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PERIGO REAL E IMEDIATO / Tom Clancy
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O agente da CIA Jack Ryan foi promovido a Subdiretor de inteligência. A primeira missão é desmantelar uma perigosa rede traficantes de drogas com base na Colômbia. Esta organização conseguiu espalhar seus tentáculos mortais para os mais importantes centros de poder, matando altos funcionários do governo e empresários. As indagações de Ryan irão levá-lo a descobrir as relações ilícitas que a organização criminosa eles têm com certas personagens do governo. A partir desse momento, nosso protagonista vai viver um dilema ético emocionante entre os deveres patrióticos e convicções individuais.

 

 

 

 

A função da Polícia é exercer a força ou ameaçar com ela, a fim de fazer cumprir os fins do Estado, internamente e em circunstâncias normais.

A missão das Forças Armadas é exercer a força ou ameaçar com ela no exterior em circunstâncias normais e no interior, só em circunstâncias anormais...

Para obter seus fins, o Estado deve achar-se preparado para exercer a força no grau que o Governo de volta cria conveniente ou necessário para evitar a dissolução de suas funções e a cessão de suas responsabilidades.

General Sir John Hackett

Índice

Prólogo Situação

I O Rei do B&R

II Criaturas da noite

III O PROTOCOLO PANACHE

IV PRELIMINARES

V PRELÚDIOS

VI DISSUASÃO

VII CERTEZAS E INCÓGNITAS

VIII DESDOBRAMENTO

IX PRIMEIRO ENCONTRO

X PÉS SECOS

XI TERRITÓRIO INIMIGO

XII PANO DE FUNDO

XIII FIM DE SEMANA SANGRENTO

XIV RESGATE E FUGA

XV ENTREGADORES

XVI LISTA DE ALVOS

XVII EXECUÇÃO

XVIII FORÇA MAIOR

XIX PRECIPITAÇÃO

XX REVELAÇÕES

XXI EXPLICAÇÕES

XXII DIVULGAÇÃO

XXIII COMEÇAM OS JOGOS

XXIV AS REGRAS DO JOGO

XXV ARQUIVO “ODYSSEY”

XXVI INSTRUMENTOS DO ESTADO

XXVII A BATALHA DE MONTE NINJA

XXVIII AJUSTE DE CONTAS

XXIX PONTAS SOLTAS

XXX NOS ALTARES DO SERVIÇO

Prólogo

SITUAÇÃO

O salão estava deserto. O Salão Oval ocupa o extremo sudeste da ala oeste da Casa Branca. Tem três acessos: um no escritório da secretária privada do Presidente, outro da cozinha, que, a sua vez, dá acesso ao estúdio presidencial, e o terceiro de um corredor, em frente à entrada do Salão Roosevelt. O

escritório é de dimensões médias por se tratar de tão alto funcionário: é comum escutar aos visitantes dizerem que esperavam algo maior. O escritório presidencial está colocado em frente a grosas janelas de policarbonato, a prova de balas, que distorcem o panorama dos jardins.

A madeira vem do HMS Resolute, um navio britânico que afundou em águas dos Estados Unidos em torno de 1850. Os americanos o salvaram e devolveram ao Reino Unido, e a rainha Vitória agradeceu o gesto com uma mesa feita com madeiras de carvalho do navio. Por ter sido construído em uma época em que a talhe dos homens era menor que o atual, foi necessário aumentar sua altura durante a presidência do Reagan. A mesa estava lotada de pastas e memorandos sobre diversos assuntos do Governo; em cima da pilha estava a agenda de audiências do dia; havia, além disso, um telefone interno, outro externo com várias linhas e um terceiro de aspecto comum, embora em realidade era um aparelho extremamente complexo utilizado para conversações de alta segurança.

A poltrona presidencial, feito a medida do usuário, tinha um respaldo alto, reforçado em seu interior com lâminas de kevlar – um produto “Du Pont” mais forte e leve que o aço – para blindar amparo adicional no caso de que os projéteis disparados por algum demente conseguissem perfurar as janelas reforçadas. Certamente que durante as horas de trabalho havia uma dezena de agentes do Serviço Secreto de guarda nesse setor da mansão presidencial.

A maioria das pessoas só tinha acesso através de um detector de metais – que estava muito à vista –

e todos sob a atenta vigilância dos penetrantes olhares dos agentes, cuja missão não era mostrar-se amáveis a não ser proteger a vida do Chefe do Estado. Cada um levava uma pistola de grosso calibre e estava instruído para ver em tudo e em todos uma possível ameaça para Domador. Esse era o nome em chave do Presidente: fácil de pronunciar e de reconhecer em um circuito de rádio.

O vice-almirante James Cutter, ocupava um escritório no extremo oposto, noroeste da asa oeste.

Encontrava-se ali desde 6:15 da manhã: os deveres do posto de assessor presidencial em matéria de Segurança Nacional obrigam a seu titular a madrugar. Quando faltava um quarto de hora para as oito, bebeu uma segunda taça do excelente café da Casa Branca e dispôs seus papéis na pasta de couro. Cruzou o escritório de seu ajudante, que estava de férias; girou à direita no corredor, frente ao escritório também deserto do vice-presidente – em visita oficial a Seul – e à esquerda, frente à do secretário geral da Presidência. Diferente do vice-presidente, Cutter pertencia ao círculo íntimo de funcionários que tinham acesso direto a Sala Oval sem passar pela secretaria geral, embora estivesse acostumado a anunciar-se para não surpreender ao empregados. Semelhante privilégio chateava profundamente ao secretário geral da Presidência, e, por isso mesmo, era agradável poder exercê-lo. Quatro agentes de segurança saudaram a passagem do vice-almirante, o qual devolveu o gesto como se fossem empregados de baixa hierarquia.

Seu nome chave era Lenhador, e embora soubesse que os agentes o chamavam de outra maneira, pouco importava o que essa gentalha dissesse dele. Desde cedo reinava uma grande atividade na sala de espera dos secretários, ocupada por três empregadas e um agente secreto.

– O chefe já vem? – perguntou.

– Domador está baixando, senhor vice-almirante – respondeu o agente especial Connor. Tinha quarenta anos, era chefe de seção do destacamento presidencial e não lhe importava nada o grau militar do Cutter ou o que este pensasse dele. Os presidentes e seus assessores chegavam e se saíam, alguns, queridos, outros, odiados, mas os profissionais do Serviço Secreto velavam por todos. Os olhos do agente se posaram na pasta de couro e no traje do vice-almirante.

Estava desarmado. O agente não era um maníaco. Recordava que um rei da Arábia Saudita que tinha sido assassinado por um membro da família real, e que a um ex-primeiro ministro da Itália o qual a sua própria filha o entregou aos terroristas que o sequestraram e assassinaram. Qualquer um, não só um louco, podia constituir uma ameaça para o Presidente. Por sorte para o Connor, só tinha que ocupar-se de sua segurança física. Havia outros, menos profissionais que ele, que se ocupavam de outras classes de ameaças.

Todo mundo ficou de pé quando o Presidente chegou, seguido por seu guarda-costas pessoal, uma jovem esbelta de uns trinta anos e de farta cabeleira, e que além disso era uma das melhores atiradoras do serviço. Adaga – assim a chamavam no Serviço – sorriu ao ver Pete. Aguardava-lhes um dia de pouco trabalho, porque o Presidente não sairia da Casa Branca. Já tinha verificado a lista de audiências, controlado os nomes nos computadores do FBI, e, certamente, submeteriam os visitantes a uma inspeção cuidadosa, embora sem registrá-los. O Presidente indicou ao vice-almirante Cutter que o seguisse. Os dois agentes repassaram a agenda de audiências. Era um procedimento de rotina. Ao agente superior não se incomodava em trabalhar com uma mulher.

Adaga ganhou o posto nas ruas. Todos diziam que se fosse homem, já teria sido promovida, e se algum aspirante a assassino a tomasse por uma secretária, pior para ele. Enquanto Cutter permanecia no escritório, um dos agentes, cada cinco ou dez minutos, olharia pelo olho mágico da porta branca para se assegurar que não acontecia nada estranho. O Presidente estava há três anos na função e estava habituado à vigilância constante. Nenhum agente pensava que um controle tão rígido pudesse ser cansativo. Sua tarefa era estar a par de tudo: quantas vezes por dia ia ao banheiro, quando (e com quem) deitava-se. Não era a toa que os chamavam de Serviço Secreto. Ocultavam todos os tipos de pecados venais.

A primeira dama não tinha direito de saber o que fazia o Presidente a cada hora do dia – assim tinham disposto alguns mandatários – , mas o destacamento de segurança, sim.

Fechou-se a porta e o Presidente se sentou. Entrou um garçom filipino com café e croissants, deixou-os sobre a mesa, saudou em posição militar de sentido e se retirou. Concluída a rotina preliminar matutina, Cutter começou seu relatório sobre segurança nacional. A CIA o tinha levado o relatório para sua casa no Fort Myer, Virginia, antes do amanhecer para que tivesse tempo de prepará-lo. O relatório foi breve. Era o final da primavera e o mundo estava pouco agitado.

As guerras africanas em curso não afetavam os interesses dos Estados Unidos, e a situação no Oriente Médio era tão calma como poderia ser. Havia tempo para ocupar-se de outros assuntos.

– O que ocorre com o Showboat? – perguntou o Presidente enquanto passava manteiga num croissant.

– Começou, senhor Presidente. Os agentes de Ritter estão a caminho – disse Cutter.

– Me Preocupa a segurança da operação.

– Cuidamos dela o máximo possível, senhor! É impossível evitar todos os riscos, mas o número de participantes é o mínimo indispensável e todas as pessoas foram cuidadosamente selecionadas.

O Presidente assentiu com um grunhido. Como a maioria de seus predecessores no cargo, era vítima de suas próprias palavras. O povo tinha o molesto costume de recordar as promessas e as declarações presidenciais. E quando as esqueciam, a Imprensa e a oposição lhes refrescavam a memória. Sua presidência tinha tido frutíferos acertos. Mas muitos deles eram secretos e ninguém os revelava... Para grande chateação de Cutter. Certamente, assim devia ser.

Mas em política nenhum segredo é inviolável, sobre tudo quando se aproximam as eleições.

Supunha-se que esse assunto não correspondesse a Cutter. Era um oficial naval de carreira e seu enfoque dos problemas da segurança nacional devia ser apolítico, mas o autor dessa norma só podia ser um monge.

Os altos funcionários não formulavam votos de pobreza e castidade..., e a obediência também dependia das circunstâncias.

– Prometi ao povo que tomaríamos medidas com respeito a este problema – disse o Presidente com chateio – . Até agora não conseguimos droga nenhuma!

– Senhor Presidente, não se podem enfrentar as ameaças à segurança nacional por meio da Polícia.

E nossa segurança está ameaçada ou não está.

Fazia anos que Cutter insistia nisso. Agora, por fim, tinha quem o escutasse.

– Bom, bom, isso eu disse, não?

– Sim, senhor Presidente. É hora de demonstrar o que ocorre aos que se fazem nossos inimigos. –

Cutter sustentava essa posição do começo, quando era ajudante do Jeff Pelt. Agora que Pelt tinha renunciado, podia impor seus pontos de vista.

– Muito bem, James, você está no comando. Adiante. Mas preciso resultados, lembre-se!

– E terá, senhor. Eu asseguro.

– É hora de dar uma lição a esses filhos da puta – murmurou o Presidente. Sabia que essa lição seria muito dura, e tinha razão. O cargo que ocupava era o foco do poder máximo da nação mais capitalista da história da civilização. O povo que escolhia ao ocupante desse cargo esperava, sobre tudo, que lhe desse amparo. Que o protegesse dos caprichos de potências estrangeiras, de delinquentes internos, de toda classe de inimigos. Esses inimigos tomavam muitas formas, algumas das quais não tinham sido previstas pelos pais da Pátria. Mas tinham previsto uma dessas formas, que se achava justamente nesse escritório...

Embora não tinha nada que ver com o que o Presidente pensava nesse momento.

Uma hora mais tarde, o sol saía sobre a costa do Caribe; a diferença do ambiente climatizado da Casa Branca, ali o ar era úmido e sufocante, e a alta pressão atmosférica fazia pressagiar um dia abafado.

Depois de atravessar as colinas verdejantes para o Oeste, os ventos ficavam reduzidos a tímidas brisas, e o proprietário do iate Empire Builder não via o momento de ir para o alto mar, onde o ar era fresco e o vento corria em liberdade.

Os tripulantes chegaram tarde. Não gostou do aspecto tinham, mas isso não tinha importância. O

importante era que guardassem a devida compostura, agora que saía a navegar com toda a família.

– Bom dia, senhor. Meu nome é Ramón e ele é Jesus – disse o mais alto dos dois. Havia algo indefinível no aspecto dos dois homens que perturbava ao dono do iate, uma espécie de maquiagem que parecia encobrir não se sabia o que. Mas talvez só quisessem se mostrar apresentáveis.

– Poderão dirigi-lo? – perguntou.

– Sim. Temos experiência com os grandes iates de motor – respondeu o homem, mostrando os dentes brancos e deslumbrantes em um amplo sorriso.

Evidentemente, o tipo sempre cuidava de parecer apresentável, pensou o dono. Seus temores se desvaneciam.

– E Jesus é bom cozinheiro, o senhor verá.

Encantador, o filho de puta, pensou.

– Bom, o camarote da tripulação está na proa. Já tem combustível e os motores estão ligados.

Vamos de uma vez, que quero um pouco de ar fresco.

– Muito bem, capitão.

Ramón e Jesus descarregaram seus pertences do jipe. Tiveram que ir e voltar várias vezes, mas, pouco antes das nove, o Empire Builder soltou amarras, zarpou e, ao sair do porto, deixou atrás um grupo de embarcações maiores carregadas de turistas ianques com equipamentos de pesca esportiva. Ao chegar a mar aberto, o iate tomou rumo Norte para um cruzeiro de três dias.

Ramón estava no comando. Isso significava que ocupava uma grande poltrona elevada sobre convés enquanto o piloto automático controlava o leme. O Rhodes era fácil de dirigir, com seus estabilizadores laterais. O único problema era a falta de comodidades para a tripulação. Típico dos donos destes navios, pensou Ramón. Gastam milhões de dólares para equipá-los com radar e todo tipo de brinquedos, mas à tripulação que os governa não dão sequer um televisor ou um videocassete para se entreter durante o descanso...

Levantou-se no assento e esticou o pescoço para olhar o castelo de proa. O dono roncava ruidosamente, como se estivesse esgotado depois do esforço de fazer-se ao mar. Ou talvez o esforço de atender a sua esposa, estendida a seu lado, de barriga para baixo sobre uma toalha, e com a parte superior do biquíni tirada para bronzeá-la costas. Ramón sorriu. Seria um cruzeiro muito agradável. Mas era melhor esperar: melhor seria o prazer.

Do salão principal, a popa, chegava-lhe a música de um filme: ali estavam os filhos do dono. Em nenhum momento sentiu a menor compaixão pelas quatro pessoas. Mas não deixava de sentimentos.

Jesus era bom cozinheiro e aos dois parecia certo que os condenados desfrutassem de um excelente último jantar.

A luz bastava para ver sem os óculos de visão noturna: era o crepúsculo do amanhecer, a hora mais temida pelos pilotos de helicópteros, o olho deve adaptar-se sucessivamente à primeira claridade do céu e a Terra, ainda sumida na penumbra. O pelotão do sargento Chávez ocupava o helicóptero: cada homem estava preso com um cinto de segurança e levava sua arma entre as pernas. O helicóptero “Blackhawk UH-60A” sobrevoou a crista de uma colina e logo desceu rapidamente.

– Trinta segundos – indicou o piloto a Chávez pelo intercomunicador.

Era um exercício de infiltração clandestina, no qual, o helicóptero seguia os acidentes do terreno para confundir qualquer observador casual. O “Blackhawk” desceu rapidamente, e, centímetros antes de tocar o chão, o piloto acionou a alavanca de controle de maneira que o nariz apontasse para cima. Ao mesmo tempo deu o sinal para que o chefe de tripulação abrisse a porta deslizante e os soldados soltassem seus cintos de segurança.

O “Blackhawk” não podia atrasar-se mais de uns segundos.

– Já!

Chávez saltou ao chão, correu uns três metros e se lançou corpo a terra, seguido por seus homens. O

“Blackhawk” se elevou imediatamente, despedindo-se de seus passageiros com punhados de terra na cara.

Voltaria a aparecer além da colina, como se não tivesse parado absolutamente. Em terra, o pelotão se desdobrou e avançou para as árvores. Para eles, o exercício tinha começado. O sargento deu suas ordens com gestos da mão e todos partiram para a trilha. Era a última missão; depois, o descanso.

No campo de prova e desenvolvimento de armamentos da Marinha, em China Lake, Califórnia, técnicos civis e especialistas em explosivos rodeavam um novo modelo de bomba. Suas dimensões eram quase igual às velhas bombas de mil quilos, mas pesava uns trezentos e vinte quilos a menos devido aos materiais de que era feita. A camisa não era de aço mas sim de celuloide reforçada com kevlar – a ideia de fabricar as camisas com fibras naturais era dos franceses – com algumas aplicações de metal nos lugares onde se inseriam as aletas ou os complexos acessórios que a transformavam em uma BGL capaz de seguir um alvo predeterminado. Poucas pessoas sabem que as chamadas “bombas inteligentes” são artefatos comuns que lhes acoplam um mecanismo de orientação.

– Não vai lançar pedaços – objetou um civil.

– Do que serve um bombardeio invisível ao radar se o inimigo conseguir um rebote na bomba –

replicou outro técnico.

– Bom... – grunhiu o primeiro – . Do que serve uma bomba que só faz cócegas ao inimigo.

– Mas se a deixar cair sobre seu telhado, vai sentir algo mais que cócegas, não?

– Claro... – Em todo caso, sabia qual era o destino dessa bomba: o Avião Tático Avançado, ATA, um bombardeiro de ataque, apoiado por um porta-aviões, provido da tecnologia necessária para evitar o radar. Já era hora da Marinha incorporar essa tecnologia, pensou. Mas agora se tratava de verificar se a nova bomba, com o peso e o centro de gravidade alterados, era capaz de acertar o alvo com um aparelho BGL padrão. A grua elevou o artefato de sua plataforma de carga. O operador manobrou até colocá-lo sob o centro de carga de um bombardeiro de ataque A-6E “Intruder”.

Os técnicos e os oficiais abordaram o helicóptero para serem transportados ao campo de provas.

Não tinham pressa. Uma hora mais tarde, na segurança de um búnker claramente sinalizado, um dos técnicos civis apontou um aparelho de aspecto estranho para o alvo, a seis quilômetros de distância. Era um velho caminhão de cinco toneladas, abandonado pelos fuzileiros e que, se tudo saísse bem, sofreria uma morte espetacular e violenta.

– Avião se dirige a campo de provas. Comecemos.

– Entendido – disse o civil, e acionou o disparador da BGL – . Apontando.

– Avião confirma o recebimento... Preparados...

No outro extremo do búnker, um oficial observava a imagem transmitida por uma câmara de televisão acoplada ao “Intruder”.

– Bomba lançada. Um lançamento do expulsor. – Mais tarde veria a mesma imagem de outro ângulo, tomada por uma câmara acoplada ao caça-bombardeiro “Skyhawk” A-4 que seguia ao A-6.

Poucos sabem que o lançamento de uma bomba de um avião é um exercício complexo e arriscado. Uma terceira câmara seguia a trajetória descendente da bomba.

– As aletas funcionam bem. Aí vai...

A câmera do caminhão era, é obvio, de alta velocidade. A queda da bomba se fazia com muita rapidez para captá-la na primeira imagem, mas quando a nota grave, devastadora, da detonação chegou ao búnker, o operador já rebobinava o tampe. O replay se fazia quadro a quadro.

– Aí está a bomba. – O nariz apareceu a quinze metros acima do caminhão – . Que tipo de espoleta tem?

– “Teve” – disse um dos militares. TV queria dizer “tempo variável”. A bomba levava um minitransceptor de radar no nariz e estava programada para explorar a uma determinada distância do chão, neste caso a um metro setenta e cinco, quase o momento do impacto sobre o caminhão – . O ângulo parece perfeito.

– Eu disse que ia funcionar bem – observou um engenheiro. Tinha sugerido que, por se tratar de uma bomba de quinhentos quilos, devia-se programar o aparelho de orientação para esse peso. Embora na realidade fosse um pouco mais pesada, a menor densidade da camisa de celulose induzia esse comportamento balístico.

A detonação, como sempre acontece com as imagens de alta velocidade desse fenômeno, a tela ficou sucessivamente branca, vermelha e negra à medida que a expansão dos gases liberados pela explosão esfriava o ar, a frente dos gases avançava a onda de choque: era simplesmente o ar, comprimido a um grau tal que se era mais denso que o aço e se deslocava mais rápido que uma bala. Nenhuma prensa mecânica podia simular esse efeito.

– Acabamos de matar um caminhão – disse alguém. A observação estava certa. A quarta parte da massa do caminhão estava esmagada no fundo de uma cratera de um metro de profundidade e uns vinte de diâmetro. O resto se desintegrou em pedaços, lançadas para os lados. O efeito geral era o de um carro bomba como os usados pelos terroristas, mas muito mais seguro do ponto de vista do motorista, pensou um dos civis.

– Caramba... Foi muito fácil. Tem razão, Ernie, nem sequer fez falta reprogramar o localizador –

comentou um capitão de fragata. Estava convencido de que tinham economizado mais de um milhão de dólares à Marinha, enganara-se.

Assim começou um processo que, na realidade, nem tinha começado ainda nem terminaria rapidamente, e em que muitas pessoas se deslocariam em distintas direções de distintos pontos de partida, para realizar missões que acreditavam compreender. Estavam em enganados, mas isso era muito melhor.

O futuro se apresentava aterrador, e além dos limites esperados e ilusórios, as decisões tomadas essa manhã dariam lugar a sucessos que não convinha contemplar.

I

O REI DO B&R

Ao contemplar seu navio, Rede Wegener sentia sempre uma profunda satisfação. O Navio da guarda costeira Panache era único em sua classe devido a um erro de desenho, mas era seu navio. O

casco, de cor branca, deslumbrava como um tímpano, com aquela franja alaranjada na proa que identifica o Serviço de Guarda costeira dos Estados Unidos. Com seus oitenta e seis metros de comprimento, o Panache não era um navio grande, mas, era o maior que tinha comandado, e certamente o último.

Wegener era o capitão de corveta mais velho da Força, mas também o indiscutível rei das missões de busca e resgate.

O início de sua carreira era similar ao de muitos de seus colegas. Criou-se nos trigais do Kansas, a milhares de quilômetros do mar. O dia que terminou seus estudos do ensino médio, farto de ver tratores e colheitadeiras, decidiu procurar algo diferente e se dirigiu ao escritório de recrutamento do serviço de Guarda-costeira. O contramestre que recebeu sua solicitação não teve que esforçar-se muito para entusiasmá-lo, e uma semana depois iniciou sua carreira com uma viagem de ônibus até Cape Mai, Nova Jersey. Anos depois, lembrava-se do suboficial que inculcou nos recrutas a divisa dos Guarda-costeira: “É

obrigado a zarpar, mas não a voltar”.

Em Cape Mai, Wegener teve a oportunidade de frequentar a última verdadeira escola náutica do Ocidente. Aprendeu a dirigir as cordas e fazer nós marinheiros, apagar incêndios, jogar-se na água para resgatar um náufrago ferido ou assustado e a realizar as coisas bem da primeira vez, sempre... Sob o risco de não sair com vida. Ao terminar o curso, destinaram-no à costa do Pacífico. Um ano depois foi promovido a segundo contramestre.

Seus superiores observaram rapidamente que Wegener possuía esse dom natural tão incomum chamado “instinto de marinheiro”. Em outras palavras, suas mãos, seus olhos e seu cérebro atuavam concertadamente para submeter o navio a sua vontade. Guiado por um duro e velho contramestre, obteve rapidamente o “comando” de “seu” navio: um patrulheiro de portos de dez metros de comprimento.

Quando era para realizar uma tarefa realmente difícil, o suboficial acompanhava o jovem cabo. Wegener, do começo, demonstrou que a primeira experiência lhe bastava para assimilar a lição. Os cinco primeiros anos de serviço, durante os quais aprendeu o ofício, passaram-se rapidamente. Não tinha lhe acontecido nada espetacular: só tinha realizado uma série de trabalhos, de acordo com as instruções, com eficácia e rapidez. Quando chegou o momento do reengajar, não tinha dúvida de que seu nome era o primeiro em aparecer cada vez em que se devia realizar uma missão difícil. Ao finalizar seu segundo reengajamento, era o homem a quem os oficiais consultavam sempre. Aos trinta anos, era um dos segundos contramestres principais mais jovens do serviço e tinha conquistado certa influência graças a qual lhe deram o comando do Invincible, um barco de dezesseis metros, sólido e confiável. A tempestuosa costa californiana era seu lar e foi ali onde a fama de Wegener começou a transcender os limites do serviço. Quando um navio pesqueiro ou um iate tinha problemas, o Invincible aparecia, em meio das ondas de dez metros, com os tripulantes presos na convés por meio de cinturões e cordas, mas preparados para entrar em ação ao comando de um homem ruivo com um cigarro apagado entre os dentes. Aquele ano salvou a mais de quinze pessoas.

Ao finalizar seu período de serviço nesse posto solitário salvou mais de cinquenta. Dois anos depois lhe deram o comando de um posto, e ganhou o título ao que todos os marinheiros aspiram – de capitão – , embora seu grau era o de suboficial da Marinha. O posto estava situado na margem de um rio que desemboca no maior oceano do mundo, e ele o comandava como se se tratasse de um navio: os oficiais inspetores concorriam, não para inspecionar o trabalho de Wegener, mas para ver como fazia as coisas.

Para bem ou para mau, uma colossal tempestade que se abateu sobre a costa do Oregon alterou por completo a carreira de Rede Wegener. Que então comandava um importante posto de resgate, perto da desembocadura do rio Columbia, com seus traiçoeiros bancos de areia. Um dia recebeu uma desesperada chamada de auxílio do pesqueiro de alto mar, o Mary-Kat. Com as máquinas e o leme avariados, o vento o arrastava para uma costa de sotavento que era um verdadeiro cemitério de navios. Um minuto e meio depois, seu navio insígnia, o Point Gabriel, de vinte e sete metros, soltou amarras enquanto sua tripulação mista de veteranos e aprendizes ajustava os cintos de segurança e Wegener coordenava o resgate através de seus próprios canais de rádio.

Foi uma batalha épica. Ao cabo de seis horas de titânica luta, Wegener pôde resgatar aos seis pescadores do Mary-Kat; segundos depois, o pesqueiro encalhava em uma rocha submersa e se partia em dois.

Quis o Destino que nessa oportunidade se encontrasse a bordo um jovem jornalista do Portland Oregonian, que além de tudo era um marinheiro aficionado, convencido de que sabia tudo sobre o mar.

Enquanto o navio avançava em meio das gigantescas ondas dos bancos do Columbia, o jornalista tomava apontamentos, vomitava sobre seu caderno, limpava-o e seguia escrevendo. Publicou logo uma série de notas especiais sobre “O anjo dos bancos de areia” ganhando o prêmio Pulitzer de jornalismo.

Um mês depois, o senador do Estado do Oregon, cujo sobrinho tinha sido um dos tripulantes resgatados do Mary-Kat, perguntou-se em voz alta como era possível que um marinheiro do quilate de Rede Wegener não ter o grau de oficial. O comandante da Guarda-costeira, um almirante, que se encontrava presente para discutir as circunstâncias do serviço, decidiu dar atenção ao comentário, e, ao final dessa semana, Rede Wegener foi promovido a alferes de fragata, porque ao senador pareceu que era muito velho para ser alferes de corveta. Três anos depois foi recomendado para o primeiro posto de comando que ficou vago.

Havia um só problema, pensou o comandante. O comando do Panache podia parecer um presente grego aos troianos. Sua construção estava quase terminada.

Devia ser o primeiro de uma nova classe de navios, mas os recursos tinham acabado, o estaleiro empreiteiro havia quebrado e o capitão encarregado de pô-lo em serviço tinha sido rebaixado por incompetência. Em outras palavras, o serviço tinha em seu poder um casco de navio meio construído, com as máquinas que não funcionavam, em um estaleiro falido. Mas Wegener tinha fama de fazedor de milagres, pensou o comandante. Para lhe dar a melhor oportunidade possível, atribuiu-lhe vários suboficiais de mais velhos e peritos, em compensação pela falta de experiência dos oficiais.

Para entrar no estaleiro teve que atravessar um piquete de operários em greve. Uma vez superado esse obstáculo pensou que o pior já tinha passado. E então viu pela primeira vez o que disseram ser o seu navio: um despropósito de aço, bicudo numa extremidade e arredondado na outra, pintado pela metade, a convés cheia de cabos, gavetas e trastes. Parecia um cadáver putrefato, abandonado na maca da sala de cirurgia. Para cúmulo do azar, não podiam baixar o Panache do dique seco para a água: antes de partir, um operário tinha queimado o motor de uma grua que fechava o caminho.

O capitão anterior já tinha partido em desgraça. A tripulação se reuniu na convés para recebê-lo, com expressões de garotos obrigados a assistir ao enterro de um tio miserável, e quando Wegener quis lhes dirigir a palavra, descobriu que o microfone não funcionava. Com isso se rompeu o mal-estar.

Wegener soltou uma gargalhada e indicou a eles que se aproximassem.

– Cavalheiros, sou Rede Wegener – disse – , dentro de seis meses, este será o melhor navio e vocês a melhor tripulação do Serviço da Guarda-costeira de Estados Unidos da América. Isso eu não conseguirei sozinho e conto com vocês, por hora darei todos os passes que sejam possíveis, enquanto estudo a situação.

Desfrutem o descanso. Porque quando voltarem, nos iremos trabalhar. Fora de forma!.

Um suspiro coletivo de alívio veio da tripulação, que tinha esperado um sermão cheio de gritos e ameaças. Os suboficias levantaram as sobrancelhas e se olharam, enquanto os jovens oficiais, que momentos antes tinham acreditado estar no final de sua carreira, retiraram-se para a câmara de oficiais comentando o seu assombro. Antes de ir conhecê-los, Wegener se reuniu com seus três suboficias.

– Comecemos pelas máquinas – disse.

– Posso dar cinquenta por cento de potência em vinte e quatro horas, mas bastaria acender os turbocompressores para que tudo se vá ao diabo em quinze minutos – disse o suboficial Owens. – E não consigo descobrir por que. – Mark Owens tinha dezesseis anos de experiência com os motores diesel de navio.

– Pode nos levar a baía Curtis?

– Sim, capitão, se não importar demorar um dia mais.

– Perfeito – replicou Wegener, e lançou sua primeira bomba: – Zarpamos dentro de duas semanas para colocá-lo em serviço lá.

– O novo motor da grua não chegará até dentro de um mês, capitão – interrompeu o contramestre ajudante Bob Riley.

– As engrenagens giram?

– Sim, senhor, mas a bobina do motor está queimada.

– Quando chegar o momento, amarraremos um cabo da proa até a culatra da grua. Temos um lance de vinte e cinco metros de água. Soltamos a embreagem, jogamos com muito cuidado, acionamos a grua manualmente.

Franziram as sobrancelhas.

– Poderia destruir a grua – observou Riley depois de pensar um instante.

– Que se dane a grua não é minha, mas este é o meu navio.

Riley soltou uma gargalhada.

– Bem-vindo a bordo, Rede... Perdão, capitão Wegener!

– O primeiro passo é chegar a Baltimore para fazer a equipagem. Vejamos o que temos que fazer e faremos passo a passo. Todo mundo em forma amanhã às sete. Você ainda prepara o café como sempre,

“Português”?

– Sem dúvida, senhor. Trarei uma garrafa térmica – disse o primeiro contramestre Oreza.

Os fatos deram a razão a Wegener. Doze dias depois, o Panache estava preparado para zarpar, apesar das gavetas e trastes presos de qualquer maneira sobre a convés. Retiraram a grua antes do amanhecer para que ninguém os visse; e, mais tarde, os grevistas demoraram vários minutos para perceber a ausência do navio. Isso tinha parecido impossível: nem sequer estava pintado.

Realizaram essa tarefa no estreito da Florida, junto com outra ainda mais importante. Um meio-dia, quando Wegener cochilava em sua poltrona de couro na ponte, o assobio do intercomunicador despertou: era o suboficial Owens, que lhe pedia que descesse à sala de máquinas. O suboficial, o marinheiro aprendiz de maquinista e o oficial chefe de máquinas rodeavam a mesa de trabalho, convés de planos.

– Isto é incrível, mas verdade – anunciou Owens – . Diga-lhe rapaz.

– Marinheiro raso Obrecki, senhor. O motor está mal instalado – disse o jovem.

– por quê?

Era um novo tipo de motor à diesel marinhos, desenhado supostamente para facilitar sua operação e manutenção. Com esse fim, fornecia-se a cada tripulante da sala de máquinas de um pequeno manual de instruções que incluía um diagrama plastificado, mais fácil de interpretar que os planos do fabricante.

A empresa também fornecia um esboço ampliado, preso à mesa de trabalho.

– Senhor, esta máquina é muito parecida com a do trator de meu pai. É maior, mas...

– Está bem, Obrecki, acredito. Continue.

– O turbocompressor está mal instalado. Coincide com estes planos, mas a bomba faz circular o óleo em sentido contrário. Há um engano nos planos, senhor. Culpa do desenhista. Olhe, capitão: a entrada deveria ser por aqui, mas o desenhista assinalou aqui e ninguém se deu conta, e...

Wegener riu e se voltou para o Owens.

– Quanto demorarão para arrumá-lo?

– Obrecki diz que pode o preparar em vinte e quatro horas, capitão.

– Senhor – interrompeu o alferes de navio Michelson, chefe de máquinas. – A culpa é minha.

Deveria haver... – O oficial esperava que o mandassem ao xadrez.

– A lição deste episódio, alferes Michelson, é que não deve confiar nem sequer no manual.

Entendido?

– Entendido, senhor!

– Ok. Obrecki, você é marinheiro raso de primeira classe, verdade?

– Sim, senhor!

– Errado. É ajudante de maquinista de terceira classe.

– Senhor, tenho que ser aprovado em um exame escrito...

– Sr. Michelson, você diria que Obrecki foi aprovado no exame?

– Certamente, senhor.

– Felicitações a todos, cavalheiros. Amanhã há esta hora quero fazer vinte e três nós.

A daí tudo aconteceu como ordenado. O motor é o coração do navio, e não há marinheiro no mundo que prefira um navio lento a um veloz. Uma vez que o Panache demonstrou que era capaz de manter uma velocidade de vinte e cinco nós durante três horas, os pintores começaram a pintar melhor, os cozinheiros a esmerar na comida e os técnicos a apertaram melhor as porcas. O navio já não estava aleijado e o orgulho banhou a todos como o sol depois de uma chuva do verão, em especial porque um dos seus havia resolvido o problema. O Panache chegou ao estaleiro naval de baía Curtis um dia antes do previsto.

Wegener estava no leme e usou toda sua perícia para atracar sem o menor incidente. “O velho sabe dirigir este navio fodido”, observou alguém no castelo de proa.

No dia seguinte, um lema apareceu no quadro de avisos de bordo: PANACHE: AUDÁCIA E

DESENVOLTURA NO ANDAR. Sete semanas depois, o navio entrou em serviço ativo e se dirigiu para o Sul, para o porto de Mobile, Alabama, preparado para entrar em ação. Sua reputação justificava já o seu nome.

Nessa manhã havia nevoeiro, algo que não incomodava o capitão, mas a missão, sim. O Rei do B&R se transformou em policial. A missão da guarda costeira mudou quando ele estava bem antigo na carreira, mas isso não se notava nos bancos de areia do rio Columbia, onde os inimigos continuavam sendo o vento e as ondas. No golfo do México, esses mesmos inimigos coexistiam com outro. As drogas.

Wegener não pensava muito nisso. Para ele, a droga era algo que alguém tomava quando o médico receitava: as pessoas seguiam as instruções impressas no frasco até que ficasse vazio. Quando queria alterar seu estado mental, recorria ao remédio tradicional dos marinheiros – a cerveja ou as bebidas mais fortes, – mas o fazia com menor frequência agora que se aproximava dos cinquenta. Sempre teve medo de agulha – cada qual tem seu medo, – e a mera ideia de que alguém a cravasse voluntariamente em seu próprio braço não deixava de assombrá-lo. Quanto ao de aspirar um pó branco pelo nariz... Bom, isso superava todo o assombro. Não era ingênuo: só refletia as ideias da época em que foi criado. Era consciente da existência do problema. Como todos os membros das Forças Armadas, devia submeter-se a uma análise periódica para demonstrar que não consumia “substâncias controladas”. Para os tripulantes mais jovens era uma rotina, mas para os de sua idade indicava uma doença e um insulto.

Sua preocupação imediata eram os traficantes de drogas, mas a mais imediata, ainda, era um ponto na tela de seu radar.

Estavam longe de sua base, a cento e cinquenta quilômetros da costa mexicana. O Rhodes devia ter retornado a porto fazia horas. O dono se comunicou dias antes para informar que ia demorar para voltar...

Mas seu sócio achou estranho e se comunicou com o posto local da guarda-costeira.

Averiguaram que o dono, um comerciante milionário, dificilmente se afastava da costa durante mais de três horas. A velocidade de cruzeiro do Rhodes era de quinze nós.

O iate media vinte metros de comprimento e era o suficientemente grande para precisar de um par de marinheiros, mas não tanto para que a lei o obrigasse a obter uma permissão especial. Podia levar até quinze passageiros e dois tripulantes e seu valor superava os dois milhões de dólares. O proprietário, corretor de imóveis e dono de um pequeno império nos subúrbios de Mobile, era um novato em questões náuticas e um homem prudente. “E por isso mesmo, inteligente”, pensou Wegener. Muito estranho afastar-se tanto da costa, consciente de suas limitações, algo fora do comum entre os navegantes aficionados, em especial os mais ricos. Duas semanas antes tinha partido para o Sul, bordejando a costa e efetuando algumas paradas, mas tinha demorado para volta e faltara a uma entrevista de negócios. Seu sócio disse que não o teria feito sem um motivo poderoso. Um avião de reconhecimento tinha avistado o iate no dia anterior mas não houve comunicação. O comandante do distrito decidiu que havia algo estranho em tudo aquilo e ordenou ao Panache, o navio mais próximo ao iate, que desse uma olhada.

– Dezesseis mil metros. Rumo zero e sete um – disse o principal Oreza. – Velocidade, doze nós. Ele não vai para Mobile, capitão.

– A névoa se levantará em uma hora, ou hora e meia – disse Wegener. – Vamos já, Sr. Ou’Neil, adiante a toda força. Principal, me diga o rumo de interceptação.

– Um e seis cinco, senhor.

– Siga esse rumo. Se a névoa levantar, ajustaremos quando estivermos a cinco ou seis quilômetros e nos aproximaremos por sua popa.

O alferes de corveta Ou'Neil deu as ordens ao timoneiro. Wegener se aproximou da mesa de mapas.

– Para onde diria que vai, Português?

O contramestre projetou o rumo, que não parecia dirigir-se a um lugar em especial.

– Está na velocidade de cruzeiro mais econômica..., não vai a nenhum porto do golfo, diria eu.

O capitão calculou a distância sobre o mapa.

– A capacidade dos tanques do iate é de... – Franziu as sobrancelhas. – Suponhamos que os encheu antes de zarpar. Tem mais que o suficiente para chegar às Bahamas. Volta a abastecer e pode atracar em qualquer porto da costa atlântica.

– Piratas – conjeturou Ou’Neil. – Faz muito que não nos cruzamos com um destes.

– O que te faz pensar isso?

– Senhor, se eu tivesse um navio tão grande, jamais me ocorreria navegar na névoa sem radar. E o deste barco não está operando.

– Tomara você esteja enganado, filho – disse o capitão. – Lembra a última vez que nos cruzamos com um, suboficial?

– Foi faz cinco anos, talvez mais. Acreditava que já não havia mais desses bandidos.

– Bom, dentro de uma hora saberemos. – Wegener contemplava a névoa. A visibilidade se reduziu a duzentos metros. voltou-se para a tela do radar. O iate era o alvo mais próximo. Meditou um instante e passou o aparelho de ativo a passivo. Informes de Inteligência diziam que os narcotraficantes tinham a equipe necessária para detectar os sinais de radar. – Reacenderemos o quando encontrarmos a oito ou dez quilômetros do objetivo – disse.

– Entendido, senhor – respondeu o jovem oficial.

Wegener se acomodou em sua poltrona de couro e tirou o cigarro do bolso da camisa. Ultimamente fumava muito pouco, mas era parte da imagem que ele criou para si mesmo. Pouco depois, o guarda da ponte iniciava a rotina normal. De acordo com a tradição, o capitão subia à ponte para fazer a verificação do quarto da manhã – durante as duas horas em que o oficial de serviço era o oficial ajudante de menor antiguidade, – mas Ou’Neil era um rapaz competente e a presença da Oreza bastava para resolver qualquer problema. O Português Oreza tinha uma reputação similar a de seu capitão. Em seus três anos na Escola de Guarda-costeira tinha ajudado a forjar toda uma geração de oficiais, assim como Wegener se destacou na formação de recrutas.

Além disso, Oreza conhecia a importância de uma boa xícara de café, e se a gente subisse à ponte durante o quarto do Português, sábia que podia contar com isso.

Chegou no momento oportuno, servido na caneca especial usada pela guarda-costeira, em forma de floreiro de base larga, revestida de borracha por fora, e bordo superior estreito para te dar estabilidade.

Estava desenhada para os velozes patrulheiros, mas também era útil no Panache, de marcha rápida.

Wegener quase não notava.

– Obrigado, suboficial – disse ao aceitar a xícara.

– Uma hora, acredito.

– Sim, penso o mesmo – assentiu Wegener – . Ocuparemos nossos postos de combate às zero e sete quarenta. Quem está no bote de abordagem?

– Sr. Wilcox. Kramer, Abel, Dowd e Obrecki.

– Obrecki tem experiência nisto?

– O fazendeiro sabe usar as armas, senhor. Riley fez uma prova.

– Mande Riley substituir Kramer.

– Cheira algum problema, senhor?

– Não sei, há algo que eu não gosto.

– Uma avaria no transmissor, diria eu. Não vimos um pirata há..., droga nem me lembro da última vez, mas, pode ser. Chamo Riley?

O capitão assentiu. Oreza enviou a ordem e Riley se apresentou na ponte minutos depois. Os dois suboficias e o capitão saíram ao beiral da ponte a conferenciar. Demoraram apenas um minuto, pelo relógio de Ou’Neil. O jovem alferes esperava que o comandante confiasse mais nos oficiais que nos suboficias, mas os velhos capitães tinham costumes bastante estranhos.

O Panache cavalgava sobre as ondas a toda velocidade. Sua velocidade máxima era de vinte e três nós, mas alcançava os vinte e cinco com pouca carga e em águas tranquilas. Quando os turbocompressores injetavam ar nos motores diesel, a velocidade logo que superava os vinte e dois nós.

Nessas condições, era difícil conservar o equilíbrio na ponte: tem que manter os pés afastados. A umidade do nevoeiro se condensava nas janelas da ponte. O oficial ligou o limpador de para-brisas. Saiu para o beiral e contemplou o nevoeiro. Não gostava de navegar sem radar. Ou’Neil aguçou o ouvido, mas só ouvia o surdo ruído dos motores do Panache. Culpa da névoa: uma mortalha úmida que, além de entorpecer a visão, absorvia os ruídos. Além dos motores, só se escutava o sussurro da proa do casco de navio ao romper a água. voltou-se um instante para a popa antes de entrar na ponte. Com sua pintura branca, o casco de navio ficava quase invisível.

– Não há sereias na névoa lá fora – disse. O sol já vai sair.

– Em menos de uma hora – assentiu o capitão. – E fará calor. Temos a previsão meteorológica?

– Preveem tempestades para esta noite, senhor. A frente que passou por Dallas a meia-noite, causou alguns danos, inclusive dois ciclones que atravessaram uma praia de trailers.

Wegener balançou a cabeça.

– Eu não sei o que têm os trailers, parecem atrair às tempestades... – parou e se aproximou do radar.

– Preparado, suboficial?

– Preparado, senhor.

Wegener acendeu o aparelho e se inclinou sobre a pestana de borracha da tela.

– Quase no centro do alvo, suboficial. Contato rumo um e seis zero, distância seis mil. Sr. Ou’Neil, vire à direita, a um e oito cinco. Oreza, indique quando virarmos à esquerda para nos aproximarmos dele por atrás.

– Entendido, capitão. Um minuto.

Wegener apagou o radar e se endireitou.

– Postos de combate.

Tal como o tinham planejado, quando o alarme soou, todo mundo tinha tomado o café da manhã.

Além disso, já tinha se espalhado que possivelmente seria um “traficante”

Navegando em meio da névoa. O grupo de abordagem se reuniu junto ao “Zodiac” inflável. Cada um carregava um fuzil automático M-16, uma escopeta anti-motins e pistolas automáticas calibre 9 mm.

Outro pelotão assumiu canhão de 40 mm colocado na proa: um “Bofors” sueco tirado de um destróier da Marinha, o objeto mais velho que havia a bordo, sem contar o capitão. Um marinheiro retirou a capa de plástico de uma metralhadora pesada M-2 calibre .50, quase tão velha como o “Bofors”, que estava colocada atrás da ponte de comando.

– Recomendo virar à esquerda, senhor – disse o suboficial Oreza.

O capitão acendeu o radar.

– Virar à esquerda a zero e sete zero. Aproximação ao alvo por sua banda de bombordo.

A névoa começava a dissipar-se. A visibilidade era de quase quinhentos metros, mais ou menos, conforme entravam e saíam dos bancos de bruma. O suboficial Oreza olhou o radar enquanto os outros ocupavam seus postos de combate normais na ponte. Tinha aparecido um alvo novo, a uns trinta quilômetros da costa: talvez fosse um navio tanque que se dirigia a Galveston, mas a rotina exigia que determinassem sua posição.

– Distância do alvo, dois mil metros. Rumo constante a sete e zero sete. O alvo mantém rumo e velocidade constantes.

– Bem, o avistaremos em cinco minutos.

Wegener olhou ao redor. Os oficiais tinham os binóculos nos olhos. Era uma perda de tempo, mas ainda não tinham entendido.

Saiu ao beiral da ponte e olhou o grupo de abordagem. O alferes Wilcox levantou o polegar, e, a suas costas, o contramestre principal Riley assentiu para ratificá-lo. Um suboficial principal experiente dirigia a grua. Não era difícil lançar o “Zodiac” no mar nessas condições, mas o mar sempre se reservava suas surpresas. A calibre .50 apontava para cima; no seu flanco esquerdo estava pendurada a caixa de munição. Da proa chegou um estalo metálico: carregaram o canhão.

Antes nós nos aproximávamos para ajudar às embarcações avariadas. Agora carregamos os canhões, pensou Wegener. Droga!

– Estou vendo eles – avisou um vigia.

Wegener se voltou para proa. Não era fácil distinguir o iate branco entre a névoa, mas a popa se via com clareza. Ele levantou os binóculos para ler o nome: Empire Builder. Era o que procuravam. Não levava bandeira no mastro, mas isso acontecia com frequência. Não havia ninguém à vista, e o iate seguia seu rumo. Por isso tinha se aproximado pela popa. Desde que o barco se fez ao mar, a não houve nenhum vigia, pensou.

Espere por surpresas, pensou Ou’Neil ao sair para beiral junto ao capitão. A lei do mar.

Wegener balançou a cabeça.

– O radar não gira. Deve estar avariado.

– Veja a foto do dono do Empire Builder, senhor.

Não a tinha visto antes. Quarentão, provavelmente se tinha casado aos trinta, porque, conforme as informações, acompanhavam-no dois meninos, um de oito anos e outro de treze, além de sua mulher. Um homem robusto, metro oitenta, calvo e gordo, de pé em um cais junto a um peixe-espada de bom tamanho. Deve ter gasto muito esforço para pescá-lo, pensou Wegener ao ver as queimaduras do sol no rosto e as pernas... Elevou os binóculos.

– Muito perto – comentou. – Vire a bombordo, Sr. Ou’Neil.

– Entendido, senhor. – Ou’Neil voltou para leme.

Idiota, pensou Wegener. A esta altura deveriam ter nos escutado. Bom, isso se arruma muito facilmente:

– Acordem eles!

Havia uma sereia presa ao mastro, similar às que usam os carros patrulha e as ambulâncias, mas muito maior. O alarido quase sobressaltou o capitão. E teve o efeito desejado: antes que Wegener contasse até três, uma cabeça apareceu da popa do iate. Não era a do dono.

O iate virou à direita.

– Idiota! – grunhiu o capitão, e ordenou: – Aproxime-se!

O barco da Guarda Costeira virou à direita. A popa do iate se afundou um pouco ao tomar velocidade, mas não podia afastar-se do Panache. Dois minutos depois, o barco da Guarda-costeira se aproximava do iate de través. A essa distância não podiam disparar o “Bofors”. Wegener ordenou que enviassem uma salva de aviso por cima da proa do Empire Builder.

A calibre .50 soltou uma estrondosa salva. Embora o ocupante do iate não visse as chamas, o ruído era inconfundível. Wegener tomou o microfone do alto-falante:

– Atenção, Guarda Costeira. Pare imediatamente, e prepare-se para a abordagem!

A indecisão do piloto era evidente. O iate virou à esquerda sem alterar sua velocidade. Um homem correu à popa e içou uma bandeira: a panamenha, viu Wegener, e sorriu, divertido. O passo seguinte era dizer pelo alto-falante que a Guarda Costeira não tinha autoridade para abordá-lo. O sorriso de Wegener se desvaneceu.

– Atenção, Empire Builder, este é um navio do serviço da Guarda Costeira dos Estados Unidos.

Você é um navio de bandeira americana. vamos abordá-lo. Pare... já!

O iate obedeceu: a proa se elevou da água ao deter sua marcha, e o barco da Guarda Costeira teve que aplicar toda sua potência em reverso para evitar passar direto.

Wegener saiu e agitou a mão para chamar a atenção do pelotão de abordagem. Fez um gesto como se carregasse uma pistola automática.

Era sua maneira de lhes dizer que tomassem cuidado. Riley deu duas palmadas à cartucheira de sua pistola para lhe indicar ao capitão que os do pelotão não eram bobos. Baixaram o “Zodiac” à água. Logo ordenaram aos ocupantes do iate que aparecessem. Dois homens saíram a convés. Não se pareciam com a foto do dono. A metralhadora da guarda-costeira apontava para eles, apesar do mar agitado. Era o momento mais tenso da operação. O Panache só poderia proteger o pelotão de abordagem se abrisse fogo antes do outro, mas isso estava proibido. O serviço ainda não tinha sofrido por essa determinação, mas era questão de tempo e quanto mais tarde acontecesse, pior.

Wegener manteve seus binóculos cravados nos dois homens enquanto o “Zodiac” sulcava o trajeto entre os dois navios. Não levavam armas à vista, mas não era difícil ocultar uma pistola debaixo de uma camisa solta. Teria que estar louco para opor-se a uma abordagem nessas condições, mas o capitão sabia que o mundo estava cheio de loucos: tinha dedicado trinta anos de sua vida a resgatá-los. Agora se dedicava a deter aqueles cuja loucura maligna transcendia da mera imprudência.

Ou’Neil reapareceu a seu lado. O Panache estava parado na água, com os motores em ponto morto, e agora que as ondas o viravam de través, o ruído era mais forte e mais lento ao mesmo tempo. Wegener se voltou para a metralhadora. O marinheiro a apontava para o iate, mas mantinha seus dedos afastados do disparador, como o regulamento indicava. As cinco caixas de munição vazias se deslizavam sobre a convés. Wegener franziu o sobrecenho. Essas caixas eram um problema: terei que prende-las de algum jeito, o atirador da metralhadora poderia tropeçar com um deles e disparar por engano... voltou-se outra vez para o “Zodiac”, que se aproximava da popa do iate. Muito bem: abordariam por lá. O alferes Wilcox subiu à convés do iate e esperou a outros. O timoneiro aguardou que todos subissem, logo fez retroceder o bote de abordagem e acelerou para frente para acompanhar o avanço da tropa. Wilcox avançou pelo lado de bombordo, escoltado pelo Obrecki, que apontava a escopeta para o céu. Riley entrou na cabine seguido por sua escolta. O alferes se aproximou dos dois homens. Era estranho vê-los falar sem poder escutá-los...

Alguém disse umas palavras, a cabeça de Wilcox girou rapidamente a direita e esquerda, Obrecki baixou o cano da escopeta. Os dois homens caíram para o convés e desapareceram de vista.

– Parece um ataque, senhor – disse o alferes Ou’Neil.

Wegener deu um passo para a cabine de comando.

– Transmissor!

Um tripulante lhe passou um rádio “Motorola” portátil. Wegener ligou para escutar, mas, não comunicou-se. Não sabia o que tinham achado no iate, mas não deveria distraí-los. Obrecki permaneceu junto aos dois homens enquanto Wilcox se entrava no iate. Não tinha dúvida de que Riley tinha achado algo. A escopeta apontava para os dois e a tensão nos braços dele era visível.

O capitão voltou-se para o encarregado da metralhadora, cuja arma estava apontada para o iate:

– Coloque a trava!

– Entendido! – replicou o marinheiro, baixou suas mãos e o cano da arma apontou para o céu. O

oficial a seu lado fez um gesto de contrariedade. Era uma nova lição. Uma hora ou duas mais tarde viria o sermão: jamais se deixava passar um engano cometido com armas.

Wilcox reapareceu, seguido por Riley. O contramestre entregou dois jogos de algemas ao oficial, que se inclinou para as colocar. Por sinal, só havia dois a bordo; Riley guardou a pistola e Obrecki apontou a escopeta para cima. Wegener viu como voltava a travar a arma. O jovem fazendeiro realmente sabia manusear as armas, tinha aprendido igual a seu comandante. Por que tinha destravado a arma...?

Nesse instante, o transmissor rangeu.

– Wilcox ao capitão. – O alferes se deteve o falar e os dois homens se olharam a cem metros de distância.

– Aqui o capitão.

– A coisa está feia, senhor... Senhor, há sangue por toda parte. Um deles estava esfregando o salão, mas... é um açougue, senhor.

– São só dois?

– Afirmativo, dois homens a bordo. Algemados.

– Verifiquem – ordenou Wegener.

Wilcox cumpriu ordem dada: ficou com os prisioneiros para que o suboficial Riley prosseguisse a inspeção na embarcação. O contramestre reapareceu três minutos depois e balançou a cabeça. Wegener viu sua palidez através dos binóculos. O que tinha encontrado Riley para reagir assim?

– Só estes dois, senhor. Sem identificação. Acredito que não devemos registrar muito, mas bem...

– Correto. Deixe o Obrecki e um homem mais. Poderá levar o iate ao porto?

– Sim capitão. Há combustível de sobra.

– Há previsão de tempestade para esta noite.

– Conheço a previsão, senhor. Não há problema.

– Bem, espere que eu me comunique com terra para que eles organizem tudo.

– Entendido. Senhor, sugiro que envie a câmera de vídeo para complementar as fotografias.

– De acordo, vai para lá.

Transcorreu mais de meia hora antes que a base da guarda-costeira, o FBI e a DEA [3] ficassem de acordo sobre o procedimento a seguir. Enquanto isso, o “Zodiac” transportou outro tripulante com uma câmera e um gravador portáteis.

Tiraram sessenta fotos instantâneas com uma “Polaroid” e registraram tudo em vídeo. Os guarda-costeira ligaram os motores do Empire Builder e apontaram proa para Mobile enquanto o Panache o vigiava a bombordo. Wilcox e Obrecki conduziriam o iate a Mobile e um helicóptero iria levar os prisioneiros essa tarde... se o tempo o permitisse. O heliporto estava muito longe.

O navio da guarda-costeira devia ter seu próprio helicóptero, mas não havia verba para isso. Um terceiro marinheiro foi atribuído ao iate e chegou o momento de transladar os prisioneiros ao Panache.

O suboficial Riley os levou a popa. À vista de Wegener, o contramestre quase os jogou no

“Zodiac”. Cinco minutos depois, subiram a bordo. O iate tomou rumo Noroeste e o guarda-costeira continuou seu itinerário. O primeiro a voltar à ponte foi o marinheiro que tinha tirado as fotografias

“Polaroid”.

Passou meia dúzia ao capitão.

– O suboficial separou estas para que as visse, senhor. É pior do que parece nas fotos instantâneas.

Verá na filmagem. Está a ponto para copiar.

Wegener lhe devolveu as fotos.

– Bem, guarde tudo na caixa das provas e reúna-se com outros. Que Myers coloque outro cassete na câmera de vídeo e quero que todos digam para ela o que viram. Conhecem o procedimento. Façamos as coisas conforme o regulamento.

– Entendido, senhor!

Riley subiu a convés. Robert Timothy Riley apresentava o aspecto tradicional do contramestre principal: um metro noventa, noventa quilos, braços grossos e peludos como os de um gorila, ventre de bom bebedor de cerveja e uma voz rouca que, quando ele queria, era mais forte que o assobio do vento impetuoso.

Do seu lado direito estavam duas bolsas plásticas. Em seu rosto, a ira era visível.

– Esse iate parece uma droga de um matadouro, senhor. Como se tivessem arrebentado latas de tinta vermelha... só que não é tinta. Merda. – Levantou uma das bolsas – . O menor dos dois estava limpando a sala quando descemos. Há uma bolsa de resíduos com meia dúzia de cartuchos de escopeta usados.

Tirei estes dois do tapete como nos ensinaram, capitão. Levantei-as com a caneta e os meti na bolsa, sem os tocar. Duas pistolas que encontrei a bordo as deixei ali, em bolsas. Isso não é o pior. A bolsa seguinte continha uma fotografia emoldurada, certamente do dono e de sua família. E a terceira...

– Encontramos sob uma mesa, senhor. Violação. Acredito que estava menstruada, mas isso não lhes impediu... À esposa, talvez também a neném. Há umas facas de açougueiro na cozinha, e todas manchadas de sangue. Acredito que esquartejaram os cadáveres e os atiraram pela amurada. A esta altura, essas quatro pessoas já viraram comida de tubarão.

– Drogas?

– Uns vinte quilos de pó branco no camarote da tripulação, um pouco de maconha também, acredito que para consumo pessoal. – Riley encolheu os ombros – . Não fiz uma análise, senhor, não é preciso. É

pirataria agravada com assassinato. Há um orifício de bala na convés. Nunca em minha vida vi coisa igual. Como nos filmes, mas pior. – Tomou fôlego com força – . Terá que ver para acreditar, senhor.

– O que sabemos sobre os prisioneiros?

– Nada, só respondem com grunhidos, eu não ouvi outra coisa. Não levam documentos de identidade, e não quis mexer em nada. Isso é trabalho da polícia. A cabine do piloto está limpa, igual ao porão. Sr. Wilcox poderia levá-lo sem problema. Escutei quando ordenava a Brown e Obrecki que não tocassem nada. Há combustível de sobra para atracar em Mobile a toda velocidade vai chegar antes de meia-noite, se o tempo o permitir. É um lindo barquinho. – encolheu-se de ombros outra vez.

– Tragam eles para convés – ordenou Wegener depois de uma breve pausa.

– Entendido. – Riley se afastou para a popa.

Wegener pegou o cigarro, mas teve que procurar em todos seus bolsos em busca dos fósforos. Tinha a incômoda sensação de que o mundo tinha mudado enquanto ele se dedicava a outros afazeres. Haviam muitos perigos no mar. O vento e as ondas eram inimigos a serem temidos. O mar espreitava sempre, à espera de sua oportunidade, de que alguém esquecesse por um só instante que devia ter cuidado. Wegener era dos que jamais o esqueciam e dedicava sua vida a proteger os outros. Graças a isso tinha levado uma vida plena de satisfações. Era o anjo guardião na nave branca como a neve.

Quando Wegener andava por perto, ninguém tinha motivos para se desesperar. As probabilidades diziam que ele chegaria a tempo para tirá-los da tumba marinha...; mas, nesse momento, os tubarões estavam devorando quatro pessoas. Wegener amava o mar apesar de seus caprichos, mas detestava os tubarões, e pensar que estavam devorando pessoas que ele poderia ter salvo... Quatro pessoas que tinham esquecido que existem tubarões aquáticos e terrestres.

Wegener balançou a cabeça. Isso era novo: Piratas. Assim os chamavam no jargão da marinha. A pirataria, nos filmes do Errol Flynn que Wegener lembrava de sua infância. Algo que tinha desaparecido dois séculos antes. A pirataria e o assassinato: esse último não aparecia nos filmes. Pirataria, assassinato, violação: crimes que nos velhos tempos eram castigados com a pena máxima...

– De pé e eretos! – rugiu Riley, que os aferrava pelos braços. Estavam algemados e as mãos de Riley lhes impediam de separar-se. O principal Oreza os acompanhava para assegurar-se de que nada ocorresse.

Os dois teriam uns vinte e cinco anos, e eram magros. Um media um metro oitenta, e, para surpresa do capitão, seu olhar estava cheio de insolência.

Será que não era consciente da gravidade de sua situação? Seus negros olhos olhavam a Wegener com ódio, enquanto este contemplava ao jovem sem se alterar, o cigarro entre os dentes. Havia algo estranho naquele olhar que Wegener não podia decifrar.

– Como se chama? – perguntou o capitão. Não houve resposta – . Tem que me dizer como te chama

– insistiu Wegener sem elevar a voz.

Então, algo muito estranho aconteceu. O mais alto lançou um cuspe no peito de Wegener.

Aconteceu uma pausa muito longa, durante a qual o capitão assimilou o que acabava de acontecer; seu rosto nem sequer denotava surpresa. Riley foi o primeiro em reagir frente a sua afronta.

– Filho da puta! – Ergueu o prisioneiro como se fosse um boneco de pano e o jogou com força contra o corrimão da ponte. O jovem se dobrou em dois e, por um instante, pareceu que tinha sido partido pelo meio. Esperneou com desespero para recuperar o fôlego e o equilíbrio.

– Por Deus, Bob! – exclamou Wegener quando Riley agarrou ao prisioneiro pela garganta e o ergueu com um só braço – . Basta, Riley!

Entretanto o contramestre o tinha tirado sua insolência. Havia medo nos olhos do prisioneiro, que ofegava para recuperar o fôlego. Oreza tinha obrigado ao outro a deitar-se. Riley deu um violento empurrão no seu homem e o pirata – assim o chamava Wegener em sua mente – caiu junto a seu comparsa. Seu rosto colado ao convés. Ofegava e se retorcia, enquanto Riley recuperava a compostura.

– Desculpe-me, capitão. Acredito que enlouqueci por um instante. – Por seu tom era evidente que só pedia desculpas por lhe haver faltado a consideração a seu superior.

– Levem-nos para a cela – disse Wegener, e Riley os levou.

– Merda – exclamou Oreza em voz baixa. O contramestre tirou seu lenço para secar a camisa do capitão – . Caralho, Rede, aonde iremos parar?

– Sei lá, Português. Nos tornamos velhos, os dois. – Wegener encontrou os fósforos e acendeu por fim o cigarro. Durante uns instantes contemplou o mar em busca de inspiração – . Quando me alistei, meu primeiro professor foi um velho principal que contava anedotas da época da lei seca. Mas, como ele contava, tinha sido um jogo de meninos comparado com isto.

– Talvez a gente fosse mais civilizada então – murmurou Oreza.

– Mas eu acredito que não se podia levar um carregamento milionário de álcool com um bote de motor. Recorda a série “Os Intocáveis”? As brigas entre as gangues eram como as de agora, ou piores.

Merda, o que eu sei. Não me alistei para ser polícia, principal.

– Nem eu, capitão – grunhiu Oreza – . Envelhecemos, e o mundo mudou sem que nos déssemos conta.

– O que, Português?

O suboficial contramestre principal olhou a seu superior aos olhos.

– Algo que escutei na Escola da Guarda-costeira de New London faz uns anos. Quando não tinha outra coisa que fazer, assistia às aulas como ouvinte. Antigamente, quando capturavam os piratas, podiam submetê-los a Conselho de Guerra a bordo e lhes aplicar a pena correspondente. Parece que dava bons resultados. Talvez por isso que proibiram – grunhiu.

– Um julgamento justo..., e à forca.

– Por que não, capitão?

– Porque não é próprio de gente civilizada.

– Civilizada, sim. – Oreza abriu a porta da cabine de comando, mas, se voltou um instante – . Sei, como nos filmes.

Wegener sorriu sem saber por que. O cigarro se apagou. Enquanto procurava os fósforos se perguntou por enésima vez por que não deixava de fumar, mas o cigarro formava parte de sua imagem. O

velho do mar. Na verdade, tinha envelhecido. Tratou de lançar o fósforo pela amurada, mas o vento a fez cair sobre a convés. Como se tinha esquecido do vento?, perguntou-se enquanto se inclinava para recolhê-

la.

Então viu um maço de cigarros de cigarros semioculta em um embornal. Homem obcecado pelo esmero, Wegener estava a ponto de levantar sua voz furiosa quando entendeu que o culpado não podia ser um de seus tripulantes. O rótulo era “Calvert”, que, conforme se lembrava, era uma marca latino-americana fabricada por uma empresa de cigarros dos Estados Unidos. Era um pacote tipo caixa, e o abriu por curiosidade.

Não eram cigarros. Melhor dizendo, não eram de tabaco. Tirou um para observá-lo melhor. Não eram de fabricação caseira, mas tampouco tão prolixa como os que saíam das fábricas americanas. O

capitão sorriu. Um empresário ardiloso tinha tido a ideia de dissimular os bagulhos – assim os chamavam, não?– sob a forma de cigarros. Ou talvez fosse uma maneira cômoda de transportá-los. O pacote devia ter caído do bolso do homem que Riley ergueu no ar, pensou Wegener. O guardou para entregá-lo mais tarde ao encarregado da caixa de segurança. Oreza retornou nesse momento.

– Previsão atualizada. A frente da tempestade passará por aqui às vinte e uma. Ventos mito fortes, com rajadas de até quarenta nós. Vamos nos agitar um pouco, senhor.

–Wilcox terá problemas com o iate? Estamos em tempo para mudar a ordem.

– Não acredito, senhor. A frente virou para o sul. Um sistema de alta pressão está baixando do Tennessee. O Sr. Wilcox vai navegar por um mar sereno, capitão, mas o helicóptero poderia ter problemas. Dizem que vão chegar às dezoito, ou seja que deverão lutar contra a frente de tempestade durante a travessia de volta.

– Amanhã?

– Clareando ao amanhecer e depois chega o sistema de alta pressão. Esta noite vamos ter balanço, mas depois nos esperam quatro dias de bom tempo. – Oreza não teve necessidade de expressar sua sugestão. Os velhos profissionais se comunicaram com o olhar.

Wegener assentiu.

– Comunique-se com Mobile: sugerimos esperar até manhã.

– Entendido, capitão. Não há necessidade de arriscar um helicóptero para recolher lixo.

– Tem razão, Português. Transmita a previsão a Wilcox, se por acaso o sistema mudar de rumo. –

Wegener olhou seu relógio – . Me espera a papelada.

– Um dia agitado, Rede.

– Muito.

Certamente, o camarote do Wegener era o maior do navio, e o único privado, já que a privacidade e a solidão são luxos reservados para o capitão.

Mas o Panache não era um navio de cruzeiro, e o camarote de Wegener media apenas vinte metros quadrados, embora desfrutasse de banheiro próprio, o qual em qualquer navio era um luxo pelo qual valia a pena brigar. Durante toda sua carreira, Wegener tinha evitado a papelada. Na medida em que sua consciência o permitia, deixava esse tipo de trabalho nas mãos de seu imediato, um alferes jovem e inteligente; embora de todas as formas, devia lhe dedicar duas ou três horas diárias. Confrontava-o com o mesmo entusiasmo que demonstra um homem caminho ao patíbulo. Nessa ocasião, o esforço requerido lhe parecia maior que nunca. Não podia afastar os assassinatos de sua mente. Assassinato em alta mar, pensou. Acontecia, claro.

Em trinta anos tinha conhecido alguns casos, embora nunca de maneira direta. Frente à costa do Oregon, um tripulante, afetado de loucura homicida, atacou um suboficial quase o matando: descobriu-se que o pobre diabo sofria um tumor cerebral e morrera um pouco depois. Rede lembrava do caso porque foi o Point Gabriel que levou o homem para o porto, preso de pés e mãos, dopado com sedativos. Era aí terminava a experiência de Wegener com a violência em alto mar. Quer dizer, com a violência humana.

Já havia bastante perigo sem ela. A ideia rondava por seu cérebro como o estribilho de uma canção.

Tentou concentrar-se em seu trabalho, mas não conseguiu.

Franziu a sobrancelha pela sua própria indecisão. A papelada, embora fosse chata, era parte de seu trabalho. Acendeu o cigarro para se concentrar, mas foi impossível. O capitão soltou um palavrão, sorriu e serviu-se um copo de água. Os papéis o esperavam, acusadores. olhou-se ao espelho: tinha a barba cheia. E os eternos papéis...

– Está envelhecendo, Rede – disse ao rosto refletido no espelho – . Velho e idiota.

Decidiu barbear-se. O fazia a moda antiga, com espuma e pincel. Sua única concessão à modernidade era o barbeador descartável. Tinha a cara convés de espuma e raspou uma bochecha quando bateram na porta.

– Entre!

– Perdão, capitão – saudou o suboficial Riley – . Não sabia...

– Não importa, Bob. O que há?

– Tenho o primeiro rascunho do relatório de abordagem, senhor. Pensei que quisesse lê-lo. Temos as declarações de todos, escritas, gravadas e filmadas. Myers fez uma cópia da fita de vídeo. O original e as provas estão guardados em uma caixa fechada dentro do cofre de segurança, segundo suas ordens. Fiz a cópia para lhe mostrar.

– Bem, deixe-a sobre a mesa. Novidades de nossos hóspedes?

– Nenhuma, senhor. É um belo dia.

– Mas eu estou trancado aqui com estes papéis.

– Se o suboficial trabalhar as vinte e quatro horas do dia, o capitão deve trabalhar vinte e cinco –

murmurou Riley.

– Lembro-lhe, senhor suboficial principal, que não deve faltar com o respeito a um oficial superior

– disse Wegener. Conteve a gargalhada para evitar cortar a jugular com a navalha.

– Humildemente rogo ao senhor capitão que me perdoe. Com sua permissão, senhor, eu também tenho tarefas que cumprir.

– O rapaz que pusemos na metralhadora esta manhã está no pelotão de convés. Precisa de umas lições sobre segurança. Demorou muito para travar a arma. Diga-lhe sem arrancar a cabeça dele. Eu falarei com o Sr. Peterson.

– Sim, que ferrem com essas coisas é justo o que precisamos. Falarei com o rapaz depois da inspeção, senhor.

– Eu vou fazer outra inspeção depois do almoço. Haverá tempestade essa noite.

– Sei, o Português me disse isso. Prenderemos tudo.

– Nos veremos logo, Bob.

– Entendido – disse Riley, e se retirou.

Wegener terminou de barbear-se e voltou junto a mesa, onde o aguardava o rascunho preliminar do relatório de abordagem e detenção. Já estava datilografando na versão definitiva, mas gostava de ler a primeira, que, pelo geralmente, era a mais precisa. Leu-a enquanto bebia o café, que já tinha esfriado.

As fotos instantâneas “Polaroid” estavam inseridas em uma lâmina de plástico. Eram ruins, como sempre. Igual aos informes. Decidiu olhar a filmagem em seu vídeo particular antes do almoço.

Não era um trabalho profissional. É quase impossível manter a câmera em equilíbrio em um iate; além disso, a luz era escassa. Contudo, mostrava um quadro perturbador. O microfone tinha recolhido retalhos de conversações e o flash da “Polaroid” obscurecia alguns quadros.

Era evidente que quatro pessoas tinham morrido a bordo do Empire Builder e que seus únicos restos eram as manchas de sangue. Muito pouco, mas, suficiente para que a imaginação terminasse de compor o quadro. No camarote do dono havia uma enorme mancha de sangre sobre o travesseiro. Disparo na cabeça.

As manchas restantes estavam no salão principal. Era o ambiente mais espaçoso do iate, o lugar eleito pelos piratas para sua pulverização. Diversão, pensou Wegener. Três grupos de manchas, dois próximos entre si, o terceiro mais afastado. Uma esposa bonita, uma filha de treze anos..., tinham obrigado ao marido a ver todo o espetáculo.

– Merda – suspirou Wegener. Tinha sido assim mesmo, sem dúvida. Obrigaram-no a olhar e depois mataram eles..., esquartejaram os cadáveres e os jogaram pela amurada.

“Filhos da puta!”

II

CRIATURAS DA NOITE

De acordo com seu passaporte, chamava-se J. T. Williams; mas, realmente, tinha mais de um passaporte, apresentava-se como agente de vendas de um laboratório americano especializado em remédios e era capaz de dissertar com erudição sobre os antibióticos sintéticos. Em seu caráter de representante do “Caterpillar Trator”, também podia falar a respeito da situação do mercado de tratores e colheitadeiras e tinha outras duas identidades que colocava e se tirava com a mesma facilidade que se trocava de roupa. Não se chamava Williams. Na Diretoria de Operações da CIA era chamado de Clark, o mesmo nome com o que vivia e criava a sua família, embora não fosse o que constava em sua certidão de nascimento. Instrutor na escola de agentes da CIA, chamada “a fazenda”, por sua habilidade como agente, estava acostumado a realizar missões com frequência.

Clark era um homem robusto, de um metro oitenta, espessa cabeleira negra, uma mandíbula proeminente que delatava sua origem e de olhos azuis que tanto lançavam brilhos divertidos, quanto de fúria, segundo a vontade do dono. Embora tenha passado dos quarenta, sua cintura não mostrava essa gordura própria de quem trabalha atrás de uma mesa, e seus ombros mostravam os cuidados dedicava a seu estado físico. Em uma época como a atual, caracterizada pela obsessão com a saúde física nada disso teria chamado a atenção, mas adicionava um sinal particular visível: no antebraço tinha tatuada uma sorridente foca de cor vermelha. A prudência indicava que deveria ter apagado, mas seus sentimentos não o permitiam: essa foca pertencia a seu ser mais íntimo. Quando lhe perguntavam, respondia que tinha estado na Marinha, o que era verdade, e acrescentava que o Serviço tinha custeado seus estudos de bioquímica ou engenharia mecânica ou a mentira que lhe ocorresse no momento. Na realidade, não tinha nenhum título universitário, mas sim os conhecimentos suficientes para justificar meia dúzia de diplomas em distintas disciplinas. De acordo com o regulamento, a falta de diploma o inabilitava para exercer o posto que tinha na Agência, mas possuía um dom que não é frequente nos Serviços de Inteligência ocidentais. A necessidade de exercitar esse dom tampouco é frequente, mas um oficial superior da CIA tinha reconhecido a utilidade de um homem como Clark. Por isso converteu-se em um agente muito eficiente, sobre tudo na execução de trabalhos breves e perigosos. Era uma espécie de lenda, embora não mais de meia dúzia de altos oficiais sabiam o porquê. Havia um só Sr. Clark.

– Qual é o motivo de sua visita ao país, Sr. Williams? – perguntou o funcionário de imigração.

– Negócios, mas espero poder me dedicar uns dias à pesca antes de retornar para casa – disse Clark em espanhol. Dominava seis idiomas, três deles sem o mínimo rastro de acento estrangeiro.

– Felicito-o por seu conhecimento do espanhol.

– Obrigado. Vivi na Costa Rica quando criança – mentiu. Essa era outra de suas habilidades– . Meu pai trabalhou lá durante vários anos.

– Sim, reconheci seu acento. Bem-vindo a Colômbia.

Foi procurar sua bagagem. Percebeu que o ar estava rarefeito por causa da altitude. Sua prática em jogging lhe ajudariam a superar o problema, mas deveria deixar passar uns dias antes de tentar grandes esforços, era sua primeira visita a Colômbia, e seu instinto lhe dizia que não seria a última.

O primeiro passo de toda missão importante era, como nesse caso, o reconhecimento do terreno. A natureza do terreno lhe daria logo um indício sobre a verdadeira natureza da missão. Não era a primeira vez que o fazia, recordou se de que uma missão similar a que estava a ponto de empreender tinha sido o motivo para que a CIA o recrutasse, modificasse sua identidade e trocasse sua vida para sempre, faziam vinte anos.

Uma das singularidades da Colômbia era que se podia entrar no país com armas sem muita dificuldade. Nessa ocasião, Clark não ia armado, mas pensou que na viagem seguinte seria diferente. Não podia estabelecer contato com o agente residente no país, que nem sequer estava a par de sua presença.

Perguntou-se por que teriam tomado essa precaução, mas só por um instante. Isso não era seu problema. Só lhe interessava realizar a missão.

.

.

.

O Exército dos Estados Unidos tinha retomado a ideia da Divisão de Infantaria Ligeira poucos anos antes. Não foi difícil criar unidades. Bastou pegar uma Divisão de Infantaria Mecanizada e tirar toda seu equipamento Mecanizado. Ficou então uma estrutura de dez mil e quinhentos homens cuja TOD (Tabela de Organização e Dotação) era mais ligeira que as das divisões aerotransportadas – as mais ligeiras até então – , e podia ser transportada integralmente em apenas quinhentos voos de ponte aérea militar. As Divisões de Infantaria Ligeira, chamadas as DIL, não eram tão ineficazes como um observador superficial pudesse supor. Justamente o contrário.

Ao voltar para os “combatentes ligeiros”, o Exército tinha retomado as verdades fundamentais da história. Qualquer guerreiro consciente dirá que existem duas classes de combatentes: a infantaria e os que, de uma ou outra maneira, servem de apoio aos primeiros. As DIL eram sobretudo instituições de onde se adquiriam as habilidades próprias do infante. Nelas, o Exército formava seus sargentos a moda antiga, e com esse fim colocaram no comando seus melhores oficiais. Os generais de brigada e de divisão eram veteranos do Vietnam que tinham aprendido a admirar a seus adversários nesse inflamado conflito: O Vietcong e o Exército norte vietnamita soube extrair vantagens inclusive de sua falta de equipamento e armamento. Segundo os teóricos militares, não havia motivos para que o soldado norte-americano não adquirisse as habilidades de combate na selva que os homens do Vo Nguyen Giap possuíam e os combinasse com o poder de fogo americano. O resultado disso foi a criação de quatro divisões de elite: a 7ª, nas arborizadas colinas de Fort Ord, Califórnia; a 10ª de montanha, em Fort Drum, Nova Iorque; a 25ª, em Schofield Baracks, Hawai, e a 6ª, no Fort Wainwright, Alaska. Entretanto, era difícil conservar seus sargentos e oficiais ajudantes, mas isso era parte do plano. Os combatentes ligeiros levam uma vida árdua, e, ao chegar nos trinta, até o melhor dos homens deseja ser transportado à frente em helicóptero ou em carro blindado, poder passar um pouco mais de tempo com a esposa e os filhos e um pouco menos com seus camaradas nas montanhas. Os melhores, os que seguiam adiante até completar seus árduos cursos de instrução das escolas de suboficiais – onde aprendiam que, em ocasiões, o sargento deve saber o que fazer sem receber ordens do tenente – passavam logo às unidades pesadas, levando consigo certas habilidades que jamais perdiam. Em última análise, as DIL eram as fábricas onde o Exército produzia sargentos com dom de comando e conhecimentos das verdades imutáveis da guerra: fundamentalmente, que esta se reduz a uns poucos homens, com botas enlameadas e uniformes fedorentos, capazes de aproveitar o terreno e a noite como aliados para levar a morte a seus inimigos.

Um deles era o sargento Domingo Chávez, a quem seus homens chamavam “Ding”. Tinha vinte e seis anos, nove deles no Exército. Tinha tomado parte de uma gangue em Los Angeles, mas seu natural sentido de sobrevivência falou mais alto do que sua falta de cultura: quando um amigo morreu num tiroteio cujo motivo não descobriu, chegou à conclusão de que não tinha futuro com os Bandidos. Na segunda-feira seguinte, pela manhã, apresentou-se no Escritório de Recrutamento do Exército, depois de ser rechaçado pelos fuzileiros navais. Apesar de ser quase analfabeto, o sargento aceitou sua solicitação: faltavam-lhe homens para cumprir sua cota do mês, e, além disso, o rapaz estava disposto a alistar-se na Infantaria, matando, assim dois pássaros com um só tiro.

Além disso, queria ingressar imediatamente. Melhor, impossível.

Chávez tinha poucos preconceitos sobre o serviço militar e a maior parte eram equivocados. Com a perda do cabelo comprido e a barba espaçada adquiriu o conhecimento de que a agressividade é inútil se não for disciplinada e que o Exército não tolera a insolência. Este último aprendeu no deserto pátio traseiro de um barracão, nas mãos de um sargento instrutor de rosto mais negro que uma noite na selva.

Mas as lições em sua vida nunca tinham sido fáceis e tinha aprendido a aceitar as mais duras sem rancor.

Descobriu que o Exército é uma hierarquia com normas rígidas, aprendeu às aceitar e se converteu em um recruta excepcional. Na turma tinha aprendido a apreciar a camaradagem e o trabalho em equipe, e não foi difícil imprimir uma orientação positiva a essas características. Ao término do primeiro período de instrução, seu corpo era magro e enxuto como um cabo de aço, sentia orgulho por sua aparência física e dominava quase todas as armas que o soldado de Infantaria pode usar. Em que outro lugar, pensava, te dão uma metralhadora e te pagam para dispará-la?

Mas os bons soldados não nascem prontos, são forjados. Seu primeiro destino foi a Coréia, onde aprendeu a combater na montanha e conheceu seu primeiro inimigo de verdade, já que a zona desmilitarizada nunca foi um lugar seguro. Ali aprendeu de uma vez por todas, a finalidade da disciplina: sobreviver. Um grupo de infiltração vietcong com missão só conhecidas por seus superiores, decidiu atravessar as linhas defendidas por sua unidade. De passagem, descobriram um posto de vigilância americana cujos ocupantes haviam resolvido dormir essa noite, e jamais despertaram. Mais tarde, o Exército sul coreano perseguiu e matou os invasores, mas Chávez foi quem achou os dois homens de seu pelotão degolados, como acontecia em seu próprio bairro. Então ele chegou à conclusão de que queria dominar o ofício de soldado. O sargento e o tenente descobriram que Chávez prestava atenção as aulas teóricas, e inclusive anotando. O comandante do pelotão compreendeu que ele era capaz de memorizar, mas que tinha dificuldade de ler e escrever, por isso decidiu ajudar ao jovem cabo. Trabalhando duro em seu tempo livre, antes de terminar o ano, Chávez foi aprovado – na primeira tentativa! Dizia a quem queria ouvir – seu exame equivalente ao bacharelado, e obteve sua primeira ascensão, com um aumento salarial de 58,50 dólares mensais. O tenente não entendia, mas o sargento sim, que a combinação de circunstâncias tinha alterado para sempre a vida de Domingo Chávez. O orgulho próprio do latino, adicionava-se a convicção do soldado de dezoito anos de que agora tinha algo do que podia orgulhar-se.

Por isso se considerava em dívida com o Exército, e com esse profundo sentido de honra, que também era parte de sua herança cultural, decidiu que dedicaria sua vida a pagar essa dívida.

Alguns costumes jamais se perdem. Cuidava ao máximo de seu estado físico. Em parte porque era um cara pequeno – apenas metro sessenta e cinco – , mas também porque compreendia que a vida real não era uma competição esportiva: a maioria dos que chegam no objetivo são os combatentes ligeiros e sólidos.

Chávez gostava de correr e exercitar-se. Por isso era quase inevitável que o destinassem para a 7ª

Divisão de Infantaria Ligeira. Embora sua base permanente estivesse em Fort Ord, perto do Monterrey, na costa da Califórnia, o campo de treinamento e manobras encontra-se na reserva militar Hunter-Liggett, que tinha sido um enorme rancho da família Hearst. Esse lugar de belas colinas verdes, vira um áspero deserto lunar durante o verão californiano, uma paisagem de colinas escarpadas, árvores retorcidas e erva que se converte em pó sob as botas. Para Chávez foi seu lar. Chegou como sargento acanhado para realizar o curso de comando em combate, de duas semanas, que lhe serviu como preparação para a escola de rangers do Fort Benning, Georgia. Quando saiu dessa academia, a mais rigorosa do Exército, Chávez estava mais magro e crédulo que nunca. Seu retorno ao Fort Ord coincidiu com a chegada de uma novo grupo de recrutas em seu batalhão. A “Ding” Chávez deram o comando de um grupo de recrutas saídos da instrução básica de infantaria. Era o primeiro comando do jovem sargento. O Exército tinha investido tempo e esforço para instruí-lo e agora devia transmitir esses conhecimentos aos novos recrutas; mas, ao mesmo tempo, demonstrar que possuía dom do comando. Como comandante do pelotão, considerava-se o padrasto de nove garotos rebeldes. Queria que triunfassem porque eram seus filhos, e ia se assegurar de que acontecesse assim.

Em Fort Ord aprendeu a verdadeira arte do soldado, porque para os combatentes ligeiros a tática é exatamente isso: uma arte. Destinado à Companhia Bravo, 3º Batalhão do 17° Regimento de Infantaria, cuja altissonante divisa era “Ninja. A noite é nossa!”, Chávez ia à guerra com o rosto camuflado – como todos na 7ª DIL, inclusive os pilotos dos helicópteros – e aprendia seu ofício a medida que ensinava a seus homens. Amava a noite. Seu pelotão se deslocava em meio da selva com menos ruído que uma brisa.

O objetivo das missões era quase sempre o mesmo.

Incapazes de fazer frente a uma formação pesada, Chávez treinava para as tarefas sujas próprias do infante ligeiro: incursões furtivas, emboscadas, infiltração, espionagem. Seus recursos eram o sigilo e o ataque surpresa, apareciam onde não eram esperados, atacavam com ferocidade e desapareciam na escuridão sem dar tempo de reação ao inimigo. Os americanos tinham sido vítimas dessas táticas, e era justo que devolvessem o favor. Em síntese, o sargento Domingo Chávez era um homem que os apaches ou o Vietcongs considerariam um irmão... ou um inimigo dos mais perigosos.

– Ouça, Ding! – exclamou o primeiro sargento – Apresente-se ao tenente.

Tinha amanhecido duas horas antes, e, com a saída do sol, concluía-se um longo período de manobras em Hunter-Liggett. Durou nove dias e o esforço tinha sido excessivo, inclusive para Chávez.

Suas pernas diziam que já tinha passado dos dezessete anos. Estas eram suas últimas manobras com os

“Ninjas”.

Tinha chegado o momento da transferência, e seu novo destino era o de sargento instrutor na escola militar de treinamento básico no Fort Benning, Georgia. Era um grande orgulho para Chávez que o Exército o tivesse em tão alto conceito para servir de exemplo aos recrutas. O sargento se deteve, mas antes de apresentar-se ao tenente, tirou de seu bolso uma estrela da morte. Desde que o coronel os tinha batizado “Ninjas”, esses mortíferos projéteis de aço eram uso obrigatório para os soldados, com grande chateação de seus superiores. Entretanto, sempre estavam dispostos a fazer a vista grossa ante os pecados leves dos bons soldados, e Chávez era um deles. Bastou uma rápida flexão da mão para que o projétil se enterrar-se na casca de uma árvore, a cinco metros de distância. Extraiu-a e foi apresentar se a seu comandante.

– Permissão, tenente – saudou Chávez em posição de sentido.

– Descansar, sargento – disse o tenente Jackson, sentou-se de costas a uma árvore para aliviar seus pés, cheios de bolhas. Oficial de vinte e três anos, graduado da academia militar de West Point, começava a descobrir quão difícil era manter-se em forma do mesmo jeito que homens que devia comandar.

Chamaram-me do quartel, querem que você se apresente imediatamente para um trâmite relacionado com sua transferência. Vá ao armazém de aprovisionamento, haverá um helicóptero dentro de uma hora. E já que estamos aqui, te parabenizo pelo trabalhinho de ontem à noite. Lamento te perder tão cedo, Ding.

– Obrigado, tenente.

Apesar de sua juventude, Jackson não era um mau oficial, pensou Chávez. Tinha muito que aprender, mas era esforçado e inteligente. Bateu os calcanhares e prestou continência.

– Cuide-se, sargento – disse Jackson, ficando de pé para devolver continência.

– A noite é nossa, tenente! – respondeu Chávez, à maneira dos “Ninjas”, do 3º Batalhão do 17° de Infantaria. Vinte e cinco minutos depois, embarcou num helicóptero “Sikorsky” UH-60A Blackhawk para um voo de cinquenta minutos ao Fort Ord. O suboficial do batalhão lhe entregou a mensagem. Tinha uma hora para seu asseio antes de se apresentar no G-1, o escritório de pessoal da divisão. Um banho prolongado lhe permitiu eliminar todo rastro de sal e “camuflagem de guerra” e pôde chegar uns minutos antes da hora, vestido com seu melhor uniforme de campanha.

– Olá, Ding – lhe disse outro sargento, condenado por uma perna fraturada a permanecer atrás de uma mesa no G-1– . Esperam você na sala de reuniões do segundo piso,

– O que está acontecendo, Charlie?

– Que me prendam se eu sei, mas um coronel te espera.

– Maldição, e eu que precisava cortar o cabelo! – murmurou Chávez ao subir a escada. E a suas botas poderiam brilhar mais. Bela maneira de apresentar-se a um coronel desconhecido, mas também tinha direito de que lhe avisassem com antecedência. Uma das coisas boas do Exército era que todo mundo obedecia as mesmas regras, pensou o sargento. Quando bateu na porta, já não se sentia tão preocupado, mas sim muito cansado. Além disso, não ficaria muito tempo naquele lugar. Já tinha a ordem de apresentar-se em Fort Benning e se perguntava como seriam as garotas na Georgia. Pouco antes tinha brigado com sua noiva. Como sargento instrutor, levaria uma vida um pouco mais estável, e talvez...

– Entre! – trovejou uma voz atrás da porta.

O coronel estava sentado atrás de uma mesa de madeira ordinária. Levava um pulôver negro sobre a camisa verde oliva, com uma placa que dizia Smith.

– Permissão, coronel. Apresenta-se o sargento Domingo Chávez, 3º da 17ª como ordenado.

– Descansar, sargento. Sente-se, sei que esteve que manobras. Aí tem café se você quiser.

– Não, obrigado, coronel.

Chávez se sentou e começava a ficar a vontade quando viu sua ficha sobre a mesa. O coronel Smith a abriu, olhou-há um pouco, levantou os olhos e sorriu. Não levava distintivo algum no peito, nem sequer o da baioneta e o relógio de areia que identificava a 17ª DIL. De onde vinha? Quem diabos era esse tipo?

– Eu diria que é muito bom, sargento. Se não me engano, deverá ser promovido a primeiro sargento em dois ou três anos. Vejo que esteve no Sul. Três vezes, não?

– Sim, coronel. Duas vezes na Honduras e uma no Panamá.

– Teve bom desempenho nas três vezes. Aqui diz que fala espanhol com perfeição.

– Era o idioma da família, coronel.

Em todo caso, a observação era desnecessária: seu acento o delatava. Queria que ele fosse ao ponto de uma vez, mas os sargentos não fazem esse tipo de perguntas aos coronéis. De todo forma, seu desejo se cumpriu.

– Sargento, estamos formando um grupo para uma missão especial. Queremos que você se integre nele.

– Coronel, acabo de receber minhas ordens...

– Sei. O pessoal que nós precisamos tem que conhecer bem o idioma e, além disso..., bom, queremos os melhores soldados de infantaria ligeira. Sua folha de serviços diz que você é um dos melhores da divisão. – Chávez cumpria outros requisitos, que o tal coronel Smith não mencionou. Era solteiro, órfão, não tinha familiares próximos, que se soubesse pelo menos, não mantinha correspondência nem contato telefônico assíduo com ninguém. Não era o homem perfeito, pois havia alguns requisitos que não cumpria, mas sim os suficientes para selecioná-lo – . É uma missão especial. Pode ser perigosa, mas o mais provável é que não seja. Durará uns meses, seis no máximo. Quando tiver terminado, você será promovido a primeiro sargento e lhe permitirão escolher seu novo destino.

– Me fale sobre a missão, coronel – disse Chávez com vivacidade. A ideia de subir a primeiro sargento com um dois anos de antecipação merecia toda sua atenção.

– Não posso lhe adiantar nada, sargento, apesar de não gostar de pedir que você aceite às cegas –

mentiu o coronel Smith – , mas eu também obedeço ordens. Posso lhe dizer que o enviarão a um lugar ao leste daqui para receber treinamento intensivo. Talvez isso seja tudo, talvez não. Em todo caso, cumpre-se o trato quanto à promoção e a escolha do destino. Na missão, se houver, deverá pôr em prática seus conhecimentos especializados. Posso lhe dizer que tem a ver com uma operação de espionagem clandestina. Não irá a Nicarágua nem a nenhum lugar parecido. Não se trata de uma guerra secreta. – Que não era mentira no estrito sentido, mas “Smith” não estava a par dos pormenores, e seus superiores não especulavam. Conhecia os critérios de seleção e sua tarefa, que estava a ponto de terminar, era reunir às pessoas necessária para... o que diabos tivessem que fazer – . Bom, é tudo que posso dizer. O que foi dito aqui fica entre estas quatro paredes. Em outras palavras, não deve falar sobre isto com ninguém sem minha autorização. Entendido?

– Sim, senhor!

– Investimos tempo e dinheiro em você, sargento. É hora de cobrar esse investimento. O país necessita de você. É hora de pôr em prática o que sabe fazer.

Havia uma só resposta possível a semelhantes palavras, e Smith sabia. O jovem demorou cinco segundos – menos do que o esperado – para responder.

– Quando começo, coronel?

Smith tirou da gaveta central doa mesa um envelope de papel manilha com o nome do Chávez escrito com caneta de ponta grosa.

– Tomei a liberdade de adiantar seus trâmites, sargento. Aqui estão suas fichas médica e financeira.

Já acertei quase tudo, incluí uma autorização para que alguém envie seus objetos pessoais para onde o formulário indica.

Chávez assentiu, sentia-se um pouco enjoado. O tal coronel Smith, quem quer que fosse, devia ter ser muito importante para liquidar com tanta facilidade a papelada que a chata burocracia militar exigia.

Cada transferência costumava demorar cinco dias de espera. Tomou o envelope que o oficial estendia.

– Prepare seus objetos e apresente-se aqui às dezoito. Não corte o cabelo: queremos que o deixe crescer. Eu falarei com seus superiores. E lembre-se: nenhuma palavra a ninguém. Se te perguntarem, diga que deve apresentar-se no Fort Benning antes do esperado. Confio em sua discrição. – O “coronel Smith” se levantou e estendeu a mão para pôr fim à entrevista – : Fez muito bem em aceitar, sargento.

Não esperávamos menos de você.

– A noite é nossa, coronel!

– Vá.

O “coronel Smith” guardou a ficha em sua pasta. Terminado. Quase todos os homens estavam caminho. Chávez era um dos últimos. “Smith” perguntou-se o que resultaria de todo aquilo, chamava-se Edgar Jeffries, e, anos antes, tinha interrompido sua carreira militar para ingressar na CIA. Esperava que tudo se resolvesse de acordo com os planos, mas sua experiência lhe indicava dificilmente acontecia assim. Não era a primeira vez que saía para recrutar voluntários. Nem todas as missões terminavam bem, e muito poucas de acordo com o previsto. Mas Chávez e outros se engajaram voluntariamente no Exército e também na missão que ele lhes tinha proposto. O mundo era perigoso e esses quarenta homens tinham tomado a decisão consciente de dedicar-se a uma profissão das mais perigosas. Essa ideia o tranquilizava, porque Edgar Jeffries era um homem de consciência, e necessitava esse consolo.

– Boa sorte, sargento – murmurou.

Chávez teve um dia muito atarefado. vestiu-se a paisana, lavou seu uniforme de campanha e seus pertences, e reuniu os documentos que deveria entregar. Limpou tudo muito bem, porque sua obrigação era devolver o equipamento em melhor estado do que tinha recebido: assim o exigia o primeiro sargento Mitchell. Às 13 h, quando o resto do pelotão voltou de Hunter-Liggett, ele já tinha feito uma boa parte da tarefa. O primeiro sargento apareceu pouco depois.

– Já vai partir, Ding? – perguntou Mitchell.

– Sim, me esperam em Benning antes do previsto. Por isso... me chamaram esta manhã.

– O tenente está ciente?

– Já devem ter avisado ele, não? A ele ou ao suboficial.

Chávez se sentia envergonhado por ter de mentir a seu primeiro sargento. Bob Mitchell tinha foi seu amigo e professor durante os quatro anos em Fort Ord. Mas a ordem tinha sido dada por um coronel.

– Tem muito que aprender sobre a papelada, Ding. Vamos cara. O tenente está em seu escritório.

O tenente Timothy Washington Jackson não tinha tido tempo de tomar banho, mas estava a ponto de dirigir-se a seu alojamento, no prédio de oficiais. Levantou os olhos quando os dois sargentos entraram.

– Permissão, tenente. Chávez tem ordem de sair para o Fort Benning agora mesmo. Vão buscá-lo esta tarde.

– Sim, o suboficial me avisou. Que diabos passa aqui? Esta não é maneira do Exército fazer as coisas. Que horas você vai?

– Às dezoito, tenente.

– Que bom! Bom devo me limpar para me apresentar ao capitão. Sargento Mitchell, pode se encarregar dos formulários de embarque?

– Sim, tenente.

– De acordo. Voltarei às dezessete para a assinatura. Chávez, não vá antes do meu retorno.

O resto da tarde transcorreu com rapidez, Mitchell se encarregou dos formulários de embarque –

não havia muito para embarcar – , e dedicou umas horas a iniciar a seu jovem camarada nos segredos da burocracia. O tenente Jackson voltou na hora indicada e os chamou a seu escritório. Era uma hora tranquila.

A maioria dos soldados foi à cidade para uma farra entre amigos.

– Ding, sua partida é um pouco inoportuna. Ainda não sabemos quem o substituirá. Acredito que você mencionou o Ozkanian, ao primeiro sargento Mitchell.

– Sim, tenente. O que diz você, Chávez?

– Acredito que pode fazê-lo.

– Muito bem, o cabo Ozkanian terá sua oportunidade. Você é um homem de sorte, Chávez.

Terminei toda a papelada antes que saíssemos de manobras. Quer conhecer sua avaliação?

– Só se for bom, tenente – riu Chávez. Sabia que o tenente tinha um grande conceito dele.

– Bem, eu acredito que você é um soldado de primeira. Melhor dizendo, não acredito, sei. Lamento que vá. Tem transporte?

– Não há problema, tenente. ia andando.

– Nada disso. Ontem à noite tivemos caminhada de sobra. Leve sua bagagem a meu carro. –

Entregou-lhe a chave – . Algo pendente, sargento Mitchell?

– Nada que não possa esperar até na segunda-feira, tenente. Acredito que nós merecemos um bom descanso este fim de semana.

– Como sempre, sua lógica é irrefutável. Meu irmão veio me visitar, assim até na segunda-feira às 6:00.

– Entendido. Um bom fim de semana, tenente.

Chávez tinha pouca bagagem e, coisa estranha, não possuía carro. Economizava para comprar o de seus sonhos, um “Chevy Corvette” [4], e ainda faltavam cinco mil dólares para o comprar à vista. Pôs sua bagagem no assento traseiro do carro. Quando o tenente saiu do quartel, Chávez lhe devolveu a chave.

– Aonde o levo?

– Escritório do pessoal, tenente.

– G-1? Por que não ao salão Martínez? – perguntou Jackson ao pôr o motor em marcha. Era o lugar onde concentravam quando os soldados partiam para novos destinos.

– Vou aonde me mandam ir, tenente.

– Como todos nós – riu Jackson.

Pouco depois, despediu-se de Chávez com um apertão de mãos. Havia outros cinco militares, observou o tenente. Todos sargentos, e de aspecto hispânico. Conhecia dois deles. Leão estava com o pelotão de Ben Tucker, 4º da 17ª, e Muñoz, com a divisão de exploradores. Bons soldados, os dois. O

tenente Jackson se encolheu de ombros e se afastou.

III’

O PROTOCOLO PANACHE

Wegener realizou a inspeção antes do almoço, não depois. Não houve queixa. O suboficial Riley o tinha precedido na tarefa. Além de algumas latas de tinta e pincéis em uso – a tarefa de pintar um navio não tem fim; é, contínua – , não havia nada solto. O canhão estava devidamente preso, igualmente os cabos das âncoras, os cabos de salvamento e as escotilhas, devido à iminente tempestade. Alguns marinheiros em horário de descanso tomavam o sol ou liam, mas ficaram em pé de um salto com a ordem dada por Riley: “Atenção no convés!”. Um marinheiro lia Playboy. Wegener disse a ele, com um sorriso, que se cuidasse na próxima viagem, já que três mulheres se integrariam à tripulação, em menos de duas semanas e não deviam ferir suas suscetibilidades. A ausência de mulheres a bordo era uma mera anomalia estatística, e a novidade não tirava o sono do capitão, mas seus suboficiais mais antigos se mostravam céticos, na melhor das Hipóteses. Também precisariam alternar-se no uso dos sanitários, já que os projetistas do navio não tinham antecipado a presença de tripulantes femininos. Era a primeira vez nesse dia que Rede Wegener achava um motivo para sorrir. O problema de navegar com mulheres... Seu sorriso se desvaneceu quando sua mente evocou as imagens filmadas. Duas mulheres – melhor dizendo, uma mulher e uma menina – que jogadas no mar...

Não conseguia esquecer.

Olhou ao redor e viu às expressões de curiosidade no rosto dos marinheiros. Algo incomodava o capitão e não sabiam o que era, mas tampouco convinha chamar a atenção quando o chefe estava furioso por algum motivo. Então observaram como se alterou sua expressão: o capitão formulava mentalmente uma pergunta.

– Tudo está muito bem, cavalheiros. Que prossiga assim. – Saudou e se retirou-se a seu camarote, de onde mandou chamar o suboficial Oreza.

O contramestre se apresentou a ele em menos de um minuto. O Panache era pequeno para caminhadas longas.

– Chamou, capitão?

– Feche a porta e sente-se, Português.

O suboficial contramestre era de origem portuguesa, mas nasceu na Nova Inglaterra. Era um excelente marinheiro, como Bob Riley, e um grande instrutor, como seu capitão. Toda uma geração de oficiais tinha aprendido o manejo do sextante com esse profissional moreno e gordo. Os homens como Manuel Oreza eram a coluna vertebral do serviço, e, certas ocasiões, Wegener lamentava ter abandonado suas fileiras para ascender a oficial. Mas não as tinha abandonado de todo, e quando estavam a sós, Wegener e Oreza confidenciavam.

– Vi a filmagem, Rede – disse Oreza, que sabia ler os pensamentos de seu capitão – . Devia ter deixado que Riley fizesse em pedaços esse filho da puta.

– Essa não é maneira de resolver as coisas – disse Wegener, embora sem convicção.

– Pirataria, assassinato, violação..., e, além de tudo, drogas. – O contramestre se encolheu de ombros – . Eu sei como tratar os tipos como esses. O problema é que ninguém quer fazê-lo.

Wegener entendia o que ele queria dizer. Embora ultimamente tenha sido instituído a pena de morte para o assassinato relacionado com o narcotráfico, não era usual que a pedissem. O problema era que cada narcotraficante detido conhecia um peixe mais gordo que ele, e cuja captura era mais valiosa que a sua: os chefões jamais se colocavam em uma posição a que o braço, supostamente comprido, da justiça pudesse alcançá-los. As forças de segurança federais eram onipotentes fronteira adentro e a guarda-costeira era plenipotenciária no mar – estavam autorizados a abordar e revistar navios de bandeira estrangeira a vontade – , embora existissem certos limites. Não podia ser de outra maneira. O inimigo conhecia esses limites e se adequava a eles com facilidade. Era um jogo no que só um lado acatava as normas; o outro gozava de liberdade para as interpretar a vontade. Não era difícil para os “chefes” evitar as situações de perigo, e sempre havia abundância de peixes pequenos dispostos a correr o risco em troca de um pagamento várias vezes superior a de qualquer Exército. Esses homens eram desumanos, ardilosos; a luta era difícil e quando eram presos, sempre estavam dispostos a trocar o que sabiam pela imunidade legal.

Por isso, ninguém parecia pagar por esses crimes. Exceto as vítimas, claro. A voz do suboficial interrompeu seus pensamentos.

– Sabe uma coisa, Rede? É possível que estes dois fiquem em liberdade.

– Mas isso não pode ser, Português, se...

– Minha mais velha estuda Direito, capitão. Quer saber o que pode ocorrer?

– Bom, me diga.

– Os levaremos ao porto, ou melhor dizendo, o helicóptero os leva, e a primeira coisa que farão é solicitar a presença de seu advogado. Qualquer que tenha visto as séries de televisão sabe. Digamos que não abrem o bico. O advogado declara que seus clientes viram um iate à deriva e que o abordaram.

A embarcação que os transportava seguiu seu rumo e eles ficaram no iate para levá-lo a porto e pedir uma recompensa. Não se comunicaram por rádio porque não sabem usá-lo. No filme dá pra ver que é um desses aparelhos computadorizados ultramodernos, que para aprender a usá-lo terão que ler um manual de cem páginas... e acontece que os dois amiguinhos não sabem muito inglês. Algum pesqueiro confirmará a primeira parte da história.

Tudo foi devido a um lamentável mal-entendido. Então, o promotor chega à conclusão de que faltam provas e nossos amigos aceitam declarar-se culpados de um crime menor. Assim é como fazem essas coisas.

– Não posso acreditar.

– Onde estão os cadáveres? As testemunhas? As armas sim nós as temos, mas quem viu os autores dos disparos? As provas são meros indícios. – Oreza sorriu com amargura – . Minha filha me explicou muito bem como funciona o sistema. Não é difícil conseguir alguém que corrobore suas declarações, algum sujeito de ficha limpa, e então acontece que a defesa tem testemunhas e nós não temos nada.

Declaram-se culpados de qualquer tolice, e já está...

– Mas se forem inocentes, por que não...?

– Por que não falaram? Diabos, isso é o mais fácil de responder. Um navio de guerra estrangeiro intercepta seu caminho e os manda um grupo de abordagem armado. Ameaçam-nos com armas de fogo, sacodem-lhes um pouco e eles têm tanto medo que não abrem a boca. Isso é que vai dizer o advogado.

Não duvide. Claro que não sairão em liberdade imediatamente; mas, por medo de perder o caso, o promotor procurará a solução mais fácil. Darão um ano ou dois e depois lhes darão um bilhete de avião a seu país.

– Mas são uns assassinos.

– Claro que sim – assentiu o Português – . Mas se forem assassinos vivos, podem sair com a sua vida. Têm muitos recursos. O mais importante que minha filha me ensinou, Rede, é que as coisas nunca são tão simples como parecem. Fez mal em não deixar que Bob se ocupasse deles. Os rapazes respaldariam qualquer história que inventasse. Deveria escutar seus comentários.

O capitão Wegener meditou em silêncio. Era lógico, não? Os marinheiros não mudavam? Quando estavam em terra, se esforçavam para tirar as calcinhas de todo rabo de saia que cruzasse seu caminho, mas em matéria de assassinato e violação, os “novatos” e os veteranos pensavam igual. Os tempos não eram tão diferentes, afinal de contas. Os homens eram homens e tinham noção do que era a justiça, não importando o que os tribunais e os advogados dissessem.

Depois de pensar um pouco, Rede se dirigiu a sua biblioteca. Junto ao Código de Justiça Militar e ao Código de procedimentos de Conselhos de Guerra, tinha um tomo muito antigo conhecido por seu título informal de Rochas e baixios. Era o antigo manual de regulamentos que remontava ao século XVIII e tinha sido reimpresso pelo Código de Justiça Militar depois da Segunda guerra mundial. O exemplar do Wegener era uma antiguidade bibliográfica. Tinha-o achado em uma poeirenta caixa de papelão, em um velho porto californiano. Datava de 1879, quando as regras eram muito diferentes e o mundo um lugar mais seguro. E com razão: bastava conhecer as leis para compreender o porquê.

– Obrigado, Português. Tenho algo para que, apresente-se com Riley aqui às 15:00 h.

– Entendido, senhor – disse Oreza ao ficar de pé. perguntou-se por que ele lhe agradecia.

Adivinhava os pensamentos de seu comandante; mas, nessa ocasião, não pôde fazê-lo. Algo lhe tinha acontecido, mas só saberia às 15;00 h. Deveria esperar até lá.

Pouco depois, Wegener foi almoçar com os oficiais. Sentado à cabeceira da mesa, lia em silêncio as últimas mensagens transmitidas pelo teletipo.

Os oficiais eram jovens e o ambiente, informal e a conversa estava animada. O tema do dia era o ocorrido e Wegener deixou que falassem enquanto lia com rapidez as amareladas folhas. A ideia que tinha tido no camarote começava a tomar corpo. Meditou os prós e os contra em silêncio e chegou à conclusão de que as consequências não poderiam ser muito graves. O problema era saber se seus homens o apoiariam.

– Oreza diz que nos velhos tempos sabiam tratar a filhos da puta como esses – disse um subtenente no lado da mesa. Outros assentiram.

– O progresso é uma merda – acrescentou outro que, sem saber, permitiu que seu capitão tomasse uma decisão.

Sim, era possível, pensou Wegener. Levantou os olhos para ver seus oficiais. Tinha-os treinado bem, depois de dez meses sob seu comando, seu rendimento deixava muito pouco a desejar. Tinha transformado um grupo de homens tristes e deprimidos em uma equipe de oficiais entusiastas. Dois deles se deixaram crescer o bigode para parecer mais marinheiros. Sentados com aparente despreocupação ao redor da mesa, transmitiam eficácia. Amavam seu navio e eram leais a seu capitão. E o Apoiariam em tudo. Rede entrou na conversa e os sondou para ver quem participaria e quem ficaria de fora.

Depois de almoçar, voltou para o camarote onde ainda lhe guardava a papelada. Terminou o mais rápido que pôde e abriu o velho tomo de Rochas e baixios.

Às 15:00 h chegaram Oreza e Riley. Explicou-lhes seu plano: os dois suboficiais mais antigos se mostraram surpreendidos, mas aceitaram com entusiasmo.

– Riley, quero que leve isto a nossos hóspedes. Um deles o deixou cair sobre o convés. – Tirou o pacote de cigarros – . Tem visor na cela?

– Claro, capitão – respondeu o contramestre, surpreso. Não sabia nada sobre os “Calvert”.

– Começamos às 21:00 h – disse o capitão.

– A essa hora teremos tempestade – replicou Oreza – . De acordo, Rede. Teremos que tomar cuidado com...

– Sim, Português, sei. A vida é uma chateação se não corremos alguns riscos – sorriu.

Riley foi o primeiro a sair. Desceu por uma escada perto da proa até o segundo nível, e se dirigiu as celas, perto da popa. Os dois permaneciam estendidos sobre seus respectivos beliches na cela de três por três. Talvez tivessem conversado, mas calaram-se quando a porta foi aberta. O contramestre pensava que não seria má ideia instalar um microfone oculto na cela, mas um promotor tinha explicado que isso era uma violação dos direitos constitucionais ou dos procedimentos de detenção ou alguma estupidez legal do tipo.

– Escute, infeliz – disse, a o prisioneiro do beliche inferior, o mesmo ao que tinha jogado contra a amurada, firmou-se ao ver quem era e o olhou com olhos temerosos.

– Sim?

Falava com um acento estrangeiro que o suboficial não pôde identificar.

– Seus cigarros caíram no convés. – jogou o pacote por entre as barras, e Pablo – o suboficial pensou que tinha cara de Pablo – os recolheu surpreso.

– Obrigado.

– De nada. Por favor não saiam sem me avisar, entendido? – riu Riley, e se afastou. Era uma prisão de verdade, e estava bem desenhada. Inclusive tinha banheiro próprio. Para Riley era uma ofensa que houvesse uma prisão num navio da guarda-costeira. Mas pelo menos tinha a vantagem de não precisar de um guarda para os detidos. Claro que um pouco mais tarde... Sorriu. Rapazes, uma linda surpresa os espera.

No mar o vento é um fenômeno impressionante. Talvez seja como varre a superfície uniforme do mar, ou porque a mente humana saiba que seu poder no mar é superior ao que tem em terra firme. À luz da lua crescente, Wegener contemplava o avanço das rajadas de chuva de mais de vinte nós. O vento era de vinte e cinco nós, com rajadas de quase o dobro da força. A experiência lhe dizia que as suaves marolas de um metro que agitavam o Panache se transformariam mais tarde em agitadas ondas com escolho e espuma. Nada grave, mas o suficiente para sacudir o navio.

Alguns tripulantes lamentariam ter jantado. Bom, a gente aprende com experiência que o mar castiga a gula.

Para Wegener, a tempestade era uma vantagem adicional porque criava a atmosfera que ele procurava, e além disso dava um pretexto para alterar a escala de serviço.

O jovem Ou’Neil teria a oportunidade de aprender a pilotar o navio em um mar agitado.

– Problemas, oficial?

– Nenhum, senhor.

– Bem, lembre-se que se algo inesperado acontecer, estarei no salão.

Uma das ordens permanentes de Wegener dizia: Um oficial jamais sofrerá uma reprimenda por solicitar a presença do capitão na ponte. Embora seja só para saber a hora exata, me chame.

Tratava-se claro de um exagero. Mas era necessário, porque sabia de oficiais ajudantes que, temerosos de interromper o descanso de seu capitão, tinham investido contra outro navio e posto fim a sua carreira. A virtude do bom oficial, insistia Wegener, era saber que sempre tinha algo que aprender.

Ou’Neil assentiu. Os dois sabiam que não havia motivos para preocupar-se. Só que o rapaz ainda não tinha aprendido por experiência que o navio se comporta diferente quando o vento e o mar correm de través. De todas as formas, o suboficial Owens o acompanhava. Wegener foi para a popa e o segundo contramestre de guarda anunciou: “O capitão abandona a ponte”.

No rancho da tripulação, os recrutas viam um filme. Era uma fita nova, com uma letra “R” no estojo: Pornô pesado. Riley é quem tinha colocado.

Uma abundância de peitos e bucetas para manter presa sua atenção. Quem visse televisão no salão de oficiais encontraria o mesmo filme. Os jovens oficiais tinham os mesmos impulsos hormonais que os recrutas, mas essa noite não lhes dariam rédea solta.

A tempestade manteria os homens afastados dos conveses superiores, e o barulho seria bem alto.

Wegener sorriu ao abrir a porta do salão. Melhores condições, impossível.

– Estamos preparados? – perguntou.

O entusiasmo inicial que o plano despertara tinha desvanecido. Era de se esperar, pensou. Os jovens se mostravam agora muito sérios, mas não assustados.

Só esperavam que alguém desse a ordem.

– Preparados, senhor – disse Oreza da cabeceira. Os oficiais assentiram. Rede foi a seu assento junto à mesa e olhou para Riley:

– Traga-os.

– Entendido, senhor.

O contramestre se dirigiu a detenção. Ao abri-lo, um aroma de fumaça acre, que lhe fez pensar que havia um incêndio, assustou-lhe... até que compreendeu...

– Merda – grunhiu, furioso. Em meu navio! – . Vamos, infeliz! – ordenou – . Você também.

O do beliche inferior jogou gimba fora e ficou em pé com um sorriso arrogante. Riley sorriu por sua vez e lhes mostrou as chaves. O sorriso de Pablo se alterou, mas não se desvaneceu.

– Vamos dar um passeio, caras. – O contramestre tirou um par de algemas. Estava certo de que podia dominá-los facilmente, ainda mais por estarem drogados, mas a ordem do capitão era clara.

Colocou a mão entre as barras, prendeu um deles e o puxou para si ao mesmo tempo em que lhe ordenava dar a volta. O homem obedeceu e se deixou algemar, igualmente procedeu com o outro. Sua atitude surpreendeu o suboficial. Logo abriu a porta da cela e mandou que saíssem. Riley tirou o pacote de cigarros de “Pablo” e os jogou sobre o beliche.

– Andem. – cambaleavam ao caminhar... e não só por causa do balanço do barco. Demoraram vários minutos para chegar ao salão.

– Prisioneiros, sentem-se – disse Wegener– . O tribunal entra em sessão.

Os dois o olharam atônitos, em uma atitude cujo significado não escapou a nenhum dos pressente.

Riley os conduziu até seus assentos, junto à mesa da defesa. É difícil para um homem suportar as olhares fixos de seus semelhantes, sobretudo quando não compreende o que está acontecendo, depois de uma breve pausa, o maior abriu a boca:

– O que tá acontecendo?

– Senhor – disse Wegener com calma– , este é um Conselho de Guerra Sumário – Ante o olhar de incompreensão do outro, prosseguiu – : Que o senhor auditor militar leia a acusação.

– Senhor Presidente, de acordo com o artigo onze do Código de Guerra os prisioneiros são acusados de pirataria, violação e homicídio. Cada um destes crimes pede a pena capital. Especificamos: que no dia quatorze do corrente mês, os acusados abordaram o iate Empire Builder; e enquanto permaneciam a bordo, assassinaram às quatro pessoas que ocupavam esse barco; ou seja, o dono e capitão do iate, sua esposa e seus dois filhos, menores de idade e que no curso dos mencionados acontecimentos, os acusados violaram à esposa e à filha do dono e capitão; que os acusados desmembraram e eliminaram os cadáveres das vítimas pouco antes que nós abordássemos o navio na manhã do dia quinze. A auditoria demonstrará que estas ações tiveram lugar no curso de uma operação de contrabando de drogas. O homicídio agravado por tráfico ilegal de entorpecentes suporta a pena capital de acordo com o Código Penal dos Estados Unidos. Além disso, digo, o homicídio agravado por pirataria e a violação agravada por pirataria são crimes que suportam a pena capital de acordo com o Código de Guerra. Este tribunal sabe que a pirataria é um crime sob a doutrina do jus gentium e cai sob a jurisdição de qualquer navio de guerra interessado.

Além disso, digo, o homicídio agravado suporta a pena capital. Como o navio da Guarda-costeira dos Estados Unidos da América do Norte, possuímos o poder de jure para abordar qualquer navio de bandeira americana, mas não é estritamente necessário invocar essa autoridade nesta ocasião. Por todo o anterior, este Conselho tem plena jurisdição para julgar, e, em seu caso, executar aos prisioneiros. A auditoria deixa assentada sua intenção de solicitar a pena de morte.

– Obrigado – disse Wegener e se voltou para a defesa – . entenderam de que são a acusados?

– Como?

– O senhor auditor disse que serão julgados por pirataria, violação e homicídio. Caso forem considerados culpados, este Conselho poderá aplicar a pena de morte.

Têm direito a um advogado, conforme à lei. O alferes de navio Alison, sentado junto a vocês, cumprirá essa função. Compreendem? – Necessitou de alguns segundos, mas compreenderam – . Se dá por inteirada a defesa de qual é a acusação?

– Nos damos por inteirados, senhor Presidente. A defesa solicita que se julgue a cada acusado em separado e solicita permissão do tribunal para conversar a sós com os acusados.

– Senhor Presidente, a auditoria tem objeção à primeira solicitação.

– Que a defesa presente seu argumento.

– Senhor Presidente, estando em jogo as vidas de meus clientes, como o senhor auditor acaba de dizer, solicito ao tribunal me permita realizar a melhor defesa possível e...

Wegener levantou a mão.

– O defensor assinala com razão que nos crimes que suportam a pena máxima, é necessário outorgar as maiores garantias à defesa. O Conselho considera que o argumento é válido e aceita a solicitação. Do mesmo modo, concede cinco minutos para que o defensor possa conversar a sós com os acusados. O Conselho sugere ao defensor que instrua a seus clientes para que se identifiquem corretamente.

O alferes os conduziu a um canto e lhes falou em voz baixa. Os dois ficaram algemados.

– Escutem, sou o alferes Alison e me encarregaram de os defender. Para começar, o melhor que podem fazer quer me dizer seus nomes.

– O que palhaçada é esta? – perguntou o mais alto.

– Esta palhaçada é um Conselho de Guerra. Se por acaso não sabia. Estamos em alto mar, e em um navio de guerra norte-americano, onde o capitão faz tudo o que lhe dá a vontade. Já está bastante furioso, tratem de não chateá-lo mais.

– É o que?

– Estão julgando vocês, idiotas! É um julgamento com juiz e jurados. Podem condená-los a morte e executá-los agora mesmo, no navio.

– palhaçada.

– Por Deus, me digam ao menos como se chamam.

– Pergunte a sua mãe – replicou o mais alto com desdém. O outro se mostrava menos crédulo. O

alferes coçou a cabeça, gesto que não passou despercebido para o capitão Wegener.

– Que merda fizeram a bordo desse iate?

– Quero um advogado de verdade!

– Se por acaso não se deu conta, não terão nenhum advogado além de mim.

Como todos previam, o homem não acreditou. O defensor conduziu aos acusados à mesa.

– O Conselho entra de novo em sessão – anunciou Wegener – . Escutaremos o alegação por escrito inicial da defesa.

– Se o Conselho me permitir, os acusados optam por não identificar-se.

– Não é questão de permiti-lo, mas sim de aceitar o fato. Ao acabar este processo os identificaremos como John Doe e James Doe – disse Wegener, assinalando sucessivamente a um e outro – . Julgaremos primeiro a John Doe. Objeções? Muito bem, o auditor tem a palavra.

Durante os vinte minutos seguintes, tomou declaração a sua única testemunha, o suboficial Riley, quem relatou a abordagem e efetuou alguns comentários sobre a filmagem.

– O acusado dizem algo?

– Não, senhor.

– Descreva por favor o conteúdo desta bolsa.

– Senhor, acredito que esse objeto é o que chamam absorvente. Parece usado, senhor – disse Riley, envergonhado – . O achei debaixo da mesa, no salão principal do iate, perto de uma mancha de sangue..., esta que se vê na foto, senhor. Como você compreenderá, eu não sei muito sobre estes objetos, mas nunca vi uma mulher os deixar atirados por aí. Em troca, se alguém fosse violar uma mulher, essa coisa atrapalharia, digamos, e então é possível que o tirasse para poder fazer o que..., o que quer fazer. Se olhe o lugar do que o recolhi, que é onde estão as manchas de sangue, não é difícil compreender o que ocorreu.

– Não há mais perguntas, senhor Presidente. A auditoria concluiu sua apresentação.

– Muito bem. antes de apresentar seus argumentos, diga o defensor se tem intenção de convocar a outras testemunhas ao estrado.

– Não, senhor Presidente.

– Muito bem. Como Presidente deste Conselho, dirijo-me ao acusado. – Wegener girou a cabeça e se inclinou para diante em seu assento – . Senhor, agora que vai defender se, tem direito a uma de três possibilidades. Uma, pode optar por não fazer declaração alguma, nesse caso este Conselho não extrairá conclusões sobre sua atitude. Dois, lhe permite fazer uma declaração sob juramento, não sujeita a interrogatório posterior. Três, pode fazer uma declaração sob juramento e submeter-se a interrogatório por parte do auditor de guerra. Compreende você quais são seus direitos?

John Doe, que tinha seguido todo o processo com um sorriso desdenhoso, ficou em pé com dificuldade. Com as mãos algemadas à costas, nesse navio que se agitava como uma árvore cansada em uma corrente não era fácil conservar o equilíbrio.

– Que merda se passa? – perguntou com acento que nenhum dos pressente pode identificar – .

Quero voltar para a cela, e que me deixem em paz até que possa conseguir o advogado que quiser, que merda.

– Sr. Doe – replicou Wegener– , insisto, se por acaso não se deu conta, que é julgado por pirataria, violação e assassinato. Neste livro – elevou o de Rochas e baixios – diz que posso submetê-lo a processo aqui e agora, e que se o achar culpado, tenho liberdade para enforcá-lo sobre o convés. É verdade que esta lei não se aplica há mais de cinquenta anos, mas para seu próprio bem é melhor acreditar no que eu lhe digo. A lei está em vigência, porque que ninguém a aboliu. Não é o que você esperava, verdade? Quer um advogado? Tem ao Sr. Alison. Quer defender-se por seus próprios meios? Faça-o.

Mas saiba que este é um julgamento em única instância, sem apelação. Pense-o bem. Tem algo que dizer?

– Sim, que se vão todos a merda, filhos da puta.

– O Conselho omitirá o comentário do acusado – disse Wegener, mantendo uma expressão serena e séria, como corresponde a quem preside um julgamento com possível pena de morte.

Durante o quarto de hora seguinte, o defensor tentou corajosamente refutar as provas apresentadas pelo auditor, mas foi inútil. A auditoria e a defesa apresentaram suas alegações finais por escrito e novamente tomou a palavra o capitão Wegener.

– Os membros do Conselho darão agora seu veredicto. O voto será secreto e por escrito. O senhor auditor recolherá os votos.

Este trâmite se demorou menos de um minuto. O promotor entregou a cada um dos cinco membros do Conselho uma folha de papel. Cada juiz olhou ao acusado antes e depois de efetuar seu voto. O fiscal recolheu as folhas, mesclou-as e as entregou ao capitão. Wegener desdobrou os votos sobre a mesa, fez uma anotação e elevou a vista.

– Fique de pé o acusado e olhe de frente ao tribunal. Sr. Doe, tem algo que dizer antes que o tribunal pronuncie sua sentença?

A resposta foi um sorriso desdenhoso e incrédulo.

– Muito bem, o tribunal vota por maioria de dois terços que o acusado é culpado e o condena a morte na forca. A sentença se executará dentro de uma hora. Que Deus tenha piedade de sua alma. O

tribunal entra em recesso.

– Lamento-o, senhor – disse o defensor – . Você não facilitou a minha tarefa.

– Quero um advogado! – chiou Sr. Doe.

– O que você precisa, senhor, não é um advogado, mas de um padre – disse o defensor, e, nesse momento, o suboficial Riley apertou o braço.

– Vamos. Uma linda corda te espera.

O outro prisioneiro, o chamado James Doe, tinha seguido todo o processo com uma mescla de incredulidade e fascinação. Agora sua expressão se alterou: era a de um homem a ponto de ser atropelado por uma locomotiva.

– E você, compreende o que acontece?

– Tudo isto é falso – disse o detento, embora sem a convicção que tinha demonstrado uma hora antes.

– Ouça, ainda não se deu conta? Não te disseram que ultimamente os tipos como vocês desaparecem e não se sabe mais deles? Começamos a fazer isto faz mais de seis meses. As cadeias enchem, e os juízes, estão fartos de tudo isto. Se detivermos um tipo com as mãos na massa, ocupamo-nos de tudo, aqui, em alto mar. Não lhe disseram que as coisas não são como antes?

– Não podem! – chiou.

– Seriamente acredita que não podemos? Bom, o demonstrarei, dentro de dez minutos subiremos ao convés. E te digo que se não colaborar, não jogaremos com você, amigo. É tarde e estamos cansados.

Sinta-se, pense-o bem e quando o momento chegue, verá qual é a verdade.

O alferes se serviu uma xícara de café para passar o tempo, e não voltou a dirigir-se ao acusado.

Bebia o último gole quando a porta se abriu.

– Todos ao convés para assistir a execução – anunciou o suboficial Oreza.

– De pé, Sr. Doe. Deve ver.

O alferes o agarrou por braço e o conduziu à escada frente à porta do salão de oficiais. Subiram-na e se dirigiram por um corredor estreito para o convés de popa, que era uma pista de aterrissagem para um helicóptero.

O alferes de navio Rick Alison, um rapaz negro de Albany, Nova Iorque, era o navegador. Todas as noites agradecia a Deus pelo fato de achar-se sob o comando de Rede Wegener, de longe o melhor capitão que tinha conhecido em toda sua vida, mais de uma vez tinha pensado em pedir baixa, mas ultimamente havia resolvido seguir até aposentar-se. Conduziu Sr. Doe à popa, a uns dez metros da cerimônia.

O mar estava muito agitado, percebeu Alison. Calculou que as rajadas eram de mais de trinta nós e as ondas de três ou quatro metros. O Panache balançava até uns vinte e cinco graus a esquerda e direita da vertical, como uma espécie de balanço. Alison recordou que Ou’Neil estava ao leme, com ajuda do suboficial Owens. O novo alferes de corveta era um bom rapaz, mas tinha muito que aprender, pensou o navegador, que era apenas seis anos mais velho.

A estibordo, relâmpagos ocasionais iluminavam o mar. A torrencial chuva varria o convés a um ângulo agudo e, lançada pelo vento, açoitava os rostos dos homens com força. Em definitiva, era uma noite própria de um conto de Poe. Não havia luz, embora a pintura branca do navio dava uma espécie de referência visual fantasmagórica. Alison se perguntou se Wegener tinha tomado aquela decisão a causa do tempo ou se só era uma afortunada casualidade.

Capitão, cometeu algumas loucuras desde assumiu esse navio, mas esta era a maior de todas.

Apareceu a corda. Alguém a tinha passado sobre a ponta do mastro que sustentava as antenas do rádio e o radar. Um exercício muito perigoso, pensou Riley. O único capaz de fazer tal loucura era o suboficial Riley.

Trouxeram o prisioneiro, com as mãos algemadas à costas. Flanqueavam-no o capitão e o imediato.

Wegener pronunciava umas palavras, mas não podiam escutá-lo. O vento assobiava ao cruzar o convés e entre as adriças do mastro... Riley tinha utilizado uma das adriças para levar a corda de cânhamo até o lugar. Ninguém era tão louco para subir o mastro em meio de tal tempestade.

Acenderam umas luzes. Eram os refletores de convés utilizadas para guiar aos helicópteros. Não serviam grande coisa em meio da chuva, mas clareavam um pouco o quadro. Wegener se dirigiu uma vez mais ao prisioneiro, que ainda conservava sua atitude de soberba. Ainda não acreditava, talvez não acreditasse nunca, pensou Alison. O capitão balançou a cabeça e deu um passo atrás. Riley lhe pôs a corda no pescoço.

A expressão do John Doe se alterou um pouco. Embora ainda não de acreditasse na situação, de repente, parecia um pouco mais grave. Cinco homens tomaram a corda. Alison teve que reprimir a gargalhada. Conhecia o método, mas pensava que o capitão não se atreveria a chegar esse ponto...

Riley obrigou ao prisioneiro a voltar-se para ficar de frente a Alison e seu amigo – por vários motivos– antes de lhe dar a surpresa. E então Sr. Doe terminou de compreender.

– Nãooooo!

Foi perfeito, um grito prolongado e fantasmagórico, no tom com a noite e o vento. Seus joelhos se dobraram e os homens que sustentavam o cabo solto correram para a popa, apartando-se dele. Os pés do prisioneiro se elevaram da convés antiderrapante e seu corpo subiu para o céu. As pernas se agitaram um par de vezes, nada mais, enquanto atavam o cabo a um castiçal.

– Bom, já está feito – disse Alison. Agarrou ao outro Sr. Doe no braço e o conduziu por volta da proa – . Agora é você.

Quando chegaram à escotilha, um relâmpago iluminou a convés. O prisioneiro se deteve para jogar um último olhar. O corpo de seu companheiro se balançava como um pêndulo sob a chuva.

– Agora acredita? – perguntou o navegante ao obrigá-lo a entrar. As calças do Sr. Doe estavam empapadas, e não só por causa da chuva.

Quando o tribunal voltou a entrar em sessão, todos vestiam roupa limpa; James Doe levava um macacão de marinheiro azul. Tiraram-lhe as algemas, e ao sentar-se achou que lhe tinham servido uma xícara de café muito quente. Não sentiu a ausência dos suboficiais Oreza e Riley. A atmosfera era muito menos tensa que antes, mas tampouco entendeu isso. James Doe não se sentia muito cômodo.

– Sr. Alison – disse o capitão– , sugiro que converse a sós com seu defendido.

– A alternativa é simples – disse Alison– . Falar ou morrer. O capitão não se importa com o que você escolher. Para começar, como te chama?

Jesus abriu a boca pela primeira vez. Um oficial empunhou uma câmara portátil de vídeo – a mesma que tinham utilizado na abordagem – , e lhe disseram que começasse outra vez.

– Bem, compreende que não está obrigado a falar? – perguntaram-lhe. O prisioneiro não escutou.

Repetiram a pergunta.

– Sim, entendo, está bem? – replicou sem voltar a cabeça– . O que querem que lhes diga?

As perguntas já estavam formuladas por escrito. Alison, que também era o assessor legal do navio, leu a lista com a maior lentidão possível frente à câmara. O problema era conseguir que o prisioneiro falasse com idêntica lentidão e de maneira inteligível. O interrogatório durou quarenta minutos.

O prisioneiro respondia com rapidez e sem voltas, e parecia não ver os olhares dos homens que o rodeavam.

– Obrigado por sua cooperação – disse Wegener uma vez que todo o processo concluiu – .

Pediremos que não sejam tão duros contigo. Claro que não poderemos fazer muito por seu amigo.

Compreende?

– Sem problema – espetou o homem, e todos se relaxaram.

– Falaremos com promotor – prometeu o capitão – . Alferes, conduza ao detento a cela.

– Entendido, senhor. – Alison e o detido saíram do salão, sob o olhar da câmara. Entretanto, ao chegar à escada, o detento tropeçou. Não viu a mão que o fez cair, nem teve tempo de ver a outra quando caiu com violência sobre sua nuca. O suboficial Riley quebrou um braço do homem desvanecido e o suboficial Oreza cobriu sua boca com uma gaze empapada em éter. Os dois carregaram com ele até a enfermaria, onde o médico de bordo lhe engessou o braço. Era uma fratura simples, não requeria cuidados especiais. Algemaram-lhe o braço são à cama e o deixaram dormir.

O prisioneiro despertou já avançada a manhã. Serviram-lhe o café da manhã e lhe permitiram assear-se antes que o helicóptero atracasse. Oreza o levou ao heliporto, onde o suboficial Riley já entregava o outro prisioneiro. James Doe – cujo verdadeiro nome era Jesus Castelo – viu com estupor que John Doe – quer dizer, Ramón José Capati – estava tão vivo quanto ele. Uma dupla de agentes da DEA os mantinha muito separados, de acordo com as instruções. O capitão lhes tinha dito que alguém tinha confessado, para grande desgosto do outro. Castelo não podia apartar os olhos de Capati, e os agentes, que confundiram seu assombro com medo, e estavam encantados por contar com uma confissão num caso como esse, decidiram mantê-los o mais separados possível no reduzido espaço interno do helicóptero.

Também levaram as provas do delito e os videocassetes. Wegener olhava como o rotor do “Dolphin”

tomava velocidade enquanto se perguntava como reagiriam em terra. Era o momento de reflexão que segue a todo ato de loucura, mas Wegener o tinha antecipado. Acreditava havê-lo previsto tudo. Só oito tripulantes estavam a par do acontecido, e sabiam o que deviam declarar. O imediato apareceu a seu lado.

– As coisas alguma vez são o que parecem, não?

– Suponho que não, mas três inocentes morreram. De fato, quatro. – O dono do iate não era um santo, pensou o capitão. Mas por que matar à mulher e os filhos? Wegener observou o impassível mar.

Não tinha a menor ideia do processo que tinha desencadeado nem de quanta gente morreria por causa disso.

IV

PRELIMINARES

Chávez pensou pela primeira vez que era uma missão bem incomum, quando chegaram ao aeroporto de São José. Levaram-nos em uma caminhonete alugada, sem identificação oficial, ao setor civil do aeroporto, onde um jato particular os esperava. Isso foi impressionante. O “coronel Smith” não entrou no avião. Apertou a mão deles e disse que eram esperados e voltou à caminhonete. Não era um jato comercial, mas um avião de passageiros pequeno. Tinha até uma aeromoça para servir os drinques.

Cada um guardou sua bagagem e todos se serviram, menos Chávez, que estava muito cansado, inclusive para olhar a jovem. Quase não percebeu a decolagem e dormiu antes que o aparelho completasse sua ascensão. Uma voz interior lhe dizia que devia aproveitar todo o tempo disponível para dormir. Esse instinto não falha aos soldados.

O tenente Jackson nunca tinha estado na base de Monterrey, mas seu irmão tinha falado como chegar. Encontrou o cassino de oficiais sem problema. Ao trancar seu carro percebeu que o seu uniforme era o único do Exército à vista e se sentiu muito sozinho. Em todo caso, não era difícil saber a quem devia fazer a continência. Os subalternos saúdam quase todo mundo.

– Estou aqui, Timmy! – exclamou seu irmão da porta.

– Olá, Rob.

Abraçaram-se com vigor. Eram de uma família muito unida, e Timmy não via seu irmão mais velho

– o capitão de fragata Robert Jefferson Jackson, da Marinha dos Estados Unidos – a quase um ano. A mãe de Robby tinha morrido anos atrás. Uma noite, aos trinta e nove anos, sentiu uma leve enxaqueca, deitou-se e morreu de enfarte. A autópsia revelou que sofria hipertensão assintomática, esse mal tão comum entre os negros norte-americanos. Seu marido, o reverendo Josiah Jackson, chorou sua morte acompanhado pelos vizinhos da comunidade onde criavam seus filhos. Mas esse homem de Deus também era pai de família, e seus filhos precisavam de uma mãe. Quatro anos mais tarde, casava-se com uma jovem de sua igreja e começava outra vez. Timothy era o filho mais velho de seu segundo matrimônio.

Seu quarto filho seguiu os rastros do primeiro. Robby Jackson, graduado da academia naval de Annapolis, era piloto de combate. Timmy tinha ingressado em West Point com a ambição de fazer sua carreira na Infantaria. Outro irmão era médico e o quarto, advogado, com aspirações políticas. Corriam novos ventos no Mississippi.

Os dois respeitavam-se enormemente. Robby, com suas três faixas douradas nos ombros, levava sobre o peito a estrela dourada dos que comandaram no mar: que em seu caso era um VF-41, uma esquadrilha de caças F-14 “Tomcat”. Agora tinha um posto no Pentágono, mas em breve passaria a comandar a esquadrilha de um porta-aviões e logo talvez o próprio porta-aviões. Timothy era o menor da família, mas isso foi antes de West Point.

Agora tinha quatro centímetros a mais que seu irmão e seis quilos a mais de puro músculo. Levava o distintivo dos rangers e o do relógio de sol, próprio de sua divisão. Outro rapaz que se tornou homem à moda antiga.

– Você está muito bem, cara – disse Robby– . Um drink?

– Pequena, obrigado. Se não, durmo agora mesmo.

– Um dia muito duro?

– Uma semana muito dura – respondeu Tim – , mas não posso me queixar: ontem pude dormir bastante.

– Vejo que te tratam bem – disse com fingida preocupação.

– Bom, se quisesse uma vida cômoda, teria me alistado na Marinha – disse Tim, e os dois soltaram a gargalhada.

Robby pediu um coquetel de rum, um gosto adquirido recentemente, graças a um amigo, e Tim uma cerveja. Durante o jantar, depois de trocar notícias sobre a família, ficaram a falar de seu trabalho.

– O nosso não é muito diferente – disse Timmy– . Vocês destroem às pessoas com mísseis, nós colocamos balas na cabeça delas sem lhes dar tempo para descobrir nossa presença. Mas você sabe disso, não, mano? – perguntou com um sorriso não isento de inveja. Robby tinha conhecido a guerra.

– Sim, e uma vez basta para toda a vida – disse Robby, muito sério– . A luta corpo a corpo é para os idiotas como você.

– Sim, bem, como dizia, ontem à noite fomos a vanguarda do batalhão. Meu pelotão era uma beleza de se ver. O inimigo era um grupo blindado da Califórnia. Descuidaram-se da vigilância e o sargento Chávez entrou pela retaguarda sem que percebessem. Vale a pena ver a atuação desse cara. Juro que parece o Homem Invisível quando quer. Não vai ser fácil de substituir.

– Substituir?

– Transferiram ele esta tarde. Sua saída estava prevista para dentro de duas semanas, mas o mandaram a Fort Benning antes do previsto. – Fez uma pausa – . Agora que penso, todos são latinos. Que coincidência. – Outra pausa – . E Leon também estava destinado a Fort Benning, se não me engano.

– Quem é Leon?

– Um sargento. Estava no pelotão de Ben Tucker, meu velho camarada de West Point, iam mandar ele para a escola de rangers em duas semanas, por que os levaram juntos? Bom, assim é o Exército, mas, me conte um pouco sobre o Pentágono.

– Há destinos piores, mas não muito – admitiu Robby– . Foram vinte e cinco meses, mas me liberaram, graças a Deus. Sou um dos candidatos para comandar um grupo aéreo baseado num porta-aviões – disse. Tinha chegado à etapa mais difícil de sua carreira, onde havia mais candidatos que postos vagos. Como no combate, um dos fatores decisivos era ter sorte. Timmy ainda não tinha chegado nessa etapa.

Ao término de três horas de voo, o jato aterrissou numa pequena pista aérea e deslizou até o terminal de cargas. Chávez não sabia onde se encontravam.

Estava muito cansado, mas despertou com o ruído da porta abrindo. Sua primeira impressão foi que tinha falta de ar e achou muito estranho, mas atribuiu a uma confusão provocada pelo despertar repentino.

– Onde diabos estamos? – perguntou um sargento.

– Saberão quando descerem – disse a aeromoça– . Espero que passem muito bem – acrescentou com um sorriso encantador que não admitia réplica.

Os sargentos recolheram sua bagagem, descenderam à pista e entraram numa caminhonete que os esperava. Chávez compreendeu por que era tão difícil respirar.

Ao voltar o olhar para o Oeste, viu os altos picos de uma cadeia de montanhas perfiladas contra o céu do entardecer. Um voo para o oeste, três horas, montanhas: tinham que ser as Montanhas Rochosas, embora nunca tivesse estado ali. Um caminhão tanque se dirigia para o avião. Chávez não compreendia.

O aparelho demoraria ali menos de meia hora. Poucos notariam a presença do jato e ninguém perguntaria que fazia nesse lugar.

Clark se hospedou num bom hotel, de acordo com a sua identidade. A dor na nuca lhe dizia que ainda não tinha se adaptado à altitude, mas dois comprimidos de “Tylenol” o aliviaram, e sabia que esse trabalho não exigiria muito esforço físico. Pediu o café da manhã no quarto e realizou algumas flexões para relaxar. Durante uns dias não faria a sua corrida matinal. Tomou banho e se barbeou, e, quando terminava de se vestir, chegou o café da manhã.

Às nove estava preparado para ir trabalhar. Clark desceu de elevador para o vestíbulo e saiu. O

carro o esperava. sentou-se junto ao motorista.

– Bom dia - disse o motorista – . Acho que vai chover.

– Tenho meu impermeável – respondeu Clark.

– Também pode fazer frio.

– Nesse caso, meu impermeável tem forro de pele – completou Clark, o reconhecimento.

– Quem inventou isso deve ser um gênio – disse o homem – . É verdade que previram chuva. Meu nome é Larson.

– Clark.

Não apertaram as mãos porque era contra o costume. Larson era um homem de trinta anos, com um cabelo negro que desmentia seu sobrenome de origem nórdicas. Para seus conhecidos, Carlos Larson era filho de pai dinamarquês e mãe venezuelana. Era instrutor de voo, oficio para o qual existia uma grande demanda. Piloto hábil e bom professor, também era um homem discreto, virtude muito apreciada por seus clientes. Não precisava fazer perguntas; os pilotos e sobre tudo os alunos, falavam muito; além disso, tinha boa memória para detalhes e tinha o tipo de conhecimentos que leva os outros a pedirem conselhos.

Achava que tinha reunido os recursos necessários para sua empresa com uns voos altamente clandestinos e logo se aposentou – embora não de todo – para levar uma vida de luxo. Essa lenda, que não lhe arranjava inimigos, servia-lhe como prova de boa fé ante as pessoas que lhe interessavam. Era um homem que tinha feito o necessário para conseguir o que queria e levar o tipo de vida que desejava. Com isso justificava seu poderoso automóvel “BMW”, seu luxuoso apartamento e sua amante, uma aeromoça da Avianca, que, na verdade, era correio da CIA. Para Larson, tratava-se de uma missão paradisíaca, sobre tudo porque a garota era realmente sua amante, embora talvez não fosse do agrado de seus superiores na Agência.

O único detalhe desagradável era que o chefe local da CIA não estava a par de sua presença na Colômbia. Apesar de sua relativa falta de experiência, Larson – que surpreendeu Clark por saber que esse era seu verdadeiro nome – estava o bem a par dos métodos da Agência para saber que a existência de cadeias de comando independentes significava uma operação especial. Durante dezoito meses só lhe tinham pedido que deixasse claramente estabelecida sua identidade de trabalho. A presença de Clark era o sinal de que algo ia mudar. Tinha chegado o momento de merecer o salário.

– Qual é o plano para hoje? – perguntou Clark.

– Voaremos um pouco, o que der antes que venha o mau tempo.

– Sei que têm bom conceito de você como piloto.

– Obrigado, considerarei um voto de confiança – sorriu o piloto ao virar para o aeroporto – .

Acredito que já viu as fotografias.

– Sim, as de três dias. Mas sou das antigas e eu gosto de dar uma olhada no terreno. Nos mapas e as fotos não aparecem todos os detalhes.

– Me disseram que a missão consiste em fazer uma passagem lenta, mas nada de sobrevoar em círculos o lugar porque poderiam se aborrecer.

O bom de ter uma escola de pilotos era que seus aviões não chamavam a atenção em nenhum lugar, mas se alguém demonstrasse muito interesse por certas pessoas, estas anotariam o número de matrícula e iriam ao aeroporto a averiguar os motivos. As averiguações dos habitantes de Medellín costumavam ser bem desagradáveis. Larson não os temia. Sabia que não tinha muito que temer enquanto não traísse sua identidade. Mas era um profissional, o que quer dizer, que era um homem cuidadoso, sobre tudo quando se tratava de sua própria sobrevivência.

– Está certo – disse Clark. Ele também sabia. Tinha sobrevivido aos perigos de seu ofício porque só corria os riscos indispensáveis, que já eram grandes de por si só. Era como na loteria: embora as probabilidades de acertar o número ganhador fossem baixas, se jogar durante tempo suficiente, alguma hora iria aparecer o número, por mais cuidadoso que alguém fosse. Nessa loteria, o prêmio não era uma soma em dinheiro, e sim tumulo anônimo. Isso se o inimigo tivesse um pouco de espírito religioso.

Não gostava muito da missão. Apesar de seu nobre fim, mas não era pago para fazer esse tipo de julgamento de valor. Sua tarefa era completar a missão, não pensar nela. O problema principal das operações clandestinas era que alguém arriscava a vida de acordo com critérios dos outros. Era bom conhecer os porquê, mas os responsáveis pelas decisões diziam que esse conhecimento aumentava o perigo. Os agentes nem sempre acreditavam nisso. E isso incomodava Clark. Twin Beech estava no setor geral do aeroporto internacional El Dorado. Não era difícil deduzir porque usavam esses aviões pequenos.

Tantos carros de luxo, aviões caros não pertenciam à aristocracia colombiana. Eram os brinquedos dos novos ricos. Clark os olhou com pouco interesse.

– Parece que às vezes o crime compensa, não? – riu Larson.

– E o que me diz dos pobres diabos que são suas vítimas?

– Sim, sei. Só quis dizer que são bons aviões. Esses “Gulfstream”... tive oportunidade de pilotar um deles, é uma máquina como poucas.

– Quanto custam? – perguntou Clark.

– Como um sábio disse, se precisa perguntar o preço, é que não pode pagar.

– Sim, entendo – sorriu Clark. Mas o preço de certas coisas não se mede em dólares, pensou.

Começava a gostar da missão.

A rotina de decolagem levou uns quinze minutos. Uma hora e meia antes tinha aterrissado com esse mesmo avião. Poucos pilotos repetiam toda a rotina, mas Larson era um profissional, quer dizer, um homem minucioso por definição. Clark se sentou-se a seu lado na cabine e se ajustou o cinto, como um aluno no seu primeiro voo. A essa hora, o tráfego aéreo era escasso, não tiveram que esperar muito para sair à pista. A única coisa que surpreendeu Clark foi comprimento das pistas.

– Isso se deve à altura – explicou Larson pelo intercomunicador ao elevar o avião da pista – . Os controles são um pouco duros a baixa velocidade. Não há problema. É como conduzir com neve: só tem que ter um pouco de cuidado. – Deu a máxima potência para ganhar altitude rapidamente. Clark estudou o painel: tudo parecia em ordem, mas chamou-lhe a atenção que pudesse distinguir às pessoas em terra, quando o altímetro marcava três mil metros.

O aparelho virou à esquerda para virar para Noroeste. Larson abriu as válvulas de estrangulamento:

– Terei que prestar atenção à temperatura dos motores, disse, embora os “Continental” estivessem dotados de sistemas de refrigeração reforçados. Voavam para as montanhas que formam a coluna dorsal do país. O céu parecia espaçoso e o sol brilhava.

– Bonito, não?

– É sim – assentiu Clark.

Os Montes estavam cheios de árvores de folhas cor verde esmeralda, molhadas pela chuva da noite anterior, lançavam brilhos sob o sol.

Mas o olhar perito do Clark via outra coisa. Operar nesse terreno vai exigir um esforço tremendo, pensou. A única vantagem era a abundância de vegetação para ocultar-se. Com aquelas ladeiras escarpadas e o ar rarefeito, qualquer esforço seria árduo. Não tinham informado sobre a natureza da operação, mas sua experiência lhe permitia intuí-la suficiente para estar feliz em não participar da parte mais difícil do trabalho.

As cadeias montanhosas colombianas seguem um vetor do Sudoeste a Nordeste. Larson procurou uma passagem adequada, mas o cruzamento foi um pouco agitado por causa dos ventos do Pacífico.

– Terá que habituar-se. Há muito vento hoje devido à frente de tempestade que se aproxima. Nesses Morros sempre existe muita turbulência. Quando há mau tempo... bom, você verá.

– Obrigado, espero que não. E o que me diz dos lugares onde aterrissar se...

– Se algo der errado? Por isso sou tão obsessivo com a rotina de prevenção. Além disso, há lá abaixo mais pistas do que se imagina. Claro que a recepção não costuma ser calorosa. Mas não se preocupe. Instalei motores novos faz um mês. Vendi os outros a um aluno meu que os queria para seu velho “King Air”. Agora são da Direção da Alfândegas.

– Teve algo que ver com isso?

– Negativo! Eles acham que eu sei por que esses rapazes querem aprender a voar. Sabem que eu não sou idiota. Assim ensino as táticas de evasão mais comuns, e além disso estão explicadas em todos os bons manuais de aviação. Pablo não era o que se chama de leitor, mas tinha dotes naturais de sobra para ser piloto. No fundo me entristece, era um bom garoto. Apanharam-no com cinquenta quilos, ouvi dizer que não abriu a boca. Não me surpreende: esse filho de puta tem fibra.

– Diria que essa gente está motivada? – Clark era veterano de guerra, e tinha estado em combate, sabia que o valor do adversário não se mede em quantidade de armas.

Larson franziu a testa e olhou ao céu.

– Depende do que quer dizer com isso. Se trocamos motivado por valente, eu diria que estão motivados de sobra. O culto da virilidade, etc... Num certo sentido, é admirável. Seu sentido de honra é bem estranho para nós. Por exemplo, meus conhecidos me tratam muito bem. Sua hospitalidade é magnífica, sobre tudo se lhes demonstro alguma deferência. Além disso, não lhes faço concorrência.

Quero dizer, que os conheço bem. Muitos deles sabem voar graças a mim. Se tivesse falta dinheiro, eu conseguiria emprestado. Poderia ir à fazenda, apertar a mão do patrão, e pedir meio milhão em espécie e sair dali com o dinheiro na pasta. Teria que lhe pagar com um alguns voos de transporte, é obvio; e nunca teria que devolver o empréstimo. Agora, se eu os enganasse, eles se assegurariam de que o pagasse muito caro. Têm suas regras, e se alguém as segue, está a salvo. Se as quebrar é melhor ter as malas prontas.

– Sei que são implacáveis, mas quero saber como funcionam seus cérebros.

– São bem inteligentes e o conhecimento que lhes falta, compram. Podem comprar a tudo e a todos.

Não os subestime. Seus sistemas de segurança são os mais avançados do mundo, é como dos nossos mísseis intercontinentais... ou até melhores. Têm uns guarda-costas tão eficazes como os do presidente dos Estados Unidos, só não respeitam muito as regras de combate. Diria que o melhor indício de sua inteligência é o fato de que se uniram num Cartel. Quer dizer, perceberam que a guerra entre as facções só faz que com que todos percam, por isso se aliaram. O acordo não é perfeito, mas é bastante funcional. Os que atrapalham o negócio, morrem. Não é difícil morrer em Medellín.

– A Polícia? Os juízes?

– A autoridades locais os enfrentam eles e por isso há uma montanha de cadáveres de policiais e juízes. – Larson balançou a cabeça – . Mas não é fácil continuar quando não se vê o menor resultado.

Quantos homens são capazes de recusar uma mala cheia de notas de cem dólares, livre de impostos?

Ainda mais quando a alternativa é a morte para ele e toda sua família. O Cartel é inteligente, meu amigo.

Tem paciência, recursos e crueldade suficiente para assustar um nazista. Não é um inimigo fácil. – Larson mostrou uma mancha indistinta à distância – : Medellín. Toda a droga do mundo numa pequena cidade no meio das montanhas. Bastaria uma bomba nuclear de dois megatons explodindo a mil e quinhentos metros. Acredito que o resto do país até aplaudiria.

O passageiro olhou Larson de lado. Vivia no país, conhecia essa gente, e inclusive era amigo de alguns, como acabava de dizer. Mas em algumas ocasiões seu ódio por eles era maior que sua objetividade profissional. Ambivalência, no melhor sentido da palavra. O rapaz tinha futuro na Agência, pensou Clark.

Inteligência e paixão. Se mantivesse o equilíbrio certo entre as duas, chegaria muito longe. Clark tirou uma câmera e um binóculo de sua bolsa. Não lhe interessava a cidade em si.

– Lindas casas, não?

Os chefões da droga, com uma recente preocupação por sua segurança, tinham derrubado as árvores as colinas ao redor da cidade. Clark contou mais de uma dezena de casas novas. Casas, pensou com desdém. Mas não, castelos, fortalezas muradas. Estruturas imensas rodeadas por paredes grosas e estas por sua vez por ladeiras escarpadas, sem uma só árvore. Na Itália ou na Baviera, o turista contempla encantado o pitoresco marco das aldeias e os castelos, construídos invariavelmente no topo de alguma montanha. Essas construções requeriam muito trabalho: destruir as árvores, transportar os blocos de pedra até o topo, e, ao final, obtinha-se uma vista de vários quilômetros ao redor. Mas não tinham construído esses castelos, essas aldeias – e tampouco essas casas – por simples prazer estético. Era impossível aproximar-se delas sem ser visto. O terreno ao redor das residências era no jargão militar uma zona de fogo livre, sem que nada atrapalhasse a visão dos atiradores com suas armas automáticas. Em cada casa, só tinha um caminho e esse conduzia à única porta. Um heliporto permitia uma fuga rápida. Os muros, de pedra, eram capazes de resistir a um disparo calibre .50. Através do binóculo viu o caminho de tijolo moído ou cimento que seguia o contorno interior dos muros: por ali passavam as sentinelas. Uma companhia de fuzileiros não tomaria facilmente uma dessas fazendas de assalto. Talvez uma esquadrilha de helicópteros com apoio de morteiros e navios de guerra...

Merda – disse Clark– . O que estou pensando.

– Pode conseguir as plantas das casas?

– Sim, é fácil. Só foram três os arquitetos que desenharam estas propriedades. Nesse aspecto, a segurança não é boa. Além disso, me convidaram para uma festa faz apenas duas semanas. Nisso não são tão espertos, são traídos no afã de ostentar. Conseguirei os planos. As fotos tiradas por satélite revelam as rotinas da guarda, os depósitos de veículos e todo o resto.

– Certo – sorriu Clark.

– Pode me dizer qual é sua missão aqui?

– Querem que avalie as características físicas do terreno.

– Entendo. Diabo, isso o eu poderia ter feito. – Mais que curioso, Larson se sentia ofendido porque não lhe tinham encomendado a missão.

– Bom, já sabe como são na Central – disse Clark.

– É piloto – se absteve de dizer Clark – . Não sabem como é carregar uma mochila pesada pelas montanhas, mas eu sim. Larson talvez pudesse ter adivinhado a missão se conhecesse o passado de Clark, mas poucos sabiam que fazia na Agência e o que fizera antes de ingressar.

– Quanto menos souber, será melhor, Sr. Larson.

– Entendido – assentiu o piloto.

– Quero tirar umas fotos.

– Antes façamos uma passada pelo aeroporto. Para que pareça tudo normal.

– Está certo – assentiu Clark.

– Onde estão as refinarias? – perguntou Clark quando voltavam para o aeroporto El Dorado.

– Quase todas se encontram ao sudoeste daqui – disse Larson ao virar sobre o vale – . Eu não as conheço, não quero ter nada a ver com essa parte do negócio. E eles sabem disso. Se quiser explorar, pode fazer de noite com equipamento infravermelho, mas são difíceis de achar. O equipamento é portátil, fácil de instalar e de dirigir. Pode carregar tudo em um caminhão de médio porte instalar e voltar a instalar quinze quilômetros depois no dia seguinte.

– Não há tantos caminhos...

– Vai se verificar cada caminhão que passa? Além disso, pode ser carregado no ombro. A mão de obra é abundante.

– O que faz o Exército? Não se mete nisto? – Clark tinha recebido os relatórios correspondentes antes de iniciar a missão; mas, às vezes, a perspectiva local era distinta da de Washington..., e mais próxima à verdade.

– Faz o que pode. O maior problema é a falta de verba. Os helicópteros passam menos de vinte por cento do tempo no ar e realizam poucas operações.

Significa que se alguém é ferido, recebe atenção médica muito rápida, mas isso vai contra o êxito da missão. Por outro lado, imagine o salário de um capitão. Agora, suponhamos que alguém aborde esse capitão num bar, o convida para uma bebida, conversa com ele. E diz que no dia seguinte de noite talvez lhe conviesse patrulhar o setor sudoeste de sua área..., ou qualquer setor menos o nordeste, entende? Se aceita patrulhar um setor e não outro, dão-lhe cem mil dólares. Eles têm dinheiro suficiente para pagar essa soma de vez uma só, só para saber se está disposto a colaborar. É o gancho, digamos. Uma vez tenha se vendido, oferecem-lhe somas menores, mas já é um salário regular. Além disso têm tanta mercadoria que, de vez em quando, permitem-lhe apreender um carregamento, assim fica bem com seus superiores.

Com o tempo, o capitão sobe a coronel, controla um território muito maior. Não são más pessoas, mas...

droga, não podem fazer nada. As instituições são tão frágeis que... bom, e em casa como estamos? Eu...

– Fique tranquilo, Larson, eu não critico ninguém – disse Clark – . Não creio que muita gente é capaz de perseverar numa missão com tanto a perder. – Voltou o rosto para a janela lateral e sorriu – . É

necessário ser um pouco maluco para fazer isso.

V

PRELÚDIOS

Ao despertar, Chávez sentiu a enxaqueca típica do primeiro dia no ar rarefeito das altas montanhas, a que começa atrás dos olhos e se irradiava em círculos por toda a cabeça. Entretanto, não se sentia mal.

Durante toda sua vida militar despertou minutos antes do toque de alvorada. Dessa maneira, a transição do sono ao despertar era mais fácil e tolerável. Virou a cabeça de um para outro para estudar o ambiente na luz alaranjada que penetrava pelas janelas nuas.

Se não conhecesse bem a vida militar diria que esse edifício era uma cabana. Chávez achou que parecia mais um abrigo de caçadores, e tinha razão. Calculou que o dormitório media uns sessenta metros quadrados; havia quarenta camas metálicas, todas com um fino colchão militar e um cobertor marrom.

Os lençóis eram do tipo adaptável, ou seja não seria obrigado a dobrá-los todas as manhãs.

“Perfeito”. Estou me acostumando a casa de pinheiro lustroso, o teto abobadado se sustentava em troncos de pinheiro descascados em vez das vigas de madeira normais. “E pensar que na temporada de caça os caras ricos pagam uma fortuna para passar uns dias num lugar como esse.” – pensou o sargento. Aquilo provava, sem duvida, que riqueza não era sinônimo de inteligência.

Chávez não era um maníaco por quartel, e se não alugou um apartamento perto de Fort Ord, era porque queria economizar para comprar um “Corvette”. Para completar a cenografia, ao pé de cada cama havia um autêntico baú militar.

Teve o impulso de levantar-se sobre os cotovelos para olhar pela janela, mas haveria tempo para isso. Ao fim de duas horas de viagem em caminhonete do aeroporto, tinham chegado a esse lugar, onde lhes distribuíram uma cama a cada um. As demais estavam ocupadas por homens dormindo. Todos soldados, sem dúvida:

Notava-se pelo ruído dos roncos. Nesse momento teve uma intuição sobre o que viria. Só o cansaço obrigaria a homens jovens a dormir antes das vinte e duas. Ou seja que não estavam ali de férias. Haverá novidades.

A alvorada, para alívio de Chávez, era sinalizada por uma campainha elétrica, como o de um relógio despertador barato. Detestava acordar com o som de corneta. Como todos os soldados profissionais, Chávez conhecia o valor do descanso e sabia que a alvorada não era motivo de celebração.

A seu redor ouviu-se o habitual coro de resmungos e maldições. levantou-se da cama e sentiu que o chão estava muito frio para seus pés descalços.

– Quem é você? – perguntou o soldado da cama ao lado, que olhava pro chão.

– Sargento Chávez, companhia Bravo, 3º da 17ª.

– Vega, mesmo grau. Companhia comando, 1º da 22ª. Chegou ontem à noite?

– Sim. O que fazemos aqui?

– Na verdade não sei, mas ontem fizeram a gente correr até botar os bofes pra fora. – Estendeu a mão – : Me chamo Júlio.

– E eu Domingo, meus amigos me chamam “Ding”.

– De onde você vem?

– Los Angeles.

– Eu sou de Chicago. Bom, vamos. – Vega se levantou – . Uma das vantagens deste lugar é que há água quente de sobra e não te perturbam muito com a limpeza.

Se ligassem a calefação de noite...

– Onde diabos estamos?

– Sei que é algum lugar do Colorado, e só. – Os dois sargentos se juntaram à fila de homens que se iam para o banheiro.

Chávez olhou ao redor. Ninguém usava óculos. Todos pareciam encontrar-se em excelente forma física, o que se esperava por se tratar de soldados. Alguns eram fisiculturistas, mas na maioria eram como Chávez: magros, enxutos, com aspecto de maratonistas. Havia um detalhe adicional, tão evidente que não demorou muito para descobrir: todos eram de origem latina.

O banho foi agradável. Havia abundância de toalhas limpas e pias suficientes para que todos se barbeassem sem esperar a vez. Os vasos sanitários estavam em compartimentos separados, com porta e tudo. Fora os desconfortos ocasionados pela altitude, era um alojamento de primeira, pensou Chávez.

Deram-lhes vinte e cinco minutos para a rotina matinal. Quase um lugar civilizado.

Ou foi até as 6:30. Vestiram uniformes completos, inclusive coturnos, e saíram. Quatro homens em linha os esperavam. Por suas posturas e expressões, só podiam ser oficiais. atrás deles havia um homem mais alto que os outro instrutores e que também parecia ser um oficial, embora... não totalmente, pensou Chávez.

– O que devo fazer? – perguntou a Vega.

– Me siga. Terceiro pelotão, capitão Ramírez. Duro, embora não seja mau sujeito. Espero que você goste de correr, não.

– Eu não farei feio – respondeu Chávez.

– O mesmo disse eu no primeiro dia – riu Vega.

– Bom dia, cavalheiros! – trovejou o homem alto – . Para os que não me conhecem, sou o coronel Brown. Bem-vindos a nosso refugio. Já estão em seus pelotões e informo a todos que nossa TOD está completa. Todos se encontram aqui.

Não foi uma surpresa para Chávez que Brown fosse o único não latino de todos os pressente. Mas se assombrou por não se surpreender. Os outros quatro se aproximaram do grupo. Eram instrutores de educação física.

– Espero que tenham descansado bem – prosseguiu Brown – . O dia começa com um pouco de exercício...

– Claro, nos matam antes do café da manhã – murmurou Vega.

– Há quanto tempo está aqui? – perguntou Ding.

– Desde ontem. Merda, espero que hoje não seja tão duro. Os oficiais chegaram há uma semana, pelo menos. Não ficam ofegantes depois de correr.

– ... e uma corrida de cinco quilômetros – disse Brown como conclusão.


– Não parece tão duro – observou Chávez.

– O mesmo que eu pensei – respondeu Vega – . Graças a Deus que deixei de fumar.

Ding não soube o que responder. Vega era da infantaria ligeira, como ele. Pertencia a 10ª de montanha, supostamente era capaz de caminhar todo o dia com uma mochila de vinte quilos nas costas.

Mas o ar estava tão rarefeito que Chávez se perguntou a que altura eles estavam.

Começaram com as doze flexões habituais seguidas por outras tantas. O esforço não foi excessivo, embora o suficiente para fazê-lo suar. Mas logo que começaram a correr, soube que o esforço seria muito grande. Quando o sol saiu sobre as montanhas, teve sua primeira visão do terreno. O acampamento estava instalado no fundo de um vale, ocupava uns cinquenta hectares de terreno quase plano. As ladeiras que o rodeavam pareciam verticais, mas os paredões, vistos de perto, eram de menos de quarenta e cinco graus e estavam semeadas de uns pinheiros baixos e retorcidos que jamais superariam a altura de uma árvore de Natal. Os quatro pelotões, conduzidos cada um por um capitão e um instrutor, partiram em direções distintas, por atalhos abertos nas ladeiras. depois de um par de quilômetros, Chávez calculou que tinham subido mais de cento e cinquenta metros, seguindo as curvas do atalho para um outeiro rochoso. O

instrutor não fez que cantassem, como se estava acostumado a fazer ao correr em formação. Tampouco estavam em forma, eram apenas uma fila a indiana de homens que se esforçavam por seguir o trote de um robô sem rosto cuja camiseta branca os conduzia à destruição. Chávez, que durante os dois anos anteriores não tinha deixado de correr um dia sequer seus cinco quilômetros de trote, achou, ao fim do primeiro, que quase não poderia respirar.

Queria perguntar a todo pulmão aonde diabos foi o ar, mas sabia que não devia desperdiçar o oxigênio, que precisava reservar até a última molécula. Ao chegar ao outeiro, o instrutor se deteve para contar aos homens, e Chávez, que trotava obstinadamente em seu posto, teve a oportunidade de ver um panorama digno de uma fotografia do Ansel Adams, realçado pela luz de um esplêndido sol matinal. Mas ao contemplar essa vista de mais de sessenta quilômetros se sentiu apavorado: o obrigariam a correr todo isso?

“Droga, acreditei que estava em boa forma! Uma merda que estou!”

Nos dois quilômetros seguintes percorreram a crista para o oeste, com a vista muito atenta apesar de ter o sol de frente. O caminho era estreito; qualquer passo em falso podia provocar uma queda perigosa. O

instrutor acelerou o trote – ao menos, isso parecia – até chegar a outro outeiro.

– Sigam movendo essas pernas! – grunhiu aos que tinham conservado o passo. Havia dois atrasados, um par de envergonhados, pensou Chávez. Estavam a vinte metros apenas de seus camaradas e seus rostos refletiam a vergonha, assim como a resolução de se juntar aos outros – . Bem, cavalheiros, o resto do caminho é morro abaixo.

E foi, e era muito mais perigoso. As pernas, debilitadas pelo cansaço e a falta de oxigênio, deviam percorrer uma ladeira, que a princípio era suave mas logo ficava perigosamente inclinada, com as bordas arredondadas fazendo que os distraídos caíssem. Para maior segurança, o instrutor diminuiu o ritmo da corrida. O capitão deixou passar a fila e fechou a marcha e vigiou para que tudo corresse bem. O

acampamento estava à vista. Eram cinco edifícios. A fumaça que saía de uma chaminé fazia pensar no café da manhã. Havia um heliporto, meia dúzia de veículos, todos de tração 4x4, e um estande de tiro.

Não havia outro sinal de presença humana à vista. O sargento lembrou que no topo do morro não tinha visto edifícios a menos de oito a dez quilômetros do lugar. Era fácil compreender por que a região estava escassamente povoada. Mas nesse momento lhe faltavam tempo e energia para pensar. Ding Chávez mantinha os olhos no caminho e a mente no passo. Ficou perto de um dos retardatários para vigiá-lo. Esse era seu pelotão, e se espera que cada soldado cuide de seus camaradas. Mas o homem se recuperou.

Tinha a cabeça erguida, os punhos fechados e respirava profunda e regularmente. Por fim chegaram ao terreno plano do acampamento. Outro pelotão entrava pelo extremo oposto.

– Em forma! – exclamou o capitão Ramírez. Era a primeira vez que escutavam sua voz. Passou à frente, no lugar que ocupava o instrutor, o qual se afastou para se fazer a formação. Chávez observou que o filho da puta nem sequer transpirava. O pelotão formou em fila dupla atrás do oficial.

– Pelotão, marche!

Passaram ao passo regular de marcha. Isso aliviou a dor dos pulmões e pernas, indicou-lhes que estavam sob o comando de seu capitão e que seguiam sendo soldados. Ramírez os conduziu até a quadra.

Não puxou canção, que era muito inteligente de sua parte, pensou Chávez. Percebeu que ninguém tinha fôlego para isso. Julio tinha razão: Ramírez parecia um bom chefe.

– Pelotão, alto! Descansar. Bom, não é tão duro como parece, verdade?

– Madre de Dios!!!! [7] – murmurou uma voz. Um homem da última fileira dobrou-se para vomitar, mas não tinha nada no estômago.

– Sim, já sei – riu Ramírez – . A altura fode, mas eu estou treinando há duas semanas. Logo se acostumarão, dentro de quinze dias correrão sete quilômetros com mochilas sem sentir o esforço.

Sim, acredito, pensaram Chávez e Julho Vega, ao mesmo tempo, embora soubessem que o capitão tinha razão. O primeiro dia no centro de recrutamento tinha sido muito mais difícil... ou não?

– Nos primeiros dias não faremos muito esforço. Dispõem de uma hora para recuperar o fôlego e tomar o café da manhã. Não comam muito. Esta tarde teremos outra sessão de corrida. Todo mundo entrará em forma aqui às oito para começar a instrução. Fora de forma!

– E bem? – perguntou Ritter.

Conversavam sentados à sombra, numa antiga fazenda [8], na ilha de St. Kitts. Clark perguntou-se o que plantariam. Talvez cana de açúcar, mas fazia muito tempo que não se usava para isso. A casa senhorial se transformou no refúgio de um grande empresário, para passar uns dias com sua amante. Na realidade, era propriedade da CIA, que a usava como centro informal de reuniões, esconderijo para informantes importantes e também para fins mundanos, como as férias de seus líderes.

– A informação é bem precisa, mas subestima as dificuldades do terreno. Não falo criticando aos que prepararam o relatório, porque é preciso ver o local para saber. É terreno difícil. – Clark se acomodou na poltrona de vime e tomou sua taça. Sua cargo na CIA era muito inferior ao de Ritter, mas ele ocupava uma posição muito especial, o qual, junto ao fato que trabalhava com frequência sob as ordens diretas do subdiretor a cargo das Operações, lhe permitiam ficar a vontade na sua presença. Ritter não demonstrava deferência para seu subordinado, mas sim bastante respeito.

– Como está o almirante Greer? – perguntou Clark. James Greer o tinha recrutado muitos anos antes.

– O prognóstico é ruim. Dois meses de vida, no máximo – respondeu Ritter.

– Como! – Clark elevou a vista– . Devo tanto a esse homem. Toda minha vida, no caso. Não há esperanças?

– Não, a doença estendeu-se muito. No máximo podem lhe aliviar a dor. Sinto muito. Também é meu amigo.

– Sim, sei, senhor. – Esvaziou sua taça e voltou para assunto da conversação – . Não sei o que tem em mente, mas a partir de agora lhe digo que é inútil tentar apanhá-los em suas casas.

– É tão difícil?

– É – assentiu Clark– . Seria preciso uma companhia de Infantaria com apoio de artilharia, e mesmo assim, haveriam muitas baixas. Larson diz que as forças de segurança destes sujeitos são muito boas.

Poderíamos tentar subornar a alguém, mas acredito que seria perigoso porque eles pagam bem. – O

agente não perguntou qual era a verdadeira missão. Julgava que tratava-se de caçar a uns tipos e levá-los com vida aos Estados Unidos para entregá-los ao FBI ou a um tribunal. Enganava-se, como todos – . O

mesmo ocorreria se tentássemos pegá-los em movimento. Tomam muitas precauções: seguem horários irregulares, itinerários diversos, levam guarda-costas armados a todos os lugares. Para pegá-los faltam informações que só um infiltrado poderia conseguir. Larson está muito perto, embora não o suficiente. Se tentar de penetrar demais, o matarão. conseguiu boa informação, é um rapaz hábil, mas os riscos são excessivos.

– Suponho que locais terão tentado...

– É! Seis deles morreram ou desapareceram. Igual aos informantes. Em geral, desaparecem. Na Polícia local há algum infiltrado, cada vez que tentam uma operação, perdem gente. Por isso o número de voluntários diminui.

Clark se encolheu de ombros e olhou para o mar. Um navio de casco branco se dirigia ao porto.

– Não é surpresa que sejam um alvo tão difícil. Larson tem razão, a inteligência que eles não tem, eles compram. Onde conseguem assessores?

– No mercado livre, na Europa sobre tudo ...

– Quero dizer, os profissionais de Inteligência. Devem ter alguns caras de primeira.

– Parece que têm Félix Cortez, ainda é um rumor, mas seu nome aparece em meia dúzia de informe nos últimos meses.

– O desaparecido coronel do DGI – disse Clark.

O Diretório Nacional de Inteligência cubano seguia o modelo da KGB soviética. dizia-se que Cortez trabalhava com os Cortadores, um grupo terrorista porto-riquenho que o FBI tinha conseguido desarticular. Nessa operação tinham detido outro coronel do DGI chamado Filiberto Ojeda, e Cortez tinha desaparecido. Mas, não tinha retornado a seu país. Ficava a interrogação: teria optado por dedicar-se a esse florescente ramo do sistema da livre empresa ou seguia trabalhando para os cubanos? Em qualquer caso, os altos oficiais do DGI recebiam instrução na Rússia, na academia da KGB. Eram adversários dignos de respeito. Cortez era bom sem dúvida. Segundo o dossiê, tinha uma grande habilidade para conseguir informantes.

– Larson está sabendo?

– Sim. Escutou seu nome em uma festa. Seria extraordinário se pudéssemos conseguir uma foto de Cortez, mas o único dado que temos é uma descrição que poderia ser de qualquer ibero-americano. Não se preocupe. Larson sabe tomar suas precauções, e, no pior dos casos, pode escapar em seu próprio avião.

Tem ordens muito precisas. Não quero perder um bom agente em uma operação policial –

prosseguiu Ritter – . O enviei a você porque queria ter um ponto de vista distinto. Já que conhece o objetivo em termos globais, me diga o que se pode fazer.

– De acordo. Têm razão em atacar as pistas aéreas e em montar uma operação de Inteligência. Se contássemos com as forças necessárias, poderíamos descobrir os centros de processamento; mas são muitos, e sua mobilidade nos exigiria atuar com muita rapidez. Acredito que funcionaria uma meia dúzia de vezes, no máximo, até que o inimigo desse conta. Então sofreríamos baixas, inclusive poderíamos perder toda uma força de assalto, se é que estão pensando nisso. O rastreamento da mercadoria elaborada nos centros de processamento é quase impossível, sem contar com os efetivos em terra, mas isso vai contra a segurança da operação, e, além disso, daria poucos resultados. Há muitas pistas aéreas no norte do país, mas Larson acredita que têm relaxado, vítimas de seus êxitos: compraram a tantos militares e policiais locais, que começam a descuidar-se e sempre usam as mesmas pistas. Se as forças de terra se mantiverem bem ocultas, poderão operar, digamos, durante dois meses, ou um pouco menos, antes que as retiremos. Quero ver os homens em ação para melhor os avaliar.

– Isso pode-se arrumar – disse Ritter. Já tinha tomado a decisão de enviar Clark a base. Ninguém melhor que ele para fazer essa avaliação– . Prossiga.

– Isto que estamos montando funcionará bem um mês ou dois. Podemos vigiar a saída de seus aviões e avisar a quem é. – Era a única parte da operação que conhecia – . Causaríamos inconvenientes durante esse tempo, mas não mais.

– É um quadro bem pessimista, Clark.

Clark se inclinou para ele.

– Senhor, trata-se de montar uma operação clandestina para reunir informação contra um adversário extremamente descentralizado. Eu digo que sim, é possível, mas durante um breve período de tempo e com objetivos limitados. Se tentar usar mais gente para obter melhores resultados, o sigilo acaba. O

mesmo acontece se se exceder o tempo. Não sei por que tomamos a iniciativa.

Esse último item não era totalmente correto. Clark supunha, com razão, que o motivo eram as eleições presidenciais, mas um agente não podia fazer esse tipo de comentário enfrente a seu superior, ainda mais se fosse certo.

– Por que tomamos a iniciativa não é problema seu – disse Ritter. Não elevou a voz. Isso não era necessário, e, além disso, não teria intimidado a Clark.

– De acordo, mas me parece pouco sério. Sempre voltamos para o mesmo, senhor. Queremos uma missão possível, não impossível. Sempre e quando se trata de fazer as coisas bem.

– Me diga no que pensa – disse Ritter.

Clark disse. Ritter não deixou que seu rosto refletisse emoção alguma ao escutar a resposta a sua pergunta. Uma das virtudes de Clark, pensou, era que ninguém mais na Agência podia discutir esses temas serena e objetivamente. Para muitos, era um exercício intelectual interessante, matéria de especulação tomada consciente ou subconscientemente das histórias de espionagem. Era uma ideia muito difundida na opinião pública americana que a CIA empregava a muitos assassinos, mas se enganavam.

Mesmo a KGB tinha deixado de fazê-lo e preferia encarregava esse tipo de tarefa para os búlgaros – que seus próprios camaradas consideravam gente Bárbara e grosseira – ou a terceiros, como os grupos terroristas da Europa e o Oriente Médio. O custo político dessas operações era muito elevado e apesar da obsessão com a clandestinidade cultivada por todos os serviços de Inteligência do Mundo, o segredo, cedo ou tarde, era revelado. O mundo era mais civilizado agora que quando Ritter tinha terminado seus estudos na Granja do rio York, e embora isso lhe parecesse bom, às vezes os velhos tempos ofereciam soluções atrativas a problemas que não desapareciam.

– Seria difícil? – perguntou Ritter com verdadeiro interesse.

– Se contarmos com o apoio adequado e alguns efetivos mais, é facilíssimo – disse Clark, e explicou a que tipo de efetivo se referia. – Tudo o que têm sido feito ultimamente nos favorece. É seu único ponto fraco. Sua concepção defensiva é convencional. Trata-se de saber quem impõe as regras do jogo.

Nesta altura, os dois bandos jogam de acordo com as mesmas regras, que por hora favorece ao inimigo. Isso é algo que nunca aprendemos.

Deixemos que o oponente fixe as regras. O atacamos, o incomodamos, tiramos dele uma pequena porção de lucros, que em comparação com o total é desprezível.

Há uma só maneira de fazer.

– Qual?

– Gostaria de viver em uma casa como esta? – perguntou Clark, e lhe estendeu uma fotografia.

– Uma mistura de Frank Lloyd Wright com Ludovico da Baviera – riu Ritter.

– O homem que se encarregou dessa casa tem delírios de grandeza, senhor. Manipulam Governos, inclusive se comenta que, na prática, eles são o Governo. Lembra o que dizem de Capone, que era o dono de Chicago durante a Lei Seca? Bom, eles querem ser os donos de seu país, não só de uma cidade.

Digamos que já têm poder de fato. Adicione delírio de grandeza a isso, cedo ou tarde vão querer atuar como um Estado. Nós não violamos as regras, mas não me surpreenderia que eles o fizessem, só para ver até onde podem chegar impunemente. Entende? Estendem seus próprios limites e ainda não bateram contra a parede de concreto, que lhes diz: daqui não passa.

– John, virou um psicólogo – sorriu Ritter.

– Pode ser. As drogas que eles vendem causam dependência, verdade? Eles não as consomem, mas me parece que se tornaram viciados em uma droga mais pesada.

– O poder!

– Exatamente! E cedo ou tarde vão tomar uma overdose. Então, alguém terá a ideia que acabo de expor. Quando se joga nas divisões profissionais, as regras mudam. Claro que isso requer uma decisão política.

Ele era o dono de tudo que o rodeava. Essa ideia passava por sua mente, e como acontece com todas as frases feitas, era verdade e mentira, ambas ao mesmo tempo. O vale que se vislumbrava não lhe pertencia; sua propriedade tinha menos de mil hectares em meio a milhões. Mas nenhum morador dessa zona podia continuar com vida se ele decidisse o contrário. Esse era o verdadeiro poder, e ele o tinha exercido em inumeráveis vezes.

Bastava um gesto imperceptível de mão, ou uma palavra dita ao passar por um de seus capangas, para consumar o fato. Não fazia futilmente – a morte era coisa séria – , mas sabia que podia fazê-lo. Tanto poder enlouquecia os homens. Ele sabia: tinha comprovado com seus sócios. Mas ele era um estudioso do mundo e da História. Diferente da maioria de seus colegas, se beneficiou com a educação superior, obrigado por seu pai, um dos seus antecessores. Seu maior pesar na vida era que jamais tinha lhe agradecido. Sabia de economia como qualquer professor universitário.

Era capaz de interpretar as forças e tendências do mercado, e conhecia os fatores históricos que os causavam. Tinha estudado o marxismo; rechaçava a visão do mundo marxista por muitas razões, mas sabia que continha mais de uma partícula de verdade em meio do falatório político. O resto de sua educação o tinha adquirido “in loco”. Enquanto seu pai elaborava uma nova forma de levar adiante o negócio, ele observava, aconselhava, atuava. Tinha explorado novos mercados, e, sob a direção de seu pai, converteu-se num planejador prudente e minucioso, procurado mas nunca preso; embora... numa ocasião quase aconteceu; mas duas testemunhas morreram e outros perderam a memória: essa foi sua última experiência direta com a Polícia e os tribunais.

Considerava-se produto de outra épocas, um explorador capitalista clássico, como os do século XIX, cujas ferrovias tinham sulcado os Estados Unidos – ele era um profundo conhecedor desse país – e esmagado tudo o que se opunha a seu passo, tinham exterminado às tribos indígenas, ao mesmo tempo em que os bisões das pradarias. Aos sindicatos tinham neutralizado com de valentões contratados. Tinham corrompido e subvertido os Governos, e permitido à Imprensa fazer denúncias até que o povo começou a tomá-la a sério. Ele seguia esse exemplo. A Imprensa de seu país tinha abandonado as denúncias depois de se dar conta de que seus jornalistas eram mortais. Os barões da ferrovia viviam em verdadeiros palácios: mansões de inverno em Nova Iorque, casas de campo do verão no Newport. Claro que agora existiam problemas desconhecidos para eles, mas nenhum modelo histórico ser eterno.

Além disso não levava em conta o fato de que os Gould e os Harriman tinham legado algo útil, não destrutivo, a suas sociedades. Outra lição da história era que a concorrência encarniçada significava esbanjamento. Por isso, convenceu seu pai para que negociasse com seus rivais. Já em sua juventude sabia ser persuasivo. Tinha adotado essa tática com astúcia, em momentos em que o perigo externo convidava à cooperação. Era melhor cooperar, dizia, que perder tempo, dinheiro, energia e sangue, o que, além disso, os fazia mais vulneráveis. E tinha lhes convencido.

Chamava-se Ernesto Escobedo. Um dos maiorais dentro do Cartel, mas a maioria de seus colegas reconhecia sua influência. Nem sempre concordavam com ele, nem se submetiam a sua vontade, mas sempre prestavam atenção a suas ideias porque elas tinham demonstrado ser efetivas. O Cartel não era uma empresa, e, portanto, não tinha um chefe supremo; era mais uma pequena confederação de líderes; quase um comitê, mas não de todo; quase amigos, também não. Poderia se comparar com a máfia americana, mas o Cartel era muito mais civilizado e mais brutal que a máfia. Escobedo teria dito que o Cartel era mais eficaz e vigoroso, ambos, atributos de uma organização jovem e vital, em comparação com a outra, antiga e feudal.

Sabia que os filhos dos barões da ferrovia tinham usado a riqueza acumulada por seus pais para criar uma elite que governava a nação. Não queria deixar esse legado a seus filhos. Além disso, ele pertencia à segunda geração, e a época era outra. Já não era necessária uma vida inteira para acumular uma grande fortuna e, portanto, não era preciso deixar essa tarefa a seus filhos. Ele mesmo o faria, teria tudo. Fazia muito tempo tinha chegado à conclusão de que o primeiro passo para alcançar qualquer objetivo era considerar a este como possível.

Ele o faria. Aos quarenta anos, Escobedo era um homem de grande vigor e confiança em si mesmo.

Jamais consumia o produto que produzia outros. “Quando queria relaxar – o que acontecia em raras ocasiões– , recorria ao vinho, ultimamente bebia apenas umas duas taças no jantar, e, em ocasiões, algo mais forte nas reuniões com os colegas, mas estava acostumado a preferir Perrier”. Seus colegas o respeitavam por isso. Sabiam que Escobedo era um homem sóbrio e responsável. Fazia exercícios físicos e cuidava da sua saúde. Tinha abandonado o cigarro na juventude, e preocupava-se em não engordar.

Sua mãe era uma mulher sã e forte de setenta e três anos. Seu pai teria completado setenta e cinco anos na semana anterior, se não... mas os culpados tinham pago um alto preço por seu crime. Eles e suas famílias tinham morrido nas mãos do próprio Escobedo. Para ele era motivo de orgulho filial que, antes de matar o último dos assassinos, tinha-o obrigado a presenciar a violação de sua esposa e a morte de seus filhos. Certamente, não desfrutava do assassinato mulheres e crianças, mas tinha que fazê-lo. Precisava demonstrar quem era mais homem, e sabia que, depois dessa demonstração, dificilmente voltariam a incomodar a sua família. Embora não lhe causasse prazer, a história demonstrava que as lições mais duras eram as que mais tempo demoravam para ser esquecidas. Também aprendeu que quem não ensinava essas lições não eram dignos de ser respeitados. Escobedo exigia respeito sobre todas as coisas. O fato de ter saldado a dívida com suas próprias mãos, em lugar de mandar seus capangas, tinha-lhe granjeado muito prestígio na organização. Seus colegas diziam que era um homem de ideias, mas também de ação.

Possuidor de riquezas incontáveis, era como um deus que exercia o poder da vida e a morte. Tinha uma bela esposa e três filhos fortes. Quando se aborrecia no leito matrimonial, dispunha de um estábulo de amantes. Possuía todos os luxos que comprados pelo dinheiro: casa na cidade, a fortaleza na montanha e fazendas perto do mar; melhor dizendo, dos dois mares, porque a Colômbia tem costas nos dois oceanos. Nesses ranchos havia estábulos cheios de cavalos árabes. Alguns de seus sócios tinham praças de touros privadas, mas esse esporte nunca lhe tinha interessado. Era um hábil atirador e tinha caçado tudo que seu país lhe oferecia, inclusive o homem. Pensava consigo mesmo que podia se dar por satisfeito. Mas não estava.

Os capitalistas americanos tinham percorrido o mundo, tinham sido convidado às cortes europeias, tinham casado seus filhos com herdeiras da nobreza; sabia que isto último era apenas ostentação, mas compreendia a necessidade. Ele não possuía essas liberdades, e, embora compreendesse claramente as razões disso, lhe ofendia que um homem tão poderoso e rico como ele se pudesse negar algo. Apesar de tudo o que tinha conseguido, sua vida tinha limitações, e o pior era que os limites eram impostos por outros com menos poder que ele. Vinte anos antes tinha escolhido esse caminho; entretanto, apesar de seus lucros, homens inferiores a ele tinham decidido que não pudesse gozar dos frutos.

Não era sempre assim. “Que me importa a lei”, havia dito um dos grandes barões ferroviários. E

tinha saído com a sua fortuna, viajando por toda parte como um grande senhor.

Por que eu não?, perguntava-se Escobedo. Uma voz interior lhe dava a resposta, mas outra mais potente a rechaçava. Não era um ser estúpido nem imprudente, mas, depois de ter chegado tão longe, não podia permitir que outros lhe impusessem suas normas de vida. Tinha violado todas as regras e, graças a isso, era um homem rico. O empresário tinha fixado suas próprias leis, mas teria que as modificar.

Aprenderiam a tratar com ele segundo seus próprios termos.

Estava cansado de adaptar-se às condições alheias. Uma vez que tomou a decisão, começou a estudar os métodos.

Qual tinha sido o triunfo dos outros?

A resposta era evidente: o êxito. O que não se podia derrotar, era necessário aceitá-lo. A política internacional, como as grandes empresas, tinha poucas regras, e a única importante era o êxito. Nenhum país do mundo se negava a negociar com assassinos, sempre que fossem eficientes. Bastava matar dois milhões de pessoas para converter-se em estadista. O mundo inteiro se inclinava ante os chineses, que tinham matado a milhões de seus conterrâneos.

Estados Unidos faziam acordos com os russos, que também tinham assassinado milhões. Sob o Governo Carter, Os Estados Unidos tinha apoiado o regime do Pol Pot, que não era diferente de chineses e russos nesse sentido. Durante o Governo do Reagan, tinham obtido um modus vivendi com o regime iraniano, assassino de seus próprios conterrâneos, inclusive daqueles que viam o governo americano como um aliado enquanto estes os abandonavam a sua própria sorte. Em nome da realpolitik, Os Estados Unidos ofereciam sua amizade a ditaduras sangrentas – tanto de direita como de esquerda – enquanto negava seu apoio a Governos moderados – de esquerda ou de direita – porque pensavam que lhes faltava moderação. Acaso um país tão carente de princípios não podia reconhecer, a ele e a seus sócios? Esse era o âmago da concepção de Ernesto. Ele tinha certos princípios invioláveis, os Estados Unidos, não.

A corrupção daquele país estava à vista. Ele era um dos que a alimentavam. Fazia a vários anos, importantes lobbies nos Estados Unidos, país que constituía seu mercado mais importante, lutavam pela legalização do negócio. Por sorte tinham fracassado; caso contrário teria sido um golpe devastador para o Cartel. Este era outro exemplo de como um governo carecia da astúcia necessária para proteger seus próprios interesses. O tráfico teria rendido ao governo americano milhares de milhões de dólares – como a Ernesto e seus sócios – , mas não tinham a necessária visão ampla e senso comum. Apesar disso, considerava-se uma grande potencia. Os ianques acreditavam ser fortes, mas lhes faltava a virilidade e a força de vontade. Ele controlava as vidas de todos em seu território; eles, não. Estavam em todos os mares, seus aviões de guerra sulcavam os céus do mundo...; entretanto não protegiam seus próprios interesses. Balançou a cabeça e sorriu.

Não, os americanos não eram dignos de respeito.

VI

DISSUASÃO

Félix Cortez viajava com um passaporte costa-riquenho. Se alguém percebesse seu sotaque cubano, explicava que sua família tinha fugido da ilha quando ele era garoto, mas evitava esse problema escolhendo cuidadosamente seu ponto de entrada. Além disso, restava pouco desse sotaque. Além de espanhol, sua língua materna, falava inglês e russo fluentemente. Homem elegante, embora comum, sua pele acobreada parecia a de um turista bronzeado pelo sol. O bigode e o traje fino eram os de um próspero empresário, e o sorriso simpático o transformava em um homem atraente. Na fila da Imigração do Aeroporto Internacional de Dulles, em Washington, conversava amavelmente com a senhora que o estava atrás dele, resignado com a demora, como se esperava de um viajante experiente.

– Boa tarde, senhor – disse o inspetor quase sem elevar os olhos do passaporte – . Qual é o propósito de sua viagem?

– Negócios – respondeu Cortez.

– Humm – grunhiu o inspetor. Olhou o passaporte, repleto de selos de ingresso. Seu titular era um grande viajante e quase a metade dos vistos dos últimos... quatro anos eram norte-americanos. Seus aeroportos de chegada Miami, Washington e Los Angeles – . Quanto tempo durará sua estadia?

– Cinco dias.

– Tem algo a declarar?

– Só trago minha roupa e meus documentos de negócios – respondeu Cortez, e levantou a pasta.

– Bem-vindo aos Estados Unidos, Sr. Diaz – disse o inspetor ao carimbar o passaporte.

– Obrigado.

Recolheu sua mala, que era grande e revelava um uso frequente. Sempre chegava em horas de pouco movimento, não por conveniência, mas sim porque não eram as escolhidas pelos que tinham algo a esconder. Nessas horas, os inspetores de Alfândegas tinham todo o tempo do mundo para chatear às pessoas, e os cães treinados passavam por entre as malas sem impedimento. Com pouca gente nos corredores e salões, era mais fácil detectar uma vigilância especial; Cortez/Diaz, era especialista em táticas de contra-vigilância.

Da alfândega foi direito a locadora de veículos “Hertz” onde alugou um “Chevy” de grande tamanho. Cortez não sentia afeto pelos americanos, mas sim por seus automóveis enormes. Conhecia bem a rotina. Nessa ocasião utilizou um cartão de crédito “Visa”. O jovem que o atendeu lhe explicou os benefícios promocionais do “Hertz Number One Clube”, e ele aceitou o folheto com falso interesse, só usava a mesma empresa de aluguel de veículos mais de uma vez porque não havia suficientes locadoras para evitar a repetição. Mas jamais usava o mesmo passaporte ou cartão de crédito mais de uma vez. Em um esconderijo perto de sua casa tinha uma ampla provisão de ambos os documentos. O objetivo de sua viagem a Washington era, justamente, uma reunião com seu fornecedor.

A rigidez de suas pernas lhe incomodava, mas decidiu caminhar até o carro no lugar de tomar o ônibus da empresa porque estava cansado de estar sentado.

O calor e a umidade desse dia de primavera lhe recordavam sua pátria. Não sentia grande amor por Cuba; mas, graças a seu Governo, tinha aprendido o ofício.

Horas de aula sobre o marxismo-leninismo para convencer a esse povo faminto que vivia em um paraíso. Pelo menos, Cortez tinha aprendido nelas o que queria obter da vida. Durante o período de instrução no DGI tinha aprendido a apreciar os privilégios, e as intermináveis aulas de política só lhe fez perceber que seu Governo lhe parecia grotesco à luz dos resultados e aspirações que proclamava. Mas tinha respeitado as regras do jogo e aprendido o necessário sobre sociedades capitalistas, seus pontos fortes e fracos, a forma de infiltrar-se nelas e as subverter; também tinha se adestrado nas artes de agente secreto. Ao ex-coronel era divertido comparar as duas sociedades. Porto Rico, apesar de sua relativa pobreza, parecia-lhe um paraíso, em uma das vezes que conspirara com seu camarada, o coronel Ojeda, e os selvagens Cortadores para transformá-la no realismo socialista cubano. Cortez balançou a cabeça e sorriu, enquanto se dirigia ao estacionamento.

Uns metros acima do cubano, Liz Murray deixou a seu marido, que ocupou seu lugar ao final da fila de viajantes. Tinha muito que fazer, e o voo de Dan partiria em poucos minutos.

– Voltarei amanhã a tarde – disse ao descer do carro.

– Bom. Não esqueça que temos mudança.

– Sim. – Dan fechou a porta e se afastou. Voltou – : Não, bom, quero dizer sim, não me vou esquecer, meu amor... – Sua esposa ria; era a brincadeira de sempre – . Não é justo – murmurou – . Me trazem de Londres, me Dan uma promoção e no dia seguinte já tenho que viajar de novo.

Entrou no terminal e procurou seu voo no monitor. Toda sua bagagem era uma mala pequena, que podia levar na cabine. Já tinha lido os relatórios prévios, enviados por fax a Washington do escritório local do Bureau. Tinham provocado uma pequena comoção no edifício Hoover [9].

O próximo passo era o detector de metais. Entrou por um lado do aparelho, e quando o empregado o deteve com o “um momento, senhor” de sempre, ele mostrou a identidade que o identificava como Daniel E. Murray, subdiretor adjunto do Federal Bureau of Investigation (pt:Agência Federal de Investigação), FBI. Não podia passar pelo raio-X com a pistola “Smith & Wesson” sob o cinturão, e os empregados dos aeroportos ficavam nervosos quando a mostrava. Não era um bom atirador, nem sequer tinha tido êxito nas provas, que deveria repetir na semana seguinte. Não se mostravam muito duros com os altos cargos do FBI – o principal acidente potencial de trabalho era cravar um grampo no dedo – , mas embora Murray fosse um homem com pouco vaidoso, saber disparar bem era uma delas. Isso lhe preocupava, embora não tivesse motivo. Tinha passado quatro anos em Londres como agregado legal, e sabia que tinha que praticar muito para alcançar outra vez o grau de “perito” com as duas mãos, mais ainda agora que tinha uma arma nova. Seu querido “Colt Python .357” de aço inoxidável tinha passado a reserva. O FBI tinha resolvido voltar para as armas automáticas, e, ao chegar a sua mesa, encontrou a “S&W” envolta em papel de presente sobre sua mesa. Era uma brincadeira de seu amigo Bill Shaw, o diretor executivo adjunto (Investigações). Gostava desse tipo de piadas. Murray pegou a maleta com a mão esquerda e verificou discretamente se a arma estava em seu lugar, como qualquer cidadão faria com sua carteira.

A única coisa que tinha o aborreceu em Londres era ter sido obrigado a estar desarmado. Como qualquer outro policial americano, sentia-se nu quando estava desarmado, embora jamais a tivesse usado fora de um estande de tiro. Em todo caso, servia-lhe de garantia para que não desviassem seu avião para Cuba. Já não teria chance de reprimir o crime nas ruas. Tinham-no promovido a um posto administrativo; uma forma de lhe dizer que era muito velho para ser útil, pensou Murray enquanto escolhia um assento perto da porta de saída. O problema em questão era bem parecido com um caso policial: só porque o diretor viu o expediente e o passou a Bill Shaw, quem, a sua vez, quis entregá-lo a alguém de sua confiança.

Era um caso muito difícil. Realmente queriam que tivesse uma estreia difícil.

A viagem consistiu em duas horas de autêntico aborrecimento aéreo e uma comida insossa. O

agente especial supervisor Mark Brecht o recebeu, chefe anexo interino do escritório local do Bureau.

– Traz mais bagagem, Sr. Murray?

– Só esta maleta, e me chamo Dão, já falaram com eles?

– Ainda não atracaram a porto. Pelo menos, acredito nisso.

– Bright olhou seu relógio – . Eram esperados por volta das dez, mas ontem à noite tiveram uma missão de resgate. Um pesqueiro sofreu uma explosão e resgataram à tripulação. Foi noticiado nos noticiários da manhã. Parece que fizeram um bom trabalho.

– Que ótimo – comentou Murray– . Nos mandaram interrogar um herói e o cara realizar uma nova façanha.

– Conhece a história? Não tive tempo de...

– Informaram-me. E sim, herói é a palavra exata. Esse Wegener é uma lenda viva. Chamam Rede Wegener de rei do B&R, ou seja, das missões de busca e resgate. A metade dos aficionados por náutica foi salvos por ele em alguma ocasião. Ao menos, é isso que dizem. E, ainda, tem amigos no Congresso.

– Como quem, por exemplo?

– Como o senador Billings, do Oregon – respondeu Murray, e relatou brevemente a história.

– Presidente da Comissão de Justiça do Senado – Bright olhou para cima. A Comissão de Justiça do Senado tinha, entre outros, o dever de fiscalizar o FBI.

– O caso é novo para você?

– Sim, na realidade estou nisto porque meu trabalho é servir de ligação com o DEA. Vi o expediente pouco antes do almoço. Eu estava de licença porque minha esposa teve um bebê.

– Caramba. – Não se podia culpar a um agente por isso – . Parabéns. Tudo bem?

– Levei ao Marianne para casa esta manhã. Sandra é o bebê mais lindo que vi em minha vida. Claro que chora muito.

Murray riu. Seus filhos já eram grandes. No carro de Bright, um “Ford” cujo motor ronronava como um tigre satisfeito, esperavam alguns informes sobre o capitão Wegener. Murray os olhou enquanto Bright manobrava na praça de estacionamento do aeroporto. Complementava o que lhe haviam dito em Washington.

– Que história, não?

– É claro que sim – assentiu Bright– . Diria que é verdadeira?

– Conheci alguns casos estranhos, mas este se leva o prêmio. E o mais estranho é que...

– Sim – o interrompeu o jovem – , o mesmo penso eu. Nossos colegas da Toxicomania acreditam que é verdade, mas o que se extrai disso..., quero dizer, embora as provas estejam embrulhadas, o que descobrimos... é tão...

– Claro. – Tinham-lhe dado o caso por esse motivo, entre outros – . A vítima era um tipo importante?

– Tinha conexões políticas importantes, estava na diretória de vários Bancos, professor na Universidade de Alabama, membro de grupos de ação cívica..., tudo. Esse cara, mais que um pilar da comunidade era uma rocha. Seu pedigree inclui um general na Guerra Civil e um governador.

– Muito dinheiro?

– Mais do que eu poderia ter em toda minha vida. Tem uma plantação ao norte da cidade. Não sei o que cultivam, mas o dinheiro não vem daí. Investiu a fortuna familiar no negócio de ações. Parece que teve muito êxito. Agora, não é uma só empresa é uma floresta de pequenas empresas... o de sempre.

Temos a um grupo de gente trabalhando nisso, mas levará tempo. Possuía algumas conta em Bancos estrangeiros, talvez não possamos investigá-las todas. Sabe como é isso.

– “Vinculam a importante empresário local com chefes do narcotráfico.” E que ocultava muito bem.

Alguma vez suspeitaram dele?

– Absolutamente – disse Bright – . Nem nós, nem a DEA, nem a polícia local; ninguém.

Murray fechou a pasta e olhou o tráfico pela janela. Era a primeiro olhada num caso que talvez requeresse milhares de horas de trabalho de investigação. Caramba, ainda não sabemos sequer o que procuramos, pensou o subdiretor adjunto. Só sabemos que a bordo do navio Empire Builder havia um milhão de dólares em notas de vinte e cinquenta. Tanto dinheiro em espécie significa uma só coisa, pensou Murray, mas se corrigiu: poderia significar muitas coisas.

– Bom, chegamos.

Não foi difícil penetrar na base, e Bright conhecia o caminho até o pier. Visto do carro, o Panache era um navio grande, uma mole branca com uma franja alaranjada e uma mancha escura perto da metade do casco. Murray sabia que era um navio pequeno, mas como se sairia num grande oceano. Enquanto ele e Bright desciam do automóvel, alguém atendeu o telefone no começo da passarela, e, pouco depois, outro homem apareceu. Murray o reconheceu pelas fotografias: era Wegener.

Seu cabelo, que tinha sido vermelho, agora era pardo com mechas grisalhas. “Tem bom aspecto físico”, pensou o agente do FBI ao vê-lo aproximar-se da amurada metálica. Apesar de um pouco de gordura na cintura, aparentava ser um tipo sólido. A tatuagem no antebraço delatava seu ofício de marinheiro e seus impassíveis olhos denotavam a um homem pouco habituado a ser interrogado.

– Bem-vindos a bordo. Sou Rede Wegener – disse com um sorriso, leve mas amável.

– Obrigado, capitão. Sou Dan Murray, ele é Mark Bright.

– Me disseram que ambos são do FBI.

– Sim, eu sou subdiretor adjunto, venho de Washington. Mark é chefe adjunto interino do escritório de Mobile. – Murray não deixou de ver a leve mudança na expressão do Wegener.

– Bem, sei por que estão aqui. vamos conversar no meu camarote.

– Por que o navio está chamuscado? Algum incêndio? – perguntou Dan. O tom do capitão ao recebê-los pareceu-lhe ver algo... estranho.

– Não, um barco de pesca teve o motor incendiado. Aconteceu ontem à noite, a uns sete quilômetros de nós, quando nos dirigíamos ao porto. Os tanques de combustível explodiram na hora em que nos aproximávamos, mas tivemos sorte. Não houve mortos, só um homem com algumas queimaduras.

– E o barco de pesca? – perguntou Bright.

– Não pudemos salvá-lo. Graças a Deus resgatamos os tripulantes, às vezes não se pode esperar mais. – Abriu a porta e os fez entrar – . Posso lhes oferecer uma xícara de café, senhores?

Murray declinou. Enquanto olhava com atenção para o capitão, que parecia envergonhado por algo.

Não deveria se sentir assim, pensou Dan. Wegener lhes ofereceu assentos e ele se acomodou atrás da mesa.

– Sei por que vieram – repetiu – . A culpa é minha.

– Capitão, antes que diga alguma coisa... – quis lhe interromper Bright.

– Cometi alguns erros em minha vida, mas esta vez estraguei tudo. – Wegener acendeu o cigarro – .

Se incomodam que eu fume?

– Absolutamente – mentiu Murray. Não sabia o que dizer ao capitão, mas não era o que Bright esperava. Havia vários fatos que Bright desconhecia.

– Bom, por que não nos conta o que aconteceu?

Wegener abriu uma gaveta e tirou um objeto que entregou o Murray. Um pacote de cigarros.

– Um de nossos hóspedes deixou cair isto em convés, e eu mandei que lhe devolvessem. Pensei...

bom, olhem bem para eles, me digam se não parecerem cigarros. É esperado que trate bem os prisioneiros, não? Assim que lhes devolvi os cigarros, mas acontece que eram entorpecentes. Por isso, quando os interrogamos, o tipo que falou estava bem drogado. Ou seja arruinamos o caso. Esse é o problema, não?

– Mas aconteceu mais alguma coisa, capitão?

– O contramestre Riley golpeou a um deles. A responsabilidade é minha. O cara..., não me lembro como se chama, o mais insolente dos dois, cuspiu-me. Riley estava presente e não gostou nada. Errou, mas somos militares, quando tratam assim o chefe, à tropa não gosta. Por isso Riley perdeu o controle e lhe acertou... Aconteceu a bordo de meu navio, e é minha responsabilidade.

Murray e Bright se olharam. Os suspeitos não tinham mencionado nada disso.

– Capitão, não viemos por nada disso – disse Murray, depois de uma breve pausa.

– Ah, não? E então, por que?

– Dizem que você executou um deles – respondeu Bright. fez-se silêncio no camarote. De algum lugar chegava um som de marteladas, mas o som do ar condicionado era mais forte.

– Estão vivos, não? Eram dois, e estão vivos. Filmei a abordagem do iate e mandei a fita com eles no helicóptero. Se os dois estão vivos, quem supõe que fuzilamos?

– Enforcaram – corrigiu Murray – . Dizem que enforcaram um deles.

– Um momento, por favor. – Agarrou o telefone e apertou um botão– . Atenção na ponte, fala o capitão. Que venha o imediato ao meu camarote. Obrigado. – Wegener pendurou o telefone e os olhou– .

Se não os incomoda, quero que meu imediato também ouça isto.

Murray conservou o olhar impassível. Devem ter combinado,– Danny pensou – . tiveram tempo de sobra para combinar os detalhes, e o Sr. Wegener não é nada bobo. Além disso, um senador o protege e acaba de nos entregar dois assassinos. Até sem a confissão, há provas suficientes para condená-los a morte por homicídio, e se eu atacar o Wegener, corro o risco de perder o caso. E quanto à importância da vítima... o promotor não aceitará. Nem sonhando... Não havia um só promotor em todo os Estados Unidos que não tivesse aspirações políticas. Mandar a dois sujeitos de semelhante índole à cadeira elétrica equivalia a ganhar meio milhão de votos. Não se podia correr o risco de perder o caso. Jacobs, o diretor do FBI, tinha sido promotor e compreenderia. Murray pensou que inclusive facilitaria as coisas.

Então chegou o imediato de bordo e, feitas as apresentações, Bright relatou o que os suspeitos haviam dito ao FBI local. Durante uns minutos, Wegener fumou seu cachimbo e deixou que seus olhos expressassem assombro.

– Senhor – disse o oficial o Bright– , no mar se escutam muitos contos chineses, mas até agora não tinha ouvido nada parecido.

– É minha culpa por lhes devolver os entorpecentes – grunhiu Wegener.

– Como é que ninguém se deu conta do que estavam fumando? – perguntou Murray. Interessava-lhe menos a resposta em si que a habilidade do Wegener para responder. Para sua surpresa, foi o imediato que respondeu.

– O calabouço tem um exaustor. Não vigiamos constantemente os prisioneiros... já que foram os primeiros que tivemos... Bom, no Manual de Procedimentos diz que não devemos vigiá-los porque é uma forma de intimidação. Além disso, não temos pessoal suficiente para isso. E com o exaustor e tudo, quando sentimos o cheiro, mas, já era tarde. Essa noite os levamos a salão de oficiais para interrogá-los, em separado, como o manual prescreve, e os dois tinham os olhos um pouco vermelhos. O primeiro não falou, o segundo, sim. Viram o filme de vídeo?

– Sim, eu vi – disse Bright.

– Nela pode se observar que lemos seus direitos diretamente da cartilha, exatamente. O que não entendo é o que significa isso de que os enforcamos. Parece-me uma loucura. Uma loucura total. Nós..., quer dizer, não podemos. Nem sequer sei quando foi legal fazê-lo.

– O caso mais antigo que conheço data de 1843 – disse o capitão– . Sabem por que fundaram a Academia Naval do Annapolis? Porque houve uma execução no navio Somers. Um dos enforcados era filho do secretário da Marinha. comentou-se que tinham tentado se amotinar, mas houve um escândalo, como pode se imaginar. Faz muito tempo que não enforcamos a ninguém – disse Wegener com um sorriso irônico – . Eu sou veterano do serviço, mas nem tanto.

– Nem sequer podemos formar um tribunal de guerra – acrescentou o imediato – . Quero dizer, para fazê-lo faz falta um juiz, advogados de verdade, o que sei eu. O Manual de Procedimentos pesa dez quilos. Faz nove anos que estou no serviço e jamais assisti a um Conselho de Guerra, fora dos trabalhos práticos na Academia. No máximo interrogamos a alguém por uma contravenção, mas não por muito tempo.

– Pensando-o bem, não era má ideia enforcar a esse par de filhos da puta. Eu o teria feito com muito gosto – disse Wegener.

A Murray pareceu uma observação estranha e muito ardilosa. Sentia pena por Bright, a quem provavelmente nunca tinha acontecido nada parecido num caso.

Nesse sentido, seus anos de agregado legal em Londres lhe davam uma visão política da que a maioria de agentes não tinha.

– O que quer dizer?

– Bom, quando eu era menino, aos assassinos os enforcavam. Eu me criei no Kansas. Nessa época, o assassinato não era frequente. Claro que agora somos civilizados, não enforcamos às pessoas, e por isso há assassinatos todos os dias. Civilizados, sim – grunhiu Wegener– . Também enforcavam piratas como esses? – perguntou a seu imediato.

– Parece-me que não. Os tripulantes de Barba Negra os julgaram em Williamsburg, esteve ali alguma vez? Ainda se vê o tribunal na parte colonial da cidade. Dizem que o patíbulo onde os enforcaram estava em uma praça onde agora há um hotel para turistas. E o capitão Kidd, se me recordo bem, enforcaram-no na Inglaterra. O patíbulo estava em um lugar chamado Praça das Execuções. Assim..., me parece que não enforcavam ninguém a bordo. Nós sim é que não o fizemos. Mais que história!

– Portanto, não aconteceu – disse Murray. Não era uma pergunta e sim uma afirmação.

– Não, senhor, não aconteceu – replicou Wegener, e o imediato assentiu com energia.

– E afirmará o mesmo sob juramento.

– Claro, por que não?

– Se não for inconveniente, queria falar com um de seus oficiais. que “atacou”, digamos, ao...

–Riley está a bordo? – perguntou Wegener ao segundo.

– Sim, com o Português em seu camarote. Fazendo não sei que trabalho.

– Bem, vamos lá. – Wegener ficou em pé e indicou a seus hóspedes que o seguissem.

– Precisa de mim, senhor? Tenho algo que fazer.

– Pode ir, oficial. E obrigado.

– Entendido, senhor. Até mais tarde, cavalheiros – disse o alferes de navio, e se retirou.

O passeio foi mais comprido que Murray tinha previsto. Tiveram que dar volta porque estavam pintando as anteparas. O salão dos suboficiais estava perto da popa. Riley e Oreza, os dois suboficiais mais antigos da embarcação, compartilhavam o camarote perto do salão onde eles e seus pares podiam comer com relativa tranquilidade. Wegener abriu a porta e se chocou com uma nuvem de fumaça. O

contramestre fumava um charuto enquanto suas enormes mãos tratavam de dirigir um chave de fenda diminuta. Os dois se quadraram ao ver o capitão.

– Descansar. Que é isso aí?

– Algo que o Português encontrou. – Riley lhe entregou – . Uma verdadeira antiguidade.

– 1778, senhor. O que lhe parece? – disse Oreza– . Um sextante feito por Henry Edgworth.

Comprei-o em um brechó. Vai me dar uns bons dólares se estiver em bom estado.

Wegener o estudou.

– Aqui diz que é de 1778?

– Sim, senhor. É um dos modelos mais antigos de sextante. O vidro está quebrado, mas isso não é problema. Conheço um museu que paga muito bem por estas coisas..., se não o guardo para mim

– Temos visita – disse Wegener, voltando para o que tinha lhe levado ali – . Querem falar com vocês sobre esses dois caras que recolhemos.

Murray e Bright mostraram suas credenciais. Dan viu que tinha um telefone na sala. Era possível que o imediato tivesse tido tempo de sobra para chamá-los. O charuto de Riley começava a consumir-se.

– Certo – disse Oreza– . O que vão fazer com esse par de filhos da puta?

– Isso quem vai decidir é o juiz – respondeu Bright– . Nossa missão é lhe ajudar a reunir toda a informação. Por isso, temos que saber com exatidão o que aconteceu quando vocês os apreenderam.

– Então têm que falar com o Sr. Wilcox, senhor. Ele estava no comando da turma de abordagem –

disse Riley– . Nós não fizemos mais que cumprir suas ordens.

– O alferes Wilcox está de licença – informou o capitão.

– O que aconteceu quando os trouxeram a bordo? – perguntou Bright.

– Ah, isso – assentiu Riley– . Está bem, enganei-me, mas esse filho da puta..., quero dizer cidadão, cuspiu no capitão, senhor. Isso não pode se permitir, entende? Por isso o golpeei. Talvez fiz errado, mas esse bandido não merecia outra coisa.

– Isso não é problema – falou Murray ao fim de um momento – . Ele afirma que vocês o enforcaram.

– Enforcamos ele? Onde? – perguntou Oreza.

– Acredito que vocês o chamam a verga do mastro maior.

– Diz que o enforcamos? Como..., é que o enforcamos? Que o penduramos pelo gogo? – perguntou Riley.

– Certo.

O contramestre soltou uma gargalhada que estremeceu o navio.

– Senhor, no dia em que eu enforcar alguém, esse não viverá para contar.

Murray repetiu a história tal como a tinha escutado, quase palavra por palavra. Riley balançou a cabeça.

– Não é assim que se faz, senhor.

– O que quer dizer?

– Você diz que um dos dois afirma que viu seu amigo pendurado e balançando de um lado para o outro por cima da convés, certo? Não se faz assim.

– Não compreendo.

– Quando se enforca a alguém a bordo, atam os pés juntos e lhe prendem por uma corda a um corrimão ou algo parecido, para evitar o balanço do corpo. Tem que fazê-lo, senhor. Um objeto que pesa... digamos, de mais de sessenta quilos, pode quebrar algo. Por isso prende-se em duas pontas. eleva-se à cabeça ao mastro por meio das roldanas e lhe prende bem com a corda. É assim que se deve fazer.

Isso todo mundo sabe.

– Como é que você estava informado? – perguntou Bright, dissimulando sua exasperação.

– Neste navio sempre andamos baixando ou subindo botes e prendendo todo tipo de coisas. Essa é minha responsabilidade. É uma ciência. Quero dizer, suponha que tem uma peça que pesa tanto quanto um homem, entende? Não se pode permitir que esteja solta como uma aranha no teto na ponta de uma teia, certo? Poderia arrancar o radar do mastro. E essa noite havia tempestade, além disso. Nos velhos tempos, quando enforcavam a alguém, era igual a içar uma bandeira de sinais: uma corda por acima e outra por abaixo, bem atadas para que fique firme. Se algum marinheiro de convés deixa um pendurado e outro solto, quebro lhe a cara. O equipamento é muito caro. Não deixamos que se estrague de propósito.

O que você diz Português?

– Tem razão, senhor. Essa noite houve uma forte tempestade, não disse o capitão? Esses dois infelizes passaram a noite a bordo porque dissemos ao helicóptero que não viesse recolhê-los por causa do mau tempo. Essa noite não havia ninguém no convés, que eu saiba.

– Claro que não – prosseguiu Riley – . Essa noite nós ficaremos bem quentinhos nos camarotes.

Quero dizer, senhor, que se for preciso, somos capazes de trabalhar no meio de um furacão; mas, caso contrário, a gente não sai para o convés durante uma tempestade. É muito perigoso. Muita gente tem caído ao mar por isso.

– Foi muito forte a tempestade? – perguntou Murray.

– Alguns dos rapazes mais novos vomitaram até o sobrenome. O cozinheiro tinha preparado macarronada – riu Oreza– . Bom, é assim que se aprende, não, Bob?

– É a única maneira – assentiu Riley.

– Ou seja, que não houve Conselho de Guerra essa noite.

– Como? – perguntou Riley com uma genuína expressão de perplexidade em seu rosto; mas, depois sorriu – : Ah, o senhor pergunta fizemos um julgamento justo e depois os enforcamos, como nos velhos filmes de piratas.

– A um deles – falou Murray.

– Por que não aos dois? Os dois são uns fodidos assassinos, não? Eu estive no iate, senhor. Vi o que fizeram. Você viu? Foi um massacre. Talvez você esteja acostumado a ver coisas assim, mas eu, não. E

não vou esconder que me fez mal o que vi. Você diz que nós os enforcamos, mas, se eu tivesse feito, agora não estariam se queixando. Certo, reconheço que joguei um deles contra o corrimão e quase o quebrei em dois. Perdi a cabeça; errei, sinto muito. Mas esses filhos da puta mataram uma família inteira, violaram uma mulher e a um bebe. Sou casado. Tenho filhas. O Português, também. Se quiser que alguém lamente por esses dois fodidos, não encontrará aqui, senhor. Ao contrário, sente-os na cadeira elétrica, e eu irei apertar o botão por você.

– Então, não o enforcaram? – perguntou Murray.

– Não, mas quem dera tivesse-me ocorrido – disse Riley. Pois a ideia tinha sido de Oreza.

Murray olhou Bright. Tinha sido mais fácil do que esperava. Já tinham lhe advertido que o capitão era um tipo inteligente. O Serviço não dava o comando de um de seus navios a um idiota..., ao menos, supunha-se isso.

– Bem, cavalheiros, no momento não temos mais perguntas. Agradecemos sua colaboração. –

Saíram precedidos por Wegener.

Ao chegar à passarela, Murray indicou a Bright que o esperasse no carro e se voltou para o capitão.

– É possível manobrar um helicóptero sobre essa convés?

– Claro que sim. Quem me dera tivéssemos um aparelho permanentemente.

– Me permite dar uma olhada? Nunca estive em um navio destes.

– Siga-me.

Wegener o conduziu ao centro da convés, a grande cruz amarela grafite sobre a plataforma negra de material antiderrapante. Wegener lhe explicava o funcionamento das luzes na torre de controle, mas Murray observava o mastro e riscava uma linha imaginária da verga à convés. Sim, não é nada difícil, pensou.

– Capitão, para seu próprio bem, espero que jamais volte a cometer semelhante loucura.

Wegener o olhou, surpreso.

– Não compreendo...

– Sim que compreende.

– Você acredita que esses dois...

– Sim. Um jurado não acreditaria..., quer dizer, acho que não, mas a gente nunca sabe de antemão como reagirá um jurado. Mas vocês o fizeram. E sei que não pode reconhecê-lo...

– O que lhe faz pensar...?

– Capitão, faz vinte e seis anos que estou no FBI. ouvi muitos contos estranhos, alguns eram reais; outros, não. A gente aprende a distinguir a verdade da mentira. Por isso vejo, seria bastante fácil baixar uma corda desde desse mastro, e se o navio está ao pairo, um homem pendurado ali não balançaria muito.

Em todo caso, não danificaria o radar, que tanto preocupa o Riley. Insisto, não o volte a fazer. Desta vez não tem problema porque vamos condená-los sem apresentar as provas reunidas por vocês. Mas não insista. Bem, estou certo de que não voltará a fazê-lo. Ao final, não foi tão singelo como vocês pensavam, não é?

– Surpreendeu-me saber que a vítima era...

– Sim. Desentupiram uma grande fossa sem sujar muito as mãos. Tiveram sorte, abusem não dela–

disse Murray.

– Obrigado, senhor.

Minutos mais tarde, Murray sentou-se no carro junto ao agente Bright, que não parecia muito feliz.

– Faz anos, quando era um calouro recém saído da Academia, enviaram ao Mississippi – disse Murray– . Tinham desaparecido três militares do movimento pró direitos dos negros. Eu era o membro mais novo da equipe que esclareceu o caso. Minha tarefa..., foi pouco mais do que correr junto do inspetor Fitzgerald. ouviu falar do Big Joe?

– Meu pai trabalhou com ele.

– Então sabe que Joe era uma figura, um verdadeiro policial da antiga. Bem, ouvimos que os caras do Ku Klux Klan local andavam dizendo por aí que mataram um par de agentes. Sabe como são essas coisas: chamadas anônimas às famílias, ameaças, enfim. Joe estava furioso.

Fui com ele a visitar grande chefe local do Klan, que também era o maior fanfarrão. Encontramos ele sentado à sombra de uma árvore no seu jardim, a escopeta ao alcance da mão e meio bêbado. Joe se aproxima, o tipo começa a levantar a escopeta, mas Joe o olha fixamente e prossegue. Tinha um verdadeiro olhar assassino; e no seu tempo tinha matado mais de três, e isso se via na sua expressão. Eu estava assustado, estava a ponto de tirar a pistola, mas Joe não fez mais que olhá-lo fixamente. Disse a ele que à próxima ameaça ou a próxima chamada anônima a uma esposa ou aos filhos de um agente, mataria ele ali mesmo, em seu próprio jardim. Não levantou a voz: disse como se pedisse um café. O chefe acreditou nele. Eu também. E acabaram as ameaças.

“O que Joe fez nessa ocasião foi totalmente ilegal – prosseguiu Murray – “. Às vezes você tem que torcer um pouco as regras. Todos fazemos, também você terá que fazer.

– Eu nunca...

– Não se agite, Mark. As regras não preveem todas as situações. Por isso esperamos que os agentes demonstrem iniciativa. Assim funciona a sociedade. Esses guardas-costeira nos deram informações valiosas, mas só poderemos usá-las se esquecermos como a conseguiram. Não há problema, porque julgarão os dois por homicídio: as provas físicas são suficientes. Então vão à cadeira elétrica ou se declaram culpados e aceitam colaborar, e, nesse caso, nos dão outra vez a informação que o bom capitão Wegener lhes extraiu. Isso é o que nossos superiores em Washington decidiram. Se saísse fosse revelado o que aconteceu nesse navio, seria muito incômodo para todos. Além disso, parece-lhe que um jurado daqui...?

– Não, claro – o interrompeu Bright – . Qualquer um não acreditaria neles, e embora não o fizesse...

– Exato. Encontraríamo-nos andando em círculos. Este mundo não é perfeito, mas acredito que Wegener não voltará a cometer esse engano.

– Está bem – disse Bright, sabendo de que não era assim, mas não havia nada que pudesse fazer.

– Assim que o passo seguinte é descobrir o que o infeliz fez para que o matassem junto com toda sua família. Quando eu perseguia os bandidos em Nova Iorque, ninguém se metia com a família. Nunca se matavam a um cara na frente a sua mulher, só se fosse para dar um exemplo.

– Mas os traficantes não respeitam nada – disse Bright.

– Sei; e pensar que para mim não havia nada pior que um terrorista.

Era muito melhor que trabalhar com os Cortadores, pensou Cortez. Principalmente, era grato por estar sentado num restaurante luxuoso, estudando a grande carta de vinhos – se considerava um conhecedor do tema – , em lugar de uma choça infestada de ratos num bairro porto-riquenho, comendo feijões e repetindo ordens revolucionárias com uns tipos que reduziam o marxismo a assalto a Bancos e o envio de alegações por escrito às rádios para que fossem transmitidas entre a música e os anúncios publicitários. Estados Unidos, pensou, era o único país do mundo aonde a gente ia de carro às manifestações, e as filas mais longas eram as dos supermercados.

Escolheu uma marca pouco conhecida para o jantar, e o sommelier assentiu com aprovação ao anotá-lo e retirar a carta.

Cortez tinha se criado num lugar onde os pobres – quer dizer, quase todo mundo – tinha que economizar para comprar sapatos e havia pouco que comer. Nos bairros pobres dos Estados Unidos a gente consumia drogas, um hábito que requeria centenas de dólares por semana. Era um fenômeno que o antigo coronel não conseguia compreender.

O mesmo acontecia no plano internacional. Os ianques [10], sempre tão mesquinhos para dar ajuda oficial a seus vizinhos menos prósperos, agora enviavam verdadeiras correntes de dólares, mas de pessoa a pessoa, como eles diziam. Era um pouco divertido. Não sabia quanto dinheiro enviava o Governo ianque a seus amigos, nem lhe importava sabê-lo, mas estava certo que o cidadão comum – tão aborrecido de sua vida sem sobressaltos que recorria a estimulantes químicos – dava muito mais sem nenhum tipo de reclamação sobre “direitos humanos”. Como oficial de Inteligência, tinha dedicado muitos anos a procurar a maneira de denegrir os Estados Unidos, prejudicar sua posição, diminuir sua influência. Mas compreendia que tinha empregado o método errado ao combater o capitalismo por meio do marxismo, apesar das provas concludentes sobre qual dos dois sistemas era eficiente e qual não o era. Entretanto, não podia combater o capitalismo por meio do próprio sistema e, de uma vez, desfrutar de seus benefícios. E o mais estranho de tudo era que seus antigos patrões o consideravam um traidor porque tinha descoberto um método eficiente...

O homem sentado na frente dele era um americano típico, pensou. Gordo devido ao excesso de comida, a roupa cara mas descuidada. Provavelmente nem se engraxava os sapatos. Cortez lembrava que tinha andado descalço durante a maior parte de sua juventude e se considerava um ser privilegiado por ter três camisas. Esse homem tinha um automóvel caro, um apartamento cômodo, um salário equivalente ao de dez coronéis do DGI... mas todo aquilo não lhe bastava.

Assim era os Estados Unidos: o que alguém tinha, nunca era suficiente.

– O que me trouxe?

– Quatro sujeitos possíveis. A informação está na pasta.

– Todos servem?

– Ao menos reúnem as características que você mencionou. E eu não sei?

– Sim, você sempre é confiável. Por isso pagamos bem.

– Me alegro que confiem em mim, Sam – disse o homem com certo desdém.

Félix – a quem seu companheiro chamava de Sam – tinha sempre gostado das pessoas que trabalhava com ele. Reconhecia o talento e a capacidade para reunir informação.

Mas desprezava a fraqueza. Claro que um oficial de Inteligência – como ele acreditava ser, apesar de tudo – não tinha muita escolha. Os tipos como este abundavam nos Estados Unidos. Cortez não deixava de pensar que ele também se vendeu. considerava-se um profissional capaz, talvez algo mercenário, mas isso era parte de uma honrosa tradição, não? Além disso, tudo o que fazia era o mesmo seus antigos superiores lhe pediam, e com maior eficiência que o DGI. E, melhor de tudo, seu salário não era pago pelo DGI e sim, em última instância, os próprios americanos.

O jantar transcorreu tranquilamente. O vinho era tão bom como tinha previsto, mas a carne estava dura e as verduras insossas. Os restaurantes de Washington não justificavam sua fama, pensou. Ao sair, tomou a pasta de seu comparsa e se dirigiu a seu carro. Vinte minutos mais tarde estava no seu quarto no hotel. Estudou os documentos durante várias horas. O homem era confiável, merecia o bom conceito que tinham dele. Os quatro sujeitos apresentavam boas perspectivas.

A tarefa de recrutamento começaria ao dia seguinte.

VII

CERTEZAS E INCÓGNITAS

Como Julio previra, uma semana de treinamento foi suficiente para que se adaptassem à altura.

Chávez tirou a mochila. Não estava carregada de todo, apenas dez quilos, mas o processo era gradual: queriam que os soldados chegassem ao estado ideal pouco a pouco, não de maneira precipitada. O que estava muito bom para o sargento, cuja respiração estava um pouco agitada depois de doze quilômetros de marcha. Os ombros e as pernas doíam um pouco, mas ninguém ofegava ao seu redor e, pela primeira vez, ninguém tinha abandonado o exercício. Só se escutavam, como sempre, grunhidos e maldições.

– Desta vez não foi tão cansativo – disse Julio sem ofegar– . Mas penso que não há melhor exercício que uma boa marcha.

– Nisso tem toda a razão – assentiu Chávez– . Todos esses músculos que não se usam.

O melhor do acampamento era a comida. Para o almoço davam pacotes do VLC – ”vianda lisa para comer”, três mentiras pelo preço de uma – , mas o café da manhã e o jantar estavam bem preparados na grande cozinha do acampamento. Chávez sempre se servia um grande tigela de fruta fresca, com muita açúcar para dar energia, e o café do Exército, que continha mais cafeína que o comum e despertava melhor. Comia com avidez sua tigela de laranjas, toranjas e todo tipo de fruta enquanto seus camaradas preferiam os ovos com bacon. Logo se serviam uns pastéis redondos. Haviam lhe dito que os hidratos de carbono davam energia, e agora que estava quase acostumado à altura podia comer gorduras sem passar mau.

Tudo acontecia como pedido. trabalhava-se muito, mas ninguém os perturbava com a limpeza. Os consideravam profissionais com experiência e como tal eram tratados. Não se esbanjavam energias em fazer bem as camas; os sargentos sabiam, e se alguém não esticava bem os lençóis, seus pares se encarregavam de lembrar, sem necessidade de gritos por parte de um superior. Eram jovens, realizavam suas tarefas em absoluta seriedade, mas com espírito de aventura.

Não os informaram a finalidade do treinamento, mas dava lugar a todo tipo de especulações. Pelas noites, produzia-se um coro de sussurros entre as camas que se convertia gradualmente em uma sinfonia de roncos quando se chegava a um acordo sobre alguma ideia, muito fantasiosa.

Chávez era um cara estudado, mas não bolo. Algo lhe dizia que todas as teorias estavam erradas. A guerra do Afeganistão tinha terminado: portanto, não enviariam eles para ali. Além disso, todos falavam espanhol. Voltou a pensar nisso enquanto mastigava um punhado de kiwis, uma fruta deliciosa que a existência tinha desconhecido há apenas uma semana. Não eram treinados em alta altitude sem razão.

Assim, não iriam para Cuba nem ao Panamá. Havia montanhas na Nicarágua? No México e em várias nações centro-americanas? Sim havia. Todos eram sargentos. Todos tinham comandado pelotões e realizado algum tipo de treinamento especializado. Todos eram infantes ligeiros. Por isso a missão consistiria em treinar outros combatentes ligeiros. Tinha que ser um pouco relacionado com a contra revolução. Sim, era isso: em todos os países ao sul do Rio Bravo havia guerrilhas, produto da injustiça dos governos e das economias; mas, para Chávez, a explicação era mais simples: esses países estavam na merda. Tinha visto em suas viagens com o batalhão em Honduras e no Panamá. As cidades eram sujas; em comparação a elas, seu próprio bairro parecia o paraíso terrestre. Quanto à Polícia... bom, jamais pensou que chegaria a admirar ao Departamento de Polícia de Los Angeles. Mas o que despertava seu maior desdém eram os exércitos locais. Vândalos, folgados e incompetentes. Não eram muito diferentes das gangues de rua, salvo que todos levavam as mesmas armas (enquanto que nas ruas de Los Angeles eram individualistas). Sua destreza com as armas era mais ou menos a mesma. Não era difícil para um soldado quebrar a cabeça com coronhadas de um pobre diabo. Entre os oficiais não tinha achado um só comparável com o tenente Jackson, que saía a exercitar-se com seus homens e não se incomodava em sujar-se e suar como um soldado de verdade. Os sujeitos mais desprezíveis eram os sargentos. Ding Chávez tinha visto a luz na Coréia, graças ao sargento McDevitt: a destreza mais o profissionalismo equivalem ao amor próprio. E em última instância, ser homem era ganhar o direito de sentir amor próprio.

Por causa do amor próprio, a gente é capaz de correr quilômetros e quilômetros por essas montanhas de merda. Não era questão de decepcionar aos camaradas, de não estar à altura de suas expectativas. Isso era a síntese do que ele – e todos os presentes nesse refeitório – tinham aprendido no Exército. Agora deviam inculcar o mesmo conceito em outros. Assim tinham uma missão muito convencional. Por algum motivo

– talvez político, embora ele não se metesse nisso; a política lhe era bem incompreensível– , a missão era secreta. Seu instinto lhe indicava que tinha que ver com a CIA. Nisso tinha razão, mas se equivocava sobre a natureza da missão.

Terminaram de tomar o café da manhã na hora indicada, ficaram em pé e deixaram seus pratos no balcão antes de sair. A maioria passou pelas latrinas e alguns – Chávez entre eles– trocaram de camiseta.

Não era fanático pela boa aparência, mas gostava da sensação de ficar com uma camiseta lavada e engomada.

O acampamento contava com um excelente serviço de lavanderia. Chávez pensou que sentiria falta dali, apesar da altitude. O ar era fresco e seco. Todos os dias se escutava o som das locomotivas a diesel que viam durante as sessões de corrida, entrando no túnel Moffat. Nas noites estavam acostumados ver as luzes de um trem de passageiros que ia para Denver. Talvez houvesse boa caça. Viram manadas de grandes cervos e também de pequenas cabras das Rochosas, capazes de subir nas paredes quase verticais quando os soldados se aproximavam. Essas desgraçadas sim que estão em boa forma física, havia dito Julio no dia anterior. Mas Chávez sabia que os animais que eles sairiam para caçar tinham só duas patas.

E que o caçador descuidado terminava caçado.

Formaram os quatro pelotões, o capitão Ramírez assumiu o comando e os levou a seu setor particular, a um quilômetro do acampamento principal, dou outro lado do vale. Esperava-os um negro vestido com camiseta e calça curta de onde transbordavam seus avultados músculos.

– Pelotão, bom dia – disse– . Sou o Sr. Johnson. Hoje começaremos o verdadeiro treinamento da missão. Todos vocês têm feito treinamento de combate corpo a corpo. Minha tarefa é determinar o que sabem e lhes ensinar mais algumas coisinhas que possivelmente não aprenderam antes. Matar sem fazer ruído não é tão difícil. O problema é como aproximar-se do inimigo. Isso nós sabemos. – Johnson levou as mãos à costas sem deixar de falar – : Esta é outra maneira de matar sem ruído.

Mostrou uma pistola com um artefato comprido e cilíndrico enroscado ao cano. antes que ocorresse a Chávez que aquilo era um “silenciador”, Johnson levantou a pistola com as duas mãos e disparou três vezes. O silenciador era muito efetivo, pensou Ding. O estalo metálico do trilho foi mais suave que o entrechocar dos cristais das três garrafas, que se transformaram em pó no impacto dos projéteis. E os disparos em si não produziram o menor ruído. Era impressionante.

Johnson sorriu com malícia.

– Além disso, não machuca as mãos. Como o garrote, vocês conhecem a luta corpo a corpo e vamos aperfeiçoá-los nisso. Mas eu já vi muitas coisas, igual a vocês, assim não faremos rodeios. O combate armado supera o desarmado em todos os terrenos. Assim vamos aprender um novo tipo de luta: combate armado silencioso. – inclinou-se e retirou a capa de uma metralhadora de mão, que também estava provida de silenciador.

Então, pensou Chávez, todas as especulações anteriores estavam erradas: a missão era de qualquer tipo menos de treinamento.

O vice-almirante James Cutter, da Marinha dos Estados Unidos da América, era um patriota. Ao menos, assim achava Ryan: alto e magro, de cabelo penteado e um sorriso franco em seu rosto. Agia como tal... quer dizer, nisso ele acreditava, corrigiu Jack. Ele pensava que as pessoas realmente importantes não precisavam se esforçar para demonstrar. Além disso, ser o assessor presidencial em assuntos de segurança nacional não era um título de nobreza. Ryan conhecia umas pessoas que os possuíam. Cutter pertencia a uma dessas velhas famílias da Nova a Inglaterra que depois de cultivar a terra durante várias gerações se dedicaram ao comércio e tinham enviado alguns de seus filhos ao mar.

Mas Cutter era um desses marinheiros que o mar não era um fim, e sim um meio. Tinha passado a metade de sua carreira no Pentágono, que não era lugar para um marinheiro de verdade, pensava Jack.

Tinha subido de posto, comandando um destróier e depois um couraçado. Sempre tinha se dado bem, ou o suficientemente bem para que fosse notado, que era o importante. Muitos oficiais talentosos não tinham puderam chegar ao posto de capitão por falta de um padrinho nas altas esferas. O que tinha feito Cutter para destacar da massa? Talvez soubesse bater nas portas certas, pensou Jack ao terminar o relatório.

Não tinha importância. O Presidente tinha notado sua presença na equipe de Jeff Pelt, e agora que este tinha voltado para mundo acadêmico – era titular da cadeira de relações internacionais na Universidade da Virginia– , Cutter tinha ocupado seu lugar com a mesma facilidade com que um destróier ocupa um ancoradouro junto ao pier. Sentado atrás de sua mesa, com seu terno de bom corte, bebia café numa xícara da marinha com a placa USS Belknap, para que ninguém esquecesse que ele tinha comandado esse navio. E se o visitante passava por cima esse detalhe – as visitas ao escritório do assessor de segurança nacional eram escassas – , tinha toda a parede convés com plaquetas dos navios a que tinha servido e mais fotografa autografadas que um agente de Hollywood. Os oficiais navais chamam a isto a parede eu amo, e embora quase todos a tivessem, em geral, guardam-na em suas casas.

Ryan não sentia grande afeto por Cutter. Tampouco a tinha sentido por Pelt, com a diferença de que Pelt era quase tão inteligente como ele acreditava. Cutter não lhe chegava nem à sola dos sapatos. O

almirante se achava muito grande no posto, mas faltava a sensatez para dar-se conta. O pior era que Ryan também era assessor especial, embora não do Presidente. Assim devia apresentar seus informes a Cutter.

E agora que seu chefe estava internado no hospital, isso aconteceria com frequência.

– Como está Greer? – perguntou, com um acento nasal da Nova a Inglaterra que devia ter morrido de morte natural anos atrás. Era a única coisa nele que não incomodava a Ryan, por que se lembrava de seus anos de estudante em Boston.

– Ainda não terminaram as análises – respondeu, sem ocultar sua preocupação. Parecia um câncer de pâncreas, e Cathy havia dito que as probabilidades de sobrevivência eram quase nulas. Tinha sido internado no hospital “Johns Hopkins”, mas Greer era oficial da Marinha e tinham enviado a “Bethesda”.

O centro médico “Bethesda” era o melhor hospital naval do país, mas não era tão bom como o “Johns Hopkins”.

– Você vai ocupar seu posto? – perguntou Cutter.

– Almirante, isso me parece de muito mau gosto – disse Bob Ritter, antecipando-se a seu amigo – .

O doutor Ryan representará o almirante Greer enquanto ele permaneça internado.

– Se fizer tudo tão bem como este relatório, estaremos muito bem. Lamento muito por Greer.

Espero que tudo acabe bem – disse com tanta emoção como se perguntasse a hora.

Você sim que é um tipo íntimo, pensou Ryan ao fechar sua pasta. A tripulação do Belknap te queria como a um pai, não? Mas a tarefa de Cutter não era a de ser um tipo íntimo, era assessorar o Presidente. E

de Ryan era a de informar a Cutter, não de querê-lo como a um pai.

Tinha o que reconhecer que Cutter não era idiota. Sua especialidade não era como a de Ryan e não nem possuía, como Pelt, o instinto de jogador profissional para as negociações políticas nos bastidores; também, diferente de Pelt, gostava de agir sem consultar o Departamento de Estado. Os métodos da União Soviética não entendia de modo algum. Ocupava essa cadeira de alto escalão atrás da mesa de carvalho escuro porque dizia que era especialista em outras questões que, evidentemente, interessavam ao Presidente. Ryan não sabia quais eram. Em lugar de desenvolver esse pensamento até suas conclusões lógicas, terminou seu relatório sobre as atividades da KGB na Europa central. O erro de Jack tinha a ver com algo um pouco mais elementar. Cutter sabia que era menos inteligente que Jeff Pelt e queria superá-

lo.

– Me alegro de ver, doutor Ryan. O relatório foi muito bom. Falarei disso com o Presidente. Agora, se nos desculpar, o SDO e eu temos que discutir um assunto em privado.

– Veremo-nos mais tarde em Langley, Jack – disse Ritter. Ryan assentiu e saiu. Esperaram que a porta se fechasse e logo o SDO apresentou seu relatório sobre a “Operação SHOWBOAT”. Que levou uns vinte minutos para fazê-lo.

– Bom, como coordenaremos? – perguntou o almirante.

– Como sempre. O único ponto positivo que tiramos do fracasso no deserto é que foi demonstrado que as comunicações via satélite são seguras. Conhece o equipamento portátil? – perguntou o SDO– . É

parte do equipamento da Infantaria ligeira.

– Só conheço os navais. Não são realmente portáteis.

– Este equipamento tem duas peças, uma antena em forma de sinal de multiplicação e um suporte que parece um cabide de arame estirada. leva-se na mochila e pesa menos de sete quilos, incluído o auricular. Leva um transmissor “Morse” se quer baixar o tom. Banda única de ultra-frequencia, supercodificada. Mais seguro, impossível.

– E o sigilo? – Isso era o que mais preocupava a Cutter.

– Se fosse uma região densamente povoada – explicou Ritter pela milésima vez– , o inimigo não a usaria. Além disso, operam de noite, por razões óbvias. Assim que nosso pessoal dormirá de dia e se deslocará na escuridão da noite. Têm equipamento especial e foram treinados para isso. Pensamos muito nisso.

– Abastecimentos?

– Por helicóptero. O pessoal de operações especiais na Florida.

– Penso que deveríamos enviar os marinheiros.

– Os marinheiros têm outra missão. Já falamos sobre isso almirante. Estes rapazes têm um bom treinamento e um bom equipamento, quase todos estiveram em regiões como esta, e é fácil recrutá-los para o projeto sem que ninguém se dê conta.

Ritter estava farto de explicar o mesmo, uma e outra vez; mas Cutter não acostumava escutar os outros. Sua própria voz era muito forte. O SDO se perguntou como se arrumava o Presidente, mas era uma pergunta inútil. Um sussurro presidencial era mais forte que qualquer grito. O problema era que o Presidente estava acostumado a depender de sujeitos idiotas para materializar seus desejos. Ritter não estaria surpreso em saber que sua opinião do assessor de segurança nacional era a mesma de Jack Ryan; só que este não podia saber o porquê.

– Bem, nisso você comanda – disse Cutter– . Quando começa a operação?

– Dentro de três semanas. Ontem à noite recebemos um relatório: Tudo acontece de vento em popa.

Os soldados já possuem a destreza necessária, só faltava afiná-la um pouco. tivemos sorte, não houve acidentes.

– Desde quando têm esse acampamento?

– Uns trinta anos. ia ser um centro de defesa antiaérea, mas retiraram os recursos. A Força Aérea nos entregou isso, e depois usamos para treinar nossos agentes. Não aparece em nenhuma lista do Governo. Pertence a uma empresa de fachada que usamos para esses fins. No outono o arrendamos a grupos de caçadores e com isso se autofinancia, por isso não aparece nos inventários. Mais clandestino, impossível, não lhe parece? Foi de grande utilidade durante a operação no Afeganistão, que foi similar a que nós enfrentamos agora e nunca se soube de nada...

– Três semanas.

– Um dia mais, um dia menos... – assentiu Ritter – . Nos falta afinar a coordenação entre a informação via satélite e as tropas em terra.

– Funcionará? – Era uma pergunta retórica.

– Almirante, já falamos sobre isso. Se quiser soluções mágicas, não temos. Podemos dar um golpe neles. Informe a Imprensa e serão favoráveis e inclusive talvez salvemos algumas vidas. Para mim, vale a pena, embora não consigamos grandes resultados.

O bom do Ritter é que não insistia no óbvio, pensou Cutter. Claro que conseguiriam resultados.

Todos sabiam. A missão não era uma bravata, embora alguns acreditassem assim.

– E a detecção com radar?

– São só dois aviões. Estão testando um sistema novo, um radar de baixa probabilidade de interceptação, BPI. Não conheço os detalhes, mas sei que é muito difícil captar suas emissões graças a uma combinação de altas frequências, compartimentos laterais reduzidos e potência gerada relativamente baixa.

Com isso, o equipamento ESM que o inimigo utiliza perde toda sua eficácia. Nossas forças terrestres vigiam de quatro a seis das pistas aéreas clandestinas e nos informam cada vez que um carregamento sai. Os E-2 modificados tomam contato ao sul de Cuba e os seguem até que o caça F-15, que eu mencionei, interceptam-nos. O piloto é um rapaz negro de Nova Iorque, e me disseram é um piloto de primeira. Sua mãe foi atacada por um viciado e isso virtualmente a destroçou.

Morreu no hospital. Era uma mulher saída do gueto que soube educar muito bem a seus três filhos.

E lhe asseguro que o piloto é um menino bastante furioso.

Está disposto a fazê-lo e a não abrir o bico.

– por agora – disse Cutter, cético– . E se mais adiante mudar de opinião e...?

– Ele me disse que está disposto a matar a todos esses filhos de puta se nós dermos a ele essa missão. Quer vingar-se dos traficantes que mataram a sua mãe.

Há muitos projetos secretos no Eglin. Seu avião está separado do resto da esquadrilha, a parte do projeto de radar BPI. Dois aviões da Marinha transportam o radar, seus tripulantes foram escolhidos com o mesmo critério. E lembre-se que apenas o F-15 os vê, o avião radar se vai. Assim se “Potro” – assim chamam o piloto– derruba ao traficante, e ninguém sabe. Se consegue aterrissar, vai se cagar de medo. Eu mesmo elaborei os detalhes. Se tiver desaparecidos, coisa que duvido, também se pode arrumar. Os marinheiros são todos das operações especiais. Um de meus agentes se fará passar por agente federal, e o juiz é o Presidente...

– Sim, sei. – Que estranho, como crescem as ideias, pensou Cutter. O germe tinha sido uma observação extemporânea do Presidente ao inteirar-se da morte do sócio de um bom amigo seu por causa de uma overdose. Um mês mais tarde, a semente tinha começado a brotar e, dois meses mais tarde, o plano estava elaborado. redigiu-se um Relatório Presidencial secreto, do qual só existiam quatro cópias.

Agora, o plano estava em marcha e não havia maneira de parar, pensou. Tinha participado de todas as reuniões de planejamento, e, apesar disso, a operação começava a dar frutos...

– O que poderia sair errado? – perguntou ao Ritter.

– Nas operações deste tipo, algo pode dar errado. Há vários meses, alguém fracassou porque um espião ilegal...

– Culpa da KGB – lhe interrompeu– . Jeff Pelt me explicou isso.

– Não somos infalíveis. Cagadas acontecem, como eles dizem. O que podia se fazer, se fez. A operação está montada em compartimentos estanques.

Por exemplo, nas Forças Aéreas, o piloto de caça não conhece os do radar nem eles a ele: não são mais que vozes e sinais. O Pessoal de terra desconhece às do ar. Os que infiltraremos lá receberão suas ordens por via satélite, sem saber de onde vêm. Os que os transportam não sabem por que o fazem nem quem deu a ordem. Só um punhado de pessoas está a par de tudo. Concretamente, os que sabem algo são menos de cem, e só dez estão à par de tudo. Mais seguro, impossível. Então, damos o sinal de largada ou?

A decisão é dele, almirante Cutter. Imagino que informou ao Presidente – acrescentou para impressioná-

lo.

Cutter não pôde reprimir um sorriso. Era incomum, inclusive em Washington, que alguém pudesse mentir e dizer a verdade ao mesmo tempo.

– É obvio, Sr. Ritter.

– Por escrito.

– Não.

– Então, anulo a operação – disse o SDO– . Não vou expor minha pele esta vez.

– E espera que eu o faça? – perguntou Cutter. Embora se abstivesse de elevar a voz, sua expressão refletiu a raiva que sentia. Ritter replicou com a manobra que tinha preparado.

– O juiz Moore exige. Prefere que ele fale com o Presidente?

Cutter não soube o que responder. depois de tudo, sua tarefa era proteger ao Presidente. Tinha transferido a responsabilidade a Ritter e/ou o juiz Moore, mas o tinham vencido em seu próprio terreno.

Alguém tinha que assumir a responsabilidade, e, em última instância, devia ser uma só pessoa. Como na dança da cadeira, o perdedor era o que ficava em pé. Apesar de sua astúcia, o vice-almirante Cutter tinha perdido na luta com essa última cadeira. Sua formação naval o tinha preparado para assumir responsabilidades; mas, embora Cutter se dissesse ser um oficial, e em verdade acreditava nisso – um oficial sem uniforme, claro – , sempre tinha esquivado das responsabilidades. Isso era fácil no Pentágono, e mais ainda na Casa Branca. Mas nessa ocasião foi impossível. sentia-se vulnerável como naquela operação de reabastecimento em que o couraçado a seu comando esteve a ponto de bater num navio cisterna; salvou-se graças a uma oportuna ordem do segundo oficial ao timoneiro. Lastimou que o segundo só tinha chegado a capitão: faltava-lhe massa de almirante...

Cutter abriu uma gaveta de sua mesa, tirou uma folha de papel com cabeçalho da Casa Branca e com uma esferográfica de ouro escreveu a autorização que Ritter pedia, usando a sua melhor caligrafia.

“O Presidente da Nação autoriza A...” O almirante grampeou a folha, colocou-a num envelope e a entregou.

– Obrigado, almirante – disse Ritter ao guardar o envelope no bolso interior de sua jaqueta – . O

manterei a par de tudo.

– Cuidado com esse papel – advertiu Cutter com frieza.

– Lembre-se que meu ofício é guardar segredos, senhor.

Ritter se levantou e se dirigiu à saída. sentia-se muito bem, agora que tinha o rabo bem protegido.

Muitos em Washington desejavam sentir-se assim. Ritter não tinha essa obsessão, mas não era culpa dele que Cutter se descuidou.

A sete quilômetros dali, Ryan se sentia triste e deprimido no escritório do SDI. Contemplou a prateleira e a cafeteira, em que James Greer preparava seu café, muito forte, e a poltrona que o velho se acomodava para meditar sobre questões práticas e teóricas e fazer piadas.

O chefe tinha um grande senso de humor. Teria sido um grande professor, e, na verdade, foi um grande professor para Jack. Seis anos antes quando Ryan ingressou na CIA, o almirante Greer tinha passado a ocupar, em grande medida, o lugar de seu pai, morto em um acidente aéreo em Chicago. Ele sempre vinha aqui em busca de orientação e de conselhos. Quantas vezes tinha feito isso?

Da janela do sétimo andar, contemplava as árvores com o verdor do verão que escondiam a visão do Vale do Potomac. As piores loucuras aconteciam quando as árvores são cortadas, pensou Jack. Lembrava-se como passeava sobre o tapete de neve enquanto tentava achar uma resposta aos problemas mais difíceis. Às vezes as achava, às vezes não.

O vice-almirante James Greer não veria o inverno seguinte. A neve e o Natal passados eram as últimas de sua vida. Internado na melhor suíte do centro médico naval da Bethesda, o chefe de Ryan conservava sua inteligência e seu bom humor. Mas tinha perdido sete quilos em três semanas e a quimioterapia lhe tirava qualquer alimento que não fosse através dos tubos cravados em seus braços. E a dor. Não havia nada pior que contemplar a dor alheia. Ryan tinha conhecido a dor de sua esposa e de sua filha no hospital, e era muito pior de aguentar que o sofrimento próprio.

Era difícil ver o almirante naquele estado; ver como se crispava seu rosto quando sofria os espasmos, alguns provocados pelo câncer, outros, pela medicação. Greer era parte de sua família, era...

“Por Deus, estou pensando nele como se fosse o meu pai!” Pensou Ryan. E assim faria até o fim.

– Merda – murmurou.

– Compreendo-o, doutor Ryan.

– O que? – Jack se voltou rapidamente. O motorista (e guarda-costas) do almirante o observava enquanto ele recolhia uns papéis. Embora Ryan fosse o ajudante especial e segundo de fato do SDI, teria que vigiá-lo quando recolhia documentos rotulados “só para o SDI”. As regras de segurança da CIA eram lógicas, inflexíveis e invioláveis.

– Eu disse que o compreendo, doutor. Trabalho onze anos com o almirante. além de meu chefe, é um amigo. Presenteia a meus garotos no Natal, lembra seus aniversários... Há alguma esperança?

– Cathy trouxe o caso para um de seus colegas, o professor Russ Goldman. Um dos melhores.

Professor de oncologia no “Hopkins”, assessor de Saúde Pública e não sei quantos títulos mais. Diz que a probabilidade é de uma entre trinta. A metástase foi muito rápida e extensa, Mickey. Dois meses, no máximo, salvo se houver um milagre. – Sorriu pela metade – . Já falei com um sacerdote.

– Sei que é amigo do padre Tim, de Georgetown – assentiu Murdock – . Ontem à noite jogaram xadrez no hospital. O almirante ganhou em quarenta e oito movimentos. Já jogou alguma vez com ele xadrez?

– Não estou na mesma categoria. Acredito que nunca estarei.

– Sim está, doutor – assegurou Murdock depois de uma pausa – . O almirante me disse isso.

– Ele é assim.

Ryan balançou a cabeça. Esse tipo de conversa teria aborrecido a ao Greer. Havia muito o que fazer.

Tirou a chave e abriu a gaveta arquivo da mesa.

Deixou o chaveiro sobre a mesa para que Mickey recolhesse; mas, em vez de abrir a gaveta, errou e tirou a bandeja deslizante em que se podia usar para escrever, mas que o SDI empregava para pôr a xícara de café. Presa à bandeja havia um cartão com dois números, que correspondiam a caixas de segurança, escritos com a inconfundível letra de Greer. O almirante tinha uma caixa de segurança em seu escritório, Ritter, outra. Jack lembrou-se que seu chefe sempre esquecia o número da combinação, por isso o tinha anotado. Em princípio lhe pareceu estranho que o almirante conhecesse os dois números; embora, continuando, pensou que era o mais lógico. Se era necessário abrir a caixa do SDO – por exemplo, se sequestravam a Ritter, teria que averiguar em que assunto secreto ele estava trabalhando – , isso só podia fazer um alto funcionário, como o SDI. Provavelmente, Ritter conhecia a combinação do almirante.

Quem mais as conhece?, perguntou-se Jack. Encolheu os ombros, fechou a bandeja e abriu a gaveta.

Havia seis expedientes, correspondentes a operações de Inteligência que o almirante queria estudar. Não eram de uma importância crítica, nem sequer eram muito secretas, mas lhe dariam algo de que ocupar-se.

Dois agentes de segurança da CIA montavam guarda em frente a sua porta, e ainda podia fazer algo no tempo que sobrava.

Basta de remoer isso!, pensou. Não pense mais nisso. Tem alguma probabilidade a seu favor, diabos! É melhor do que não ter nenhuma.

Chávez nunca tinha usado uma metralhadora. Sua arma sempre tinha sido o fuzil M-16, às vezes com um lança-granadas M-203 sob o cano. Também sabia usar o SAW – o fuzil automático de fabricação belga que o Exército tinha agregado a seu inventário – , e era um perito atirador de pistola. Mas o Exército tinha descartado a metralhadora a tempos atrás por considerar que não era uma arma séria para um soldado.

Contudo, não se podia negar os méritos dessa metralhadora em particular. Era alemã, modelo MP-5

SD2, fabricada pelo Heckler & Koch. Do ponto de vista estético, era feia, de cor negra fosca, áspera ao tato, sem essas linhas compactas e sensuais da “Uzi” israelense. Mas não interessava ao fabricante produzir um objeto de arte, mas sim que disparasse bem, com rapidez e precisão. Ao sustentá-la na mão pela primeira vez, Chávez pensou que o desenhista realmente sabia o que era disparar uma arma. A diferença da maior parte das armas alemãs, não era ter muitas peças pequenas. Ela desarmada e limpa com facilidade e se montava em menos de um minuto. ajustava-se perfeitamente ao ombro e a cabeça.

– Comecem a disparar – ordenou o Sr. Johnson.

Chávez tinha a arma na posição de disparo individual. Soltou a primeira descarga para provar o disparador. Teve uns cinco quilos de força, no retrocesso. Direito para trás e suave, e a extremidade do cano não se elevou como acontecia com algumas armas. O projétil atravessou o centro da cabeça do alvo.

Fez dois disparos e depois cinco tiros rapidamente. A sucessão de disparos o fez retroceder alguns centímetros, mas a mola da culatra absorveu quase todo o retrocesso. O alvo apresentava sete buracos num grupo pequeno e compacto, como o nariz de um palhaço. Muito bem.

Passou o seletor de disparo à posição de automático: hora de se divertir um pouco. Disparou três rajadas no peito do alvo. Desta vez o grupo foi maior, mas qualquer uma das três rajadas teria sido fatal.

depois de uma descarga adicional chegou à conclusão que podia disparar uma salva de três tiros sem desviar do alvo. O fogo automático total era desnecessário, um esbanjamento de projéteis. Sua atitude poderia parecer estranha em um soldado, mas como infante ligeiro conhecia o esforço de carregar as munições. Para esvaziar o resto do carregador de trinta projéteis apontou a distintos lugares no alvo; em todos os casos onde pôs o olho, pôs a bala.

O melhor de tudo era que o ruído não superava o rangido das folhas secas sob os pés. Não usava silenciador: o próprio cano atuava como tal. Só se escutava o estalo surdo do mecanismo e o assobio do projétil. Estes eram subsônicos, disse o instrutor.

Chávez tirou um da caixa para estudá-lo. A ponta era oca, muito grande, e ao fazer impacto provavelmente se abria até adquirir o diâmetro de uma moeda. Morte fulminante com um disparo à cabeça e quase instantânea no peito... mas se estavam ensinando a usar o silenciador, era para disparar na cabeça.

Poderia fazê-lo facilmente de quinze ou vinte metros, talvez mais, se as circunstâncias fossem as ideais, mas os soldados sabem que dificilmente são. Evidentemente, preparavam-no para aproximar-se uns quinze ou vinte metros do alvo e matá-lo sem fazer ruído.

A natureza da missão podia ser diferente do que treinamento, pensou.

– Muito bons esses disparos, Chávez – disse o instrutor. Eram quatro homens na linha de fogo. Em cada grupo, dois carregariam as metralhadoras, e outros dois – Julio entre eles – levariam as metralhadoras SAW e o resto fuzil M-16; dois, com lança-granadas. Todo mundo levava uma pistola. A Chávez parecia estranho, mas não o incomodava, a pesar do peso adicional.

– Esse cara é bom, senhor.

– Certo. Você atira bem com a pistola?

– Mais ou menos. Tenho poucas oportunidades...

– Sim, sei. Bom, terão oportunidade de praticar. A pistola não é muito útil, mas em certas ocasiões, é do que se precisa. – Johnson elevou a voz – : Me sigam os quatro. Queremos que todos saibam usar todas as armas. Todo mundo tem que ser perito.

Chávez entregou sua arma a um camarada e se afastou da linha de tiro. Ainda tentava descobrir o mistério daquilo tudo. O combate de infantaria é mortal sempre e se realiza de maneira direta: a gente vê o que faz e a quem faz. O fato de não haver descoberto ainda não tinha importância para Chávez:, era sua tarefa, e a organização da unidade lhe indicaria algo a respeito da natureza da missão. Operações especiais. Não podia ser outra coisa. Em Fort Bragg tinha conhecido a um integrante da “Força Delta”. As operações não eram mais que o combate de infantaria levado a um alto nível de perfeição. Alguém se aproximava, eliminava aos sentinelas e golpeava com força e rapidez, como um raio. Caso a operação durasse mais de dez segundos... bom, aí começavam as fortes emoções. O que mais chamava a atenção de Chávez era a semelhança com as táticas das gangues de rua. Na guerra não existia o jogo limpo. Alguém se aproximava com todo sigilo e atacava o outro pelas costas, sem dar a menor oportunidade de defesa.

Mas, o que a um marginal parecia covardia, ao soldado era tido como tática. Chávez sorriu ao pensar. No fundo, aquilo era injusto.

O Exército não era melhor que uma gangue, embora mais organizado. E o alvo o escolhia outro. O

que o Exército fazia cumpria uma função que alguém considerava justificada. O mesmo podia dizer-se das gangues; mas, no caso do Exército, esse alguém era uma pessoa importante, que sabia o que fazia. O

que não tinha sentido para o soldado, tinha para alguém. Chávez era muito jovem para lembrar do Vietnam.

A sedução era o aspecto mais deprimente de seu trabalho.

A Cortez tinham ensinado como realizar essa tarefa como a qualquer outra, com fria objetividade e eficiência, mas a frieza se dava de mãos dadas com a intimidade, se quisesse obter resultado. A própria KGB reconhecia. Na Academia tinham se dedicado a explicar as armadilhas. Um russo dando lições sobre sentimentos amorosos a um latino: Cortez ria com desdém a recordar. O próprio clima do país conspirava contra o amor.

A gente tem que se adaptar às peculiaridades do alvo, que nesse caso era uma viúva, ainda formosa de quarenta e seis anos, e bastante jovem para desejar a companhia de um homem nas noites, com a cama solitária era um depósito de lembranças longínquas, quando seus filhos se dormiam ou saíam com seus pares. Não era a primeira vez que atacava esse tipo de alvo, sempre valente e talvez patético. Tinham-lhe ensinado que os problemas dos outros eram dos outros e uma oportunidade para ele. Mas como se estabelece uma relação íntima com uma mulher sem sentir sua dor? Os instrutores da KGB não conheciam a resposta, mas tinham ensinado a técnica adequada. Ele também tinha sofrido há pouco tempo a perda de um ente querido.

Sua “esposa” também tinha morrido de câncer, disse a ela. casou-se numa idade um pouco avançada – prosseguiu com sua história – , depois de reativar a empresa fundada por seu pai, o que tinha o obrigado a viajar por todo mundo. casou-se com Maria três anos antes. Ela ficou grávida, mas quando foi ao médico a confirmar a boa noticia, as análise de rotina revelaram..., apenas seis meses. Não houve maneira de salvar o bebê, e nada ficou de Maria. Talvez, disse, com os olhos fixos na taça de vinho, Deus tinha castigado ele por se casar com uma moça tão jovem, ou por suas várias aventura de playboy irresponsável.

Nesse momento, Moira estendeu a mão sobre a mesa para roçar a sua. Ele não tinha a culpa, disse a mulher. E Cortez levantou os olhos e viu em seus olhos a simpatia de quem se formulou perguntas bastante similares às que ele acabava de dirigir a si mesmo. As reações das pessoas eram previsíveis.

Bastava apertar os botões correspondentes e demonstrar as emoções certas. Quando a mão dela roçou a sua, a sedução estava consumada.

Foi uma transmissão de simples calor humano. Mas como ia retribuir lhe – e cumprir sua missão –

se não permitia que ela fosse algo mais que um alvo? Percebeu sua dor, sua solidão. Seria bom com ela.

E foi o fez. Dois dias tinham transcorrido desde seu primeiro encontro. Era cômico; mas, sobre tudo, comovedor, ver como se arrumou para a sair, igual a uma adolescente em seu primeiro encontro, pela primeira vez em mais de vinte anos. Seus filhos acharam divertido: tinha passado bastante tempo da morte do pai, podiam compreender as necessidades de sua mãe e a tinham despedido com um sorriso. Um jantar rápido, a breve viagem a um hotel, uma taça de vinho para o nervosismo que ambos sentiam, embora ela um pouco mais. A espera bem havia valido a pena, lhe faltava um pouco de prática, mas suas reações eram mais autênticas que as de suas companheiras namoradas habituais. Cortez era um bom amante. Conhecia sua própria capacidade, e seu rendimento na ocasião tinha sido de primeira: uma hora de trabalho para excitá-la gradualmente e tanta ternura como foi capaz de lhe dar.

Agora estavam estendidos um ao lado do outro, ela apoiada a cabeça sobre seu ombro e deixava correr as lágrimas. Era uma amante de primeira. Seu marido morreu jovem, mas tinha sido afortunado ao possuir uma mulher capaz de apreciar que o silêncio podia ser a paixão mais forte de todas. Olhou o relógio na mesa e deixou acontecer dez minutos antes de falar.

– Obrigado, Moira... não sabia..., faz tanto. – Pigarreou – . É a primeira vez que... desde que... – Na realidade, só tinha passado uma semana da última vez. Então tinha pago trinta mil pesos a uma moça jovem, hábil. Mas...

A força desta mulher era surpreendente. Seu abraço era tão forte que prendia o fôlego. Um peso na consciência que ainda ficava disse que era um desgraçado por tratá-la assim, mas outra voz, mais forte, respondeu que tinha dado mais do que tinha recebido. Isto era melhor que o sexo pago. O dinheiro não comprava sentimentos; esse pensamento reconfortou a Cortez, mas também aumentou seus remorsos.

Outra vez se impôs a voz que dizia que a vergonha era produto desse abraço apaixonado, o qual tinha sido provocado a sua vez pelo prazer que lhe dera.

Estendeu o braço para acender um cigarro.

– Faz mal em fumar – disse Moira Wolfe.

Sorriu.

– Sei. Deveria abandonar o hábito. – Um sorriso malicioso – : Mas depois do que me fez, preciso disso para me recuperar.

– Madre de Dios!!! – disse ele depois de uma nova pausa.

– O que aconteceu?

Outro sorriso.

– Me entreguei a você, e quase não te conheço!

– O que quer saber sobre mim?

Sorriu e encolheu de ombros.

– Não importa... quero dizer, nada pode ser mais importante do que me deste – Um beijo. Uma carícia. Silêncio. Apagou o cigarro para demonstrar que valorava sua opinião – . Não sei fazer bem.

– Sério? – ela sorriu e a ele ruborizou-se.

– É verdade, Moira. Quando eu era jovem, se dizia que quando... que não era importante. Mas agora sou um homem adulto, não posso tomá-lo... – Com acanhamento– .

Se me permitir, quero te conhecer melhor, Moira. Viajo a Washington com frequência, e necessito...

Não quero mais solidão. Estou farto de... desejo te conhecer – disse com veemência. E acrescentou com acanhamento, vacilação, esperança e temor – Se você me permitir.

Um beijo suave na bochecha.

– Permito.

Em lugar de abraçá-la, Cortez se relaxou com um suspiro de alívio que não era totalmente fingido.

Outra pausa.

– Quero que me conheça. Sou rico. Minha empresa fabrica máquinas, ferramentas e peças para automóveis. Tenho uma fábrica na Costa Rica e outra na Venezuela.

É um negócio difícil e... não perigoso, mas é difícil tratar com os grandes industriais. Tenho dois irmãos menores, que trabalham comigo. Bom, me fale do que faz.

– Sou secretária executiva há vinte anos.

– Não me diga? Eu tenho uma secretária.

– E certamente a persegue por todo o tempo...

– Consuelo? É mais velha que a minha mãe. Foi meu pai quem a contratou. Isso acontece neste país? Seu chefe assedia você? – Com um tom de raiva ciumenta na voz.

Uma risada.

– Não, que isso. Meu chefe é Emil Jacobs, o diretor do FBI.

– Não conheço – mentiu ele – . O FBI, são os federais, não? Você é a chefe das secretárias?

– Não, não é isso. Meu trabalho é organizar a agenda do Sr. Jacobs. É incrível, a quantidade de reuniões e compromissos que tem em um só dia. Às vezes tenho que fazer verdadeiros malabarismos.

– Sim, Consuelo diz o mesmo. Se não fosse por ela... – Riu – . Se tivesse que escolher entre ela e um de meus irmãos, ficaria com ela e procuraria outro gerente. Como é o Sr... se chama Jacobs? Sabe, quando era pequeno, sonhava que era policial, levava uma pistola, dirigia um carro. Mas ser o chefe..., que extraordinário.

– Não se anime; a maior parte de seu trabalho é assinar papéis. O chefe faz contas, preside reuniões e pouca coisa mais.

– Mas está a par de... de todos os assuntos importantes, não? O melhor de ser policial é saber o que outros ignoram, eu acho. Saber quem são os criminosos e caçá-los.

– Não é só isso. Além do trabalho policial, fazem contraespionagem. Perseguem espiões.

– Isso não é trabalho da CIA?

– Não. Não posso entrar em detalhes, mas é função do FBI. Na realidade é parte do mesmo, e não tem nada que ver com as séries de televisão. É muito mais aborrecido. Eu leio quase todos os informes.

– Que mulher extraordinária – disse Cortez com expressão de placidez – . além de todo seu talento, me ensina. – Sorriu para animá-la a continuar a falar. O idiota que falou dela sugeriu que a subornasse.

Cortez pensou que seus instrutores saberiam apreciar sua técnica. A KGB era muito mesquinha com os recursos.

– Tem muito trabalho? – perguntou instantes depois.

– Alguns dias trabalhamos até muito tarde, mas é um homem considerado e atento.

– Ele te faz trabalhar muito, vou falar com o Sr. Jacobs. Imagine se eu venho a Washington e não posso sair contigo porque você está no escritório...

– Você quer seriamente quer...?

– Moira.

O tom de sua voz se alterou. Sabia que a tinha pressionado muito na primeira vez. Tinha sido tão fácil que se exagerou nas perguntas, Além disso, a viúva solitária era uma mulher de boa posição e tinha um trabalho de grande responsabilidade. Portanto, era uma mulher inteligente. Mas também demonstrava ser apaixonada e romântica. Moveu a cabeça e as mãos. Viu a pergunta desenhada em seu rosto: Outra vez? E seu sorriso respondeu: outra vez.

Dessa vez se mostrou menos paciente. Já não explorava o desconhecido: conhecia o terreno. Tinha descoberto o que gostava e podia orientar seus movimentos. Em dez minutos, ela tinha esquecido as perguntas. Só lembraria de seu aroma, o contato de sua pele. Se perguntaria aonde iriam parar, mas não de onde vinham.

O próprio dos encontros de amor é a conspiração. Pouco depois de meia-noite, acompanhou-a até seu carro. Novamente, seu silêncio era assombroso. deixava-se levar na mão como uma colegial, mas o roçar de sua mão não era assim tão recatado. Um beijo antes de ligar o carro, mas não permitiu que ele o fizesse.

– Obrigado, Juan – disse.

Ele respondeu de coração:

– Moira, graças a você sou um homem de novo. Quando voltar a Washington, devemos...

– Sim, faremos isso.

Seguiu-a em seu carro para demonstrar que queria protegê-la, mas se desviou antes de chegar na casa para que seus filhos – que certamente a esperavam acordados – não o vissem. Sorria ao voltar para seu apartamento, e não só a causa do êxito de sua missão.

Seus colegas de trabalho reparam imediatamente. Tinha dormido menos de seis horas, mas entrou no escritório com passo elástico e um vestido que não usava a mais de um ano. O brilho de seu olhar era inconfundível. O diretor Jacobs também percebeu, mas ninguém disse nada. Jacobs a compreendia.

Tinha enterrado sua esposa meses depois de que Moira perdeu seu marido, e sabia que o trabalho não enchia certos vazios. Se alegrou por ela, pensou. Ainda tinha filhos adolescentes. Teria que ajustar seus horários, para que ela pudesse aproveitar a oportunidade de refazer sua vida.

VIII

DESDOBRAMENTO

Tudo saiu como foi pedido, pensou Chávez, sem se espantar. Embora todos fossem sargentos, o homem que os tinha juntado era sem dúvida inteligente, porque tinha atribuído funções sem o menor erro.

Um especialista em operações ajudava o capitão Ramírez a fazer os planos. Tinham um excelente enfermeiro, que tinha treinado com os Boinas Verdes. Julio Vega e Juan Piscador, metralhadores, carregavam os SAW. O sargento de comunicações também era um perito. Cada membro da equipe ocupava um posto pré-designado e cada um respeitava a perícia do outro, ainda mais depois de terem treinado juntos. O regime duro de exercícios físicos tinha levantado a moral de todos, e em duas semanas, a equipe funcionava como uma relógio de precisão. Chávez, graduado da escola dos rangers, era homem de ponta e explorador, com a tarefa de adiantar-se aos outros, deslocar-se sigilosamente de um posto de observação a outro, e informar ao capitão Ramírez.

– Onde estão? – perguntou o capitão.

– A duzentos metros, passada essa curva – sussurrou Chávez – . Cinco. Três dormem, dois estão de guarda. Um, sentado junto ao fogo. O outro com uma metralhadora, faz rondas.

Apesar de estar m pleno verão, as noites eram frescas nas altas montanhas. Um coiote ao longe uivava à lua. de vez em quando se escutava o sussurro de um cervo ao deslocar-se entre as árvores, o único ruído humano de muito acima, dos aviões. Era uma noite limpa, e a visibilidade, excelente, tanto que não usavam os óculos infravermelhos. No ar diáfano da montanha, as estrelas não cintilavam, umas brilhavam como constantes e discretos pontos de luz. Chávez apreciava tanta beleza, mas não em serviço.

Ramírez e o resto do pelotão vestiam uniformes de camuflagem de quatro cores, de fabricação belga. Tinham pintado seus rostos com maquiagem (evidentemente, o Exército não o chamava assim) de cores similares, de maneira que desapareciam nas sombras como o homem invisível do H. G. Wells. O

mais importante era que se sentiam bem na escuridão. A noite era sua melhor e melhor aliada. O homem é um caçador diurno. Seus sentidos, instintos e invenções funcionam melhor quando há luz. Seus ritmos primitivos lhe subtraem eficácia durante a noite, salvo se treinar com muito esforço para superá-los, como eles fizeram. As tribos indígenas americanas, que viviam em estreito contato com a Natureza, temiam a noite, não combatiam, e nem sequer montavam guarda, depois da queda do sol. O Exército tinha adquirido os rudimentos de uma doutrina de combate noturno. Durante a noite, o homem acende o fogo para ter calor e luz, mas com isso reduz a visibilidade. A verdade é que, com a preparação adequada, o olho humano vê bem na escuridão.

– Só cinco?

– São os que pude distinguir, capitão.

Ramírez assentiu e fez um gesto. Outros dois homens se aproximaram. Sussurrou suas ordens e se afastou com os dois para a direita para rodear o posto.

Chávez voltou a avançar. Sua tarefa era eliminar o sentinela e o homem que dormia junto ao fogo.

Na escuridão, é mais difícil deslocar-se sigilosamente sem ver bem. Para o olho humano é mais fácil detectar o movimento que objetos estáticos. A cada passo media com o pé, com medo de pisar em algo que fizesse ruído ao mover-se, não se deve subestimar a sensibilidade do ouvido humano. De dia, sua maneira de deslocar-se teria parecido graciosa, mas esse era o preço do sigilo. O mais cansativo de tudo era que devia caminhar lentamente, porque “Ding” se sentia impaciente como qualquer soldado veterano, treinou para superar essa debilidade. Caminhava escondido, com a arma preparada para disparar e os sentidos totalmente alerta, como se uma corrente elétrica sulcasse sua pele. Sua cabeça girava lentamente a direita e esquerda, seus olhos não se posavam em nenhum objeto em particular porque as formas se esfumam na escuridão quando se as olhe com fixidez.

Chávez sentia uma vaga inquietação, mas não sabia a que atribuí-la. deteve-se um instante, olhou para a esquerda, com todos os sentidos alerta, durante o meio minuto. Nada. Pela primeira vez sentia falta dos óculos de visão noturna. Balançou a cabeça: possivelmente se tratava de um esquilo ou de alguma ave noturna.

Em todo caso, não era um homem: ninguém era capaz de mover-se na noite como um ninja. Sorriu, e continuou o avanço.

Em poucos minutos chegou a seu posto, atrás de um pinheiro pequeno, E pôs o joelho em terra.

Descobriu a esfera de seu relógio digital e olhou a lenta marcha dos números verdes para o momento fatal. O sentinela caminhava em círculos, de costas para o fogo para proteger sua visão. Mas a luz refletida nas rochas e os pinheiros a prejudicava: em duas ocasiões olhou para onde Chávez se encontrava, mas não o viu.

Agora.

Chávez elevou a MP-5 e disparou no peito do alvo. O homem se crispou, levou-se as mãos ao ponto do impacto e caiu com um gemido. O estalo metálico do MP-5 era muito suave, como o choque de duas pedras pequenas que rodam pelo chão, embora não fosse um ruído habitual na noite da montanha. O

homem que dormia junto ao fogo começou a voltar-se, mas também recebeu o impacto e caiu.

Chávez pensou que se encontrava sozinho, mas quando ia apontar para um dos homens deitados, o ruído característico da arma automática de Julio despertou os três. levantaram-se de um salto, mas caíram mortos imediatamente.

– Merda de onde você saiu? – perguntou o sentinela moribundo. Seu peito, devido ao impacto do projétil de cera e à surpresa. Ramírez e outros já entravam no acampamento.

– Cara, você é bom – disse uma voz a suas costas. O sargento se sobressaltou quando uma mão caiu pesadamente sobre seu ombro – . Veem.

Surpreso, Chávez seguiu ao homem até a fogueira. De passagem, descarregou sua arma: os projéteis de cera eram muito perigosos a curta distância.

– Bem, êxito total – disse o homem – . Cinco mortos, nenhuma reação do inimigo. Capitão, o metralhador excedeu se um pouco nos disparos. Eu seria mais previdente: o ruído de uma arma automática chega muito longe. Também me aproximaria um pouco mais, embora... não. Não disse nada.

Esqueça.

Terão que usar o terreno tal como ele é, não podemos escolhê-lo. Gostei da disciplina dos homens durante a marcha, e na aproximação do objetivo, foi excelente. O homem destacado na ponta é incrível.

Quase me descobriu. – Esse último não foi precisamente um elogio do ponto de vista de Chávez.

– Quem diabos é você? – perguntou.

– Cara, eu fazia isto muito antes de você brincar com seu primeiro revólver de plástico. Além disso, eu fiz uma armadilha. – Clark mostrou os óculos noturnos – . Via muito bem o caminho e, além disso, parava cada vez que olhavam para mim. O que você ouviu foi minha respiração. Pensei que o exercício ia fracassar por minha culpa. Lamento. Meu nome é Clark. – Estendeu a mão.

– Chávez – disse o sargento ao apertar sua mão.

– Você é muito bom, Chávez. O melhor que vi em muito tempo. Gostei de sua maneira de avançar.

Poucos têm tanta paciência. Seria bem-vindo no 3º SOG. – Para Clark, esse era o elogio máximo, para ele que não era de elogiar ninguém.

– O que é isso?

– Algo que nunca existiu. – Riu – . Não se preocupe.

Clark foi examinar aos dois homens em quem Chávez tinha disparado. Tinham sido impactos no mesmo lugar: sobre o coração.

– E além disso dispara bem.

– Qualquer um faz bem com isto.

Clark se voltou para o jovem.

– Lembre-se quando for a sério, não vai ser o mesmo.

Chávez compreendeu que ele falava muito sério, e perguntou:

– Há algo que deva fazer diferente, senhor?

– Saber isso é o mais difícil de tudo – disse Clark, enquanto o resto do pelotão se aproximava da fogueira. Falou no tom de um professor a aluno graduado – : Por um lado, deve se pensar que está em um exercício de treinamento. Por outro, tem que saber que dispõe de pouca margem para cometer erros.

Pode se sobressair um aspecto ou o outro, dependerá do momento. Tem bom instinto, cara, se deixe levar por ele se quer sobreviver. Se achar que algo está errado, é porque está errado; Não confunda essa sensação com o medo.

– Como?

– Você vai ter medo, Chávez. Eu sempre tinha. Se o assumir, pode transformá-lo em uma vantagem para você. Não se envergonhe de tê-lo. Um dos piores problemas em terreno inimigo é temer ao medo.

– Senhor, pode-me dizer para que coisa estamos treinando?

– Eu não sei. Não é minha função. – Clark conseguiu reprimir uma careta de desgosto. O

treinamento não se ajustava a natureza da missão. Talvez Ritter estivesse sendo ardiloso. Nada inquietava mais a Clark que um superior com um ataque de astúcia.

– Mas você trabalhará conosco, se não me engano.

Era uma observação muito perspicaz, pensou Clark. Ele tinha solicitado que o enviassem, mas agora compreendia que Ritter tinha provocado que ele fizesse isso. Clark era o melhor homem com que a Agência contava para esse tipo de operação. Poucos empregados do Governo tinham tanta experiência, e quase todos eram, como Clark, um pouco velhos para o combate de verdade. Só isso? Não sabia. Ritter gostava de guardar seus segredos, ainda mais quando acreditava estar sendo muito esperto. Mas o excesso de astúcia é uma armadilha perigosa em que mesmo Ritter podia cair.

– É possível – confessou com relutância. O problema não era trabalhar com esses homens, mas as circunstâncias que o requeriam. Estaria ainda em condições de fazer isso?

– E então? – perguntou o diretor Jacobs. Bill Shaw estava presente.

– Sim, não há dúvida de que o fez – respondeu Murray ao levantar sua xícara de café – . Mas seria difícil levá-lo a julgamento. É inteligente, e a tripulação o respalda. Se quer saber por que, leia sua folha de serviços. É um oficial de primeira. O dia que eu fui, acabava de resgatar à tripulação de um pesqueiro incendiado..., uma maravilha de trabalho. Teve que aproximar-se tanto, que o casco de seu navio sofreu algumas queimaduras. Claro que podemos interrogá-los separadamente, mas não seria fácil determinar quem teve algo que ver e quem não teve. E me parece que não vale a pena. E ainda, teríamos a um senador nos olhando por cima do ombro e acredito que o promotor tampouco gostaria. Bright nãogosta da ideia de deixá-lo assim, mas o convenci. E já que menciono, esse Bright é muito bom, né?

– O que me diz da defesa dos acusados? – perguntou Jacobs.

– Débil. A acusação dispõe de todas as provas que necessita. Balística pôde identificar o projétil que extraíram da convés com o revólver que tem as impressões digitais dos dois: um verdadeiro golpe de sorte. Nesse mesmo lugar havia uma mancha de sangue AB, positivo, da esposa.

Outra mancha a um metro dessa confirma que estava menstruada, e a presença de duas gotas de sêmen sugere que houve violação. Neste momento estão fazendo as testes de DNA nas amostras de sêmen tiradas do tapete: algum dos pressente quer apostar que vão dar negativas? Temos meia dúzia de impressões digitais com sangue que coincidem com as dos dois acusados em mais de dez pontos. Há provas físicas mais que suficientes, e ainda não analisaram nem a metade do material. O promotor vai pedir pena de morte, e acredito que a obterá. O que interessa agora é se permitimos que eles nos deem informação em troca de uma sentença mais leve. Mas isso não é meu problema – acrescentou Murray como conclusão.

– Pense, por um momento, que é – sorriu o diretor.

– Bem, em uma semana, mais ou menos, saberemos se tiverem informação útil. Meu instinto me diz que não. Acredito que podemos averiguar quem era o chefe da vítima na organização, e, certamente, será o mesmo que ordenou a massacre. O que ignoramos agora é o motivo. Mas não acredito que esses dois saibam.

Me dá a sensação de que estamos diante um par de peixe pequenos que esperavam conseguir uma promoção na organização, talvez na parte comercial. Para mim, podem esquecer deles. Sendo assim, não sabem nada que não possamos averiguar por outras vias. Suponho que teremos que lhes dar uma oportunidade, mas eu me oporia a uma comutação da sentença. Quatro assassinatos... com traição e toda classe de agravantes... A pena de morte existe, e, para isso, nada melhor para eles que a cadeira elétrica.

– Se tornou um velho sanguinário – disse Shaw. Era uma brincadeira que só eles compreendiam.

Bill Shaw, um dos intelectuais do FBI, tinha subido na organização lutando contra o terrorismo no país, e para isso tinha elaborado métodos de recolhimento de informação e posterior análise. Enxadrista hábil, sereno e organizado, esse homem alto e enxuto era partidário da pena de morte e sustentava sua opinião com argumentos lógicos e bem fundados.

A opinião da Polícia era quase unânime. Para compreender a necessidade da pena de morte, bastava ver o horrendo espetáculo da cena de um crime.

– O promotor federal está de acordo, Dan – disse o diretor Jacobs– . Acabou para esses dois traficantes.

Mas não tem a menor importância, pensou Murray. O importante para ele era que os dois assassinos pagassem por seu crime. A presença de uma grande quantidade de drogas a bordo do iate permitia ao Governo invocar a lei que impunha a pena máxima para assassinatos relacionados com o tráfico de drogas. Neste caso, a relação não era muito firme, mas isso não tinha importância para os três homens presentes no escritório. O homicídio premeditado e covarde merecia a pena de morte. Mas dizer, como eles e o promotor federal do distrito Sul do Alabama diriam em frente as câmaras de televisão, que tinham dado um golpe ao narcotráfico, era uma mentira cínica.

Murray recebeu uma educação clássica no Boston College, onde se formou a trinta anos. Lembrava-se ainda de passagens em latim da Eneida, de Virgilio, e dos primeiros parágrafos das Catilinarias de Cicerón. Dos autores gregos que tinha estudado por meio de traduções: uma coisa eram os idiomas estrangeiros e outra diferente os alfabetos estranhos. Mas lembrava da lenda da Hidra, o monstro mitológico de sete cabeças ou mais.

Que ao se cortar uma cabeça, outras duas cresciam no lugar. O mesmo acontecia com o narcotráfico. O dinheiro corria em quantidades absurdas, que superavam a mera cobiça. Dinheiro mais que suficiente para comprar tudo que o homem comum – a maioria deles era assim – pudesse desejar.

Com um só golpe podiam ganhar o suficiente para viver rodeado de luxo o resto da vida, e não faltavam homens dispostos a arriscar sua vida nesse golpe único. E o homem disposto a jogar a vida num jogo de dados, que valor atribuía à vida alheia? A resposta era evidente. Esses homens matavam com a brutalidade e falta de consciência de um menino que pisa num formigueiro. Matavam os competidores para que não houvesse competição. Matavam a famílias desses porque sabiam que, em caso contrário, cinco ou dez ou vinte anos depois teriam que enfrentar à fúria vingadora de um filho. Além disso, igual as relações entre os países armados com armas nucleares, punham em prática o princípio da dissuasão. Um homem disposto a jogar vida vacilaria antes de jogar as de seus filhos?

Tinham cortado duas cabeças da Hidra. Em três meses, o Governo apresentaria sua alegação por escrito de acusação para o tribunal federal do distrito. O julgamento duraria uma semana. A defesa tentaria salvá-los; os federais ganhariam o caso se apresentassem boas provas. A defesa tentaria desacreditar os membros da guarda costeira, embora não fosse muito difícil adivinhar a estratégia do promotor: os jurados veriam o capitão Wegener como um herói; e os dois acusados como a escória da sociedade.

A tática provável da defesa seria inútil, quase com certeza. O juiz talvez fosse brando em sua sentença, mas no Sul se esperava que os juízes federais tivessem noções de justiça simples e claras.

Sabendo as acusações, se passaria à etapa de sentença, que também se aconteceria no Sul, onde as pessoas liam a Bíblia. Os jurados conheceriam os agravantes: massacre de uma família, provável estupro, assassinato de crianças, tráfico de drogas.

Mas havia um milhão de dólares a bordo, diria a defesa. A vítima principal era um narcotraficante.

Isso não está provado, replicaria o promotor, e perguntaria pesaroso: e o que nos dize em da esposa e dos filhos? Em silêncio sereno, quase reverente, os membros do jure escutariam as instruções do juiz o mesmo que tinha explicado a eles como saber se os acusados eram culpados. Deliberariam durante um tempo razoável, fingiriam estudar de maneira exaustiva uma decisão que tinham tomado dias antes e apresentariam sua recomendação: pena morte. E os sentenciados não mais meros acusados – voltariam para a prisão federal. A apelação seria automática, mas dificilmente haveria uma revogação da sentença, só se o juiz tivesse cometido enganos processuais graves, o qual seria improvável com vista no caráter físico das provas. As sucessivas apelações se prolongariam durante anos. Haveria objeções de direitos humanos à sentença – Murray não as compartilhava, mas as respeitava – e, cedo ou tarde, o caso chegaria ao Supremo Tribunal. Mas os “supremos”, como a Polícia os denominava, sabiam que, apesar de alguma jurisprudência contra a pena e morte, a Constituição contemplava a pena capital e a vontade do Povo, expressa através do Congresso, ordenava-a para certos crimes relacionados com o tráfico de drogas, como a decisão majoritária o afirmava em linguagem seca e concisa. Por conseguinte, dentro de uns cinco anos os dois homens seriam presos a cadeira elétrica e se acionaria a chave elétrica.

E Murray ficaria satisfeito. Apesar de sua experiência e sua cultura, seguia era um policial. Quando se formou na Academia do FBI, acreditava que ele e seus companheiros – a maioria já se aposentada –

mudariam o mundo. As estatísticas o confirmavam, mas os números eram muito diretos, remotos, desumanos. Murray via a guerra contra o crime como uma série de pequenas batalhas. As vítimas de roubo, sequestro ou homicídio eram indivíduos a quem os sacerdotes-guerreros do FBI deviam salvar ou vingar. Seu ponto de vista era produto de sua formação católica, e o FBI seguia sendo um bastião do catolicismo irlandês nos Estados Unidos. Não tinha mudado o mundo, embora houvesse salvo vidas e vingado mortes. Haveria novos criminosos, como sempre, mas ganhou todas suas batalhas e estava convencido de que, em última instância, o saldo era positivo, favorável à sociedade. Com o mesmo ardor com que acreditava em Deus, estava seguro de que cada criminoso apanhado significava uma vida salva.

Nesse caso, tinha conseguido mais uma vez.

Mas ao negócio da droga não o afetava absolutamente. Em seu novo posto tinha que vislumbrar mais à frente que o horizonte imediato, algo que os agentes subordinados só faziam enquanto bebiam uma drinque no bar depois do trabalho. Esses dois assassinos tinham estavam fora de circulação, mas Murray sabia que a Hidra tinha já duas ou mais cabeças novas. Seu erro era não pensar no mito até as últimas consequências, como os outros faziam.

Hércules tinha modificado suas táticas e com isso tinha destruído à Hidra. Um dos membros de seu escritório o lembrara disso. Murray precisava aprender que nos níveis mais altos e decisórios da hierarquia, quando se ampliava o panorama, as pessoas mudavam seus pontos de vista pouco a pouco.

Apesar da falta de ar, Cortez gostava da vista nessa área de montanha. Seu novo patrão conhecia as atitudes superficiais dos capitalistas.

Sentava-se de costas ao vento, de tal maneira que seu rosto era difícil de escrutinar para quem o olhava do outro lado do grande escritório. Falava com a voz suave e serena de um capitalista. Seus gestos eram mínimos, suas palavras, geralmente mansas. Na realidade era um homem selvagem, e, apesar de sua formação, era menos instruído do que acreditava, mas justamente por isso tinha contratado a Félix. Por isso, o ex-coronel treinado na central de Moscou ajustou seu olhar ao verde panorama do vale e deixou que Escobedo demonstrasse seu poder. Tinha jogado o mesmo jogo com homens muito mais perigosos.

– E como foi?

– Recrutei mais duas pessoas – informou Cortez – . Um nos dará informação em troca de dinheiro, o outro, por outros motivos. Estudei outras duas possibilidades, mas tive que descartá-las.

– Quem são eles? Refiro-me aos que serviram.

– Não. – Cortez meneou a cabeça – . Por segurança, não posso revelar a identidade de meus agentes. É uma norma de segurança. Sua organização está infiltrada por informantes, e os falatórios diminuiriam nossa capacidade para reunir as informações que você quer. Chefe – adicionou com seu tom mais eloquente. Lidarei com estes agentes assim –. Chefe, você me contratou devido a meus conhecimentos e experiência. Agora me permita fazer bem o meu trabalho. Se quiser comprovar a qualidade de minhas fontes, espere minhas informações. Sei que não gosta, e é normal. Se Castro tivesse me feito essa pergunta, a minha resposta seria a mesma. È assim que deve ser.

Escobedo respondeu com um grunhido de admiração. Gostava der ser comparado com um chefe de Estado, além de tudo com um que durante várias décadas tinha desafiado aos ianques com êxito total.

Félix sabia, sem necessidade de olhar, que seu rosto era todo satisfação. Sua resposta era uma mentira dupla. Castro jamais tinha perguntado para ele e nem ele nem ninguém na ilha teria ousado negar-se a responder uma pergunta do ditador.

– Bom o que soube até agora?

– Os americanos preparam algo grande – respondeu com voz neutra, quase irônica. Tinha que justificar seu salário – . O Governo dos Estados Unidos está elaborando um programa destinado a melhorar a interceptação. Meus agentes ainda não me deram dados concretos, mas o que me disseram, tem uma grande probabilidade de ser isso e vem várias fontes.

A segunda fonte confirma à primeira. – Escobedo era incapaz de apreciar a importância disto.

Qualquer Serviço de Inteligência do mundo o teria felicitado por obter duas fontes complementares em uma missão.

– Quanto nos custará essa informações?

Dinheiro. Não sabe pensar em outra coisa. Cortez reprimiu um suspiro. Por alguma razão se contratava a um profissional para montar seu serviço de segurança. Só um idiota acredita que o dinheiro o compra tudo. Claro que, em ocasiões, o dinheiro é útil. Escobedo não sabia que pagava a seus empregados e traidores americanos mais que a rede comunista a todos seus agentes.

– Se tiver que gastar muito dinheiro, é melhor dar tudo a um alto funcionário em lugar de distribuí-

lo entre os subordinados. Duzentos e cinquenta mil dólares bastarão para obter a informação que procuramos. – Certamente Cortez ficaria com a maior parte desse dinheiro para seus próprios gastos.

– Só isso? – perguntou Escobedo, atônito – . Mas se pagamos muito mais só...

– Porque seu pessoal não tem critério, Chefe. Pagam de acordo com o posto que ocupa a fonte e não de acordo com o que essa fonte sabe. Você não adotou uma estratégia à frente de seus inimigos. A informação adequada lhe permitirá usar seu dinheiro com maior eficiência. Poderá elaborar uma estratégia, não só táticas. – Era o arremate perfeito.

– Sim! Devemos lhes ensinar que têm que nos respeitar!

Félix pensou, e não pela primeira vez, que era melhor fugir com o dinheiro... talvez esconder-se na Espanha... ou possivelmente eliminar a esse idiota, com suas manias de grandeza. Era caso para se pensar..., mais a frente. Apesar dessas manias, Escobedo era ardiloso e de reações rápidas. A diferença entre ele e seus patrões anteriores, era que não temia tomar uma decisão e pô-la em prática. Não existia uma burocracia: as mensagens chegavam diretamente a seu destino, sem passar por intermediários. Nisso o Chefe era digno de respeito. Sabia tomar decisões. A KGB, os Serviços de Inteligência americanas, talvez tivessem sido assim algum dia. Mas já não eram mais.

– Uma semana e nada mais – disse Ritter ao assessor de segurança nacional.

– É bom saber que a coisa progride – replicou o almirante – . Agora, o que?

– Diga-me você. Só para que tudo fique claro – disse o SDO – . A ideia original foi sua – lhe recordou.

– Bom, convenci ao diretor Jacobs – disse, satisfeito com sua própria astúcia –. Quando estivermos preparados para acionar, ou seja, para apertar o botão, Jacobs irá a Colômbia conferenciar com o ministro da Justiça. O embaixador diz que o Governo da Colômbia aceitará qualquer plano. Estão mais se desesperados que nós e...

– Mas não haverá...

– Não, Bob, não diremos nada ao embaixador. Fique tranquilo. – Não sou o idiota que vocês acreditam, disse com o olhar –. Se Jacobs os convencer, enviaremos a nossa gente o mais breve possível.

Quero fazer uma mudança.

– Qual?

– A operação aérea. Segundo seu relatório, os exercícios de rastreamento já descobriram alguns alvos.

– Sim, duas ou três por semana – assentiu Ritter.

– Se já contarmos com os meios para atacá-los, por que não pomos em prática essa parte da operação? Inclusive nos ajudaria a identificar as zonas para onde queremos enviar nossa gente, obter informação sobre o terreno, enfim, muitas vantagens.

– Prefiro esperar mais um pouco – disse Ritter, cauteloso.

– Por que? Se identificarmos as zonas mais frequentes, depois não terão que deslocar-se tanto. Este é o risco maior, não? Com este método obtemos informação que nos permite estender a operação em todo sentido.

O problema de Cutter é que o filho de puta sabe o suficiente do tema para ser perigoso, pensou Ritter. Pior ainda, tinha o poder necessário para impor sua vontade... lembrava a história recente da Direção de Operações. Ele mesmo o havia dito fazia uns meses: “As melhores operações dos últimos anos se originaram no escritório de Greer...”. referia-se a Jack Ryan, a estrela ascendente e provável titular próximo da SDI. Uma pena.

Ritter sentia grande estima pelo diretor de Inteligência, mas não tanta por seu protegido. Contudo, era inegável que os dois últimos grandes êxitos da CIA se originaram na Direção “equivocada”, e já era hora de que Operações reafirmasse sua primazia. Ritter se perguntou se Cutter o estava provocando, mas acabou por descartar a ideia. O almirante não tinha experiência na luta interna. Claro que não demoraria para adquiri-la.

– A precipitação é um dos enganos mais comuns nas operações sobre o terreno – disse o SDO sem convicção.

– Mas não é esse o caso. Em essência, trata-se de duas operações separadas, não? As forças de ar operam com independência das de terra. Compreendo que é menos efetiva, mas funcionará. É uma oportunidade para observar na prática o aspecto mais fácil do plano antes de iniciar a fase verdadeiramente perigosa. E além disso, podemos ir ao Governo colombiano com algumas prova tangíveis na mão.

Ainda não é o momento, clamava a voz no cérebro do Ritter, mas sua expressão era indecisa.

– Quer que eu leve o caso ao Presidente? – perguntou Cutter.

– Onde ele está hoje? Na Califórnia?

– Numa excursão política. Não queria incomodá-lo com um problema como este, mas...

Que situação tão estranha, pensou o SDO. Tinha subestimado a astúcia de Cutter, o qual, por sua parte, superestimava-a constantemente.

– Está bem, faremos isso. OLHO DE ÁGUIA será posta em marcha depois de amanhã, o tempo necessário para acionar todo mundo.

– E SHOWBOAT?

– Precisam de uma semana a mais para terminar a preparação e instrução das equipes. Quatro dias para chegar ao Panamá, reunir-se com as forças do ar, verificar os sistemas de comunicações, etcétera.

Cutter sorriu e tomou sua xícara de café. Era hora de cuidar das feridas do ânimo.

– Que bom é trabalhar com profissionais, Por Deus. Pense bem, Bob. Teremos duas semanas para interrogar a quem cair na rede aérea, e as forças terrestres terão uma ideia muito mais acertada de como operar no terreno.

Filho de puta, já conseguiu o que queria por que joga sal na ferida?, absteve-se de dizer Ritter. E se tivesse aceitado o blefe de Cutter, o que teria dito o Presidente? O SDO estava numa posição vulnerável.

Tinha feito queixas frequentes porque a CIA não realizava uma operação séria desde de... quanto tempo?

Quinze anos? Bom, isso dependia do significado da palavra “sério”. Agora lhe davam a oportunidade, e o que tinha sido uma linda frase, para repetir nas reuniões dos altos funcionários do Governo enquanto tomavam café, converteu-se em uma ameaçadora realidade.

Essas operações eram perigosas. Eram para os que davam as ordens, para os que as executavam e para os Governos que as patrocinavam. Havia dito a Cutter, mas o assessor de segurança nacional, como muitos outros funcionários, tinha sucumbido sob o feitiço das operações no terreno.

Os profissionais o chamavam síndrome de Missão Impossível.

Qualquer um podia confundir a realidade com uma série de televisão, e em todas as áreas do Governo os funcionários escutavam só o que queriam escutar e descartavam o resto. Claro que já era muito tarde para as advertências. Há anos vinha insistindo que a missão era possível, e, em certas ocasiões, um complemento útil da política externa.

Também repetia com frequência que a Diretoria a seu comando era capaz de realizá-la. Ninguém tinha levado em conta a necessidade de recrutar efetivos do Exército e a da Força Aérea. Em outros tempos, a CIA contava com forças de terra e de ar próprias... e se tudo fosse bem desta vez, possivelmente voltaria a ter. Ritter estava convencido de que a CIA e o país o necessitavam disso, e esta era a sonhada oportunidade. Se para isso tinha que tratar com poderosos como Cutter, pagaria esse preço.

– Muito bem, porei a operação em marcha.

– O direi ao chefe. Quando terá os primeiros resultados?

– Impossível saber.

– É melhor que seja antes das eleições – sugeriu Cutter com um sorriso.

– Sim, claro. – como sempre, a política. Mas isso era o que mantinha tudo em movimento.

A 1ª Esquadrilha Aérea de Operações Especiais tinha sua base em Hurlburt Field, no extremo ocidental da Base Aérea Eglin, na Florida. Como seu nome indicava, era uma unidade especial. Esse adjetivo tem vários significados. O termo “Armas especiais” está costumasse referir, em geral, à armas nucleares, nesse caso, emprega-se o termo em atenção àqueles que relacionam “nuclear” com nuvens em forma de cogumelo e centenas de milhares de mortes; como se uma mudança de palavras significasse uma mudança de fato, o que é uma característica comum a todos os Governos do mundo. “Operações especiais” significa algo muito diferente. Em geral, refere-se ao assunto clandestino de introduzir pessoas em lugares onde não deveriam estar e lhes dar apoio enquanto permanecem ali e tirá-los quando terminam de fazer o que não deveriam fazer. A 1ª Esquadrilha Aérea tinha essa tarefa, entre outras.

O coronel Paul Johns – chamado PJ – não estava ciente de todas as atividades da esquadrilha. Esta era uma unidade bem estranha, onde a autoridade nem sempre coincidia com o grau hierárquico, a tropa da base prestavam serviços aos aviões e a suas tripulações sem saber por que, os aparelhos aterrissavam e decolavam a qualquer hora do dia ou da noite e se desencorajavam a curiosidade sobre os movimentos dos outros. A esquadrilha estava dividida em feudos individuais que interatuavam quando era necessário.

O feudo de PJ compreendia meia dúzia de helicópteros MH-53J “Pave Low III”. Johns era um veterano da Força Aérea, e a maior parte de sua carreira tinha transcorrido no ar. Isto lhe permitia levar uma vida emocionante e plena de uma vez que reduzia a zero suas probabilidades de ser promovido a brigadeiro.

Mas isso não érea importante para ele. Ingressou na Força Aérea porque lhe fascinava voar, coisa que os brigadeiros fazem com pouca frequência. Ele tinha feito a sua parte e a Força Aérea tinha feito a sua, que não é tão comum como parece. Desde o início, Johns tinha descartado os aparelhos de asas rígidas, essas máquinas velozes que lançavam bombas ou derrubavam outros aviões. Ele queria bem às pessoas, tinha iniciado sua carreira com os Gigantes Verdes, os helicópteros de resgate HH-3 que tinham adquirido fama no Vietnam, e logo foi promovido aos supergigantes HH-53, do Serviço de Resgate Aéreo. Pouco depois de ter sido promovido a capitão, participou da incursão ao Song Tay como copiloto do avião que caiu de propósito sobre um campo de prisioneiros trinta quilômetros ao oeste de Hanói para ajudar no resgate de soldados que, como verificaram que já não se encontrava ali. Esse era um dos poucos atos falhos de sua vida. O coronel Johns não estava acostumado ao fracasso.

O homem que fosse derrubado podia ter a certeza de que PJ ia salvá-lo. Ocupava o terceiro lugar entre os melhores pilotos de resgate da história das Forças Aéreas. Graças a ele, o atual chefe de Estado Maior e outros dois brigadeiros do ar se salvaram de uma estadia nas prisões militares norte-vietnamitas.

Por isso, era difícil a ocasião em que tivesse que pagar um drinque. Os mesmos brigadeiro lhe faziam continência, conforme exigia a tradição quando se recebe a Medalha de Honra.

Como muitos heróis, seu aspecto era bem normal. Era um homem magro, de apenas metro sessenta e cinco, idade mediana, e os óculos de leitura lhe davam certo ar de empregado de Banco. Dificilmente levantava sua voz. Quando tinha tempo, cortava a grama no seu jardim, e se não, sua esposa o fazia.

Tinha um carro barato que tinha escolhido porque ser econômico. Seu filho estudava engenharia no Instituto Tecnológico da Geórgia e sua filha tinha ganhou uma bolsa para a Universidade de Princeton.

Ele e sua esposa viviam numa casa muito confortável dentro da base aérea enquanto esperavam a reforma, que ainda faltavam uns anos.

Mas nesse momento não pensava em nada disso. Sentado no assento esquerdo do helicóptero “Pave Low”, observava um capitão, um jovem brilhante que, segundo as previsões, em pouco tempo passaria a comandar uma esquadrilha. O helicóptero de vários milhões de dólares roçava as copas das árvores a pouco menos de duzentos nós por hora. Era uma noite escura e nublada na Florida, e esse setor da base Eglin não tinha de refletores, mas não tinha importância. Os dois levavam capacetes com óculos para luz de baixa intensidade, bem parecidos com o que Darth Vader usava em guerra nas estrelas. Mas estes eram de verdade e formavam um quadro verde e cinza e enevoada na escuridão. PJ movia a cabeça constantemente e se assegurava de que o capitão fizesse o mesmo. Um dos perigos do aparelho de visão noturna era que a percepção de profundidade – questão de vida ou morte quando se voava a baixa altitude

– era alterada pelo panorama artificial gerado pelos óculos. Quase trinta por cento das perdas sofridas pelo esquadrão se deviam a esse perigo em particular, mas os magos da tecnologia ainda não tinham descoberto uma solução. O índice de perdas dos “Pave Low”, tanto nas operações como nos voos de instrução, era relativamente alto. Esse era o ônus da missão para qual adestravam, e a única solução era treinar mais e mais.

A hélice de seis pás girava sobre suas cabeças, impulsionada por dois motores a turbinados. O

“Pave Low” era um dos maiores helicópteros, com uma dotação de combate de seis homens e capacidade para transportar mais de quarenta com equipamento de combate. Com seu focinho largo, onde transportava radar, equipamento infravermelha e vários outros instrumentos, parecia um inseto de outro planeta. junto às portas, de cada lado da armação, havia suportes para pequenos canhões de repetição; havia um terceiro na porta de carga traseira, porque sua missão principal – infiltração e apoio de fogos nas operações especiais – era muito perigosa, assim como sua função secundária de procurar e resgatar pilotos abatidos em combate. Esse era o objeto do exercício dessa noite. Durante seu serviço no Sudeste asiático, PJ trabalhou com bombardeiros de ataque A-1 “Skyraider”, os últimos aviões de ataque com motor a pistão, chamados SPAD ou “Sandy”. Ninguém nunca tinha determinado quem serviria de apoio para eles. Como apoio adicional, levavam lança-granadas e lança-chamas, equipe anti-infravermelho... e uma tripulação de malucos.

Johns sorriu para si. Isso e que era voar com seriedade, coisa que fazia cada vez com menos frequência. Podiam usar um sistema computadorizado de radar e o piloto automático que permitia ao aparelho esquivar dos obstáculos, mas nessa noite simulavam uma falha no sistema. Com ou sem o piloto automático, o responsável pela máquina era o piloto, e Willis esforçava-se por manter o helicóptero a baixa altitude sobre as árvores. De vez em quando, Johns reprimia um gesto de temor quando parecia que um ramo muito alto ia açoitar o piso do aparelho, mas o capitão Willis era um jovem prudente e não voava a altitudes excessivamente baixas. Além disso, PJ sabia por experiência que os ramos mais altos eram finos e frágeis, incapazes de causar mais dano que um arranhão na pintura.

– Distância? – perguntou Willis.

O coronel Johns estudou a mesa de navegação. Podia escolher entre o Doppler, o de satélite, o de inércia e a antiquada mesa que ainda usará e nela ensinava a seus subordinados.

– Três quilômetros, zero e quatro oito.

– Entendido. – Willis reduziu a velocidade.

Nessa missão de instrução, um verdadeiro piloto de combate se ofereceu como voluntário para que o largassem na selva, onde outro helicóptero tinha soltado um paraquedas sobre uma árvore para simular a queda de um piloto, que ativou um autêntico transmissor de sinais. Um dos novos recursos em teste era o tecido do paraquedas tratado com um produto fluorescente à luz ultravioleta. A tarefa de Johns como copiloto era dirigir um laser UV de baixa potência em busca do sinal de retorno. O autor da ideia merecia uma medalha, pensou PJ. Em todas as missões de resgate, a parte mais demorada e aterradora era a de descobrir à vítima, porque o inimigo em terra, também andava de tocaia, escutava o ruído da hélice e decidia se valeria a pena derrubar dois aparelhos num só dia... Ganhou sua Medalha de Honra numa missão sobre o Laos, quando a tripulação de um F-105 “Wild Weasel” atraiu um pelotão de soldados norte-vietnamitas. Apesar do apoio agressivo de um “Sandy”, os pilotos derrubados não se atreviam a revelar sua posição. Mas Johns resolveu não voltar com as mãos vazias e seu “Gigante” tinha recebido mais de duzentos impactos em uma forte rajada de tiros antes de partir com os dois tripulantes cansados.

Às vezes, Johns se perguntava se teria a coragem – a loucura– suficiente para repetir a façanha.

– Paraquedas às duas.

– Batata Lima a Raio-x dois e seis, vejo seu paraquedas. Pode marcar sua posição?

– Afirmativo, lanço fumaça, lançando fumaça verde.

A vítima obedecia as normas ao indicar a cor da fumaça, mas na escuridão dava o mesmo. Ao mesmo tempo, o calor do artefato pirotécnico era como um farol na tela do infravermelhos, e o homem era visível.

– Está vendo ele?

– Sim – disse Willis, e se comunicou com o chefe da tripulação – : Atenção, vítima à vista.

– Preparados, senhor.

– O engenheiro de voo, sargento major Buck Zimmer – antigo camarada de guerra do coronel –

ativou a manivela do controle. Do extremo do cabo de aço pendia um artefato de aço chamado penetrador. Tinha peso suficiente para atravessar a folhagem de qualquer árvore e se abria como as pétalas de uma flor para que a vítima se sentasse nele e fosse levantado entre os ramos. Essa experiência, por estranho que parecesse, ainda não tinha matado ninguém. Se a vítima estava ferida, o sargento major Zimmer ou um enfermeiro descia, prendia o homem no penetrador e subia com ele. Em certas ocasiões era necessário procurar à vítima. Inclusive sob fogo inimigo. Por isso, os pilotos de resgate tratavam seus tripulantes com grande respeito. Não há nada mais aterrador para um aviador que estar em terra sob fogo.

Mas não era o caso. Em épocas de paz se aplicavam as normas de segurança, e o resgate era feito numa clareira da selva. Zimmer fez descer o penetrador. A vítima desdobrou as pétalas, sentou-se numa delas e agarrou com força: sabia o que lhe esperava. O engenheiro de voo levantou um pouco o cabo, assegurou-se de que a vítima estivesse bem presa e notificou à tripulação.

Na cabine de voo, o capitão Willis acelerou a fundo e subiu. Em quinze segundos, o piloto

“resgatado” se encontrava a cem metros do chão, preso num cabo de aço e se perguntando por que diabos tinha feito a idiotice de se oferecer-se voluntário para esse exercício. Cinco segundos depois, o forte braço do sargento major Zimmer o ajudava a subir a bordo.

– Resgate concluído – disse.

O capitão Willis apontou o nariz para o chão. elevou-se em excesso, e, para compensar, queria demonstrar ao coronel Johns que era capaz de procurar rapidamente a segurança das árvores. Conseguiu, mas sabia que os olhos de seu chefe estavam em sua nuca. Tinha cometido um erro. E Johns não tolerava os erros. As pessoas morriam por causa dos erros, repetia constantemente, e ele estava farto de ver gente morta.

– Pilota por um momento? – perguntou Willis.

– Copiloto no comando – disse Johns. Tomou o controle e desceu um pouco menos que um metro–

. Não se suba tão quando elevar à vítima. Pode haver mísseis

SAM lá abaixo.

– De noite é lógico supor que há metralhadoras, e não mísseis – disse Willis. Em um certo sentido tinha razão. Era uma decisão difícil. Sabia qual seria a resposta.

– As armas de baixo calibre não nos fazem mal. Mas de grande calibre são tão perigosas como os SAM. A próxima vez, não se afaste tanto de terra, capitão.

– Entendido, senhor.

– Apesar disso, não esteve mau. Dói o braço?

– Sim, senhor.

– É por causa das luvas. Se não forem do tamanho exato, a gente agarra os controles com muita força, isso se transmite à braço e o antebraço. O braço se volta rígido e torpe para dirigir os controles.

Consiga um par de luvas. Minha esposa me faz sob medida. Às vezes terá que sair sem o copiloto, e estas missões são muito difíceis para ter problemas desnecessários.

– Sim, senhor.

– E, antes de que me esqueça, foi aprovado no exame.

Não era necessário agradecer ao coronel, de maneira que Willis flexionou os dedos uns minutos e pediu o controle do aparelho.

– Copiloto entrega o comando – disse PJ – . Já que estamos...

– Senhor?

– Em uma semana ou dois saio em missão especial. Te interessa?

– Do que se trata?

– Supõe-se que você não deve perguntar isso – repôs o coronel– . ACS [13] por pouco tempo. Não é muito longe. Iremos neste aparelho. Digamos que é uma operação especial.

– De acordo, conte comigo senhor – disse Willis – . Quem está autorizado A...?

– Francamente, ninguém. Vêm Zimmer, Childs, Bean e uma equipe de apoio. Se nos perguntarem, diremos que estamos ACS de instrução na costa da Califórnia. Não precisa saber de mais nada por agora.

Willis levantou as sobrancelhas. Zimmer conhecia PJ da época do Gigante Verde na Tailândia, era um dos poucos suboficiais com experiência em combate que estava no serviço ativo. O suboficial Bean era o melhor metralhador do esquadrão, seguido por Childs. Estariam ACS, mas de verdade e não em instrução. Para Willis, significava ser copiloto durante um tempo mais, mas não se importava. Sempre era um prazer voar com o campeão de Resgates. Daí vinha a chave especial do coronel, C-SAR, que ele pronunciava “César”.

Chávez e Julio Vega olharam-se nos olhos: Meu Deus!

– Perguntas? – disse o instrutor.

– Sim, senhor – disse um operador de rádio– . O que acontece depois que enviarmos a mensagem?

– O avião será interceptado.

– Farão de verdade senhor?

– Depende deles. Se não obedecerem serão derribados. Não posso dizer mais. Cavalheiros, tudo o que acabam de escutar aqui é Top Secret. Ninguém, insisto, ninguém!, sabe absolutamente de nada. Se alguém que não deve se inteirar disto, vai ter mortos e feridos. O objetivo desta missão é impedir a entrada de drogas nos Estados Unidos. vai ser duro.

– Já era hora, que acontecer! – disse uma voz.

– Bom, já sabem. Repito, cavalheiros, que a missão é perigosa. Daremos tempo para que vocês reflitam, quem quiser, pode se sair. Nos lidaremos com gente muito ruim. Claro que – fez uma pausa e sorriu– entre nós também há tipos bem maus.

– Eu que o diga! – disse outra voz.

– Têm toda a noite para pensar. Saímos amanhã às dezoito, e então ninguém poderá voltar atrás.

Entendido? Bem, isso é tudo por agora.

– A... tencão! – comandou o capitão Ramírez, e todos ficaram de pé com um salto quando o instrutor saía. Era a vez do capitão falar – : Bem, cavalheiros, já estão inteirados. Pensem muito bem no assunto e com tranquilidade. Quero que venham... droga, preciso de todos, mas os que não se sentirem cômodos, melhor que não venham. Alguma pergunta? – Não houve – . Bem. Todos sabemos o que é a droga, quem não tem um amigo, ou um parente que seja vítima das drogas... Mas agora podemos dar o troco. Estes filhos da puta querem foder nosso país, mas agora é o momento em nós daremos uma pequena lição neles. Pensem e quem tiver algum problema, que me procure imediatamente. Se alguém quer sair, não tem problema.

Seu tom e a expressão de seu rosto diziam exatamente o contrário. Se alguém saísse, seu superior o consideraria indigno de se chamar homem, o que seria duplamente desonroso porque Ramírez tinha estado sempre à frente de seus soldados, sacrificou-se e esforçado com eles em cada etapa da instrução.

Girou sobre seus calcanhares e saiu.

– Droga! – exclamou Chávez depois de uma pausa – . Me parecia que tinha algo estranho, mas...

merda.

– Meu amigo morreu de overdose – disse Veja – . O estava usando para recreação, não era um viciado, mas lhe venderam péssima mercadoria. Morri de medo e nunca mais voltei a provar essa merda.

Tomás era um amigo de verdade, um irmão. Se eu pudesse encontrar o filho da puta que vendeu a droga para ele, eu gostaria de acabar com ele.

Chávez assentiu com toda a seriedade de seus vinte e tantos anos. As gangues de sua infância eram implacáveis em suas brigas, mas aquilo tinha sido um jogo de garotos comparado com isso. As gangues disputavam para saber quem era o rei da quadra. Agora disputavam os mercados. Havia muito dinheiro em jogo, mais que suficiente para matar por ele. Era nisso que tinha se transformado o seu bairro, de zona de pobreza em zona de combate. Alguns não se atreviam a sair à rua por medo das drogas e das armas. As balas perdidas entravam pelas janelas, matavam às pessoas sentadas na frente de seus televisores. A Polícia não se atrevia patrulhar a zona, a menos que tivessem o efetivo e equipamento de um exército...

tudo por causa da droga.

E os culpados viviam no luxo, a dois mil quilômetros dali...

Chávez não tinha a menor noção de como tinham sido manipulados ele e seus camaradas, incluindo o capitão Ramírez. Todos eram soldados que treinavam constantemente para proteger seu país de seus inimigos, produtos de um sistema que absorvia sua juventude e entusiasmo para lhe imprimir uma orientação determinada; que, em premio ao esforço, lhes dava amor próprio e realização pessoal; que orientava sua energia ilimitada para fins precisos e, em troca disso, só lhes pedia lealdade. Por esta razão que a maioria dos suboficiais provinha das camadas mais pobres da sociedade, todos tinham aprendido que o fato de pertencer às minorias étnicas não tinha importância, porque o Exército premiava a excelência sem ter em conta a cor da pele nem o sotaque. Todos eles conheciam de perto os problemas sociais ocasionados pela droga e pertenciam a uma subcultura que não a admitia: a expulsão dos drogados das fileiras militares tinha sido um processo doloroso mas eficaz. Para os que ficaram no Exército, a droga era tabu. Eles eram os vencedores de seus bairros e um exemplo para os outros. Eram os audazes, os valentes, os graduados das ruas selvagens para os quais os obstáculos eram desafios a superar e que, por instinto, ajudavam a outros a superar-se.

Todos tinham sonhado com uma missão como a que era lhes oferecida. Era a oportunidade de proteger o país, mas também os bairros de onde eles tinham escapado.

Escolhidos entre os melhores combatentes das unidades mais exigentes do Exército, treinados ao máximo, para eles, deixar a missão equivalia a despojar-se de sua própria virilidade. Cada um tinha sonhado alguma vez matar um traficante. E agora, o Exército lhes dava a oportunidade de fazer algo melhor que isso. E é claro que fariam.

– Filhos da puta, vamos arrebentar com eles! – disse o operador de rádio – . Vamos colocar um foguete no rabo deles! Tem direito a permanecer morto, filho da puta!

– Isso mesmo – assentiu Vega – . Não é nada mal. Escutem só quem nos garante se não vamos pegar ao barões da droga nos seus próprios palácios, caramba. Acha que podemos com eles, Ding?

– Está-me sacaneando, Julio? Acha que seus guardas são soldados? Não são infelizes com metralhadoras nem sequer sabem como limpá-las. É melhor perguntar se eles poderão conosco. Contra os que tem naquele país pode ser, mas contra nós? Não! Nem pensar. Me aproximo rastejando dos sentinelas sem problemas e depois vocês vão fazer a parte fácil.

– Outro ninja de merda – disse um fuzileiro em tom de zombaria.

Ding tirou uma de suas estrelas ninjas e, sem esforço aparente, cravou-a no portal, a cinco metros.

– Cuide sua boca cara – riu.

– Você vai me ensinar a usá-la, Ding? – perguntou o fuzileiro.

A ninguém se interessava com os perigos da missão, só as oportunidades.

Chamavam-no Potro. Era capitão da Força Aérea dos Estados Unidos, seu nome verdadeiro era Jeff Winters, mas como todo piloto de combate devia ter um nome especial, como um jargão. O seu tinha nascido de uma festa no Colorado – onde ele frequentava à Academia da Força Aérea – na qual ele caiu de um cavalo. O pobre animal era tão manso que quase morreu do susto. O grande consumo de cerveja tinha contribuído muito para sua queda, e em meio as risadas de seus companheiros, um dos quais – que agora pilotava aviões de pequenos a hélice, lembrou Winters com um sorriso irônico – o batizou imediatamente.

Esse amigo, disse Winters às estrelas, era bom cavaleiro, mas pilotava F-15-Charlie.

O qual era exatamente o propósito de sua missão.

Winters era um homem baixo e jovem. “Aos vinte e sete anos tinha setecentas horas de voo no avião de combate fabricado por McDonnell-Douglas”.

Assim como alguns homens vêm ao mundo para jogar beisebol, cantar ou pilotar carros de corrida,

“Potro” Winters tinha nascido para pilotar aviões de combate. Tinha o olhar de um lince, a coordenação muscular de um pianista somada a de um trapezista e uma qualidade muito pouco frequente, que em sua comunidade fechada chamavam consciência do entorno. Winters sempre sabia o que acontecia a seu redor. Seu avião era uma parte tão natural de seu corpo como os músculos de seu braço. Transmitia seus desejos ao avião e o F-15C obedecia imediatamente, conforme à imagem formada na mente do piloto.

Onde sua mente ia, a máquina lhe seguia.

Nesse momento orbitava sobre o golfo do México, a trezentos quilômetros da costa da Florida.

Quarenta minutos antes tinha decolado da base aérea de Eglin, tinha abastecido num avião tanque KC-135, e agora tinha JP-5 para cinco horas de voo se conservasse a velocidade de cruzeiro, como era sua intenção. Levava depósitos adicionais de combustível presos nos flancos da fuselagem. Em geral estava acostumado a levar também mísseis – o F-15 tem capacidade para oito – mas para esta missão só transportava munições para seu canhão giratório de 20 milímetros. Nunca voava sem elas porque serviam para equilibrar o peso a bordo do avião.

Voava em círculos, com os motores em velocidade de cruzeiro. Os olhos negros e penetrantes de Potro varriam constantemente o céu em busca de luzes móveis de aviões entre as estrelas, mas não tinha nenhuma. Não se sentia aborrecido absolutamente. Pelo contrário, adorava que os contribuintes de seu país lhe pagassem mais de trinta mil dólares anuais para dedicar-se ao que para ele constituía o máximo prazer. Mas esta noite estou ganhando meu pagamento, pensou.

– Oito e três o Quebec a Dois e seis Alfa, me recebem?, cambio.

Potro apertou um botão na alavanca de controle:

– Dois e seis Alfa a Oito e três o Quebec, recebo perfeitamente, cambio. – Falavam por um canal cifrado. Esses dois aviões eram os únicos usavam esse algoritmo de codificação particular; qualquer um que conseguisse interceptar suas transmissões, só escutaria um concerto de rangidos e assobios.

– Temos um alvo no radar, coordenadas um e nove seis; distância, dois e um zero da sua posição.

Anjos dois. Curso um e zero oito. Velocidade dois e seis cinco. cambio. – A ordem estava implícita na informação. Para maior segurança, tratava-se de reduzir a conversa ao mínimo indispensável.

– Entendido. cambio e desligo.

O capitão Winters moveu a alavanca para a esquerda. Sua mente já tinha calculado o rumo e a velocidade de interceptação. O “Eagle” virou para o Sul.

Winters baixou levemente o nariz do aparelho, virou o rumo cento e oitenta graus e aumentou a potência para aumentar a velocidade. Pensava que era prejudicial para a máquina voar tão lento, mas se enganava nisso.

Encontrou com um “Beech” (Beechcraft Modelo 18)bimotor, o avião mais comum dos traficantes.

Provavelmente transportava cocaína – a maconha era muito volumosa para esse avião – o que lhe alegrou, já que se pensava que o assassino de sua mãe era um traficante de cocaína. Situou o F-15 na cauda do outro a um quilômetro de distância.

Era a oitava vez que interceptava a um transporte, mas a primeira que lhe permitiam fazer algo mais que segui-lo. Antes, nem sequer lhe tinham permitido dar aviso aos caras da Alfândega. Potro verificou o rumo que seguia o alvo – para os pilotos de combate, quem não é amigo é um alvo – e revisou seus sistemas. O transmissor direcional de rádio em seu estojo aerodinâmico no centro do aparelho se acoplou ao receptor de radar do “Beech”.

Ao realizar sua primeira comunicação, acendeu as luzes de aterrissagem diretamente sobre o pequeno avião particular. O “Beech” se lançou rápido para as ondas, seguido pelo “Eagle”. Chamou pela segunda vez, mas não obteve resposta. Correu o botão da alavanca de controle à posição de “disparo”.

Acompanhou a terceira chamada com uma descarga do canhão. O “Beech” iniciou uma série de arriscadas manobras evasivas. Evidentemente, o alvo não estava disposto a obedecer suas ordens.

Pior para ele.

Um piloto qualquer, sobressaltado pelas luzes, teria virado para evitar uma colisão, mas os traficantes não eram uns pilotos comuns. O “Beech” desceu rápido, reduziu a potência e elevou os flaps para diminuir bruscamente a velocidade. O F-15 não podia fazer o mesmo sem apagar seus motores; os traficantes estavam acostumados a recorrer a essa manobra para fugir dos aviões da DEA e aos da Guarda costeira. Mas a missão de Potro não era segui-lo. Quando o “Beech” virou para o oeste para ir a costa mexicana, o capitão Winters apagou suas luzes, aumentou a potência e subiu a mil e setecentos metros.

Executou uma volta fechada e desceu rapidamente enquanto o radar do “Eagle” varria a superfície do mar. Aí estava: rumo oeste, velocidade de oitenta e cinco nós, a poucos metros das ondas. Teria que ser corajoso para voar tão devagar e a tão baixo, pensou. Claro que isso não tinha a menor importância.

Winters acionou os freios e os flaps para descender. Verificou que o seletor seguisse em posição de

“disparo” e observou em seu tabuleiro eletrônico como o radar apontava o canhão e o mantinha fixo sobre o alvo. Teria sido mais difícil se o “Beech” tivesse aumentado a velocidade para tentar se evadir, mas no fundo dava no mesmo. Potro era muito hábil, e em seu “Eagle”, quase invencível. A quatrocentos metros do alvo, apertou o botão durante uma fração de segundo.

As balas traçantes sulcaram o céu.

Algumas erraram, mas quase todas acertaram na cabine. Não escutou o menor ruído. Só viu um breve clarão, seguido de uma onda de espuma branca fosforescente no lugar da queda.

Por um instante, Winters pensou que acabava de matar um homem, talvez dois. Não havia problema. Ninguém os sentiria falta deles.

IX

PRIMEIRO ENCONTRO

– E então?

Escobedo olhou para Larson com frieza, como um biólogo olha um rato de laboratório. Não tinha motivos para suspeitar dele, mas se sentia furioso e Larson se encontrava na frente dele. De todas formas Larson estava habituado a isso.

– Não sei, chefe.

Ernesto era bom piloto e bom aluno. Igual a seu acompanhante, Cruz. Os motores estavam quase novos, apenas duzentas horas cada um. O avião tinha seis anos, mas isso não deveria ser problema com boa manutenção. Fazia bom tempo, apenas umas nuvens altas sobre o canal de Yucatán, nada de que preocupar-se. – O piloto encolheu os ombros – . Os aviões desaparecem, chefe, e um nem sempre sabe por que.

– É meu primo! O que vou dizer lhe a sua mãe?

– Investigou nas pistas aéreas no México?

– Sim! E também em Cuba, Honduras e Nicarágua!

– Não houve pedidos de ajuda? Nem informações de aviões ou navios que operassem na zona.

– Nada – respondeu Escobedo, baixando um pouco o tom enquanto Larson, o profissional competente, enumerava as possibilidades.

– Se sofreu uma pane elétrica, terá efetuado uma aterrissagem de emergência em alguma parte, mas... é melhor não ter ilusões, chefe. Se estivessem a salvo, já se teriam se comunicado. Lamento muito, chefe. Talvez os tenhamos perdido. Não é a primeira vez que acontece algo assim, nem será a última.

Também era possível que Ernesto e Cruz tivessem modificado seu itinerário, vendido os quarenta quilos por sua conta e desaparecido com o dinheiro, mas não era muito provável. O tema da droga não tinha lugar na conversa porque Larson não tinha nada a ver com isso: era um assessor técnico que, a pedido do próprio, permanecia à margem do negócio. Escobedo confiava na honradez e a objetividade de Larson porque sempre se limitou a fazer seu trabalho e cobrar o convencionado, e além não ser tolo, conhecia o destino dos mentirosos e dos traidores.

Conversavam no luxuoso apartamento de Escobedo em Medellín, um apartamento que ocupava toda a cobertura do edifício. No andar imediatamente inferior viviam os empregados. Os ascensoristas eram empregados que sabiam a quem lhe podiam franquear o passo e a quem não. Toda a rua estava vigiada. Pelo menos, não havia perigo de que lhe roubassem as calotas do carro. Também ele perguntava que diabos tinha acontecido com Ernesto. Era só um acidente? Acontecia com frequência. Tinham o contratado como instrutor de voo porque nas operações de contrabando se perdiam muitos aviões, às vezes por motivos fúteis. Mas Larson não era idiota. Pensava nas visitas recentes, e nas últimas ordens recebidas de Langley; na Granja ensinavam aos alunos a não acreditar nas coincidências. Aparentemente estavam preparando uma grande operação, e talvez esse tinha sido o início.

Mas lhe parecia improvável. Esse tipo de operação pertencia ao passado da CIA, que era lamentável, mas certo.

– Era bom piloto? – insistiu Escobedo.

– Eu mesmo lhe ensinei, chefe. Tinha quatrocentas horas de voo, conhecimentos de mecânica e era tão hábil com o instrumental como um jovem piloto pode ser. A única coisa que me preocupava era que gostava de voar baixo.

– Ah, sim?

– Sim. Sobrevoar o mar a baixa altitude é muito perigoso, sobre tudo de noite. Pode-se se desorientar com facilidade, esquecer onde está o horizonte, e se olhar muito pelo para-brisa em lugar de concentrar-se no painel... Pilotos experientes também caem no mar. Por desgraça, voar baixo é emocionante para muitos, sobre tudo para os jovens, é uma prova de virilidade. Com o tempo, os pilotos se dão conta de que é uma tolice.

– Quer dizer que os bons pilotos são prudentes.

– Isso é exatamente o que digo a meus alunos – replicou Larson– , mas nem todos me acreditam.

Assim é em qualquer parte, pergunte aos instrutores de qualquer Força Aérea do mundo. Os pilotos jovens cometem enganos tolos devido a sua juventude e a sua falta de experiência. A prudência nasce da experiência, em geral de uma experiência perigosa. Os sobreviventes aprendem, mas não todos sobrevivem.

Escobedo o meditou durante vários segundos.

– Ernesto tinha muito amor próprio – comentou por fim, como se pronunciasse uma oração fúnebre.

– Repassarei o formulário de manutenção do aparelho – disse o piloto– . Também repassarei os relatórios meteorológicos.

– Obrigado por vir imediatamente, Sr. Larson.

– A suas ordens, chefe. Se me inteirar de algo novo, me comunicarei com o senhor.

Escobedo o acompanhou à porta e voltou para seu escritório. Cortez entrou por uma porta lateral.

– E então?

– Eu gosto do Larson – respondeu Cortez– . Diz a verdade. É orgulhoso, mas não muito.

Escobedo assentiu.

– É um mercenário, mas dos bons. – ... Como você. Cortez não reagiu ante a mensagem implícita.

– Quantos voos se perderam em total?

– Não começamos a contar a não ser dezoito meses. Depois disso, nove. Por isso contratamos Larson. Eu pensava que os acidente se deviam à falta de perícia dos pilotos e às falhas de manutenção.

Carlos demonstrou ser um bom instrutor.

– Alguma vez quis participar do negócio?

– Jamais. É um homem simples. Gosta do que faz e leva uma vida acomodada. Isso tem suas vantagens – sorriu Escobedo – . Verificou seu passado?

– Sim. Tudo está em ordem, mas...

– Mas?

– Se ele não fosse o que diz ser, tudo estaria igualmente em ordem.

Nesse momento, um homem comum diria, não se pode suspeitar de todo o mundo. Escobedo não o fez, o que era uma amostra de sua inteligência. O chefe era um conspirador experiente, sabia que devia suspeitar de todo mundo. Não era um profissional, mas tampouco um idiota.

– Parece-lhe...

– Não... Não estava nem perto do lugar de partida do voo, nem sequer sabia que ia se realizar.

Verifiquei-o. achava-se em Remará com seu amigo.

Jantaram sozinhos e se deitaram cedo. Talvez tenha sido um acidente, mas sabendo que os norte-americanos estão preparando algo, parece-me mais prudente descartar essa possibilidade. Acredito que devo voltar para Washington.

– O que investigará?

– Tentarei de descobrir o que estão tramando.

– Tentará?

– Senhor, conseguir informação secreta é uma arte...

– Pode comprar o que necessitar!

– Engana-se – disse Cortez, olhando-o aos olhos – . As melhores fontes de informação não são as que se compram. É um engano, perigoso e estúpido, tentar comprar a lealdade.

– O que me diz de você?

– Esse é um problema que deve levar em conta, mas estou seguro de que já o fez.

A melhor maneira de ganhar a confiança desse homem era lhe dizer que não devia confiar.

Escobedo pensava que a lealdade que não se comprava com dinheiro se impunha com o medo. Nesse sentido, era um estúpido. Pensava que sua fama de homem violento acovardava a qualquer um, sem levar em conta de que havia homens capazes de lhe dar lições sem aplicar a violência. Em muitos sentidos era um homem admirável, mas também desprezível. No fundo, um amador – embora com talento– , que aprendia de seus próprios enganos, mas carecia da educação formal necessária para aprender com os erros alheios e em última instância, os especialistas de Inteligência tinham aprendido as lições dos erros alheios. O que precisava não era um assessor em questões de Inteligência e Segurança a mas, de operações clandestinas em si, mas esse era um terreno no que esses homens se negavam a pedir ou aceitar conselhos. Eram filhos e netos de contrabandistas, peritos em corrupção e suborno. Só que não tinham aprendido a jogar contra um oponente organizado e poderoso: os colombianos não o eram. O fato que os ianques não tivessem juntado ainda a coragem suficiente para empregar todo seu poderio não era mais que boa sorte.

A lição que a KGB se esforçou em inculcar em Cortez era que a boa sorte não existia.

O capitão Winters estudou o videotape com os homens que vieram de Washington. Ocupavam um escritório em um dos edifícios de Operações Especiais – em Eglin havia vários– , e os outros dois vestiam uniformes da Força Aérea com galões de tenente coronel, um grau intermédio que era o mais conveniente para o caso.

– Atira bem, rapaz – disse um deles.

– Ele pôde ter dificultado as coisas – falou Potro, imutável– . Mas não o fez.

– Havia tráfego na superfície?

– Nada em cinquenta quilômetros em volta.

– Vejamos o tape do “Hawkeye” – ordenou o homem alto. Usavam fita de três quartos de polegada, a preferida pelos militares por sua maior capacidade de armazenamento de dados. Já estava no ponto.

Mostrava o Beechcraft, famoso com o XXI na tabela alfanumérica. Os contatos, eram quase todos aviões comerciais que tinham sobrevoavam a alta altitude o lugar do incidente. Também havia contatos na superfície, mas afastados da zona de ataque, e a fita terminava antes da queda do aparelho. A tripulação do “Hawkeye” não tinha conhecimento direto do acontecido depois de entregar o alvo ao avião de combate.

As instruções tinham sido muito claras e se escolheu um ponto de interceptação afastado das rotas navais habituais. A baixa altitude de cruzeiro dos traficantes favorecia a missão, já que nem o clarão nem a explosão se perceberiam grande distancia. Neste caso, ninguém tinha visto nada.

– Muito bem – disse o homem alto– . Tudo dentro dos parâmetros estabelecidos. – Trocaram outra vez as fitas.

– Quantos projéteis disparou? – perguntou o homem mais jovem.

– Cento e oito – disse o capitão– . É difícil economizar projéteis com um “Vulcan”. Disparam muito rápido.

– Partiu o avião em dois, como uma moto-serra.

– Essa foi minha intenção, senhor. Poderia disparar um pouco mais rápido, só que a ordem era evitar os tanques de combustível, não?

– Correto.

Se alguém ligasse para os jornais para informar que tinha visto um clarão, a Força Aérea informaria que se tratava de um exercício de tiro contra um alvo aéreo, que em Eglin se realizavam com frequência.

Mas se ninguém visse nada, era muito melhor.

Para Potro não precisava ser tão secreto. Na sua opinião, não havia nada mais lógico que derrubar os filhos da puta. Quando o recrutaram para a missão, disseram-lhe que o narcotráfico era uma ameaça para a segurança nacional. Essa frase legitimava tudo. Como piloto da defesa aérea, sua tarefa era enfrentar-se às ameaças à segurança nacional com esse meio específico: derrubá-los com a mesma frieza com que se dispara contra um prato de argila como no tiro esportivo. Além disso, pensou Potro, se fossem de verdade uma ameaça à segurança nacional, o povo deveria estar informado. Mas ele não deveria se preocupar com essas questões. Era capitão, os capitães são executores, não pensadores. Alguém na cúpula havia dito que isso estava bem, e para ele era suficiente.

Abater o “Twin-Beech” tinha sido pouco menos que um assassinato, mas o mesmo podia dizer-se de qualquer ação de combate. O jogo limpo era para as Olimpíadas, onde a gente não arriscava a vida. Se alguém era tão idiota para deixar-se meter um tiro na cara, não era problema de Potro, ainda mais se o outro cometia um ato de guerra contra seu país. Esse era o significado da frase “Ameaça à segurança nacional”, ou não?

Além disso, ele tinha dado a voz de advertência ao filho da puta do Juan, ou como se chamasse. Se o idiota se acreditava que era capaz de evadir ao melhor avião de combate de todo o puto mundo, pior para ele.

– Tem algum problema com os procedimentos, capitão? – perguntou o homem alto.

– Que tipo de problema, senhor? – O que pergunta idiota! Pensou ele.

A pista era muito curta para um avião de transporte militar. Os quarenta e quatro homens da Operação SHOWBOAT viajaram de ônibus até a Base Aérea de Peterson, perto da Academia da Força Aérea em Colorado Springs. Obviamente, viajavam de noite. O motorista era um dos “chefes da excursão”, como os soldados os chamavam. Viajavam de silêncio, muitos dormiam, esgotados pelo último dia de instrução. Outros estavam perdidos em seus pensamentos. Chávez observava as montanhas enquanto o veículo descia os últimos declives. A instrução tinha acabado.

– Lindas montanhas, não? – disse Julio Vega entre bocejos.

– Ainda mais quando se desce de ônibus.

– Sim! – riu Vega – . Algum dia vou vir aqui esquiar. – O metralhador acomodou-se no assento e dormiu.

Acordaram trinta e cinco minutos depois, ao atravessar o portão de entrada de Peterson. O ônibus os deixou ao pé de um avião de transporte C-141 “Starlifter”, da Força Aérea. Os soldados se levantaram e recolheram sua bagagem. Os capitães controlavam que cada homem estivesse com a equipe que lhe tinha sido atribuída. Alguns aproveitavam a breve caminhada até o avião para olhar ao seu redor. Não havia nada que lhes chamasse a atenção, nem sequer um guarda especial: só a tripulação de terra, que enchia os depósitos de combustível e realizava a rotina de decolagem. No outro extremo da pista decolava avião tanque KC-135 e embora ninguém tenha tomado nota disso, pouco depois se reuniriam no ar com essa máquina. O suboficial da Força Aérea que fiscalizava o carregamento concluiu o trabalho e os acomodou da melhor maneira possível na cabine desprovida de quase toda comodidade: isso significava lhe dar um protetor de ouvidos a cada um, e nada mais.

A tripulação de voo verificou os motores e, pouco depois, o “Starlifter” começou a mover-se.

Apesar dos protetores, o ruído era insuportável, mas a tripulação era formada por oficiais da reserva aérea que facilitou o processo. Claro que não havia maneira de facilitar o reabastecimento em voo. Era como uma queda na montanha russa, agravada pela ausência quase total de janelas que revolvia o estômago, mas todo mundo ficou calmo. Meia hora depois da decolagem, o C-141 rumou para o sul e os soldados, abatidos pela fadiga e o aborrecimento, dormiram o resto da viagem.

Quase nessa mesma hora, o MH-53J decolou da Base Aérea de Eglin, estando com seus depósitos recheados. O coronel Johns ascendeu a trezentos metros e rumou para dois e um cinco, para o canal de Yucatán. Três horas depois, um avião tanque de apoio “Combat Talon” MC-130E alcançou ao “Pave Low”, e Johns deixou a operação de reabastecimento a cargo de seu comandante. A operação se repetiria mais três vezes, e o avião tanque os acompanharia até chegar ao destino, levando a bordo uma tripulação de manutenção e apoio e uma carga de peças de reposição.

– Preparados para o acople – disse PJ.

– Entendido – replicou a capitã Montaigne, e nivelou o MC-130E para realizar a operação.

Johns observou com que facilidade Willis introduzia a boca da mangueira no buraco do depósito.

– Estamos acoplados.

Na cabine do 130E se acendeu uma luz. A capitã Montaigne tomou seu microfone:

– Aaaaah!, senhor coronel! – disse com voz sensual– . Ninguém o faz como você.

Johns soltou uma gargalhada e apertou duas vezes o botão de seu microfone: afirmativo.

– Que sentido tem lhe negar um pouco de diversão? – perguntou a Willis, que era um pouco puritano. A operação de reabastecimento concluiu-se em seis minutos.

– Por quanto tempo estaremos lá? – perguntou Willis mais tarde.

– Não me disseram isso, mas se se prolongar, enviarão uma equipe de substituição.

– Ah, que bom – murmurou o capitão.

Seu olhar se passeava constantemente entre os instrumentos de voo e o mundo exterior da cabine blindada. O aparelho estava provido em excesso, porque ao coronel Johns gostava de dispor de grande poder de fogo; tinham-lhe tirado os artefatos de contra-vigilância eletrônica. Em outras palavras, não teriam que preocupar-se com um radar hostil, o que significava que a missão não os levaria a Cuba nem a Nicarágua. Ao mesmo tempo, deixava mais lugar para o transporte de passageiros e eliminava o segundo engenheiro de voo.

– Tinha razão sobre as luvas – disse – . Minha esposa me fez um jogo sob medida e a verdade que é muito melhor assim.

– Alguns não as usam, mas eu não gosto de manusear os controles com as mãos suadas.

– Não pensei que faria tanto calor.

– Há calores e calores – particularizou Johns – . Às vezes, a transpiração das mãos não se deve à temperatura exterior.

– Ah. Sim, entendo. – Significa isso que às vezes tem medo, como todo mundo?

– Eu sempre digo a meu pessoal que quanto mais se pensa antes do barulho começar, menos barulho haverá. Contudo, sobrará barulho.

Uma nova voz atravessou no circuito de comunicação interna:

– Senhor, se continuar falando assim, vai assustar todo mundo.

– Suboficial Zimmer, como vai tudo ai atrás? – perguntou Johns. O posto de Zimmer, era atrás dos pilotos, era um painel de instrumentos impressionante.

– Sirvo-lhe café, chá ou leite, senhor? Nosso cardápio inclui frango a Kiev com arroz, carne assada em seu molho com batatas, e, para os que estão de dieta, suco de laranja e verduras cozidas... e se acredita nisso é porque está enjoado de tanto olhar o painel. por que diabos não trazemos uma aeromoça?

– Porque você e eu estamos já muito velhos para isso, Zimmer! – riu PJ.

– Não é tanto esforço num helicóptero, senhor. Digo, com tanta vibração...

– Desde a Coréia que tento de reformá-lo – disse Johns ao capitão Willis – . Quantos anos têm os meninos, Buck?

– Dezessete, quinze, doze, nove, seis, cinco e três, senhor.

– Por Deus – interrompeu Willis– . Sua esposa parece uma mulher fora de série, sargento.

– Tem medo de que eu arrume outra, por isso me absorve toda a energia – replicou Zimmer – . Voo para estar longe dela, se não, estaria num caixão.

– Além disso, a julgar pelo tamanho de seu uniforme, parece que é boa cozinheira.

– O senhor gostaria de perder seu suboficial, coronel – disse Zimmer.

– Não diga isso. Só quero que seja tão lindo como Carol.

– Isso é impossível, senhor.

– De acordo. Uma xícara de café não viria nada mal.

– Às suas ordens, senhor. – Zimmer baixou rapidamente à cabine de voo. O painel de instrumentos era enorme e complexo, mas o suboficial tinha instalado suportes para as xícaras que o coronel Johns usava. PJ sorveu um pouco de café.

– E também sabe preparar café, Buck.

– As voltas que dá a vida, não?

Carol Zimmer sabia que seu marido ia dividir a garrafa térmica de café com o coronel. Seu nome de batismo não era Carol. Tinha nascido trinta e seis anos antes no Laos, filha de um suserano Hmong que tinha lutado longa e esforçadamente por um país que já não era sua pátria. Ela era a única sobrevivente de uma família de dez. PJ e Buck a tinham resgatado de uma colina em 1972, durante a etapa final de um assalto norte vietnamita. Os Estados Unidos não tinha podido ajudar o homem e a sua família, mas sim a sua filha. Zimmer tinha se apaixonado por ela a primeira vista, e todos seus conhecidos concordavam que tinham os sete filhos mais lindos da Florida.

– Sim, é claro que sim.

Era muito tarde em Mobile quando os dois aviões voavam para o Sul. Nas prisões, sobre tudo nas do sul, as normas são muito estritas. Mas não os advogados, e, paradoxalmente, eram muito flexíveis para esses dois sujeitos em particular. Num futuro próximo, mas ainda não determinado, aguardava-lhes a cadeira elétrica da prisão de Admore. Por isso, os guardas de Mobile se resguardavam de cometer a menor violação dos direitos constitucionais dos prisioneiros: permitiam-lhes receber seu advogado a qualquer hora, e, em geral, davam-lhes algumas comodidades. O advogado Edward Stuart estava ciente do caso e falava um espanhol muito fluido.

– Como fizeram isso?

– Não sei.

– Você chiava e esperneava, Ramón.

– Sei. E você cantou como um passarinho.

– Isso já não importa – disse o advogado – . vão acusar vocês de homicídio e pirataria cometidos em uma operação de tráfico de entorpecentes. Não vão utilizar a informação que Jesus lhes deu.


– Então nos tire daqui, advogado, merda!

A expressão de Stuart foi uma resposta muito eloquente. – diga a nossos amigos que se não nos tirarem daqui, cantamos tudo.

Os guardas tinham explicado com todo luxo de detalhes qual era o destino que lhes aguardava.

Tinham mostrado a Ramón um pôster da cadeira com a lenda SUCULENTO ou COZIDO. Embora fosse um homem insensível e brutal, a ideia de que o prendessem a uma cadeira elétrica, com uma braçadeira de cobre na perna esquerda, um capacete metálico sobre a cabeça, raspada na noite anterior pelo barbeiro da prisão e molhada com solução salina para facilitar a passagem da corrente, e uma máscara de couro para impedir que os olhos saltassem das órbitas... Ramón era um tipo valente quando tinha uma adaga ou um revólver e seu oponente estava desarmado ou indefeso. Então, sim. Não achava possível que algum dia o indefeso podia ser ele. Tinha perdido três quilos numa semana. Quase não comia, e demonstrava um interesse desmedido por tomadas e outros aparelhos elétricos. Tinha medo; mas, sobre tudo, estava furioso: consigo mesmo por ter medo, com os guardas e com a Polícia que o tinham assustado, e com seus cupinchas por não tirá-lo dali.

– Tenho muita informação. Dados úteis.

– Não importa. falei com os federais, não interessa para eles o que vocês possam contar. O

promotor federal diz que não tem o menor interesse nisso.

– Mas isso é ridículo. Sempre dão algo em troca da informação, sempre...

– Desta vez, não. As regras são outras.

– E você o que diz?

– Farei o possível por vocês. – Teria que dizer que eles morressem como homens, mas não podia – .

Nas próximas semanas pode haver novidades.

Olharam-no com cepticismo, embora não sem esperança. Ele mesmo tinha perdido. O promotor federal usava o caso para aparecer nos noticiários nacionais de 17:30 e das 23. O julgamento seria muito rápido e em pouco mais de dois anos ficaria vago uma cadeira no Senado. E seria bom se o promotor deixasse um bom legado. A condenação a morte de um dupla de narcotraficantes-piratas-violadores-assassinos cairia muito bem entre os cidadãos do soberano Estado do Alabama. O defensor se opunha, por princípios, à pena capital, e tinha dedicado muito tempo e dinheiro a lutar por sua abolição. Numa ocasião tinha apelado ao Tribunal Supremo, que por cinco votos contra quatro tinha feito um novo julgamento, no qual comutaram a pena de morte de seu defendido por prisão perpétua sem liberdade condicional. Stuart o considerava uma vitória, embora seu cliente tivesse conseguido sobreviver apenas quatro meses na prisão: outro prisioneiro, que não sentia amor pelos assassinos de crianças, tinha-lhe enfiado uma faca na região lombar. Não gostava da maioria de seus clientes. A alguns temia, sobre tudo os traficantes. Em geral, esperavam que, em troca do que lhe pagavam – sempre em dinheiro – , conseguisse-lhes a liberdade. Não compreendiam que no Direito não existem garantias, sobre tudo quando se é culpado. E esses dois eram muito culpados.

Mas não mereciam a morte. Stuart estava convencido de que a sociedade não devia rebaixar-se ao nível de... seus defendidos. No Sul, poucos compartilhavam sua posição, mas ele não ambicionava ocupar cargos públicos.

Não obstante, era seu advogado defensor e tinha a obrigação de dar a melhor defesa possível. Já tinha estudado as probabilidades de permutar informação por uma sentença de prisão perpétua. O estudo exaustivo do caso lhe mostrava que as provas da defesa eram puramente circunstanciais – não havia outras testemunhas que seus próprios defendidos – , o peso da evidência física era entristecedor. Os guarda costeira tinham deixado a cena do crime intacta, só tinham retirado algumas prova para as guardar em uma caixa forte com a finalidade de conservar sua pureza. Esses homens estavam bem informados e treinados.

Por esse lado, não havia muitas possibilidades. Sua única esperança era pôr em tela no julgamento sua credibilidade. Era uma esperança débil, mas não tinha outra.

O agente especial supervisor Mark Bright também estava muito atarefado, junto com sua gente.

Para começar, tinham processado uma casa e um escritório, um procedimento lento que era apenas o primeiro passo de um processo que talvez durasse meses, já que todos os documentos achados, os números telefônicos cotados em onze lugares distintos, as fotografias sobre a mesa e nas paredes e todo o resto seria objeto de investigação. Teriam que entrevistar os sócios, vizinhos e conhecidos do morto, os ocupantes dos escritórios contíguos ao seu, os membros de seu clube de campo e inclusive os paroquianos de sua igreja. O primeiro grande golpe de sorte se produziu durante a segunda hora do quarto registro efetuado na casa, um mês depois do início do caso.

Seu instinto lhe dizia que tinha que haver algo mais. No escritório do morto acharam um cofre forte afundado no chão – não tinham descoberto indício algum sobre sua compra e instalação – , oculta sob uma esquina do tapete. Precisaram de trinta e dois dias para descobri-lo e noventa minutos para abri-lo.

Um agente experiente ficou a jogar com os aniversários dos familiares do morto e diversas variações sobre o tema. Resultou que os três elementos da combinação eram o mês de seu nascimento mais um, o dia de seu nascimento mais dois e o ano mais três. A porta do luxuoso cofre “Mosler” abriu-se sem produzir ruído algum, salvo o do roçar contra o tapete.

Não havia dinheiro, joias nem carta lacrada para seu advogado. A caixa continha somente cinco disquetes compatíveis com o computador pessoal “IBM” do empresário.

Os agentes não procuraram mais. Bright levou os disquetes e os computadores a seu escritório, cujos computadores também eram “IBM” compatíveis. Mark Bright era um bom investigador, o que significava que era um homem paciente. Em primeiro lugar, chamou um perito em informática que estava acostumado a ajudar ao FBI. O programador, que trabalhava como assessor de empresas, disse que estava muito ocupado, mas o deixou tudo quando lhe informaram que se tratava de uma importante investigação criminal. Ao igual a muitos colaboradores ocasionais do FBI, considerava que o trabalho policial tinha grande emoção, mas não tanta para aceitar um posto de tempo integral no laboratório, onde os salários eram muito inferiores ao que o setor privado pagava. Bright tinha adiantado suas primeiras instruções: traga o computador do morto e o disco rígido. Depois de copiar os cinco disquetes por meio de um programa chamado CINTURÃO DE CASTIDADE, devolveu os originais a Bright e ficou a trabalhar com as cópias. Certamente, os arquivos estavam cifrados. Existiam várias maneiras de fazê-lo, o programador as conhecia todas. Tal como Bright tinha previsto, o algoritmo estava gravado no disco rígido do morto. A partir daí, só era questão de descobrir a opção e a chave utilizada para gravar os dados nos disquetes. Demoraram nove horas, durante as quais o amigo de Bright trabalhava sem cessar enquanto o agente lhe servia café e sanduiches e se perguntava por que estava disposto a fazer isso de graça.

– Consegui!

Uma mão gordinha apertou a tecla PRINT, a impressora laser zumbiu e começou a cuspir papel. Os cinco disquetes estavam cheios de dados, que ocuparam mais de setecentas páginas. Quando o terceiro disquete começou a imprimir, o programador já tinha partido. Bright demorou três dias para ler tudo aquilo. Logo fez seis cópias para outros chefes que se ocupavam do caso. Olhavam-nas sentados ao redor da mesa de conferências.

– Merda, Mark, isto é incrível!

– Tal como lhes adiantei.

– Trezentos milhões de dólares! – exclamou um– . Eu mesmo comprei aí...

– De quanto é o total? – perguntou um terceiro.

– Calculei-o por cima – disse Bright– , mas está na ordem dos setecentos milhões. Oito centros comerciais, de Fort Worth até Atlanta.

Os investimentos abrangem onze grandes empresas, vinte e três Bancos e...

– Esta é minha companhia de seguros! Calculam meus impostos e...

– Do jeito como ele montou a operação, o único que estava ciente de tudo era ele. Mais que um artista, o tipo era um verdadeiro Leonardo...

– Mas cobiça matou ele. Se não o entendi errado, ficou com trinta milhões... Por Deus...

Como todos os grandes planos, esse era de uma elegante simplicidade. apoiava-se em oito empresas de bens raízes. Em cada caso, o morto se constituiu em acionista geral, representante de recursos estrangeiros, descritos em todos os casos como petrodólares do golfo Pérsico ou da indústria japonesa, lavados num incrível labirinto de Bancos estrangeiros. O acionista geral utilizava os “petrodólares” –

termo de uso quase genérico no mercado de capitais– para comprar os terrenos e pôr as obras em marcha; depois solicitava recursos adicionais aos sócios menores que não tinham voz nem voto na administração dos investimentos, mas cujos os lucros estavam asseguradas pela execução prévia da corporação.

Inclusive o de Fort Worth mostrava lucros apesar da recessão na indústria petrolífera. Quando se iniciava a obra, a identidade do proprietário ficava oculta atrás de investimentos efetuados por Bancos, companhias de seguros e particulares enriquecidos: boa parte do investimento estrangeiro, já recuperada, voltava para Banco de Dubai ou outros, mas quase todas as ações ficavam na própria obra. Assim, os investidores estrangeiros recuperavam rapidamente seu investimento inicial com um benefício interessante, obtinham benefícios adicionais das operações e antecipavam novos lucros com a venda do projeto a capitais locais. Bright calculou que por cada cem milhões em investimento obtinham cento e cinquenta milhões de dólares totalmente limpos. Os cem milhões investidos e os cinquenta milhões de ganho eram nítidos e reluzentes, como o mármore do monumento a Washington. Salvo pelo que os disquetes diziam.

– Cada projeto, cada centavo investido passou pelo Escritório de Impostos, a Secretária de Comércio e um exército de advogados, e ninguém se inteirou de nada.

Conservava estes dados se fosse delatado; suponho que esperava trocar esta informação por um acordo...

– Assim era o morador mais rico de Cody, Wyoming – disse Mike Schratz – . Mas descobriu quem não devia. Pergunto-me quem o terá delatado. O que dizem nossos amigos?

– Não sabem nada. Aceitaram o trabalho de matar a todos e eliminar os cadáveres para que se pensasse em um desaparecimento. Seus contratantes estavam seguros de que seriam presos por isso não lhes deram informações. Conseguiram dois infelizes para esse trabalho é mais fácil que dançar com uma garota no baile de fim de ano.

– Sim, claro. Já informou à Central?

– Não, Mike, queria informar a vocês primeiro. O que opinam, cavalheiros?

– Se agirmos depressa... ficamos com todo o dinheiro... salvo que o tenham transferido a outra parte

– murmurou Schratz – . Me pergunto se não o fizeram. Embora sejam tão vivos... alguém aceita a aposta?

– Eu não – replicou outro agente, que era contador público e advogado – . Não têm motivos para correr esse risco. Isto é o mais parecido que vi em mi... droga, é um plano perfeito. Deveríamos lhes agradecer, todo este dinheiro nos ajudará a equilibrar a balança de pagamentos. Bom, senhores, o caso está esclarecido.

– Temos dinheiro para cobrir a folha do FBI pelos próximos dois anos...

– E de dar de presente uma esquadrilha de aviões à Força Aérea. É um golpe duro. Mark, acredito que isto merece uma ligação ao diretor – disse Schratz, e todos assentiram.

Onde está Pete hoje?

Pete Mariano era o agente especial a cargo do escritório de Mobile.

– Acredito que foi a Venice – respondeu outro agente – . A raiva que vai ter por ter estado ausente...

Bright fechou sua pasta. Já tinha reserva em um voo de primeira hora a Washington.

O C-141 chegou à base aérea Howard com dez minutos de antecedência. Depois do ar limpo, fresco e seco das Montanhas Rochosas e o do avião, sair no calor úmido do istmo do Panamá era como bater contra uma parede. Os soldados recolheram sua bagagem e seguiram o suboficial. Estavam calados e muito sérios. A mudança de clima era a prova tangível de que a brincadeira tinham terminado e a missão começava. Do avião foram diretamente para um ônibus verde que os conduziu até um velho barracão, em Fort Kobbe.

Horas depois, o helicóptero MH-53J aterrissou na mesma pista e, imediatamente, introduziram-no num hangar rodeado de sentinelas armados. Instalaram o coronel Johns e sua tripulação em instalações próximas, com a ordens de não sair.

Pouco antes do amanhecer, outro helicóptero, um CH-53E “Super Stallion” da Marinha, separou-se da coberta do porta-aviões Guadalcanal e se dirigiu para o Oeste, para baía do Panamá, até Corezal, uma pequena base militar próxima a Gaillard Cut, que tinha sido a etapa mais difícil do projeto original do canal do Panamá. A tripulação da coberta prendeu um objeto de grande volume à plataforma que pendia do helicóptero e este se dirigiu à borda.

Chegou a destino ao fim de vinte minutos de voo. O piloto reduziu a velocidade a zero e procedeu a uma lento descida vertical, seguindo as instruções do chefe de tripulação até que a caminhonete de comunicações ficasse assentada sobre a plataforma de concreto. Desatados os cabos, o helicóptero se afastou imediatamente, enquanto um pequeno avião de transporte CH-46 aterrissava para deixar quatro homens no lugar e retornava a seu porta-aviões. Os quatro puseram mãos à obra sem perder um instante.

Era uma caminhonete comum, parecida com um contêiner, com as rodas pintadas de vários tons de verde, como quase todos os veículos militares. Os técnicos de comunicações montaram rapidamente várias antenas de rádio e uma parabólica para a recepção de transmissões via satélite. Conectaram os cabos ao veículo gerador, já instalado, e ligaram os sistemas de climatização destinados a proteger o equipamento – e não aos técnicos – do calor e da umidade. Embora todos vestissem uniforme, nenhum era militar. Todas as peças estavam no lugar.

Bem nem todas, faltava uma. Em Cabo Canaveral iniciou-se a contagem regressiva para o lançamento de um foguete Titan-IIID. Uma centena de técnicos desenvolviam a rotina prevista sob o olhar de três altos oficiais da Força Aérea e meia dúzia de civis. Não pareciam felizes. No último momento tinham trocado seu projeto por esse que (para eles) era menos importante. As explicações não pareceram satisfatórias para eles, além do que tinham escassez de foguetes para dedicar um a esse tipo de jogos. Mas ninguém lhes explicou do que se tratava na realidade.

– Contato. Contato. Alvo avistado – disse Potro. Seu “Eagle” assumiu o rumo a um quilômetro atrás e um pouco por abaixo do alvo, que parecia um quadrimotor “Douglas”. Era um DC-4; ou DC-6, ou DC-7, o maior aparelho que havia interceptado até esse momento. Com seus quatro motores a pistão e seu único leme era indubitavelmente um “Douglas”, talvez mais velho que o piloto que o perseguia. Winters via as chamas azuis nos orifícios de escapamento dos enormes motores radiais e os brilhos dos raios lunares nas hélices. O resto tinha que adivinhar.

Tinha algumas dificuldades. Precisou diminuir a velocidade porque estava se aproximando muito do alvo. Diminuiu a potência de seus motores “Pratt and Whitney” e elevou os flaps para dar maior sustentação e resistência, enquanto sua velocidade baixava a uns escassos duzentos e quarenta nós.

A cem metros do alvo igualou a velocidade deste. O avião de combate balançou com suavidade – só um piloto era capaz de sentir – devido à turbulência provocada pelo outro aparelho. Era o momento.

Tomou fôlego e flexionou os dedos sobre a alavanca de controle. O capitão Winters acendeu suas poderosas luzes de aterrissagem. Viu que estavam atentos. Os extremos das asas se agitaram apenas quando suas luzes banharam ao avião de linha.

– Avião à vista, por favor identifique-se, cambio – disse na frequência de vigilância.

O aparelho iniciou uma volta. Era um DC-7B, o último dos grandes quadrimotores a pistão, caiu em desuso rapidamente pela aparição dos jato nos fins da década de 1950. As chamas do escapamento ficaram mais brilhantes quando o piloto aumentou a potência.

– Avião à vista, você está em espaço aéreo restrito. identifique-se imediatamente, cambio – disse Potro. A palavra imediatamente têm conotação muito particular para os pilotos.

O DC-7B descia rapidamente para as ondas. O “Eagle” o seguiu quase por sua conta própria.

– Avião à vista, repito, está em espaço aéreo restrito, identifique-se, já!

Agora virava para oeste para ganhar a península da Florida. O capitão Winters atirou a alavanca para trás e ativou o sistema de disparo. Estudou a superfície do mar para assegurar-se de que não houvesse navios na vizinhança.

– Avião à vista, identifique-se ou disparo, cambio.

Não houve resposta.

O problema era que, uma vez ativado, o sistema fazia todo o possível por facilitar a tarefa de acertar o alvo. Mas tinham dado ordens de apanhar esse com vida. Uma vez seguro de que erraria o tiro, apertou o disparador durante uma fração de segundo.

A metade dos projéteis eram traçantes, e o canhão os cuspia a razão de quase cem por segundo. Um raio de luz amarelo esverdeado, como um laser de filme de ficção científica ficou suspenso durante um bom tempo no infinito a escassos dez metros da janela da cabine.

– Avião à vista, endireite e identifique-se se não querer que a próxima rajada acerte o alvo.

Mudança.

– O que é isto? Que diabos estão fazendo? – O DC-7B se endireitou.

– Identifique-se! – disse Winters em tom frio.

– Carib Carrego... voo especial de Honduras.

– Entrou em espaço aéreo restrito. Vire à esquerda, rumo três e quatro sete.

– Veja, não sabia nada sobre a restrição. me diga qual é o rumo mais curto para sair e saio. De acordo?

– Rumo três e quatro sete. Vou seguir vocês, terá que dar algumas explicações, Carib. Escolheu um mau lugar para voar sem luzes. Espero para seu bem que tenha um bom motivo, porque o senhor coronel está bastante zangado com você. Vire esse pássaro à esquerda, agora! – Ofendido porque não o tomavam a sério, Potro virou lentamente à direita e soltou outra rajada para convencê-lo.

O alvo tomou o rumo três e quatro sete, e acendeu suas luzes antichoque.

– Muito bem, Carib, mantenha altura e rumo. Não se comunique. Repito, mantenha o rádio em silencio até nova ordem. Não piore sua situação. Sigo-o. cambio e desligo.

Demoraram quase uma hora, e para ele era como dirigir uma “Ferrari” na hora do rush em Manhattan. Do Norte se aproximava uma massa de nuvens com relâmpagos. Winters pensou se conseguiriam aterrissar antes que a tempestade chegasse, e, nesse momento as luzes duma pista de aterrissagem se acenderam.

– Carib, quero que aterrisse nessa pista. Siga as instruções. desligo.

Sobrava combustível para várias horas de voo. ficou satisfeito por poder subir a plena potência até seis mil metros enquanto as luzes estreboscópicas do DC-7 penetravam no retângulo azul da velha pista.

– Muito bem, é nosso – disse o rádio ao piloto.

Winters não confirmou o recebimento. Virou o “Eagle” para a base aérea de Eglin e calculou que chegaria antes da tempestade. Era o fim de outra jornada de trabalho.

O DC-7B se deslizou até o extremo da pista e parou. Várias luzes se acenderam. Um jipe se aproximou até cinquenta metros do nariz do aparelho.

O veículo transportava uma metralhadora M-2 calibre .50 e uma grande caixa com projéteis. O cano apontava direito à cabine.

– Desça do avião, amigo.

– Que! – disse uma voz rouca, amplificada por um megafone A porta dianteira esquerda se abriu, e um homem branco, de mais ou menos quarenta anos, apareceu por ela.

Estava desorientado e cegado pelas luzes apontadas diretas a seu rosto. Algo que, certamente, era intencional.

– Desça para a pista, amigo – disse uma voz atrás das luzes.

– O que está acontecendo aqui? Eu...

– Deite-se no chão para se revistado! Agora mesmo!

Não havia escada. Atrás do piloto havia mais outro homem: cada um, ajoelhou-se na soleira, dependuraram-se pelas mãos e se deixaram cair o metro e meio que os distanciava da pista. Fortes braços, em uniformes de camuflagem, receberam-nos.

– De cara no chão, espiões comunistas filhos da puta! – chiou uma voz juvenil.

– Aleluia, por fim pegamos um! – exclamou outra voz com júbilo– . É um fodido avião espião cubano!

– Que merda... – quis dizer um dos prisioneiros, mas calou ao sentir um objeto metálico sobre a nuca: era um quebra chamas na extremidade de um fuzil M-16. Também sentiu um fôlego quente na bochecha.

– Se quiser que você fale eu te direi – disse a outra voz, que parecia de um homem maior que o primeiro– . Leva a alguém mais a bordo, amigo?

– Não. Veja, somos...

– Verifiquem! E tenham cuidado! – acrescentou o sargento de Artilharia.

– Entendido, sargento – disse o cabo fuzileiro naval – . me Cubram da porta.

– Seu nome? – perguntou o sargento, e apertou a boca do fuzil contra a nuca do piloto.

– Bert Russo. Sou...

– Escolheu um mau momento para espionar nossa operação, Roberto. Desta vez estávamos esperando, velho! Me pergunto se Fidel vai querer te recuperar...

– Não me parece cubano, sargento – disse uma voz juvenil – . Não será russo?

– Ouça, o que é isso de russos e cubanos e...

– Claro, claro, Roberto. Você... Aqui, capitão!

escutaram-se passos e uma nova voz:

– Lamento a demora, sargento Black.

– Tudo sob controle, capitão. Estamos vasculhando o avião. Por fim prendemos o espião cubano.

Este cara se chama Roberto. Ao outro ainda não interroguei.

– Virem ele.

Uma mão o agarrou como a um boneco de trapo e o fez voltar-se. Então viu que o sopro quente provinha do maior pastor alemão que tinha visto em sua vida, e que estava a escassos vinte centímetros de seu rosto. Quando o olhou, o cão grunhiu.

– Não assuste a meu cão, Roberto – disse o sargento artilheiro Black.

– Seu nome?

Bert Russo não podia ver os rostos. As luzes que marcavam o perímetro da pista iluminavam a todos por atrás. Via as armas e os cães, um dos quais vigiava a seu copiloto. Quis falar, mas o cão abriu a boca e isso o fez calar.

– Vocês cubanos não aprendem, não é verdade? Dissemos a eles na vez anterior que não espiassem nossos exercícios, mas não podem deixar de tentar, não é? – disse o capitão.

– Não sou cubano, sou norte-americano. E não entendo do que falam – repôs o piloto.

– Tem algum documento de identidade? – perguntou o capitão.

Bert Russo levou a mão ao bolso; mas, então, o cão grunhiu a sério.

– Não assuste o cão – advertiu o capitão– . Está um pouco nervoso.

– Cubanos de merda! – exclamou o sargento Black – . Poderíamos eliminá-los agora mesmo, capitão. Digo, quem diabos saberia?

– Permissão, sargento! – disse uma voz do avião – . Não são espiões. Isto está carregado de drogas!

prendemos um traficante de drogas!

– Filhos da puta! – exclamou o sargento como se estivesse decepcionado – . Nada mais que um traficante? Merda!

– Amigo, parece-me que se enganou de rota esta noite – riu o capitão– . O que eles trazem, cabo?

– Tem que tudo, capitão. Erva, coca, de tudo. O avião está carregado até em acima.

– Um traficante de merda – disse o sargento – . Ahhh... capitão.

– Diga.

– Você sabe, pilotos como este aterrissam por aqui, deixam o avião e vão embora, e ninguém mais os encontra, capitão.

Nesse momento, como se respondesse a um sinal, do pântano que rodeava a pista chegou um ruído gutural. Albert Russo era nativo da Florida e o reconheceu imediatamente.

– Quero dizer, quem saberá a diferença? O avião aterrissou, os tipos escaparam antes de que nós chegássemos, meteram-se no pântano, e ouvimos uns gritos... – Fez uma pausa antes de seguir – : Quero dizer que são traficantes, não? A quem se importa com esses merdas? Fazemos do mundo um lugar melhor... E de passagem alimentamos os crocodilos, que parecem bastante famintos, capitão.

– Não há provas... – murmurou o capitão.

– Ninguém se importará, capitão – insistiu o sargento– . Não há ninguém aqui além de nós.

– Não! – chiou o copiloto abrindo a boca pela primeira vez, e o cão que o vigiava se sobressaltou.

– Silêncio, vocês não se metam – ordenou o sargento.

– Senhores, o que diz o sargento me parece bastante lógico – disse o capitão depois de pensar um instante – . E é verdade que os crocodilos têm fome.

Mate-os antes, sargento. Podemos evitar a crueldade. Mas assegure-se de lhes tirar tudo o que pudesse identificá-los.

– Entendido, capitão – repôs o sargento de Artilharia– . O grupo de oito homens eram marinheiros do centro de Operações Especiais do Fort MacDill. As missões estranhas não eram a exceção para eles e sim a regra. Tinham deixado o helicóptero a mil metros desse lugar.

– Bom, meu amigo – disse Black. inclinou-se e levantou Russo de um puxão – : Escolheu um mau momento para trazer seu carregamento, cara.

– Espere! – chiou o outro– . Nós... quer dizer, podemos lhe dar...

– Fala tudo o que queira, velho. Já me deram as ordens. Bom, vamos de uma vez. Se querem rezar, façam agora.

– Viemos da Colômbia...

– Mas e dai – comentou Black, enquanto arrastava ao piloto para as árvores . Eu em seu lugar trataria de falar com Deus, velho. Talvez Ele te escute, ou talvez não...

– Tenho muita informação – insistiu Russo.

– Só que não me interessa.

– Mas não pode...

– Claro que posso. Sabe como ganho a vida? – sorriu Black– . Não se preocupe, que será muito rápido. Eu não gosto de fazer às pessoas sofrerem como vocês fazem com as drogas. Um golpe e se acabou.

– Tenho família... – gemeu Russo.

– Como quase todo mundo – assentiu Black – . Ficarão bem. Suponho que tem seguro de vida.

Olhe!

Outro marinheiro apontou sua lanterna para os arbustos. Russo nunca tinha visto um crocodilo tão grande, media quase quatro metros. Os olhos amarelos brilhavam na escuridão e o corpo do sáurio parecia um tronco verde. Com uma grande boca.

– Aqui está bem – disse Black– . Afastem os cães, maldição!

O crocodilo, ao que chamavam Nicodemus, abriu a boca e vaiou. Era um ruído sinistro.

– Por favor... – rogou Russo.

– Direi tudo! – exclamou o copiloto.

– Como o que? – perguntou o capitão com asco. Como se dissesse: se cale e morre como um homem.

– De onde viemos. Quem nos deu a carga. Os códigos de rádio. Quem nos espera. Tudo!

– claro que sim – disse o capitão – . lhes Tirem os documentos de identidade, dinheiro, chaves, tudo. Dispam-nos antes de matá-los. E cuidado acima de tudo.

– Sei de tudo! – chiou Russo.

– Sabe de tudo, o que lhes parece – disse o sargento– . Tire a roupa, cara.

– Espere, sargento – ordenou o capitão, e dirigiu o raio de luz de sua lanterna ao rosto do Russo.

– O que pode nos dizer que nos interesse? – perguntou uma voz que não tinham escutado até esse momento. Embora vestisse uniforme, não era militar.

Dez minutos depois, as confissões estavam gravadas. Os nomes eram conhecidos, mas a pista aérea e os códigos de transmissão eram informação nova.

– Renuncia ao direito a ter um advogado presente? – perguntou o civil.

– Sim!

– vai colaborar?

– Sim!

– Bem.

Cobriram os olhos de Russo e do copiloto, que se chamava Bennett, e os conduziram ao helicóptero. Ao meio dia seguinte os levariam perante um juiz local e logo perante um juiz federal; de noite os prenderiam em um edifício novo da base aérea de Eglin, rodeado por um alambrado alto.

Sentinelas uniformizados o vigiavam.

Não sabiam que tinham tido sorte. Para ser um ás do ar, teria que derrubar cinco inimigos. Para Potro faltava pouco.

X

PÉS SECOS

Por simples cortesia, Mark Bright passou pelo escritório do subdiretor anexo antes de entrar em ver o diretor.

– Vejo que tomou o primeiro avião. Como vai o caso?

– O caso dos piratas, como os jornais o chamam, caminha muito bem. Vim devido a certas derivações que teve. A vítima estava mais metido no negócio do que pensávamos. – Bright lhe pôs ao corrente e tirou uma das pastas de sua pasta.

– Quanto dinheiro?

– Não estamos certos. vamos ter que pedir ajuda a peritos do setor financeiro; mas... bom, eu diria que da ordem dos setecentos milhões de dólares.

Murray conseguiu pousar a xícara sobre a mesa sem derramar o café:

– Como é?

– O que você ouviu. Eu soube disto anteontem, e este material acabei de ler ontem. Apenas dei uma olhada, Dan. Se me enganei, vou ficar envergonhado. Mas pensei que o diretor tinha que ver isso o mais cedo possível.

– E o ministro da Justiça e o Presidente. Quando ele te receberá Emil?

– Em meia hora. Vem comigo? Você conhece a cenário internacional melhor que eu.

Havia muitos subdiretores adjuntos no FBI. Murray era, segundo sua própria irônica definição, o

“agente dos serviços públicos”. A autoridade máxima da Agência sobre o terrorismo e sobre a maneira como os grupos internacionais contrabandeavam pessoas, dinheiro e armas de um lugar para o outro.

Esses conhecimentos, unidos a sua ampla experiência policial, convertiam-no em assessor obrigatório do diretor e de Bill Shaw, o diretor executivo adjunto no comando de investigações em casos importantes.

Bright não tinha entrado conseguido vê-lo por mera casualidade.

– Está confirmada a informação?

– Como eu te disse, falta reunir algumas provas, mas tenho uma série de números de contas bancárias, datas de transações, cifras e um rastro claro até o ponto de origem.

– E toda graças a esse navio da guarda costeira...

– Não, senhor. – Bright vacilou – . Bom, pode ser. Ao saber que a vítima estava metida em negócios sujos, investigamos ele exaustivamente. Tudo isto teria caído em nossas mãos cedo ou tarde. Tal como estavam as coisas, estive na casa várias vezes. Você me entende, não?

– Sim, claro – assentiu Murray. Uma das características de um bom agente era a persistência; outra o instinto. Entretanto sua voz interior lhe dizia que havia algo mais, para Bright ter voltado a casa varias vezes – . Como descobriu o cofre forte?

– O sujeito tinha uma dessas pranchas de acrílico para colocar sua cadeira giratória. Que deslizam quando a gente mexer muito a cadeira? Estive sentado nela por uma hora, e me dei conta de que deslizou.

Afastei a cadeira para colocar a prancha em seu lugar e então me ocorreu que era o esconderijo perfeito.

Não me enganei. – Bright sorriu. Tinha todo o direito de fazê-lo.

– Se eu fosse você, escreveria uma nota para o The Investigator. – Murray se referia ao órgão de Imprensa interno do Ministério da Justiça – , assim outros aprendem.

– Temos um perito em caixas fortes. E, depois disso, só era questão de tempo decifrar os disquetes.

Há um cara em Mobile que nos ajuda com isso... e não, não conhece a informação. Sabe que não deve prestar atenção, e além disso não lhe interessa. Acredito que será conveniente não dar a notícia até que nos tenhamos nos apropriado do dinheiro.

– Sabe, me parece que nunca tivemos um shopping center. Sim lembro quando damos procuração de um topless bar. – Murray riu ao pegar o telefone e digitar o número do escritório do diretor– . bom dia, Moira, sou Dan Murray. Diga ao chefe que temos algo realmente grande desta vez. Bill Shaw também vai querer vê-lo. Em dois minutos nos reunimos com ele. – Murray cortou – . Bom, vamos, agente Bright.

Um golpe como este não se acontece todos os dias. Conhece diretor?

– O cumprimentei algumas vezes nos atos oficiais.

– É um bom sujeito – assegurou Murray ao sair para o corredor. No caminho se encontraram com Bill Shaw.

– Olá, Mark. Como está seu pai?

– Pescando, como sempre.

– Vive nos Recifes, não?

– Sim, senhor.

– Te prepare para uma agradável surpresa, Bill – disse Murray ao abrir a porta. Os deixou entrar e ficou gelado ao ver a secretária do diretor – . meu Deus, Moira, que linda você está.

– Tome cuidado, Sr. Murray, ou o direi a sua esposa!

Mas não se podia negar. Seu vestido era belíssimo, a maquiagem perfeita e o rosto resplandecia de felicidade que só um novo amor pode causar.

– Peço-lhe minhas mais humildes desculpa, senhora – disse Murray, galante – . Este jovem arrumado é Mark Bright.

– Chegou com cinco minutos de antecedência, agente Bright – disse Sra. Wolfe sem olhar a agenda de audiências– . Posso lhe servir um café?

– Não, obrigado, senhora.

– Muito bem. – verificou que o diretor não estivesse falando ao telefone – . Entrem, por favor.

O diretor tinha uma mesa grande onde se podiam realizar reuniões. Emil Jacobs chegou ao FBI depois de uma importante carreira de promotor federal em Chicago e de recusar uma nomeação para a Câmara Federal de Apelações. Poderia ter sido sócio em qualquer escritório de advocacia criminalista do país, mas, desde seu ingresso, Emil Jacobs dedicava sua vida a enviar criminosos a prisão. Isso devia-se em parte por que seu pai tinha sido uma das vítimas da guerra entre gangues durante a Lei Seca. Jacobs jamais esquecia das cicatrizes que ficaram no seu pai depois de discutir com um valentão. Era um homem pequeno, como seu pai, cuja missão na vida era proteger os fracos dos maus. Realizava essa missão com ardor religioso, além de uma mente brilhante e analítica. Era um dos poucos judeus em uma Agência onde os católicos irlandeses preponderavam e tinha sido eleito presidente honorário de várias lojas maçônicas irlandesas. Se J. Edgar Hoover tinha sido conhecido como “diretor Hoover”, para a nova geração de agentes, o diretor Jacobs era simplesmente “Emil”.

– Seu pai trabalhou comigo numa ocasião – disse Jacobs ao apertar a mão do agente Bright – . Vive no recife Marathon, não é? Se dedica à pesca do Tarpon?

– Sim, senhor. Como sabe?

– Todos os anos me manda um cartão de Chanukah – riu Jacobs – . É uma história comprida, me surpreende que ele não a tenha contado. Bom, o que temos aqui?

Bright se sentou, abriu sua maleta e entregou as pastas. Começou seu relato, pelo princípio com certo timidez, mas foi se soltando à medida que entrava no tema. Jacobs olhava rapidamente a pasta, embora não perdesse as palavra.

– Falamos de mais de quinhentos milhões de dólares – disse Bright na conclusão.

– Eu diria que bem mais, pelo que vejo aqui, filho.

– Não tive tempo de analisar em detalhe, senhor. Pensei que devia informar ao senhor o mais rápido possível.

– Pensou certo – disse Jacobs sem levantar os olhos – . Bill, quem é o cara mais capacitado do Ministério para ocupar-se disto?

– Lembra do que dirigiu a investigação sobre a fraude das financeiras? É um especialista em seguir o rastro do dinheiro. Marty não sei de que – disse Shaw – . Um jovem com muito olfato. Acredito que Dan deveria participar também.

– Que me diz Dan? – perguntou Jacobs levantando os olhos.

– Com prazer. Pena que não tenhamos uma comissão. vamos ter que agir com rapidez. Se suspeitarem que...

– Talvez não tenha importância – murmurou Jacobs – . Mas não temos motivos para demorar. vai ser um duro golpe para eles. E com as demais operações que... me perdoem. Sim, Dan, vamos por mãos à obra agora mesmo. Pode ter alguma complicação no caso dos piratas?

– Não, senhor. As provas físicas são suficientes para condená-los. Quando o defensor quis apresentar uma queixa sobre a forma como se obteve a confissão, o promotor federal respondeu que não ia usar a confissão. Dizem que ele riu na cara do defensor. Dizendo que não ia fazer nenhum tipo de acordo, que tem provas suficientes para mandá-los para a cadeira elétrica e que essa é sua intenção. Quer ir a julgamento o mais cedo possível. Ele vai levar pessoalmente caso. Vai com tudo.

– Parece que estamos no início de uma carreira política – comentou Jacobs – . Eu gostaria de saber quanto tem de alarde e quanto de sinceridade nele.

– Ajudou-nos muito em Mobile, senhor – disse Bright.

– E sempre é bom ter amigos no Congresso – assentiu Jacobs – . Você está satisfeito com o caso?

– Sim, senhor. Está forte. E toda esta derivação se sustenta por si só.

– Por que havia tanto dinheiro no iate se queriam matá-lo? – perguntou Murray.

– Era a isca – disse o agente Bright– . Segundo a confissão, foram entregar o dinheiro ao seu contato nas Bahamas. Neste documento se vê que a vítima estava acostumada ocupar-se das transações quando havia em jogo uma soma grande em espécie. Acredito que por isso que comprou o iate.

– Parece bem lógico – assentiu Jacobs– . Dan, disse-lhe ao capitão...?

– Sim, senhor. deu-se por advertido.

– Perfeito. Voltemos para tema do dinheiro. Dan, você coordenará a investigação com a Justiça e me manterá informado através de Bill. Vamos dar um prazo para começar a nos expropriar do dinheiro..., dou-lhe três dias. O mérito deste golpe é do agente Bright e ao escritório local de Mobile, mas está em sigilo até que demos o primeiro passo. – Com isso queria dizer que era tão secreto como uma operação da CIA, o qual não era absolutamente incomum, já que o FBI realizava quase todas as operações de contraespionagem – . Mark, escolha uma palavra chave.

– Tarpón. A meu pai adora pescá-los, opõem muita resistência.

– Terei que ir comprovar isso. Nunca pesquei nada maior que um lúcio. – Jacobs fez uma pausa.

Maquinava algo, e sua expressão era bem ardilosa, pensou Murray – . Este golpe não podia ser mais oportuno, mas não me perguntem por que – disse – . Mark, dê lembranças minhas a seu pai. – O diretor ficou em pé para pôr fim à reunião.

Sra. Wolfe não deixou de ver os sorrisos de satisfação. Shaw piscou os olhos. Dez minutos mais tarde introduziu uma nova pasta na seção de drogas na caixa forte secreta, com o rótulo TARPÓN. Jacobs lhe disse que em poucos dias lhe daria alguns documentos.

Murray e Shaw acompanharam o agente Bright até seu automóvel e se despediram.

– O que acontece com Moira? – perguntou Dan quando o carro se afastava.

– Parece que tem um noivo.

– Já estava na hora.

Às 16.45, Moira Wolfe colocou o protetor plástico sobre o teclado de seu computador e a capa sobre a máquina de escrever. Verificou sua maquiagem uma vez mais e saiu com passo alegre. O mais estranho era que não via os olhares de seus colegas de trabalho. As secretárias, os assistentes e inclusive os guarda-costas se abstinham de fazer comentários em sua presença para não incomodá-la. Mas essa noite devia ter um encontro. Os indícios eram claros, embora Moira acreditasse que tinha escondido bem.

Como secretária executiva, a Sra. Wolfe tinha direito a um espaço reservado no estacionamento, uma das muitas vantagens que faziam mais suportável sua vida. Minutos depois tomou a Rua 10 e girou à direita no Constitution Avenue. Em lugar de dirigir-se para o Sul, para sua casa no subúrbio de Alexandria, virou para oeste pela ponte Theodore Roosevelt até Arlington. Parecia que o trafego na hora do rush abria a sua passagem, e em vinte e cinco minutos chegou a um pequeno restaurante italiano, no Seven Corners. olhou-se pela última vez no espelho retrovisor. Seus filhos foram jantar hambúrgueres no

“McDonald's”, mas a compreendiam. Havia dito a eles que trabalharia até muito tarde e estava certa de que eles acreditavam nela, embora suas mentiras fossem infantis, de tão transparentes.

– Desculpe-me, sou... – disse a recepcionista.

– Sim, você deve ser Sra. Wolfe – disse a jovem – . me Siga, por favor, o Sr. Diaz a espera.

Félix Cortez – Juan Diaz – ocupava um reservado no fundo do restaurante. Um lugar escuro onde ninguém os descobrisse, e com visão da porta para vê-la chegar, pensou Moira. Tinha razão, mas não de todo. Cortez se mostrava prudente. A central da CIA estava a menos de oito quilômetros dali, milhares de agentes do FBI viviam na zona, e como saber se um alto oficial da contraespionagem não gostava do mesmo local. Pensava que seria difícil que conhecessem seu rosto mas os oficiais de Inteligência chegam à velhice só se não forem descuidados. Seu nervosismo não era totalmente fingido. Estava desarmado.

Dissessem o que dissessem os romancistas, em seu ofício, as armas davam mais problemas que soluções.

Félix se levantou quando a viu chegar. A recepcionista se voltou de costas ao compreender a verdadeira natureza do “jantar de negócios” para que os amantes – pensou enternecida – pudessem dar mãos e se beijarem com certa paixão, embora com timidez, em um lugar tão público. Cortez acomodou a sua dama e lhe serviu um copo de vinho branco antes de sentar-se em frente dela. Fingiu certa vergonha e timidez.

– Tive medo que não viesse.

– Faz muito que me espera? – perguntou Moira. Havia meia dúzia de guinbas de cigarro no cinzeiro.

– Quase uma hora – sorriu.

ri de si mesmo, pensou ela.

– Mas você chegou mais cedo.

– Sei – disse ele, e riu– . Você me faz ficar como um idiota, Moira. Em minha casa não sou assim.

O interpretou mal.

– Me perdoe, Juan. Não quis...

Uma reação perfeita, pensou Cortez. Exata. Tomou a mão por cima da mesa e seus olhos lançaram um brilho.

– Não se preocupe. Às vezes é bom ser tolo. me perdoe por te chamar sem aviso prévio. Tive um pequeno problema. Fui a Detroit, e já que andava pelas redondezas, como dizem por aqui, senti vontades de te ver antes de voltar.

– Um problema?

– Sim, tive que modificar um carburador. Tem a ver com o consumo de combustível, devo alterar algumas ferramentas em minhas fábricas. – Balançou a mão – . Mas já está resolvido. Acontece com frequência..., e foi um bom pretexto para viajar. Talvez deveria agradecer a EPA, ou como se chame o escritório encarregado de zelar pela contaminação ambiental.

– A carta de agradecimento eu envio, se você quiser.

Sua voz se alterou.

– Sou tão feliz de te ver outra vez, Moira.

– Tinha medo de que...

– Não, Moira, era eu o que tinha medo. Sou estrangeiro, venho com pouca frequência e estou certo de que muitos homens...

– Está hospedado aonde, Juan?

– No “Sheraton”.

– Têm serviço de quarto?

– Sim, mas não compreendo por que...

– Acredito que não vou ter fome até umas duas horas – disse, e esvaziou sua taça – . Podemos ir já?

Félix deixou um par de notas de vinte dólares sobre a mesa e saíram. A recepcionista lembrou uma canção do The King and I. Em menos de seis minutos chegaram ao vestíbulo do “Sheraton” e se dirigiram rapidamente aos elevadores, olhando com cautela a seu redor, embora por razões diferentes. Tinha ficado numa suíte luxuosa, mas Moira não olhou o cenário ao entrar. Durante uma hora não foi consciente de nada a não ser de um homem que para ela se chamava Juan Diaz.

– Que maravilha – disse ele depois.

– Qual é a maravilha?

– Que meu novo carburador tivesse problemas.

– Juan!

– Terei que provocar todo tipo de problemas de controle de qualidade, assim chamarão Detroit todas as semanas – riu, enquanto acariciava o braço dela.

– Por que não instala uma fábrica aqui?

– Os custos de mão de obra são muito altos – disse com seriedade – . Claro que teria menos problemas com as drogas.

– Tem esse tipo de problema ali?

– Sim. Chamam-no bazuco. É droga de baixa qualidade que não podem exportar. Muitos de meus operários a consomem. – Fez uma pausa – . Moira, eu estava brincando, e você me falando de negócios.

Já não tem interesse por mim?

– Você acha isso?

– Acho que devo voltar para a Venezuela enquanto tenho forças para caminhar.

Ela o explorou com os dedos.

– Ao contrário, acredito que se recuperará logo.

– É bom saber. – Girou a cabeça para beijá-la e a contemplou longamente à luz dos últimos raios do sol que entravam pelas janelas. Ela o viu e cobriu-se com o lençol, mas ele a deteve.

– Não sou mais jovem – disse.

– Quando um menino olha sua mãe, ele pensa que ela é a mulher mais linda do mundo, embora na verdade nem seja muito bonita. E sabe por que? Porque a olha com amor e vê que ela devolve esse amor.

A beleza é amor, Moira. E para mim você é verdadeiramente formosa.

Tinha falado a palavra mágica. Viu que ela abria grandes os olhos, e tentava dizer algo, sua respiração se agitava. Pela segunda vez, Cortez sentiu vergonha. Tentou perder essa sensação, mas não era nada fácil. Não era a primeira vez que fazia algo assim, mas sempre com mulheres jovens, solteiras, em busca de aventuras e novas emoções. Esta era diferente em muitos sentidos. Mas por diferente que fosse, pensou, ele tinha uma missão a cumprir.

– Me perdoe se eu fiz você se sentir mau.

– Não – sussurrou ela– , nada disso.

Olhou-a e sorriu.

– Agora sim podemos jantar?

– Sim.

– Estupendo.

Cortez se levantou, tomou dois robes que estavam pendurados no armário. O serviço era excelente.

Meia hora depois, Moira ficava no dormitório enquanto serviam o jantar na sala de estar. A fez entrar quando o garçom saiu.

– Você faz de mim um homem desonesto. Se visse como me olhou!

– Se soubesse quando foi a última vez que tive que me esconder em outro quarto – riu ela.

– Pediu muito pouca comida. Como pode viver com essa saladinha?

– Se eu engordar, você não vai querer voltar para me ver.

– Em meu país não contamos as costelas das mulheres – disse Cortez – . Quando vejo alguém emagrecer, penso que se deve por causa do bazuco. Alguns deixam de comer para comprá-lo.

– Não pensei que fosse tão grave.

– Sabe o que é o bazuco?

– É cocaína, segundo o que li.

– De má qualidade, os criminosos não podem vendê-la aos norte-americanos. Vem mesclada com substâncias químicas que envenenam o cérebro. É uma praga em meu país.

– Aqui também há problemas – disse Moira. Seu amante se mostrava muito preocupado. Igual ao diretor, pensou.

– falei com a Polícia. Como os operários podem trabalhar se suas mentes se envenenarem com isso?

E eles encolhem os ombros e respondem com desculpas... e as pessoas morrem. Morrem por consumir bazuco. Morrem assassinadas pelos traficantes. Ninguém faz nada para impedi-los. – Fez um gesto de desalento – . Eu sou mais que um capitalista, Moira. Minhas fábricas são fontes de trabalho, atraem capital ao país, dinheiro para que as pessoas construam moradias e eduquem seus filhos. É verdade que sou rico, mas ajudo a construir meu país, faço-o com estas mãos. Meus operários vêm me dizer que seus filhos... ah! Não posso fazer nada por eles. Algum dia os traficantes virão me tirar a fábrica. Irei à Polícia, mas não farão nada para me ajudar. O Exército tampouco.

Você trabalha para os federais, não é assim? Ninguém pode fazer nada? – Cortez quase conteve o fôlego à espera da resposta.

– Deveria ver as informações que redijo para o diretor.

– Informações – disse ele com desdém – . Do que servem as informações? Em meu país, a Polícia escreve informes, os juízes investigam... e não acontece nada. Se eu dirigisse minha empresa dessa maneira, iria parar à rua e acabaria mendigando. O que fazem seus federais?

– Mais do que você imagina. Estão acontecendo certas coisas das que não devo falar. No escritório dizem que vão mudar as regras do jogo, mas não sei o que significa. O diretor irá logo para a Colômbia a se reunir com ministro da Justiça e... ai!, não deveria ter mencionado isso. É um segredo.

– Não direi a ninguém – assegurou Cortez.

– A verdade é que eu não sei muito sobre isto – prosseguiu ela com cautela – . Estão a ponto de pôr em marcha algo novo, mas não sei o que é. Em todo caso, o diretor não gosta de muito disso.

– Por que não gosta se prejudicar aos criminosos? – perguntou Cortez, perplexo – . Poderiam matar a todos na rua e eu convidaria seus federais para o jantar.

– Darei a eles a sua mensagem – sorriu Moira – . É o que dizem nas cartas. Recebemos muitas cartas, de todo tipo de gente.

– Seu diretor deveria prestar atenção.

– O Presidente o faz isso.

– Talvez faça o que pedem – disse Cortez. Este ano há eleições...

– Quem te diz que não tem feito isso já. O que quer que seja está em marcha e se originou na Casa Branca.

– Mas seu diretor não gosta. – Balançou a cabeça– . Não compreendo o Governo de meu país, e você não deveria tentar compreender o seu.

– Claro que está acontecendo algo estranho. Esta é a primeira vez que, não sei... bom, não posso dizer nada. – Terminou sua salada e olhou sua taça vazia. Félix/Juan lhe serviu mais vinho.

– Posso te pedir algo?

– O que?

– Que me avise quando seu diretor viajar para a Colômbia.

– Por que? – perguntou ela, muito surpreendida para dizer não.

– As visitas oficiais demoram vários dias, não?

– Suponho que sim. A verdade é que não sei.

– E se seu diretor não está, você, que é sua secretária, tem pouco trabalho, verdade?

– É.

– Então, aproveitarei a ocasião para viajar para Washington. – Cortez se levantou e rodeou a mesa.

Aproveitou que ela não se prendeu o cinto da bata – . Devo partir amanhã cedo. um só dia contigo não é suficiente, meu amor. A meu ver, me parece que já está preparada.

– E você?

– Já veremos. Há algo que não compreendo – disse enquanto a ajudava a ficar em pé.

– O que?

– Como se pode ser tão idiota para procurar o prazer em um pó branco quando existem as mulheres? – Era verdade que não compreendia, mas tampouco lhe interessava averiguá-lo.

– Qualquer mulher?

– Não, qualquer mulher, não – disse, lhe tirando a bata.

– Meu deus – exclamou ela meia hora mais tarde. Tinha o peito brilhante de transpiração, dele e a própria.

– Retiro o que disse – ofegou ele, com o rosto contra o travesseiro.

– O que?

– Quando seu diretor viajar a Colômbia, não me chame. – Riu de sua própria piada – . Moira, não sei se poderei fazer isto mais de uma vez ao mês.

– Não deveria trabalhar tanto, Juan.

– Não posso evitar. – Voltou o rosto para olhá-la – Me sinto jovem outra vez. Mas já não sou.

Como é possível que as mulheres sejam eternamente jovens e os homens, não?

Ela sorriu da mentira. Tinha demonstrado ser um amante extraordinário.

– Não posso te telefonar.

– Por que?

– Não sei seu número de telefone – riu.

Cortez saltou da cama, tomou a carteira de seu bolso e murmurou algo que parecia uma maldição.

– Não tenho cartões... ah! – Tomou um pequeno bloco de papel da mesa de cabeceira e anotou– .

Este é o de meu escritório. Em geral não me encontrará ali. Passo os dias na fábrica. – Grunhiu – . Nela passo as noites e os fins de semana às vezes, até durmo ali. Mas Consuelo saberá onde me encontrar.

– Devo ir.

– Diga a seu diretor que viajará um fim de semana. Passaremos dois no campo. Conheço uma pousada pequena e discreta, a poucas horas daqui.

– Acha que poderá suportar? – perguntou ela, abraçando-o.

– Comerei bem e farei muitos exercícios – prometeu. deram o último beijo e Moira partiu.

Cortez fechou a porta e foi ao banheiro. A informação não era farta mas podia resultar crucial.

“Estão mudando as regras do jogo.” A mudança, qualquer que fosse, não era do agrado do diretor Jacobs, o qual, entretanto, aceitava-o. ia conversar com o ministro da Justiça colombiano. Jacobs e o ministro se conheciam, tinham estudado juntos a faculdade de Direito trinta anos antes. O ministro tinha viajado para assistir ao funeral da esposa de Jacobs. A mudança veio da Presidência. Bem. Dois capangas de Cortez estavam em Nova Orleans para reunir-se com o advogado dos dois idiotas que com sua estupidez fizeram fracassar o golpe do iate. O FBI estava metido nisso, e certamente obteria algum indício.

Cortez, que se lavava as mãos, levantou os olhos para olhar o homem que tinha obtido esses dados e decidiu que não gostava do que via. Afastou essa sensação de si. Não era a primeira vez, e, certamente, não seria a última.

O lançamento iniciou-se precisamente às 23:41. Os dois enormes foguetes propulsores do Titan-IIID acenderam no momento previsto, gerando um impulso superior a quinhentas toneladas, e o aparelho inteiro se elevou de sua plataforma em meio de um clarão que foi visto a duzentos quilômetros em volta.

Os foguetes propulsores se esgotaram em 120 segundos e foram descartados. acenderam-se os motores de combustível líquido da seção central do propulsor e elevaram o foguete mais e mais rápido. Enquanto isso, os instrumentos de bordo transmitiam informação à estação de controle de terra em Cabo Canaveral.

Também transmitiam a um posto de interceptação soviético, no extremo norte de Cuba, e a um “navio pesqueiro” de bandeira vermelha ancorado em frente ao Cabo. O Titan-IIID era um foguete empregado exclusivamente para fins militares; esse lançamento em particular interessava os soviéticos como resultado de um relatório não confirmado do GRU segundo o qual o satélite que seria posto em órbita levava instrumentos capazes de captar sinais eletrônicas muito fracos, embora não se soubesse de que tipo.

Mais alto, mais rápido. Consumido o combustível da segunda etapa, desprendeu-se a metade do foguete restante e se acenderam os motores da terceira fase; o artefato se encontrava a uns mil e quinhentos quilômetros de altitude. Nos bunkers de controle, os engenheiros e técnicos verificavam se tudo acontecia conforme o previsto, como era a um veículo de lançamento criado no final da década de 1950. A terceira etapa se esgotou no lugar e momento previstos. Ejetou-se o quarto estágio, que situaria o satélite em órbita geosincrónica sobre um lugar determinado do Equador. A equipe de controle em terra aproveitou o intervalo para tomar café, visitar o banheiro e repassar os dados do lançamento, que foi próximo da perfeição como era de se esperar.

O problema apareceu meia hora mais tarde. A quarta etapa iniciou antes do tempo, o motor se acendeu por sua conta e levou o satélite, mas não para o lugar previsto; em vez de ficar em posição estacionária, iniciou uma órbita excêntrica, uma espécie de número oito assimétrico sobre o Equador. A longitude era a mesma que fora prevista, a órbita interromperia a vigilância das latitudes superiores durante períodos breves mas incômodos. Apesar de tudo o que tinha funcionado bem, das milhares de peças que realizaram suas funções, o lançamento foi um fracasso. Os engenheiros responsáveis pelos primeiros estágios balançaram as cabeças em solidariedade com os responsáveis pela última, que observavam seus painéis de controle com evidente tristeza. O lançamento tinha fracassado.

O satélite não sabia. No momento indicado, separou-se do propulsor e começou a realizar as operações para as quais estava programado. estenderam-se seus pesados braços, de dez metros. As marés terrestres, a trinta mil quilômetros de distância, exerceriam sua força gravitacional sobre eles para mantê-

los em posição vertical. Os painéis solares se desdobraram, transformaram a luz solar em energia e carregaram as baterias. Por último, uma enorme antena parabólica começou a tomar forma. A estrutura, mescla de metal, plástico e cerâmica, “lembrou” sua figura particular e se desdobrou ao calor do sol até que, ao em três horas, tinha se transformado em um prato parabólico quase perfeito, de trinta metros de diâmetro. Um observador próximo do evento teria visto a placa do fabricante num lado do satélite. Era um anacronismo, já que ninguém se aproximaria tanto, mas erra essa tradição.

De acordo com essa placa dourada, o empreiteiro era TRW e o satélite um “Rhyolite-J”. Era o último de uma série obsoleta de satélites, construídos em 1981, que tinha permanecido armazenado – a um custo de cem mil dólares anuais – à espera de um lançamento que ninguém esperava ser realizado, já que a CIA e a Nasa tinham construído aparelhos de reconhecimento eletrônico menores e equipamentos de recepção de sinais mais avançados. Este antigo satélite tinha sido equipado com alguns dos novos aparelhos, cuja efetividade era maior graças a grande antena. A missão original dos “Rhyolite” era a interceptação de emissões eletrônicas soviéticas, telemetria de testes com mísseis, emissões de radar de defesa aérea, torres de micro-ondas escondidas, e inclusive de sinais de aparelhos de espionagem colocadas pela CIA em lugares estratégicos.

Mas ninguém se importava com isso Cabo Canaveral. Um oficial de relações públicas da Força Aérea disse numa roda de Imprensa que o lançamento (censurado) não tinha alcançado a órbita prevista.

Os soviéticos puderam verificar isso: diferente ao que esperavam, o satélite não ficou em órbita sobre o oceano Índico e sim sobre a fronteira peruano-brasileira, onde era impossível espionar à União Soviética.

Pareceu estranho para eles que os norte-americanos o deixassem funcionar, mas outro “pesqueiro” em frente à costa de Califórnia começou a receber fragmentos intermitentes de transmissões cifradas, enviadas pelo satélite a uma estação terrestre. As emissões, quaisquer que fossem, não tinham interesse para a União Soviética.

Esses sinais foram recebidos em Foil Huachuca, Arizona, onde os técnicos num caminhão de comunicações equipado com antena externa de satélites começaram a calibrar seus instrumentos. Não sabiam que o lançamento tinha fracassado. Só sabiam que todo o assunto era secreto.

A selva, pensou Chávez. O aroma era horrível, mas isso não o incomodava tanto quanto as cobras.

Nunca tinha comentado com ninguém o quanto tinha medo e detestava as cobras. Todas as cobras, de cor ou tamanho que tivessem. Não sabia por que – e sentia vergonha, porque supunha que o medo de cobras era coisa de mulher – , mas só pensar nesses bichos rasteiros e asquerosos, esses lagartos sem patas, com suas línguas bipartidas e seus olhos sem pálpebras, tinha calafrios. Esperavam ele nos galhos ou sob os troncos das árvores caídas, preparados para afundar suas presas em qualquer parte exposta de seu corpo.

Sabia elas fariam isso se lhes desse oportunidade. Estava certo que, nesse caso, morreria sem remédio.

Por isso mantinha-se alerta, assim nenhuma serpente o agarraria desprevenido. Sorte que tinha uma arma com silenciador, assim poderia as matar sem ruído. Cobras de merda!

Chegou em fim ao caminho, e embora a prudência indicasse que devia ficar no barro, queria estender-se sobre a terra seca. Antes isso estudou o lugar com seu visor noturno AN/PVS-7. Tomou fôlego abriu e seu cantil de plástico. Tinham avançado quase oito quilômetros em cinco horas – em uma marcha realmente forçada – para chegar no caminho antes do amanhecer, e sem serem vistos pelo inimigo, que estava sabendo de sua presença. Chávez tinha cruzado com eles em duas ocasiões: em cada caso era uma dupla de policiais militares americanos, que em sua opinião, não eram soldados de verdade.

À frente de sua equipe, tinha se esquivado deles, deslocando-se sigilosamente como... como uma cobra, pensou com um sorriso irônico. Poderia ter eliminado os quatro, mas tinha que pensar na missão.

– Bom trabalho, Ding! – O capitão Ramírez se sentou do seu lado. Falavam em sussurros.

– Diabos, estavam dormindo.

O capitão sorriu na escuridão.

– Odeio a esta maldita selva de merda, não aguento os insetos.

– Os insetos não me incomodam, capitão; mas, às cobras, não as posso nem ver.

Estudaram o terreno em ambas as direções. Nada. Ramírez bateu no ombro e foi em busca do resto de seus homens. Não tinha desaparecido de todo, quando a trezentos metros dali apareceu uma silhueta entre as árvores, caminhando diretamente para o Chávez. Perigo.

Ocultou-se sob um arbusto e deixou a metralhadora. Não estava carregada, nem sequer com projéteis de cera. Outro homem saiu, mas se afastou em sentido contrário.

Mau feito, pensou Chávez. As duplas têm que apoiar-se. Bom, pior para eles. A lua desaparecia atrás da borda superior da densa floresta, mas Chávez tinha a vantagem de observar o homem através de seu visor. O homem caminhava com cautela – sabia fazê-lo – , o olhar na borda do caminho e o ouvido alerta. Chávez tirou o visor e tirou a faca de combate da bainha. Quando o homem chegou a cinquenta metros de sua posição, o sargento se escondeu ainda mais, com as pernas dobradas sob o peito. A dez metros conteve o fôlego. Se pudesse parar o batimento do coração, teria feito para evitar o ruído. Isto era diversão. Se fosse sério, o sentinela teria uma bala de 9 milímetros alojada no crânio.

O homem passou junto a Ding, e o olhou sem o ver. Deu um mais passo antes de escutar um ruído de folhas, mas então era tarde. Caiu pesadamente de cara sobre o cascalho e sentiu a lâmina de uma faca apertada contra seu pescoço.

– Ninja!, a noite é nossa. Cara está morto.

– Já sei – sussurrou o homem.

Chávez o ajudou a levantar-se. Era um comandante e levava boina. Talvez o oponente não fosse da Polícia Militar, como ele tinha pensado.

– Identifique-se – disse a vítima.

– Sargento Domingo Chávez, senhor.

– Bom, Chávez, acaba de matar a um instrutor de guerra na selva. Felicito-o. Quer um gole? A noite foi muito longa. – Chávez e o oficial se esconderam entre os arbustos e beberam do cantil – . Qual é sua unidade? Não me diga, 3ª do 17.°, não?

– A noite é nossa, comandante – assentiu Chávez – . o senhor serviu ali?

– Vou para lá, para o Estado-Maior do batalhão. – O comandante limpou o sangue do rosto. A queda tinha sido forte.

– Sinto muito, comandante.

– A culpa é minha, sargento, não sua. Temos vinte caras escondidos na selva. Não pensei que chegasse até aqui sem ser descoberto.

Escutaram o ruído de um veículo. Momentos depois, os faróis de um “Hummer” – a versão moderna e maior do venerável jipe– apareceram para anunciar que o exercício tinha terminado. O

comandante “morto” partiu em busca de seus homens e o capitão Ramírez fez o mesmo.

– Cavalheiros, acabamos de ser aprovados no exame final. Descansem e durmam bem todo o dia.

Esta noite começa a missão.

– Não pode ser – disse Cortez. Embarcou no primeiro avião de Washington para Atlanta. Ele e seu contato analisavam a informação na segurança de um carro alugado em que percorriam no limite de velocidade permitida da estrada ao redor de Atlanta.

– Digamos que é guerra psicológica – repôs o outro homem – . Não negociam as acusações, nem nada. Julgam-nos diretamente por homicídio. Não terão a menor consideração com o Ramón e Jesus.

Cortez olhou o trânsito. Não se Importava com os dois assassinos, dispensáveis como qualquer outro terrorista que matava sem saber por que. Mas estava confuso por uma série de relatórios fragmentários, desconexos na aparência, sobre as operações de interceptação americanas. Eram muitos os aviões de carga desaparecidos. E a forma de encarar o caso não era usual para os ianques. O diretor do FBI estava envolvido em algo que não era de seu agrado, e sobre o que não tinha informado sua secretária particular.

“Mudar as regras do jogo.” Isso podia significar muitas coisas.

Tinha que ser algo fundamental. Mas, o que?

Dispunham de muitos informantes de confiança no Governo, a Alfândega, o DEA, o serviço de guarda costeira, mas nenhum tinha informado nada. As Forças de Segurança não participavam disso... A única exceção era o diretor do FBI, que estava aborrecido e que viajaria para Colômbia nos próximos dias...

Alguma operação de espionagem..., não. Medidas ativas? Era uma frase da KGB que podia significar várias coisas, desde entregar desinformação à Imprensa até fazer um trabalho “sujo”. Mas os Estados Unidos não faziam isso. Franziu as sobrancelhas. Como oficial de Inteligência, sua tarefa era pegar dados fragmentários e desconexos para determinar o que faziam as pessoas que lhe interessavam.

Detestava o seu patrão, mas isso não tinha importância. Seu amor próprio estava em jogo, e detestava ainda mais os Estados Unidos.

O que se tinha nas suas mãos? Cortez reconheceu que não sabia, mas em uma hora embarcaria num avião, e em seis horas diria a seu patrão que não sabia de nada. Esse era o problema.

Algo fundamental. Mudar as regras. Ao diretor do FBI não gosta. Sua secretária não sabe. Uma viagem clandestina a Colômbia.

Cortez serenou. A ameaça, se é que havia uma , não era imediata. O Cartel estava muito seguro.

Haveria tempo suficiente para analisar e elaborar a resposta.

Na cadeia do contrabando havia muitos intermediários dispensáveis, que inclusive se disputariam a oportunidade do sacrifício. E depois o Cartel se adaptaria à nova situação, como sempre. Bastava convencer a seu patrão dessa verdade elementar. O que importava ao chefe a sorte de Ramón e Jesus, ou de quaisquer dos empregados que transportavam drogas e matavam quando era necessário? A única coisa que importava era que as drogas chegassem aos consumidores sem interrupção.

Pensou outra vez nos aviões que desapareciam. Historicamente, os americanos interceptavam um ou dois voos por mês, apesar de ter tantos radares e aviões. Mas nas últimas duas ou três semanas tinham desaparecido quatro aviões. O que estava acontecendo? Embora os Estados Unidos não soubessem, sempre produziam “perdas operativas”, frase militar que designava os acidentes de aviação. Seu patrão tinha contratado a Carlos Larson para diminuir esse desperdício de recursos, e até pouco tempo tinha obtido resultados promissores. A que se devia esse brusco aumento das perdas? Se os americanos os tivessem interceptado, os sujeitos teriam aparecido nos tribunais e prisões, não? Descartou essa ideia.

Sabotagem? Alguém colocava explosivos nos aviões, à maneira dos terroristas árabes? Parecia difícil, mas... Tinham verificado isso? Não precisava muito. Um defeito pequeno num avião pequeno podia significar um problema cuja solução requeresse muito tempo. Bastava um centímetro cúbico de explosivo... faria que verificassem. Mas, quem o fazia? Os americanos? E se fossem eles que colocavam bombas em aviões?

Estavam dispostos a correr esse risco político? Provavelmente, não. Então, quem? Os colombianos, talvez. Um alto oficial militar colombiano, agindo por conta própria... ou a soldo dos ianques. Talvez. O

Governo colombiano, não; isso era impossível. Eles tinham muitos informantes para não terem se inteirado.

E por que tinha que ser uma bomba? por que não combustível adulterado? Ou um dano menor no motor, ou num cabo de controle... ou um instrumento de voo?

Lembrou-se do que Larson havia dito sobre o voo a baixa altitude: e se o mecânico tivesse alterado o indicador do horizonte artificial... para que não funcionasse... ou talvez algo no sistema elétrico? Era difícil fazer cair um avião pequeno? A quem perguntar? A Larson?

Cortez se repreendeu mentalmente. Um profissional como ele não podia deixar-se levar por especulações. Havia inumeráveis possibilidades. Era evidente que estava acontecendo, mas ele não sabia o que. corrigiu-se: não era evidente, era provável. O desaparecimento de tantos aviões podia ser uma mera anomalia estatística: ele não acreditava, mas devia ter em conta essa possibilidade. Uma série de coincidências: em nenhuma escola de espionagem do mundo se ensinava os alunos a acreditarem nas coincidências; entretanto, em sua carreira havia visto muitas, e das mais estranhas.

– Mudaram as regras – murmurou.

– Como? – perguntou o motorista.

– Vamos ao aeroporto. Meu voo para Caracas parte em menos de uma hora.

– Sim, chefe.

O voo partiu na hora. O motivo da viagem a Venezuela era óbvio. Por um lado, Moira poderia sofrer um ataque de curiosidade, querer saber seu número de voo, e, por outro, os agentes americanos se interessavam muito menos pelos viajantes que iam para Caracas do que aqueles que iam diretamente a Bogotá. Quatro horas mais tarde, transbordou para um voo da Avianca que o levou a aeroporto internacional de El Dorado, e, dali, realizou a última etapa de sua viagem num avião particular pequeno.

Desta vez houve uma novidade na entrega do equipamento. Chávez percebeu que ninguém assinou nada. Isso sim era uma mudança na rotina. No Exército todo mundo tinha que assinar um recibo por seu equipamento e se algo se extraviava ou quebrava, embora não tivesse que pagar, tinha que prestar contas de algum jeito. Desta vez não foi assim.

Nem todos levavam a mesma carga. Chávez, o explorador, tinha a mais leve; Vega, um dos metralhadores, a mais pesada. Ding, onze carregadores para sua metralhadora MP-5, num total de 330

projéteis. As únicas armas pesadas que o pelotão levava eram os lança-granadas M-203 que eram levados por dois soldados.

O uniforme de combate não era do padrão habitual de camuflagem com manchas de diversas cores e formas, mas sim de cor parda, porque se alguém os visse, não deviriam parecer americanos. Roupas dessa cor eram muito comuns na Colômbia, as de camuflagem não. Um gorro verde no lugar do capacete e um lenço para cobrir o cabelo. Cosméticos de camuflagem para o rosto. Um estojo impermeável para os mapas, igual ao do capitão Ramírez. Quatro metros de corda com um mosquetão de mola para todo mundo. Um rádio FM de curto alcance, um modelo comercial caro, que, entretanto era mais barato que o que o Exército usava habitualmente. Binóculos de 7x de fabricação japonesa. Correias de uso americano –

embora de fabricação espanhola – como o que usam todos os exércitos do mundo. Dois cantis de um litro para pendurar do cinto e um galão de dois litros para levar na mochila comercial, de fabricação americana. Uma boa provisão de tabletes para a purificação da água, porque teriam que se abastecer na marcha.

Ding recebeu uma luz estroboscópica com lentes infravermelhas e um painel VS-17, porque uma de suas tarefas era escolher e marcar as zonas de aterrissagem dos helicópteros. Um espelho de aço para enviar sinais quando não se pudesse usar o rádio (além disso, os espelhos de aço não quebram). Uma pequena lanterna; um acendedor a gás de butano, muito mais eficaz que os fósforos. Um frasco grande com Tylenol extra-forte, também conhecido como o “caramelo da Infantaria”.

Um frasco de xarope com codeína para a tosse. Um frasco de vaselina. Um spray de gás lacrimogêneo CS concentrado. Equipamento de manutenção de armamento com escova de dente incluída.

Pilhas de reposição diversas. Máscara antigas.

Chávez carregava pouco peso, com apenas quatro granadas de mão – tipo NR-20 CI de fabricação holandesa – e duas de fumaça, da mesma procedência. O resto tinha granadas fragmentárias e de gás lacrimogêneo CS, todas holandesas. De fato, todas as marcas e munições tinham sido adquiridas em Colombo-Panamá, que se convertia rapidamente no mercado mais acessível do hemisfério. Para comprar qualquer arma, só precisava ter o dinheiro necessário.

As rações eram as habituais. O problema higiênico principal era a água, mas já tinham explicado para ele como utilizar os tabletes purificadores. Quem esquecesse usar receberia uma quantidade de pílulas antidiarreicas e um sermão do capitão Ramírez. Em Colorado tinham sidos aplicadas vacinas de reforço contra as doenças tropicais endêmicas da zona e todos levavam um repelente inodoro de insetos fabricado pela mesma empresa que vendia o produto comercial Off. O médico levava um estojo de primeiro socorros completo e cada fuzileiro tinha sua própria seringa preparada com morfina, e um frasco de plástico com líquidos intravenosos para repor o sangue perdido.

Chávez levava um afiado facão, um estilete automática, e, certamente, suas três estrelas ninjas não regulamentares, cuja existência era desconhecida pelo capitão Ramírez. Com estes e vários outros objetos, a carga de Chávez pesava exatamente vinte e seis quilos. Era a mais leve de todas. As mais pesadas eram as de Vega e do outro metralhador: trinta e dois quilos. Ding acomodou o peso sobre os ombros e ajustou as correias da mochila para que fossem o menos incômodas possível. Era inútil.

Carregava o equivalente a um terço de seu próprio peso, o máximo um homem pode carregar sem sofrer uma quebra física. Tinha amaciado bem suas botas e levava vários pares de meias.

– Ding, me dá uma mão? – perguntou Vega.

– Claro, Julio. – Cortou uma das correias de sua mochila – . Tudo bem?

– Perfeito, irmão. Caramba, terei que pagar por levar a maior arma.

– Acredito em você Urso.

– Vega ganhou esse apelido por sua grande habilidade em preparar e carregar sua mochila.

O capitão Ramírez percorreu a fila para verificar a carga de cada um. Ajustou as correias deles um por um, endireitou a mochila de outros, comprovou que todo mundo levasse sua arma limpa e carregada.

Quando terminou, acomodou sua carga com ajuda de Ding e, finalmente, parou em frente do pelotão.

– Bem. Alguém está doente, com dor ou bolhas?

– Não, capitão! – responderam em coro.

– Estamos prontos para a marcha? – perguntou com um amplo sorriso para ocultar seu nervosismo.

– Sim, capitão!

Faltava o último procedimento. Ramírez percorreu a fila recolhendo as plaquetas de identificação de cada um. Guardou-as em bolsas de plástico separadas, com as carteiras e os documentos de identidade.

Fez o próprio com as suas, contou as bolsas e as deixou sobre a mesa, no barracão. Os pelotões saíram e cada um embarcou num caminhão de cinco toneladas. Não houve muitas despedidas. Durante o período de instrução se forjaram algumas amizades, mas quase todas dentro de cada pelotão. Cada unidade de onze soldados era uma comunidade autossuficiente. Cada membro sabia tudo o que se podia saber dos outros, desde suas façanhas sexuais até sua perícia com as armas. Tinham surgido algumas amizades e também valiosas rivalidades. A relação entre eles era muito mais estreita que a mera amizade. Cada um sabia que sua vida dependia da destreza de seus companheiros, e nenhum estava disposto a mostrar um sinal de fraqueza. Embora discutissem acaloradamente, formavam uma equipe. Apesar de trocarem farpas, em poucas semanas se tornaram um organismo único e complexo em que Ramírez era o cérebro, Chávez os olhos, Julio Vega e o outro metralhador os punhos e outros cumpriam funções igualmente vitais. Estavam perfeitamente preparados para sua missão.

Os caminhões se pararam atrás do helicóptero que os soldados abordaram formados em seus pelotões. A primeira coisa que Chávez viu foi a metralhadora 7.62 mm no lado direito da máquina. junto a ela havia um suboficial da Força Aérea vestido com macacão verde e capacete de voo camuflado. De uma grande gaveta saía o carregador da metralhadora. Ding não sentia grande respeito pela Força Aérea –

considerava que eles fossem uns caminhoneiros bichas – mas reconheceu que o homem tinha um aspecto extremamente sério e competente. Havia uma arma similar no lado oposto e lugar para outra atrás. O

engenheiro de voo – que segundo a placa de seu uniforme se chamava Zimmer – indicou seus lugares e se assegurou de que cada um estivesse bem preso ao chão do aparelho.

Chávez não falou com ele, mas se deu conta que era um veterano. Teve que reconhecer que jamais tinha visto um helicóptero tão grande como aquele.

O engenheiro de voo efetuou as últimas verificações, depois tomou seu lugar e conectou seu capacete ao sistema intercomunicador. A seguir se escutou o zumbido dos dois motores.

– Parece que está tudo bem – disse PJ pelo microfone. Os motores tinham sido pré-esquecidos e os depósitos de combustível estavam cheios. Zimmer tinha concertado um defeito hidráulico menor e o

“Pave Low III” estava tão preparado quanto desejava uma equipe de mecânicos peritos. O coronel Johns apertou o botão do microfone.

– Falcão dois e cinco a torre, permissão para nos deslizamos pela pista.

– Torre a dois e cinco, permissão concedida. Vento um e zero nove a seis nós.

– Entendido. Duas e cinco pela pista. Desligo.

Johns girou o computador de escapamento do controle coletivo e avançou a alavanca. Devido ao tamanho e a potência do grande “Sikorsky”, acostumava-se fazer um percurso pela pista até a plataforma antes de levantar voo. O capitão Willis olhou ao seu redor, mas não havia tráfego a essa hora da noite.

Como medida adicional de segurança, um tripulante de terra retrocedia a frente da máquina, agitando dois bastões luminosos. Quando o aparelho chegou à plataforma, os dois bastões se juntaram e apontaram à direita. Johns olhou o tripulante e devolveu a ele a saudação cerimoniosa.

– Bem, cavalheiros, em marcha. – PJ deu máxima potencia aos motores e verificou o instrumental pela última vez. Tudo Ok. O helicóptero levantou um pouco o nariz, depois se endireitou e começou a avançar. A seguir iniciou sua ascensão, gerando um pequeno ciclone de pó que só era visível entre as luzes azuis do perímetro.

O capitão Willis calibrou os sistemas de navegação e ligou a tela eletrônica de configuração do terreno. Nela apareceu um mapa móvel similar ao de James Bond em Goldfinger. O navegador do “Pave Low” podia escolher entre um sistema de radar “Doppler” que seguia o terreno, um sistema inercial de giroscópios laser e os satélites. O helicóptero seguiu inicialmente a borda do canal para simular uma patrulha normal de segurança. Sem saber, passou a menos de mil metros do centro de comunicações do Showboat, no Corezal.

– Que trabalho de construção, não? – comentou Willis.

– Conhecia o canal?

– Não, é a primeira vez que o vejo, senhor. Um trabalho notável, considerando que foi construído a noventa e oito anos. – Sobrevoaram um grande navio porta-conteiners, e o ar quente da chaminé agitou o helicóptero. PJ virou levemente à direita para evitá-lo. O voo duraria duas horas e não queria incomodar os passageiros mais do que o estritamente necessário. Uma hora depois, o avião cisterna MC-130E

levantaria o voo para reabastecê-los na viagem de volta.

– Sim, tiveram que remover muita terra – disse o coronel Johns depois de uma pausa. acomodou-se em seu assento. Vinte minutos mais tarde “molharam os pés” sobre o Caribe. Era o trecho mais comprido da viagem, que seguia rumo zero e nove zero direito para o oeste.

– Olhe – disse Willis meia hora depois. Em suas telas de visão noturna apareceu um avião bimotor que se dirigia para o Norte, a uns dez quilômetros de sua posição.

– Voa sem luzes.

– Eu me pergunto o que levará.

– O certo é que não é o correio aéreo. – O importante é que não possa nos ver, a menos que tenha o mesmo equipamento que nós.

– Poderíamos nos aproximar, apontar com as metralhadoras e...

– Esta noite, não. – Mas não era uma má ideia...

– O que acha de nossos passageiros...?

– Se tivéssemos que saber, capitão, já teriam nos dito – disse Johns. Claro que ele também sentia curiosidade. Merda, levavam artilharia pesada, pensou o coronel. Não usavam uniformes padrão...

evidentemente era uma operação de infiltração clandestina – Droga, isso eu já sei faz tempo – ; mas, evidentemente, tinham a intenção de permanecer durante muito tempo no terreno. Johns não conhecia outro caso similar. perguntou-se se os colombianos estariam cientes... provavelmente, não. E vamos estar aqui durante quase um mês, assim lhes daremos apoio e os tiraremos de lá se as coisas ficam feias... é como no Laos – pensou – . Sorte que tenho o Buck. Ele e eu somos os únicos veteranos. O coronel Johns balançou a cabeça. Onde tinha ido sua juventude?

Passou-a com um helicóptero, fazendo todo tipo de loucuras.

– Tenho um navio no horizonte às onze – disse o capitão, e alterou o rumo levemente para a direita.

As instruções eram muito claras. Ninguém devia vê-los nem ouvi-los. Tinham que evitar os navios, os pesqueiros e inclusive os golfinhos, manter-se longe da costa, a não mais de trezentos e cinquenta metros de altitude e sem luzes. Era uma missão para tempos de guerra, em que tinham pulado certas normas de segurança em voo. Este último era fora do comum, inclusive por tratar-se de uma operação especial, pensou Johns. Artilharia pesada e todo o resto.

Chegaram à costa colombiana sem incidentes. Ao vê-la, Johns passou a informação à tripulação. Os suboficiais Zimmer e Bean conectaram suas metralhadoras com motor elétrico e abriram as portas correspondentes.

– Acabamos de invadir um país amigo – disse Willis quando se “secaram os pés” ao norte de Tolú.

Utilizaram o instrumental de baixa luminosidade para procurar o tráfico rodoviário, que também deviam evitar. Tinham fixado para eles um rumo que evitava as zonas povoadas. A hélice de seis pás não fazia o ruído sibilante característico dos helicópteros menores. À distância, o ruído não era muito diferente ao de um avião a turbina; também era enganoso em outro sentido: se a gente escutasse o ruído, era difícil determinar de onde vinha. Sobrevoaram a autoestrada Pan-americana e viraram ao norte passando ao leste de Plato.

– Zimmer, aterragem um em cinco minutos.

– Entendido, PJ – disse o engenheiro de voo. Bean e Childs ficariam com as metralhadoras, Zimmer comandaria a descida.

É uma missão de combate – pensou Johns com um sorriso – . Buck me chama assim quando pensa que vão atirar nele.

O sargento Zimmer percorreu o centro do helicóptero, ordenou aos dois primeiros pelotões que tirassem os cintos de segurança e levantou os dedos para lhes mostrar quanto tempo faltava. Os dois capitães assentiram.

– Aterragem um à vista – disse Willis.

– Eu assumo o comando.

– Piloto no comando.

O coronel Johns desceu em espiral sobre a clareira selecionada nas fotos obtidas via satélite. Willis estudou o terreno em busca de vida humana, mas não havia o menor sinal dela.

– Nada à vista, coronel.

– Preparados para descender – disse Johns pelo intercomunicador.

– Preparem-se! – exclamou Zimmer quando o nariz do helicóptero se elevou.

Chávez e o resto do pelotão levantaram-se e colocaram se a frente da porta traseira. Seus joelhos dobraram um pouco quando o “Sikorsky” tocou em terra.

– Já! – exclamou Zimmer. Indicou-lhes que saltassem e foi tocando o ombro de cada soldado para contar.

Chávez saltou atrás do capitão e, ao tocar terra, girou à esquerda para evitar a aleta do leme. Correu dez passos e se jogou no chão. Sobre sua cabeça, as mortíferas paletas da hélice giravam a mais de dois metros do solo.

– Preparado, preparado, preparado! – disse Zimmer depois de que o último saltou em terra.

– Entendido – disse Johns, e iniciou a ascensão.

Chávez girou a cabeça quando aumentou o zumbido do motor. O helicóptero era quase invisível, mas viu sua silhueta espectral e sentiu o ardor no rosto quando a terra que levantavam as lâminas golpeou seu rosto a cem nós. Imediatamente, cessou, e o helicóptero desapareceu.

A sensação, embora não inesperada, surpreendeu-o. Estava em território inimigo. Era o combate real, não um treinamento. Sua única via de escape acabava de desaparecer. Embora o rodeassem dez homens, uma sensação de solidão o atingiu. Mas era um homem treinado, um soldado profissional.

Chávez apertou sua arma para se dar força. Não estava totalmente sozinho.

– Em marcha – disse o capitão Ramírez.

Chávez avançou para as árvores, consciente de que o pelotão o seguia.

 

 

 

C O N T I N U A