em um afloramento rochoso em cima de Anastasia. – O que você está pensando, Kevin?

– Nós precisamos de Aphrodite.

– Aphrodite? – Dragon grunhiu.

– Antes que você reclame, apenas pense no que eu contei antes. O que aconteceria se não existisse mais o Exército Vermelho para Neferet usar como uma máquina de comer em tempos de guerra?

Dragon suspirou e assentiu.

– Sim, é verdade. Sem o Exército Vermelho, não seria mais tão fácil para Neferet ganhar a guerra.

– Exatamente – Kevin concordou.

– Então você deve saber que o risco compensa – Vovó Redbird disse.

– Certo. Vou pedir para Johnny B levar vocês até onde nós escondemos o Polaris. – Dragon voltou seu olhar sombrio para Vovó Redbird. – Sylvia, quero que saiba que você tem um lugar aqui conosco se preferir ficar.

– Obrigada, Dragon, mas eu preciso voltar para a minha fazenda. Eu sou protegida, então não corro perigo e posso ajudar mais lá fora do que me escondendo aqui.

– Como eu vou enviar mensagens para vocês aqui? – Kevin perguntou. – Vou tentar voltar para cá o maior número de vezes que conseguir, mas tenho que ter cem por cento de certeza de que ninguém está me seguindo. E se eu tiver informações que vocês precisam, mas não conseguir escapar?

– Isso é fácil – Anastasia respondeu, levantando os seus grandes olhos azuis na direção do corvo. – Vou enviar Tatsuwa para encontrá-lo todo dia. Ele vai voar em círculos sobre você. Se você tiver uma mensagem para nós, escreva em um pedaço de papel e dê a ele. Tatsuwa vai trazer a mensagem para mim. Da mesma forma, se nós tivermos uma mensagem para enviar, ele vai levá-la até você.

– Hum, como ele vai me encontrar? – Kevin deu uma olhada rápida para o corvo, e o grande pássaro grasnou para ele.

– Ah, você não precisa se preocupar com isso. Se você estiver ao ar livre, Tatsuwa vai encontrá-lo. A visão dele é tão aguçada quanto a sua inteligência.

– Anastasia, minha querida, eu já tinha visto o seu corvo adorável antes, e ele parece estar sempre perto de você, mas eu não tinha ouvido antes você o chamando pelo nome até recentemente. Eu queria dizer que gostei que você escolheu como nome dele uma palavra indígena – Vovó Redbird falou, aproximando-se do pássaro o bastante para acariciar suas penas pretas e brilhantes.

– Tatsuwa significa corvo em Cherokee? – Anastasia pareceu surpresa.

– Sim – Vovó Redbird respondeu. – Se você não sabia disso, como foi que deu esse nome a ele?

O sorriso brilhante de Anastasia iluminou a caverna quando ela olhou carinhosamente para o pássaro.

– Eu não o nomeei. Ele me disse o seu nome, não foi, Tatsuwa?

– Tatsuwa! – o corvo falou tão claramente quanto a Sacerdotisa que ele tinha escolhido como sua.

– Às vezes eu acho que os dois são mais próximos do que eu e ela – Dragon resmungou.

– Ciumento! – Tatsuwa grasnou.

Anastasia riu musicalmente.

– Ah, Tatsuwa, pare de provocar Bryan.

O pássaro saltou do seu poleiro e andou gingando até Anastasia, aconchegando-se ao lado dela, enquanto ela usava um dedo longo e fino para fazer carinho na penugem em cima do seu bico.

– Quantas palavras ele sabe falar? – Kevin perguntou, totalmente intrigado com o estranho pássaro negro.

– Ah, Tatsuwa não apenas imita palavras. Ele realmente fala – Anastasia explicou. Ela beijou o topo da cabeça do grande pássaro, e Kevin pôde jurar que ouviu a criatura ronronar.

– Um ta-tsu-wa é um aliado poderoso – Vovó Redbird afirmou. – Quando eles se ligam a alguém, essa ligação é para a vida toda.

– Se ao menos eu soubesse disso quando o encontrei, congelando e quase completamente sem penas no inverno passado – Dragon resmungou.

– Oh, Bryan, você nunca teria deixado ele sofrer e ficar para morrer – sua bela companheira falou. – Tatsuwa e eu somos gratos pelo seu bom coração.

– Obrigado, Bryan – o pássaro disse, soando igual Anastasia de um jeito desconcertante.

– Eu estabeleci o limite de ele não dormir conosco – Dragon disse.

– Meu amor, você sabe que ele prefere o ninho dele.

– Feito com os seus cabelos.

– Sério? – Kevin perguntou para Anastasia.

– Apenas parcialmente. O resto é feito com um dos meus velhos suéteres. E ele não arrancou o cabelo da minha cabeça. Ele é ótimo em limpar as minhas escovas.

Os olhos da Sacerdotisa faiscaram quando ela beijou o topo da cabeça negra lustrosa do corvo de novo.

– Humpf – Dragon resmungou. Então ele voltou seu olhar sarcástico para Kevin. – Mas o que tudo isso significa é que o pássaro é bizarramente inteligente e vai fazer qualquer coisa que Anastasia pedir.

– Ok, bom, acho que ele vai ser o meu celular então. É estranho, mas não tão estranho quanto o fato de ele dormir em um ninho feito com os cabelos da sua companheira. – Kevin levantou e se alongou, fazendo só uma pequena careta ao sentir uma fisgada na cicatriz do seu ferimento. – Você está pronta, Vó?

– Totalmente. – Vovó Redbird se levantou e fez mais uma longa carícia no corvo antes de abraçar Anastasia e depois o companheiro dela. – Obrigada por confiarem em mim.

– E em mim. – Kevin estendeu a mão para Anastasia, que sorriu docemente antes de abraçá-lo e de beijar sua bochecha.

– É tão fácil confiar em você quanto na sua avó – disse a Sacerdotisa.

– Bom, só depois que a gente supera essa sua Marca vermelha. – Dragon também puxou Kevin para um abraço com tapinha nas costas. – Fique em segurança, Kevin Redbird. Você pode ser a nossa única esperança de acabar com essa guerra sem nos render e condenar o nosso mundo às Trevas.

– Ei, sem pressão, certo? – Kevin se esforçou para não estalar os nós dos dedos.

Quando ele e sua avó saíram da caverna seguindo Johnny B, Tatsuwa passou voando por eles e então Kevin ouviu o pássaro chamando no vento:

– Garoto Redbird... Garoto Redbird... Garoto Redbird...

3 Causador de muitos casos de alergia no hemisfério norte. (N.T.)


12

Outro Kevin

– U-we-tsi, você tem certeza disso? – Vovó Redbird perguntou enquanto se inclinava sobre o assento, procurando algo dentro da grande cesta que ocupava a maior parte do banco traseiro do carro. Ela havia parado em uma das vagas na parte mais escura do estacionamento da Utica Square, bem no fundo.

– Não, mas eu tenho certeza de que você não pode me levar até a escola. Você está sob a proteção de Neferet, mas nenhum humano racional jamais iria entrar em um carro com um vampiro vermelho, a menos que estivesse prestes a ser devorado.

– Ah, aqui está! Eu sabia que tinha um desses aqui atrás. Coloque isso. Tem um capuz e deve ser grande o bastante para puxar para baixo para cobrir o seu rosto. – Vovó entregou a ele um velho moletom escuro que tinha um leve cheiro de lavanda, e ele o vestiu. Então ela abriu a cesta de novo e pegou uma bolsa de couro com uma tira grossa para colocar sobre o ombro. – Aqui, pegue isto também. Coloquei aí dentro algumas coisas que acho que você pode precisar. E, não, eu não quis dizer que eu deveria levá-lo de carro até lá. Entendo que isso é impossível e você pode facilmente ir a pé até a Morada da Noite. Estou preocupada com o seu perfume de sangue.

Vovó Redbird franziu o nariz quando disse as últimas palavras.

Kevin riu, colocou a tira da bolsa sobre o ombro e a abraçou.

– Você não precisa se preocupar com isso. Já pensei em tudo.

– Sei que isso é algo que você precisa fazer, mas me deixa muito angustiada pensar em você matando um novato ou vampiro vermelho.

– Vó, eu não vou matar ninguém.

– Então, você vai apenas cortar um vampiro vermelho para pegar o sangue de que precisa?

– Vó, eu tenho uma ideia melhor que essa. Vou visitar o necrotério da escola.

Vovó Redbird o abraçou forte.

– Oh, u-we-tsi, fico tão feliz em ouvir isso! – Então ambos riram como criancinhas por causa do ridículo de ficar feliz por alguém visitar um necrotério.

Finalmente, Kevin deu um beijo na bochecha dela.

– Prometa que não vai fazer nada que possa te machucar.

Ela segurou o rosto dele com as mãos e sorriu amorosamente, olhando nos olhos dele.

– Não posso prometer isso, mas prometo que vou ser sábia e pensar um pouco antes de agir.

– Acho que vou ter que me contentar com essa promessa.

– Acho que sim. – Vovó o beijou. – Vá com a proteção da Grande Deusa, u-we-tsi, e lembre-se sempre de como eu tenho orgulho de você.

Kevin odiou deixar sua avó para trás. Ele teve que se esforçar para não começar imediatamente a imaginar hordas de vampiros vermelhos insaciáveis atacando a sua fazenda para devorá-la por ajudar a Resistência.

Vovó está sob a proteção de Neferet.

Ninguém no Exército Vermelho ou Azul sabe que ela faz parte da Resistência.

Eu realmente preciso relaxar.

Pensamentos sobre a sua avó e a Resistência ficaram revirando sem parar na cabeça de Kevin enquanto ele cortava caminho pela Rua Vinte e Dois e seguia pela Avenida Yorktown em direção ao lado leste da Morada da Noite.

Era tarde – apenas algumas horas antes do amanhecer –, mas ele não estava preocupado. Visitar Zoey tinha dado a ele uma percepção maior da Morada da Noite, e ele sabia onde poderia se esconder em segurança do sol e de vampiros curiosos. Se os dois mundos fossem realmente mais parecidos do que diferentes. Se esta Morada da Noite não tiver sido construída como a de Zo...

Kevin balançou a cabeça. Não tem motivo para ficar pessimista a não ser que eu precise. Se tudo mais falhasse, ele sempre podia se fingir de bobo e ser apenas outro vampiro vermelho que tinha perdido o ônibus de antes do amanhecer para os túneis da estação. Com sorte, os vampiros azuis o deixariam ficar em um dos quartos escurecidos no dormitório e não iriam atirá-lo no meio da rua para fritar.

O muro de pedra que rodeava a Morada da Noite surgiu subitamente à sua direita, parecendo austero, intimidador e basicamente nada parecido com o da Morada da Noite iluminada e receptiva que a sua irmã comandava.

Por um instante, uma saudade profunda apertou, e Kevin desejou mais do que qualquer coisa que ele pudesse sair correndo para o Woodward Park e descobrir um jeito de reabrir o portal entre os mundos e deslizar de volta por ele – para nunca mais voltar.

– Mas e se eu realmente fizesse isso? O que iria acontecer com Vovó aqui? Ela nunca iria parar de se preocupar comigo e nunca iria sair do luto por perder Zo e eu – ele disse a si mesmo.

E agora havia Dragon, Anastasia e o restante da Resistência. Eles iriam achar que ele havia sido pego e morto, ou que tinha mentido para eles. Provavelmente iriam abandonar a caverna na montanha, o que seria realmente terrível. Não, Kevin não podia ir embora. Não importava o quanto ele quisesse isso.

Postes de rua feitos para parecer que eram do começo dos anos 1900, inclusive com as chamas tremulantes do gás, projetavam sombras em movimento pelo muro enorme. Kevin atravessou a Yorktown para se juntar a elas enquanto sua visão sobrenaturalmente aguçada começava a vasculhar a parede, procurando a pedra antiga e retangular em que estava inscrito 1926 – o ano em que o muro que circundava a escola havia sido terminado. Ele estalou as juntas dos dedos nervoso enquanto procurava, sem nem ter certeza de que ela estava mesmo ali. Zo tinha contado a ele sobre essa pedra – que era um tijolo específico no muro leste da escola que, na verdade, era parte de um sistema de alçapão acionado por molas. Esse tijolo no muro não parecia muito diferente dos outros, mas ela disse que do lado de fora ele estava marcado e que era através desse alçapão que novatos escapavam para fora do campus há quase um século.

Pelo menos era assim no mundo dela.

Aquele era o primeiro teste – a primeira vez em que ele iria ver o quanto os dois mundos eram parecidos em sua estrutura.

Quando os olhos dele avistaram a inscrição 1926, ele sentiu uma onda de alívio. O tijolo estava na altura dos seus olhos. Ele respirou fundo e o pressionou.

Houve um clique baixo quando algum mecanismo se abriu, e então o muro pareceu dar um suspiro ao aparecer um vão – com espaço apenas suficiente para alguém passar apertado por ele – naquela obra de alvenaria antes aparentemente perfeita.

Depois que entrou, ele empurrou o tijolo de novo e a porta se fechou, e então Kevin fez uma pausa. Ele se agachou contra o muro, desejando que a escuridão antes do amanhecer estivesse menos límpida e com mais névoa, chuva ou até gelo, mas, depois que o seu olhar fez uma varredura pelos jardins da escola, ele começou a relaxar. Aquela não era a Morada da Noite da sua irmã. Não havia garotos humanos se misturando aos novatos, azuis e vermelhos, brincando pelo jardim. Tudo o que Kevin viu foi um gramado meticulosamente bem-cuidado, alguns gatos furtivos e Guerreiros Filhos de Erebus de guarda em cada uma das portas do prédio principal.

Kevin definitivamente iria evitar o prédio principal.

Mantendo-se perto o bastante do muro para se misturar às sombras bruxuleantes da iluminação a gás, Kevin começou a correr. Ele seguiu o muro todo até passar pelo Templo de Nyx. Ao passar por ali, ele lançou um olhar nostálgico naquela direção. Ele nunca se esqueceria da sensação de amor e aceitação que experimentou com Zoey e os seus amigos dentro do Templo da Deusa. Esse lugar parecia quase exatamente igual a esse templo, embora não houvesse nem perto da mesma quantidade de velas brilhando através das janelas e ele não sentisse nem um pingo de aroma de baunilha ou lavanda.

É Neferet. Ela não está honrando a Deusa como Zo faz.

Esse pensamento deixou Kevin irritado e muito triste.

Logo depois do Templo de Nyx, o muro começou a fazer uma curva para a direita, onde ele corria paralelo à Rua Utica, e não muito depois disso Kevin avistou o prédio solitário que ele procurava, construído com a mesma pedra do muro e do resto da Morada da Noite, só que esse edifício era diferente.

Não que parecesse muito diferente. Ele era pequeno – realmente uma versão em miniatura do Templo de Nyx. Tinha um jardim de meditação estilo japonês adjacente que era emoldurado em três lados por um mausoléu, que guardava os corpos cinzentos dos novatos azuis que haviam rejeitado a Transformação.

– E apenas dos novatos azuis – Kevin murmurou para si mesmo. – Os novatos vermelhos são retirados do necrotério, queimados e então as suas cinzas são jogadas fora. Literalmente. Como lixo mesmo, eles são coletados com o resto do lixo da escola toda semana. Espero que hoje não tenha sido o dia da coleta.

Kevin se aproximou do mausoléu. Ele teria que atravessar o jardim de meditação para entrar no necrotério em si, mas ele não previa nenhum problema nessa hora. O necrotério não era exatamente um lugar efervescente da Morada da Noite. Na verdade, dificilmente alguém ia até lá, já que Neferet encorajava os novatos a “não ficar de luto por aqueles que se mostraram indignos”.

A areia do jardim de meditação continuou silenciosa sob os pés de Kevin e, apesar de a área parecer deserta, ele ficou satisfeito com a existência de biombos de madeira decorados que seccionavam o jardim, criando alcovas particulares de sombras.

Não muito longe, ele conseguiu ver a porta de madeira arqueada que era a entrada para o necrotério. Kevin estava quase deixando que a tensão saísse dos seus ombros quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento.

No meio do jardim de meditação havia uma bela estátua de Nyx. Aquela estátua em particular retratava Nyx como a deusa piedosa Kwan Yin. Feita de um onírico ônix branco, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, ela estava acesa por dentro e era a única luz no sereno jardim.

Na frente da estátua havia um banco de madeira simples, muito parecido com os bancos dentro de cada alcova de meditação, porém maior. No banco estava sentada uma figura solitária, com o rosto levantado, contemplando a Deusa.

Merda! Uma Sacerdotisa!

Kevin se enfiou rápida e silenciosamente na alcova de meditação mais próxima. Ele estava analisando a mulher sentada no banco, tentando ter uma visão mais clara do seu rosto e pensando que ela parecia familiar, quando outra pessoa entrou apressada no jardim, vindo da direção oposta, como se estivesse chegando do prédio principal da escola. Ela caminhou a passos largos até o banco, fazendo uma grande encenação ao baixar os olhos para a Sacerdotisa que estava sentada sozinha. Kevin se espremeu no canto da sua alcova e rezou para que nenhuma das duas o descobrisse ali.

– Aí está você! Um dos Guerreiros disse que viu você vindo nesta direção, mas eu tinha certeza de que ele estava errado. Eu inclusive falei isso para ele. Eu disse: “Por que a adorável Aphrodite iria querer passar um tempo no jardim do necrotério?”. Mas, como não consegui encontrar você em lugar nenhum e como você se recusa a atender o seu telefone, eu resolvi vir aqui procurar você.

Kevin sentiu um tranco de choque elétrico. Aquela era Aphrodite! E então a sua mente alcançou o seu choque quando ele reconheceu a voz da segunda Sacerdotisa.

O som do suspiro de Aphrodite atravessou a areia até Kevin.

– Olá, Neferet. Respondendo à sua pergunta, eu venho bastante aqui porque dificilmente alguém está por aqui. Gosto de ter tempo para pensar. Sozinha. É por isso que o meu telefone está desligado.

– Minha querida, isso seria aceitável se você fosse qualquer outra Sacerdotisa, mas você não é. Você é minha Profetisa.

– Não é como se eu estivesse tendo uma visão neste exato momento.

Kevin sorriu ao ouvir a voz sexy e sarcástica de Aphrodite. Ele raramente tinha visto Neferet tão de perto. Ele nunca tinha falado com ela, mas havia testemunhado como os outros vampiros a tratavam – com respeito e uma dose segura de medo. Aphrodite, não. Aphrodite falava com Neferet como se elas estivessem no mesmo patamar, e ela estivesse irritada por ter sido interrompida.

– Neste momento você não está, mas você teve uma visão mais cedo.

Aphrodite se levantou e encarou a Grande Sacerdotisa mais alta.

– Você colocou espiões para me observar?

– Espiões? Não. Só aqueles que são leais e que cumprem o seu papel de me informar sobre qualquer coisa que eu possa considerar importante, e o fato de a minha Profetisa ter uma visão e esconder isso de mim definitivamente é importante.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo, o qual capturou a luz suave da imagem da Deusa e brilhou como fios de ouro.

– Ah, que merda! Eu não estou escondendo nada. Eu achei seriamente que vir até o necrotério poderia ajudar. Não estou vendo nada além de morte nas minhas visões. A visão de hoje não foi diferente. Você quer saber o que eu vi? Novatos e vampiros azuis sendo massacrados em um campo por uma horda nojenta de vampiros vermelhos. Na verdade, a única coisa que eu posso dizer especificamente, além de quem estava massacrando quem, é que era um campo de trigo de inverno que tinha acabado de ser cortado. Tinha um cheiro muito bom, até o fedor dos vampiros vermelhos tomar conta de tudo. Nada mais estava muito claro. Apenas morte, sangue, massacre e pânico em um campo infestado de soldados vermelhos.

– Qual campo? Onde? – Neferet falou rispidamente.

– Eu não sei! Neferet, eu continuo tentando fazer você entender que eu sempre tenho as minhas visões do ponto de vista de alguém que está morrendo, normalmente de um jeito horrível. Por isso que é tão difícil compreendê-las. Portanto, como as minhas malditas visões são tão cheias de morte, faz sentido que eu possa encontrar uma resposta perto do necrotério. Tipo, você acha que eu quero dar uma voltinha aqui? Cai na real. Este lugar não é o meu estilo.

– Oh, então você quer a real? – Neferet disse com voz baixa. Kevin sentiu a sua alma estremecer quando Neferet deslizou para mais perto de Aphrodite, fazendo a jovem vampira dar um passo para trás na areia do jardim. – O que é real é que há um movimento de Resistência do meu próprio povo lutando contra mim. O que é real é que a cada dia novatos azuis, vampiros azuis e até humanos fracos e repugnantes desertam nosso exército. Eles vão embora! Como se eu não soubesse o que é melhor para eles! Como se eu não fosse a Grande Sacerdotisa!

– Bom, você realmente não é a Grande Sacerdotisa de nenhum humano – Aphrodite respondeu.

Rápida como uma víbora, Neferet atacou Aphrodite. O tapa ecoou por aquele espaço sereno, e Kevin se encolheu em um reflexo de empatia.

– Nunca diga o que eu sou ou deixo de ser! Tudo o que eu quero é que você me diga como alcançar o fim da Resistência. Se você não consegue fazer isso, você tem menos utilidade para mim do que um vampiro vermelho raivoso e recém-Transformado. Pelo menos eles lutam por mim. Refresque a minha memória, minha querida, o que é que você faz por mim?

– Eu sou sua Profetisa.

– Mesmo? As suas visões se tornaram nada mais do que disparates confusos e sem sentido.

– Mas eu só posso ver o que Nyx permite que eu...

– Talvez você conseguisse trabalhar melhor se rastejasse menos diante de Nyx e passasse mais tempo servindo a sua Grande Sacerdotisa! – Neferet a interrompeu.

– Neferet, eu sou uma Profetisa de Nyx. O meu poder vem da Deusa. Se eu não rastejar, como você diz, então eu não tenho nenhuma visão.

– Então talvez você deva procurar poder em outro lugar, minha querida. Ou você prefere que eu a envie junto com o Exército Vermelho no próximo confronto deles contra nossos inimigos? Melhor ainda, alguns generais meus sugeriram que eu deveria ser mais presente para meus soldados vermelhos. – Neferet fez uma pausa e Kevin viu que ela estremeceu de asco. – Mas eu simplesmente não suporto o cheiro e a burrice deles. Eles realmente não são nada além de animais raivosos. Talvez você seja a minha resposta para o pedido dos generais. Talvez você deva transferir as suas coisas para a estação e virar a Profetisa deles. Você pode até ir para a guerra com eles. Ver a morte de verdade em vez de suas visões complicadas pode ser uma experiência de iluminação para você! Você pode se acostumar com isso e começar a ser capaz de pensar um pouco durante as suas visões.

Kevin ficou estarrecido com as palavras de Neferet. A estação e os túneis eram pouco mais do que celas para o Exército Vermelho e os novatos vermelhos recém-Marcados. Tudo fedia lá embaixo – até Kevin tinha se sentido enojado. E era imundo – realmente asqueroso, com restos de humanos em decomposição espalhados como bonecas quebradas gigantes, que o exército comia. Os novatos e vampiros vermelhos que habitavam aquele lugar não eram muito distantes de animais. Kevin odiava só imaginar o que ser forçada a viver com eles faria com Aphrodite.

– Eu vou para onde você mandar, mas prometo que estar cercada pelo Exército Vermelho não vai ajudar as minhas visões em nada – Aphrodite tentou soar forte, como se ela particularmente não se importasse para onde Neferet iria enviá-la, mas Kevin conseguiu escutar o pânico dela, levemente encoberto pela indiferença.

– Você tem que descobrir o que vai ajudar as suas visões! Se você não começar a me dar alguma informação que eu possa usar, vai perder os seus aposentos suntuosos, o seu serviço de quarto e o seu abastecimento inesgotável de champanhe e de vampiros azuis viris com quem você vadia o dia todo. Tudo isso – Neferet fez um gesto nervoso que abarcou o jardim sereno, o terreno da escola e o pequeno e organizado necrotério – será substituído por túneis úmidos, fétidos e morte, já que eu estou começando a acreditar que os seus dons são relevantes apenas para os mortos. Então, da próxima vez que nos falarmos, espero que você consiga lembrar de mais detalhes a respeito de sua última visão. Ou pode ir arrumando a sua mala Louis Vuitton e se preparando para a mudança.

Com um rodopio do seu vestido longo de seda, Neferet deu as costas a Aphrodite e saiu com passadas firmes, deixando a sua Profetisa em pé sozinha nas areias do jardim de meditação iluminadas pela lua.

Kevin permaneceu ali, observando Aphrodite silenciosamente. Assim que Neferet saiu, os ombros da jovem Profetisa desabaram. Ela esfregou a lateral do rosto onde havia sido atingida, e Kevin teve quase certeza de que ouviu ela segurar um soluço.

E então ela fez algo que Kevin não esperava de jeito nenhum. Aphrodite não foi embora. Ela não voltou para o aconchego e a opulência dos seus aposentos no prédio principal da Morada da Noite. Em vez disso, ela se virou e por um instante ele pensou que ela estava vindo na direção da sua alcova. A mente de Kevin zuniu, freneticamente testando e descartando mentiras que ele poderia contar, desculpas que ele poderia dar por estar ali.

Ela parou e desabou no banco em que estava sentada antes de Neferet a interromper. Com um suspiro que soou como se tivesse saído das profundezas da sua alma, ela tirou do pé direito um sapato de salto brilhante que parecia muito desconfortável e começou a fazer pequenos desenhos na areia com o que ele podia ver claramente que era o seu dedão, a unha pintada de rosa.

– Nyx, ela é tão horrível! – Aphrodite disse para a estátua. – Talvez eu deva dizer para Neferet que ela está ficando velha. Ela não está, claro, aquela vaca. Mas, se eu começar a perguntar se ela está dormindo direito e mencionar pés de galinha e peitos caídos, sabe, no geral... não sobre ela especificamente, ela vai ficar tão paranoica que pode ser que ela foque mais no espelho dela do que em mim – ela soltou outro longo suspiro derrotado. – Não quero contar para ela tudo que eu vejo. Eu... eu não suporto saber que sou a causa de mais mortes. Lenobia, Travis e todos aqueles cavalos... – A voz de Aphrodite se perdeu em um soluço. Então ela enxugou os olhos com raiva e levantou a cabeça para a Deusa. – Nyx, ela é a sua Grande Sacerdotisa, mas eu simplesmente não entendo. Ela é terrível. Eu a odeio mais do que odeio aquelas lojas de departamento baratas e horríveis onde tudo está sempre em liquidação e os caipiras que compram lá precisam ficar remexendo em araras e mais araras cheias de porcarias bregas sem o benefício de provadores com lustres de cristal e taças de champanhe.

Ela estremeceu delicadamente.

Pego completamente desprevenido pela comparação muito bizarra e muito no estilo de Aphrodite, Kevin riu alto.

A atitude de Aphrodite mudou instantaneamente. A sua espinha ficou ereta. Ela atirou o cabelo para trás e franziu os olhos azuis que faziam uma varredura no jardim de meditação.

– Quem é que está aí?

Kevin congelou. Então, lembrando do moletom que Vovó tinha lhe dado, ele puxou o capuz sobre a cabeça o máximo que podia – esperando fortemente que o capuz e as sombras fossem o bastante para encobrir a sua tatuagem vermelha.

Aphrodite levantou, colocando o seu pé arqueado de volta no sapato brilhante. Ela deu alguns passos no jardim de meditação, na direção exata da alcova de Kevin.

– Eu já perguntei, quem está aí?

– De-desculpe. Eu não queria perturbar você – ele gaguejou, pensando que era mais inteligente admitir a sua presença do que ser descoberto fugindo nas sombras.

Ela marchou até a alcova de meditação e parou diante dele, com as mãos no quadril.

– O que é? Que merda você quer de mim? Saber o futuro? Conhecer a Deusa? Me conhecer? – ela zombou dele, e o seu rosto bonito virou algo maldoso e cheio de ódio. – Bom, você está sem sorte. Não posso ajudar você com nenhuma dessas coisas.

– E-eu não estou aqui porque quero alguma coisa de você! – Kevin falou honestamente, sem pensar. A sua mente estava acelerando como um carrinho de bate-bate no Festival Rooster Days,4 chocando-se contra ideias e quicando quando ele as rejeitava.

– Ah, é claro que não. Todo mundo quer alguma coisa de mim – Aphrodite afirmou, e Kevin viu que um lampejo de emoção bruta, com amargura e repleta de dor, cruzou o rosto dela. – Quanto tempo faz que você está aí?

Ele abriu a boca para tentar responder, mas ela não deu chance para ele começar.

– Você trabalha pra ela? Ela colocou você aqui para me espionar? Se foi isso, escute aqui e escute bem: eu não ligo se você vai contar para ela que porra eu falei. Eu vou mentir. Vou dizer a ela que estava sentada rezando para Nyx e que você me interrompeu bem na hora em que eu estava tendo uma resposta da Deusa. Ela vai acreditar em mim porque, não importa o quanto ela goste de transar com homens, Neferet, na verdade, não gosta de homens. E ela nunca, jamais confia neles. Então, seja lá quem você for, se for falar de mim para Neferet, ela vai acabar acreditando em mim e odiando você, porque ela precisa de poucos pretextos para odiar qualquer homem.

Kevin ficou atordoado com a profundidade da crueldade na voz dela. A Profetisa linda e triste, que apenas alguns segundos atrás estava sentada melancolicamente em um banco conversando com a sua Deusa, tinha se transformado em alguém detestável.

Devagar, de maneira bem clara, Kevin disse:

– Ah, eu acredito. Você obviamente sabe do que está falando. Vocês se parecem muito.

Aphrodite deu um solavanco para trás, como se ele tivesse dado outro tapa na sua bochecha.

– Quem é você?

Kevin se pressionou contra a alcova, desejando que ele pudesse se tornar uma sombra.

– Eu não sou ninguém. Neferet não me mandou até aqui. Eu não tinha ideia de que ela estaria aqui. Eu não tinha ideia de que você estaria aqui.

– Então que diabos você quer? – Aphrodite perguntou de novo.

Ela parecia tão fria, tão diferente da sua Aphrodite, que a irritação de Kevin começou a cozinhar em fogo brando junto com o seu medo. Se ela gritasse, um Guerreiro Filho de Erebus certamente a ouviria. Ele seria arrastado para fora dos jardins por perturbar a Profetisa de Neferet e se tornaria o centro das atenções – sem nem ter seu perfume fedido de sangue.

Ele seria descoberto como alguém diferente, e isso seria péssimo em vários níveis. Então ele endureceu a sua voz e abasteceu a sua irritação com o seu medo.

– Ei, eu já disse. Não quero nada de você. Não queria nem estar aqui... neste lugar horrível que tem cheiro de morte neste maldito mundo horrível!

Ele pôde ver que as suas palavras a abalaram. Houve um longo silêncio enquanto ela ficou encarando a sombra sentada que era Kevin. Quando ela falou, a sua voz tinha perdido aquela ponta de amargura, e a sua pergunta simples o surpreendeu.

– Você perdeu alguém que amava?

Aquela pergunta penetrou na mente dele, trazendo com ela imagens de um mundo perdido, uma vida deixada para trás. Zoey, rindo com a sua Horda Nerd. Vovó Redbird, dando a ele uma bolsa medicinal e tentando não chorar ao dizer adeus. A Aphrodite do outro mundo, sorrindo para ele enquanto os seus olhos faiscavam como pedras preciosas com humor e aquele seu tipo especial e sarcástico de inteligência. Damien e Jack, de mãos dadas e parecendo tão, mas tão felizes e apaixonados, e novatos vermelhos e azuis divertindo-se pacificamente na neve, rodeados por gatos e amor. Sempre o amor.

– Sim – ele perdeu a voz e teve que limpar a garganta antes de continuar. – Sim. Eu perdi o meu mundo inteiro.

O rosto dela mudou. Ele se suavizou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto impecável, e Kevin pensou que ele nunca tinha visto ninguém mais triste nem mais bonita.

– É, eu também. Eu me perdi. Sinto a mesma coisa.

Então ela se virou e saiu do jardim de meditação sem nem mais uma palavra ou olhar na direção dele.

4 O festival mais antigo de Oklahoma. (N.T.)


13

Outro Kevin

Kevin tomou uma decisão rapidamente. Ele poderia ir embora – imediatamente. Poderia fugir, correr para a Utica Square, ligar para Vovó e voltar para a montanha. Ou ele podia levantar a bunda daquele banco no qual estava praticamente colado e entrar no necrotério para coletar um pouco de sangue fedido de vampiro vermelho para camuflar o seu cheiro e continuar com o trabalho que ele havia se disposto a fazer.

Ele sabia o que Zoey faria.

Kevin se mexeu o mais rápido e o mais silenciosamente possível. O seu olhar vasculhou a área enquanto os seus ouvidos se esforçaram para escutar até o menor dos sons de alguém se aproximando enquanto ele atravessava o jardim de meditação em direção à porta do necrotério. Quando ele chegou lá, não hesitou. Kevin abriu a porta e entrou.

Ele já tinha estado no necrotério apenas uma vez. Foi com o General Dominick logo antes de ele ser promovido a tenente. Eles haviam tido uma briga com um grupo de humanos que haviam formado uma milícia a leste de Broken Arrow, no meio de algumas terras do estado que já haviam sido um campo de escoteiros no passado, mas que agora era um lugar desleixado, com trilhas abandonadas e cobertas de vegetação. Os humanos tinham se recusado a desistir. Neferet enviou o Exército Vermelho.

Foi um massacre brutal. Todos os humanos foram mortos. O Exército Vermelho perdeu uma dúzia de soldados. O general havia pedido por voluntários para trazer os corpos dos vampiros vermelhos que tombaram de volta para a Morada da Noite, e Kevin imediatamente se candidatou, pensando que dirigir um caminhão militar cheio de vampiros mortos empilhados era muito melhor do que ficar lá e se juntar ao resto do exército enquanto eles despedaçavam os humanos e os devoravam. O General Dominick havia ficado impressionado com a habilidade de Kevin de liderar essa missão e imediatamente o promoveu de cargo.

Assim, Kevin sabia exatamente aonde estava indo – embora não estivesse ansioso para chegar lá.

Ele seguiu pelo corredor da entrada até o final, ignorando as portas que estavam enfileiradas à direita e à esquerda. Elas davam para salas cheias de vampiros azuis que haviam morrido durante as batalhas e de novatos azuis que rejeitaram a Transformação. Não havia nenhum vampiro vermelho em nenhuma dessas salas, já que Neferet fazia questão de manter os seus Exércitos Vermelho e Azul separados, até mesmo na morte.

Não havia nenhuma sinalização em nenhuma dessas portas, exceto na última delas, no final do corredor. Essa porta estava marcada claramente com um grande X vermelho. Kevin não hesitou. Ele abriu a porta e entrou silenciosamente no quarto escuro.

O cheiro foi a primeira coisa que o atingiu. A sala era fria, mantida daquela forma para que os corpos não entrassem em decomposição antes que pudessem ser queimados e então descartados como lixo. Não havia quase nada na sala, exceto mesas e armários de metal alinhados contra uma parede. Ele rapidamente contou dez mesas. Apenas uma delas estava ocupada. Desviando o olhar dessa mesa, Kevin foi rapidamente até os armários e começou a vasculhar os suprimentos médicos.

Levou pouco tempo para encontrar um vidro com tampa.

Kevin pegou o vidro e foi até a mesa ocupada. Um corpo jazia ali, coberto por um lençol ensanguentado.

É só fazer isso. Só faça logo e acabe com o sofrimento.

Kevin levantou o lençol do corpo e suspirou com tristeza.

– Caramba, cara, isso deve ter doído.

A causa da morte do jovem vampiro vermelho era óbvia. Algo tinha esmagado a sua cabeça. Todo o lado direito da cabeça, da maçã do rosto para cima, estava um horror. Kevin queria desviar os olhos. Ele não queria olhar para o rosto daquele cara, mas não conseguia evitar.

O vampiro morto era tão jovem! O seu rosto, congelado pela morte, estava medonho do lado ferido, mas no restante dele parecia que ele mal tinha dezoito anos.

– Você não deve ter se Transformado há muito tempo – ele falou em voz baixa para o cadáver. – Eu também não. Eu me lembro tão bem de me Transformar. Lembro de como fiquei com medo, sabendo que a minha humanidade estava escapando de mim. Eu ainda não sei o que é pior. Perder totalmente a sua humanidade e virar uma máquina de comer, ou manter a humanidade e compreender muito bem a sua monstruosidade. – Kevin colocou a mão no ombro frio e sem vida do garoto. – Sinto muito. Vou tentar fazer o melhor que posso para evitar que outras pessoas virem monstros, mas eu preciso da sua ajuda. Isso não vai ser agradável, e fico realmente feliz que você não pode sentir nada, mas assim mesmo eu sinto muito por ter que fazer isso com você. Ok, bom, vou acabar logo com isso e depois eu cubro você de novo.

Primeiro, Kevin levantou o braço do vampiro morto, virando-o para ter acesso ao lado de baixo do antebraço.

– De novo, cara, desculpe.

Então, ele pressionou a unha do seu dedo indicador com força contra a pele flácida, cortando devagar a veia principal do pulso até o cotovelo. A pele se partiu facilmente sob a unha sobrenaturalmente afiada de Kevin, e ele trabalhou rápido, apertando e pressionando para fazer o sangue estagnado e coagulado passar para dentro do vidro.

O cheiro era terrível – ainda pior do que o de vampiros vermelhos vivos, que já era péssimo. Kevin continuou mesmo assim, passando para o outro braço e depois finalmente rolando o corpo de lado para expor mais sangue estagnado. Era um trabalho demorado. O sangue era pegajoso e estava coagulado, e era totalmente repugnante ordenhar sangue do corpo morto como se fosse uma vaca. Finalmente, Kevin se viu tendo que enfiar os dedos dentro dos cortes que ele fez para tirar aquela coisa viscosa para fora. Com o vidro cheio, ele finalmente colocou a tampa antes de ir até a pia.

Cuidadosamente, Kevin levantou o moletom e a camiseta que estava usando por baixo. Com uma careta de nojo, ele esfregou uma linha de gosma sangrenta com cheiro podre na barriga, logo acima da cintura da sua calça jeans. Ele também puxou as mangas para cima, esfregando mais sangue nas dobras dos seus cotovelos. Satisfeito com o trabalho, pois agora ele passaria em um teste de cheiro de vampiro vermelho, lavou as mãos e o vidro e então pegou um monte de papel toalha em um dispenser de metal posicionado sobre a pia. Kevin molhou metade dos papéis toalha e então foi de novo até o corpo.

– Nunca mais vou comer nada que pareça geleia de morango. Jamais – Kevin disse para o cadáver. – Não vou deixar você assim. Não que alguém fosse notar. Eles vão levar você na maca de rodinhas e colocá-lo dentro do crematório sem nem olhar para você. Mas assim mesmo... não é certo deixar você assim.

Kevin limpou o sangue do corpo, colocando as roupas de volta no lugar e até secando a mesa. Quando o vampiro morto pareceu quase arrumado, Kevin colocou a mão de novo no ombro do garoto morto.

– Obrigado. O seu sangue vai fazer com que eu não seja pego... para que eles não saibam que eu sou diferente. Eu vou mudar as coisas por aqui. Dou a minha palavra. Vou ser parte de um milagre. Sei que isso pode acontecer porque eu já presenciei isso antes. Eu já senti. E agora eu vivo isso. Eu vou garantir que vampiros vermelhos não sejam mais monstros. Eu prometo. – Kevin baixou a cabeça e sussurrou para a sua Deusa: – Obrigado, Nyx. Por favor, receba este garoto no seu bosque. Ele não pediu por esse destino. Não importa quem ele era quando humano, bom ou mau, ele não merecia isso.

Então, devagar, Kevin puxou o lençol ensanguentado sobre o corpo do jovem vampiro vermelho.

Kevin enfiou o vidro dentro do bolso interno da mochila – bem longe dos cookies deliciosos da sua avó. Então ele colocou a tira da mochila sobre o ombro de novo e foi até a porta, abrindo-a apenas o suficiente para espiar o corredor e dando um suspiro de alívio ao ver que estava deserto.

Sem perder nem mais um segundo, Kevin se apressou pelo corredor e saiu pela porta. Ele contornou discretamente o lado do necrotério que dava para o resto dos jardins da escola e analisou a área. Uma sensação familiar de apreensão terrível subiu pela sua espinha quando ele percebeu que, em vez de um céu preto, o mundo ao redor dele tinha começado a se alterar para cinza e rosa.

O amanhecer! Kevin quis dar um chute nele próprio. É claro que eu me sinto apreensivo. Em quinze minutos, o sol vai se levantar e fritar a minha bunda!

Ele não tinha tempo a perder. Puxando o capuz para cobrir a maior parte do seu rosto, Kevin caminhou rapidamente com confiança pelo jardim da escola.

Ele não viu nenhum novato, e os únicos vampiros que ele notou eram Guerreiros Filhos de Erebus pegando o turno do dia e aliviando os vigias da noite. Kevin atravessou o campus até a entrada dos fundos do Ginásio e do centro equestre abandonado. Ele manteve o rosto virado para o outro lado quando passou por dois Guerreiros que estavam discutindo as instruções para os oficiais que Neferet havia anunciado, de que eles deveriam comparecer ao auditório às 2000 horas5 do dia seguinte.

Ele teve que dar tudo de si para não socar o ar e gritar “Ótimo!”. Um informe para os oficiais era exatamente tudo que ele precisava – e o que Dragon precisava ouvir!

Quando Kevin entrou no Ginásio, ele seguiu pelo corredor, virando algumas vezes até chegar a uma porta comum, que ele esperava desesperadamente que desse para o porão, assim como era no mundo de Zo. Ele tentou abrir a maçaneta da porta, e ela estava trancada!

– Droga! – Kevin sussurrou a palavra. – Agora o que é que eu vou fazer?

Se alguém o visse durante as horas de luz do dia, ele seria pego. Vampiros vermelhos nunca ficavam na Morada da Noite depois do amanhecer. Ele não podia nem fingir ignorância e dizer que estava perdido. Ninguém acreditaria nele. Desde o momento em que um novato era Marcado como vermelho e trazido para a Morada da Noite, era incutido dentro dele que ele tinha que estar nos túneis antes do nascer do sol. A única exceção era se o vampiro vermelho estivesse em uma missão do Exército Vermelho.

A mente de Kevin acelerou e rejeitou uma ideia após a outra. Ele simplesmente não tinha mais tempo. Ele precisava se esconder no porão.

Ele precisava de ajuda.

– Droga, se pelo menos eu conseguisse passar por aquele buraco da fechadura como o ar... – Kevin murmurou para si mesmo enquanto estalava os dedos. Ele queria ter conhecido esta Morada da Noite como ele conhecia os túneis, assim saberia onde se esconder e ficar seguro até...

Ele teve uma ideia! Ele não tinha tempo para pensar se estava cometendo um erro. Ele não tinha tempo para pensar melhor. Ele só teve tempo para fechar os olhos e respirar profundamente algumas vezes para se acalmar. Então ele abriu os olhos, encarou o leste e fez a invocação.

– Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder no meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim!

A resposta veio rápido e de forma desconcertante. Diante dele, várias fadas brilhantes parecidas com vaga-lumes brotaram de repente, pairando na altura dos seus olhos, trazendo com elas a sensação de alguma coisa rastejando na pele que Kevin tinha todas as vezes que invocava Magia Antiga.

– Garoto Redbird! Você nos chamou de novo! E nós viemos! Nós viemos! – Elas ficaram esvoaçando de um lado para o outro, mudando de lugar enquanto os seus corpinhos se alteravam de insetos para mulheres aladas e depois para insetos de novo.

– Muito obrigado mesmo! Ok, eu só preciso de uma coisa, mas tem que ser muito rápido. – Ele apontou para o buraco da fechadura na porta. – Vocês podem entrar ali e destrancar essa porta? Eu tenho que entrar aí imediatamente.

– Nós podemos fazer isso – disse uma fada esvoaçante.

– Mas qual é o pagamento? Qual é o pagamento? – gorjeou a outra.

Ele abriu a boca para dizer às fadas que iria pagar com mais sangue, mas um espírito risonho, que mostrava muitos dentes afiados quando ria, interrompeu Kevin antes que ele conseguisse falar.

– Nada de sangue desta vez! Nós queremos algo especial!

– Sim – a primeira fada concordou. – Especial!

Kevin teve vontade de arrancar os cabelos de frustração e se perguntou brevemente se os espíritos considerariam o seu cabelo um pagamento especial. Felizmente, ele teve outra ideia. Ele enfiou a mão dentro da bolsa de sua avó e pegou um cheiroso cookie de chocolate e lavanda feito em casa. Erguendo-o para que vissem, ele sorriu para os espíritos.

– Bom, é impossível alguma coisa ser mais especial do que este cookie. Ele foi feito pela minha avó, a Mulher Sábia que estava na montanha comigo. Vocês sabem, vocês comeram uma das bolsas medicinais dela.

– Ooooooh! – Os espíritos ficaram ainda mais brilhantes enquanto pairavam no ar ao redor do cookie. Então, juntas, para que as suas vozes ecoassem misteriosamente nas paredes de pedra ao redor dele, as fadas falaram de modo ritmado:

“Um pagamento especial nós vemos sim

Oferecido por ti e aceito por mim.

O nosso acordo está selado – que assim seja!”

A revoada de espíritos do ar de Magia Antiga atacou o cookie como uma nuvem de gafanhotos. Kevin deu um gritinho e o soltou enquanto eles devoravam cada migalha. Então, sem nenhuma hesitação, os espíritos incandescentes mergulharam para baixo, passando através do buraco da fechadura, por baixo da porta e pelo vão do batente.

Kevin ficou parado ali, perguntando-se o que iria acontecer em seguida, quando ele ouviu o trinco girar. Ele segurou a maçaneta e empurrou a porta. Ela se abriu facilmente. Ele a fechou atrás de si e, quando se virou para seguir seu caminho descendo a escada íngreme até o porão, um único espírito apareceu, flutuando perto de sua cabeça.

– Obrigado – Kevin agradeceu. – Vocês me ajudaram muito.

– Nós gostamos do seu chamado, Garoto Redbird. Nós gostamos do seu pagamento. Chame quando precisar de nós, mas não se esqueça de que nós gostamos de pagamento especial... pagamento especial... – enquanto o espírito falava, a sua aparência continuou a se alterar de um grande vaga-lume para uma bela mulher alada e então para algo com mais braços e pernas do que ela deveria ter e uma boca que parecia crescer sem parar, até que o rosto dela pareceu se dividir no meio.

E então, em um lampejo de luz, o espírito desapareceu, deixando Kevin com uma terrível sensação de apreensão.


Zoey

– Z? Você está aí? – Stark me chamou ao entrar nos nossos aposentos. – Recebi sua mensagem de texto para vir encontrar você.

– Você chegou cedo! – eu gritei do banheiro. – Não se mexa!

– Ahn?

– Eu disse “não se mexa”! Fique aí na porta. Feche os olhos!

– É pra eu fechar os olhos?

Eu escutei o tom confuso na voz dele, de quem estava achando graça, mas eu realmente não queria que ele estragasse a minha surpresa.

– Se você não quer fechar os olhos, então vire de costas.

– Ok! Ok! Estou fechando os olhos. Ahn, Z. O que você está fazendo?

O que eu estava fazendo? Eu estava tentando compensar o meu Guerreiro por deixá-lo totalmente preocupado e ser romântica ao mesmo tempo.

– Aguente aí. Você vai ver em um segundo!

– Eu achei que você nem voltaria para cá até depois do nascer do sol. Você não estava na estação com Damien e Kramisha?

– Sim! – eu gritei da porta do banheiro. – Bom, fiquei lá um tempo, mas Aphrodite decidiu palpitar na decoração do restaurante, e eu tive que ir embora.

– Ficaram se bicando muito?

– Pois é – eu disse. – Ok, estou saindo. Mantenha os olhos fechados até eu falar pra você abrir, ok?

– Como quiser, minha Rainha.

Eu senti o sorriso na voz dele, o que me fez sorrir de volta, e então dei uma última conferida em mim mesma no espelho. Eu não usava muita maquiagem no geral. Na verdade, eu tinha uma questão em relação à maquiagem. Eu detestava que a sociedade dissesse que tínhamos que usar isso para “parecer o nosso melhor”. Parecer o nosso melhor? Com um monte de porcaria espalhada por todo o rosto, escondendo tudo o que realmente somos? Hum, não. Eu concordo com a fabulosa Alicia Keys – eu não quero cobrir o meu rosto, nem a minha mente, nem a minha alma, não quero cobrir nada. Então, eu ajeitei o meu cabelo e sorri para a minha cara recém-lavada. Pronta!

Coloquei a cabeça para fora do banheiro para dar uma espiada. Nada de Stark. Descalça, entrei pisando de leve no nosso quarto, endireitando a toalha de piquenique que eu havia estendido no chão e afofando as almofadas que eu tinha disposto ali perfeitamente para nos sentarmos.

– Z?

– Fique de olhos fechados! – Atravessei rapidamente o quarto até a sala de estar e sorri quando vi o meu Guerreiro ainda parado na frente da porta com os olhos fechados. Fui até ele e peguei a sua mão.

– Posso abrir os olhos agora?

– Não, só quando eu disser que pode, mas me siga.

– Eu vou trombar com alguma coisa.

– Não seja um crianção. Eu guio você. – Eu o conduzi devagar ao redor da mesa de café e de outros obstáculos, finalmente colocando-o ao lado da toalha de piquenique. – Ok, aguente aí só mais um segundo. – Eu o deixei parado ali e fui rapidamente até o outro lado da toalha, apertando o controle remoto da grande TV que estava pendurada na parede, conferindo para ter certeza de que estava sem som. Então eu ajeitei nervosamente meu cabelo de novo antes de dar a autorização. – Ok, pode abrir os olhos agora!

Ele abriu, e os seus lábios se curvaram naquele meio-sorriso sexy que eu amava tanto.

– Z! Você está praticamente nua!

Eu senti minhas bochechas ficando vermelhas, mas abri um sorriso para ele.

– Não, estou com uma das suas camisetas.

– Sim, minha camiseta velha e esburacada que é totalmente transparente. Caramba, Z! Em mim ela não fica assim!

– Hihi! – eu ri. – Então, você está com fome?

– Só se for fome de você!

– Não, seu tonto. Bom, sim, seu tonto, mas que tal a gente comer algo de verdade primeiro? – Apontei para o piquenique que eu havia preparado.

Com relutância, ele desviou o olhar do meu corpo para conferir o que estava sobre a toalha.

– Z, isso são nachos? Com tudo para colocar neles?

– Aham! Eu inclusive coloquei pimenta-jalapeño. Um monte, porque, apesar de eu achar que elas são as pimentas do inferno enviadas para queimar as bocas até você pedir arrego, sei que você gosta delas.

Sentei em uma das almofadas e dei tapinhas na outra do meu lado, indicando para Stark se juntar a mim.

– Nachos são a minha comida preferida – ele falou ao se sentar.

– Eu sei.

Ele ergueu um copo gelado, cheirou e então deu um gole grande antes de exclamar:

– E Dr. Pepper! Você trouxe Dr. Pepper para mim!

– Eu sei o quanto você adora isso, apesar de eu discordar totalmente de você porque isso é...

– Uma abominação de refrigerante de cola – ele terminou a frase por mim.

– Sim, é exatamente isso.

Ele estendeu a mão para pegar um nacho e o seu olhar se levantou para a tela da TV.

– Caramba, Z! Game of Thrones? Você vai mesmo assistir a um episódio comigo?

– Vou assistir a quantos episódios você quiser.

– Mas você odeia Game of Thrones.

– Não, eu não odeio. Eu não assisto porque Cersei me lembra demais a loucura de Neferet, mas não tem que ser tudo sempre do meu jeito, então podemos assistir.

Stark me encarou.

– O que você fez com a minha Zoey?

Eu dei um empurrãozinho no ombro dele com o meu.

– Ah, para com isso.

– Sério, eu estou encrencado?

– Claro que não!

– Ah, droga. – Ele soltou o nacho e virou meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. – O que você fez?

Eu suspirei.

– Eu tenho agido como uma idiota egoísta desde que Kevin foi embora, e sinto muito. Sinto muito mesmo, Stark. Sei que você anda preocupado, e esta é minha maneira de pedir desculpas.

– Ei, é normal que você tenha andado preocupada, principalmente sabendo que Kev está usando Magia Antiga.

– Normal, sim, mas é muito imaturo da minha parte estar tão distraída com o fato de você estar estressado por minha causa e as minhas Grandes Sacerdotisas terem que tocar o barco enquanto estou desse jeito. Eu vou fazer melhor do que isso, prometo.

Stark tocou o meu rosto com delicadeza.

– Você sempre faz o melhor, Z. Eu sabia que você ia dar a volta por cima.

– Você entende o quanto eu te amo? – falei sem pensar.

– Sim, mas é bom ouvir você dizer isso.

Ele devorou um nacho que estava coberto com queijo pastoso e jalapeños e depois lambeu o queijo extra que ficou nos seus dedos enquanto engolia.

– Você é tão bom. Você sempre está aqui por mim, mas também me dá espaço para lidar com as minhas coisas sozinha. Isso significa muito para mim, principalmente porque eu sei que você pode sentir o quanto estou distraída.

– Não acho que você está distraída nesse momento. – Ele se inclinou e tocou os meus lábios com os seus.

Eu sorri.

– Não, você tem cem por cento da minha atenção agora. E eu sei que o sol vai nascer logo, mas, se você conseguir ficar acordado um pouco, prometo que, enquanto você estiver consciente, vai ter cem por cento de mim.

Eu coloquei os braços em volta dos seus ombros largos e o puxei para mim. Os nossos lábios se encontraram de novo, e o beijo se aprofundou. Eu amei o gosto dele, uma mistura do chiclete de hortelã que estava mascando, da doçura nojenta do Dr. Pepper – que de repente não era nojenta de modo algum – e do salgado dos nachos.

Enquanto ele me pressionava contra as almofadas, os seus lábios desceram pelo meu pescoço, dando beijos e mordidinhas na minha pele, o que me fez gemer e me deixou arrepiada.

– Que tal se a gente não dormir? – A voz dele era baixa, e o seu hálito era quente e sexy contra a minha pele. – Que tal eu beijar cada centímetro de você, depois a gente come nachos, assiste a Game of Thrones, e então eu beijo cada centímetro de você de novo?

Ele colocou a língua para fora quando começou a encontrar os buracos na sua velha camiseta, beijando os meus seios através deles.

– Mas você tem que dar aula amanhã – eu soei sem fôlego, como se tivesse acabado de subir correndo vários lances de escada.

– Amanhã é aula de esgrima, não de arco. Damien pode me substituir. Ele é o melhor espadachim mesmo.

Devagar, ele começou a tirar a camiseta por sobre a minha cabeça.

– Caramba, Z! Você realmente não está usando nada exceto a minha camiseta.

– Surpresa! – eu exclamei.

E então o meu peito começou a esquentar e o meu estômago se contraiu.

– Zoey? – Stark falou abruptamente, puxando a minha camiseta para baixo e me encarando. – Está acontecendo de novo, não está?

Em meio a lágrimas de medo e frustração, eu assenti.

– Kevin está usando Magia Antiga de novo – eu falei cheia de tristeza. – E ele não tem a menor ideia de como está se metendo em encrenca.

– Shhh, eu sei, eu sei. Venha cá, minha Rainha.

Stark me puxou para os seus braços e me abraçou enquanto aquele calor terrivelmente familiar diminuía, deixando apenas um enjoo no meu estômago e a clareza sobre o que eu tinha que fazer. Agora. Eu precisava parar de pensar sobre isso. Parar de ficar pesando as consequências. E simplesmente... fazer.

Ah. Inferno.

5 No horário militar, 2000 horas equivale a 20 horas ou 8h00 PM. (N.T.)


14

Outro Kevin

Kevin despertou de repente e, nos seus primeiros minutos de consciência, ele achou que estava de volta aos túneis embaixo da estação – antes mesmo de ter se deslocado para o mundo de Zoey, antes do retorno da sua humanidade. Um gosto amargo de desespero inundou a sua boca com náusea ao pensar em tentar controlar a fome e manter a sanidade.

Então ele se sentou, bateu a cabeça em um dos engradados de madeira entre os quais estava encolhido, e a sua memória acordou junto com ele. Kevin congelou e olhou silenciosamente em volta. Nada se mexeu. Ninguém tinha entrado no porão. Ele conferiu o seu relógio interno – os vampiros vermelhos sempre sabiam a hora exata do nascer e do pôr do sol.

– Dezessete horas e vinte e dois minutos. Pôr do sol – ele falou para si mesmo por força do hábito. Kevin havia feito isso muitas vezes no último ano, desde que tinha sido Marcado como um novato vermelho e depois se Transformado. Foi uma forma que encontrou de tentar manter a sua sanidade durante aquele tempo horrível, e agora isso o reconfortava. Ele se alongou, fazendo só uma pequena careta para a dor que o seu ferimento ainda causava, embora ele se sentisse muito bem. – Com fome, mas bem. – Então ele se lembrou, e o seu rosto se abriu em um sorriso de gratidão. – Os cookies da Vovó!

Kevin pegou a mochila e tirou vários cookies de dentro dela. Ao fazer isso, sua mão topou com alguma coisa dura. Perguntando-se o que mais a sua avó tinha colocado ali, ele espiou o interior da bolsa e deu um suspiro longo e feliz.

Ele tirou a garrafa térmica metálica que estava no fundo da bolsa, abriu a tampa, cheirou e facilmente reconheceu o aroma de sangue.

– Ela pensou em tudo! – ele bebeu ruidosamente o sangue da garrafa fria enquanto comia os cookies.

Kevin não precisava ter um abastecimento constante de sangue. Ele não iria perder a cabeça nem atacar alguém na rua como um vampiro vermelho normal faria depois de alguns dias sem beber, mas as suas costas ainda precisavam se curar e o sangue definitivamente ia deixá-lo mais forte.

– Obrigado, Vó – ele disse entre mordidas nos cookies e sentiu uma onda de saudade de casa.

Pelo resto do tempo que levou para Kevin terminar o seu café da manhã, ele se permitiu desejar que pudesse sair daquele porão e daquela Morada da Noite, ir até a casa de sua avó e ficar com ela comendo cookies e trabalhando na fazenda de lavandas, ignorando esse mundo todo ferrado. Quando terminou de comer, ele espanou os farelos de sua blusa e, junto com eles, expulsou de sua mente aquele desejo egoísta e impossível.

Ele conferiu o seu relógio interno infalível, percebendo que tinha cerca de duas horas até a reunião de briefing que Neferet havia convocado.

– Ok, eu tenho que ficar aqui embaixo pelo menos o tempo suficiente para que os primeiros ônibus tragam os novatos e vampiros vermelhos dos túneis para treinar com os Guerreiros Filhos de Erebus. Então, posso explorar um pouco, já que não fiz nada além de desmaiar quando vim da primeira vez.

Ele encontrou o interruptor para acender as arandelas da parede, transformando o porão escuro em um lugar estranho que quase parecia um cemitério submerso, com as sombras tremulantes da iluminação a gás que bruxuleavam pelas várias fileiras de caixas de madeira compridas em pilhas de duas ou três.

– Bom, é diferente do porão da Morada da Noite de Zo, com certeza.

Zo dissera a ele que poderia haver uma variedade de armas escondidas no porão, mas ali definitivamente não tinha nenhuma espada com pedras preciosas nem bestas antigas de valor incalculável à vista. Só havia caixas de madeira. Um monte delas.

Ele tentou abrir uma, mas estava fechada com pregos. Ele procurou pela sala grande e ampla, e não levou muito tempo para encontrar um pé-de-cabra em uma pilha de martelos, pregos e outras pequenas ferramentas descartadas. Trabalhando com cuidado, para que pudesse fechar a caixa de novo depois de verificar o conteúdo, Kevin levantou a tampa da primeira caixa.

A princípio, quando ele olhou para dentro, a sua mente não registrou o que estava vendo. Ele estendeu a mão e tocou em uma daquelas coisas, e a verdade fez com que Kevin se sentisse tão quente e tonto que ele deu vários passos cambaleantes para trás.

– Fique calmo, Kev – ele disse a si mesmo. Ele estalou os nós dos dedos. Sacudiu as mãos. Passou os dedos pelo seu cabelo escuro. E então voltou até a caixa.

As armas eram enormes e tinham uma aparência estranha, e então ele viu que havia um papel guardado junto na caixa. Nele, Kevin leu: LANÇADOR DE GRANADAS MULTITIRO EX-41.

– Isso é ruim. Isso é muito ruim.

Ele não queria olhar o que tinha nas outras caixas, mas precisava fazer isso – assim, ele abriu cada um dos cinquenta engradados que mais pareciam caixões. Metade tinha lançadores de granadas acompanhados da munição. O resto continha metralhadoras M16, mais um monte de munição e um punhado de granadas.

A mente de Kevin zunia em um princípio de pânico enquanto ele memorizava tudo que viu. Ele tinha que alertar Dragon. Os exércitos de Neferet haviam assumido o controle de Oklahoma, Texas, Arkansas e Kansas em uma expansão coordenada de ataques surpresa no meio da noite. Esse controle tinha se espalhado como um incêndio para Louisiana, Missouri, Nebraska e Iowa. Eles destruíram os depósitos de armas da Guarda Nacional em cada um desses estados e confiscaram veículos militares. Mantendo a tradição dos vampiros, eles não haviam utilizado armas modernas. Os dentes e as garras do Exército Vermelho, assim como a habilidade de controlar as mentes dos humanos, haviam sido o suficiente para derrotar a pequena Resistência humana.

Porém, Kevin sabia que, assim como Neferet continuava pressionando – com sua guerra declarada contra todos os humanos –, ela estava encontrando cada vez mais oposição. Os humanos estavam levantando barricadas nas fronteiras estaduais. Como Kevin era apenas um tenente no Exército Vermelho, ele não ficava a par do “como” e do “porquê” das táticas militares, mas tinha escutado o General Dominick reclamar que Neferet estava gastando tempo demais tentando negociar com os governadores de cada estado. Ele, é claro, achava melhor atacar, atacar, atacar.

– Aparentemente, Neferet também acha isso – Kevin disse sombriamente. – A diferença é que ela quer atacar com armas modernas – e então outro pensamento o esmagou. – Merda! Este não deve ser o único esconderijo de armas que ela tem! Todos aqueles depósitos de armas... merda! Merda! Merda! Claro, os exércitos queimaram tudo, mas eu aposto a minha humanidade que eles não queimaram as armas que encontraram dentro deles.

Ele ficou andando em círculos.

– Isso muda tudo. A Resistência precisa agir imediatamente! Nós temos que depor Neferet e acabar com essa guerra antes que ela comece a usar essas armas. E eu tenho que mandar uma mensagem para Dragon. Agora.

Kevin conferiu seu relógio interno de novo. Ele tinha cerca de quarenta e cinco minutos antes do briefing de Neferet, o que deveria ser tempo suficiente para caminhar sem destino próprio pelos jardins da escola, esperando que o corvo de Anastasia o encontrasse.

Ele tomou cuidado para que os engradados parecessem intocados antes de reaplicar o perfume de sangue nojento. Então ele colocou a mochila de Vovó sobre o ombro e subiu dois degraus de cada vez, parando na frente da porta. Decidindo que a melhor coisa a fazer seria não tentar se esgueirar, ele prendeu a respiração e abriu a porta, saindo rapidamente para o corredor. Ele tinha dado só um passo quando uma voz atrás dele pareceu preencher o ambiente – e congelou o seu coração.

– Ei! Que diabos você estava fazendo lá embaixo?

Kevin se virou para ver o General Stark e um dos seus tenentes se aproximando dele. Ainda por cima, Stark parecia irritado.

– Desculpe, senhor. Eu devo ter virado no lugar errado – Kevin fez uma grande demonstração ficando rapidamente em posição de sentido e evitando o contato visual.

– Essa porta deveria estar trancada. Ordens de Neferet – Stark afirmou.

– Desculpe, senhor – Kevin repetiu, ainda em posição de sentido. – Não estava trancada.

– Dallas, Artus tem as chaves. Encontre-o e tranque essa maldita porta.

– Sim, vou fazer isso, general. – O tenente de Stark começou a ir embora, mas então deu um tapa na sua testa e se virou. – Acabei de perceber quem é esse garoto. Ele é um dos tenentes do General Dominick.

– Dominick? O general vermelho que sumiu com um pelotão inteiro de novatos e soldados vermelhos? – Stark perguntou, com seus olhos aguçados examinando Kevin.

– Sim, ele mesmo, senhor – Dallas respondeu.

Stark deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Kevin.

– Quem é você?

– Tenente Heffer, senhor!

– Sob o comando de quem?

– General Dominick, senhor!

– E onde está o seu general, Tenente Heffer?

– Perdão, senhor?

Stark suspirou alto.

– Vampiros vermelhos são mesmo um pé-no-saco – Stark falou para Dallas como se Kevin não estivesse diante dele em posição de sentido, escutando cada palavra.

– Sim, eles são muito burros. Até os oficiais. – Dallas chegou bem perto do rosto de Kevin. – Ei! O general fez uma pergunta, garoto! Responda, porra!

– E-eu não sei onde o meu general está. – Kevin se concentrou em se parecer com qualquer outro tenente do Exército Vermelho: prestativo e confuso.

– Quando foi a última vez que você o viu? – Stark perguntou.

– Vários dias atrás, senhor. Ele me deu ordens, e eu estava cumprindo essa missão desde então.

Dallas bufou.

– Essa missão incluía invadir um porão trancado?

– Não, Tenente! Isso foi um erro.

– O que você fez lá embaixo? – Stark o questionou.

– Nada. Quando vi que estava no lugar errado, eu saí, senhor.

– Onde diabos você deveria estar? – Dallas quis saber.

– Treinando. Eu voltei da minha missão e então era hora de treinar. Pensei que ia encontrar o General Dominick nos túneis hoje à noite e dar o meu relatório.

– Qual era a sua missão, Tenente? – Stark perguntou.

– Cinco dias atrás, o General Dominick me enviou para Stroud. Ele tinha ouvido falar que a Resistência encontrou esconderijos naquela área e eu deveria fazer um reconhecimento por lá e depois voltar para um relatório. – Stroud ficava mais ou menos no meio do caminho entre Tulsa e Oklahoma City, e não perto o bastante de Sapulpa para causar algum problema para Dragon e a Resistência, então desviar a atenção de Stark para lá não pareceu uma má ideia para Kev.

– Você não achou que tinha algo estranho quando não conseguiu encontrar o seu general e o resto do seu pelotão? – Stark perguntou.

– Senhor, eu acabei de voltar. Agora mesmo.

– Ah, que merda, dá um tempo. Você espera que o General Stark acredite que levou cinco dias para você checar uma bosta de cidade como Stroud? – Dallas zombou.

– Não, Tenente. E-eu me perdi.

– Isso só piora – Dallas resmungou.

– Explique-se, Tenente – Stark ordenou.

Evitando contato visual, Kevin falou rapidamente e com cuidado.

– Senhor, o General Dominick me deu ordens para verificar a área de Stroud, procurando membros da Resistência. Eu fiz isso. Comecei pela cidade. Não encontrei nenhum sinal da Resistência por lá, mas ouvi rumores de que havia uma atividade incomum perto do Rio Deep Fork. Como o general ordenou, eu me abriguei na cidade e no dia seguinte fui até o rio. Encontrei sinais de acampamentos, mas nada específico da Resistência. Quando tentei sair de lá, percebi que estava perdido. Não encontrei nenhuma estrada principal até o pôr do sol de hoje. Então eu confisquei um carro e voltei imediatamente para a Morada da Noite.

– Perdido por dias... que imbecil – Dallas murmurou.

– E você não teve nenhum contato com o General Dominick desde que ele deu essas ordens a você? – Stark perguntou.

– Não, senhor. Nenhum.

– Você não pensou em ligar para alguém com o seu celular quando ficou perdido? Ou você só não pensou nessa possibilidade? – Dallas zombou de Kevin.

Kevin resistiu ao impulso de dar um soco naquela cara estreita, e não demonstrou qualquer sinal de emoção, exceto confusão, respondendo imediatamente.

– Eu pensei, mas não tinha sinal de celular, Tenente.

– Tenente Heffer, o General Dominick mencionou para onde ele e os seus soldados estavam indo? – Stark questionou.

Kevin deixou o seu rosto mostrar surpresa.

– É claro, senhor. Ele disse que ia marchar seguindo ordens.

– Ordens? De quem? – Stark perguntou.

– Perdão, senhor, mas essa informação não chega até minha patente.

– Sim, está certo. Eles estavam indo em qual direção? – Stark continuou o interrogatório.

Então Kevin começou a levar Stark para um rastro totalmente falso, na direção oposta de Sapulpa, da Resistência e da sua montanha protegida por Magia Antiga.

– Ele disse que a milícia estadual estava vindo pelo Novo México e atravessando o Texas pelo Rio Vermelho. Acredito que o general estava indo para Elmer para preparar uma emboscada.

– A milícia do Novo México? Isso é bobagem. Não se ouve um pio de nenhuma das milícias dos nossos estados vizinhos há meses. Ele está inventando coisas. É uma perda de tempo conversar com ele. Com qualquer um deles – Dallas disse, balançando a cabeça de desgosto.

Stark ignorou Dallas.

– Não, alguma coisa definitivamente parece errada. Meu instinto me diz isso há semanas. Tem coisas acontecendo que a gente não sabe. Heffer, quero que você venha comigo.

– Sim, senhor! É uma honra, senhor!

Dallas revirou os olhos.

– General, ele fede.

– Todos eles fedem, mas este garoto vampiro vermelho nos deu a única pista que tivemos sobre um general desaparecido e os seus soldados. Vá pegar aquela chave com Artus e depois nos encontre no auditório para o briefing de Neferet.

– Sim, senhor – Dallas disse antes de dar outro olhar de nojo para Kevin e sair correndo.

– Ok, siga-me, Tenente. E não se perca.

– Sim, senhor!

A mente de Kevin estava em um turbilhão enquanto ele seguia o General Stark. Ele precisava ir à reunião de briefing, mas também tinha que dar um jeito de se livrar de Stark e do babaca do Dallas para ir lá fora e esperar que o corvo de Anastasia o encontrasse. Dragon precisava saber sobre o esconderijo de armas. Ainda hoje.

– Ei, chega de andar feito uma lesma! – Stark falou rispidamente para Kevin, que estava, de fato, andando feito uma lesma.

– Sim, senhor! – Ele acelerou o passo e estava bem atrás de Stark ao sair do Ginásio e entrar no corredor que levava à entrada da escola e ao auditório quando uma voz familiar, sexy e sarcástica interrompeu o seu plano de fuga.

– E aí, Cara do Arco. Eu diria “que bom ver você”, mas nós dois sabemos que isso é mentira.

Stark fez uma pausa para cumprimentá-la quando ela entrou no corredor, vindo dos aposentos das Sacerdotisas. Kevin começou a analisar Aphrodite, reparando em nuances que ele não tinha sido capaz de ver na escuridão dos jardins do necrotério.

Ela parece cansada. Muito cansada. E magra. Quase frágil. Esta Aphrodite usava muito mais maquiagem do que a do mundo de Zo, e Kevin se perguntou se poderia ser para tentar encobrir olheiras e estresse. E a boca dela está diferente também. Mais dura. Como se ela não sorrisse nunca. Aquilo fez o coração dele doer, e ele quis colocar os braços em volta dela e dizer que tudo ia ficar bem. Inconscientemente, os seus pés começaram a dar um passo em frente quando a voz de Stark o trouxe de volta para a realidade.

– Desde quando mentir é um problema para você, Aphrodite? E não me chame assim.

– Oh, tudo bem, sinto muito. Eu me esqueço de que agora você é o General Cara do Arco. Viva. Todos nós ficamos tão elevados com essa guerra. – Ela franziu o nariz lindo e perfeito ao olhar para Kevin, logo atrás de Stark. – Eca. Isso fede.

– Ele também é um tenente no exército da sua Grande Sacerdotisa e coloca a sua vida em risco toda vez que sai desta Morada da Noite. Acho que o cheiro não faria nenhuma maldita diferença para você se só ele se colocasse entre você e uma turba de humanos.

Aphrodite fez uma cena, olhando em volta do corredor, o qual estava ficando cada vez mais apinhado de soldados, Guerreiros Filhos de Erebus e Sacerdotisas indo na direção do auditório.

– Engraçado, mas eu não estou vendo nenhum humano por perto.

– Engraçado? Sabe o que eu acho engraçado? O boato que eu ouvi de que você pode se juntar ao Exército Vermelho, então o meu conselho é que é melhor você já ir se acostumando com esse cheiro. – Stark fez um movimento de cabeça na direção de Kevin. – Vamos, Tenente. – Ele se curvou para Aphrodite de modo zombeteiro. – Tenha um ótimo dia, Profetisa.

 


C O N T I N U A

 

 

 

 

No instante em que Kevin passou entre os mundos, ele conseguiu sentir: aquela terrível e desesperadora sensação de estar perdido. O estranhamento que era o efeito do feitiço de Zoey – aquele que o havia atraído e depois devolvido para o seu próprio mundo – era avassalador. A sensação de estar irremediavelmente perdido era tão forte, tão urgente, que o fez lembrar de um dia de primavera quando tinha sete anos e havia ido fazer compras com sua mãe no Super Target da Rua Setenta e Um em Tulsa. Ele havia se afastado enquanto a mãe e as irmãs estavam olhando roupas femininas. Quando se deu conta, estava sentado no meio do departamento de eletrodomésticos chorando incontrolavelmente.
Essa era a mesma sensação terrível, só que agora não haveria nenhum funcionário amigável para reconfortá-lo enquanto ele esperava que sua mãe respondesse ao aviso de criança perdida que soava pelo alto-falante. Sim, ele era um vampiro completamente Transformado – um tenente no Exército Vermelho –, mas, definitivamente, havia momentos em que ele desejava que alguém o salvasse.
– Não é possível, Kev. Recomponha-se – ele murmurou para si mesmo.
Com um forte barulho de sopro, como do ar sendo expirado, o bizarro buraco entre os dois mundos desapareceu, deixando apenas uma sorveira, deslocada em seu verde abundante, no espaço onde o tecido entre os mundos havia rompido. Enquanto a linha de comunicação com sua irmã Zoey se fechava – juntamente com o mundo dela, no qual ele se sentiu mais em casa do que no seu próprio –, Kevin desejou mais do que qualquer coisa que pudesse retornar ao seu eu de sete anos, sentar e chorar para que sua mãe o salvasse.
Só que ele não era mais criança, e a sua mãe havia parado de ser mamãe anos atrás, então Kevin fez o que havia aconselhado a si mesmo: ele se recompôs. Para se reconfortar, ele tocou a bolsinha pendurada por uma tira de couro em seu pescoço e se tranquilizou por ela ter feito a viagem junto com ele. Conferiu o bolso interno da sua jaqueta para se certificar de que a cópia do diário de Neferet ainda estava ali, e então analisou o cenário ao seu redor.
Estava escuro, assim como quando ele deixou o mundo de Zo, e frio – embora não houvesse nenhuma neve cobrindo o gramado marrom do inverno. Ele olhou para a sua direita. Não havia um muro de pedra fechando a tumba da Grande Sacerdotisa Neferet. Havia apenas uma gruta e um pequeno lago meio congelado.
É porque neste mundo Neferet está livre e no comando. Só pensar isso fez com que o seu nível de estresse aumentasse.

 


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Kevin estalou as juntas dos dedos enquanto levantava o olhar, seguindo a colina acima da gruta. Como esperado, carvalhos antigos formavam um pano de fundo para moitas enormes de azaleias adormecidas.

– Aqui com certeza é o Woodward Park, mas não aquele do qual eu acabei de sair – Kevin suspirou.

Ok, uma coisa de cada vez, é só o que eu posso fazer, mas eu preciso realmente fazer algo de fato, e não apenas ficar parado aqui estalando os dedos e me sentindo péssimo.

Kevin tinha um plano, mas era um que fazia o seu estômago se contrair de nervoso. Ele tinha que encontrar alguém e não tinha certeza se as coisas iam transcorrer muito bem. As pessoas eram as mesmas, mas perturbadoramente diferentes aqui, e ele não a via há mais de um ano.

E se ela não quisesse vê-lo de jeito nenhum? Ou pior, e se ela o visse, mas o rejeitasse – se recusasse a ver que ele era diferente dos outros e não o convidasse para entrar? Então que diabos eu vou fazer? E como eu vou aguentar se ela virar as costas para mim?

– Eu tenho que arriscar. Se eu quero tentar acertar as coisas, não tenho muita escolha. Preciso de aliados, e ela é a melhor pessoa em quem consigo pensar – Kevin disse a si mesmo enquanto atravessava o frágil gramado marrom em direção à calçada na Rua Vinte e Um que contornava o parque. Andando rapidamente, ele virou à direita, subindo a pequena ladeira até a fraca iluminação em frente à Utica Square.1

Era uma caminhada curta até as lojas e restaurantes sofisticados que rodeavam a praça, apesar de Kevin se pegar desejando que demorasse mais. O grande e antigo relógio de quatro faces da Utica, que ficava imponente na frente da loja Russell Stover Candies, dizia que já passava da meia-noite, mas o local estava fervilhando com atividade. Desde que Neferet havia assumido o controle de Tulsa e da maior parte do Meio-Oeste, o horário comercial dos humanos havia mudado drasticamente para refletir o fato de que eram os vampiros que mandavam, e não os humanos. As lojas da Utica Square – assim como qualquer outra loja ou restaurante em Tulsa e na área ao redor que os vampiros poderiam querer frequentar – abriam ao anoitecer e fechavam ao nascer do sol.

Havia, é claro, algumas poucas lojas que abriam para os humanos durante o dia – a maioria delas mercearias, postos de gasolina e que providenciavam outras necessidades, mas, comparadas aos negócios frequentados por vampiros, elas eram pobres lembranças de um passado em vias de extinção.

Nesta fria véspera de Natal, a Utica Square estava enfeitada com luzes – não em comemoração ao Natal, mas sim porque Neferet gostava que tudo parecesse brilhante, reluzente e bonito na superfície, não importando o que acontecia logo abaixo das belas aparências.

Vampiros e novatos azuis passaram por Kevin na calçada, mal olhando para ele, o que o tranquilizou. Se um alerta tivesse soado quando ele, General Dominick e outros do seu pelotão do Exército Vermelho foram dados como desaparecidos, os Guerreiros Filhos de Erebus teriam espalhado cartazes em todos os lugares públicos de Tulsa, e Kevin definitivamente seria interrogado.

Os poucos humanos que estavam na rua também reagiram normalmente a ele. Não fizeram contato visual e abriram bastante espaço para que ele passasse, mudando de calçada ou disparando para dentro de qualquer restaurante ou loja por perto, preferindo evitá-lo e também se esquivarem da possibilidade de ele estar com fome o suficiente para agarrá-los e fazer um lanche rápido. Embora a postura “oficial” de Neferet fosse a de desencorajar vampiros vermelhos de se alimentar de humanos em público, a verdade era que a única razão pela qual a Grande Sacerdotisa queria que o Exército Vermelho demonstrasse algum autocontrole era que a alimentação em público costumava causar pânico. Neferet considerava o pânico humano feio e motivo de distração. Então, basicamente, se acontecesse... bem, aconteceu. Normalmente não havia nenhuma consequência para os vampiros, exceto uma pequena advertência.

Kevin costumava ficar perturbado com o fato de ele óbvia e justificadamente apavorar os humanos, mas naquela noite isso o tranquilizou. Ele sabia que o seu cheiro estava diferente – ou, mais especificamente, não estava com cheiro de túmulo – desde que Nyx havia concedido a ele sua humanidade de volta, mas as pessoas de Tulsa estavam tão acostumadas com monstros na noite que não chegavam perto o bastante para notar que ele não era mais o bicho-papão.

Kevin não baixou a guarda, porém. Ele pensou em pegar o ônibus até a estação onde o seu carro estava estacionado, mas só imaginar a possibilidade de encarar novatos vermelhos esfomeados e vampiros vermelhos curiosos deu um aperto no estômago. Que diabos ele iria dizer a eles quando o inevitável acontecesse – quando eles percebessem que ele havia se Transformado irreversivelmente? Ele precisava de tempo e também de um plano.

Mas, principalmente, Kevin precisava de ajuda.

Ele poderia facilmente andar o quarteirão até a Morada da Noite, mas não encontraria nenhuma ajuda por lá, e ele não tinha nenhuma vontade de voltar para esta Morada da Noite. Não agora. Não depois de ele ter passado algum tempo na outra Morada da Noite, onde a sua irmã era a Grande Sacerdotisa e os humanos eram bem-vindos como amigos, não sofriam abusos sendo escravizados e não eram considerados geladeiras de sangue ambulantes.

Havia apenas um lugar para onde Kevin queria ir, e apenas uma pessoa que ele queria ver. De novo, sua mão tocou o volume que estava debaixo de sua camisa perto do coração. Ele pressionou a mão contra a pequena bolsa de couro com miçangas feita a mão, encontrando consolo na sua presença.

Kevin atravessou a Utica Square até os fundos do centro de compras com aparência de vilarejo, passando pela Fleming’s Steakhouse e pelo Ihloff Salon até chegar ao estacionamento, mais escuro e mais silencioso. Estava cheio, então não levou muito tempo até Kevin encontrar o que precisava.

Um homem sozinho, humano e bem-vestido, andava apressado entre os carros, em direção às vagas de estacionamento na frente dos condomínios no estilo de vilas italianas, que se erguiam ali como se um pedaço do Mediterrâneo tivesse sido deslocado da Costa Amalfitana e se estatelado no centro de Tulsa.

Silenciosamente, Kevin o seguiu. Quando o apito do alarme na chave do carro soou, desbloqueando o Audi SUV, Kevin saiu das sombras para encarar o homem.

– Boa noite – Kevin disse.

Os olhos do homem se arregalaram e o seu rosto ficou pálido feito osso. Ele estendeu as sacolas nas suas mãos, em parte como oferenda, em parte como escudo.

– Po-por favor! Eu tenho uma família em casa. Por favor, não me morda. Eu dou tudo que você quiser, mas os meus filhos precisam de mim, e eu não quero morrer.

O estômago de Kevin se revirou. Ele odiava isso. Odiava que apenas a imagem da sua Marca de vampiro vermelho instantaneamente criasse uma sensação de pavor e pânico nos humanos. Kevin encarou o homem nos olhos e falou vagarosa e gentilmente:

– Eu não vou machucá-lo. Você não precisa ter medo – ele disse, e o homem se acalmou. – Você não está sob a proteção de um vampiro? – Kevin perguntou ao ver a mão sem marcas do homem. Os vampiros azuis haviam tatuado a lua crescente nas mãos de humanos sob a sua proteção para que os vampiros vermelhos famintos soubessem que eles estavam fora do cardápio.

– Não de um vampiro específico – o homem respondeu como se estivesse em um sonho quando o poder da mente de Kevin o dominou, deixando-o imóvel e incapaz de fazer qualquer coisa, exceto o que Kevin ordenasse.

– Mas você faz algo para se proteger?

O homem assentiu, sonolento.

– Eu sou o dono do Harvard Meats. Na esquina da Quinze com a Harvard.

– Ah, claro. Eu conheço o lugar. – E Kevin realmente conhecia. Aquele homem não precisava estar sob a proteção de um vampiro específico porque o seu negócio era uma proteção por si só, já que era o açougueiro que fornecia as melhores carnes da cidade para a Morada da Noite e todos os seus restaurantes favoritos. – Está bem, eu quero que você faça o seguinte. Dê as chaves do seu carro para mim. Você está perto de casa?

O homem assentiu novamente.

– Eu moro na esquina da Rua Treze com a Columbia.

– Ótimo. Você vai precisar ir andando para casa. Amanhã registre uma queixa do desaparecimento do seu carro. Diga que você acha que foram garotos do ensino médio... da Union – Kevin acrescentou após uma breve reflexão. Ele tinha estudado na Broken Arrow. BA e Union eram rivais conhecidos, e ele teve que disfarçar o seu sorriso por essa pequena vingança pelo fato de a Union ter vencido o último campeonato estadual de futebol americano.

– Vou registrar a queixa de furto. Por garotos da Union. Amanhã – o homem repetiu automaticamente, entregando as chaves a Kevin.

Kevin hesitou, chamando o homem de volta quando ele se virou, movendo-se mecanicamente para começar a caminhar até sua casa.

– Ei, ahn, você precisa de alguma coisa do carro?

O homem piscou os olhos para ele, como se não tivesse entendido a pergunta.

– Tem alguma coisa no seu carro que você precisa levar para casa? – Kevin reformulou a pergunta, olhando bem nos olhos do homem, aumentando o seu controle sobre ele.

– Sim. O meu laptop – o homem respondeu imediatamente, embora sua voz ainda tivesse um tom sonolento. – E mais alguns presentes para as crianças.

– Pegue-os – Kevin disse. – Rápido.

O homem se mexeu rapidamente, abrindo a porta traseira e retirando um laptop fino e uma sacola cheia de pacotes embrulhados. Então ele se virou para Kevin, esperando receber uma ordem sobre o que fazer em seguida.

– Vá para casa agora. Rápido. Não fale com ninguém. Se você for parado por um Guerreiro, diga que está em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Eu estou em uma missão em nome de um tenente do Exército Vermelho.

– Mais uma coisa. Este vai ser o melhor Natal da sua vida. Na verdade, vai ser o melhor ano da sua vida. Você vai mostrar para a sua mulher e os seus filhos o quanto você os ama todo dia, e você vai se certificar de que você e a sua família são valiosos para a Morada da Noite escolhendo cortes especiais de carne exclusivos para Neferet. – Kevin fez uma pausa, refletindo, e então continuou: – Prepare a carne marinada em um molho de vinho tinto. Neferet realmente gosta de vinho tinto. Entendido?

– Entendido.

– Ok, agora vá. Rápido!

O homem saiu apressado, apertando o laptop e a sacola de presentes contra o peito como se eles fossem feitos de ouro.

Cantarolando baixinho o grito de guerra da Broken Arrow para si mesmo, Kevin entrou no Audi. Ele se demorou um minuto apreciando o interior agradável antes de dar a partida e sair da Utica Square, e então ele estava no seu caminho até a estrada Muskogee Turnpike, que ficava a um pulo do centro de Tulsa. Quando entrou na estrada em direção ao sul, ligou a rádio 98.5 e tentou deixar a voz anasalada de Blake Shelton com seu sotaque familiar de Oklahoma acalmar seus nervos.

Kevin ainda não sabia muito bem o que faria, mas tinha certeza de quem precisava encontrar para conseguir ajuda e descobrir isso.

O trajeto de uma hora e meia passou voando, e logo Kevin estava saindo da rodovia e serpenteando por uma estrada antiga de duas pistas até chegar ao caminho de terra e cascalho que dividia campos de lavanda adormecidos e finalmente acabava em uma casa de pedra familiar com uma ampla varanda frontal.

O seu estômago deu reviravoltas de nervoso quando ele estalou os dedos e levantou a mão para bater na porta.

Kevin hesitou. E se ela não o convidasse para entrar?

Ele engoliu aquele pensamento horrível no instante em que a porta se abriu, antes mesmo de precisar bater.

– Oi, Vovó Redbird! Sou eu, Kevin.

O único sinal de choque que a mulher deu foi um leve rubor na pele marrom de suas bochechas.

– Já faz um tempo que não nos vemos, mas eu ainda reconheço a minha própria família – Vovó disse. Ela não fez nenhuma menção de convidá-lo para entrar. – O que eu posso fazer por você, Kevin?

– Eu preciso de sua ajuda. Na verdade, eu preciso de mais do que sua ajuda. Eu preciso de um plano. É muita coisa para explicar. Posso entrar, por favor?

– Não fico feliz em dizer isso, mas não. Você não pode entrar. Vejo que você completou a Transformação.

– Sim, meses atrás. Sinto muito por não ter vindo vê-la até hoje, mas você sabe por que não vim. Eu tinha que ter certeza de que conseguiria me controlar. Bom, agora tenho certeza, e a razão de eu ter certeza é inacreditável.

– Desculpe, Kevin. Hoje não é o meu dia para morrer. E, mesmo que fosse, eu não quero encontrar a Grande Deusa depois de o meu neto me transformar em um monstro devorador. Não. Por favor, vá embora, meu filho. Você está partindo o meu coração, e ele já está em mais pedaços do que eu posso contar.

Triste, Vovó Redbird começou a se afastar lentamente da porta.

– Espere, Vovó. Por favor, primeiro olhe isto aqui. – Kevin tirou a bolsinha medicinal do pescoço e a estendeu na frente da Vovó Redbird para que ela pudesse ver.

Ela franziu o cenho, confusa.

– Isso é meu. Mas eu estou com ela... – Ela ergueu a mão automaticamente, levando-a até a tira de couro que prendia uma bolsinha medicinal idêntica ao redor do seu pescoço.

– Vovó, você deu isso para mim.

– Não, Kevin. – Ela levantou a idêntica bolsa com miçangas. – Esta é a minha. Essa daí, bom, é uma cópia estranhamente parecida.

Kevin não podia cruzar a barreira da porta a menos que fosse convidado a entrar, mas a bolsinha definitivamente podia.

– Aqui, olhe só. Você vai ver. – Ele a atirou na direção dela, e Vovó a pegou facilmente.

Ele observou enquanto ela abria a bolsinha e depositava o conteúdo na palma de sua mão. Havia um cristal de ametista roxo e um pedaço de turquesa bruta lapidada em forma de um perfeito coração, assim como um ramo de lavanda, uma pena do peito de uma pomba e um punhado de terra vermelha. A última coisa que caiu da bolsa foi uma tira de papel enrolado com cheiro de lavanda.

Com mãos firmes, Vovó Redbird desenrolou o papel para revelar três palavras, escritas na sua forte letra cursiva.

Confie em Kevin.

Os sagazes olhos castanhos da Vovó encontraram os dele.

– Onde você conseguiu isto?

– Como eu disse, foi você que me deu. Em outra versão do nosso mundo. Depois que Zoey me levou para lá e que Aphrodite e Nyx restauraram a minha humanidade. Vovó, é uma longa história, mas eu juro pela memória de Zoey que você realmente me deu isso e me falou para procurá-la e mostrar isso a você. Eu preciso de você, Vovó. Eu não sei mais aonde ir nem quem devo procurar. Por favor, você vai me deixar entrar? Eu não vou te machucar. Eu nunca vou te machucar.

Sylvia Redbird analisou Kevin cuidadosamente. Então ela abaixou os olhos novamente para as três palavras escritas com sua própria letra no papel que ela mesma fez na fazenda de lavandas que dava plantas tão perfumadas e únicas que os vampiros a deixavam em paz – desde que ela continuasse fornecendo os produtos de lavanda que Neferet tanto apreciava.

– Kevin, eu gostaria de convidá-lo a entrar na minha casa. – A idosa deu um passo para trás, segurando a porta aberta para o seu neto.

Ele entrou na casa e inspirou fundo o ar com aroma de memórias de infância. Através das lágrimas inundando os seus olhos, ele abriu o sorriso para sua avó.

– Estou sentindo cheiro de cookies de chocolate e lavanda?

– Está sim, com certeza. Quer alguns?

– Mais do que qualquer outra coisa do mundo – Kevin respondeu. – Mas, primeiro, por favor, posso te dar um abraço?

– Ah, u-we-tsi, nada me deixaria mais alegre!

Kevin abriu os braços, e a sua pequena, adorável e linda avó se adiantou no seu abraço. E de repente ele se viu soluçando enquanto ela o apertava e acariciava suas costas com carinho, e ele liberava a tristeza, a solidão e o arrependimento de ter deixado sua irmã e voltado para um mundo cheio de batalhas e temores.

– Vai ficar tudo bem agora, u-we-tsi. Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Eu estou aqui...

1 Espécie de shopping ao ar livre de Tulsa. (N.T.)


2

Outro Kevin

– Vovó, estes cookies são os melhores entre todos os mundos!

Vovó Redbird sorriu carinhosamente para Kevin.

– Você devolveu a minha alegria em prepará-los. Eu não tenho ideia de como Neferet os descobriu, mas alguns meses atrás seus capangas do Exército Azul apareceram aqui, insistindo que eu entregasse um pedido semanal de duas dúzias de cookies... para a própria Grande Sacerdotisa. Eu achei estranho, mas isso de fato ajudou a garantir a minha segurança, e enquanto eles estavam aqui também fizeram uma encomenda permanente dos meus sabonetes e cremes... – ela perdeu as palavras quando a compreensão floresceu no seu rosto. – Você fez isso!

Kevin deu de ombros, um pouco envergonhado, enquanto pegava outro cookie.

– Bem, sim. Todo mundo sabe que a sua lavanda é a melhor de Oklahoma. Os seus sabonetes e cremes são incríveis e os seus cookies são especiais e deliciosos. Eu pensei que, se Neferet soubesse sobre eles, iria querer. Ela é daquele tipo que adora coisas que ninguém mais tem, e ninguém tem a sua receita.

– Eu não uso receita.

– Exatamente! São coisas que só você pode fazer. Então, eu mencionei isso para um Guerreiro que é companheiro da Sacerdotisa e que leva o lanche da noite para Neferet. Eu sabia que ela só precisava experimentar um cookie e já ficaria fisgada. Aparentemente, Neferet tem uma queda por doces. Os sabonetes e cremes foram um bônus.

Vovó Redbird não falou nada por um bom tempo. Ela observou o seu neto como se ele fosse um enigma que ela tivesse acabado de desvendar.

– Você já era diferente. Mesmo antes de ser arrastado para aquele Outro Mundo.

Kevin assentiu, falando com a boca cheia de cookies.

– Eu ficava pensando que isso iria mudar... que algum dia eu iria acordar e não seria mais capaz de controlar a minha fome de jeito nenhum. Mas isso não aconteceu.

Vovó colocou a sua mão calejada no rosto dele.

– Ah, u-we-tsi, queria que você tivesse vindo me procurar quando estava pensando nisso.

– Eu não consegui, Vovó. Eu tinha muito medo de me transformar em um monstro. – Kevin estava com a cabeça baixa, encarando fixamente a antiga mesa de madeira. – Eu não podia correr o risco de te machucar.

– Então, mesmo de longe, você arrumou um jeito para que eu ficasse segura... para que eu fosse uma das protegidas.

Kevin assentiu.

– Obrigada – ela disse simplesmente.

Quando Kevin teve certeza de que não ia se dissolver em lágrimas escandalosas de novo, ele encontrou os seus olhos castanhos gentis e sorriu.

– Era o mínimo que eu podia fazer depois de você ter perdido Zoey. Eu sempre soube que ela era a sua favorita.

– Zoey e eu éramos próximas desde que ela nasceu, mas isso acontece muito entre avós e netas. Isso não significa que eu a amasse mais do que eu amo você.

Kevin sentiu lágrimas enchendo seus olhos e ele piscou com força para impedi-las de transbordarem.

– Mesmo?

– Dou minha palavra. Era mais fácil ser próxima de Zoey Passarinha. Ela queria cozinhar comigo, trabalhar no jardim, aprender os costumes do nosso povo.

– E eu queria jogar videogames e contar piadas de peido com os meus amigos – Kevin disse com uma ironia amarga.

Vovó Redbird sorriu com afeto e compreensão.

– Você simplesmente queria ser um menino. Não há nada de errado nisso.

– Eu sei que não posso ocupar o lugar deixado por Zo, mas quero que a gente fique mais próximo. Eu... eu preciso de você, Vovó.

A idosa apertou a mão do neto.

– Eu estou aqui por você. Eu sempre vou estar aqui por você. Você nunca mais vai ficar sozinho de novo, meu u-we-tsi.

Pela primeira vez desde que percebeu que ele precisava voltar para o seu mundo – teria que de alguma forma liderar a Resistência para derrotar Neferet –, Kevin sentiu uma parte do peso terrível que tinha se instalado sobre o seu corpo se evaporar.

– Obrigado, Vovó. Isso torna tudo melhor.

– Fico feliz. Agora, eu tenho algumas perguntas que talvez você possa me ajudar a responder.

– Com certeza! Pode perguntar enquanto eu devoro os cookies.

– Ótima ideia. Então, você estava me contando que a nossa Zoey Passarinha está viva em um mundo alternativo, do qual você acabou de voltar?

– Sim. Ela está. Bom, ela não é exatamente a nossa Zo, mas é bem parecida. Tão parecida quanto aquela Vovó Redbird é parecida com você, quase exatamente igual. É estranho. Legal, mas estranho.

Vovó se sentou diante dele, servindo-se de uma xícara de chá de lavanda cheiroso do bule de ferro desgastado pelo tempo que usava desde que Kevin se entendia por gente.

– Deixe-me ver se compreendi direito. Naquele mundo Zoey é a Grande Sacerdotisa no comando. Não há Neferet e...

– Neferet está lá – Kevin a interrompeu. – Ela está magicamente trancada dentro da gruta no Woodward Park.

– Certo – Vovó Redbird assentiu. – Você disse que ela se tornou imortal?

– Sim. Na verdade, eu não entendi muito bem essa parte, mas acredito em Zo e sua turma. Eles disseram que ela tentou se transformar na Deusa de Tulsa e simplesmente surtou pra caralho, matou um monte de gente... humanos e vampiros. Ahn, desculpe pelo palavrão, Vó.

Ela fez um gesto indicando que as desculpas eram desnecessárias.

– Às vezes é preciso usar uma linguagem forte. A sua descrição é válida.

– Obrigado, Vó. – Kevin apontou para a cópia do diário que Zoey havia lhe dado antes que ele fosse embora do mundo dela. – Zo me disse que isso explica muito sobre o passado de Neferet e as suas motivações. Ela e seus amigos descobriram que a história de Neferet é um ponto fraco dela. Zo acha que talvez a gente possa encontrar algo aí que possa nos ajudar a derrotá-la nesse mundo também.

– Isso faz sentido. Então, Neferet está sepultada. Zoey está no comando. E ela abriu a Morada da Noite de Tulsa para os humanos? De verdade?

– Sim! Você precisava ver... garotos humanos estavam realmente brincando com novatos vermelhos e azuis na neve. Era bizarro, mas muito legal, e Zo e a sua turma... eles dizem que são a Horda Nerd... – Kevin fez uma pausa quando sua avó riu como uma garotinha. – Ela fez a Horda Nerd iniciar programas de estudantes humanos, como o da Morada da Noite de Tulsa, por todo o país. Aparentemente, está indo muito bem, por isso ela ficou super preocupada quando ficou parecendo que Neferet podia estar se movimentando. Zoey sabia que os humanos seriam o segundo alvo dela.

– Porque a própria Zoey seria o primeiro alvo.

– Sim. Elas são inimigas. Hum, Vó, quando eu expliquei a Zo como ela morreu aqui, ela disse que tinha certeza de que Neferet a matou, porque no mundo dela Neferet matou dois professores vampiros exatamente do mesmo jeito, apesar de ela ter encenado os assassinatos para parecer que o Povo da Fé era o responsável.

Vovó Redbird ficou pálida com a menção à morte repulsiva de sua neta. Kevin estendeu a mão sobre a mesa para apertar a mão de sua avó.

– Está tudo bem, Vó. Só precisa lembrar que ela ainda está viva. Ela só não está mais neste lugar.

A velha senhora assentiu rapidamente e deu um gole no chá, tentando se recompor.

– O plano de Neferet em ambos os mundos era criar uma guerra entre humanos e vampiros?

– Sim.

– Zoey e a sua... Horda Nerd foram responsáveis por conseguir detê-la nesse outro mundo?

– Sim – Kevin disse.

– Muito bem, Zoey Passarinha – Vovó Redbird disse baixinho. – Esse outro mundo... o mundo de Zoey... parece um lugar encantador.

– E é. Decorações de Natal por toda parte... humanos e vampiros se misturando... Vovó, eles até transformaram a estação de Tulsa em um restaurante descolado gerenciado por vampiros. Os humanos lotam o lugar toda noite. – Kevin rapidamente decidiu deixar de fora o detalhe complementar de como vampiros e novatos vermelhos do seu mundo tinham destruído o restaurante e comido todo mundo. Vovó não precisava dessa tristeza.

– É mesmo? – ela perguntou, maravilhada.

– Sim! Zo inclusive me contou que eles têm uma feira de produtores nos jardins da Morada da Noite toda semana, e o campus é completamente aberto aos humanos para isso.

– Isso é realmente mágico – ela comentou. – Mas por que você voltou para cá?

– Eu tive que voltar. Eu sou a Zoey.

– U-we-tsi, você vai ter que se explicar melhor do que isso.

– Vó, assim como a Zo naquele mundo, eu tenho afinidade com todos os cinco elementos.

Ela arregalou os olhos com a surpresa feliz.

– Oh, Kevin! Essa é uma notícia incrível.

– Bem, sim e não. Sim, porque é legal e um sinal das boas graças de Nyx. Ei, eu quase esqueci de contar! A tatuagem da Transformação completa de Zo é igual à minha. Só que a dela é azul, claro, mas ela também tem um monte de outras tatuagens, como nas palmas das mãos, em volta da cintura, nas costas e até nas clavículas.

– Ela foi até um tatuador? Parece lindo, mas certamente deve ter levado bastante tempo para fazer.

– Não, Vó, Nyx concedeu a ela essas tatuagens como um sinal de que ela estava no caminho certo – Kevin suspirou. – Eu meio que espero que Nyx possa me ajudar dessa mesma forma. Pelo menos eu saberia que estou fazendo a coisa certa.

– E o que é essa coisa certa que você quer fazer?

Kevin não hesitou.

– Isso me traz à parte não tão incrível. Como eu tenho afinidade com todos os cinco elementos assim como Zo, isso significa que eu também tenho as responsabilidades dadas pela Deusa que ela herdou. Vó, eu tenho que derrotar Neferet, assim como Zo fez no mundo dela, para recuperar o equilíbrio entre Luz e Trevas.

Vovó Redbird não perdeu o compasso.

– E como você planeja fazer isso?

– Não tenho ideia, Vovó. Não tenho ideia. – Ele abriu o sorriso atrevidamente para ela. – Mas aposto que você pode me ajudar a pensar em um plano.

– Se eu não posso, sei quem pode. Kevin, o que você sabe sobre a Resistência?

– Eu sou um tenente no Exército Vermelho de Neferet. A nossa única missão neste momento é encontrar e eliminar todos os membros da Resistência.

– O fato de você ser um tenente pode ajudar. Você tem acesso a informações, como talvez o local onde Neferet acredita que a Resistência está se escondendo, ou como eles conseguem levar pessoas clandestinamente para fora do Meio-Oeste até um lugar seguro?

– Não exatamente. A estratégia fica a cargo de Neferet, os generais do Exército Azul e os Guerreiros Filhos de Erebus. Até nós, vampiros vermelhos que conseguem manter um controle suficiente da nossa humanidade para nos tornarmos oficiais, não somos incluídos no planejamento. Basicamente, os Guerreiros de Neferet nos usam como se fôssemos armas irracionais. Quando eu completei a Transformação, escutei o General Stark falando sobre o Exército Vermelho. Ele nos chamou de descartáveis.

– O General Stark parece desprezível.

– Neste mundo, ele é mesmo. No mundo de Zo, ele é o seu Guerreiro Juramentado e companheiro... um cara realmente bacana.

Aquilo deixou Vovó Redbird pensativa.

– E o General Stark não está errado. Tudo que ele tem que fazer é apontar uma direção para o Exército Vermelho e nos soltar. – Kevin estremeceu. – A maioria dos vampiros vermelhos são máquinas irracionais de comer, feitos para devorar tudo no seu caminho.

– Na verdade, isso é bom para nós – Vovó disse.

– Ahn? – Kevin falou, soando muito como a sua irmã.

– Bom, se o General Stark é um bom rapaz no mundo de Zoey Passarinha, então lá no fundo há bondade nele. Talvez ele possa ser convencido. E você é um oficial. Você tem acesso para ir e vir facilmente na Morada da Noite, certo?

– Sim, imagino que sim, mas só entre o anoitecer e o amanhecer. Durante o dia, nós somos todos banidos para os túneis embaixo da estação.

– Mas ninguém na Morada da Noite... nenhum vampiro... iria imaginar que você está do lado da Resistência.

Kevin se endireitou na cadeira.

– Você está certa, Vovó! Isso nem passaria pela cabeça deles. Eles normalmente não incluem oficiais do Exército Vermelho nas reuniões estratégicas, mas eles não iriam notar se eu estivesse lá, parado por perto esperando receber ordens – ele sorriu. – Eu posso descobrir todo tipo de coisa! – ele hesitou, e o seu sorriso esvaneceu. – O problema é que eu não estou com o cheiro certo, e eles iriam reparar nisso.

Os olhos da Vovó brilharam maliciosamente.

– Deixe que eu cuido disso, u-we-tsi.

– Eca, ok. Então, este é o nosso plano? Você vai me fazer ficar fedido de novo, e eu vou espionar na Morada da Noite e descobrir coisas sobre a Resistência? Vamos ter que descobrir onde eles estão se escondendo antes que o exército os encontre, e avisar para a Resistência tudo que eu descobrir.

– Encontrá-los não é um problema.

– Vovó! Você faz parte da Resistência?

– Como Martin Luther King Jr. resumiu tão bem, “A pior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas sim o silêncio das pessoas boas”. Eu não serei silenciada.

– Caraca, Vó, você faz parte da Resistência!

– Tenho orgulho de dizer que sim, eu faço.

– Eles matariam você se a pegassem. Nossa, Vó. Neferet não ia se importar que você é uma idosa. Você iria morrer – Kevin afirmou.

– Estou ciente disso, mas, Kevin, se eu ficasse parada e não fizesse nada, seria o meu espírito que morreria.

Kevin suspirou pesadamente.

– O meu também. É por isso que eu voltei. Eu tenho que fazer algo, e acho que sou o único que pode fazer isso.

– Isso é muito corajoso da sua parte, u-we-tsi.

– Não, fazer a coisa certa não é corajoso. É só o que pessoas decentes fazem – Kevin respondeu.

– De fato.

– Quero que você me leve até eles – Kevin disse com firmeza.

– Eles?

– A Resistência. Quero falar com eles, e contar o que aconteceu comigo no mundo de Zo.

– Não sei se isso vai funcionar. Eles podem achar que é apenas um inimigo quando olharem para você – Vovó refletiu. – O que pode funcionar melhor é você espionar, contar para mim, e eu levarei as informações até eles.

– Isso seria ótimo, se não fosse por Aphrodite – Kevin falou.

– Aphrodite? A deusa grega do amor?

Kevin sorriu com ar travesso.

– Aposto que ela pensa que é uma deusa, mas imagino que, tecnicamente, ela é uma Profetisa, e não uma deusa.

– Filho, isso não faz sentido.

– Desculpe, Vó. É simples, na verdade. No mundo de Zo, há uma Profetisa de Nyx chamada Aphrodite que tem o poder de conceder segundas chances. Por causa dela, nenhum dos novatos ou vampiros vermelhos perdeu a sua humanidade. Ela está neste mundo também.

– Ah, Grande Deusa! Se isso pudesse acontecer neste mundo também! – Vovó exclamou.

– Sim, se a humanidade dos soldados do Exército Vermelho voltar, Neferet perde as suas armas – Kevin afirmou. – No mundo de Zo, Aphrodite e eu temos uma conexão. – Ele fez uma pausa, ignorando o fato de suas bochechas estarem corando muito. – Ela, hum, falou para eu encontrar a versão dela neste mundo, e que ela me amaria também.

Vovó ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. Kevin limpou a garganta e continuou:

– Além disso, Zo falou que eu tenho que montar o meu próprio círculo. Basicamente, a minha versão da Horda Nerd que ela tem. Eu já sei que pelo menos dois dos vampiros que preciso recrutar são azuis... e que eles estão na Morada da Noite neste exato momento.

– Mas, u-we-tsi, a Resistência está cheia de vampiros azuis. Você não pode simplesmente usá-los para o seu círculo?

– Acho que sim, mas a Horda Nerd de Zo é diferente, assim como ela. Assim como eu. Eles também têm afinidades com os seus elementos.

– O que torna o círculo dela mais poderoso que um círculo comum – Vovó observou.

– Sim. Você entende por que eu tenho que fazer mais do que apenas espionar para a Resistência?

– Entendo. E porque eu entendo isso, tenho muito mais esperanças com relação às nossas chances de sucesso do que eu tinha apenas alguns minutos atrás. – Vovó Redbird deu uma olhada para fora da janela da frente. – O amanhecer já está deixando o horizonte rosa. Vamos dormir, u-we-tsi, e amanhã... amanhã nós vamos até a Resistência.

– Está certo, Vovó – Kevin disse corajosamente antes de enfiar outro cookie na boca e pensar: “Ah, que inferno...”.


3

Outro Kevin

– Sap-a-lup-a? Sério, Vó? Isso aqui é bem no meio do nada – Kevin disse quando sua avó indicou a ele a saída para a rodovia Turner Turnpike.

– Kevin, pronuncie direito.

– Certo. Sapulpa. Mesmo assim... sério, Vó? Por que aqui?

– Porque, como você disse... é no meio do nada. O que significa que é um excelente lugar para o quartel-general da Resistência, já que Sapulpa fica a apenas uns trinta minutos do centro de Tulsa. Perto o bastante para ser útil, mas ainda uma cidade rural com nada que possa interessar os vampiros, com a exceção de vários ranchos que plantam a melhor alfafa do estado.

– Então, eles têm o suficiente para serem protegidos por Neferet, mas não o bastante para despertar o interesse dela para fazer uma visitinha nem nada do tipo.

– Exatamente. Vire à esquerda no próximo semáforo. É a South Hickory. Então siga essa estrada por cerca de um quilômetro e meio até a gente passar por algumas placas. Depois da tabacaria, procure pela Lone Star Road e vire à direita.

– Para onde diabos você está nos levando, Vó?

Ela sorriu angelicalmente.

– Para um desses adoráveis e pequenos ranchos de alfafa, u-we-tsi.

Eles serpentearam pela Lone Star Road, passando por campos verdejantes, alguns deixados ociosos em preparo para a plantação da primavera, e outros já verdes com o trigo de inverno. Como é de praxe em Oklahoma, as casas alternavam-se entre quase mansões e trailers caindo aos pedaços, e então mais mansões.

– Ei, olhe só, Vó. É o trio perfeito dos pobretões de Oklahoma: uma casa de trailer, uma piscina portátil e um colchão velho que aqueles pitbulls estão usando como cama... tudo em um só quintal.

Vovó Redbird franziu o nariz.

– Acho que são boxers, não pitbulls, Kevin.

– Erro meu. É isso que dá forçar estereótipos.

– Bem, definitivamente foi um bom palpite. Vá devagar agora. Está vendo à sua direita, onde aquela cerca branca bonita começa?

– Sim.

– Há um portão logo em frente. Pare ali, abaixe o vidro e aperte o botão do interfone. Deixe que eu prossiga com o resto.

Kevin seguiu as instruções, virando em uma entrada bloqueada por um grande portão de ferro. Ele deu uma rápida olhada em volta enquanto abaixava o vidro e viu que a aparência tranquila e organizada do pequeno rancho não passava de uma fachada.

O portão, assim como a cerca branca bem-cuidada, era cheio de cabos elétricos grossos. O olhar de Kevin seguiu os cabos.

– É uma cerca elétrica poderosa, Vó.

– Sim, estou ciente disso. Aperte o botão do interfone, por favor.

Kevin apertou o botão branco perto do interfone e uma luzinha vermelha se acendeu, chamando atenção para a câmera de alta tecnologia apontada na direção deles.

– Quem é? – saiu do interfone uma voz incisiva de mulher, com uma sinfonia de cães ganindo ao fundo.

– Sylvia Redbird. Ouvi dizer que você tem uma ninhada de cachorrinhos. Gostaria de dar uma olhada neles, se você ainda tiver algum para vender.

Houve uma pausa e então ela disse:

– Estou vendo um vampiro vermelho com você.

Vovó Redbird deslizou para o lado e enfiou sua cabeça ao lado da de Kevin.

– Sou eu, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Vampiros vermelhos não são bem-vindos na minha propriedade, muito menos na minha casa.

– Este vampiro vermelho é diferente. Eu dou a minha palavra – Vovó afirmou.

– É claro que você fala isso. Você está sob o controle dele. Não é não. Você não pode entrar na minha propriedade. Você não pode entrar na minha casa.

– Tina, mande Babos até aqui.

– Cachorros odeiam vampiros vermelhos. Ela vai rosnar, latir e atiçar todos os outros – a voz metálica respondeu.

– Ela vai me adorar. Eu juro, senhora – Kevin disse.

– Você vai ficar feliz por ter corrido esse risco – Vovó acrescentou.

– Está bem. Mas, quando ela começar a latir e ficar louca, eu vou ficar muito chateada com você, Sylvia. E eu estou levando a minha .45 comigo. Um movimento em falso, neto ou não, e eu arranco a cabeça desse vampiro.

– Você deve fazer isso mesmo, Tina – Vovó Redbird respondeu calmamente.

– Já vou aí.

A conexão do interfone se desligou enquanto o portão se abria.

– Não entre com o carro na propriedade dela. Vamos apenas sair do carro – Vovó disse, encontrando os olhos dele. – A cadela vai gostar de você, não vai?

Kevin abriu o sorriso.

– Os cachorros costumavam gostar de mim... antes de eu ser Marcado. E depois, na Morada da Noite de Zo, havia uma labradora dourada super legal chamada Duquesa. Ela me amava. Então acho que vai dar tudo certo.

O som de um motor de carro se aproximando cada vez mais fez Vovó Redbird suspirar.

– Bem, agora é tarde demais se estivermos errados.

– Não estamos errados, Vó. Só observe. Eu consigo lidar com essa parte. Cachorros são simplesmente incríveis! – Kevin deu a volta no carro e parou logo antes da linha de entrada na propriedade, diante do portão aberto.

O motor roncou, derrapando até parar na frente deles. Kevin teve que apertar os olhos diante das luzes ofuscantes do veículo, mas conseguiu ver uma mulher baixa – provavelmente com uma idade próxima à de sua avó. Ela tinha um cabelo desgrenhado com mechas grisalhas onduladas pintadas de roxo, rosa e azul. Era velha, mas seu corpo ainda estava em forma, o que era óbvio, pois estava usando uma calça legging enfiada em botas de cowboy turquesa e um moletom escrito KALE imitando o logo da universidade de Yale2. Apontando uma espingarda .45, ela desceu agilmente do carro, seguida por uma pequena terrier preta malhada.

– Oi, Tina. Este é o meu neto, Kevin.

– Boa noite, senhora – Kevin disse educadamente.

– Vamos ver se a noite é boa mesmo – a velha resmungou.

– Ei! É um terrier escocês! – Kevin exclamou. – Eu sempre quis ter um. Acho que eles são os cachorros pequenos mais legais de todos.

Os olhos verdes de Tina analisaram Kevin.

– Você não soa como um vampiro vermelho.

– É porque eu sou um tipo diferente de vampiro vermelho – ele explicou.

– Um tipo bom – Vovó acrescentou.

– Impossível – Tina afirmou.

– Mostre a ela, u-we-tsi.

Kevin se agachou e sorriu para o pequeno terrier.

– E aí, garotinha! Você é muito linda. Que tal vir aqui e me deixar fazer carinho em você?

A cadela o observou tão atentamente quanto a mulher ao seu lado.

– O nome dela é Babos.

– Babos, que nome legal. Oi, Babos. – Ele estendeu a mão. – Venha cá, garota.

A cadelinha hesitou, com as orelhas levantadas para Kevin. Ela ergueu a cabeça e farejou o ar.

– Pena que não tenho nenhuma guloseima para você. Da próxima vez vou lembrar disso, mas eu prometo que sou ótimo em fazer carinho. – Ele fez gestos de coçar o queixo com os dedos. – Venha cá, Babos. Dê uma chance para mim.

O terrier escocês inclinou a cabeça, farejou o ar de novo e então, com uma pequena bufada, saiu trotando diretamente até Kevin, que sorriu e disse que ela era a cachorrinha mais esperta, bonita e doce que ele já tinha visto, cumprindo a sua promessa de coçar o seu queixo peludo enquanto ela balançava o rabo entusiasticamente.

– Uau. Eu nunca teria acreditado nisso se não estivesse vendo com os meus próprios olhos – Tina falou. – O que ele é?

– Eu disse. Ele é meu neto. E ele vai mudar tudo.


– Você tem mesmo um rancho de terriers escoceses! – Kevin não conseguiu evitar o olhar embasbacado enquanto ele e Vovó Redbird seguiam Tina para dentro do rancho espaçoso. Quando eles entraram pela garagem, foram cercados por um grupo de terriers pequenos, com suas cabecinhas em forma de tijolo, variando em cores do dourado ao trigo até o preto e o preto malhado. Kevin tentou contar quantos eram, mas, quando contou quinze deles, desistiu.

– Ahn, Vó, você estava falando sério sobre os filhotes? Cara, espero que sim.

Tina então sorriu para ele – a primeira vez que ela fez algo além de olhar como se ele fosse um inseto espetado em um mostruário de exibição.

– Eu não tenho filhotes agora, mas vão nascer em algumas semanas.

– É um código, u-we-tsi. Humanos ou vampiros azuis e até novatos azuis que são aliados da Resistência vêm ao rancho da Tina e perguntam por filhotes.

– Mas o que eles realmente estão pedindo é proteção – Tina disse.

– Espero que algum dia eu possa ter um filhote – Kevin murmurou enquanto se agachava e aproveitava totalmente o fato de estar sendo acossado por uma horda de terriers escoceses.

– Por que ele é diferente? – Tina perguntou.

– Isso, minha amiga, é uma longa história com a qual nós preferíamos não gastar tempo neste momento, já que a Resistência vai precisar dessa explicação também. Eles estão aqui?

Tina assentiu.

– No topo da montanha. Sabe onde ficam os esconderijos de caça, naquelas árvores adjacentes que dão na passagem do gramado?

– Sei.

– Alguns estão nos esconderijos. Outros estão trabalhando, tentando expandir uma área parecida com uma caverna que descobriram uns dias atrás entre as pedras ao lado da montanha. Eles chegaram na noite passada, com alguns refugiados que precisam levar clandestinamente para fora daqui, a maioria mulheres e crianças. Há uma tempestade de neve se formando. Eles acham que os refugiados vão estar seguros na montanha, pelo menos por uns dias.

Vovó Redbird suspirou.

– Eles ficam vulneráveis demais nesses esconderijos. Há tão pouco abrigo neles. Eu sei que vampiros têm resistência ao clima frio, mas é simplesmente horrível que tenham que correr de um lugar para o outro, como fazem. O estresse de não ter um lugar realmente seguro deve ser muito desgastante.

– Foi por isso que eles ficaram tão animados ao encontrar a caverna – Tina concordou. – Mas Dragon me disse que neste momento ela pode comportar apenas cerca de cinco pessoas, e isso se não se importarem em ficar amontoadas. Eles estão trabalhando para expandi-la, mas você sabe que a montanha é composta, na maior parte, por rochas e terra vermelha dura. Está indo devagar, especialmente no meio do inverno.

– Espere aí, você disse Dragon? Dragon Lankford? – Kevin perguntou.

– Sim. Dragon Lankford era o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa... antes de Neferet começar a guerra – Tina respondeu.

– A companheira dele, Anastasia, está aqui também? – Kevin quis saber, a empolgação aumentando o seu tom de voz.

Tina assentiu.

– Está sim.

– Vovó! Zoey me disse para encontrar Dragon e Anastasia Lankford... que eles com certeza poderiam me ajudar.

– Então nós estamos no caminho certo – Vovó falou com um sorriso.

– Cara, espero que sim. – Kevin se levantou depois de dar mais um abraço nos terriers. – Então, quer dizer que na real a Resistência não tem um quartel-general?

– Eles tinham um quartel-general de verdade, mas isso foi antes de Lenobia e Travis serem seguidos, encurralados e mortos, junto com os seus cavalos... – Tina perdeu as palavras enquanto tentava se recompor, obviamente perturbada demais para continuar.

Vovó Redbird se aproximou de Tina, abraçando-a em solidariedade, e então terminou a explicação.

– Lenobia e Travis tinham criado um quartel-general para a Resistência no meio do Parque Nacional de Keystone. Tem mais de setecentos acres e, exceto pelas áreas próximas à Represa e à Barragem de Keystone, é selvagem e não possui nenhuma construção, apesar de o parque ficar a apenas cerca de uma hora do centro de Tulsa. Era um lugar excelente para um acampamento rústico, principalmente porque Lenobia conseguiu retirar clandestinamente vários cavalos da Morada da Noite quando ela e Travis saíram. Alguém os traiu. Lenobia e Travis ficaram com os cavalos, atraindo o Exército Vermelho para longe do resto da Resistência e dos inocentes que estavam tentando ajudar a encontrar um lugar seguro. Eles foram massacrados. Lenobia, Travis, os membros da Resistência, os inocentes e todos os cavalos.

Kevin abaixou a cabeça, a tristeza e o arrependimento tomando conta dele.

– Você estava lá, não estava? – a voz de Tina soou áspera.

– Não. E eu agradeço a Nyx por isso. Eu ainda era um novato quando isso aconteceu, e novatos nunca tomam parte em combates. Eles ainda não são boas armas. Eles precisam estar completamente Transformados para que a sua humanidade esteja extinta o suficiente para que eles sejam perigosos e descartáveis. – Ele fez uma careta de desgosto. – Mas eu ouvi falar no massacre. O meu general, Dominick, se gabou muito por causa dessa vitória. Aquilo... aquilo me deu nojo. Ainda dá.

– Ainda bem que você não estava lá – Tina disse, com a voz ainda trêmula. – Acho que eu não conseguiria aguentar ter você aqui na minha casa se você estivesse envolvido nisso. Lenobia era uma boa amiga. E aqueles cavalos... – Ela estremeceu. – Não consigo nem pensar no que o Exército Vermelho fez com eles.

– Sinto muito – foi tudo que Kevin conseguiu pensar em dizer.

– Mostre que você sente muito. Não basta me dizer isso. Ajude-nos a impedir Neferet e reverter a tragédia que ela provocou neste mundo, e aí eu vou acreditar que você realmente sente muito – Tina disse.

– Eu vou. Eu juro.

Tina assentiu rapidamente e então fez um gesto para que eles a seguissem para dentro da cozinha, que estava exalando um cheiro delicioso. Com a horda de terriers trotando ao redor dos seus pés, Vovó Redbird e Kevin abriram caminho lentamente atrás de Tina, com cuidado para não pisar em nenhuma patinha.

– Imagino que vocês querem se juntar a eles logo.

– Sim. Seria melhor – Vovó Redbird respondeu.

– Na verdade, vocês vão me fazer economizar a viagem. Eu assei uma dúzia de pães e terminei de enlatar a minha geleia de amora. Nunca soube que vampiros amavam tanto pão fresco e geleia antes de Neferet mudar o nosso mundo, mas eles com certeza amam.

Kevin ficou salivando ao observar Tina terminar de colocar os pacotes de geleia e pão caseiro saído do forno em grandes sacolas de lona.

– Quem não gosta de pão caseiro? – ele comentou. – E o cheiro do seu pão é incrível.

Tina parou para olhar para ele. Ela balançou a cabeça.

– É difícil se acostumar com isso.

– Isso? – Kevin perguntou.

– Acho que você é uma palavra melhor do que isso. O que eu quis dizer foi que é difícil se acostumar a ter um vampiro vermelho que age como uma pessoa normal e racional dentro da minha cozinha – ela bufou, acrescentando: – Quase vale a pena sair com vocês no frio e no escuro só para ver a reação deles.

– Eu não espero que minha aceitação vá ser fácil – Kevin disse.

– Quer ouvir a verdade?

Kevin assentiu.

– Você precisa de um milagre para que eles o aceitem.

– Tudo bem – Kevin sorriu para ela. – Sei de fonte segura que Nyx está me concedendo alguns milagres.

– Para o seu bem, espero que sim. – Tina voltou a encher as sacolas de lona.

– Para o bem de todos nós, eu espero que sim – Vovó reafirmou.

– Ok, Kevin Milagroso, me ajude a carregar isto aqui.

Tina abarrotou Kevin com o máximo de sacolas que conseguia carregar, deixando apenas uma para a sua avó, e então seguiram Tina para fora pela porta de trás e passaram por uma piscina, da qual emergia um vapor semelhante a espíritos errantes.

– Que demais! – Kevin exclamou.

Tina sorriu.

– Isso e os meus terriers são os principais prazeres que me permito. Bem, isso se você não contar o meu amor por macarrão e cerveja artesanal. Eu deixo essa piscina aquecida o inverno inteiro. É lindo boiar nela olhando para as estrelas através do vapor. Faz com que eu esqueça como o nosso mundo está ferrado.

– Minha amiga, ajuda um pouco se eu contar a você que, por causa do que aconteceu com Kevin, nós temos uma chance real de derrotar Neferet? – Vovó Redbird falou.

– Sylvia, eu adoraria acreditar que nós podemos voltar a como tudo era antigamente.

– Que tal mais do que isso? – Kevin interveio. As duas mulheres apontaram olhares curiosos na direção dele. – Que tal um mundo onde humanos e vampiros são aliados e amigos de verdade? Assim como vocês duas são aliadas da Resistência. É mais do que possível. Eu vi. Pode funcionar, e faz do mundo um lugar até melhor do que o que a gente tinha aqui antes de Neferet começar a guerra.

– Filho, você não é daqui, é?

– Na verdade, eu sou. Vamos apenas dizer que eu viajei bastante recentemente.

– Eu quero o mundo de Kevin – Vovó Redbird afirmou, sorrindo carinhosamente para o seu neto.

– Bem, o seu mundo parece bom, meu filho. Mas, para mim, basta ter a paz.

– Senhora, a minha avó me ensinou a não me contentar com pouco – Kevin disse, abrindo um sorriso travesso para a sua avó.

– Ele é um pouco inexperiente, mas acho que devo acreditar nele – Sylvia Redbird falou.

– Vou dizer uma coisa: se conseguir fazer a Resistência confiar em você e aceitá-lo, eu posso acreditar nesse seu mundo – Tina disse. – E posso conseguir um filhote de terrier escocês para você de presente.

Kevin abriu um sorriso como um raio de sol.

– Promete?

– Desde que a gente não esteja em guerra e que você possa dar a ele um bom lar... sim, eu prometo.

– Feito! – Kevin exclamou.

– Feito – Tina concordou. – Ok, coloquem as sacolas aqui e levem o Polaris.

Ela abriu a tampa da caixa de metal presa ao local onde deveria ficar o assento traseiro do veículo. Kevin colocou as sacolas lá dentro depois que Tina afastou os cobertores, caixas de fósforos e bolsas de sangue...

– Sangue! – Kevin exclamou. – Nós vamos levar sangue para eles?

– É claro – Tina disse, perplexa. – Vampiros não sobrevivem só com pão e geleia.

– Mas... sangue!

Tina inclinou a cabeça.

– Meu jovem, nesse mundo em que você diz que os humanos e os vampiros vivem como amigos, eles também curaram o fato de que os vampiros precisam de sangue humano para sobreviver?

– Hum, não.

– Então, os humanos lá devem estar acostumados com os vampiros bebendo sangue, certo?

– Sim, acho que sim – Kevin respondeu.

– Bom, eu sou vegana. Eu realmente não vejo muita diferença entre beber sangue humano e comer um bife malpassado ou um carré de cordeiro sangrento. – Ela deu de ombros. – Eu não comeria nada disso, mas cada um na sua.

– Quem é você? – Kevin falou sem pensar.

– Apenas uma professora de inglês aposentada. Depois que você dá aula numa escolha pública de ensino médio, não se abala com muita coisa.

– Óbvio. Queria ter sido seu aluno. Aposto que sua aula não era um tédio – Kevin disse.

– Eu te digo que não – Tina respondeu. Então ela o surpreendeu ao lhe dar um abraço rápido. – Cuidado. E lembre-se do nosso acordo.

– Sem chance de eu esquecer que você me prometeu um filhotinho!

– Sylvia, você lembra como se chega até a montanha, não?

– Ah, acho que sim. Se não me engano, é só virar à direita – Vovó falou.

– É isso. Lembrem-se de tomar cuidado com o portão. Se tocarem naquela cerca elétrica, ela vai fritar vocês.

– Vou me lembrar disso – Vovó afirmou. Ela fez um gesto para Kevin assumir a direção. – Você dirige, u-we-tsi.

– Devagar e sempre – Tina disse quando Kevin deu a partida no Polaris. – Nós mantemos essas velhas trilhas esburacadas, principalmente depois do que aconteceu em Keystone. Você vai ter que parar e tirar uns galhos do caminho algumas vezes. É de propósito.

– Pensei que você estivesse sob a proteção de Neferet por causa das plantações de alfafa – Vovó Redbird observou.

– Eu estou, mas ultimamente os cachorros têm dado o alerta no meio da noite, e não é por causa de Dragon e do nosso grupo. Acho que o Exército Azul anda farejando por aqui. Lembre-se de contar isso a Dragon.

– Vou dizer – Vovó respondeu.

– Quando vocês chegarem à árvore caída, que é grande demais para tirar do caminho, vai ser a hora em que serão interditados – Tina os avisou.

– Eu tenho o meu código. Estou pronta – Vovó disse.

Tina balançou a cabeça.

– Você sabe que eles vão pensar que você está sob a influência de um vampiro vermelho. Eles podem atacar antes que você consiga convencê-los de não fazerem isso.

– Então eu só tenho que ser mais esperta e mais rápida do que eles – a idosa retrucou.

Tina sorriu ironicamente.

– Boa sorte.

– Obrigado, senhora – Kevin falou.

– Você não precisa me agradecer por ajudar a Resistência, filho. É a coisa certa a fazer.

– Eu não estava agradecendo por isso. Eu agradeci por você confiar em mim. Por me convidar para entrar.

– Ah, entendo. Não me agradeça. Só não faça com que eu me arrependa de confiar em você.

– Eu não vou. Prometo.

Kevin engatou a marcha no Polaris e foi na direção que a sua avó apontou – um caminho de terra que mal dava para ver e que desaparecia na escuridão dos cumes de Oklahoma. Se não tivesse que segurar as duas mãos no volante para contornar buracos e pedras, ele estaria estalando os dedos feito doido.

2 Kale significa couve em inglês. O moletom com a palavra “KALE” estampada, com a mesma letra do blusão tradicional da Universidade Yale (em que se lê apenas “YALE”), já foi usado por Beyoncé em um videoclipe. (N.T.)


4

Zoey

– Zoey! Ah, que bom que eu te achei. Você tem um segundo? – uma voz familiar gritou de algum lugar no corredor.

Fiz força para não suspirar, fixei um sorriso no rosto e me virei, enquanto Damien e Outro Jack abriam caminho pelo corredor lotado na minha direção. Assim que eles me alcançaram, meu sorriso se tornou verdadeiro.

– Oi, Damien e Jack. Vocês estão bem acomodados? Precisam de algo? – perguntei. A felicidade que irradiava deles deixava o meu coração pesado mais leve, pelo menos por um momento.

– Aiminhadeusa! Tudo aqui é simplesmente fabuloso! – Outro Jack exclamou, mirando Damien com seus olhos grandes e cheios de amor.

O sorriso de Damien era para Jack, mas ele também me inclui, compartilhando a alegria.

– Z, a gente tem tudo que precisa... nós temos um ao outro.

– E este mundo mais que demais – Jack acrescentou.

– Sim, concordo com Jack. Na verdade, a gente queria ver se nós podemos ajudar você em algo – Damien disse.

– Bem, certo. Mas o que isso quer dizer?

– A gente queria ficar mais envolvido na nova decoração do Restaurante da Estação – Damien falou.

Jack ficou assentindo feito um boneco de cabeça de mola, apesar de eu ter que admitir que ele é muito mais bonito do que os bonecos de mola em geral.

– Vocês falaram com Kramisha? Na verdade, o projeto é dela – eu disse.

– A gente não quis falar com ela antes de expor a nossa ideia para você – Damien respondeu.

Como os dois apenas ficaram ali parados sorrindo para mim, eu os incentivei a continuar.

– Ok, bom, qual é a ideia?

– Você vai amar! – Jack estava dando pulinhos, mal conseguindo controlar a ansiedade.

– A gente precisa contar para ela – Damien disse.

– Siiiiim, a gente precisa! – Jack concordou.

E, é claro, nenhum dos dois disse nada.

Eu resisti à tentação de estrangular seus pescoços ridiculamente felizes, o que Damien deve ter percebido, pois ele limpou a garganta e explicou.

– Então, você sabe que Kramisha já decidiu decorar o restaurante como uma boate da era das big bands, certo?

– Sim, certo. Todos achamos que era uma ótima ideia – eu disse.

– E é, por isso nós queremos trazer alguns especialistas em boates – Damien falou.

– Os gays! – Jack vibrou.

– Os gays? – eu disse, agora totalmente confusa.

– Na verdade, seria melhor dizer a comunidade LGBTQ – Damien corrigiu. – Eu fui até o Centro de Igualdade... você sabe que não fica longe da estação, não é?

– Sim, claro. O Centro de Igualdade de Oklahoma fica a menos de um quilômetro e meio da Rua Quatro. Eu fui lá outro dia discutir sobre uma parceria com eles para o próximo Show de Arte Mais Cores. Eu ia anunciar isso na nossa próxima newsletter – eu contei.

– A gente já sabe – Jack disse. – Toby nos contou quando estávamos lá, conversando sobre a nossa outra ideia.

Senti que eu estava parecendo uma bola de pingue-pongue entre os dois, então me concentrei em Damien.

– Explique-se, por favor.

– É simples. Toby Jenkins, o diretor do centro...

– Sim, eu conheço Toby – eu assenti.

– Ele é apaixonado por história e ficou entusiasmado de ouvir que nós vamos transformar o restaurante em um clube dançante. Ele gostaria de nos ajudar a fazer não apenas um lugar bonito com boa comida e música. Ele pode nos ajudar a fazer com que seja historicamente preciso. Certificando-se de que o palco, a pista de dança, as mesas, as toalhas e até o uniforme dos garçons sejam tão parecidos com os da era do jazz que as pessoas vão realmente sentir como se estivessem voltando ao passado quando reservarem uma noite no nosso restaurante – Damien explicou.

– Isso parece legal mesmo – eu concordei. – O que me faz lembrar que Toby me disse que tem uma lista de fornecedores que são pró-igualdade e, é claro, esses são os únicos fornecedores que nós devemos contratar. Ele disse que compartilharia essa lista comigo e então, bom... – perdi as palavras quando todos nós pensamos nos acontecimentos dos últimos dias.

– Ei, sem problemas, Z – Damien disse carinhosamente. – Nós vamos cuidar disso pra você.

– Sim, você já tem muita coisa na cabeça. Deixe a gente ajudar com isso – Jack completou.

– Obrigada. Aos dois. Sim, eu aceito a ajuda e acho que a ideia de vocês de trazer Toby e qualquer um que ele recomendar é fantástica. Podem falar para Kramisha que vocês definitivamente têm a minha aprovação.

– Aêêêê! – Jack bateu palmas.

– Você não vai se arrepender, Z. O restaurante vai ser espetacular – Damien prometeu. Ele fez uma pausa e me olhou atentamente. – Você parece cansada.

– Yoga é excelente para o alívio do estresse – Jack sugeriu. – No meu outro mundo, antes de todas aquelas coisas horrendas começarem a acontecer, eu era um professor certificado de yoga. Quer que eu conduza você em alguns alongamentos meditativos?

– Hum, não neste momento – eu respondi. – Mas se você quiser dar algumas aulas de yoga aqui na escola, acho que seria ótimo.

– Ai. Minha. Deusa! Sério? Você está brincando? Você me deixaria mesmo dar aulas?

Como é possível alguém não amar esse garoto? Ele era como um unicórnio cintilante.

– Sim, com certeza. Só espere que eu me reúna com o Conselho da Escola para pensar onde podemos encaixar as suas aulas.

Jack se atirou em meus braços, quase me derrubando.

– Obrigado! Obrigado! Posso tocar música? Yoga é sempre melhor com música. E hot yoga! A gente pode ter isso também?

Eu me desvencilhei de Jack.

– Claro. Hot yoga parece legal – eu menti. Hot yoga? Como se a yoga normal não fosse difícil o bastante. – Faça um programa do curso, com uma lista de suprimentos, para que eu possa informar o Conselho do que você precisa exatamente, e a gente bola alguma coisa.

– Que ótimo, Z. – Damien estava me observando por cima da cabeça exultante de Jack. – Mas parece que você precisa de um pouco de descanso e alívio de estresse agora.

– Você não poderia estar mais certo – eu concordei. – Por isso preciso ir. Estou a caminho da minha terapia de estábulo.

O alívio suavizou a expressão preocupada de Damien.

– Ah, excelente! Escovar Persephone sempre te ajuda a relaxar. Divirta-se. E se alguém perguntar onde você está, eu digo que você está na estação.

– Isso seria maravilhoso. Eu só preciso de uma hora para mim mesma.

– É toda sua. – Damien colocou o braço ao redor de Jack. – Venha. Vamos falar com Kramisha, e então a gente pode dar as boas novas a Toby.

Conversando animadamente com os rostos colados, Jack e Damien foram na direção da entrada da Morada da Noite. Eu observei os dois se afastando, tentando capturar um pouco da felicidade que eles exalavam.

Não funcionou. Eles se foram e tudo que eu senti foi cansaço e tristeza. De novo.

Vamos lá, Z. Recomponha-se e saia dessa! Kevin está de volta onde ele precisa estar, e é isso. Aquele mundo precisa dele. Neste mundo, Heath está morto. A sua mãe está morta. E a gente conseguiu derrotar Neferet pra valer. Controle-se!

Sacudindo-me mentalmente, saí pela porta de trás da escola, virei à esquerda e segui pela calçada até a entrada dos fundos do centro equestre. Caminhei rapidamente, mal assentindo para os novatos que me cumprimentavam. Eu só precisava de um tempo sozinha... um tempo para relaxar e não pensar muito.

No instante em que abri a porta do estábulo, respirei fundo, inalando os aromas reconfortantes de cavalo e feno. A aula já tinha começado, e eu podia ouvir Lenobia na arena, dizendo ao seu grupo de calouros que cavalos não são cachorros grandes, o que me fez sorrir em nostalgia enquanto caminhava até a baia de Persephone. Assim que a égua ruã me viu, ela fez uma saudação baixa e retumbante.

– Bom, oi pra você também, menina bonita! Como você está? – Eu peguei a escova para crinas, outra escova grande e macia e um limpador de casco na prateleira do lado de fora da baia, bem como um punhado de guloseimas de hortelã que eram as suas preferidas, e entrei. Persephone me acariciou com o focinho, obviamente procurando pelos doces, que eu ofereci a ela. Eu sorri e beijei a sua testa ampla enquanto ela lambia delicadamente a hortelã da minha mão. Depois de fazer um pouco mais de carinho e beijar o seu focinho de veludo, a égua voltou a atenção para a sua comida e eu comecei a trabalhar.

Eu amava tratar de cavalos – de Persephone principalmente. E a energia positiva dela sempre me atingia rapidamente. Logo a minha mente se esvaziava e eu não pensava em mais nada, exceto em trançar bem a sua crina e o seu rabo e em cuidar para que os seus cascos ficassem livres até da menor pedrinha.

– Persephone, menina bonita, queria que o meu cabelo brilhasse tanto quanto o seu pelo – eu disse, encostando o queixo no seu pescoço grosso e quente. Ela levantou uma pata, bufou e pareceu muito que ia tirar uma soneca. Por entre as colunas da baia, dei uma espiada no relógio do estábulo. – Droga. Mais uns vinte minutos e essa aula vai terminar, e então os novatos vão se esparramar por todo canto.

O que eu não daria para ser uma novata de novo, sem nenhuma preocupação com o mundo.

Comecei a ir na direção da porta para guardar as escovas quando Persephone bufou de novo e, com um grunhido muito satisfeito, dobrou as longas patas e se estatelou no meio da sua baia cheia de palha.

– Então você estava falando sério em tirar uma soneca, hein? – Eu me virei para a porta e então hesitei. – Bem, por que não? Talvez um pouco de descanso vá me ajudar a sair desse mau humor terrível. – Soltei as escovas e fui até Persephone. A doce égua mal abriu o olho quando eu me aconcheguei, bem na frente das suas patas dianteiras, recostando-me na sua barriga quente. – Mas eu provavelmente não vou dormir de verdade. Não tenho conseguido dormir muito bem ultimamente – contei a ela em meio a um bocejo gigante. Então coloquei a cabeça no ombro dela, fechei os olhos e caí direto no sono.


Toc-toc-toc! Alguém estava esmurrando a minha porta.

Minha porta? Espere aí. Eu estou no estábulo com Persephone. Estão esmurrando a porta da minha baia?

Levantei a cabeça. Tudo escuro... estava tudo muito, muito escuro mesmo. Como poderia estar tão escuro nos estábulos?

Toc-toc-toc!

– Ok, ok! Já vai – eu disse.

Eu disse? Mas eu nem abri a boca.

Uma luz se acendeu e eu dei um pulo em choque.

Eu não estava no estábulo. Eu estava no dormitório. No meu antigo dormitório, mas, na verdade, era parecido com o meu antigo dormitório. As minhas coisas estavam lá, mas a cama de solteiro do outro lado do quarto estava vazia. Stevie Rae não estava em lugar nenhum. As coisas dela também não estavam lá. Era como se ela não existisse.

Toc-toc-toc!

– Ei, estou me vestindo. Psiu! Aguenta aí!

Eu observei enquanto uma versão de mim colocava uma calça jeans e um moletom preto e dourado dos Tigers da Broken Arrow.

Que diabos era isso?

Eu me senti super tonta e enjoada, e então a minha confusão começou a clarear quando eu vi que o meu corpo estava quase completamente transparente, e que eu estava pairando um pouco acima da cama.

Então eu finalmente entendi. Aaah, eu estou dormindo. Isso é um sonho... um sonho sobre quando eu ainda era uma novata. O que, na verdade, fazia sentido. Quer dizer, eu andava tão estressada que estava me escondendo no estábulo, tirando uma soneca com o meu cavalo e desejando muito que eu fosse uma novata sem preocupações. Não é surpreendente que eu estivesse sonhando que era uma novata de novo.

Só que eu não era a novata. Eu estava observando a mim mesma, eu que era uma novata.

Ok, então, tudo bem. Sonhos são esquisitos. Olhei em volta do quarto semifamiliar enquanto “Zoey” corria até a porta. Se Kalona aparecer... de novo... eu acordo desta vez. Na mesma hora.

A Zoey do sonho hesitou diante do pequeno espelho sobre a pia e tentou ajeitar o cabelo de quem tinha acabado de acordar, e eu dei a primeira boa olhada no seu rosto.

Espere aí, isso está errado. Essa novata Zoey tem uma Marca normal, como todos os outros novatos.

Novamente, racionalizei que aquilo não era um grande problema. Quer dizer, se eu estava sonhando em escapar do estresse sendo uma novata, eu definitivamente não queria ser a única novata com uma Marca preenchida. De novo.

A Zoey do sonho abriu uma fresta na porta. Eu vi o seu corpo se contrair com a surpresa, e então ela deu um passo atrás para poder abrir a porta inteira e... mostrar Neferet parada no corredor.

– Ah, que inferno! Corra! Este é um sonho péssimo! – eu gritei.

Mas a Z do sonho não me ouviu – nem a Neferet falsa do sonho.

– Grande Sacerdotisa! Oi. Eu, ahn, posso convidá-la para entrar? – a Zoey do sonho perguntou desajeitadamente.

– Não! Não a deixe entrar no seu quarto! – eu disse, mas, de novo, nenhuma delas me ouviu.

– Ah, não, querida. Sinto muito por acordá-la, já que o sol ainda não se pôs, mas você tem uma visita que parece um pouco perturbada – disse a Neferet do sonho com uma falsa simpatia que me dava nojo.

– Vai se ferrar, Neferet! – eu berrei. Claro que elas não me ouviram, então eu suspirei e esperei para ver qual esquisitice ia acontecer em seguida no sonho, e reconsiderei seriamente a minha postura de nunca falar palavrão.

– Uma visita? Sinto muito, Grande Sacerdotisa, mas não estou entendendo.

– É o seu padrasto. Ele está... – Neferet fez uma pausa e uma careta obviamente contrariada – insistindo muito para que você vá falar com ele. Ele mencionou algo sobre a sua alma imortal.

– Ah, eca! Ele! – a Zoey do sonho disse, e eu ecoei o seu pensamento. Só fale que é para ela dizer que ele vá embora e nunca mais volte!

Mas a Zoey do sonho parecia mais nova e mais legal do que eu – ou talvez apenas mais nova e mais ingênua.

– Ok, eu vou falar com ele.

– Ótimo! Eu vou acompanhá-la até lá e permanecer com você. Ele realmente é um homem desagradável.

– Sim, com certeza, e obrigada por ficar comigo.

Neferet fez um gesto para que a Zoey do sonho a seguisse, o que ela fez, apesar de eu ficar gritando “Não, não vá!”.

E quando a Z do sonho fechou a porta, eu me senti flutuando atrás dela e atravessando a porta fechada.

– Ok, este é o sonho mais estranho que já tive na vida – falei em voz alta para mim mesma enquanto voava atrás da versão de mim e de Neferet no sonho. As duas estavam conversando despreocupadamente, como se a Neferet do sonho fosse mesmo uma Grande Sacerdotisa decente e a Zoey do sonho fosse apenas uma novata recém-Marcada. Quase como quando eu fui Marcada pela primeira vez e Neferet fazia um papel de mãe para mim.

Eu estava muito errada sobre aquilo, mas isto era apenas um sonho. Devia mesmo parecer estranho.

E a Morada da Noite parecia estranha também. De alguma forma, parecia mais escura e vazia do que a minha escola sempre cheia e onde ninguém nunca dormia. Nesse último ano, desde que meus amigos e eu assumimos o comando, nós havíamos expandido tanto os programas humanos/novatos que sempre havia algo acontecendo a qualquer hora.

Ali, não. Tudo estava silencioso, e a luz cada vez mais acuada do sol se pondo não fazia nada para aliviar a sensação de escuridão.

– Hum, a gente não está indo na direção errada? – a pergunta da minha eu do sonho chamou de volta a minha atenção, e eu percebi que Neferet havia guiado a Zoey do sonho para fora pela porta de trás da escola, em vez de na direção dos escritórios administrativos na frente do prédio principal.

– Oh, desculpe. Eu deveria ter explicado. O seu padrasto se recusa a entrar no campus. Um dos Guerreiros o encontrou espreitando lá fora no muro leste. – Neferet fez uma pausa e abriu um sorriso falso. – Isso não foi muito generoso da minha parte. Eu deveria ter escolhido outra palavra no lugar de espreitando.

O rosto da Zoey do sonho se enrubesceu e ela balançou a cabeça de desgosto.

– Não, essa é a palavra perfeita. E sou eu que preciso pedir desculpas. De novo. O meu padrasto é péssimo. Um religioso totalmente hipócrita, cheio de ódio e preconceito. – A eu do sonho estremeceu. – Ser Marcada e então me afastar dele foi um alívio. Eu vou conversar com ele e me certificar de que ele não voltará aqui para incomodar você nem nenhum outro vampiro.

– Ah, querida, por favor, não se preocupe com um humano sendo um incômodo. Não há nada de novo nisso. É o que os homens humanos parecem saber fazer melhor: incomodar quem é melhor do que eles.

A Zoey do sonho pareceu não saber como responder. Nesse instante, Neferet acelerou o passo, então nós duas tivemos que nos apressar para alcançá-la enquanto ela atravessava o gramado, indo direto até o alçapão no muro leste.

– O muro leste. Típico. Coisas horríveis sempre acontecem aqui – resmunguei.

Mas a Zoey do sonho não podia me ouvir, então nós seguimos Neferet até o alçapão, que ela abriu pressionando a pedra em que estava escrito 1926, o ano em que o muro foi construído. Eu flutuei pela passagem atrás delas até a área do lado de fora, bem ao lado do muro. Mesmo que o sol ainda não houvesse se posto, com certeza parecia que sim, pois estava tão escuro abaixo dos braços dos antigos carvalhos gigantes que ficavam em volta do muro que nós estávamos completamente nas sombras.

– John? – a Zoey do sonho chamou, olhando em volta da área escura e vazia. – Sou eu. Zoey. O que você precisa me dizer?

A eu do sonho estava procurando ao redor, com as mãos no quadril, obviamente exasperada. Só que a minha atenção não estava na Zoey do sonho. Estava em Neferet. A Grande Sacerdotisa havia ficado perto do muro, onde eu percebi que uma estaca grossa de madeira havia sido fixada no chão, tipo algo que um fazendeiro usaria para amarrar arame farpado.

Mas não havia cercas de arame farpado no centro de Tulsa. Que diabos estava acontecendo?

Neferet foi até a estaca e abriu uma grande bolsa que estava ali atrás – e desembainhou uma espada longa que parecia muito perigosa.

Eu entendi tudo em um instante. A estaca era parecida demais com aquela na qual eu encontrei a Professora Nolan, com a cabeça decepada.

– Zoey! Saia daí agora! – eu berrei para a minha eu do sonho desavisada, mas aquela Z não fez nada além de olhar em volta procurando pelo padrasto irritante.

Silenciosamente, Neferet se aproximou dela pelas costas, carregando a espada com as duas mãos, parecendo um samurai assassino.

– Aiminhadeusa, se mexa!

A Zoey do sonho não me ouviu, mas ela de fato se mexeu, virando-se de volta para dizer:

– Neferet, acho que ele foi embora. Sinto muito mesmo que isso tenha sido tanta perda de tempo e que você teve que... – Ela perdeu as palavras ao ver a espada de Neferet.

– Ah, querida, não há absolutamente nada a se desculpar. E as coisas saíram exatamente como eu planejei. Quando encontrarem você, vão acreditar que foi trabalho de humanos... do Povo da Fé, na verdade. Eu vou conseguir a minha guerra. – Neferet sorriu de modo irracional, mostrando os dentes, vitoriosa. – E você nunca mais vai ser importunada pelo seu padrasto ridículo de novo. Acho que isso é uma vitória para nós duas.

Os olhos da Zoey do sonho ficaram vidrados com o choque, e ela ficou balançando a cabeça de um lado para o outro sem parar. Com uma voz de menininha, ela repetiu várias vezes:

– Não, eu não entendo... eu não entendo... eu não...

Eu gritei quando Neferet girou em uma curva tão graciosa quanto mortal e, com apenas um golpe, cortou a cabeça da Zoey do sonho. O sangue se espalhou por toda parte quando o corpo desabou, contorcendo-se espasmodicamente.

Tanto sangue! Há tanto sangue!

Eu não conseguia parar de gritar. Eu queria fechar os olhos. Eu queria acordar, mas eu estava congelada no lugar, pairando sobre a minha eu do sonho, enquanto Neferet limpava a sua espada no chão. Depois ela voltou até a bolsa para tirar de lá uma corda e uma placa rústica, artesanal, na qual estavam rabiscados os dizeres: A FEITICEIRA NÃO DEIXARÁS VIVER! ÊXODO 22:18.

Eu reconheci aquela citação da Bíblia. Foi a mesma encontrada sobre o corpo crucificado e sem cabeça da Professora Nolan.

E então eu a escutei. Eu me escutei. O meu olhar desviou de Neferet e se voltou para a cabeça cortada que tinha rolado até parar em uma poça de sangue abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Quando eu olhei horrorizada, os olhos se abriram de repente, e a minha própria voz explodiu na minha cabeça.

Você tem que ajudar Kevin a detê-la – nada mais importa!

Atrás de mim, alguém segurou o meu ombro, e eu gritei tão alto que parecia que a minha voz estava rasgando...

– Z! Sou eu! Está tudo bem!

Ainda gritando, eu me sentei, dando de cara com Stark e quase quebrando o seu nariz. Persephone bufou e colocou as orelhas para trás, como se estivesse procurando algo para atacar.

– Shhh, está tudo bem, doce égua – Lenobia apareceu repentinamente, acalmando Persephone e lançando um olhar preocupado na minha direção.

– Stark? – Eu olhei freneticamente em volta, com meu coração batendo tão forte e rápido que eu podia senti-lo nas minhas têmporas. Estou na baia com Persephone. Foi só um sonho. Não foi real.

– Ei, sim, é claro que sou eu. Que diabos está acontecendo? Eu senti o seu medo como um ferro em brasa. O que aconteceu?

Eu abri a boca para contar a ele sobre o sonho... e não consegui. Porque eu percebi que estava errada. Não tinha sido só um sonho. Era uma mensagem. Uma mensagem que eu tinha que guardar para mim mesma, ao menos por enquanto.

– Stark! – Eu deixei que ele me puxasse para dentro dos seus braços fortes e seguros. – Sinto muito. – Virei a cabeça para poder ver Lenobia. Persephone tinha se levantado e estava recostada contra a Mestra dos Cavalos, parecendo assustada e preocupada. – Ah, não! Eu assustei Persephone também! – Eu me levantei com a ajuda de Stark e fui até a égua para acariciá-la e beijá-la. – Sinto muito, muito mesmo, menina bonita. Eu estou bem. Está tudo bem.

– Não. Não está. Eu senti o seu medo, seu pavor. O. Que. Diabos. Aconteceu? – Stark perguntou.

Eu tentei dar uma risada, mas saiu mais parecido com um soluço.

– Isso é realmente constrangedor. Foi só um sonho.

– Na maioria das vezes, seus sonhos são mais do que apenas imagens da sua imaginação – Lenobia disse, não de um jeito rude. – Da última vez que um sonho a despertou, era Kalona.

– Só que não era realmente Kalona – Stark acrescentou. – Então, o que foi?

Eu enxuguei o suor do meu rosto.

– Gente, eu realmente sinto muito. Não foi nada como os sonhos com Kalona ou o não Kalona. Eram só aranhas.

– Aranhas? – Lenobia perguntou.

Eu assenti e estremeci.

– Aranhas.

Stark suspirou e me puxou de novo para os seus braços.

– Ela morre de medo de aranha – ele explicou para Lenobia.

– No meu sonho, eu caí em um poço cheio delas. Foi horrível – eu menti, sentindo-me tão horrível por isso quanto o próprio poço cheio de aranhas.

– Bom, que alívio – Lenobia disse. – Mas, Zoey, se você tem tanto pavor de aranhas, você realmente deveria procurar uma terapia com hipnose. Uma das Grandes Sacerdotisas da Morada da Noite de Saint Louis é especialista nisso. Tenho certeza de que ela pode ajudar você.

– Obrigada. Vou me lembrar disso. Eu normalmente não me incomodo muito com a minha fobia de aranha.

– Mas você anda estressada e sem dormir direito – Stark falou. – Então, um pouco de terapia talvez fosse bom pra você.

– É, talvez. Se eu tiver outro sonho como esse, com certeza vou procurar.

Stark deu um beijo na minha testa.

– Ei, será que um festival de psaghetti vai fazer você se sentir melhor? Você dormiu na hora do almoço, e já é quase hora do jantar.

Eu não demonstrei como fiquei chocada ao descobrir que tinha dormido por horas em vez de por uns vinte minutos. Em vez disso, eu assenti e tentei demonstrar entusiasmo.

– Psaghetti sempre faz com que eu me sinta melhor.

– Foi o que pensei – Stark disse, segurando a minha mão. – Foi um longo dia para mim também. Vamos comer.

– Boa ideia. – Dei um beijo em Persephone de novo e sorri envergonhada para Lenobia enquanto saíamos da baia. – Desculpe por assustar você. Estou realmente me sentindo idiota por isso.

Lenobia estava olhando para mim com seu olhar cinza e esperto.

– Você está perdoada – ela falou. – E, Grande Sacerdotisa, se precisar conversar, lembre-se de que estou sempre aqui a seu dispor.

– Obrigada! Vou me lembrar disso – falei, fechando a porta da baia.

De mãos dadas, Stark e eu saímos do estábulo, na direção do refeitório.

Eu vou falar sobre isso, mas só quando tiver decidido exatamente o que fazer e como. Verdade seja dita, eu já tinha uma ideia. Dei uma olhada em Stark, sabendo que ele seria o meu maior obstáculo. Ele ia ficar bravo. Muito bravo mesmo.

Ah, que inferno...


5

Outro Kevin

– Você parece estar com frio, Vó. Da próxima vez que eu for tirar um desses galhos do caminho, vou pegar um cobertor na caixa lá atrás. Não quero que você fique doente.

A idosa gesticulou para afastar a preocupação do seu neto.

– U-we-tsi, eu ainda me purifico naquele córrego que corre atrás da minha casa. Está sempre frio. Estou bem. E nós já estamos quase no topo da montanha. Acho que, da próxima vez que a gente parar, não estaremos mais sozinhos.

– O que é esta terra? – Kevin olhou em volta, apertando os olhos através da escuridão para a área selvagem de uma montanha de Oklahoma, cheia de carvalhos antigos, relva na altura da cintura e muitas e muitas rochas de arenito.

Vovó indicou a estrada de terra irregular em que o robusto Polaris estava sacolejando.

– Estas são velhas trilhas da época em que o petróleo foi descoberto, e quando digo velhas, quero dizer velhas mesmo. Elas foram feitas por volta de 1901 e, para a nossa sorte, abandonadas em 1902, bem antes de pensarem em colonizar tudo isso ou pelo menos em alargar estes caminhos e pavimentá-los. A família de Tina por parte de mãe era líder do Povo Creek, e a propriedade desta enorme porção de terra passou para ela. Tina a protege há décadas.

– Então, a cerca elétrica já existia antes de a guerra começar?

– Não. Isso foi uma melhoria que ela fez no último ano. Discretamente, usando apenas o trabalho daqueles que são aliados à Resistência. Ela sabe que aquilo não iria deter um ataque do Exército Vermelho, mas a cerca tem o efeito de dissuadir bisbilhoteiros aleatórios e caçadores clandestinos.

– Aposto que deve ser bem bonito aqui durante o dia. É fácil imaginar como seria esse lugar há cem anos.

– É mesmo.

– Mas seria mais divertido imaginar se não tivesse tantas aranhas. Sem para-brisa nem capota nesta coisa, a gente é tipo um imã para aranhas. – Kevin fez uma careta quando ergueu o galho grosso que ele tinha quebrado na primeira parada, balançando-o na frente dele e de Vovó, tentando retirar teias de aranha do caminho antes que acabassem parando no meio delas.

– Aranhas comem carrapatos e mosquitos, u-we-tsi. Elas são apenas um mero inconveniente para nós. – Ela levantou as sobrancelhas. – A menos que, como Zoey Passarinha, você também tenha pavor delas.

– Vó, a minha masculinidade diz que é melhor eu não responder a essa pergunta.

Kevin seguiu em frente, aproveitando o som da risada doce de sua avó. Logo, porém, ele percebeu que não tinha escolha a não ser deixar que as teias de aranha decorassem todo o seu corpo, já que ele tinha que manter as duas mãos no volante e se concentrar para que o Polaris não capotasse quando o caminho foi ficando cada vez mais traiçoeiro. Os seus faróis iluminaram uma árvore enorme, caída como um gigante adormecido sobre a trilha, e ele diminuiu a velocidade até quase ficarem parados.

– Essa deve ser a barricada final – ele disse.

– Prepare-se, u-we-tsi. Dirija direto até a árvore e então pare. Desligue o motor imediatamente.

Kevin engoliu o nervoso e fez o que ela disse. Dirigiu até a enorme árvore caída, estacionou o veículo e desligou o motor. Assim que ele fez isso, a sua pequena e velha avó o deixou totalmente chocado ao subir com agilidade para o banco elevado da parte de trás do Polaris, tão perto dele que sua perna estava pressionada contra o braço dele. Ela levantou a cabeça através das barras estabilizadoras, respirou fundo e então gritou.

– Estou tentando colher pés de mostarda à luz da lua. É nessa hora que eles ficam mais potentes!

– Isso é verdade, Vó?

– Claro que não. É o meu código. Agora, shiu.

Houve um barulho como o do vento farfalhando através da grama alta e meia dúzia de vampiros azuis desceram dos carvalhos enormes ao redor deles – com espadas levantadas de prontidão, enquanto formavam um círculo que foi se fechando em volta do Polaris.

Um vampiro baixo e corpulento, em cuja face havia uma intrincada tatuagem com dois dragões cuspindo fogo, deu alguns passos à frente, ficando a poucos metros de Kevin. Ele empunhava uma espada longa com as duas mãos, e a sua atenção estava concentrada no vampiro vermelho.

– Vampiro vermelho, liberte Sylvia Redbird. Ela não merece perder a vida junto com você hoje.

Sylvia cuidadosamente se colocou na frente de Kevin, ficando empoleirada entre o seu neto e a espada do vampiro azul.

– Merry meet, Dragon.

Dragon Lankford estreitou os olhos e continuou a não falar diretamente com a idosa, dando uma ordem para Kevin.

– Liberte-a.

Devagar, com cuidado, Kevin levantou as mãos do volante, mantendo-as estendidas, com as palmas voltadas para fora.

– Minha avó está completamente livre.

– Sylvia, venha para cá – Dragon disse.

– Só se você me der sua palavra de que vai me escutar antes de decapitar o meu neto.

Dragon voltou o olhar rapidamente para a velha senhora.

– Seu neto?

– Sim, meu amigo. Este é Kevin. Ele vem em paz como seu aliado, assim como eu.

O olhar duro e vazio de Dragon se voltou de novo para Kevin.

– Então eu sinto muito pela dor que essa morte vai causar a você.

– Dragon, você precisa me escutar. Se não fizer isso, se você o massacrar sem pensar, como você vai ser diferente de Neferet e do seu exército de monstros vermelhos?

Dragon Lankford fez uma pausa longa o suficiente para olhar com tristeza para Sylvia de novo.

– Eu não a culpo por trazê-lo aqui. Você está claramente sob a influência dele. Você vai me perdoar quando recobrar a consciência.

A visão de Kevin, que era aguçada de modo sobrenatural, conseguiu perceber o que estava prestes a acontecer um instante antes de Dragon atacar. Kevin só conseguiu pensar no que a longa espada afiada igual a uma navalha poderia fazer na sua pequena e velha avó. Ele se mexeu com uma velocidade estonteante quando Dragon deu o bote, atirando-se na frente dela enquanto pegava o seu galho de proteção contra aranhas e desviava o golpe da espada. Deslocado para o lado, o golpe que era destinado a decapitar sua cabeça acabou riscando as suas costas de ombro a ombro.

No começo, ele não sentiu nenhuma dor – apenas um puxão e o súbito calor do seu sangue jorrando pelas costas.

Vovó Redbird gritou e caiu sobre o corpo de Kevin, bloqueando o próximo golpe fatal de Dragon.

– Cheire o sangue dele! – Sylvia berrou. – Cheire, Dragon! O sangue dele não é como o dos outros vampiros vermelhos! – Pressionada contra o corpo ensanguentado do seu neto, a raiva de Sylvia era quase palpável. – Você vai ter que me matar para atingi-lo!

– Bryan, espere.

Em meio à confusão do choque, Kevin observou uma mulher se aproximar do Mestre da Espada e gentilmente tocar o seu braço. A beleza dela era etérea, fazendo-a parecer com uma das fadas ancestrais. Kevin achou que o seu longo cabelo loiro parecia irradiar luz própria. E um corvo enorme estava empoleirado serenamente no seu ombro.

– Meu amor, a nossa amiga Sylvia está certa. O sangue desse garoto não tem cheiro de morte.

Aquilo fez a espada de Dragon hesitar. O Guerreiro respirou fundo, e então arregalou os olhos. Ele deu um passo à frente, facilmente retirando Vovó Redbird de cima de Kevin e depositando-a ao lado da trilha, perto da mulher com o corvo. Dragon então pressionou a espada contra o pescoço de Kevin.

– Isso é magia negra? O Exército Vermelho aprendeu a disfarçar o seu cheiro? – Dragon o interpelou.

– Não – Kevin respondeu de modo ofegante, tentando falar em meio à dor ardente em suas costas. – Não é magia negra... é amor. Nyx intercedeu por mim e devolveu a minha humanidade. Por favor, não machuque a minha avó.

E então a beleza etérea novamente estava lá. Facilmente afastando a espada assassina para o lado, ela tocou o rosto de Kevin, sorrindo docemente para ele. Então ele percebeu quem aquela bela devia ser: Anastasia, a companheira de Dragon Lankford.

– Bryan, olhe além da sua raiva e veja este garoto.

Lentamente, Dragon colocou a longa espada na bainha presa às suas costas. Então ele deu um passo à frente, ficando a um palmo de distância de Kevin, que estava fazendo o melhor que podia para não desabar sobre o volante. O Guerreiro o cheirou e analisou a sua Marca.

– O que você é? – ele finalmente perguntou.

– Um garoto vampiro que você quase matou – disse Sylvia Redbird ao abrir caminho e passar por Dragon. – Esta ferida precisa de um curativo. Ele está perdendo muito sangue.

– Nós vamos cuidar dele. Você consegue andar? – a mulher encantadora perguntou a Kevin.

Dragon falou antes que Kevin conseguisse fazer a sua voz sair.

– Não, Anastasia. Diferente ou não, ele ainda é um vampiro vermelho e, portanto, nosso inimigo. Eu preciso acabar com ele.

– Meu amor, nós não podemos perder a nossa capacidade de demonstrar misericórdia ou, como Sylvia resumiu tão bem, não vai haver diferença entre nós e os monstros de Neferet. Confie em mim. Tenho um pressentimento bom sobre este garoto.

Dragon olhou para a sua companheira por um longo momento antes de assentir. Era um aceno leve, mas, ainda assim, ele havia assentido.

– Vamos cuidar dele e ouvir a sua história. Nós não somos monstros.

Anastasia beijou o rosto de Dragon enquanto o corvo em seu ombro observava Kevin com olhos escuros e inteligentes.

– É claro que não somos. – Ela se virou de novo para Kevin e repetiu a pergunta: – Você consegue andar?

– Sim. Acho que sim. – Ele começou a tirar as pernas para fora do Polaris. Antes que conseguisse se conter, Kevin arfou com a pontada de dor. Pontos brilhantes de luz brotaram na sua visão. Ele teria caído se Anastasia não o tivesse segurado.

– Eu... eu si-sinto muito – ele disse, batendo os dentes.

– Bryan! Este garoto está terrivelmente ferido – disse a bela, enquanto o seu corvo levantava voo, grasnando indignado.

– Há bolsas de sangue e cobertores no contêiner, junto com o resto dos mantimentos que Tina enviou. – Vovó Redbird foi apressada até o porta-malas do Polaris, voltando para o lado de Kevin com dois cobertores enrolados e o braço cheio de bolsas de sangue. Ela desenrolou o cobertor na trilha, no espaço entre o Polaris e a árvore caída, e arremessou o outro cobertor para Dragon. – Use essa espada para algo além de machucar crianças. Corte isso em tiras.

Kevin achou ter ouvido Dragon resmungar “Sim, senhora”, mas era difícil ter certeza com o zumbido nos seus ouvidos.

– U-we-tsi, Anastasia e eu vamos ajudar você a se deitar naquele cobertor. Depois nós vamos fazer um curativo nesse ferimento. Mas primeiro beba uma dessas bolsas de sangue. Isso vai ajudar.

– A-Anastasia? – Kevin gaguejou. – Vo-você é a companheira de Dragon, ce-certo? Mi-minha irmã me disse para en-encontrar vocês. Mas ela nã-não falou que você tinha um pássaro. – As mãos dele estavam tremendo demais para segurar a bolsa de sangue, então Vovó a segurou perto dos seus lábios enquanto ele bebia a primeira bolsa, depois a segunda, e, por fim, a terceira.

– Sim, é claro que sou a companheira de Dragon, e Tatsuwa não é um pássaro. Ele é um corvo. Se ele ouvisse você o chamando de pássaro, nunca o perdoaria – Anastasia falou com Kevin com uma voz calma e tranquilizadora. – Ok, vamos colocar você no cobertor.

Ela voltou o olhar aguçado para o seu companheiro e, antes que Kevin pudesse se dar conta, uma onda de dor e surpresa ameaçou inundá-lo quando o compacto Guerreiro o carregou para fora do veículo, como se ele não pesasse mais do que uma criança pequena. Então ele o levou até o cobertor e o soltou sobre ele, de bruços.

Determinado a não chorar, Kevin mordeu com força a parte interna da sua bochecha enquanto sua avó e Anastasia pressionavam tiras de cobertor contra a ferida encharcada de sangue. Elas o ajudaram a se sentar para que conseguissem enfaixá-lo em volta do peito e em cima dos braços.

– Eu me sinto estranho – Kevin disse. – Tipo como se eu estivesse flutuando.

– O corte é longo e profundo, mas você vai se recuperar – Anastasia prometeu. – Eu vou dar pontos para fechá-lo assim que nós o levarmos de volta conosco.

– Você é muito bonita – Kevin falou sem pensar.

– Grumpf – Dragon grunhiu de onde estava, bem perto da sua mulher, ainda observando Kevin com desconfiança.

– Obrigada. E você está sendo um ótimo paciente – Anastasia respondeu, ignorando o seu companheiro.

– Pronto. Isso é o melhor que nós podemos fazer aqui. – Vovó Redbird terminou o curativo. – Acho que é melhor ele não tentar andar. O sangramento ainda não parou de fato. Quanto mais ele se mexer, pior vai ficar.

– Concordo. – Anastasia olhou para o seu companheiro e ergueu uma sobrancelha loira e arqueada. – Bryan?

Dragon Bryan Lankford suspirou.

– Johnny B e Erik... peguem o resto dos mantimentos no Polaris.

– Erik? – Kevin virou o rosto para poder ver o vampiro jovem e alto. – Erik Night?

Erik deu uma olhada rápida na direção dele.

– Sim, eu sou Erik Night.

– Eu amei você como o Super-Homem! Mas, ahn, achei que você tivesse morrido. Foi o que falaram no Exército Vermelho.

Erik bufou.

– A única coisa que está morta em mim é a minha carreira de ator... morta pelas merdas que Neferet fez.

– Ei! Chega de conversa fiada. Vocês dois, peguem os mantimentos como eu mandei. – Dragon deu um olhar fulminante para Kevin antes de se voltar para Vovó Redbird. – Sylvia, imagino que você virá junto com o seu neto e não voltará para o rancho de Tina hoje.

– Imaginou certo.

Dragon suspirou de novo.

– Drew, esconda o Polaris. É melhor que os outros se espalhem pela montanha para ter certeza de que o Exército Vermelho não os estava seguindo. E eu quero dizer até lá embaixo da montanha. Verifiquem todos os caminhos, principalmente os que vêm da Lone Star Road. – Ele ergueu a voz e chamou: – Erik! Pensando bem, deixe Johnny B descarregar os suprimentos. É melhor você descer até o lado da montanha que dá para a casa de Tina, e verificar se ela não acendeu uma fogueira de alerta.

– Pode deixar!

– Ninguém está me seguindo. Eles não sabem que estou aqui – Kevin afirmou.

– É melhor você não falar – Dragon disse a ele.

– Não dói mais nem menos se eu falar – Kevin respondeu, tentando sorrir para o vampiro carrancudo.

– Eu quis dizer que é melhor para mim. – Em um movimento, Dragon se inclinou e colocou os braços em volta de Kevin, levantando-o como se ele fosse um bombeiro resgatando uma vítima e colocando-o sobre suas costas largas. Então o Guerreiro se voltou para a sua companheira.

– Eu sigo vocês.

– É claro, meu amor – disse Anastasia.

A última coisa que Kevin ouviu antes de felizmente ficar inconsciente foi a risada musical de Anastasia Lankford e o grasnido do seu corvo que voava em círculo acima deles.


6

Outro Kevin

Kevin recobrou a consciência ao ouvir o barulho de uma discussão.

– Ele não vai conseguir subir em nenhum dos esconderijos de caça. Nós precisamos levá-lo para a caverna – Anastasia estava dizendo.

– Eu não acho isso uma boa ideia – Dragon retorquiu. – Se ele souber que nós estamos escavando uma caverna, então existe o risco de que o Exército Vermelho descubra isso também.

– Meu amor, o garoto já sabe como as coisas funcionam aqui. Ela sabe que Tina é uma aliada. Se ele nos trair, vai ser como o Keystone Park de novo, e nós nunca vamos conseguir voltar para cá – Anastasia falou.

– Kevin não vai trair vocês – a avó afirmou. – Dragon Lankford, você pode sentir pelo cheiro que ele não é como os outros. Ele não age como os outros. Há uma explicação para o que aconteceu com ele, mas essa explicação não será relevante se o meu neto morrer da ferida que você infligiu.

Foi preciso várias tentativas, mas finalmente Kevin fez a sua voz soar. Apesar de mal conseguir pronunciar mais alto do que um sussurro, o seu rosto estava perto do ouvido de Dragon, e o Mestre da Espada não teve dificuldade em escutá-lo.

– Por favor, me coloque no chão.

– Kevin? Você está acordado? – Vovó Redbird estendeu a mão para tirar o cabelo cheio de suor de Kevin dos seus olhos.

– Po-por favor. Eu prefiro sangrar até a morte do que continuar sendo carregado.

– Bryan Lankford, leve este garoto até a caverna. Agora.

Kevin sentiu o suspiro de Dragon, mas o poderoso Guerreiro fez o que sua companheira ordenou. Ele seguiu por um caminho estreito, que, pelo que Kevin conseguiu ver, era uma área plana e coberta por grama no alto da montanha. Eles desceram contornando várias rochas enormes de arenito e finalmente chegaram a uma abertura estreita voltada para o precipício. Uma luz pálida e trêmula vinda de dentro projetava sombras que bruxuleavam nas pedras. Dragon fez uma pausa, enquanto Anastasia deslizava para dentro. Momentos depois, três figuras encapuzadas saíram apressadas. Eles não olharam para cima, apenas mantiveram suas cabeças abaixadas, escondendo os rostos ao passar por Dragon, Kevin e Vovó Redbird.

– Ok, tragam o garoto para dentro – a voz de Anastasia chegou até eles.

Dragon virou-se de lado para que ele e a sua carga conseguissem entrar. Então, sem a menor cerimônia, ele largou Kevin no chão de pedra da pequena caverna, e o mundo de Kevin ficou temporariamente cinza com pontos brilhantes.

– Você poderia ter sido mais gentil – Anastasia disse.

– Eu poderia tê-lo matado e poupado todos nós dos problemas que ele vai trazer – Dragon replicou.

– O meu neto traz esperança, não problemas, Dragon Lankford – Vovó Redbird disse com firmeza.

– Sylvia, perdoe-me por dizer isso, mas é claro que você pensaria dessa maneira. Ele é sua família. A grande lealdade que você demonstra por ele é admirável, seja ela justificada ou não – Dragon respondeu.

Conforme a visão de Kevin ficou mais clara, ele viu sua avó encarar o Mestre da Espada. As mãos no quadril, os cabelos grisalhos recaindo por seus ombros, e ele nunca a havia visto ficar tão enfurecida.

– Kevin foi Marcado há mais de um ano. Ele se Transformou logo depois disso. Alguma vez eu mencionei o nome dele a você?

– Não, mas...

– Não! Eu não mencionei – ela o interrompeu. – E não fiz isso porque eu não iria, não poderia colocar a Resistência em perigo, e ainda assim aqui estou. De repente trazendo o meu neto até vocês... um neto que é claramente um vampiro vermelho, mas que não tem o cheiro diferente do seu e que age de um modo perfeitamente racional.

– Sylvia, desde os assassinatos de Lenobia e Travis, manter a Resistência em segurança é o meu trabalho. Já aconteceram tantas mortes e, se houver pelo menos um pequeno risco de o seu neto nos comprometer, então nós precisamos tomar todas as precauções. Você acha que me dá prazer decapitar um garoto? Ele não tem culpa por ter sido Marcado como vermelho. Eu não sou um monstro, Sylvia Redbird.

– É claro que você não é, meu amor. – Anastasia levou uma lamparina a óleo até Kevin e a colocou em um nicho na rocha perto deles antes de depositar uma bolsa grande de couro ao lado dele. Ela abriu a bolsa e começou a procurar algo lá dentro enquanto falava: – Sylvia tem razão. Ela está trabalhando conosco por muitos meses e nenhuma vez tentou trazer o neto dela aqui.

– Porque não seria seguro me trazer até aqui antes do que aconteceu – Kevin se esforçou para falar. – Não importa o quanto eu me esforçasse para manter a minha humanidade.

– Fique quietinho. Preciso dar pontos nesse ferimento – Anastasia disse enquanto desenrolava o curativo improvisado. – Sylvia, há várias garrafas de água limpa lá no fundo da caverna. Você pode trazer aqui para mim, por favor?

Sylvia foi apressada até o fundo da caverna, retornando com duas garrafas de um litro de água fresca, que entregou para Anastasia.

– O que mais posso fazer para ajudar?

Anastasia passou para ela uma compressa de gaze.

– Vá secando o sangue enquanto dou os pontos para que eu consiga enxergar o que estou fazendo. – Ela segurou uma agulha longa e curva que estava presa ao fio escuro de sutura. – Kevin, pressinto que isso vá ser um pouco desagradável para nós dois... mais para você do que para mim.

– Tudo bem. Não é tão ruim quanto sentir a minha humanidade escapando de mim.

– O que aconteceu com você? O que mudou você? – Dragon perguntou de repente.

Anastasia levantou rapidamente os olhos para o seu companheiro, que estava em pé perto da entrada da caverna, os braços cruzados, com uma expressão sombria turvando seu belo rosto.

– Você pode interrogá-lo depois que eu der os pontos nele.

– Eu prefiro falar. Vai me distrair um pouco – Kevin disse.

– Muito bem. Vou começar. Primeiro vou colocar álcool sobre o ferimento. Vai doer bastante.

– Estou pronto. Ok, então, o que aconteceu comigo? Bom, eu...! – Kevin perdeu as palavras e deu uma arfada de ar brusca. Era como se Anastasia estivesse derramando fogo líquido nas suas costas, e ele teve que lutar para permanecer consciente.

– Respire, u-we-tsi. Respire. Profundamente, inspire e expire, inspire e expire. Vai passar – Vovó o tranquilizou enquanto secava as suas costas.

Kevin cerrou os punhos e respirou fundo várias vezes junto com sua avó.

– E agora vou começar a dar os pontos. A boa notícia é que o ferimento é longo e reto. Você vai ficar com uma cicatriz, mas deve sarar rápido.

– Melhor isso do que perder a cabeça – Kevin conseguiu falar entre dentes cerrados.

Quando ela começou a dar os pontos, Kevin pensou que ia desmaiar. Ele queria desmaiar, mas, como isso não aconteceu, Kevin voltou a se concentrar na sua história. Ele tentou fingir que estava fora do próprio corpo, em pé ao lado de Dragon, olhando para a noite fria de inverno enquanto falava.

– Três noites atrás, eu era parte de um grupo de soldados vampiros vermelhos e aprendizes novatos que foram arrancados de nossos alojamentos nos túneis embaixo da estação e levados para um mundo alternativo – Kevin fez uma pausa e respirou fundo várias vezes quando a dor nas suas costas ameaçou subjugá-lo.

– O que você quer dizer com um mundo alternativo? – Dragon perguntou.

– Um mundo que é quase como este aqui, só que Neferet não está no poder. A minha irmã está.

As mãos ocupadas de Anastasia fizeram uma pausa.

– Zoey?

– Você conhecia a minha irmã?

– Sim. Ela era uma jovem adorável. Ela entrou na minha aula de Feitiços e Rituais algumas semanas antes de ser assassinada, mas já tinha demonstrado que seria promissora com a magia. Você se lembra dela, não lembra, Bryan?

– Eu lembro que a morte dela foi o começo oficial da guerra de Neferet – Dragon respondeu.

– Neferet a matou – Kevin disse.

– Como você sabe disso? – Dragon perguntou repentinamente.

– Porque no mundo da outra Morada da Noite, Neferet tentou começar uma guerra com humanos da mesma forma... culpando-os pela morte de vampiros. Vampiros que ela mesma matou.

– E a sua irmã morta contou isso pra você? – Dragon falou.

– Não, a minha irmã viva me contou isso... na Morada da Noite de Tulsa, onde ela é uma das várias Grandes Sacerdotisas poderosas que comandam tudo. Zo e o seu grupo derrotaram Neferet e impediram que a guerra acontecesse.

– Garoto, você acabou de cometer o seu primeiro erro. Nós temos espiões no acampamento do Exército Vermelho. São poucos, mas posso conferir com eles essa história de desaparecimento.

– Ótimo – Kevin disse entre dentes cerrados enquanto Anastasia passava a agulha através de outro pedaço de sua carne rasgada. – Quero que você faça isso. Pergunte aos seus homens o que aconteceu com o General Dominick e os seus soldados.

– Vou perguntar. Pode ter certeza.

– Ótimo – Kevin repetiu.

– Mas, até lá, vamos dizer que eu acredito em você. Como o fato de ser atraído para outra versão do nosso mundo restaurou a sua humanidade?

– Foi algo que Nyx fez depois de abençoar Aphrodite com o dom de conceder segundas chances.

– Aphrodite? – Dragon pronunciou o nome com sarcasmo. – Você quer dizer a Sacerdotisa azul que tem visões sobre morte?

– Ela mesma. Só que no outro mundo ela é uma Profetisa de Nyx, tão poderosa quanto bonita.

Dragon bufou.

– Bom, neste mundo ela é praticamente inútil, a menos que você esteja tão iludido com a beleza dela que faça vista grossa para os seus prazeres egoístas e a sua ganância mesquinha.

– Mas, mesmo nesse mundo, ela ainda é uma Profetisa – Kevin argumentou.

– Ela é uma Profetisa que tem visões que raramente consegue interpretar. Antes de Anastasia e eu escaparmos para nos juntar à Resistência, havia rumores de que Neferet estava descontente com ela.

– E por que não estaria? – Anastasia comentou enquanto continuava a fazer a sutura nas costas de Kevin. – Eu abomino tudo que Neferet defende, mas Aphrodite é uma Profetisa horrível. Ela usa a beleza e o dom concedido pela Deusa para manipular os outros. Acredito de verdade que ela retém informação das suas visões, a menos que ache que pode ganhar algo com elas. Não sei por que Neferet não se livra dessa criatura.

– Eu sei. Aphrodite é uma mestra em saber em quanto ela pode abusar ou não de Neferet. Quando vai longe demais, Aphrodite simplesmente tem uma visão que é subitamente clara o bastante para que possa interpretá-la, e, coincidentemente, essa visão também é de grande valor para Neferet – Dragon explicou.

– Ela é diferente no outro mundo – Kevin insistiu. – Ela sacrificou a sua humanidade para salvar os primeiros novatos vermelhos. E desde então, naquele mundo, todos os novatos e vampiros vermelhos têm a capacidade de manter a sua humanidade. Tudo por causa de Aphrodite.

– E por causa dessa diferença, Kevin acredita que pode chegar até a Aphrodite que está neste mundo e convencê-la a fazer o mesmo sacrifício – Vovó Redbird acrescentou.

Houve um longo silêncio durante o qual Kevin tentou, em meio à dor ardente nas suas costas, pensar em algo a acrescentar – alguma coisa que convencesse Dragon de que o que ele estava contando era verdade.

Quando Dragon falou novamente, Kevin escutou uma mudança na sua voz. Muito leve, mas um pouco do sarcasmo e da raiva pareciam ter desaparecido.

– O que faz você pensar que Aphrodite pode fazer essa escolha? A Profetisa que você descreve tem muito pouco em comum com a do nosso mundo.

– Porque mesmo em outro mundo, quem nós somos lá no fundo parece não mudar muito. A única diferença é que nós passamos por experiências de vida diferentes, as quais têm o poder de mudar as nossas personalidades e as nossas reações – Kevin explicou. – Zoey me falou para procurar você e Anastasia neste mundo. Ela disse que vocês me ajudariam a derrotar Neferet, porque vocês a ajudaram no mundo dela.

– Bryan e eu também somos companheiros nesse outro mundo?

Kevin pensou em não contar o que havia acontecido, mas ele afastou aquele pensamento rapidamente. A verdade era uma das poucas forças que ele tinha, e ele não iria começar a mentir e estragar o que já tinha conquistado.

– Vocês eram – ele contou a Anastasia.

– Éramos? – Dragon perguntou.

– Vocês foram mortos. Não sei bem o que aconteceu. Zoey não teve tempo de me contar isso. Só que vocês morreram corajosamente salvando os outros.

– Nós dois estamos mortos? – a voz de Anastasia soou trêmula.

– Estão. Sinto muito – Kevin respondeu.

Anastasia pousou a mão ensanguentada no ombro dele por um instante.

– Não sinta. Se o meu Bryan perecesse, eu não gostaria de viver sem ele.

– E eu não iria dar nem um suspiro em um mundo sem você, meu amor – Dragon afirmou.

Do canto do olho, Kevin viu Anastasia se virar e levantar os olhos para o seu companheiro.

– E é a sua capacidade de amar que faz você maior do que a sua espada. Maior do que um dragão. Pense nisso, Bryan. Se isso for verdade, se Kevin conseguir chegar até Aphrodite e convencê-la a repetir o que fez naquele outro mundo... então a guerra de Neferet mudaria drasticamente.

– Sim – Kevin concordou. – Ela não teria um exército de armas irracionais. Ela teria apenas os oficiais azuis e os Guerreiros Filhos de Erebus, e quantos deles vão permanecer fiéis a ela e lutar se perceberem que Nyx não abençoa essa guerra?

– Ela perderia um pouco de poder, mas talvez não o bastante para acabar com a guerra – Dragon disse pensativamente. – Ela tem sido cuidadosa de apenas colocar em posições importantes Guerreiros que querem ter mais coisas: mais riquezas, mais terras, tudo.

– Mas pelo menos a gente teria uma chance de combatê-los – Kevin insistiu. – Dragon, eu vi o que acontece quando vampiros e novatos vermelhos têm a sua humanidade restaurada, e eu prometo a você que nenhum deles vai querer lutar de novo.

– Onde eles estão, esses outros vampiros e novatos vermelhos alterados? – Dragon perguntou.

– Ainda no outro mundo. Zoey teria que forçá-los a voltar para cá, e ela se recusou a fazer isso. Foi um choque terrível quando eles se recuperaram e se deram conta de tudo que tinham feito. Vários cometeram suicídio antes que pudéssemos detê-los.

– E você? Por que você não ficou devastado? – o Mestre da Espada perguntou.

– Porque eu era diferente desde o momento em que fui Marcado. Eu conservei mais da minha humanidade do que qualquer outro, e por causa disso eu garanti que...

De repente, do lado de fora da caverna vieram os gritos de alerta de um corvo, imediatamente seguidos por um alvoroço. O pássaro voou freneticamente até Anastasia enquanto Erik Night foi apressado até Dragon.

– Perigo! Perigo! Perigo! – o corvo berrou ao pousar no ombro de Anastasia.

– Tina acendeu uma fogueira de alerta! – Erik contou a Dragon.

Kevin estava ocupado demais olhando fixamente para o corvo e pensando se corvos normais conseguiam falar ou se esse em específico tinha poderes sobrenaturais, quando Dragon virou-se e o encarou.

– Seu desgraçado traidor! – Dragon atirou as palavras para Kevin.

– Não! Não fui eu! Não poderia ser. E-eu nem fui para o quartel ontem. Fui direto até a fazenda de Vovó Redbird.

Outro vampiro azul entrou apressado na caverna. Com a respiração ofegante, ele anunciou:

– Soldados do Exército Vermelho estão subindo a montanha!

Dragon Lankford marchou até Kevin e agarrou forte o seu braço, fazendo-o ficar em pé e arrastando-o até a entrada da caverna.

– Antes de matá-lo, você vai me dizer quantos soldados você trouxe até aqui!


7

Outro Stark

– Tenente Dallas, explique de novo para mim por que diabos nós estamos aqui, no meio do nada, em uma noite de inverno congelante, quando eu poderia estar nos meus aposentos com uma fogueira crepitante, venerando o sabor da boca da minha sacerdotisa atual?

O pequeno e jovem vampiro correu até Stark. A sua Marca azul de adulto tinha a forma de relâmpagos, o que fazia sentido por causa da sua estranha afinidade com eletricidade, mas Stark achou que ela ficava mais ridícula naquele rosto que lembrava o de um furão.

– Bom, General, como eu disse a Artus, hoje a nossa varredura de segurança era em Sapulpa e Sand Springs. Lá na mercearia Reasor’s, na esquina da Taft com a Hickory aqui em Sapulpa, o gerente relatou que tinha certeza de que viu Erik Night com um grupo de vampiros azuis que estavam espreitando no estacionamento.

– Bom, Night realmente se juntou à Resistência alguns meses atrás, mas por que nós estamos aqui, se ele foi visto na cidade?

– Porque eu andei pressionando um tenente do Exército Vermelho e ele conseguiu encorajar – Dallas pronunciou a palavra com uma alegria maliciosa – alguns dos moradores locais a admitirem que eles têm notado luzes estranhas vindo desta montanha. A maioria dos caipiras acha que ela é mal-assombrada... eles falaram alguma coisa sem sentido sobre a montanha pertencer ao Povo Creek há gerações. Disseram inclusive que os fantasmas perseguiam os técnicos que perfuravam petróleo no começo dos anos 1900, mas eu não acredito nessa merda. – Eles estavam parados ao lado de uma rodovia denominada Lone Star, que serpenteava pela montanha. Dallas apontou para a cerca com oito arames grossos, que parecia emoldurar toda a grande área selvagem que formava o local chamado Polecat Ridge. – Então, eu dei uma fuçada por aí e encontrei isso.

– Uma cerca? Há fazendas por toda parte nessa região que são cercadas. Por que isso seria um problema? – Stark perguntou.

– Porque isso não é uma fazenda. A montanha é selvagem. Ninguém fez nada nela desde o começo do século passado. Então por que ela é protegida por uma cerca elétrica de alta voltagem?

– Isso é muito? – Stark deu um passo para mais perto da cerca e de fato ouviu um zumbido fraco e sentiu algo diferente no ar.

– Muito. Eu tentei conversar com a velha que é dona da montanha, mas ela não foi muito prestativa... e ela é protegida pelas diretrizes de Neferet porque também é dona das melhores plantações de alfafa em todo o estado. Então eu não pude ser tão persuasivo quanto gostaria.

– Mas ela te deu uma resposta.

– Sim, senhor. Ela falou que tem um rebanho de um tipo especial de veado. Um tipo que Neferet também ama.

– Veado de cauda branca – Stark assentiu. – Neferet gosta de carne de veado. Muito. Não sabia que o fornecedor dela ficava por aqui.

– Sim, essa mesma mulher, Tina, é a dona desta montanha e de todos os campos ao redor. Enfim, ela disse que cria os veados especiais e os deixa soltos na montanha porque ficam mais saudáveis assim, então a carne deles é melhor. Por isso ela tem uma cerca elétrica em volta de toda a propriedade, para manter os veados dentro e os predadores longe.

– Acho que faz sentido. Você perguntou a ela sobre alguma atividade na montanha?

– Sim, senhor. Não consegui nada dela. A velha disse que é silencioso aqui, e por isso ela vive aqui, afastada das pessoas. Ela também disse que vigia a própria montanha, expulsando qualquer intruso, e que ela não precisa, nem quer, a nossa ajuda. Depois disso ela bateu o portão na minha cara.

– Nada de novo – Stark resmungou.

E não era mesmo. Desde a guerra de Neferet, os humanos sofriam. Não que ele estivesse muito preocupado com humanos. A única coisa com que Stark estava muito preocupado era com a sua própria pele – a vida era mais fácil assim –, principalmente nos últimos dias. No entanto, humanos se escondendo atrás de portas fechadas e demonstrando nada além de medo e/ou repugnância por vampiros não ajudava a luta contra a maldita e irritante Resistência.

– Então, quanto eu reportei tudo a Artus, ele disse que a montanha precisava ser inspecionada. E é por isso que nós estamos aqui.

– Tudo bem, então. Essa velha desligou a cerca elétrica? – Stark perguntou, mantendo uma distância segura dos cabos grossos.

– Não, mas a gente não precisa que ela faça isso. Eu consigo colocar a gente aí dentro sem problemas.

– Bom, então faça isso – Stark disse.

Ele deu as costas a Dallas e fez um gesto para o primeiro dos cinco utilitários estacionados atrás do seu veículo na liderança. O motorista obedeceu imediatamente, e soldados vampiros vermelhos e os seus oficiais responsáveis começaram a desembarcar. Stark fez outro gesto para que esperassem, o qual foi passado para a fila atrás, mas ele não precisava ter feito os soldados pararem. Dallas tinha ido até a cerca e colocado a mão no poste mais próximo. Os olhos do jovem vampiro estavam fechados, e a expressão do seu rosto quase indicava que ele estava sentindo prazer – o que não seria uma surpresa para Stark. Ele sempre achou que Dallas era estranho.

Quando Dallas levantou a cabeça no instante seguinte e olhou para Stark, os seus olhos estavam reluzindo com uma luz amarela bizarra.

– Mande os soldados passarem por cima da cerca aqui – Dallas manteve ambas as mãos no poste, indicando com o queixo o local à sua esquerda. – Fale para eles se apressarem. Essa certa tem muitos volts passando por aqui. Eu só posso segurá-los por alguns minutos.

– Vocês ouviram o tenente, façam os homens se mexerem! – Stark gritou.

Stark se afastou e ficou observando os vampiros vermelhos se arrastarem por cima da cerca. Eles parecem umas malditas baratas esfomeadas. Stark não se permitiu estremecer, apesar de sentir como se insetos estivessem rastejando na superfície de sua pele. O Exército Vermelho é necessário, ele lembrou a si mesmo com firmeza. Além do mais, não era como se eles pudessem se sentir ofendidos. Eles não davam a mínima para o quanto eles eram nojentos. Só o que importava para eles era a sua fome insaciável.

– Sua vez, General – as palavras de Dallas tiraram Stark dos seus pensamentos.

Ele rapidamente passou por cima da cerca.

– Ok, vamos nos espalhar e formar uma linha afrouxada, e então vamos subir com essa linha montanha acima.

Eles estavam andando por cerca de quinze minutos, abrindo caminho através de uma vegetação rasteira marrom devido ao inverno e cheia de detritos da floresta. Então encontraram uma estrada de terra acidentada em que mal cabia um quadriciclo, apesar de ser óbvio que ela tinha sido usada recentemente.

– Isso não parece nada bom – Stark disse. – Tenente, você viu algum carro na propriedade daquela senhora?

– Sim, senhor. Vi algumas dessas coisas caras que parecem carrinhos de golfe melhorados. Ela foi dirigindo um deles até o portão para falar comigo.

– Um Polaris – Stark disse, analisando os rastros.

– Perdão, senhor?

Stark levantou os olhos para Dallas.

– Esse é o nome desses veículos. E esses rastros parecem ter sido feitos por um deles. Pode não ser tão ruim quanto eu pensei. A velha senhora pode realmente ter dado uma circulada por aí procurando invasores, mas vamos seguir essa trilha por mais um tempo para ter certeza.

– Sim, senhor!

Depois de mais ou menos trinta minutos de caminhada, ouviu-se um grito à direita de Stark.

– Alto!

Stark pegou o seu arco sempre presente, preso às suas costas, e engatou uma flecha. Seis veados, completamente assustados e de olhos arregalados, passaram saltitando por eles, fazendo os soldados vermelhos se agitarem confusos, enquanto olhavam fixamente a carne de veado em movimento, claramente considerando se deveriam perseguir a presa ou esperar por um jantar mais delicioso e que se movimenta mais devagar com apenas duas pernas.

Stark franziu o cenho de desgosto.

– Dallas! Mantenha esses soldados sob controle. Ninguém mata um veado sem a permissão de Neferet. Cuide para que essas máquinas carnívoras entendam isso.

– Sim, senhor! – Dallas voltou correndo pelo caminho.

Stark podia ouvi-lo gritando para os tenentes do Exército Vermelho. Pela segunda vez naquela noite, ele ficou muito irritado com o fato de o General Dominick e seu pelotão de soldados terem aparentemente desaparecido sem explicações alguns dias atrás. Dominick era amplamente reconhecido como o mais implacável e inteligente dos generais vermelhos, o que significava que os seus soldados eram sempre os mais disciplinados.

– Maldito Exército Vermelho! – Stark resmungou. Ele tentou lembrar a si mesmo para tentar convencer Neferet a considerar a retirada progressiva do máximo possível dos vampiros vermelhos do dia a dia da guerra, e somente usá-los durante as batalhas principais contra os exércitos humanos ou a Resistência. – Eles fazem mais mal do que bem.

Isso sem mencionar que ele achava repugnante que a mordida de qualquer novato ou vampiro Marcado como vermelho fosse venenosa para humanos, inevitavelmente os matando e fazendo com que ressurgissem em três dias como coisas grotescas como zumbis, cuja mordida também era contagiosa.

– E eles têm um mau cheiro horrível.

– Senhor, os soldados estão sob controle – Dallas disse, ofegante, ao chegar correndo perto de Stark.

Stark soltou um grunhido.

– Então vamos em frente de novo. Ficar rastejando por esta montanha não é minha escolha ideal para passar a noite.

A fileira de soldados continuou se movendo, serpenteando pelo caminho, enquanto seguiam o que mal podia ser chamado de estrada de terra. Logo a trilha dobrou drasticamente para a direita, e então seguiu quase em linha reta. Stark suspirou e se concentrou na missão, não gostando nada de sentir o ar mais frio e úmido. Ele tentou lembrar se havia previsão de gelo ou neve. Ele deu uma olhada no seu telefone e praguejou em voz baixa.

É claro que não tem um maldito sinal aqui no meio do nada.

De repente, acima dele, um corvo começou a voar em círculos e a grasnar, como se estivesse irritado por estarem invadindo a sua montanha.

– Vamos apertar o passo – Stark disse a Dallas. – Volte descendo a fila e diga a eles para me acompanharem.

General Stark não esperou por uma resposta. Balançando os braços, ele começou a subir correndo a trilha de terra vermelha, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.


Outro Kevin

Dragon Lankford agarrou o braço de Kevin, puxou-o bruscamente, fazendo com que ele ficasse em pé, e o arrastou até a boca da pequena caverna. A sua espada montante estava desembainhada e ele ficou na frente de Kevin, segurando a ponta da lâmina afiada contra o seu pescoço.

– Quantos são? – Dragon o interpelou.

Vovó Redbird tentou correr para ficar ao lado de Kevin, mas Anastasia segurou o seu pulso, não permitindo que ela fosse até ele.

– Não, minha amiga. Isso foi além da nossa boa vontade. Dragon precisa lidar com o seu neto agora.

– Quantos? – Dragon repetiu, e a espada tirou uma pequena gota de sangue do pescoço de Kevin.

– Mate-me. Corte a minha cabeça. Faça o que quiser, mas isso não vai mudar a minha resposta porque eu estou dizendo a verdade. Eu não sei o que está rolando lá fora. Eu não sei como eles acharam a sua montanha, mas isso não tem nada a ver comigo.

– Então, é só uma coincidência que um tenente do Exército Vermelho apareça aqui na noite em que os soldados do Exército Vermelho fazem o mesmo? – A voz de Dragon estava pesada com uma fúria mal controlada. – Você sabe quantos inocentes estão aqui? Dezenas! Eles estão espalhados ao nosso redor em esconderijos de caça. Humanos e novatos azuis. Alguns são... apenas crianças. Todos procurando segurança e liberdade, e eles vão perder a vida esta noite. Por sua causa!

– Não! – Vovó Redbird gritou. – Kevin estava comigo. Ele está dizendo a verdade! Eu juro pela minha vida.

Dragon se dirigiu apenas a Kevin.

– Ela vai morrer hoje também. De uma maneira horrível. E, se eles deixarem sobrar algo, ela vai acordar como uma máquina de comer, voraz e irracional. A sua alma só pode estar completamente repleta de Trevas para fazer uma coisa dessas.

Kevin virou a cabeça para o outro lado, incapaz de olhar para a sua avó.

– Sinto muito, Vó. Eu nunca deveria ter deixado você me trazer aqui. Eu sabia que era perigoso demais. Eu devia ter espionado Neferet como você me disse para fazer e deixar que você viesse falar com a Resistência no meu lugar. Eu sinto muito, muito mesmo.

– Eles estão vindo pela trilha oeste! – Um vampiro azul que Kevin não reconheceu arrastou-se pelos últimos metros montanha acima até chegar onde eles estavam.

– Apaguem todas as chamas! – Dragon virou a cabeça para olhar para a sua companheira. – Meu amor, leve os inocentes até lá embaixo pela parte de trás da montanha. Pode ser que eles não nos tenham cercado. – O seu olhar duro encontrou Kevin de novo. – O resto de nós vai ficar aqui e ganhar tempo para que vocês escapem.

– Não. Eu não vou deixar você – Anastasia falou baixo, mas com firmeza. – Sylvia está acostumada com a natureza de Oklahoma. Ela pode guiar os inocentes. Eu vou ficar com o meu companheiro. Eu também sei empunhar uma espada, e prefiro morrer a seu lado.

Kevin viu a dor que atravessou os olhos de Dragon Lankford e o desespero que curvou os seus ombros, e ele não conseguia aguentar aquilo.

Que diabos Zoey faria?

Ele sabia o que ela não faria. Zoey Redbird – a Grande Sacerdotisa que comandava a Morada da Noite de Tulsa com força e honestidade – não iria desistir.

– O sangue da minha companheira vai estar nas suas mãos – Dragon triturou as palavras por entre dentes cerrados. – E depois de acabar com você, que tipo de recepção você acha que Nyx vai lhe oferecer? Essa é a parte boa de morrer. Eu vou estar lá, no Bosque da Deusa, para testemunhar a punição de Nyx.

Enquanto falava, Dragon pressionou a espada com mais força contra o pescoço de Kevin.

Kevin reagiu automaticamente. Ele se jogou para trás, gritando:

– Eu faria qualquer coisa para consertar isso! – As suas costas feridas arderam quando ele colidiu com a parede de pedra da caverna, abrindo os poucos pontos que Anastasia já tinha dado. Kevin cambaleou e caiu, enquanto o sangue escorria pelas suas costas e manchava as pedras.

Instantaneamente, houve uma mudança tão grande no ar que penetrou a fúria de Dragon. Ele congelou com a espada sobre a cabeça, pronta para dar um golpe mortal.

Depois de tudo isso, Kevin pensou que foi semelhante ao modo como o ar ficou em volta da fenda entre o seu mundo e o de Zo, mas, naquele momento, tudo que ele conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto quando seres etéreos começaram a se materializar ao redor dele. Alguns se ergueram das rochas de arenito da caverna. Alguns desceram dos céus, como penas flutuando até o chão. Outros ainda pereceram emergir de dentro da casca dos carvalhos antigos, cheios de nós, pendurados precariamente no precipício ao redor deles.

Eles eram muito diferentes entre si. Muitos pareciam um cruzamento entre folhas caídas e borboletas. Então uma leve rajada de vento soprou e eles mudaram de forma, tornando-se repentinamente belas mulheres aladas. Algumas lembravam beija-flores, só que tinham cabeças delicadas de mulheres incrivelmente bonitas e de homens lindos. Alguns pareciam fogos de artifício de Quatro de Julho, só que menores e translúcidos. Vários tinham forma de vaga-lumes... grandes e lindos vaga-lumes que não deviam estar esvoaçando por aí em pleno inverno. E outros ainda pareciam sereias e águas-vivas cintilantes.

Todos estavam descendo sobre Kevin.

– Magia Antiga! Magia Antiga! – grasnou o corvo, empoleirado no ombro de Anastasia.

A bela Sacerdotisa de repente estava agachada ao lado de Kevin, observando as criaturas com curiosidade e reverência.

– Sim, Tatsuwa! Esses espíritos são Magia Antiga. Nunca pensei que veria um, já que a Magia Antiga quase desapareceu do mundo.

Uma figura com asas de borboleta, que era uma mulher voluptuosa do tamanho aproximado da mão de Kevin, inteiramente nua, exceto por um vestido feito de brilho, esvoaçou até ele, concedendo um olhar suplicante.

– O-o que eles querem? – Kevin gaguejou.

– Você os invocou. Pergunte a eles – ela disse.

– Hum, o que vocês querem? – Kevin perguntou inseguro para o espírito flutuante.

“Nós aclamamos o chamado.

Vosso sangue é verdadeiro.

Qual é o vosso desejo

Que devemos realizar?”

Kevin não hesitou.

– Escondam-nos! Não deixem que os vampiros que estão subindo a montanha encontrem nenhum de nós que já estamos aqui em cima – ele fez uma pausa e então acrescentou: – Por favor.

“Se fizermos isso por vós,

O que fará por nós?”

Kevin abriu a boca para responder, mas Anastasia colocou a mão no seu braço e o deteve. Imediatamente, ela sussurrou:

– Tome cuidado. A Magia Antiga é poderosa. E também nunca é gratuita.

– O que você acha que eles querem? – Kevin sussurrou de volta.

– Os espíritos são ligados aos quatro elementos físicos: ar, fogo, água e terra. Encobrir esta montanha deve ser uma tarefa fácil para eles. Ofereça o seu sangue, mas apenas a quantidade que você já verteu.

Kevin limpou a garganta e então respondeu ao espírito cintilante.

– Eu vou pagar vocês com o meu sangue, mas apenas o sangue que eu já derramei. Isso é o suficiente para nos manter a salvo?

O espírito rodopiou no ar e foi cercado por todas as outras diferentes criaturas. Kevin podia ouvir que elas estavam murmurando, mas as palavras eram estranhas. Não como outra língua, mas como um modo diferente de pensar e de formar sons.

Então ela flutuou até pairar acima dele de novo.

“Nós aceitamos vosso preço esta noite

Já que vosso sangue é forte com a Luz.

Nós selamos este acordo convosco.

E é dito – que assim seja!”

Quando Tatsuwa grasniu um lamento, Anastasia se afastou rapidamente do caminho, juntando-se a Dragon, que estava a poucos metros de Kevin, com a espada ainda desembainhada, enquanto os espíritos cobriam o jovem vampiro vermelho. No início Kevin se contraiu, esperando que eles causassem ainda mais dor do que ele já tinha suportado aquela noite, mas o toque deles era estranhamente suave, como chuva fria caindo em uma floresta em chamas. Os espíritos também cobriram toda a parede rochosa da caverna, o chão de terra ao redor dele e até a ponta da espada de Dragon – qualquer lugar onde houvesse uma gota salpicada do seu sangue. Enquanto bebiam, os seus corpos resplandeciam com luz e cor, e eles fizeram tantos sons de estalos e gorjeios animados que fizeram Kevin sorrir.

Então, com a mesma rapidez com que haviam surgido, eles desapareceram.

E a noite ao redor deles mudou totalmente.


Outro Stark

Começou de modo inocente. Stark sentiu a direção da fria brisa da noite se alterar e se acentuar. Ele estava suando por causa da subida da montanha, então o seu rosto úmido registrou instantaneamente a mudança e ele estremeceu, apertando o passo.

E então o céu da noite começou a cuspir gelo.

Stark escorregou em uma pedra, subitamente lisa com o gelo, tão escura quanto a floresta ao redor deles, e teve que girar os braços para não cair. Ele abaixou a cabeça, protegendo-se da chuva fria, e diminuiu o ritmo.

Depois disso a névoa começou, vinda de lugares mais baixos ao redor deles, e erguendo-se das entranhas da montanha. Atrás dele, alguém gritou alto, e alguns instantes depois, Dallas estava ofegante ao seu lado.

– Senhor, os homens estão escorregando. Um dos soldados acabou de cair e espatifou a cabeça contra uma pedra.

Caminhando com dificuldade, Stark parou.

– O tempo virou. Eu devia ter conferido a previsão antes de sair da Morada da Noite.

– Senhor, eu conferi – Dallas disse, enxugando o rosto com as costas da manga do seu casaco encharcado. – A previsão era de frio e tempo firme.

– Isso que dá escutar Travis Meyer e o News on Six – Stark resmungou. – Bom, diga aos oficiais vermelhos para levarem os seus soldados de volta para os utilitários. Você e eu vamos em frente, continuar vasculhando até o topo da montanha para que eu tenha certeza...

Um grupo de vaga-lumes incrivelmente grandes saiu voando de dentro da névoa, esvoaçando rapidamente na chuva de gelo ao redor como se fossem crianças brincando em uma fonte. Stark ficou olhando fixamente para eles através do gelo, da chuva e da neblina enquanto os seus corpos de inseto se alteravam para corpos de mulheres nuas e depois novamente para insetos.

Stark sentiu o seu sangue ficar tão frio quanto o gelo que caía.

– Magia Antiga – ele falou baixo.

– O que foi, senhor? – Então os insetos incandescentes atraíram a visão de Dallas. – Ei, vaga-lumes! Merda, que coisa estranha.

– Não são vaga-lumes. São espíritos. Vamos recuar, Dallas. Diga aos soldados que estamos indo embora. Agora!

Dallas olhou confuso para Stark, mas saiu apressado para fazer o que ele ordenou. Stark fez uma pausa só por um segundo antes de segui-lo trilha abaixo.

Os espíritos eram realmente espetaculares – tão bonitos quanto haviam sido descritos nos tomos antigos que o seu professor de Feitiços e Rituais insistiu que a sua classe avançada lesse, de ponta a ponta. Stark havia ficado imerso na aula de Feitiços e Rituais, principalmente porque ele adorava ler. A metade final do último livro mais avançado usado na aula era dedicada à Magia Antiga e principalmente aos espíritos elementais.

Stark vasculhou a memória enquanto se afastava devagar da nuvem cintilante de criaturas. Os espíritos eram poderosos, mas tão instáveis quanto a Magia Antiga que os constituía – em outras palavras, eles podiam ajudar você em determinado momento, e se voltar contra você no instante seguinte.

O que Dallas falou sobre esta montanha? Era uma terra ancestral da Nação Creek.

– Faz sentido – ele murmurou para si mesmo enquanto continuava o caminho de volta, relutante em desviar o olhar dos espíritos. Eles devem ter sido protetores da terra, aliados da Nação Creek quando os indígenas viviam no local, e não compreendem que o mundo mudou, seguiu em frente. Eles ainda continuavam protegendo a terra.

Ele alcançou a fila de retirada, ordenando aos soldados que andassem o mais rápido possível para sair daquela terra. Dallas correu na frente deles, controlando a eletricidade o suficiente para que o grupo passasse sobre a cerca novamente. Na hora em que Stark chegou ao utilitário e Dallas manobrou o veículo líder em que eles estavam para voltarem para Tulsa, a estrada estava quase intransitável por causa do gelo.

– Senhor, o que diabos aconteceu lá em cima? – Dallas perguntou.

– A confirmação de que nenhum membro da Resistência anda rondando por aquela montanha. Magia Antiga com esse tipo de proteção não admite intrusos. Aquela mulher, Tina, é dona de toda a montanha?

– Sim, senhor.

– Ela deve ter sangue Creek. É por isso que os espíritos a deixam zanzar por ali, fingindo procurar por intrusos – Stark bufou. – Intrusos, caramba! Eu detestaria ver o que a Magia Antiga faria com qualquer um que invadisse aquela terra.

– Bom, pelo menos nós sabemos que os habitantes não estão mentindo – Dallas disse. – Não sei quase nada sobre Magia Antiga, mas eu vi aqueles insetos. Eles brilhavam como luzes. Deve ser isso que as pessoas falaram que viram lá em cima.

– Só pode ser. – Stark hesitou. – Foi só isso que você viu? Apenas insetos brilhantes grandes?

– Sim, isso não é estranho o suficiente?

– É sim – Stark respondeu, perguntando-se por que ele se sentia aliviado por Dallas não ter visto os espíritos se transformando em formas semi-humanas.

– Bom, parece que a gente não tem que se preocupar em vigiar aquela montanha. Ótimo. Muitos espinheiros malditos, pedras e coisas assim para o meu gosto. Além disso, eu odeio o campo. Sou um cara da cidade.

– Tenente, quero que você mantenha a boca fechada sobre o que nós vimos lá em cima. A última coisa que precisamos é de um bando de novatos idiotas pensando que seria uma aventura ir até lá para dar uma olhada na Magia Antiga.

– Como quiser, senhor, mas não pareciam perigosos. Eles parecem vaga-lumes anormalmente grandes, até são bem bonitinhos.

– Dallas, só um daqueles insetos bonitinhos tem a capacidade de devorar você inteiro... e eu quero dizer você inteiro mesmo. Os espíritos conseguem drenar almas tão facilmente quanto drenam sangue.

– Pelas tetas de Nyx! Você está brincando?

Stark deu um olhar duro para ele.

– Parece que estou brincando com você, Tenente? E nunca mais use o nome da Deusa dessa forma perto de mim de novo.

– Sim, senhor. Desculpe, senhor.

– Cale a boca e dirija.

O tenente obedeceu, deixando o seu general contemplando a noite.

A Magia Antiga já deveria ter desaparecido quase completamente do mundo. Os livros dizem que ela só pode ser encontrada na Ilha de Skye, e ninguém tem permissão de entrar lá há séculos. Stark não conseguia imaginar o que os espíritos estavam fazendo ali. O fato de ser uma terra de indígenas americanos que eles ainda estavam protegendo fazia sentido.

Ainda assim não explicava o porquê de estarem despertos e ativos o bastante para serem vistos por habitantes humanos do local.

Será que isso tem alguma coisa a ver com a guerra de Neferet?

Um arrepio de mau pressentimento desceu pela coluna de Stark, mais frio do que o gelo que parou de cair assim que saíram da Lone Star Road.

Stark tinha certeza de que ele sabia a resposta para a sua pergunta. O que ele não sabia era se era um bom ou mau sinal que os espíritos estivessem ficando ativos. Ele também não sabia que diabos fazer com a sua descoberta.

O seu dever era reportar isso a Neferet, mas Stark era um Guerreiro Filho de Erebus juramentado antes de se tornar general de Neferet, e o seu primeiro dever de lealdade era com a Deusa Nyx.

A verdade secreta que Stark mantinha escondida lá no fundo era que ele não confiava em Neferet, nem concordava com a guerra dela.

Claro, ele fazia parte de um grupo muito grande e firme de vampiros azuis que exigiam um melhor tratamento para os humanos. Antes da guerra, ele estava farto daquela besteira de separados-mas-iguais que os políticos humanos empurraram para cima deles por tanto tempo. Ele até apoiou o começo da guerra de Neferet, mas depois de poucos meses ficou óbvio que Neferet nunca quis criar uma ordem mundial onde todos fossem iguais. Neferet queria mandar e subjugar todos os humanos.

Stark não era um vampiro vermelho. Ele tinha princípios morais. Ele manteve a sua humanidade. E ele não era um assassino. Ele era um Guerreiro, que jurou proteger a Grande Sacerdotisa que recebeu de Nyx o dom de liderar a nação dos vampiros.

Mas e se os boatos fossem verdadeiros? E se Neferet não fosse mais uma seguidora de Nyx, e se a Deusa realmente tivesse se afastado da sua Grande Sacerdotisa?

– Eu rezo a Nyx por um sinal... – Stark murmurou para o seu reflexo no vidro escurecido.

– Senhor? Disse algo?

– Só estou falando comigo mesmo – Stark respondeu. Ele fechou a boca, mas o sussurro na sua mente não parou.

Eu tenho rezado por um sinal de que Neferet está seguindo a vontade da Deusa. Isso foi um sinal? Ou a aparição da Magia Antiga é uma indicação do contrário?

Stark esfregou a testa, odiando aquela dor de cabeça que estava aumentando. Até ele ter certeza de que Neferet havia renunciado Nyx, ele iria cumprir o seu dever. Ele iria proteger a sua Grande Sacerdotisa.

No entanto, ele também manteria a sua mente e os seus olhos bem abertos e, pelo menos por enquanto, não contaria a ninguém sobre os detalhes mágicos do que tinha acontecido na montanha aquela noite.


8

Outro Kevin

– Eles bateram em retirada! Todos eles! – um vampiro azul alto e loiro entrou correndo na pequena caverna, tirando gelo de uma tatuagem de adulto formada por nós celtas, enquanto se aproximava de Dragon.

– Cole, você tem certeza? – Dragon perguntou.

– Sim. Estava uma confusão lá fora, mas eu vi o que aconteceu. Foi bem lá no nosso primeiro posto de controle. Um bando de coisas que pareciam vaga-lumes saiu da neblina na frente do General Stark. Ele imediatamente ordenou a retirada. Não consegui chegar perto o bastante para entender o que ele estava dizendo, mas eu ouvi claramente as palavras Magia Antiga, e deu pra ver que ele parecia assustado. Pra valer.

– Oh, graças à Deusa! – Vovó Redbird desabou no chão de pedra bruta da caverna.

– Vó! Você está bem? – Kevin tentou ir até ela, mas as suas pernas se recusaram a funcionar, e ele não conseguiu fazer muito mais do que encostar dolorosamente contra a parede da caverna.

– Sylvia? – Anastasia começou a se afastar de Kevin para ir até a velha senhora, mas Vovó Redbird levantou uma mão para detê-la.

– Eu estou bem. Só precisava sentar. Acho que o meu pico de adrenalina já passou. Por favor, cuide do meu neto e não se preocupe comigo. – Ela abraçou a si mesma e estremeceu.

– Meu amor, você acha que nós podemos acender pelo menos algumas fogueiras de novo? – Anastasia perguntou para Dragon.

O Mestre da Espada olhou para o gelo e a névoa que ainda encobriam a montanha.

– Sim. Se eles voltarem, não será hoje. As estradas estarão intransitáveis e a neblina é excelente para ocultar as fogueiras. Acendam aquela no fundo da caverna. Cole, vá até os esconderijos de caça e diga a todos que é seguro manter as fogueiras acesas enquanto o gelo e a neblina durarem – Dragon disse, e Cole desapareceu na noite. Então Dragon encarou Kevin. – Deu certo. Os seus espíritos nos salvaram.

Kevin deu de ombros e fez uma careta de dor.

– Eles não são meus espíritos, na verdade. Eles só gostam do meu sangue.

– Porque o seu sangue contém o poder dos seus ancestrais, que já foram parte desta terra e destas rochas – Sylvia Redbird afirmou. – E porque é um sangue bom e honesto, não manchado por mentiras e ódio. Você acredita agora, Dragon Lankford?

– Eu acredito que o seu neto nos salvou, mas ainda há a questão sobre como o Exército Vermelho sabia que nós estávamos aqui e por que eles vieram na mesma noite que Kevin.

– Eu não posso responder nenhuma dessas perguntas agora – Kevin disse. – Não enquanto estou aqui. Mas eu posso conseguir respostas para todos nós de dentro da Morada da Noite.

– Você acha que eu deixarei você ir embora?

– Não. Eu acho que você me deixará lutar com vocês. Eu quero fazer parte da Resistência. Eu quero espionar para vocês... para nós.

– Impossível! – Dragon exclamou.

– Por que é impossível, Bryan? – Anastasia se agachou ao lado de Kevin de novo, reexaminando as suas costas, enquanto o seu corvo encontrou um poleiro na parede escarpada da caverna.

Kevin achou que os olhos negros do corvo pareciam tão céticos quanto os de Dragon.

– Ele é um vampiro vermelho! Ele não pode fazer parte da Resistência. Nós estamos combatendo a espécie dele.

– Vocês não estão combatendo a minha espécie – Kevin argumentou. – Não há ninguém mais da minha espécie neste mundo, e é por isso que eu sou o espião perfeito. Ninguém na Morada da Noite vai prestar atenção em um tenente do Exército Vermelho. Eles não dão a mínima para nós, exceto para nos considerar descartáveis. Eu posso ir a qualquer lugar, ouvir o que qualquer um fala... e eles nem vão notar.

– Você também pode ser promovido a general do Exército Vermelho e ter um esquadrão de homens seguindo suas ordens. Por que você escolheria se colocar em risco? – Dragon perguntou.

– Porque eu sou uma pessoa decente! – Kevin desabafou. – Afe, o que há de errado com você? Qualquer um que não seja um monstro ou um idiota ambicioso faria o mesmo.

– Isso não é verdade, Kevin. – Anastasia pousou uma mão suave em seu ombro. – Há muitas pessoas que nós chamaríamos de decentes, tanto vampiros quanto humanos, que não farão nada além de ficar sentados nos bastidores, balançando a cabeça para o estado do mundo.

– Bom, eu acho que, se você é uma pessoa decente e não se levanta contra monstros, então você é pior do que eles – Kevin disse. Ele virou a cabeça e encontrou os olhos azuis inconfundíveis de Anastasia. – Pode ir em frente e começar a me costurar de novo. Estou pronto como jamais estarei.

Ela sorriu gentilmente para ele.

– Isso não vai ser necessário. Não depois de a Magia Antiga ter feito o trabalho. – Anastasia indicou com um gesto as costas dele.

Kevin esticou cuidadosamente o pescoço e encontrou uma cicatriz sensível e elevada e pele limpa onde apenas alguns minutos atrás havia um corte profundo e sangrento.

– Mas isso é impossível!

– Aparentemente, não. Quando os espíritos beberam o seu sangue, eles também tocaram todo o seu ferimento, e o toque deles o curou. Porém, não completamente. Você vai ficar fraco, dolorido e sensível por um tempo, e você vai ficar com uma cicatriz grande e horrível, mas você não precisa mais da minha habilidade em dar pontos.

Vovó Redbird se aproximou de Kevin, inclinando-se para examinar suas costas nuas.

– Isso é extraordinário! U-we-tsi, os espíritos realmente fecharam o seu corte.

– Hum – foi tudo que Kevin pensou em dizer.

– Isso diz algo a você sobre o caráter dele? – Dragon perguntou à sua companheira.

– Só que os espíritos gostam dele e, já que eles são neutros, nem bons nem maus, isso não quer dizer muita coisa – Anastasia respondeu. Então ela se levantou e pegou as mãos calejadas pela espada do seu companheiro. – Bryan, acredito que nós já conhecemos o caráter de Kevin. Ele definitivamente não é como os outros vampiros vermelhos. A gente devia confiar nele – ela afirmou, e Dragon abriu a boca para responder, prestes a protestar, mas as palavras de Anastasia o silenciaram. – Ele é diferente. A sua humanidade está intacta. E ele conseguiu brandir a Magia Antiga. Nem mesmo Neferet consegue fazer isso.

– Ainda – Kevin disse.

Dragon se virou para ele.

– Explique esse ainda.

– No mundo da minha irmã, eles de fato derrotaram Neferet, mas não conseguiram matá-la porque ela se tornou imortal.

Anastasia arfou em choque.

– Ela aprendeu a brandir a Magia Antiga!

– Vó, você está com o diário?

Ela assentiu levemente e indicou o local onde os mantimentos do Polaris tinham sido empilhados, no fundo da pequena caverna.

– Estou. Está na cesta que eu enchi de cookies.

– Eu trouxe uma cópia do diário que Neferet escreveu quando ainda era humana. É do mundo da minha irmã, mas nele há provas de que a Magia Antiga vem influenciando Neferet desde que ela era criança.

– E o fato de o diário ter sido escrito por outra versão de Neferet não significa que não tenha relevância para nós – Vovó disse. – Como Kevin já explicou, quem nós somos em cada mundo permanece essencialmente igual. São apenas as nossas experiências que mudam. Eu vou dar o diário a vocês. Façam cópias dele. Repassem para os outros. Todos nós devemos lê-lo para obter o máximo de informação possível a respeito de maneiras de combater o mal de Neferet.

– Concordo. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos, principalmente se essa ajuda vem na forma de um jovem vampiro que nos traz informações e também consegue brandir Magia Antiga – Anastasia disse.

Dragon suspirou fundo e foi até Kevin, agachando-se ao lado dele, da mesma forma que a sua companheira tinha feito.

– Eu não gosto de ser colocado em uma posição na qual preciso confiar em um inimigo.

– Eu não sou seu inimigo.

– Prove.

– Acabei de tentar provar – Kevin respondeu. – E vou continuar tentando provar isso a vocês. Eu vou para a Morada da Noite espionar para vocês. Vou contar tudo que eu ouvir por lá. Vou ajudar de todas as formas que eu puder.

– O meu neto está falando a verdade, Dragon. Você vai ver – Sylvia Redbird disse, batendo os dentes de frio.

– Vó, você tem que ir para o fundo da caverna onde está a fogueira.

– Eu estou bem aqui. Tem muita fumaça lá atrás.

– Garoto, se você quer fazer algo para cair nas minhas graças, pense em um jeito de fazer com que a Magia Antiga nos ajude a tornar esta caverna habitável – Dragon falou baixo, mais para a noite do que para Kevin, quando se levantou e encarou a chuva congelante e a névoa lá fora.

Kevin olhou para a sua avó e para Anastasia.

– Vocês acham que eu poderia mesmo fazer isso? Conseguir que os espíritos ajudem a deixar esta caverna maior e melhor?

– Claro que sim – Anastasia respondeu sem nenhuma hesitação. – Como eu disse quando eles apareceram, espíritos estão sempre ligados aos elementos, e a terra é um dos elementos. Não seria um exagero imaginar espíritos da terra moldando uma caverna no seio desta montanha.

– Beleza! Eu vou só chamar os espíritos e perguntar a eles...

– Lembre-se, Kevin, você nunca deve abusar da Magia Antiga de modo impertinente – Anastasia o interrompeu. – É uma das magias mais poderosas do mundo... e também uma das mais imprevisíveis.

– Mas os espíritos fizeram exatamente o que eu pedi – Kevin falou.

– Ah, eles sempre mantêm a palavra, desde que sejam pagos. O problema vem com o pagamento – Anastasia disse.

– Por favor, explique – Vovó Redbird pediu.

– É simples e complicado. Simples porque os espíritos concordam com um pagamento por um serviço. Quando é algo parecido com o que acabaram de fazer, uma tarefa específica por um favor específico, tudo normalmente corre bem. Quando o pagamento não é executado imediatamente é que você pode se meter em encrenca, e eu quero dizer uma encrenca profunda envolvendo sua alma, que pode, inclusive, ser fatal.

– Se eu entendi bem o que você disse, então Kevin deveria concordar apenas com um pagamento que seja imediato e muito específico, certo? – Vovó Redbird perguntou.

– Bem, sim e não. Mesmo dessa forma, ele ainda pode ter problemas. Essa é outra parte complicada do processo. Os textos ancestrais alertam que usar tanto poder é perigoso e pode ferir o vampiro que o está brandindo.

– Mas eu já tenho afinidade com os cinco elementos. Assim como a minha irmã no outro mundo que eu acabei de visitar. Ela é uma boa Grande Sacerdotisa, das boas mesmo. Ela derrotou Neferet. Eu realmente acho que ela não foi ferida por isso.

– As afinidades elementais são concedidas por Nyx e, portanto, elas não são Magia Antiga. É impressionante que você tenha essas afinidades, juntamente com seu sangue cherokee. Deve ser esse o motivo pelo qual os espíritos ouviram o seu chamado – Anastasia disse. – E em relação ao que os textos querem dizer quando falam que o vampiro pode ser ferido por lidar com esse poder... sinto muito por simplesmente não ter conhecimento suficiente para explicar melhor. Eu nunca vi Magia Antiga antes, nem ninguém que pudesse invocá-la. Tudo que eu sei é o que li em textos antigos.

– Bom, estou querendo arriscar e usá-la, pelo menos mais uma vez. Você acha que eles vão me ouvir de novo?

Ela deu de ombros.

– Eu não posso responder isso, Kevin. Nem posso responder se você deveria invocá-los de novo. Eu não conheço a natureza da sua alma. Eu não sei o quanto você é suscetível às Trevas.

– Eu conheço – Vovó Redbird afirmou. – A alma dele é boa. Boa de verdade. Ele não será sujeito às Trevas, ao ódio nem ao mal. Mesmo antes de Nyx restaurar a sua humanidade naquele outro mundo, ele combateu a fome e a insanidade que muitos de nós estão chamando de Maldição Vermelha. U-we-tsi, eu acredito que você pode ajudar a endireitar o equilíbrio entre Luz e Trevas porque você pode brandir Magia Antiga. Mas não se esqueça das palavras de Anastasia: o pagamento tem que ser específico e feito imediatamente.

– Eu vou me lembrar disso. Prometo. Mas, hum, vocês acham que eu tenho sangue o suficiente agora para isso?

– Não, você não tem – Anastasia respondeu.

– Eu tenho uma ideia para um pagamento alternativo. – Vovó levantou a mão e a colocou sobre a bolsinha que fazia uma protuberância embaixo da sua blusa.

– Espere aí, não. Você não pode dar a sua bolsa medicinal – Kevin disse.

– Posso e vou. As minhas duas bolsas medicinais.

Kevin colocou a mão sobre a réplica que repousava no meio do seu peito.

– Não sei, Vó. Será que é uma boa ideia abrir mão do seu poder assim?

– Ah, u-we-tsi, uma bolsa medicinal não tem poder por si só. Ela apenas simboliza o poder de quem a fez. E eu posso simplesmente fazer outra, assim como provavelmente a Outra Sylvia Redbird fez no mundo de Zoey – ela puxou a bolsa com miçangas debaixo da sua blusa e levantou a tira de couro por sobre a cabeça, entregando-a para Kevin. – Invoque os seus espíritos.

Kevin pegou a bolsa medicinal depois de apertar a mão fria de sua avó, e então ele levantou os olhos para Dragon.

– Pode me ajudar a ficar em pé?

O poderoso Guerreiro segurou o cotovelo de Kevin, erguendo-o. Kevin ficou em pé, cambaleando levemente quando pontos brilhantes apareceram na sua visão, mas ele logo se estabilizou. As suas costas estavam sensíveis e doloridas de um ombro a outro, mas a sua tontura passou. Ele não ia conseguir correr uma maratona, mas tinha certeza de que não iria cair. De novo.

Então ele percebeu que não tinha a menor ideia do que fazer em seguida.

– Hum, Anastasia, como eu invoco os espíritos?

– Quando eles vieram até você antes, foi na hora em que você tinha aberto o seu ferimento, então estava sangrando bastante, e você tinha acabado de dizer algo sobre querer consertar as coisas.

– Então, você acha que eu deveria me cortar de novo e depois chamá-los?

– Eles já não estão aqui? – Vovó fez um gesto indicando a noite gelada lá fora. – Você não pode simplesmente pedir que eles voltem até você?

Kevin olhou questionador para Anastasia, que deu de ombros e assentiu.

Ele estalou as juntas dos dedos e balançou as mãos enquanto se movia para mais perto da entrada da caverna. Kevin limpou a garganta, respirou fundo e abriu a boca para gritar sabe-a-Deusa-o-quê, mas hesitou. Talvez eu deva pensar antes de falar... ou, mais especificamente, deva rezar. Kevin fechou a boca. Fechou os olhos. E baixou a cabeça.

Por favor, me ajude, Nyx. Isso tudo está muito acima da minha capacidade... e não estou falando só dos espíritos. Eu quero ajudar a Resistência, mas sou só um garoto. Não sou nem tão velho quanto a Zo, nem tão experiente. Eu prometo que vou tentar fazer a coisa certa e seguir o caminho que você quer que eu siga. Você pode me dar uma ajudinha para que eu continue seguindo esse caminho?

Kevin levantou a cabeça e encarou o gelo e a névoa mágica que tinham afastado Stark.

– Espíritos da água nos protegeram com gelo e névoa... – ele murmurou para si mesmo, pensando em voz alta. – E os espíritos são ligados aos elementos. – Kevin pensou bastante. E então ele deu um suspiro gigante. – Espíritos da terra!

Sorrindo, ele se virou e encontrou os olhares confusos que Anastasia, Dragon e sua avó estavam dando na sua direção.

– Acho que descobri! – Ele encarou a noite de novo e, com mais confiança do que sentia, falou com uma voz alta e clara. – Espíritos do ar, fogo, água e terra, eu sou Kevin... – ele hesitou um instante. E então ele sabia exatamente o que precisava dizer e como tinha que dizer. – Eu sou Kevin Redbird e, com a minha afinidade concedida pela Deusa e pelo meu direito de sangue, o mesmo sangue que pulsou forte nas veias daqueles que foram protetores desta terra, eu invoco vocês, principalmente aqueles que são espíritos elementais da terra! Espíritos que já estão por aí na montanha, por favor, venham até mim!

Foi como se a noite inspirasse fundo, segurasse o fôlego e então, ao expirar, soltasse a magia. Anastasia e Vovó Redbird arfaram quando uma revoada de espíritos, alterando a sua forma de vaga-lumes para fadas aladas, subiu voando desde a parte de baixo da montanha até o alto. Eles pairaram diante da caverna, iluminando a noite gelada, de modo que Kevin pôde ver claramente as rochas enormes que pontilhavam a área íngreme ao redor deles começarem a brilhar. Então figuras emergiram, como se elas estivessem encolhidas dentro das pedras dormindo, aguardando o chamado de Kevin. Eles eram maiores do que os espíritos vaga-lumes – tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ou dois anos. Os espíritos da rocha eram inacreditavelmente lindos. Pareciam não ter um gênero definido; a pele dos seus corpos tinha a aparência exata dos minúsculos veios de quartzo compacto que marmorizavam o arenito de Oklahoma de onde emergiram – brilhavam como se fossem acesos por dentro. Kevin percebeu que eles eram o que a princípio ele achara parecido com fogos de artifício de Quatro de Julho. Os seus pés delicados não tocaram o chão quando eles flutuaram na direção dele.

– Magia Antiga! – o corvo de Anastasia grasniu ao levantar voo da caverna.

Uma movimentação à sua direita e à sua esquerda atraíram a atenção de Kevin, e ele assistiu à casca nodosa dos carvalhos antigos e desfolhados pelo inverno ondular se levantando como ondas de calor de uma estrada asfaltada de Oklahoma no verão. De dentro das árvores, os espíritos se materializaram. Kevin teve que conferir se a sua boca não estava aberta (uma olhadela para Dragon mostrou que o Guerreiro estava de olhos arregalados e de boca aberta). Os espíritos das árvores eram as coisas mais perfeitas que ele já tinha visto desde que fora apresentado para Aphrodite no mundo de Zo. Eram todos femininos. A sua pele era de um marrom terroso como casca de árvore, mas, em vez de ser nodosa e antiga, parecia veludo. O cabelo flutuava ao redor de cada uma delas, caindo bem abaixo da cintura, em todos os tons de folhagens: o verde-limão brilhante da primavera, o jade forte do verão e o dourado avermelhado e fúcsia do outono. Elas eram tão únicas como as árvores de onde cada uma surgira. No começo, Kevin achou que os seus corpos eram cobertos de tatuagens, mas, quando elas se moveram graciosamente para mais perto, ele percebeu que elas eram, na verdade, cobertas por uma miríade de diferentes plantas da floresta – samambaias, cogumelos, flores e musgo – em vez de roupas.

Os diferentes tipos de espíritos elementais formaram um semicírculo em volta da boca da caverna, onde eles aguardavam silenciosamente na chuva congelante que ainda caía. A luz dos espíritos vaga-lumes atingiu o gelo que já tinha começado a cobrir a montanha, fazendo aquela pequena área brilhar como um diamante.

– Olá – Kevin disse, esperando que o sorriso enorme que ele não conseguia tirar do rosto não fosse inapropriado. – Hum, obrigado por terem vindo.

Um espírito da árvore foi mais para a frente. Ela era mais alta que as outras, e o seu cabelo era laranja, vermelho e dourado, como um poderoso carvalho no outono. O seu corpo era flexível, curvilíneo e mal coberto pela folhagem delicada de uma avenca.

– Garoto Redbird, não esperávamos que você repetisse o seu chamado, principalmente porque as nossas crianças ainda estão cuidando do seu pedido.

A voz dela era inesperada – agradável e doce, como a sombra de um velho carvalho em um dia quente de Oklahoma, mas também repleta de uma força que fez os galhos nus de todas as árvores próximas tremerem.

– Peço perdão. Eu não queria perturbar vocês – Kevin disse rapidamente.

– Você nos entendeu mal. Não estamos reclamando. Só quisemos demonstrar surpresa. Nós não somos despertados há muitas eras. As crianças se divertiram esta noite. – Ela ergueu uma mão, com a palma para cima, recolhendo o gelo de modo que ele revestiu a sua pele de veludo escura, deixando-a com a cor de cristal de quartzo esfumaçado. – Embora a água possa ter sido exuberante demais. – Ela chacoalhou o gelo da sua mão e do seu braço, e choveu ao redor dela, com as gotas faiscando na pálida luz da lua. – E elas realmente apreciaram o sabor do sangue indígena, por mais distante que seja a linhagem.

Kevin escutou a sua avó dar um grunhido irônico atrás dele, mas a sua atenção continuou focada no espírito.

– As suas crianças nos salvaram hoje – ele disse. – Por favor, agradeça a elas por mim.

O espírito inclinou a sua cabeça para o lado, como um passarinho, analisando-o.

– Você já agradeceu, Garoto Redbird, com o seu sangue. Você não precisava nos chamar para isso.

– Essa não é a única razão pela qual eu chamei vocês. Eu esperava que vocês pudessem me ajudar de novo.

Os olhos dela, escuros e amendoados, faiscaram com um brilho que Kevin achou ser malicioso.

– De qual outro serviço você precisa e qual o pagamento que você propõe, Garoto Redbird?

– São duas coisas – Kevin respondeu. – Primeiro, nós realmente precisamos que esta caverna fique maior e melhor. Sabe, mais ou menos... – ele hesitou e deu uma olhada rápida para Dragon. Então sussurrou para o Guerreiro. – Quantas pessoas mais ou menos precisam caber lá dentro?

Dragon apenas ficou olhando para ele, ainda boquiaberto, mas Anastasia deu um passo à frente rapidamente.

– Seria adorável se a caverna pudesse abrigar cem pessoas.

Kevin pensou que aquilo parecia coisa demais para pedir, mas ele voltou sua atenção para o espírito da árvore e falou com muito mais confiança do que de fato sentia.

– Vai ser ótimo se a caverna for grande o bastante para abrigar cerca de cem pessoas.

O espírito nem piscou ao ouvir o número.

– E o segundo serviço que você requisita?

– O que as suas crianças fizeram por nós esta noite... escondendo-nos do Exército Vermelho e Azul... bom, hum, vocês poderiam continuar a fazer isso? Por favor? – ele disse. Como ela não respondeu, ele acrescentou: – Nós também temos nossas crianças e inocentes que precisam de um lugar seguro, e esta montanha seria perfeita se a caverna fosse maior. Eu prometo que nós vamos respeitar a montanha. Não vamos construir mais nada aqui, e vamos manter tudo completamente limpo e sem bagunça.

– Ah, entendo. Você está pedindo santuário permanente.

Atrás dele, Anastasia sussurrou alarmada.

– Pare, Kevin. Você está pedindo demais.

Kevin a ignorou. Ele já havia medido se estava brincando com a sorte com os espíritos, mas ele percebeu que tinha duas oferendas para eles, então ele podia também pedir por dois serviços.

– Sim. Eu estou pedindo santuário, na forma de uma nova caverna, e a sua proteção, mas não de maneira permanente. Eu só solicito essa proteção até que eu restaure o equilíbrio entre Luz e Trevas neste mundo. Então nós não vamos precisar nos esconder mais.

– E o que você tem a oferecer como pagamento por esses serviços?

Kevin ergueu a bolsa medicinal que estava em volta do seu pescoço e a segurou, junto com a bolsa gêmea, mostrando-as para o espírito. Ela foi para a frente, não exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não mexeram no chão no qual eles pisaram. Ela chegou tão perto de Kevin que ele conseguiu sentir o seu cheiro – ela tinha todos os aromas do outono: a canela das folhas que caem, o frescor acentuado do primeiro dia frio depois de um longo e quente verão, a riqueza das raízes grossas se estendendo para o fundo da terra fértil. Ao se dar conta de que a estava encarando, ele se sacudiu mentalmente quando ela pegou as bolsas.

O espírito levou as bolsas até seu rosto, cheirou-as e colocou a língua para fora, sentido o gosto de cada uma. Ela piscou os olhos, surpresa.

– Elas são de mundos diferentes.

– São – ele confirmou. – Pagamentos de dois mundos diferentes por dois serviços diferentes.

– O seu pagamento é mais interessante do que poderoso. Vamos ver se é interessante o bastante.

O espírito da árvore deu as costas a ele, voltando-se para os outros que se reuniram ao som do seu chamado em um semicírculo frouxo em volta da frente da caverna. Ela falou rapidamente com eles, usando a estranha linguagem que era mais música do que palavras.

Em resposta, um espírito de cada um dos diferentes grupos deu um passo à frente, fazendo uma série de assobios e sons de estalos parecidos. Depois que todos tiveram a sua vez, o espírito da árvore abaixou a cabeça de leve antes de se voltar de novo para Kevin. Quando ela falou, a sua voz entrou em uma cadência musical repetitiva que o fez lembrar as vozes que ele havia escutado quando os outros espíritos aceitaram o seu sangue mais cedo, só que desta vez o poder na voz do espírito fez uma pressão contra a sua pele como a ameaça de uma tempestade com raios e trovões.

“Nós aceitamos este pagamento – esta magia

de mundos feitos em dois

Formada da sabedoria ancestral e dada

com amor para depois

Em troca –

A terra vai se mover

O ar vai escutar

A água será testemunha

E o fogo que aquece e impunha

Mas atenção ao meu comando, Garoto Redbird

Nem uma árvore viva deve destruir

Ou o nosso acordo irá para sempre ruir

E é dito – que assim seja!”

Então o espírito da árvore abriu a boca de um jeito impossivelmente amplo, dando a Kevin uma visão desconcertante dos seus dentes brancos e afiados, e engoliu uma das bolsas por inteiro. Em seguida, com um movimento tão rápido que para Kevin foi só um borrão, ela atirou a segunda bolsa para o ar, onde ela explodiu. Pedaços dela começaram a cair junto com a chuva de gelo, e o tempo desacelerou quando os espíritos começaram a esvoaçar em volta, alimentando-se dos restos da bolsa medicinal de Vovó Redbird como um cardume de piranhas lindas, mas mortais. Durante todo esse processo, eles piaram, assobiaram e cantaram uma canção sem palavras, mas cheia de alegria.

O tempo acelerou de novo, e o espírito da árvore olhou para um local atrás de Kevin, onde Vovó Redbird estava parada em pé, do lado de dentro da entrada da caverna.

– Mulher Sábia, a sua essência é deliciosa. Você controla o seu próprio tipo de poder da terra. Eu irei até você um dia, se alguma vez você precisar de mim.

Vovó Redbird abaixou a cabeça em um reconhecimento respeitoso para o espírito antes de responder.

– Se algum dia eu tiver uma necessidade tão grande que estiver disposta a pagar o seu preço, eu invocarei você, adorável espírito da árvore.

– Você e esse filho do seu sangue podem me chamar de Oak.

Desta vez, quando sua avó abaixou a cabeça, Kevin a imitou.

– Obrigado, Oak – ele falou.

– Você já me agradeceu. E o seu pagamento estava delicioso. Agora, o seu grupo deve sair da caverna enquanto nós trabalhamos.

Dragon e Vovó Redbird saíram da caverna com Kevin, mas Anastasia fez uma pausa na boca da caverna para fazer um chamado lá para dentro.

– Shadowfax, Guinevere! Venham, vocês dois. Sei que está frio e molhado aqui fora, mas vocês têm que sair da caverna.

Lá do fundo, dois gatos emergiram: um gato maine coon enorme, com cara de descontente, e um gato elegante cor de creme que Kevin tinha quase certeza de que era um siamês. Ambos estavam com as orelhas grudadas nas cabeças enquanto caminhavam até Dragon para pular nos seus braços.

– Pronto. Agora, venha para trás com a gente, Anastasia.

A companheira de Dragon se juntou a eles, e Kevin colocou o braço ao redor de sua avó, tentando protegê-la o máximo que podia daquela chuva que congelava os ossos, mas ele ainda estava fraco e se viu cambaleando, a menos que se apoiasse com força nela. De repente Dragon passou os dois gatos para a sua companheira, e então estava ao lado de Kevin, agarrando o seu outro braço, estabilizando-o o suficiente para que ele conseguisse subir entre duas rochas, que quase os protegiam da umidade. Com Dragon de um lado e sua avó de outro, Kevin observou como, em menos tempo do que tinha levado para expulsar o Exército Vermelho da montanha, os espíritos realizaram um milagre. E então, sem nem mais uma palavra, eles se dissolveram de novo em árvores, em pedras e na noite escura e fria.


9

Zoey

– Só faz alguns dias desde que Kevin foi embora, mas sinto como se fossem meses. Por favor, Nyx, cuide dele e não deixe que ele se meta em muitos problemas. – Eu acendi a vela roxa e então a coloquei aos pés da maravilhosa estátua de Nyx que ficava como ponto principal do jardim entre os prédios da escola e o templo da Deusa. Sua chama tremulou ali, acrescentando a sua luzinha alegre às outras velas oferecidas, cada uma representando uma oração que tinha sido elevada à nossa Deusa.

Então eu dei um passo para trás e me sentei no banco esculpido em pedra ao lado da minha melhor amiga, Stevie Rae.

– Sim, Nyx, por favor, fique de olho no irmão de Z no Outro Mundo – Stevie Rae disse. – E eu entendo o que você quer dizer, Z. É esse tempo. Dois dias atrás a gente estava enterrado em neve, e hoje está fazendo quase vinte graus. Faz com que pareça que passou muito mais tempo. Ei, sabe o que é ainda mais estranho do que o clima de Oklahoma?

– Não, porque o clima de Oklahoma é a coisa mais estranha do mundo.

– Né? Mas a coisa ainda mais estranha é que eu sinto falta disso. Muita. Quer dizer, o clima de Chicago é bem louco também, mas não no nível daqui. Eu sinto falta do gelo, do vento e de como as tempestades aparecem do nada como um estouro da boiada que cai do céu.

– Aham – eu respondi automaticamente, com os olhos fixos no modo como a luz das velas brincava através da pele de mármore de Nyx, enquanto minha mente estava bem longe. Um mundo inteiro de distância, para ser mais precisa.

– Você ficaria surpresa com todas as coisas de que vai sentir falta quando sair de casa.

– Sim. – Meu olhar se desviou da estátua e se voltou para a noite perfeitamente clara e cheia de estrelas.

– Como carrapicho-de-carneiro. Sabe, aquele tipo que machuca quando você puxa o espinho para fora da pele e também quando ele entra em você.

– Aham.

– Ah, e carrapato. Eu morro de saudade de carrapato.

– Sim, eu também.

– Hum, Z. Você não.

– Certo.

– Zoey Redbird, pare de sonhar acordada!

Stevie Rae deu um cutucão no meu ombro. Com força.

– Ei! O que foi isso?

– Z, sério? O que eu acabei de dizer?

Eu mordi a bochecha.

– Hum, alguma coisa sobre lã? O que não faz muito sentido. Você está bem? Eu estava falando sério quando disse que você e Rephaim não precisam voltar para Chicago. Vocês não precisariam ter ficado lá nesse último ano se eu soubesse que você estava triste.

Stevie Rae se virou no banco para me encarar.

– Zoey, você confia em mim, não confia?

– É claro que confio em você.

– Então, por favor, me conte o que tem de errado.

Eu suspirei.

– Não tem nada...

Stevie Rae levantou a mão rápido, com a palma para fora, com um sinal para parar.

– Não. Conte essa pra outro. Eu sei que é mentira e, depois de tudo que a gente passou, é quase ofensivo.

– Ei, você sabe que eu jamais ofenderia você de propósito – eu disse, sentindo-me péssima por ter feito minha melhor amiga se sentir péssima.

– Então me conte o que tem de errado.

Suspirei de novo.

– Estou preocupada com Kevin. Bem, com o Outro Kevin. Não o Kevin daqui. Na verdade, eu e ele vamos nos encontrar no Andolini’s para comer uma pizza antes que as férias de inverno dele acabem.

– Só isso?

– Bom, sim. Quase. Quer dizer, nós ainda não sabemos o que fez todas as rosas ficarem escuras e nojentas antes da visão de Aphrodite, mas, se foi Neferet, eu esperaria que ela fizesse algo mais. Qualquer coisa mais do que isso. E os Guerreiros que fazem guarda na gruta dizem que nada mais aconteceu por lá.

– As rosas voltaram ao normal.

– O quê? Voltaram? Como você sabe disso?

Stevie Rae abriu o sorriso.

– O jardim de rosas é mais uma das milhares de coisas de Tulsa da qual eu sinto falta. Rephaim me fez uma surpresa noite passada e fomos dar um passeio pelos jardins depois de jantar no Wild Fork. Foi quando ele me deu isto. – Ela apalpou o colar de prata cintilando no seu pescoço. Pendurada na correntinha brilhante, havia uma réplica perfeita do estado de Oklahoma como um pequeno talismã.

– Own, que lindo. Eu nem tinha reparado. Desculpe.

– Z, tem muita coisa que você não está reparando nos últimos dias. Eu... eu queria que você me deixasse ajudar.

– Não há nada que você possa fazer. Eu só tenho que descobrir um jeito de parar de me preocupar com Kevin – e de pensar em Neferet... na Neferet que está lá, no comando, provavelmente massacrando milhões de inocentes, assim como ela assassinou a Outra Zoey! Mas eu não deixei a minha boca pronunciar essas palavras em voz alta. Se eu deixasse, tinha medo de não parar mais, de não parar de falar sobre Neferet, de não parar de pensar que eu precisava ajudar Kevin.

E além disso havia Heath. O Heath vivo. O Outro Heath, que estava de luto pela Outra Zoey, que eu havia acabado de ver Neferet assassinar.

– É só o Kevin? – Stevie Rae perguntou.

– Sim. Não.

– Hum, Z, qual dos dois?

– Não – eu disse com tristeza. – Também tem a idiota da Neferet e qualquer mal novinho em folha que ela está aprontando. Além disso, bom, tem Heath – então eu me esforcei para continuar rápido. – E a minha mãe. Ela está viva lá também. E tem Outra Vovó Redbird. Você consegue imaginar como deve ter sido difícil a minha morte para ela?

– Z! Aí está você! – Kramisha chegou falando alto e usando um par de botas de salto vermelhas brilhantes na altura do joelho. – Chega pra lá, Stevie Rae. Eu tenho muito mais peso na minha bunda do que vocês duas, branquelas magrinhas.

Ela empurrou Stevie Rae com o quadril, que deslizou para mais perto de mim, e nós nos ajeitamos rápido para abrir espaço para Kramisha.

– Ei, eu não sou branca. Ou pelo menos não sou cem por cento branca – eu protestei.

– Desculpe. Esqueci que você tem um pouco de cor aí, Z. Mas a sua bunda ainda é pequena.

– Gostei das suas botas novas – Stevie Rae falou. – Elas têm a cor exata da sua peruca. Como você faz isso?

– Talento. Puro talento. E essas botas não são novas, mana. Mas este macacão colante de mulher-gato é. Que tal? Miau! – Ela fingiu dar um chiado de gato para Stevie Rae, que começou a rir.

– Kramisha, eu te amo! E senti falta tanto de você quanto de Tulsa – Stevie Rae disse.

– Você vai me amar mais ainda daqui a um segundo. Z, eu quero ir para Chicago.

– Hum? – eu perguntei. – Mas você mal começou a reconstrução do Restaurante da Estação.

– Olha só, todo mundo sabe que Damien e Outro Jack podem fazer um trabalho melhor do que eu nessa reconstrução. Z, eles são gays. E eles chamaram mais gays.

Eu revirei os olhos.

– Kramisha, isso é um estereótipo horrível.

– Diga que isso não é verdade que eu calo a boca. – Ela fez uma pausa e, como eu não disse nada porque, bem, Damien, Outro Jack e Toby, o diretor do Centro de Igualdade de Oklahoma, eram todos super incríveis em design de interiores, ela continuou. – Onde eu estava? Ah sim – Kramisha se virou para Stevie Rae. – Você quer voltar para Chicago?

– Bem, hum, não exatamente, não de modo permanente, mas Z e eu já falamos sobre voltar para Tulsa de vez assim que eu deixar as coisas organizadas na Morada da Noite de Chicago.

– “Organizadas” quer dizer “depois de escolher a sua substituta”? – Kramisha perguntou.

– Imagino que sim. Certo, Z?

– Claro. A menos que você já tenha alguém em mente, como Damien tinha – eu disse.

– Queria ter, mas não escolhi ninguém. Há algumas Grandes Sacerdotisas que têm potencial, mas ninguém que se destaque – ela falou.

– Eu vou fazer isso – Kramisha afirmou.

– Fazer o quê? Você está me deixando bem confusa, Kramisha. Vá direto ao ponto – eu pedi.

– Certo. A questão é que eu não posso voltar para a estação. Não agora. Eu preciso me dar um tempo. Eu... eu ainda consigo ouvir os gritos. – Kramisha fez uma pausa e tirou algumas mechas vermelhas e brilhantes do seu rosto com uma mão trêmula. – Stevie Rae é uma Grande Sacerdotisa vampira vermelha. Ela e Rephaim se encaixam bem na estação. Os novatos gostam deles, o que eu acho meio estranho, já que ele é um pássaro boa parte do tempo, mas que seja. Não gosto de julgar. – Ela deu de ombros. – E você sabe que sou boa em organizar tudo. Eu vou para Chicago e deixo tudo organizado e encaminhado e, quando isso já estiver resolvido, talvez os gritos que eu ouço à noite já tenham sido resolvidos também, e então eu posso vir para casa de vez – Kramisha concluiu apressada.

– Eu não sabia – eu falei em voz baixa, estendendo o braço por cima de Stevie Rae para pegar a mão de Kramisha. – Kramisha, sinto muito.

– Você anda distraída. Ninguém te culpa por isso, Z. O Outro Kevin passou só um tempinho aqui, mas todo mundo que conheceu o seu mano gostou dele. Muito.

Eu sacudi a cabeça.

– Não, eu sou a sua Grande Sacerdotisa, e eu estou fazendo um trabalho ruim.

– Você vai voltar a ser o que era logo, assim como eu. A gente só precisa de tempo e um pouco de descanso.

– Você não vai ter muito descanso se for para Chicago. Aquela Morada da Noite é agitada pra caramba – Stevie Rae disse. – E eles não têm nem um programa equestre. Andei falando com Lenobia sobre...

– Sei tudo sobre isso. Também andei falando com Lenobia – Kramisha falou.

– Ela quer ir para Chicago com você? – eu perguntei, sem saber ao certo se deveria ficar surpresa, irritada ou aliviada por obviamente haver um monte de coisas rolando ao meu redor sobre as quais eu não tinha a menor ideia.

– Só o suficiente para resolver a questão dos cavalos. O que você acha, Grande Sacerdotisa?

O que eu acho? Eu encarei a estátua de Nyx. Acho que eu preciso descobrir um jeito de ajudar Kevin sem ferrar totalmente com a minha própria vida. Decidi falar outra coisa em voz alta.

– Eu acho que você é altamente capaz. Você e Lenobia vão fazer um belo trabalho, desde que Stevie Rae não se importe de você assumir o lugar dela imediatamente.

– Isso significa que Rephaim e eu podemos ficar aqui e não precisamos mais ir embora?

– É isso que significa, sim – eu respondi.

– Então eu não me importo nem um pouquinho! Kramisha, você me deixou mais feliz do que urubu em cima de carniça! – Stevie Rae atirou os braços ao redor de Kramisha, que deu um grunhido, abraçou-a rapidamente de volta e então se afastou, endireitando a sua peruca.

– Cuidado com o cabelo. Sei que não parece, mas todo esse glamour pode se estragar rapidamente se o cabelo estiver errado.

Eu abri a boca para perguntar para Kramisha em quanto tempo ela estaria pronta para partir quando a primeira sensação me atingiu. Ela começou no meio do peito, apenas um pequeno calor começando a espalhar, mas não tão pequeno que passasse despercebido. A sensação pulsou e cresceu, como se eu tivesse acabado de subir correndo as escadas de um estádio em um dia quente (o que eu absolutamente não faria, a menos que alguém estivesse me perseguindo).

Eu tossi. Enxuguei o meu rosto, que de repente ficou suado. Limpei a garganta. Tossi de novo.

A minha mão se levantou como se eu não tivesse nenhum controle sobre ela e foi até o centro do meu peito. Minha palma pressionou a minha pele.

Não havia nada ali. Nenhum calor. Nada.

Mas eu jurava que tinha sentido algo. Alguma coisa quente, forte e estranhamente familiar.

– Zoey! Você está me ouvindo?

Eu olhei para cima e vi Stevie Rae em pé sobre mim com Kramisha ao seu lado. Eu ainda estava sentada no banco, mas elas tinham se levantado e estavam debruçadas sobre mim, obviamente preocupadas.

– Sim. Eu estou te ouvindo. Eu... eu estou bem. Eu acho.

– O que aconteceu? Você congelou com a mão sobre o peito, quase como se estivesse se agarrando às suas pérolas. Só que você não está usando um colar de pérolas – Kramisha falou.

– Não sei. Foi uma sensação estranha. Já passou.

O som de pés correndo veio por trás de nós, e de repente Stark estava lá, agachado ao meu lado, com as mãos nos meus joelhos, enquanto ele analisava o meu rosto.

– Zoey! O que foi?

– Você sentiu também?

– Calor? E alguma outra coisa. Algo que não consegui identificar. – Ele tocou o meu rosto, tirando o meu cabelo da minha bochecha úmida. – Z, a sua respiração está ok? O seu peito está doendo?

– Não, não doeu. Não senti dor nenhuma. Só calor e... uma sensação estranha. – Eu estava aliviada e com medo ao mesmo tempo. Se Stark sentiu também, eu não tinha imaginado aquilo. Mas, por outro lado, se Stark sentiu, o que quer que tenha acontecido foi real. E isso podia significar más notícias de verdade.

– Acho que a gente tem que levar Z para a enfermaria para que ela possa ser examinada – Stevie Rae disse.

Rephaim devia estar com Stark, porque de repente ele estava ali também, segurando a mão de Stevie Rae e me analisando com uma concentração típica de pássaro.

– Enfermaria? Que diabos está rolando? Z, você se machucou?

Eu desviei os olhos de Rephaim e vi Aphrodite em pé ao lado de Darius (Deusa, será que estavam todos no Ginásio com Stark?). Ela estava com as mãos no quadril e me olhava intensamente, com os olhos estreitos, com os quais ela provavelmente queria demonstrar preocupação, mas que na verdade estavam mais dizendo algo como “AiminhaDeusa, por que você está me enchendo agora?”.

– Eu não preciso ir para a enfermaria. Estou bem. Sério – eu insisti.

– E isso não foi algo que Z fez para si mesma – Stark afirmou. – Foi algo que aconteceu com ela.

– Isso não faz algum sentido – Kramisha disse.

– Ou, dito corretamente, isso não tem nenhum sentido. Gramática: errada. Sentimento: certo – Aphrodite provocou.

– Isso tem sentido sim – eu falei rapidamente, antes que Kramisha conseguisse espetar Aphrodite verbalmente. – Stark quis dizer que não tem nada de errado comigo. Que, seja o que for que nós sentimos, foi algo que aconteceu fora de mim. E isso foi mais estranho do que assustador.

– Ei, o que está acontecendo aqui? – Damien perguntou quando ele e Outro Jack se juntaram ao grupo. Ambos estavam segurando velas votivas perfeitas que eles obviamente tinham a intenção de acender aos pés de Nyx. – Z, você está bem?

Eu suspirei. Às vezes, era realmente como se eu tivesse zero privacidade.

– Estou bem. Não foi nada.

– Não diga isso – Stark falou sério quando sentou ao meu lado, colocando o seu braço ao meu redor de modo protetor. – Você está bem agora. Nós estamos bem, mas não quer dizer que não foi nada. Alguma coisa aconteceu. Algo que tocou você ou a mim ou a nós dois.

Foi a vez de Damien se agachar ao meu lado.

– Conte-me o que você sentiu.

Eu descrevi o súbito calor e observei Damien ficar cada vez mais pálido enquanto Stark assentia em concordância com a minha descrição. Mas, antes que Damien pudesse dizer qualquer coisa, Aphrodite se adiantou.

– Ah, que merda, seus imbecis! É óbvio o que acabou de acontecer.

– Aphrodite, é super ofensivo chamar a gente de imbecis – Stevie Rae protestou.

– Caipira, é só um chute, mas aposto que, antes de eu me juntar a este grupo improvisado, você fez pelo menos uma comparação terrível que tinha a ver com a sua mamãe ou com carrapatos. Acertei?

– Quase – Kramisha falou. – Tinha a ver com urubu em cima de carniça, o que é nojento. – Ela olhou para Stevie Rae e deu um sorriso de desculpas. – Só estou dizendo a verdade.

– Certo – Aphrodite continuou. – E isso é ofensivo, mas você vai continuar com suas analogias de caipira e, já que você vai fazer isso, também vou continuar chamando um imbecil de imbecil quando estiver presenciando vocês agindo feito imbecis.

– Ai minha Deusa, parem de discutir! – Eu senti como se minha cabeça pudesse explodir. – Aphrodite, você realmente sabe o que aconteceu?

– Claro que sim – ela respondeu. – É Magia Antiga. E aquele som de tapa na cara que você ouviu metaforicamente está te dando vontade de cobrir o rosto de vergonha enquanto você se dá conta de que estou certa.

– Ela está certa – Damien disse enquanto se levantava e segurava a mão de Outro Jack de novo. – Era o que eu estava pensando também.

Eu apenas fiquei sentada, incapaz de dizer qualquer coisa porque eu estava lembrando do tempo que eu passei na Ilha de Skye, do talismã de mármore de Skye que eu trouxe para Tulsa. Daquele calor e do poder daquela magia, e de como ela quase me engoliu e me transformou em alguém tão parecido com Neferet que não merecia continuar sobrevivendo.

– Z?

Eu podia sentir a preocupação de Stark e deixei que ela me tirasse dos meus pensamentos.

– Aphrodite e Damien estão certos – eu afirmei. – Não percebi isso na hora porque foi só um eco distante da real sensação de brandir a Magia Antiga.

– Então, isso só pode significar que alguém está usando Magia Antiga de novo – Stevie Rae concluiu.

– E isso é ruim – Rephaim falou.

– Ruim mesmo – Kramisha concordou.

– Você deveria ligar para a Rainha Sgiach – Aphrodite sugeriu. – Ela é a especialista em Magia Antiga.

– Eu adoraria – eu disse. – Mas ela está de luto, o que significa que ela se retirou totalmente do mundo exterior. Eu sei. Eu venho tentando falar com ela uma vez por semana, e já fiz isso ontem. Ela ainda está totalmente off-line e o telefone dela só chama, chama, e ninguém atende.

– Ela ainda está sem atender o telefone? Quanto tempo já faz, quase um ano desde que o Touro Branco atacou Skye na mesma noite em que Neferet nos atacou aqui? Já era de imaginar que ela pelo menos estivesse dando uma olhada no Facebook – Aphrodite falou.

Eu levantei os olhos para Aphrodite. Ela era minha amiga, uma poderosa Profetisa de Nyx e, com a sua nova Marca azul e vermelha, uma vampira adulta, mas ainda assim ela podia soar como uma criança mimada e egoísta.

– Ela e Seoras foram companheiros por séculos. Acho que um ano de luto não é nada perto disso. Você já teria seguido em frente se Darius tivesse sido assassinado naquela noite?

Aphrodite empalideceu e se recostou em Darius.

– Não. Não, não teria. Você está certa, Z. Peço desculpas por ter soado como uma imbecil.

– Aphrodite, você sabe que Damien podia ajudar você a melhorar o seu vocabulário para que você não tenha que usar palavras como... – Stevie Rae tinha começado um novo sermão quando a segunda onda daquela sensação me atingiu.

Eu ofeguei e coloquei meus braços ao redor do meu corpo, enquanto Stark me abraçava forte.

– Está tudo bem. Está tudo bem. A gente está bem. Vai passar – Stark murmurou frases para me tranquilizar.

– O que foi? O que está acontecendo? – Aphrodite chegou mais perto de mim, ombro a ombro com Damien.

– Você está com dor? – Damien perguntou.

– Nã-não – eu respondi com voz trêmula. – Eu só sinto como... como...

– Como se alguém estivesse pisando no seu túmulo – Stark concluiu por mim.

– A-alguém que usa Magia Antiga – eu acrescentei e Stark assentiu em concordância.

Como meu Guerreiro Juramentado, Stark compartilhava as minhas sensações. A ligação Grande Sacerdotisa-Guerreiro era estabelecida dessa forma para que nossos protetores sempre soubessem quando precisávamos deles. Mas havia momentos, como agora, em que eu preferia poder apertar um botão e não fazer ele passar por essas coisas estranhas que aconteciam frequentemente comigo.

– Está sumindo – Stark disse.

Eu soltei um longo suspiro de alívio.

– Sim. Acabou.

– Z, de onde isso está vindo? – Stevie Rae perguntou.

– Não tenho ideia – respondi. – Stark, você sabe de algo?

Ele balançou a cabeça.

– Não, acho que eu não estou tendo a sensação de fato, mas apenas um eco do que você está experimentando.

– Bom, está ligado a você – Damien falou. – Seja a magia propriamente dita ou a pessoa que está mexendo com ela.

– E se Sgiach invocou Magia Antiga? Será que pode ser isso que você sentiu? Vocês duas ficaram muito próximas – Stevie Rae deu um palpite.

– Não acho que seja isso – eu respondi. – A Rainha Sgiach é guardiã da Magia Antiga, e eu sei que ela se manifesta na ilha dela com muita frequência, mas, a menos que eu esteja lá com ela, nunca senti nada.

– Ela usou Magia Antiga na batalha contra o Touro Branco na noite em que sepultamos Neferet – Damien lembrou. – Você não sentiu nada?

Balancei a cabeça.

– Não.

– Merda! Será que pode ser Neferet? – Aphrodite disse.

De repente, senti um calafrio.

– Não sei.

– Bom, descubra! – Aphrodite exclamou.

Eu franzi o cenho para ela.

– Você é a Profetisa. Que tal você descobrir?

Ela atirou o longo cabelo loiro para trás.

– Não funciona desse jeito e você sabe disso.

– Além disso, você não precisa de nenhuma Profetisa. Você só precisa de uma Grande Sacerdotisa que possa invocar Magia Antiga. Conhece alguma, Z? – Kramisha perguntou, dando um olhar aguçado na minha direção.

Eu metaforicamente dei um tapa na minha testa.

– Eu devo ser uma imbecil.

– Z! – Stevie Rae bufou.

Fiz um gesto para evitar o que provavelmente seria um sermão politicamente correto enquanto Aphrodite caiu na gargalhada.

– Desculpe. Eu só estava brincando. Na maior parte. Eu sou a Grande Sacerdotisa de quem Kramisha estava falando.

– Não gosto de você mexendo com Magia Antiga – Stark falou.

– Eu não vou mexer com isso – eu argumentei. – Vou só dar uma invocada rápida, só isso.

– Nunca é só isso quando Magia Antiga está envolvida – Stark rebateu sombriamente.

Eu suspirei e concordei silenciosamente com ele.

– Será que a gente deve ir até Skye? Apesar de ela estar de luto, não acredito que a Rainha Sgiach recusaria dar passagem a você.

– Lá é longe demais – Stevie Rae protestou. – Tem que haver um jeito mais fácil. Ou pelo menos um lugar mais perto.

– Eu sei de um lugar mais perto – Rephaim disse.

A atenção de todo mundo se voltou para o jovem Cherokee alto e bonito.

– Ok, estou ouvindo – eu o incentivei a continuar.

– Tem Magia Antiga aqui. Bem aqui nos jardins da escola – ele falou em voz baixa, mas gravemente. – Eu sei porque eu vim dela.

Eu me endireitei no banco, como se o que Rephaim acabou de dizer tivesse entrado na minha mente. O meu olhar se perdeu pelos jardins da escola na direção leste, onde a distância eu mal podia distinguir a silhueta escura de um carvalho enorme e quebrado.

– Rephaim está certo. Há um jeito mais perto, mas eu não tenho muita certeza se vai ser muito mais fácil – eu afirmei.

O olhar de Stark seguiu o meu, e eu o escutei resmungar baixinho.

– Ah, que inferno.


10

Zoey

– Não sei se essa é uma boa ideia – Stevie Rae disse.

– Eu tenho certeza de que não é – Stark falou.

– Zoey, você não deveria fazer um círculo antes de tentar invocar Magia Antiga? – Rephaim perguntou. – Shaylin ainda está aqui, não está? Posso ir chamá-la. E eu vi Shaunee indo para a aula de Teatro com Erik. Posso falar para ela, caso você precise dela aqui também.

– Uau! Definitivamente essa árvore não se parece com a que está no meu velho mundo – Outro Jack exclamou.

– Ok, escutem bem. – Eu dei as costas para o carvalho destruído e encarei os meus amigos. – Eu não vou fazer um círculo. Quero fazer isso de um jeito rápido e simples, sem precisar focar muita energia em Magia Antiga. – Eu me virei para Rephaim. – Obrigada por me lembrar que essa árvore estava aqui. Queria que você e Stevie Rae ficassem – o meu olhar desviou dele e abarcou Aphrodite e Stark –, mas eu quero que todos os outros, exceto Stark e Aphrodite, vão embora. Minha intuição me diz para não tentar fazer um espetáculo para invocar Magia Antiga e, quanto mais gente estiver aqui, maior a bagunça. Eu faria isso sozinha, mas conheço o meu Guerreiro o bastante para saber que isso não é possível.

– Com certeza – Stark afirmou, com jeito de Guerreiro valentão, enquanto olhava sobre o meu ombro para a árvore quebrada, em cuja direção eu nem tinha olhado ainda.

– E Aphrodite é, bom... – minhas palavras sumiram quando percebi que não sabia muito bem como descrever o que Aphrodite havia se tornado.

– Estranhamente ligada a Nyx e poderosa? – Stevie Rae sugeriu.

– Que tal incrivelmente ligada a Nyx e poderosa? – Aphrodite a corrigiu, estreitando os olhos.

– As duas coisas – eu disse.

– E eu vou usar a minha posição de Grande Sacerdotisa e ficar bem aqui com Z – Stevie Rae falou.

– Eu fico com Stevie Rae – Rephaim acrescentou.

– Exatamente como eu esperava – eu concordei.

– O que nós podemos fazer enquanto isso? – Damien perguntou, entrelaçando os dedos com os de Outro Jack.

– Obrigada pela compreensão – eu agradeci. – Você e Jack podem cuidar para que todos os estudantes fiquem lá dentro.

– Claro – Damien respondeu. – Está na metade da segunda aula. Vamos enviar um e-mail de emergência para todos os professores. Ninguém pode ir a lugar nenhum por mais ou menos uns trinta minutos.

– E se alguém sair, Damien e eu vamos enxotar a pessoa direto de volta para a aula – Outro Jack completou, mostrando as covinhas para mim.

– Mas você tem certeza absoluta de que não quer que eu fique? – Damien perguntou. – Eu poderia fazer anotações sobre o que acontecer.

– Na verdade, o que me ajudaria ainda mais do que isso seria se você pudesse pegar aqueles livros sobre Magia Antiga na área restrita do Centro de Mídia, e marcar tudo que você achar que eu preciso ler sobre o assunto.

– Eu posso fazer isso, Z.

– Posso ajudar também? – Outro Jack se ofereceu, olhando para mim com olhos grandes e ansiosos. – Quer dizer, assim que a gente avisar os professores para não deixarem os novatos saírem das salas.

– Claro – eu respondi. – Eu agradeço.

Outro Jack deu um pulinho de alegria, que me fez sorrir, e então ele e Damien saíram apressados de mãos dadas.

– Bom, da minha parte, não preciso ver Magia Antiga nem qualquer coisa do tipo – Kramisha disse. – Tenho que fazer as malas. Z, se um poema vier até mim, eu mando uma mensagem pra você. Beleza?

– Sim – eu respondi, desejando secretamente não receber nenhum poema profético maluco enviado para mim via mensagem de texto com a fonte roxa brilhante que Kramisha usava para escrever.

– Grande Sacerdotisa, eu gostaria de permanecer com Aphrodite.

Meus olhos encontraram o olhar sério de Darius. Eu suspirei, mas assenti.

– Sim, eu entendo isso. Você pode ficar.

Darius fez uma reverência respeitosa para mim, com o punho sobre o coração.

– Ok, Z. Você encontra a gente no refeitório depois? Já está quase na hora do almoço e eu estou ficando irritada de fome – Kramisha disse.

– Sim, combinado. Não vou demorar. – Eu esperava que, ao falar em voz alta, pudesse transformar isso em realidade.

Enquanto meus amigos seguiam de volta para o prédio principal da escola, eu finalmente voltei minha atenção para a árvore rachada.

A aparência dela era horrível. Conforme eu a observei, percebi que deveria ter mandado arrumar tudo meses atrás. Estava assustador. Eu sabia que os estudantes evitavam o muro leste por causa daquilo, e imagino que parte do motivo que me fez adiar fazer qualquer coisa ali era porque aquilo desencorajava novatos a usarem o alçapão escondido no muro atrás da árvore para saírem escondidos do campus. Mas, por outro lado, agora eu era a Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Como se eu fosse realmente tomar conhecimento de cada novato que estava saindo escondido do campus. Era muito improvável.

– Z? Você está bem? – Stark perguntou.

Eu assenti.

– Sim, só estou pensando em mandar arrumar essa bagunça.

– Não. Deixe assim – Aphrodite falou. – Se você quiser fazer algo, faça uma defumação e um círculo de sal para proteção, mas deixe do jeito que está.

Eu me virei para ela.

– Por quê?

Ela indicou a ruína maléfica da árvore sem folhas e o buraco criado na terra de onde Kalona e os seus Raven Mockers haviam saído em uma explosão em um tempo que parecia muito, muito distante.

– Eu posso estar errada, mas para mim parece que essa bagunça é uma lição visível do que acontece quando você brinca com poderes em que é melhor não mexer.

Os meus olhos focaram nos galhos escuros feito garras, onde as folhas se recusavam a nascer.

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho razão. Então, você vai invocar Magia Antiga ou o quê?

Eu queria poder escolher “ou o quê”, mas sabia que essa não era uma opção.

– Alguém tem uma faca?

Juntos, Darius e Stark tiraram adagas que pareciam muito perigosas de sabe-a-Deusa-onde em seus corpos extremamente armados. Eu estendi a mão, com a palma para cima, e falei para Stark:

– Faça um corte.

Ele franziu a testa.

– Que tal eu me cortar e você usar o meu sangue?

– James Stark, eu sou a sua Grande Sacerdotisa e a sua Rainha. Eu disse para você me cortar. Então me corte.

Ele ainda estava franzindo a testa, mas desta vez fez o que eu pedi, rapidamente abrindo um corte raso na parte mais carnuda da palma da minha mão. A adaga dele era tão afiada que eu sequer senti dor. Fechei a mão e a apertei de leve para que o sangue se juntasse em uma quantidade razoável.

– Aphrodite e Darius, por favor, fiquem à minha esquerda. Stark, Stevie Rae e Rephaim, fiquem aqui do lado direito. Eu vou caminhar até a árvore. Deixem-me ir um pouco na frente de vocês. Não façam nada enquanto eu ainda estiver falando coisas com sentido, mas se algo estranho demais acontecer...

– Se alguma merda estranha acontecer, eu vou carregar você para fora de lá – Stark afirmou.

– Não – eu falei, cortando-o. – Coisas estranhas vão acontecer. É Magia Antiga. Não faça nada, a menos que eu pare de me comunicar com você, ou que eu seja puxada para dentro da, hum, árvore. – Fiz uma pausa, esforçando-me para não estremecer ao lembrar da última vez que a Magia Antiga havia me tocado ali. Da última vez eu quase havia me perdido. Encontrei o olhar preocupado de Stark e minha voz suavizou. – Você vai saber se alguma coisa estiver dando errado. Você vai sentir. Só não faça nada a não ser que dê tudo errado. Ok?

– Ok – ele respondeu com relutância.

– Eu te amo e sinto muito que isso esteja te estressando – eu disse.

Os ombros de Stark relaxaram um pouco.

– Eu também te amo, Z, e estresse faz parte do trabalho de um Guerreiro.

Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo e então encarei a árvore. Levantei a minha mão fechada diante de mim e inspirei profundamente três vezes para me centrar. Então hesitei.

– Bom, que inferno. Não sei quem eu devo invocar – eu falei.

– Você me disse que gostou dos espíritos elementais que responderam ao seu chamado em Skye – Stark lembrou.

– Sim, mas aquilo era diferente – eu respondi.

– Não exatamente. Pare de se preocupar tanto com o fato de ser Magia Antiga. Pense nisso em termos mais simples. É uma árvore velha toda ferrada. É só invocar os espíritos da terra – Stevie Rae sugeriu. – É o que eu faria.

– Sim, você está certa. Espíritos da terra. Isso parece o correto – eu concordei nervosamente.

– E pare de ficar tremendo tanto. Eles são só elementais. Você tem afinidade com todos os elementos. Imagine que você está invocando a terra para um círculo – Aphrodite reforçou.

– Essa é mesmo uma boa ideia – eu disse.

– Claro que é. Eu sou cheia de boas ideias. – Ela atirou o seu cabelo comprido e loiro para trás e levantou suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas para mim.

– E se eu tentar ajudar? – Stevie Rae veio para o meu lado. – Não sei muito sobre Magia Antiga, mas eu sou da terra. Vamos invocar juntas. Como a gente faz no círculo.

– Ok, isso faz sentido. Stevie Rae, você começa, e eu vou usar o meu sangue como se eu estivesse acendendo uma vela na terra.

– Facinho! – Stevie Rae limpou a garganta e falou para a árvore quebrada. – Eu sou Stevie Rae, Grande Sacerdotisa vampira vermelha de Nyx, que me presenteou com a afinidade com a terra. Com o poder concedido pela Deusa, eu gostaria de invocar os espíritos ancestrais da terra. – Então ela assentiu e deu um passo atrás, deixando que eu liderasse a invocação final.

Eu estendi a mão de novo, inspirei fundo e disse:

– Espíritos da terra! Espíritos das árvores da Magia Antiga! Eu sou Zoey Redbird. Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx, e eu consigo brandir a Magia Antiga. Com o poder ancestral no meu sangue, eu os invoco e peço que apareçam para mim. – Então, como se eu estivesse atirando uma mão cheia de água para longe de mim, arremessei o meu sangue na casca de árvore nodosa e quebradiça.

Nada aconteceu por um instante, e eu senti o meu coração afundar no peito. Eu ia mesmo ter que voar até Skye e incomodar Sgiach em seu luto? Será que isso poderia ser feito? Ou talvez eu devesse tentar falar com o Conselho Supremo dos Vampiros, o Europeu, aquele que não estava particularmente satisfeito com o fato de os meus amigos e eu termos assumido a liderança na América do Norte em vez deles...

– Ei, Z. Acorde. Tem alguém aqui – Aphrodite sussurrou.

Eu me sacudi mentalmente e fiquei olhando uma figura emergir do centro da árvore partida. Ela era obviamente um espírito da árvore. Alta e graciosa, tinha pele escura – da cor de casca de árvore à meia-noite –, mas não havia nada de rústico nela. Ao contrário, sua pele parecia incrivelmente suave e macia – e havia muita pele visível, pois o vestuário que ela estava usando era composto de delicadas folhagens de samambaia. Quanto mais eu olhava, mais me dava conta de que a samambaia parecia estar rente à sua pele, como uma pintura corporal ou mesmo uma tatuagem. Ela piscou para mim com olhos grandes, escuros e bonitos.

– Olá – eu disse. – Obrigada por atender ao meu chamado.

O espírito inclinou a cabeça para o lado com um movimento parecido com o de um passarinho. Isso fez o seu cabelo espetacular, da cor das folhas do outono, ondular como se estivesse sendo mexido por um vento que afetava apenas o espírito.

Eu estava tentando descobrir como persuadi-la a falar comigo quando o espírito inspirou profundamente, e então os seus olhos grandes e escuros ficaram ainda maiores.

– Outro Redbird? Esta noite está mesmo muito interessante.

Ela saiu do meio da árvore despedaçada, dando um olhar triste para ela enquanto passava a mão no tronco partido. Ela não estava exatamente flutuando, mas os seus pés descalços não fizeram som nenhum nem remexeram o gramado marrom do inverno sobre o qual ela caminhava. O espírito parou diante de mim, se inclinou para a frente e me cheirou.

– Você é, de fato, uma Garota Redbird.

– Como você sabe o meu nome? – eu falei sem pensar.

– Eu acabei de encontrar outros do seu sangue. Um garoto jovem e uma mulher – a voz musical do espírito hesitou antes de continuar. – Mas eles não estão neste mundo. Que estranho.

– Espere aí, você está falando do meu irmão, Kevin?

– O Garoto Redbird... sim, acho que ele se chama Kevin.

– Quem era a mulher? Z, eu pensei que você estivesse, ahn, morta do lado de lá – Stevie Rae sussurrou.

O espírito voltou sua atenção para Stevie Rae, que sorria nervosamente e acenou, dizendo:

– E aí! Sou Stevie Rae. Prazer em te conhecer.

– Eu não a conheço, mas posso sentir a força da sua ligação com a terra. Como um espírito da árvore, eu aprecio isso. Pode me chamar de Oak.

– Obrigada, Oak – Stevie Rae fez uma reverência respeitosa.

Oak começou a farejar o ar de novo e, ao fazer isso, ela chegou mais perto de Rephaim, que estava tão imóvel que pensei que ele nem estivesse respirando.

– O que é você? Eu sinto o cheiro de Magia Antiga nos seus ossos, mas ela foi modificada.

– Sou Rephaim. Filho de Kalona. Eu fui um Raven Mocker.

– Portanto, não humano. Nem corvo. Mas algo modificado para fundir ambos em um só.

– Modificados por Nyx – eu me manifestei, sentindo a necessidade de ter algum tipo de controle sobre a conversa. – Rephaim conquistou o perdão da Deusa, e ela concedeu a ele o corpo de um garoto.

– Mas só do pôr do sol até o nascer do sol – Rephaim concluiu por mim. – Enquanto o sol está no céu, eu sou um corvo.

O espírito continuou a encarar Rephaim, farejando o ar ao redor dele, receoso.

– É uma punição pelos atos sombrios que você já cometeu que a Deusa permite que o corvo assuma o seu corpo.

Rephaim empinou o queixo.

– Sim. Nyx é justa. O meu passado não é algo do qual me orgulho.

– Exceto pelo ano passado – Stevie Rae disse, pegando a mão de Rephaim. – Ele escolheu a Luz, e Nyx o perdoou.

– Então, Oak, você não é deste mundo? – Aphrodite perguntou.

A cabeça de Oak girou, feito uma coruja, para observar Aphrodite.

– Eu não a conheço, Profetisa.

– Ainda assim você me chamou de Profetisa.

O espírito assentiu, fazendo o seu cabelo longo e multicolorido brilhar ao redor com um som parecido com o do vento derrubando as folhas do outono.

– A Magia Antiga reconhece uma Profetisa de Nyx. Houve um tempo, no passado distante, em que nós estivemos ao lado das Profetisas de Nyx, seguindo as ordens da Deusa. Infelizmente, esse tempo já passou, mas nós nos lembramos dele – Oak disse de forma enigmática antes de olhar para Darius. – Eu também não o conheço, Guerreiro – e então o olhar dela encontrou Stark. – Você, eu reconheço. O Garoto Redbird pediu santuário para se proteger de você e do seu exército, embora sua Marca fosse azul, não vermelha.

– Você é do Outro Mundo! – Stark exclamou. – Você conheceu Kevin Redbird lá, certo? Mas quem é a outra mulher Redbird? – Stark se virou para mim. – Será que a sua irmã foi Marcada no Outro Mundo sem Kevin saber?

Eu comecei a abrir a boca, mas a voz de Oak me interrompeu.

– Tantas perguntas, mas eu não recebi nenhuma oferta de pagamento. – Oak virou a cabeça e olhou sombriamente para a árvore quebrada na qual ela tinha se materializado. – E eu fui invocada através de um lugar que foi manchado pelas Trevas e pela destruição.

– Eu sou responsável por sua invocação. Peço desculpas. Eu realmente tenho perguntas a fazer, mas eu também tenho o seu pagamento. – Eu abri a mão, mostrando a Oak a ferida ensanguentada que ainda pingava.

Oak farejou delicadamente a palma da minha mão. Ela lambeu os seus lábios carnudos, lembrando estranhamente como eu costumava fazer quando tinha noite de festival de psaghetti no refeitório, mas então ela me surpreendeu ao desviar a sua atenção do meu sangue para encontrar o meu olhar.

– Você oferece um pagamento aceitável, mas eu prefiro outra coisa.

– Que tipo de pagamento você quer? – Senti a necessidade de prender a respiração enquanto esperava pela resposta dela.

Oak virou a cabeça para olhar sobre o seu ombro para a árvore destroçada.

– O pagamento que eu quero pela informação que você busca é que você limpe a abominação que aconteceu aqui, e restaure o equilíbrio deste lugar.

Eu pisquei em choque, mas ainda consegui dizer:

– Eu posso fazer isso.

A cabeça dela girou de novo para mim e a sua voz se tornou ritmada, como se ela estivesse recitando um belo poema.

“Eu aceito o pagamento do equilíbrio a esta árvore restaurado

Grande Sacerdotisa – você prometeu isso de bom grado

Eu concordo em fornecer informação

Eu concordo com a verdade dita na canção

Pergunte, então, Garota Redbird

Mas escute bem, para que minhas palavras acate

E se você esquecer do pagamento aqui rebate

Saiba que há outras formas de pagar antes que a mate...”

Oak não atirou sangue no ar nem fez nenhum outro tipo de floreio dramático, mas, no instante em que terminou de falar o feitiço de amarração, o ar ao redor dela brilhou como se alguém tivesse soprado purpurina sobre o pátio da escola. Tentei não pensar nas outras formas com que a Magia Antiga podia me fazer pagar pela promessa e fiz a minha primeira pergunta.

– Você conhece o meu irmão, Kevin?

– Conheço. Ele se parece muito com você.

– Então, você é de outro mundo?

– Para as fadas ancestrais, todos os mundos são um só. Nós prestamos pouca atenção no véu que os separam.

– A outra mulher Redbird que você mencionou. Você pode me dizer quem ela é?

– Sim, Garota Redbird. Ela é uma Mulher Sábia, uma do seu sangue. Ela é formidável. Eu realmente me deliciei com as suas bolsas medicinais. Elas não foram pagamentos poderosos pelos nossos serviços, mas foram saborosas.

– Ela está falando de Vovó Redbird! – Stevie Rae exclamou.

Eu assenti.

– Ela também falou em bolsas medicinais... no plural. Oak, a Mulher Sábia da qual você está falando deve ser minha avó. Ela e Kevin estão lidando com Magia Antiga no Outro Mundo?

– A Mulher Sábia não invocou Magia Antiga, mas, como respeito pelo seu sangue ancestral, eu responderia se ela me chamasse e precisasse da minha assistência. Foi o Garoto Redbird. Ele requisitou nossa ajuda. – Os olhos escuros de Oak se viraram para Stark. – Ele precisava de proteção contra um Guerreiro muito parecido com este que lhe pertence.

– Kevin deve estar trabalhando com a Resistência – Stark disse.

– Onde Kevin e minha avó estavam quando eles usaram Magia Antiga? – eu perguntei.

– Em uma montanha não muito longe daqui. É lá que o povo deles se reúne e se esconde daqueles que os caçam.

– É isso. O Outro Kevin se juntou à Resistência – Darius concluiu.

– E você realmente não me viu lá em nenhum lugar? – Aphrodite perguntou ao espírito.

Oak olhou atentamente para ela.

– Não. Você não faz parte do povo do Garoto Redbird.

– Olha, que merda – Aphrodite falou.

– Por que isso faz tanta diferença? – Rephaim perguntou para Aphrodite.

Stevie Rae respondeu por ela.

– Porque Aphrodite é a razão pela qual novatos vermelhos e vampiros vermelhos no nosso mundo podem escolher manter a sua humanidade. Sem ela, todos nós seríamos monstros, como o pobre Outro Jack já foi.

O que Stevie Rae disse deu um cutucão na minha memória, e de repente eu tinha outra pergunta a fazer para o espírito.

– Oak, você realmente é feita de Magia Antiga, certo?

Quase pareceu que o espírito se segurou para não rir.

– É claro, Garota Redbird. Do que mais eu seria feita?

– Bom, eu não sei, mas estou confusa. Pensei que Magia Antiga não tomasse partido nessa batalha entre Luz e Trevas. E mesmo assim você está aqui, contando que protegeu o meu irmão e o seu povo contra o Exército Vermelho, e que o pagamento que você quer é que eu limpe as Trevas desta árvore. Isso soa como se você estivesse tomando partido... não que eu me importe. Eu estou feliz que você esteja escolhendo a Luz. Só me pergunto por quê.

– Você está parcialmente correta, Garota Redbird. A Magia Antiga não escolhe lados, já que vemos as muitas camadas que compõem a Luz e as Trevas, e nós compreendemos profundamente que ninguém é completamente bom nem completamente mau. Eu concedi santuário ao seu irmão porque aceitei o pagamento dele, e não porque fiquei do lado dele contra as Trevas. Em relação a essa árvore, os espíritos elementais não são neutros quando uma abominação é cometida contra a natureza. E essa árvore, este lugar de poder elemental, foi de fato profanado, o que é uma abominação contra a natureza. Isso tem que ser consertado.

– Isso tem sentido, Z – Stark disse. – Ela soa muito como Sgiach, quando chegamos na ilha. Ela não sairia da ilha para combater as Trevas, mas, quando as Trevas invadiram a sua ilha, Sgiach lutou contra elas.

– Ah, a Rainha Sgiach. Nós ficamos tristes pela perda do Guerreiro dela.

– Você a conhece! – eu exclamei.

– Sim. Há muitos séculos.

– Como ela está?

– Em luto profundo. – E então Oak fechou a boca, deixando claro que não ia falar mais nada sobre a Rainha Sgiach, a Grande Cortadora de Cabeças.

– Ok, então, como o meu irmão está no Outro Mundo? – eu perguntei.

– O ferimento dele se curou. Nós concedemos santuário ao povo dele na montanha. Ele brande Magia Antiga com maestria.

– E o ferimento dele? – a minha pergunta saiu como um grito agudo.

– Ele se curou – Oak repetiu, como se pensasse que eu podia ser meio devagar.

Eu queria perguntar mais sobre Kevin ter se ferido, mas Aphrodite agarrou meu pulso e falou urgentemente para mim:

– Kevin está brandindo Magia Antiga. Foi isso que você sentiu.

– Sim, eu sei.

– Z – ela parecia exasperada –, lembre-se de como é brandir Magia Antiga.

E então eu percebi o que Aphrodite estava dizendo. Kevin estava encrencado, e ele provavelmente não sabia disso.

– Oak, você pode levar uma mensagem minha para Kevin?

– O seu pagamento foi por informação. Não para ser uma mensageira.

Eu baixei os olhos para a minha mão. A ferida tinha começado a coagular, mas eu sabia que podia abri-la de novo com a unha.

– Sangue. Eu pagarei com o meu sangue para você levar uma mensagem para o meu irmão.

– Não, Sacerdotisa. Você me julga mal. Não sou sua mensageira. Não tenho nenhum compromisso com você. Você me ofereceu um pagamento por informação. Eu dei essa informação. Agora você tem que cumprir o que me deve. Faça isso, e depois talvez me peça outra tarefa. Apenas tenha certeza de que o pagamento que você oferece é atraente...

E sem fazer nenhum barulho, Oak deu as costas para nós e, em um puf de névoa, ela desapareceu no meio da árvore caída.


11

Outro Kevin

Água da chuva gotejava do teto encurvado de pedra da caverna e formava poças, lama e barro ao redor dos pés de Kevin. Ele enxugou o rosto com a manga do seu casaco e espirrou violentamente.

– Acho que eu prefiro gelo do que essa droga de garoa e névoa. Se isso continuar por muito tempo, vai virar uma primavera de Oklahoma precoce com a tríade de coisas pé no saco que sempre vêm junto: tornados envoltos em chuva, pólen de ambrósia3 e carrapatos – Kevin resmungou para si mesmo.

– Ei, levante a cabeça! Podia ser bem pior. Que inferno, seria bem pior se você não tivesse nem vindo até aqui. Pelo menos estamos seguros, aquecidos e relativamente secos aqui.

Kevin sorriu ironicamente para o vampiro baixo, mas poderosamente musculoso, que pareceu se materializar de repente ao lado dele.

– Cara, você poderia ser menos silencioso? Esse jeito lento de andar não é bom para a minha ansiedade.

– Não há nada de errado com a sua ansiedade, Kevin querido. Mas Dragon não deveria importunar você andando por aí feito um espírito. – A adorável mulher com o véu de um longo cabelo loiro com mechas prateadas tocou o ombro de Kevin delicadamente, embora o afeto no seu olhar fosse todo direcionado a Dragon. – Principalmente com a quantidade de espíritos que temos por aqui. Eles podem ficar com inveja.

Dragon Lankford levantou as mãos em sinal de rendição.

– Anastasia, meu amor, não deixe que se diga que eu afronto os espíritos. – Ele fez uma pausa e então perguntou a Kevin: – Como eles são?

– Os espíritos? – Kevin disse, enxugando mais água da chuva do seu rosto enquanto saía da entrada da caverna muito maior e melhor.

– Sim, os espíritos. Você se lembra deles, certo?

– Ah, Bryan, deixe o garoto em paz. São os espíritos dele. É claro que ele se lembra deles. Todos nós lembramos deles e somos gratos – Anastasia Lankford repreendeu o seu companheiro, apesar de dizer isso deslizando o braço em volta da cintura dele com intimidade e recostando a cabeça rapidamente em seu ombro, o que Kevin achava que tirava totalmente a bronca que estava em suas palavras. Afinal de contas, que cara não levaria um sermão da bela Sacerdotisa numa boa se ela estivesse ao mesmo tempo encostando sua bochecha macia no ombro dele?

Em meio ao silêncio crescente, Dragon Lankford estalou os dedos algumas vezes na frente do rosto de Kevin, fazendo-o piscar e dar um pulo para trás – e se dar conta de que ele estava sentado lá encarando Anastasia como um menino de escola apaixonado.

Cara, eu preciso de uma namorada. Kevin suspirou internamente e se sacudiu.

– Desculpe. Eu estava pensando.

– Percebi. – Dragon deu um olhar divertido para ele.

Kevin devolveu o olhar com o seu próprio sorriso.

– Eu estava realmente pensando em mais coisas além da beleza da sua companheira.

– Bem, obrigada, Kevin querido. – Os cantos dos olhos de Anastasia se enrugaram de modo cativante.

Dragon limpou a garganta.

– Que outras coisas são essas em que você estava pensando?

– Que eu realmente preciso ir embora. – Kevin levantou a mão quando Anastasia começou a protestar. – Não, já faz três dias. As estradas estão limpas. O Exército Vermelho não voltou. – Kevin fez uma pausa e gesticulou para o local que antes era o fundo da minúscula caverna, mas agora era uma entrada em arco perfeita para um sistema de cavernas e túneis que serpenteavam como um labirinto, adentro da montanha rochosa. Mesmo de onde ele e os Lankfords estavam, todos podiam ver pessoas – novatos azuis, vampiros e humanos – apressadas indo de lá para cá, preparando o jantar, remendando roupas rasgadas, fervendo ervas para o chá e outras tarefas caseiras. Gatos caminhavam distraídos por ali, atrapalhando o caminho, mas também mantendo a população de ratos e de toupeiras sob controle. E de algum lugar mais lá embaixo na caverna, o aroma de chili se levantou, fazendo Kevin salivar. – Está tudo funcionando. A caverna está aquecida, seca e bem ventilada, e os espíritos estão mantendo a montanha encoberta com névoa. Já está na hora de eu ir embora.

– Eu concordo – Vovó Redbird chegou até a entrada da caverna, vindo do ponto mais fundo do seu interior recém-concluído. – Está tão agradável e aquecido lá atrás! Não sei como os espíritos fizeram isso, mas o sistema de ventilação é um milagre. Quase não tem fumaça nenhuma em nenhum lugar. Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Kevin, eu concordo com você. Se você demorar muito mais para voltar para a Morada da Noite, a sua reaparição vai levantar suspeitas.

– Mas Kevin voltar já não será suspeito por si só? – Anastasia questionou. – De acordo com o que ele nos contou, um grupo inteiro de novatos e soldados do Exército Vermelho e um general vermelho desapareceram. Como você vai explicar onde esteve? E onde eles estão?

Kevin soltou um longo suspiro.

– Andei pensando nisso e tenho uma ideia. Eu vou mentir.

Dragon deu risada.

– Obviamente!

– O que você quer dizer com isso, u-we-tsi?

– Bom, se alguém me perguntar sobre o restante do meu grupo, vou dizer que não sei nada sobre isso porque o meu general, que está morto lá no mundo da minha irmã, me mandou em uma missão de reconhecimento alguns dias atrás. E eu fui. Não encontrei nada de mais, mas aí acabei me perdendo.

– Acabou se perdendo? – Dragon bufou.

– Ah, eles vão acreditar. E também não vão me perguntar mais nada sobre o general. Pense na maneira como os vampiros vermelhos agem. Mesmo os oficiais não são muito mais do que máquinas de comer. O General Dominick era o meu oficial superior, mas até ele era basicamente um babaca desgraçado e do mal, que controlava os seus soldados com ameaças e medo. Para um vampiro vermelho, ele era considerado esperto, mas na verdade ele não pensava muito além de quem nós poderíamos atacar em seguida. – Kevin balançou a cabeça de desgosto. – Acredite em mim, sei tudo sobre isso. Eu estou me escondendo no Exército Vermelho há quase um ano, e nenhum deles jamais suspeitou que eu fosse diferente.

– Mas, Kevin, você tem um cheiro diferente agora – Anastasia lembrou.

– Essa foi a última coisa que eu andei tentando resolver. Tenho quase certeza de que nenhum vampiro azul vai prestar atenção suficiente em mim para reparar que eu não tenho um fedor.

– Mas “quase” não é bom o bastante, u-we-tsi.

– Os vampiros vermelhos vão reparar, não vão? – Anastasia perguntou delicadamente.

– Acho que eles podem reparar. Bom, não os soldados comuns, mas alguém como um dos generais vermelhos... tenho quase certeza de que iriam notar sim.

– O que Kevin pode fazer em relação a isso? – Dragon perguntou.

– Bom, eu posso pensar em jogar um feitiço sobre ele... algo que tenha um cheiro junto – Anastasia refletiu. – Mas qualquer Sacerdotisa que cruzar o caminho dele poderia facilmente perceber o rastro de energia do feitiço. E, se você estiver em qualquer lugar perto de Neferet, ela reconheceria o meu feitiço imediatamente.

– Então essa ideia está definitivamente fora de questão – Dragon afirmou.

– Que tal algo mais simples? – Vovó Redbird sugeriu. – Kevin, qual a intensidade que esse cheiro precisa ter?

Kevin deu de ombros.

– Não tenho certeza. Quando eu era um vampiro vermelho, nunca percebia o fedor.

– Depende do tipo de vampiro vermelho – Dragon explicou. – Os soldados fedem como cadáver e bolor. Já os oficiais, especialmente os oficiais de patentes mais elevadas, não possuem um cheiro tão ruim.

– Então, um oficial, como o Kevin, não tem o aroma muito mais forte do que o de um perfume de mulher? – Vovó perguntou.

– Acho que é uma boa comparação – Dragon respondeu. – Se a mulher exagerou e colocou perfume demais.

– Bom, u-we-tsi, isso vai parecer repugnante, mas acho que você deveria usar o sangue de um vampiro vermelho como se fosse perfume.

– Você quer que eu passe perfume de sangue em mim?

Vovó sorriu.

– Talvez funcione melhor se espalhar um pouco de sangue na sua pele em lugares que não possam ser vistos.

– Que nojento – Kevin resmungou.

– Porém prático – Anastasia disse.

– Sim, acho que vocês estão certas – Kevin falou. – Cara, eu queria poder fazer só uma tentativa sem o perfume de sangue fedido.

– Você não pode – Dragon afirmou. – Eles vão descobrir você, e vão nos descobrir em seguida.

– Eu jamais contaria a eles onde vocês estão! – Kevin protestou.

Anastasia colocou a mão no ombro dele.

– Não por livre e espontânea vontade, mas depois que eles torturarem você e o deixarem passar fome... bom, vamos apenas dizer que é melhor ficar fedido.

– Sim, você está certa. Então vou voltar para a estação hoje à noite, depois de conseguir um pouco de sangue de vampiro vermelho. Não vou gostar disso. – Kevin estremeceu e então estalou as juntas dos dedos. – Mas vou fazer tudo que tiver de ser feito. Ok, eu já tenho um plano, mas quero a contribuição de vocês.

– Claro – Anastasia disse, e os quatro foram até os bancos de pedra que os espíritos haviam esculpido de algum modo na parede da caverna. O corvo enorme que nunca ficava longe da Sacerdotisa voou para dentro da caverna e esticou suas asas escuras no ar frio, aterrissando em um afloramento rochoso em cima de Anastasia. – O que você está pensando, Kevin?

– Nós precisamos de Aphrodite.

– Aphrodite? – Dragon grunhiu.

– Antes que você reclame, apenas pense no que eu contei antes. O que aconteceria se não existisse mais o Exército Vermelho para Neferet usar como uma máquina de comer em tempos de guerra?

Dragon suspirou e assentiu.

– Sim, é verdade. Sem o Exército Vermelho, não seria mais tão fácil para Neferet ganhar a guerra.

– Exatamente – Kevin concordou.

– Então você deve saber que o risco compensa – Vovó Redbird disse.

– Certo. Vou pedir para Johnny B levar vocês até onde nós escondemos o Polaris. – Dragon voltou seu olhar sombrio para Vovó Redbird. – Sylvia, quero que saiba que você tem um lugar aqui conosco se preferir ficar.

– Obrigada, Dragon, mas eu preciso voltar para a minha fazenda. Eu sou protegida, então não corro perigo e posso ajudar mais lá fora do que me escondendo aqui.

– Como eu vou enviar mensagens para vocês aqui? – Kevin perguntou. – Vou tentar voltar para cá o maior número de vezes que conseguir, mas tenho que ter cem por cento de certeza de que ninguém está me seguindo. E se eu tiver informações que vocês precisam, mas não conseguir escapar?

– Isso é fácil – Anastasia respondeu, levantando os seus grandes olhos azuis na direção do corvo. – Vou enviar Tatsuwa para encontrá-lo todo dia. Ele vai voar em círculos sobre você. Se você tiver uma mensagem para nós, escreva em um pedaço de papel e dê a ele. Tatsuwa vai trazer a mensagem para mim. Da mesma forma, se nós tivermos uma mensagem para enviar, ele vai levá-la até você.

– Hum, como ele vai me encontrar? – Kevin deu uma olhada rápida para o corvo, e o grande pássaro grasnou para ele.

– Ah, você não precisa se preocupar com isso. Se você estiver ao ar livre, Tatsuwa vai encontrá-lo. A visão dele é tão aguçada quanto a sua inteligência.

– Anastasia, minha querida, eu já tinha visto o seu corvo adorável antes, e ele parece estar sempre perto de você, mas eu não tinha ouvido antes você o chamando pelo nome até recentemente. Eu queria dizer que gostei que você escolheu como nome dele uma palavra indígena – Vovó Redbird falou, aproximando-se do pássaro o bastante para acariciar suas penas pretas e brilhantes.

– Tatsuwa significa corvo em Cherokee? – Anastasia pareceu surpresa.

– Sim – Vovó Redbird respondeu. – Se você não sabia disso, como foi que deu esse nome a ele?

O sorriso brilhante de Anastasia iluminou a caverna quando ela olhou carinhosamente para o pássaro.

– Eu não o nomeei. Ele me disse o seu nome, não foi, Tatsuwa?

– Tatsuwa! – o corvo falou tão claramente quanto a Sacerdotisa que ele tinha escolhido como sua.

– Às vezes eu acho que os dois são mais próximos do que eu e ela – Dragon resmungou.

– Ciumento! – Tatsuwa grasnou.

Anastasia riu musicalmente.

– Ah, Tatsuwa, pare de provocar Bryan.

O pássaro saltou do seu poleiro e andou gingando até Anastasia, aconchegando-se ao lado dela, enquanto ela usava um dedo longo e fino para fazer carinho na penugem em cima do seu bico.

– Quantas palavras ele sabe falar? – Kevin perguntou, totalmente intrigado com o estranho pássaro negro.

– Ah, Tatsuwa não apenas imita palavras. Ele realmente fala – Anastasia explicou. Ela beijou o topo da cabeça do grande pássaro, e Kevin pôde jurar que ouviu a criatura ronronar.

– Um ta-tsu-wa é um aliado poderoso – Vovó Redbird afirmou. – Quando eles se ligam a alguém, essa ligação é para a vida toda.

– Se ao menos eu soubesse disso quando o encontrei, congelando e quase completamente sem penas no inverno passado – Dragon resmungou.

– Oh, Bryan, você nunca teria deixado ele sofrer e ficar para morrer – sua bela companheira falou. – Tatsuwa e eu somos gratos pelo seu bom coração.

– Obrigado, Bryan – o pássaro disse, soando igual Anastasia de um jeito desconcertante.

– Eu estabeleci o limite de ele não dormir conosco – Dragon disse.

– Meu amor, você sabe que ele prefere o ninho dele.

– Feito com os seus cabelos.

– Sério? – Kevin perguntou para Anastasia.

– Apenas parcialmente. O resto é feito com um dos meus velhos suéteres. E ele não arrancou o cabelo da minha cabeça. Ele é ótimo em limpar as minhas escovas.

Os olhos da Sacerdotisa faiscaram quando ela beijou o topo da cabeça negra lustrosa do corvo de novo.

– Humpf – Dragon resmungou. Então ele voltou seu olhar sarcástico para Kevin. – Mas o que tudo isso significa é que o pássaro é bizarramente inteligente e vai fazer qualquer coisa que Anastasia pedir.

– Ok, bom, acho que ele vai ser o meu celular então. É estranho, mas não tão estranho quanto o fato de ele dormir em um ninho feito com os cabelos da sua companheira. – Kevin levantou e se alongou, fazendo só uma pequena careta ao sentir uma fisgada na cicatriz do seu ferimento. – Você está pronta, Vó?

– Totalmente. – Vovó Redbird se levantou e fez mais uma longa carícia no corvo antes de abraçar Anastasia e depois o companheiro dela. – Obrigada por confiarem em mim.

– E em mim. – Kevin estendeu a mão para Anastasia, que sorriu docemente antes de abraçá-lo e de beijar sua bochecha.

– É tão fácil confiar em você quanto na sua avó – disse a Sacerdotisa.

– Bom, só depois que a gente supera essa sua Marca vermelha. – Dragon também puxou Kevin para um abraço com tapinha nas costas. – Fique em segurança, Kevin Redbird. Você pode ser a nossa única esperança de acabar com essa guerra sem nos render e condenar o nosso mundo às Trevas.

– Ei, sem pressão, certo? – Kevin se esforçou para não estalar os nós dos dedos.

Quando ele e sua avó saíram da caverna seguindo Johnny B, Tatsuwa passou voando por eles e então Kevin ouviu o pássaro chamando no vento:

– Garoto Redbird... Garoto Redbird... Garoto Redbird...

3 Causador de muitos casos de alergia no hemisfério norte. (N.T.)


12

Outro Kevin

– U-we-tsi, você tem certeza disso? – Vovó Redbird perguntou enquanto se inclinava sobre o assento, procurando algo dentro da grande cesta que ocupava a maior parte do banco traseiro do carro. Ela havia parado em uma das vagas na parte mais escura do estacionamento da Utica Square, bem no fundo.

– Não, mas eu tenho certeza de que você não pode me levar até a escola. Você está sob a proteção de Neferet, mas nenhum humano racional jamais iria entrar em um carro com um vampiro vermelho, a menos que estivesse prestes a ser devorado.

– Ah, aqui está! Eu sabia que tinha um desses aqui atrás. Coloque isso. Tem um capuz e deve ser grande o bastante para puxar para baixo para cobrir o seu rosto. – Vovó entregou a ele um velho moletom escuro que tinha um leve cheiro de lavanda, e ele o vestiu. Então ela abriu a cesta de novo e pegou uma bolsa de couro com uma tira grossa para colocar sobre o ombro. – Aqui, pegue isto também. Coloquei aí dentro algumas coisas que acho que você pode precisar. E, não, eu não quis dizer que eu deveria levá-lo de carro até lá. Entendo que isso é impossível e você pode facilmente ir a pé até a Morada da Noite. Estou preocupada com o seu perfume de sangue.

Vovó Redbird franziu o nariz quando disse as últimas palavras.

Kevin riu, colocou a tira da bolsa sobre o ombro e a abraçou.

– Você não precisa se preocupar com isso. Já pensei em tudo.

– Sei que isso é algo que você precisa fazer, mas me deixa muito angustiada pensar em você matando um novato ou vampiro vermelho.

– Vó, eu não vou matar ninguém.

– Então, você vai apenas cortar um vampiro vermelho para pegar o sangue de que precisa?

– Vó, eu tenho uma ideia melhor que essa. Vou visitar o necrotério da escola.

Vovó Redbird o abraçou forte.

– Oh, u-we-tsi, fico tão feliz em ouvir isso! – Então ambos riram como criancinhas por causa do ridículo de ficar feliz por alguém visitar um necrotério.

Finalmente, Kevin deu um beijo na bochecha dela.

– Prometa que não vai fazer nada que possa te machucar.

Ela segurou o rosto dele com as mãos e sorriu amorosamente, olhando nos olhos dele.

– Não posso prometer isso, mas prometo que vou ser sábia e pensar um pouco antes de agir.

– Acho que vou ter que me contentar com essa promessa.

– Acho que sim. – Vovó o beijou. – Vá com a proteção da Grande Deusa, u-we-tsi, e lembre-se sempre de como eu tenho orgulho de você.

Kevin odiou deixar sua avó para trás. Ele teve que se esforçar para não começar imediatamente a imaginar hordas de vampiros vermelhos insaciáveis atacando a sua fazenda para devorá-la por ajudar a Resistência.

Vovó está sob a proteção de Neferet.

Ninguém no Exército Vermelho ou Azul sabe que ela faz parte da Resistência.

Eu realmente preciso relaxar.

Pensamentos sobre a sua avó e a Resistência ficaram revirando sem parar na cabeça de Kevin enquanto ele cortava caminho pela Rua Vinte e Dois e seguia pela Avenida Yorktown em direção ao lado leste da Morada da Noite.

Era tarde – apenas algumas horas antes do amanhecer –, mas ele não estava preocupado. Visitar Zoey tinha dado a ele uma percepção maior da Morada da Noite, e ele sabia onde poderia se esconder em segurança do sol e de vampiros curiosos. Se os dois mundos fossem realmente mais parecidos do que diferentes. Se esta Morada da Noite não tiver sido construída como a de Zo...

Kevin balançou a cabeça. Não tem motivo para ficar pessimista a não ser que eu precise. Se tudo mais falhasse, ele sempre podia se fingir de bobo e ser apenas outro vampiro vermelho que tinha perdido o ônibus de antes do amanhecer para os túneis da estação. Com sorte, os vampiros azuis o deixariam ficar em um dos quartos escurecidos no dormitório e não iriam atirá-lo no meio da rua para fritar.

O muro de pedra que rodeava a Morada da Noite surgiu subitamente à sua direita, parecendo austero, intimidador e basicamente nada parecido com o da Morada da Noite iluminada e receptiva que a sua irmã comandava.

Por um instante, uma saudade profunda apertou, e Kevin desejou mais do que qualquer coisa que ele pudesse sair correndo para o Woodward Park e descobrir um jeito de reabrir o portal entre os mundos e deslizar de volta por ele – para nunca mais voltar.

– Mas e se eu realmente fizesse isso? O que iria acontecer com Vovó aqui? Ela nunca iria parar de se preocupar comigo e nunca iria sair do luto por perder Zo e eu – ele disse a si mesmo.

E agora havia Dragon, Anastasia e o restante da Resistência. Eles iriam achar que ele havia sido pego e morto, ou que tinha mentido para eles. Provavelmente iriam abandonar a caverna na montanha, o que seria realmente terrível. Não, Kevin não podia ir embora. Não importava o quanto ele quisesse isso.

Postes de rua feitos para parecer que eram do começo dos anos 1900, inclusive com as chamas tremulantes do gás, projetavam sombras em movimento pelo muro enorme. Kevin atravessou a Yorktown para se juntar a elas enquanto sua visão sobrenaturalmente aguçada começava a vasculhar a parede, procurando a pedra antiga e retangular em que estava inscrito 1926 – o ano em que o muro que circundava a escola havia sido terminado. Ele estalou as juntas dos dedos nervoso enquanto procurava, sem nem ter certeza de que ela estava mesmo ali. Zo tinha contado a ele sobre essa pedra – que era um tijolo específico no muro leste da escola que, na verdade, era parte de um sistema de alçapão acionado por molas. Esse tijolo no muro não parecia muito diferente dos outros, mas ela disse que do lado de fora ele estava marcado e que era através desse alçapão que novatos escapavam para fora do campus há quase um século.

Pelo menos era assim no mundo dela.

Aquele era o primeiro teste – a primeira vez em que ele iria ver o quanto os dois mundos eram parecidos em sua estrutura.

Quando os olhos dele avistaram a inscrição 1926, ele sentiu uma onda de alívio. O tijolo estava na altura dos seus olhos. Ele respirou fundo e o pressionou.

Houve um clique baixo quando algum mecanismo se abriu, e então o muro pareceu dar um suspiro ao aparecer um vão – com espaço apenas suficiente para alguém passar apertado por ele – naquela obra de alvenaria antes aparentemente perfeita.

Depois que entrou, ele empurrou o tijolo de novo e a porta se fechou, e então Kevin fez uma pausa. Ele se agachou contra o muro, desejando que a escuridão antes do amanhecer estivesse menos límpida e com mais névoa, chuva ou até gelo, mas, depois que o seu olhar fez uma varredura pelos jardins da escola, ele começou a relaxar. Aquela não era a Morada da Noite da sua irmã. Não havia garotos humanos se misturando aos novatos, azuis e vermelhos, brincando pelo jardim. Tudo o que Kevin viu foi um gramado meticulosamente bem-cuidado, alguns gatos furtivos e Guerreiros Filhos de Erebus de guarda em cada uma das portas do prédio principal.

Kevin definitivamente iria evitar o prédio principal.

Mantendo-se perto o bastante do muro para se misturar às sombras bruxuleantes da iluminação a gás, Kevin começou a correr. Ele seguiu o muro todo até passar pelo Templo de Nyx. Ao passar por ali, ele lançou um olhar nostálgico naquela direção. Ele nunca se esqueceria da sensação de amor e aceitação que experimentou com Zoey e os seus amigos dentro do Templo da Deusa. Esse lugar parecia quase exatamente igual a esse templo, embora não houvesse nem perto da mesma quantidade de velas brilhando através das janelas e ele não sentisse nem um pingo de aroma de baunilha ou lavanda.

É Neferet. Ela não está honrando a Deusa como Zo faz.

Esse pensamento deixou Kevin irritado e muito triste.

Logo depois do Templo de Nyx, o muro começou a fazer uma curva para a direita, onde ele corria paralelo à Rua Utica, e não muito depois disso Kevin avistou o prédio solitário que ele procurava, construído com a mesma pedra do muro e do resto da Morada da Noite, só que esse edifício era diferente.

Não que parecesse muito diferente. Ele era pequeno – realmente uma versão em miniatura do Templo de Nyx. Tinha um jardim de meditação estilo japonês adjacente que era emoldurado em três lados por um mausoléu, que guardava os corpos cinzentos dos novatos azuis que haviam rejeitado a Transformação.

– E apenas dos novatos azuis – Kevin murmurou para si mesmo. – Os novatos vermelhos são retirados do necrotério, queimados e então as suas cinzas são jogadas fora. Literalmente. Como lixo mesmo, eles são coletados com o resto do lixo da escola toda semana. Espero que hoje não tenha sido o dia da coleta.

Kevin se aproximou do mausoléu. Ele teria que atravessar o jardim de meditação para entrar no necrotério em si, mas ele não previa nenhum problema nessa hora. O necrotério não era exatamente um lugar efervescente da Morada da Noite. Na verdade, dificilmente alguém ia até lá, já que Neferet encorajava os novatos a “não ficar de luto por aqueles que se mostraram indignos”.

A areia do jardim de meditação continuou silenciosa sob os pés de Kevin e, apesar de a área parecer deserta, ele ficou satisfeito com a existência de biombos de madeira decorados que seccionavam o jardim, criando alcovas particulares de sombras.

Não muito longe, ele conseguiu ver a porta de madeira arqueada que era a entrada para o necrotério. Kevin estava quase deixando que a tensão saísse dos seus ombros quando, pelo canto do olho, percebeu um movimento.

No meio do jardim de meditação havia uma bela estátua de Nyx. Aquela estátua em particular retratava Nyx como a deusa piedosa Kwan Yin. Feita de um onírico ônix branco, sentada com as pernas cruzadas em posição de lótus, ela estava acesa por dentro e era a única luz no sereno jardim.

Na frente da estátua havia um banco de madeira simples, muito parecido com os bancos dentro de cada alcova de meditação, porém maior. No banco estava sentada uma figura solitária, com o rosto levantado, contemplando a Deusa.

Merda! Uma Sacerdotisa!

Kevin se enfiou rápida e silenciosamente na alcova de meditação mais próxima. Ele estava analisando a mulher sentada no banco, tentando ter uma visão mais clara do seu rosto e pensando que ela parecia familiar, quando outra pessoa entrou apressada no jardim, vindo da direção oposta, como se estivesse chegando do prédio principal da escola. Ela caminhou a passos largos até o banco, fazendo uma grande encenação ao baixar os olhos para a Sacerdotisa que estava sentada sozinha. Kevin se espremeu no canto da sua alcova e rezou para que nenhuma das duas o descobrisse ali.

– Aí está você! Um dos Guerreiros disse que viu você vindo nesta direção, mas eu tinha certeza de que ele estava errado. Eu inclusive falei isso para ele. Eu disse: “Por que a adorável Aphrodite iria querer passar um tempo no jardim do necrotério?”. Mas, como não consegui encontrar você em lugar nenhum e como você se recusa a atender o seu telefone, eu resolvi vir aqui procurar você.

Kevin sentiu um tranco de choque elétrico. Aquela era Aphrodite! E então a sua mente alcançou o seu choque quando ele reconheceu a voz da segunda Sacerdotisa.

O som do suspiro de Aphrodite atravessou a areia até Kevin.

– Olá, Neferet. Respondendo à sua pergunta, eu venho bastante aqui porque dificilmente alguém está por aqui. Gosto de ter tempo para pensar. Sozinha. É por isso que o meu telefone está desligado.

– Minha querida, isso seria aceitável se você fosse qualquer outra Sacerdotisa, mas você não é. Você é minha Profetisa.

– Não é como se eu estivesse tendo uma visão neste exato momento.

Kevin sorriu ao ouvir a voz sexy e sarcástica de Aphrodite. Ele raramente tinha visto Neferet tão de perto. Ele nunca tinha falado com ela, mas havia testemunhado como os outros vampiros a tratavam – com respeito e uma dose segura de medo. Aphrodite, não. Aphrodite falava com Neferet como se elas estivessem no mesmo patamar, e ela estivesse irritada por ter sido interrompida.

– Neste momento você não está, mas você teve uma visão mais cedo.

Aphrodite se levantou e encarou a Grande Sacerdotisa mais alta.

– Você colocou espiões para me observar?

– Espiões? Não. Só aqueles que são leais e que cumprem o seu papel de me informar sobre qualquer coisa que eu possa considerar importante, e o fato de a minha Profetisa ter uma visão e esconder isso de mim definitivamente é importante.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo, o qual capturou a luz suave da imagem da Deusa e brilhou como fios de ouro.

– Ah, que merda! Eu não estou escondendo nada. Eu achei seriamente que vir até o necrotério poderia ajudar. Não estou vendo nada além de morte nas minhas visões. A visão de hoje não foi diferente. Você quer saber o que eu vi? Novatos e vampiros azuis sendo massacrados em um campo por uma horda nojenta de vampiros vermelhos. Na verdade, a única coisa que eu posso dizer especificamente, além de quem estava massacrando quem, é que era um campo de trigo de inverno que tinha acabado de ser cortado. Tinha um cheiro muito bom, até o fedor dos vampiros vermelhos tomar conta de tudo. Nada mais estava muito claro. Apenas morte, sangue, massacre e pânico em um campo infestado de soldados vermelhos.

– Qual campo? Onde? – Neferet falou rispidamente.

– Eu não sei! Neferet, eu continuo tentando fazer você entender que eu sempre tenho as minhas visões do ponto de vista de alguém que está morrendo, normalmente de um jeito horrível. Por isso que é tão difícil compreendê-las. Portanto, como as minhas malditas visões são tão cheias de morte, faz sentido que eu possa encontrar uma resposta perto do necrotério. Tipo, você acha que eu quero dar uma voltinha aqui? Cai na real. Este lugar não é o meu estilo.

– Oh, então você quer a real? – Neferet disse com voz baixa. Kevin sentiu a sua alma estremecer quando Neferet deslizou para mais perto de Aphrodite, fazendo a jovem vampira dar um passo para trás na areia do jardim. – O que é real é que há um movimento de Resistência do meu próprio povo lutando contra mim. O que é real é que a cada dia novatos azuis, vampiros azuis e até humanos fracos e repugnantes desertam nosso exército. Eles vão embora! Como se eu não soubesse o que é melhor para eles! Como se eu não fosse a Grande Sacerdotisa!

– Bom, você realmente não é a Grande Sacerdotisa de nenhum humano – Aphrodite respondeu.

Rápida como uma víbora, Neferet atacou Aphrodite. O tapa ecoou por aquele espaço sereno, e Kevin se encolheu em um reflexo de empatia.

– Nunca diga o que eu sou ou deixo de ser! Tudo o que eu quero é que você me diga como alcançar o fim da Resistência. Se você não consegue fazer isso, você tem menos utilidade para mim do que um vampiro vermelho raivoso e recém-Transformado. Pelo menos eles lutam por mim. Refresque a minha memória, minha querida, o que é que você faz por mim?

– Eu sou sua Profetisa.

– Mesmo? As suas visões se tornaram nada mais do que disparates confusos e sem sentido.

– Mas eu só posso ver o que Nyx permite que eu...

– Talvez você conseguisse trabalhar melhor se rastejasse menos diante de Nyx e passasse mais tempo servindo a sua Grande Sacerdotisa! – Neferet a interrompeu.

– Neferet, eu sou uma Profetisa de Nyx. O meu poder vem da Deusa. Se eu não rastejar, como você diz, então eu não tenho nenhuma visão.

– Então talvez você deva procurar poder em outro lugar, minha querida. Ou você prefere que eu a envie junto com o Exército Vermelho no próximo confronto deles contra nossos inimigos? Melhor ainda, alguns generais meus sugeriram que eu deveria ser mais presente para meus soldados vermelhos. – Neferet fez uma pausa e Kevin viu que ela estremeceu de asco. – Mas eu simplesmente não suporto o cheiro e a burrice deles. Eles realmente não são nada além de animais raivosos. Talvez você seja a minha resposta para o pedido dos generais. Talvez você deva transferir as suas coisas para a estação e virar a Profetisa deles. Você pode até ir para a guerra com eles. Ver a morte de verdade em vez de suas visões complicadas pode ser uma experiência de iluminação para você! Você pode se acostumar com isso e começar a ser capaz de pensar um pouco durante as suas visões.

Kevin ficou estarrecido com as palavras de Neferet. A estação e os túneis eram pouco mais do que celas para o Exército Vermelho e os novatos vermelhos recém-Marcados. Tudo fedia lá embaixo – até Kevin tinha se sentido enojado. E era imundo – realmente asqueroso, com restos de humanos em decomposição espalhados como bonecas quebradas gigantes, que o exército comia. Os novatos e vampiros vermelhos que habitavam aquele lugar não eram muito distantes de animais. Kevin odiava só imaginar o que ser forçada a viver com eles faria com Aphrodite.

– Eu vou para onde você mandar, mas prometo que estar cercada pelo Exército Vermelho não vai ajudar as minhas visões em nada – Aphrodite tentou soar forte, como se ela particularmente não se importasse para onde Neferet iria enviá-la, mas Kevin conseguiu escutar o pânico dela, levemente encoberto pela indiferença.

– Você tem que descobrir o que vai ajudar as suas visões! Se você não começar a me dar alguma informação que eu possa usar, vai perder os seus aposentos suntuosos, o seu serviço de quarto e o seu abastecimento inesgotável de champanhe e de vampiros azuis viris com quem você vadia o dia todo. Tudo isso – Neferet fez um gesto nervoso que abarcou o jardim sereno, o terreno da escola e o pequeno e organizado necrotério – será substituído por túneis úmidos, fétidos e morte, já que eu estou começando a acreditar que os seus dons são relevantes apenas para os mortos. Então, da próxima vez que nos falarmos, espero que você consiga lembrar de mais detalhes a respeito de sua última visão. Ou pode ir arrumando a sua mala Louis Vuitton e se preparando para a mudança.

Com um rodopio do seu vestido longo de seda, Neferet deu as costas a Aphrodite e saiu com passadas firmes, deixando a sua Profetisa em pé sozinha nas areias do jardim de meditação iluminadas pela lua.

Kevin permaneceu ali, observando Aphrodite silenciosamente. Assim que Neferet saiu, os ombros da jovem Profetisa desabaram. Ela esfregou a lateral do rosto onde havia sido atingida, e Kevin teve quase certeza de que ouviu ela segurar um soluço.

E então ela fez algo que Kevin não esperava de jeito nenhum. Aphrodite não foi embora. Ela não voltou para o aconchego e a opulência dos seus aposentos no prédio principal da Morada da Noite. Em vez disso, ela se virou e por um instante ele pensou que ela estava vindo na direção da sua alcova. A mente de Kevin zuniu, freneticamente testando e descartando mentiras que ele poderia contar, desculpas que ele poderia dar por estar ali.

Ela parou e desabou no banco em que estava sentada antes de Neferet a interromper. Com um suspiro que soou como se tivesse saído das profundezas da sua alma, ela tirou do pé direito um sapato de salto brilhante que parecia muito desconfortável e começou a fazer pequenos desenhos na areia com o que ele podia ver claramente que era o seu dedão, a unha pintada de rosa.

– Nyx, ela é tão horrível! – Aphrodite disse para a estátua. – Talvez eu deva dizer para Neferet que ela está ficando velha. Ela não está, claro, aquela vaca. Mas, se eu começar a perguntar se ela está dormindo direito e mencionar pés de galinha e peitos caídos, sabe, no geral... não sobre ela especificamente, ela vai ficar tão paranoica que pode ser que ela foque mais no espelho dela do que em mim – ela soltou outro longo suspiro derrotado. – Não quero contar para ela tudo que eu vejo. Eu... eu não suporto saber que sou a causa de mais mortes. Lenobia, Travis e todos aqueles cavalos... – A voz de Aphrodite se perdeu em um soluço. Então ela enxugou os olhos com raiva e levantou a cabeça para a Deusa. – Nyx, ela é a sua Grande Sacerdotisa, mas eu simplesmente não entendo. Ela é terrível. Eu a odeio mais do que odeio aquelas lojas de departamento baratas e horríveis onde tudo está sempre em liquidação e os caipiras que compram lá precisam ficar remexendo em araras e mais araras cheias de porcarias bregas sem o benefício de provadores com lustres de cristal e taças de champanhe.

Ela estremeceu delicadamente.

Pego completamente desprevenido pela comparação muito bizarra e muito no estilo de Aphrodite, Kevin riu alto.

A atitude de Aphrodite mudou instantaneamente. A sua espinha ficou ereta. Ela atirou o cabelo para trás e franziu os olhos azuis que faziam uma varredura no jardim de meditação.

– Quem é que está aí?

Kevin congelou. Então, lembrando do moletom que Vovó tinha lhe dado, ele puxou o capuz sobre a cabeça o máximo que podia – esperando fortemente que o capuz e as sombras fossem o bastante para encobrir a sua tatuagem vermelha.

Aphrodite levantou, colocando o seu pé arqueado de volta no sapato brilhante. Ela deu alguns passos no jardim de meditação, na direção exata da alcova de Kevin.

– Eu já perguntei, quem está aí?

– De-desculpe. Eu não queria perturbar você – ele gaguejou, pensando que era mais inteligente admitir a sua presença do que ser descoberto fugindo nas sombras.

Ela marchou até a alcova de meditação e parou diante dele, com as mãos no quadril.

– O que é? Que merda você quer de mim? Saber o futuro? Conhecer a Deusa? Me conhecer? – ela zombou dele, e o seu rosto bonito virou algo maldoso e cheio de ódio. – Bom, você está sem sorte. Não posso ajudar você com nenhuma dessas coisas.

– E-eu não estou aqui porque quero alguma coisa de você! – Kevin falou honestamente, sem pensar. A sua mente estava acelerando como um carrinho de bate-bate no Festival Rooster Days,4 chocando-se contra ideias e quicando quando ele as rejeitava.

– Ah, é claro que não. Todo mundo quer alguma coisa de mim – Aphrodite afirmou, e Kevin viu que um lampejo de emoção bruta, com amargura e repleta de dor, cruzou o rosto dela. – Quanto tempo faz que você está aí?

Ele abriu a boca para tentar responder, mas ela não deu chance para ele começar.

– Você trabalha pra ela? Ela colocou você aqui para me espionar? Se foi isso, escute aqui e escute bem: eu não ligo se você vai contar para ela que porra eu falei. Eu vou mentir. Vou dizer a ela que estava sentada rezando para Nyx e que você me interrompeu bem na hora em que eu estava tendo uma resposta da Deusa. Ela vai acreditar em mim porque, não importa o quanto ela goste de transar com homens, Neferet, na verdade, não gosta de homens. E ela nunca, jamais confia neles. Então, seja lá quem você for, se for falar de mim para Neferet, ela vai acabar acreditando em mim e odiando você, porque ela precisa de poucos pretextos para odiar qualquer homem.

Kevin ficou atordoado com a profundidade da crueldade na voz dela. A Profetisa linda e triste, que apenas alguns segundos atrás estava sentada melancolicamente em um banco conversando com a sua Deusa, tinha se transformado em alguém detestável.

Devagar, de maneira bem clara, Kevin disse:

– Ah, eu acredito. Você obviamente sabe do que está falando. Vocês se parecem muito.

Aphrodite deu um solavanco para trás, como se ele tivesse dado outro tapa na sua bochecha.

– Quem é você?

Kevin se pressionou contra a alcova, desejando que ele pudesse se tornar uma sombra.

– Eu não sou ninguém. Neferet não me mandou até aqui. Eu não tinha ideia de que ela estaria aqui. Eu não tinha ideia de que você estaria aqui.

– Então que diabos você quer? – Aphrodite perguntou de novo.

Ela parecia tão fria, tão diferente da sua Aphrodite, que a irritação de Kevin começou a cozinhar em fogo brando junto com o seu medo. Se ela gritasse, um Guerreiro Filho de Erebus certamente a ouviria. Ele seria arrastado para fora dos jardins por perturbar a Profetisa de Neferet e se tornaria o centro das atenções – sem nem ter seu perfume fedido de sangue.

Ele seria descoberto como alguém diferente, e isso seria péssimo em vários níveis. Então ele endureceu a sua voz e abasteceu a sua irritação com o seu medo.

– Ei, eu já disse. Não quero nada de você. Não queria nem estar aqui... neste lugar horrível que tem cheiro de morte neste maldito mundo horrível!

Ele pôde ver que as suas palavras a abalaram. Houve um longo silêncio enquanto ela ficou encarando a sombra sentada que era Kevin. Quando ela falou, a sua voz tinha perdido aquela ponta de amargura, e a sua pergunta simples o surpreendeu.

– Você perdeu alguém que amava?

Aquela pergunta penetrou na mente dele, trazendo com ela imagens de um mundo perdido, uma vida deixada para trás. Zoey, rindo com a sua Horda Nerd. Vovó Redbird, dando a ele uma bolsa medicinal e tentando não chorar ao dizer adeus. A Aphrodite do outro mundo, sorrindo para ele enquanto os seus olhos faiscavam como pedras preciosas com humor e aquele seu tipo especial e sarcástico de inteligência. Damien e Jack, de mãos dadas e parecendo tão, mas tão felizes e apaixonados, e novatos vermelhos e azuis divertindo-se pacificamente na neve, rodeados por gatos e amor. Sempre o amor.

– Sim – ele perdeu a voz e teve que limpar a garganta antes de continuar. – Sim. Eu perdi o meu mundo inteiro.

O rosto dela mudou. Ele se suavizou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto impecável, e Kevin pensou que ele nunca tinha visto ninguém mais triste nem mais bonita.

– É, eu também. Eu me perdi. Sinto a mesma coisa.

Então ela se virou e saiu do jardim de meditação sem nem mais uma palavra ou olhar na direção dele.

4 O festival mais antigo de Oklahoma. (N.T.)


13

Outro Kevin

Kevin tomou uma decisão rapidamente. Ele poderia ir embora – imediatamente. Poderia fugir, correr para a Utica Square, ligar para Vovó e voltar para a montanha. Ou ele podia levantar a bunda daquele banco no qual estava praticamente colado e entrar no necrotério para coletar um pouco de sangue fedido de vampiro vermelho para camuflar o seu cheiro e continuar com o trabalho que ele havia se disposto a fazer.

Ele sabia o que Zoey faria.

Kevin se mexeu o mais rápido e o mais silenciosamente possível. O seu olhar vasculhou a área enquanto os seus ouvidos se esforçaram para escutar até o menor dos sons de alguém se aproximando enquanto ele atravessava o jardim de meditação em direção à porta do necrotério. Quando ele chegou lá, não hesitou. Kevin abriu a porta e entrou.

Ele já tinha estado no necrotério apenas uma vez. Foi com o General Dominick logo antes de ele ser promovido a tenente. Eles haviam tido uma briga com um grupo de humanos que haviam formado uma milícia a leste de Broken Arrow, no meio de algumas terras do estado que já haviam sido um campo de escoteiros no passado, mas que agora era um lugar desleixado, com trilhas abandonadas e cobertas de vegetação. Os humanos tinham se recusado a desistir. Neferet enviou o Exército Vermelho.

Foi um massacre brutal. Todos os humanos foram mortos. O Exército Vermelho perdeu uma dúzia de soldados. O general havia pedido por voluntários para trazer os corpos dos vampiros vermelhos que tombaram de volta para a Morada da Noite, e Kevin imediatamente se candidatou, pensando que dirigir um caminhão militar cheio de vampiros mortos empilhados era muito melhor do que ficar lá e se juntar ao resto do exército enquanto eles despedaçavam os humanos e os devoravam. O General Dominick havia ficado impressionado com a habilidade de Kevin de liderar essa missão e imediatamente o promoveu de cargo.

Assim, Kevin sabia exatamente aonde estava indo – embora não estivesse ansioso para chegar lá.

Ele seguiu pelo corredor da entrada até o final, ignorando as portas que estavam enfileiradas à direita e à esquerda. Elas davam para salas cheias de vampiros azuis que haviam morrido durante as batalhas e de novatos azuis que rejeitaram a Transformação. Não havia nenhum vampiro vermelho em nenhuma dessas salas, já que Neferet fazia questão de manter os seus Exércitos Vermelho e Azul separados, até mesmo na morte.

Não havia nenhuma sinalização em nenhuma dessas portas, exceto na última delas, no final do corredor. Essa porta estava marcada claramente com um grande X vermelho. Kevin não hesitou. Ele abriu a porta e entrou silenciosamente no quarto escuro.

O cheiro foi a primeira coisa que o atingiu. A sala era fria, mantida daquela forma para que os corpos não entrassem em decomposição antes que pudessem ser queimados e então descartados como lixo. Não havia quase nada na sala, exceto mesas e armários de metal alinhados contra uma parede. Ele rapidamente contou dez mesas. Apenas uma delas estava ocupada. Desviando o olhar dessa mesa, Kevin foi rapidamente até os armários e começou a vasculhar os suprimentos médicos.

Levou pouco tempo para encontrar um vidro com tampa.

Kevin pegou o vidro e foi até a mesa ocupada. Um corpo jazia ali, coberto por um lençol ensanguentado.

É só fazer isso. Só faça logo e acabe com o sofrimento.

Kevin levantou o lençol do corpo e suspirou com tristeza.

– Caramba, cara, isso deve ter doído.

A causa da morte do jovem vampiro vermelho era óbvia. Algo tinha esmagado a sua cabeça. Todo o lado direito da cabeça, da maçã do rosto para cima, estava um horror. Kevin queria desviar os olhos. Ele não queria olhar para o rosto daquele cara, mas não conseguia evitar.

O vampiro morto era tão jovem! O seu rosto, congelado pela morte, estava medonho do lado ferido, mas no restante dele parecia que ele mal tinha dezoito anos.

– Você não deve ter se Transformado há muito tempo – ele falou em voz baixa para o cadáver. – Eu também não. Eu me lembro tão bem de me Transformar. Lembro de como fiquei com medo, sabendo que a minha humanidade estava escapando de mim. Eu ainda não sei o que é pior. Perder totalmente a sua humanidade e virar uma máquina de comer, ou manter a humanidade e compreender muito bem a sua monstruosidade. – Kevin colocou a mão no ombro frio e sem vida do garoto. – Sinto muito. Vou tentar fazer o melhor que posso para evitar que outras pessoas virem monstros, mas eu preciso da sua ajuda. Isso não vai ser agradável, e fico realmente feliz que você não pode sentir nada, mas assim mesmo eu sinto muito por ter que fazer isso com você. Ok, bom, vou acabar logo com isso e depois eu cubro você de novo.

Primeiro, Kevin levantou o braço do vampiro morto, virando-o para ter acesso ao lado de baixo do antebraço.

– De novo, cara, desculpe.

Então, ele pressionou a unha do seu dedo indicador com força contra a pele flácida, cortando devagar a veia principal do pulso até o cotovelo. A pele se partiu facilmente sob a unha sobrenaturalmente afiada de Kevin, e ele trabalhou rápido, apertando e pressionando para fazer o sangue estagnado e coagulado passar para dentro do vidro.

O cheiro era terrível – ainda pior do que o de vampiros vermelhos vivos, que já era péssimo. Kevin continuou mesmo assim, passando para o outro braço e depois finalmente rolando o corpo de lado para expor mais sangue estagnado. Era um trabalho demorado. O sangue era pegajoso e estava coagulado, e era totalmente repugnante ordenhar sangue do corpo morto como se fosse uma vaca. Finalmente, Kevin se viu tendo que enfiar os dedos dentro dos cortes que ele fez para tirar aquela coisa viscosa para fora. Com o vidro cheio, ele finalmente colocou a tampa antes de ir até a pia.

Cuidadosamente, Kevin levantou o moletom e a camiseta que estava usando por baixo. Com uma careta de nojo, ele esfregou uma linha de gosma sangrenta com cheiro podre na barriga, logo acima da cintura da sua calça jeans. Ele também puxou as mangas para cima, esfregando mais sangue nas dobras dos seus cotovelos. Satisfeito com o trabalho, pois agora ele passaria em um teste de cheiro de vampiro vermelho, lavou as mãos e o vidro e então pegou um monte de papel toalha em um dispenser de metal posicionado sobre a pia. Kevin molhou metade dos papéis toalha e então foi de novo até o corpo.

– Nunca mais vou comer nada que pareça geleia de morango. Jamais – Kevin disse para o cadáver. – Não vou deixar você assim. Não que alguém fosse notar. Eles vão levar você na maca de rodinhas e colocá-lo dentro do crematório sem nem olhar para você. Mas assim mesmo... não é certo deixar você assim.

Kevin limpou o sangue do corpo, colocando as roupas de volta no lugar e até secando a mesa. Quando o vampiro morto pareceu quase arrumado, Kevin colocou a mão de novo no ombro do garoto morto.

– Obrigado. O seu sangue vai fazer com que eu não seja pego... para que eles não saibam que eu sou diferente. Eu vou mudar as coisas por aqui. Dou a minha palavra. Vou ser parte de um milagre. Sei que isso pode acontecer porque eu já presenciei isso antes. Eu já senti. E agora eu vivo isso. Eu vou garantir que vampiros vermelhos não sejam mais monstros. Eu prometo. – Kevin baixou a cabeça e sussurrou para a sua Deusa: – Obrigado, Nyx. Por favor, receba este garoto no seu bosque. Ele não pediu por esse destino. Não importa quem ele era quando humano, bom ou mau, ele não merecia isso.

Então, devagar, Kevin puxou o lençol ensanguentado sobre o corpo do jovem vampiro vermelho.

Kevin enfiou o vidro dentro do bolso interno da mochila – bem longe dos cookies deliciosos da sua avó. Então ele colocou a tira da mochila sobre o ombro de novo e foi até a porta, abrindo-a apenas o suficiente para espiar o corredor e dando um suspiro de alívio ao ver que estava deserto.

Sem perder nem mais um segundo, Kevin se apressou pelo corredor e saiu pela porta. Ele contornou discretamente o lado do necrotério que dava para o resto dos jardins da escola e analisou a área. Uma sensação familiar de apreensão terrível subiu pela sua espinha quando ele percebeu que, em vez de um céu preto, o mundo ao redor dele tinha começado a se alterar para cinza e rosa.

O amanhecer! Kevin quis dar um chute nele próprio. É claro que eu me sinto apreensivo. Em quinze minutos, o sol vai se levantar e fritar a minha bunda!

Ele não tinha tempo a perder. Puxando o capuz para cobrir a maior parte do seu rosto, Kevin caminhou rapidamente com confiança pelo jardim da escola.

Ele não viu nenhum novato, e os únicos vampiros que ele notou eram Guerreiros Filhos de Erebus pegando o turno do dia e aliviando os vigias da noite. Kevin atravessou o campus até a entrada dos fundos do Ginásio e do centro equestre abandonado. Ele manteve o rosto virado para o outro lado quando passou por dois Guerreiros que estavam discutindo as instruções para os oficiais que Neferet havia anunciado, de que eles deveriam comparecer ao auditório às 2000 horas5 do dia seguinte.

Ele teve que dar tudo de si para não socar o ar e gritar “Ótimo!”. Um informe para os oficiais era exatamente tudo que ele precisava – e o que Dragon precisava ouvir!

Quando Kevin entrou no Ginásio, ele seguiu pelo corredor, virando algumas vezes até chegar a uma porta comum, que ele esperava desesperadamente que desse para o porão, assim como era no mundo de Zo. Ele tentou abrir a maçaneta da porta, e ela estava trancada!

– Droga! – Kevin sussurrou a palavra. – Agora o que é que eu vou fazer?

Se alguém o visse durante as horas de luz do dia, ele seria pego. Vampiros vermelhos nunca ficavam na Morada da Noite depois do amanhecer. Ele não podia nem fingir ignorância e dizer que estava perdido. Ninguém acreditaria nele. Desde o momento em que um novato era Marcado como vermelho e trazido para a Morada da Noite, era incutido dentro dele que ele tinha que estar nos túneis antes do nascer do sol. A única exceção era se o vampiro vermelho estivesse em uma missão do Exército Vermelho.

A mente de Kevin acelerou e rejeitou uma ideia após a outra. Ele simplesmente não tinha mais tempo. Ele precisava se esconder no porão.

Ele precisava de ajuda.

– Droga, se pelo menos eu conseguisse passar por aquele buraco da fechadura como o ar... – Kevin murmurou para si mesmo enquanto estalava os dedos. Ele queria ter conhecido esta Morada da Noite como ele conhecia os túneis, assim saberia onde se esconder e ficar seguro até...

Ele teve uma ideia! Ele não tinha tempo para pensar se estava cometendo um erro. Ele não tinha tempo para pensar melhor. Ele só teve tempo para fechar os olhos e respirar profundamente algumas vezes para se acalmar. Então ele abriu os olhos, encarou o leste e fez a invocação.

– Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder no meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim!

A resposta veio rápido e de forma desconcertante. Diante dele, várias fadas brilhantes parecidas com vaga-lumes brotaram de repente, pairando na altura dos seus olhos, trazendo com elas a sensação de alguma coisa rastejando na pele que Kevin tinha todas as vezes que invocava Magia Antiga.

– Garoto Redbird! Você nos chamou de novo! E nós viemos! Nós viemos! – Elas ficaram esvoaçando de um lado para o outro, mudando de lugar enquanto os seus corpinhos se alteravam de insetos para mulheres aladas e depois para insetos de novo.

– Muito obrigado mesmo! Ok, eu só preciso de uma coisa, mas tem que ser muito rápido. – Ele apontou para o buraco da fechadura na porta. – Vocês podem entrar ali e destrancar essa porta? Eu tenho que entrar aí imediatamente.

– Nós podemos fazer isso – disse uma fada esvoaçante.

– Mas qual é o pagamento? Qual é o pagamento? – gorjeou a outra.

Ele abriu a boca para dizer às fadas que iria pagar com mais sangue, mas um espírito risonho, que mostrava muitos dentes afiados quando ria, interrompeu Kevin antes que ele conseguisse falar.

– Nada de sangue desta vez! Nós queremos algo especial!

– Sim – a primeira fada concordou. – Especial!

Kevin teve vontade de arrancar os cabelos de frustração e se perguntou brevemente se os espíritos considerariam o seu cabelo um pagamento especial. Felizmente, ele teve outra ideia. Ele enfiou a mão dentro da bolsa de sua avó e pegou um cheiroso cookie de chocolate e lavanda feito em casa. Erguendo-o para que vissem, ele sorriu para os espíritos.

– Bom, é impossível alguma coisa ser mais especial do que este cookie. Ele foi feito pela minha avó, a Mulher Sábia que estava na montanha comigo. Vocês sabem, vocês comeram uma das bolsas medicinais dela.

– Ooooooh! – Os espíritos ficaram ainda mais brilhantes enquanto pairavam no ar ao redor do cookie. Então, juntas, para que as suas vozes ecoassem misteriosamente nas paredes de pedra ao redor dele, as fadas falaram de modo ritmado:

“Um pagamento especial nós vemos sim

Oferecido por ti e aceito por mim.

O nosso acordo está selado – que assim seja!”

A revoada de espíritos do ar de Magia Antiga atacou o cookie como uma nuvem de gafanhotos. Kevin deu um gritinho e o soltou enquanto eles devoravam cada migalha. Então, sem nenhuma hesitação, os espíritos incandescentes mergulharam para baixo, passando através do buraco da fechadura, por baixo da porta e pelo vão do batente.

Kevin ficou parado ali, perguntando-se o que iria acontecer em seguida, quando ele ouviu o trinco girar. Ele segurou a maçaneta e empurrou a porta. Ela se abriu facilmente. Ele a fechou atrás de si e, quando se virou para seguir seu caminho descendo a escada íngreme até o porão, um único espírito apareceu, flutuando perto de sua cabeça.

– Obrigado – Kevin agradeceu. – Vocês me ajudaram muito.

– Nós gostamos do seu chamado, Garoto Redbird. Nós gostamos do seu pagamento. Chame quando precisar de nós, mas não se esqueça de que nós gostamos de pagamento especial... pagamento especial... – enquanto o espírito falava, a sua aparência continuou a se alterar de um grande vaga-lume para uma bela mulher alada e então para algo com mais braços e pernas do que ela deveria ter e uma boca que parecia crescer sem parar, até que o rosto dela pareceu se dividir no meio.

E então, em um lampejo de luz, o espírito desapareceu, deixando Kevin com uma terrível sensação de apreensão.


Zoey

– Z? Você está aí? – Stark me chamou ao entrar nos nossos aposentos. – Recebi sua mensagem de texto para vir encontrar você.

– Você chegou cedo! – eu gritei do banheiro. – Não se mexa!

– Ahn?

– Eu disse “não se mexa”! Fique aí na porta. Feche os olhos!

– É pra eu fechar os olhos?

Eu escutei o tom confuso na voz dele, de quem estava achando graça, mas eu realmente não queria que ele estragasse a minha surpresa.

– Se você não quer fechar os olhos, então vire de costas.

– Ok! Ok! Estou fechando os olhos. Ahn, Z. O que você está fazendo?

O que eu estava fazendo? Eu estava tentando compensar o meu Guerreiro por deixá-lo totalmente preocupado e ser romântica ao mesmo tempo.

– Aguente aí. Você vai ver em um segundo!

– Eu achei que você nem voltaria para cá até depois do nascer do sol. Você não estava na estação com Damien e Kramisha?

– Sim! – eu gritei da porta do banheiro. – Bom, fiquei lá um tempo, mas Aphrodite decidiu palpitar na decoração do restaurante, e eu tive que ir embora.

– Ficaram se bicando muito?

– Pois é – eu disse. – Ok, estou saindo. Mantenha os olhos fechados até eu falar pra você abrir, ok?

– Como quiser, minha Rainha.

Eu senti o sorriso na voz dele, o que me fez sorrir de volta, e então dei uma última conferida em mim mesma no espelho. Eu não usava muita maquiagem no geral. Na verdade, eu tinha uma questão em relação à maquiagem. Eu detestava que a sociedade dissesse que tínhamos que usar isso para “parecer o nosso melhor”. Parecer o nosso melhor? Com um monte de porcaria espalhada por todo o rosto, escondendo tudo o que realmente somos? Hum, não. Eu concordo com a fabulosa Alicia Keys – eu não quero cobrir o meu rosto, nem a minha mente, nem a minha alma, não quero cobrir nada. Então, eu ajeitei o meu cabelo e sorri para a minha cara recém-lavada. Pronta!

Coloquei a cabeça para fora do banheiro para dar uma espiada. Nada de Stark. Descalça, entrei pisando de leve no nosso quarto, endireitando a toalha de piquenique que eu havia estendido no chão e afofando as almofadas que eu tinha disposto ali perfeitamente para nos sentarmos.

– Z?

– Fique de olhos fechados! – Atravessei rapidamente o quarto até a sala de estar e sorri quando vi o meu Guerreiro ainda parado na frente da porta com os olhos fechados. Fui até ele e peguei a sua mão.

– Posso abrir os olhos agora?

– Não, só quando eu disser que pode, mas me siga.

– Eu vou trombar com alguma coisa.

– Não seja um crianção. Eu guio você. – Eu o conduzi devagar ao redor da mesa de café e de outros obstáculos, finalmente colocando-o ao lado da toalha de piquenique. – Ok, aguente aí só mais um segundo. – Eu o deixei parado ali e fui rapidamente até o outro lado da toalha, apertando o controle remoto da grande TV que estava pendurada na parede, conferindo para ter certeza de que estava sem som. Então eu ajeitei nervosamente meu cabelo de novo antes de dar a autorização. – Ok, pode abrir os olhos agora!

Ele abriu, e os seus lábios se curvaram naquele meio-sorriso sexy que eu amava tanto.

– Z! Você está praticamente nua!

Eu senti minhas bochechas ficando vermelhas, mas abri um sorriso para ele.

– Não, estou com uma das suas camisetas.

– Sim, minha camiseta velha e esburacada que é totalmente transparente. Caramba, Z! Em mim ela não fica assim!

– Hihi! – eu ri. – Então, você está com fome?

– Só se for fome de você!

– Não, seu tonto. Bom, sim, seu tonto, mas que tal a gente comer algo de verdade primeiro? – Apontei para o piquenique que eu havia preparado.

Com relutância, ele desviou o olhar do meu corpo para conferir o que estava sobre a toalha.

– Z, isso são nachos? Com tudo para colocar neles?

– Aham! Eu inclusive coloquei pimenta-jalapeño. Um monte, porque, apesar de eu achar que elas são as pimentas do inferno enviadas para queimar as bocas até você pedir arrego, sei que você gosta delas.

Sentei em uma das almofadas e dei tapinhas na outra do meu lado, indicando para Stark se juntar a mim.

– Nachos são a minha comida preferida – ele falou ao se sentar.

– Eu sei.

Ele ergueu um copo gelado, cheirou e então deu um gole grande antes de exclamar:

– E Dr. Pepper! Você trouxe Dr. Pepper para mim!

– Eu sei o quanto você adora isso, apesar de eu discordar totalmente de você porque isso é...

– Uma abominação de refrigerante de cola – ele terminou a frase por mim.

– Sim, é exatamente isso.

Ele estendeu a mão para pegar um nacho e o seu olhar se levantou para a tela da TV.

– Caramba, Z! Game of Thrones? Você vai mesmo assistir a um episódio comigo?

– Vou assistir a quantos episódios você quiser.

– Mas você odeia Game of Thrones.

– Não, eu não odeio. Eu não assisto porque Cersei me lembra demais a loucura de Neferet, mas não tem que ser tudo sempre do meu jeito, então podemos assistir.

Stark me encarou.

– O que você fez com a minha Zoey?

Eu dei um empurrãozinho no ombro dele com o meu.

– Ah, para com isso.

– Sério, eu estou encrencado?

– Claro que não!

– Ah, droga. – Ele soltou o nacho e virou meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. – O que você fez?

Eu suspirei.

– Eu tenho agido como uma idiota egoísta desde que Kevin foi embora, e sinto muito. Sinto muito mesmo, Stark. Sei que você anda preocupado, e esta é minha maneira de pedir desculpas.

– Ei, é normal que você tenha andado preocupada, principalmente sabendo que Kev está usando Magia Antiga.

– Normal, sim, mas é muito imaturo da minha parte estar tão distraída com o fato de você estar estressado por minha causa e as minhas Grandes Sacerdotisas terem que tocar o barco enquanto estou desse jeito. Eu vou fazer melhor do que isso, prometo.

Stark tocou o meu rosto com delicadeza.

– Você sempre faz o melhor, Z. Eu sabia que você ia dar a volta por cima.

– Você entende o quanto eu te amo? – falei sem pensar.

– Sim, mas é bom ouvir você dizer isso.

Ele devorou um nacho que estava coberto com queijo pastoso e jalapeños e depois lambeu o queijo extra que ficou nos seus dedos enquanto engolia.

– Você é tão bom. Você sempre está aqui por mim, mas também me dá espaço para lidar com as minhas coisas sozinha. Isso significa muito para mim, principalmente porque eu sei que você pode sentir o quanto estou distraída.

– Não acho que você está distraída nesse momento. – Ele se inclinou e tocou os meus lábios com os seus.

Eu sorri.

– Não, você tem cem por cento da minha atenção agora. E eu sei que o sol vai nascer logo, mas, se você conseguir ficar acordado um pouco, prometo que, enquanto você estiver consciente, vai ter cem por cento de mim.

Eu coloquei os braços em volta dos seus ombros largos e o puxei para mim. Os nossos lábios se encontraram de novo, e o beijo se aprofundou. Eu amei o gosto dele, uma mistura do chiclete de hortelã que estava mascando, da doçura nojenta do Dr. Pepper – que de repente não era nojenta de modo algum – e do salgado dos nachos.

Enquanto ele me pressionava contra as almofadas, os seus lábios desceram pelo meu pescoço, dando beijos e mordidinhas na minha pele, o que me fez gemer e me deixou arrepiada.

– Que tal se a gente não dormir? – A voz dele era baixa, e o seu hálito era quente e sexy contra a minha pele. – Que tal eu beijar cada centímetro de você, depois a gente come nachos, assiste a Game of Thrones, e então eu beijo cada centímetro de você de novo?

Ele colocou a língua para fora quando começou a encontrar os buracos na sua velha camiseta, beijando os meus seios através deles.

– Mas você tem que dar aula amanhã – eu soei sem fôlego, como se tivesse acabado de subir correndo vários lances de escada.

– Amanhã é aula de esgrima, não de arco. Damien pode me substituir. Ele é o melhor espadachim mesmo.

Devagar, ele começou a tirar a camiseta por sobre a minha cabeça.

– Caramba, Z! Você realmente não está usando nada exceto a minha camiseta.

– Surpresa! – eu exclamei.

E então o meu peito começou a esquentar e o meu estômago se contraiu.

– Zoey? – Stark falou abruptamente, puxando a minha camiseta para baixo e me encarando. – Está acontecendo de novo, não está?

Em meio a lágrimas de medo e frustração, eu assenti.

– Kevin está usando Magia Antiga de novo – eu falei cheia de tristeza. – E ele não tem a menor ideia de como está se metendo em encrenca.

– Shhh, eu sei, eu sei. Venha cá, minha Rainha.

Stark me puxou para os seus braços e me abraçou enquanto aquele calor terrivelmente familiar diminuía, deixando apenas um enjoo no meu estômago e a clareza sobre o que eu tinha que fazer. Agora. Eu precisava parar de pensar sobre isso. Parar de ficar pesando as consequências. E simplesmente... fazer.

Ah. Inferno.

5 No horário militar, 2000 horas equivale a 20 horas ou 8h00 PM. (N.T.)


14

Outro Kevin

Kevin despertou de repente e, nos seus primeiros minutos de consciência, ele achou que estava de volta aos túneis embaixo da estação – antes mesmo de ter se deslocado para o mundo de Zoey, antes do retorno da sua humanidade. Um gosto amargo de desespero inundou a sua boca com náusea ao pensar em tentar controlar a fome e manter a sanidade.

Então ele se sentou, bateu a cabeça em um dos engradados de madeira entre os quais estava encolhido, e a sua memória acordou junto com ele. Kevin congelou e olhou silenciosamente em volta. Nada se mexeu. Ninguém tinha entrado no porão. Ele conferiu o seu relógio interno – os vampiros vermelhos sempre sabiam a hora exata do nascer e do pôr do sol.

– Dezessete horas e vinte e dois minutos. Pôr do sol – ele falou para si mesmo por força do hábito. Kevin havia feito isso muitas vezes no último ano, desde que tinha sido Marcado como um novato vermelho e depois se Transformado. Foi uma forma que encontrou de tentar manter a sua sanidade durante aquele tempo horrível, e agora isso o reconfortava. Ele se alongou, fazendo só uma pequena careta para a dor que o seu ferimento ainda causava, embora ele se sentisse muito bem. – Com fome, mas bem. – Então ele se lembrou, e o seu rosto se abriu em um sorriso de gratidão. – Os cookies da Vovó!

Kevin pegou a mochila e tirou vários cookies de dentro dela. Ao fazer isso, sua mão topou com alguma coisa dura. Perguntando-se o que mais a sua avó tinha colocado ali, ele espiou o interior da bolsa e deu um suspiro longo e feliz.

Ele tirou a garrafa térmica metálica que estava no fundo da bolsa, abriu a tampa, cheirou e facilmente reconheceu o aroma de sangue.

– Ela pensou em tudo! – ele bebeu ruidosamente o sangue da garrafa fria enquanto comia os cookies.

Kevin não precisava ter um abastecimento constante de sangue. Ele não iria perder a cabeça nem atacar alguém na rua como um vampiro vermelho normal faria depois de alguns dias sem beber, mas as suas costas ainda precisavam se curar e o sangue definitivamente ia deixá-lo mais forte.

– Obrigado, Vó – ele disse entre mordidas nos cookies e sentiu uma onda de saudade de casa.

Pelo resto do tempo que levou para Kevin terminar o seu café da manhã, ele se permitiu desejar que pudesse sair daquele porão e daquela Morada da Noite, ir até a casa de sua avó e ficar com ela comendo cookies e trabalhando na fazenda de lavandas, ignorando esse mundo todo ferrado. Quando terminou de comer, ele espanou os farelos de sua blusa e, junto com eles, expulsou de sua mente aquele desejo egoísta e impossível.

Ele conferiu o seu relógio interno infalível, percebendo que tinha cerca de duas horas até a reunião de briefing que Neferet havia convocado.

– Ok, eu tenho que ficar aqui embaixo pelo menos o tempo suficiente para que os primeiros ônibus tragam os novatos e vampiros vermelhos dos túneis para treinar com os Guerreiros Filhos de Erebus. Então, posso explorar um pouco, já que não fiz nada além de desmaiar quando vim da primeira vez.

Ele encontrou o interruptor para acender as arandelas da parede, transformando o porão escuro em um lugar estranho que quase parecia um cemitério submerso, com as sombras tremulantes da iluminação a gás que bruxuleavam pelas várias fileiras de caixas de madeira compridas em pilhas de duas ou três.

– Bom, é diferente do porão da Morada da Noite de Zo, com certeza.

Zo dissera a ele que poderia haver uma variedade de armas escondidas no porão, mas ali definitivamente não tinha nenhuma espada com pedras preciosas nem bestas antigas de valor incalculável à vista. Só havia caixas de madeira. Um monte delas.

Ele tentou abrir uma, mas estava fechada com pregos. Ele procurou pela sala grande e ampla, e não levou muito tempo para encontrar um pé-de-cabra em uma pilha de martelos, pregos e outras pequenas ferramentas descartadas. Trabalhando com cuidado, para que pudesse fechar a caixa de novo depois de verificar o conteúdo, Kevin levantou a tampa da primeira caixa.

A princípio, quando ele olhou para dentro, a sua mente não registrou o que estava vendo. Ele estendeu a mão e tocou em uma daquelas coisas, e a verdade fez com que Kevin se sentisse tão quente e tonto que ele deu vários passos cambaleantes para trás.

– Fique calmo, Kev – ele disse a si mesmo. Ele estalou os nós dos dedos. Sacudiu as mãos. Passou os dedos pelo seu cabelo escuro. E então voltou até a caixa.

As armas eram enormes e tinham uma aparência estranha, e então ele viu que havia um papel guardado junto na caixa. Nele, Kevin leu: LANÇADOR DE GRANADAS MULTITIRO EX-41.

– Isso é ruim. Isso é muito ruim.

Ele não queria olhar o que tinha nas outras caixas, mas precisava fazer isso – assim, ele abriu cada um dos cinquenta engradados que mais pareciam caixões. Metade tinha lançadores de granadas acompanhados da munição. O resto continha metralhadoras M16, mais um monte de munição e um punhado de granadas.

A mente de Kevin zunia em um princípio de pânico enquanto ele memorizava tudo que viu. Ele tinha que alertar Dragon. Os exércitos de Neferet haviam assumido o controle de Oklahoma, Texas, Arkansas e Kansas em uma expansão coordenada de ataques surpresa no meio da noite. Esse controle tinha se espalhado como um incêndio para Louisiana, Missouri, Nebraska e Iowa. Eles destruíram os depósitos de armas da Guarda Nacional em cada um desses estados e confiscaram veículos militares. Mantendo a tradição dos vampiros, eles não haviam utilizado armas modernas. Os dentes e as garras do Exército Vermelho, assim como a habilidade de controlar as mentes dos humanos, haviam sido o suficiente para derrotar a pequena Resistência humana.

Porém, Kevin sabia que, assim como Neferet continuava pressionando – com sua guerra declarada contra todos os humanos –, ela estava encontrando cada vez mais oposição. Os humanos estavam levantando barricadas nas fronteiras estaduais. Como Kevin era apenas um tenente no Exército Vermelho, ele não ficava a par do “como” e do “porquê” das táticas militares, mas tinha escutado o General Dominick reclamar que Neferet estava gastando tempo demais tentando negociar com os governadores de cada estado. Ele, é claro, achava melhor atacar, atacar, atacar.

– Aparentemente, Neferet também acha isso – Kevin disse sombriamente. – A diferença é que ela quer atacar com armas modernas – e então outro pensamento o esmagou. – Merda! Este não deve ser o único esconderijo de armas que ela tem! Todos aqueles depósitos de armas... merda! Merda! Merda! Claro, os exércitos queimaram tudo, mas eu aposto a minha humanidade que eles não queimaram as armas que encontraram dentro deles.

Ele ficou andando em círculos.

– Isso muda tudo. A Resistência precisa agir imediatamente! Nós temos que depor Neferet e acabar com essa guerra antes que ela comece a usar essas armas. E eu tenho que mandar uma mensagem para Dragon. Agora.

Kevin conferiu seu relógio interno de novo. Ele tinha cerca de quarenta e cinco minutos antes do briefing de Neferet, o que deveria ser tempo suficiente para caminhar sem destino próprio pelos jardins da escola, esperando que o corvo de Anastasia o encontrasse.

Ele tomou cuidado para que os engradados parecessem intocados antes de reaplicar o perfume de sangue nojento. Então ele colocou a mochila de Vovó sobre o ombro e subiu dois degraus de cada vez, parando na frente da porta. Decidindo que a melhor coisa a fazer seria não tentar se esgueirar, ele prendeu a respiração e abriu a porta, saindo rapidamente para o corredor. Ele tinha dado só um passo quando uma voz atrás dele pareceu preencher o ambiente – e congelou o seu coração.

– Ei! Que diabos você estava fazendo lá embaixo?

Kevin se virou para ver o General Stark e um dos seus tenentes se aproximando dele. Ainda por cima, Stark parecia irritado.

– Desculpe, senhor. Eu devo ter virado no lugar errado – Kevin fez uma grande demonstração ficando rapidamente em posição de sentido e evitando o contato visual.

– Essa porta deveria estar trancada. Ordens de Neferet – Stark afirmou.

– Desculpe, senhor – Kevin repetiu, ainda em posição de sentido. – Não estava trancada.

– Dallas, Artus tem as chaves. Encontre-o e tranque essa maldita porta.

– Sim, vou fazer isso, general. – O tenente de Stark começou a ir embora, mas então deu um tapa na sua testa e se virou. – Acabei de perceber quem é esse garoto. Ele é um dos tenentes do General Dominick.

– Dominick? O general vermelho que sumiu com um pelotão inteiro de novatos e soldados vermelhos? – Stark perguntou, com seus olhos aguçados examinando Kevin.

– Sim, ele mesmo, senhor – Dallas respondeu.

Stark deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Kevin.

– Quem é você?

– Tenente Heffer, senhor!

– Sob o comando de quem?

– General Dominick, senhor!

– E onde está o seu general, Tenente Heffer?

– Perdão, senhor?

Stark suspirou alto.

– Vampiros vermelhos são mesmo um pé-no-saco – Stark falou para Dallas como se Kevin não estivesse diante dele em posição de sentido, escutando cada palavra.

– Sim, eles são muito burros. Até os oficiais. – Dallas chegou bem perto do rosto de Kevin. – Ei! O general fez uma pergunta, garoto! Responda, porra!

– E-eu não sei onde o meu general está. – Kevin se concentrou em se parecer com qualquer outro tenente do Exército Vermelho: prestativo e confuso.

– Quando foi a última vez que você o viu? – Stark perguntou.

– Vários dias atrás, senhor. Ele me deu ordens, e eu estava cumprindo essa missão desde então.

Dallas bufou.

– Essa missão incluía invadir um porão trancado?

– Não, Tenente! Isso foi um erro.

– O que você fez lá embaixo? – Stark o questionou.

– Nada. Quando vi que estava no lugar errado, eu saí, senhor.

– Onde diabos você deveria estar? – Dallas quis saber.

– Treinando. Eu voltei da minha missão e então era hora de treinar. Pensei que ia encontrar o General Dominick nos túneis hoje à noite e dar o meu relatório.

– Qual era a sua missão, Tenente? – Stark perguntou.

– Cinco dias atrás, o General Dominick me enviou para Stroud. Ele tinha ouvido falar que a Resistência encontrou esconderijos naquela área e eu deveria fazer um reconhecimento por lá e depois voltar para um relatório. – Stroud ficava mais ou menos no meio do caminho entre Tulsa e Oklahoma City, e não perto o bastante de Sapulpa para causar algum problema para Dragon e a Resistência, então desviar a atenção de Stark para lá não pareceu uma má ideia para Kev.

– Você não achou que tinha algo estranho quando não conseguiu encontrar o seu general e o resto do seu pelotão? – Stark perguntou.

– Senhor, eu acabei de voltar. Agora mesmo.

– Ah, que merda, dá um tempo. Você espera que o General Stark acredite que levou cinco dias para você checar uma bosta de cidade como Stroud? – Dallas zombou.

– Não, Tenente. E-eu me perdi.

– Isso só piora – Dallas resmungou.

– Explique-se, Tenente – Stark ordenou.

Evitando contato visual, Kevin falou rapidamente e com cuidado.

– Senhor, o General Dominick me deu ordens para verificar a área de Stroud, procurando membros da Resistência. Eu fiz isso. Comecei pela cidade. Não encontrei nenhum sinal da Resistência por lá, mas ouvi rumores de que havia uma atividade incomum perto do Rio Deep Fork. Como o general ordenou, eu me abriguei na cidade e no dia seguinte fui até o rio. Encontrei sinais de acampamentos, mas nada específico da Resistência. Quando tentei sair de lá, percebi que estava perdido. Não encontrei nenhuma estrada principal até o pôr do sol de hoje. Então eu confisquei um carro e voltei imediatamente para a Morada da Noite.

– Perdido por dias... que imbecil – Dallas murmurou.

– E você não teve nenhum contato com o General Dominick desde que ele deu essas ordens a você? – Stark perguntou.

– Não, senhor. Nenhum.

– Você não pensou em ligar para alguém com o seu celular quando ficou perdido? Ou você só não pensou nessa possibilidade? – Dallas zombou de Kevin.

Kevin resistiu ao impulso de dar um soco naquela cara estreita, e não demonstrou qualquer sinal de emoção, exceto confusão, respondendo imediatamente.

– Eu pensei, mas não tinha sinal de celular, Tenente.

– Tenente Heffer, o General Dominick mencionou para onde ele e os seus soldados estavam indo? – Stark questionou.

Kevin deixou o seu rosto mostrar surpresa.

– É claro, senhor. Ele disse que ia marchar seguindo ordens.

– Ordens? De quem? – Stark perguntou.

– Perdão, senhor, mas essa informação não chega até minha patente.

– Sim, está certo. Eles estavam indo em qual direção? – Stark continuou o interrogatório.

Então Kevin começou a levar Stark para um rastro totalmente falso, na direção oposta de Sapulpa, da Resistência e da sua montanha protegida por Magia Antiga.

– Ele disse que a milícia estadual estava vindo pelo Novo México e atravessando o Texas pelo Rio Vermelho. Acredito que o general estava indo para Elmer para preparar uma emboscada.

– A milícia do Novo México? Isso é bobagem. Não se ouve um pio de nenhuma das milícias dos nossos estados vizinhos há meses. Ele está inventando coisas. É uma perda de tempo conversar com ele. Com qualquer um deles – Dallas disse, balançando a cabeça de desgosto.

Stark ignorou Dallas.

– Não, alguma coisa definitivamente parece errada. Meu instinto me diz isso há semanas. Tem coisas acontecendo que a gente não sabe. Heffer, quero que você venha comigo.

– Sim, senhor! É uma honra, senhor!

Dallas revirou os olhos.

– General, ele fede.

– Todos eles fedem, mas este garoto vampiro vermelho nos deu a única pista que tivemos sobre um general desaparecido e os seus soldados. Vá pegar aquela chave com Artus e depois nos encontre no auditório para o briefing de Neferet.

– Sim, senhor – Dallas disse antes de dar outro olhar de nojo para Kevin e sair correndo.

– Ok, siga-me, Tenente. E não se perca.

– Sim, senhor!

A mente de Kevin estava em um turbilhão enquanto ele seguia o General Stark. Ele precisava ir à reunião de briefing, mas também tinha que dar um jeito de se livrar de Stark e do babaca do Dallas para ir lá fora e esperar que o corvo de Anastasia o encontrasse. Dragon precisava saber sobre o esconderijo de armas. Ainda hoje.

– Ei, chega de andar feito uma lesma! – Stark falou rispidamente para Kevin, que estava, de fato, andando feito uma lesma.

– Sim, senhor! – Ele acelerou o passo e estava bem atrás de Stark ao sair do Ginásio e entrar no corredor que levava à entrada da escola e ao auditório quando uma voz familiar, sexy e sarcástica interrompeu o seu plano de fuga.

– E aí, Cara do Arco. Eu diria “que bom ver você”, mas nós dois sabemos que isso é mentira.

Stark fez uma pausa para cumprimentá-la quando ela entrou no corredor, vindo dos aposentos das Sacerdotisas. Kevin começou a analisar Aphrodite, reparando em nuances que ele não tinha sido capaz de ver na escuridão dos jardins do necrotério.

Ela parece cansada. Muito cansada. E magra. Quase frágil. Esta Aphrodite usava muito mais maquiagem do que a do mundo de Zo, e Kevin se perguntou se poderia ser para tentar encobrir olheiras e estresse. E a boca dela está diferente também. Mais dura. Como se ela não sorrisse nunca. Aquilo fez o coração dele doer, e ele quis colocar os braços em volta dela e dizer que tudo ia ficar bem. Inconscientemente, os seus pés começaram a dar um passo em frente quando a voz de Stark o trouxe de volta para a realidade.

– Desde quando mentir é um problema para você, Aphrodite? E não me chame assim.

– Oh, tudo bem, sinto muito. Eu me esqueço de que agora você é o General Cara do Arco. Viva. Todos nós ficamos tão elevados com essa guerra. – Ela franziu o nariz lindo e perfeito ao olhar para Kevin, logo atrás de Stark. – Eca. Isso fede.

– Ele também é um tenente no exército da sua Grande Sacerdotisa e coloca a sua vida em risco toda vez que sai desta Morada da Noite. Acho que o cheiro não faria nenhuma maldita diferença para você se só ele se colocasse entre você e uma turba de humanos.

Aphrodite fez uma cena, olhando em volta do corredor, o qual estava ficando cada vez mais apinhado de soldados, Guerreiros Filhos de Erebus e Sacerdotisas indo na direção do auditório.

– Engraçado, mas eu não estou vendo nenhum humano por perto.

– Engraçado? Sabe o que eu acho engraçado? O boato que eu ouvi de que você pode se juntar ao Exército Vermelho, então o meu conselho é que é melhor você já ir se acostumando com esse cheiro. – Stark fez um movimento de cabeça na direção de Kevin. – Vamos, Tenente. – Ele se curvou para Aphrodite de modo zombeteiro. – Tenha um ótimo dia, Profetisa.

 

 

 


C O N T I N U A