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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PESADELO NO IRÃO / Cherry Mosteshar
PESADELO NO IRÃO / Cherry Mosteshar

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Uma viagem de regresso ao irão, seu país natal, vai revelar-se uma passagem para o inferno, um pesadelo do qual será difícil escapar. A jornalista Cherry Mosteshar faz o relato espantoso dessa etapa cruel e dolorosa, iniciada no dia em que decide procurar as suas raízes.

Cherry Mosteshar nasceu no seio de uma abastada família iraniana. Embora tenha nascido no irão, foi educada no ocidente, tendo estudado em oxford. Quando, já como jornalista, regressa ao seu país natal como correspondente para a imprensa britânica, encontra uma realidade bem diferente da que esperava. O irão da era pós-revolucionária vai abalar as suas crenças e o seu futuro, vai chocá-la de um modo irreversivel.

Nesse irão "moderno", cherry encontra a única realidade a que as mulheres islâmicas têm direito: uma realidade despida de opções e humanidade, na qual ela, como todas as mulheres, não tem qualquer estatuto ou valor.

É durante a elaboração das suas reportagens sobre o governo iraniano que Cherry começa a questionar abertamente as leis islâmicas. Sob ameaça de prisão e considerando a hipótese de regressar ao ocidente, cherry conhece um homem iraniano cuja sensibilidade e fé lhe permite recuperar uma tradição que julgara ter perdido para sempre. Ele parecia, de facto, estar do seu lado... Será apenas após o casamento que cherry virá a descobrir a verdadeira e terrível natureza desse homem; e, num país onde os homens podem tudo, isso será, por si só, uma ameaça constante.

Este relato vívido, duro e apaixonado é o fruto dessa experiência, e retrata sem pudor o quadro chocante da opressão feminina nos países islâmicos onde o cordo é usado como uma arma legitimadora da opressão e da violencia sobre as mulheres.

 

 

 

 

                     Em busca do Paraíso

Todos os bons muçulmanos vão para o céu, quanto a isso não há a mínima dúvida. Não obstante, há alguns que chegam lá mais rapidamente do que outros. Para a maior parte dos pecadores, existe uma estadia muito mais alargada no purgatório, onde dispõem da oportunidade de se penitenciarem por aquelas pequenas transgressões que eventualmente poderão barrar-lhes a entrada nos jardins de Deus. A extensão dessa estadia no purgatório depende dos pontos Brownie' que se conseguiu ao longo da vida, ou da celeridade com que os familiares vivos tratam de arranjar pontos adicionais que serão acrescidos aos existentes.

Aquilo que constitui motivo para a perda de pontos depende inteiramente da espécie de sector da Igreja islâmica a que se pertença. Qualquer mulher da Bósnia, de cabeça descoberta, poderá esperar ter o seu lugar no Paraíso desde que defenda os pilares da fé, ao passo que a sua congénere iraniana, dos anos noventa, seria condenada a uma estadia suplementar no limbo por ter deliberadamente exibido uma madeixa de cabelos.

Para aqueles que não possam cumprir na íntegra todas as suas orações diárias, existe um molá ou qualquer outra personalidade da religião, que poderá ser incumbido de as rezar em lugar do falecido. Os familiares também poderão optar por pagar a alguém que observe todos os jejuns obrigatórios do Ramadão que possam ter sido descurados pelo falecido, sendo ainda possível remunerar alguém que faça por eles a necessária peregrinação a Meca. O martírio tornou-se cada vez mais popular ao longo dos séculos, devido às suas qualidades de direito automático que isenta da passagem pelo purgatório, permitindo ao falecido e familiares consanguíneos mais chegados transporem directamente as portas do Paraíso,

 

Referência às escuteiras norte-americanas na faixa etária dos sete aos nove anos, que ganham pontos de acordo com as boas acções que pratícam. (N. da Z)

T Muçulmano versado em Teologia e Direito religioso (do árabe 13)

 

sem escalas e sem serem questionados. Os homens que vão para a guerra em nome do Irão recebem uma chave - fabricada na Formosa - com a qual poderão abrir as portas do Céu, caso o Criador lhes ceife a vida. Não é inusual ver os molás orando na linha da frente de combate, pedindo que os fiéis prestes a entrarem em combate sejam abençoados com a dádiva do martírio. Sobreviver à guerra é considerado um prémio concedido aos idiotas.

O martírio em nome da República Islâmica do Irão não só garante os favores celestiais, como também compensações monetárias na Terra. As famílias dos mártires são ajudadas financeiramente pela Fundação dos Mártires; são-lhes concedidas férias gratuitas nos lugares santos situados no Médio Oriente, para além de figurarem no topo das prioridades de habitação, ao que se acresce lugares reservados na universidade e cargos de direcção em empresas. As viúvas chegam ao ponto de poderem contar com o apoio da Fundação do Matrimónio, que lhes arranja maridos substitutos.

Uma vez obtido o acesso, o Paraíso é um jardim fechado onde as árvores de folhagem luxuriante e a fauna exótica dão abrigo aos bons e puros, protegendo-os de todas as tempestades e tormentas. Aí estão reservados deleites inimagináveis que aguardam os homens de fé islâmica. Os rios de leite, mel e vinho atravessam este Paraíso - um maná para os apreciadores de bebidas alcoólicas -, ladeados por árvores que dão os frutos do perdão. Quem estiver isento de pecado poderá desfrutar a seu bel-prazer de todo este manancial, reclinado em poltronas estofadas a seda.

A abstinência durante a vida é recompensada por uma desmesura de todos os frutos proibidos ao longo da eternidade.

Os bons muçulmanos aguardam com ansiedade que todos os seus desejos sejam satisfeitos por sete huris de olhos arregalados - fadas - perpetuamente virgens imaculadas. Estas donzelas são castas pérolas de amor cujo único objectivo é compensar os homens pelo trabalho árduo que executaram na Terra. A eternidade decorre entre os jogos amorosos com este harém celestial perfeitamente formado.

Qualquer vida genuinamente islâmica deve ser passada em demanda de um só objectivo: um lugar no Paraíso celestial. Na hipótese de os homens muçulmanos terem amealhado bens terrenos no decurso da sua existência, tanto melhor, uma vez que isso lhes proporcionará gastar muito mais na obtenção de tesouros na sua vida no Além.

E o que é que estará reservado no Além às boas mulheres muçulmanas? Enquanto os seus congéneres masculinos desfrutam dos prazeres paradisíacos, bebendo-os de taças de cristal e prata, as mulheres gozam do privilégio e prazer de construírem o resto do Paraíso. Aí não existem mancebos virginais que lhes retirem a pele dos bagos de uva, nem tão-pouco são encorajadas a saborear os prazeres da abundância dos rios e árvores. No entanto, as virgens imaculadas aliviam as mulheres da penosa tarefa de proporcionarem satisfação carnal àqueles que ganham o sustento.

A recompensa das mulheres por toda uma vida de lavagens e limpezas, para além de terem dado à luz os filhos sem queixumes nem reclamações, é passarem a ser construtores, carpinteiros e decoradores, um privilégio que se sobrepõe ao dos homens, a quem é concedido o direito de se refastelarem única e exclusivamente. As mulheres prosseguem o trabalho de Deus para além da sepultura.

Os estudiosos muçulmanos poderão pôr em questão este ponto de vista, enquanto os seus apologistas talvez afirmem que no Corão não é feita qualquer referência a este assunto; no entanto, pergunte-se ao muçulmano médio da rua e ele ou ela dir-nos-ão que foram ensinados a contar com isto por uma vida virtuosa.

 

               Uma recordação de Primavera

Continuo a recordar-me do dia em que me transformei numa iraniana pela primeira vez, o que, devo admitir, me causou algum choque ao fim de vários anos durante os quais sempre me considerei persa. Aconteceu em 1971, andava eu na quarta classe, quando Mohammed Reza Palevi, o Aryamehr xá de todos os xás (o Rei dos Reis e Luz dos Arianos), decidiu celebrar os dois mil e quinhentos anos da monarquia persa. Para tal, contratou cozinheiros do Maxime de Paris, mandou vir flores de estufas dos Estados Unidos e contratou estilistas de Paris, Roma e Milão para vestirem as damas imperiais.

Quando os dirigentes mundiais se reuniram para assinalar a ocasião em Persépolis, a capital da Pérsia da Antiguidade, o segundo xá da dinastia Palevi - cujos membros eram considerados pelas famílias antigas, à semelhança da minha, como novos- ricos - pediu ao mundo que passassem a chamar a sua nação pelo seu nome original: Irão.

Foi do dia para a noite que transformou o vinho em petróleo. A terra de poetas como Hafiz e Saadi, que glorificavam o vinho, a rosa e o rouxinol encantado, transformou-se na terra da alta sociedade da abastança petrolífera. Um iraniano era uma criatura inteiramente diversa de um nobre persa. Para começar, os iranianos eram constantemente confundidos com os iraquianos, e com outros vários povos árabes. Não é boa ideia confundir o povo ariano do Irão com os árabes semíticos. Caso se incorra neste engano em frente do persa médio, este chamar-nos-á a atenção implacavelmente, ainda que com cortesia, para as nossas lacunas no departamento educacional. Em contrapartida, um iraniano seria bastante mais merecedor da admiração mundial.

Como se esta diferença de natureza semântica entre iranianos e persas não fosse suficientemente confusa para uma estudante simples da Universidade de Oxford, pouco tempo depois vimo-nos confrontados com outra mudança: a Revolução Islâmica. Uma vez mais, fomos transformados pelo ayatollah Ruhollah Khomeini, embora desta vez nos tenhamos tornado em terroristas e assassinos.

É possível que tenha sido um preço que tivéssemos de pagar. Fora fácil ser-se persa quando somente um escasso número de cidadãos comuns da Grã-Bretanha sabia com exactidão onde é que a Pérsia se situava - algures próximo da Grécia? Seria em África? Eu era diferente, exótica, e adorava isso. Felizmente para mim, fui criada com a noção de que era desejável ser-se diferente, um tudo-nada excêntrica. Cabia-me a responsabilidade de causar boa ou má impressão nas pessoas que me rodeavam, dado que era a sua principal fonte de informações relativas à Pérsia.

A Pérsia onde eu tinha crescido - por entre as histórias que os meus pais me contavam da Antiguidade - era uma nação de belas mulheres com fibra, enquanto os homens eram honrados e corajosos. As pessoas deslocavam-se em magníficas carruagens puxadas por garanhões árabes de pelagem bem tratada; iam aos bailes grandiosos, ou então passavam o tempo batendo-se pelo seu reino em guerras ainda mais grandiosas. As raízes hereditárias da minha mãe, na Geórgia, Arménia e Azerbeijão, regiões do mundo que em tempos fizeram parte da antiga União Soviética, davam-me ainda mais a convicção de que era uma personagem das páginas de Guerra e Paz.

Antes da revolução de 1979 fui uma das jovens mulheres mais ricas da rua onde vivíamos na zona norte de Teerão. Com o advento do Estado islâmico, transformei-me num dos maléficos taghouti - termo empregue pelo Corão para referir os rebeldes, sendo um dos nomes por que Satanás é conhecido, e que posteriormente foi utilizado pelo ayatollah Khomeini para descrever aqueles que desobedeciam aos seus preceitos religiosos. Fiquei marcada com o epíteto de traidora no meu Irão natal, antes mesmo de ter a oportunidade de ser algo mais do que a rebelde filha mais nova dos meus progenitores. Digo Irão natal apesar de pouco mais ter feito do que nascer aí, e onde também estive prestes a morrer de vermes. Apenas com dois anos de idade, fui apressadamente levada para a minha nova terra, a terra do Pequeno Satanás. Desde então tenho envidado todos os esforços para lá regressar, sem qualquer êxito.

Em 1959 a minha mãe levou-me para Inglaterra, juntamente com a minha irmã Pari, onde nos reunimos ao meu pai, ao meu irmão Said e à minha irmã mais velha, Mahshid. Na altura Said estava internado no hospital com uma doença intestinal, ao passo que Mahshid fora enviada para um colégio interno a fim de ficar protegida da deterioração moral do Irão.

Quinze anos mais tarde, quando o meu pai expulsou um jovem de nossa casa por ter apalpado a minha melhor amiga durante a minha festa de aniversário, imaginei que isso se deveu ao facto de sermos persas. Sentada em casa enquanto os meus amigos percorriam os pubs e clubes de Oxford, imaginei que isso se devesse ao facto de eu ser iraniana, tal como o mundo insiste em nos chamar actualmente. A condição de persa a viver em Oxford também significava que não podia usar jóias nem collants até fazer dezasseis anos, o que também se traduzia em sobrancelhas por arranjar e pernas cheias de pêlos até ao meu décimo oitavo aniversário, e nada de maquilhagem carregada até sair de casa para frequentar a universidade. Porque sou persa, nunca fumei na presença do meu pai ou dos meus avós, além de nunca me recusar a obedecer às ordens dos meus irmãos bastante mais velhos do que eu. Porque sou persa, tenho de viver em casa dos meus pais se sou solteira ou estiver desempregada.

Tudo isto se deve ao facto de ser persa e muçulmana. Por conseguinte, acreditem que foi um choque muito grande para mim quando regressei ao Irão em 1970 com a idade de treze anos, pois constatei que as minhas primas da mesma idade usavam maquilhagem e arranjavam as sobrancelhas, além de raparem os pêlos das pernas, enquanto as que tinham apenas mais três anos do que eu saíam com namorados e iam a festas sozinhas.

Mas - e este é um grande mas - tinham-me ensinado a dar-me com os homens como se estes fossem apenas mulheres com mais pêlos faciais. Fui obrigada a beber defronte dos meus pais, de forma a conhecer os meus limites, o que me impediria de vir a ser des viada por maus caminhos por gente que se aproveitaria de mim. Fui levada ao Moulin Rouge e a Las Vegas com a finalidade de presenciar uma existência de depravação, o que me faria sentir que não estava a perder nada de mais e que me impediria de trilhar maus caminhos. Também me ensinaram que teria de trabalhar, uma vez que o Trabalho Enaltece a Pessoa, sendo algo que se deveria fazer para melhorarmos a nossa alma e não o saldo da nossa conta bancária. A minha mãe disse-me que deveria ter pena das minhas primas que viviam no Irão e que haviam casado, pelo que nunca se viram obrigadas a assumir a responsabilidade das suas próprias vidas, situação em que teriam de trabalhar para se sustentarem.

Não me passou despercebido que ser iraniana no Irão era bastante mais divertido do que ser persa na Grã-Bretanha.

No que me dizia respeito, o único problema que se punha em relação ao Irão era o facto de insistirem em que tudo fosse feito emfarsi, língua que eu não dominava fluentemente (e que continuo a não dominar). Ora bem, se tivessem falado inglês, francês ou mesmo arábico, eu teria tido algumas possibilidades de vir a concretizar a minha grande ambição de vir a ser ministra dos Negócios Estrangeiros. Ao invés, emfarsi teria necessitado de todo o dia para conseguir ler um simples memorando cujo tema fosse os clipes do escritório. Para minha grande vergonha, constatei que me tinha esquecido de todas as palavras da língua persa clássica que lera na Universidade de Manchester, mesmo antes de ter recuperado a sobriedade no rescaldo da festa de fim do liceu.

Muito possivelmente, qualquer cargo ministerial estaria fora do meu alcance; todavia, quando concluí os meus estudos liceais já me tinha decidido a enveredar pela carreira da minha tia Goldie e do tio da minha mãe, Naj, transformar o mundo para melhor ao adoptar a profissão de jornalista. Fui bafejada pela sorte, uma vez que em Teerão eram publicados alguns jornais de boa qualidade em língua inglesa, e também havia um canal televisivo em inglês. Após se puxarem muitos cordelinhos, iniciei a minha carreira em 1975 como jornalista do Tehran Journal, colaborando também na Rádio Nacional Iraniana e no Serviço de Televisão, actividades que exerci durante um interregno entre o fim do curso secundário e a entrada na universidade.

Independentemente da expressão escolhida pelo povo do Irão para se classificarem, a realidade é que poderão ser muitas coisas mas nunca enfadonhos; vivemos numa tenda maior do que a vida. Somos um povo de extremos: sempre que nos sentimos em baixo, sofremos de tendências suicidas, e quando estamos na mó de cima não ocultamos a euforia que sentimos. Quando amamos, adoramos; mas quando odiamos, este sentimento é cheio de paixão. Esta dualidade de emoções reflecte-se na música iraniana, que tem o dom de nos fazer dançar e chorar em simultâneo. Sempre que nos apetece fazer um pouco de exercício fisico, ou quando nos entregamos a uma boa crise de choro, o que por vezes nos acontece a todos, começamos a entoar os últimos êxitos de Satar, por exemplo, o congénere iraniano de George Michael. Mas para nos sentirmos verdadeiramente deprimidos, ao extremo, Golpayagani é o anigo mais genuíno, uma espécie de Leonard Cohen com uma bela voz. Na minha adolescência, quando me diagnosticaram como sendo maníaco-depressiva, limitei-me a responder: Não, sou apenas iraniana. Dois anos mais tarde estalou a revolução, e o mundo começou a compreender a minha perspectiva.

A religião xiita islâmica é rica em lendas de batalhas valorosas, plenas de martírios gloriosos e revelações místicas. A minha família reflecte esta tradição. Os meus antepassados exerceram o seu poder sobre esta nação pela qual combateram e morreram. Contudo, também foram sufistas e filósofos, tendo-lhes sido inculcado que os privilégios tinham a sua quota-parte de responsabilidades. Sem dúvida que seria na terra dos meus ilustres antepassados que eu teria de descobrir quem era e para o que é que estava destinada.

A minha primeira recordação de ter saído em defesa da honra da minha pátria foi com a tenra idade de sete anos. Frequentava o Colégio de St. Philip e St. James em Oxford e tinha por colega um rapaz grego dois anos mais velho do que eu e que tinha uns ouvidos particularmente nojentos (o que vim a descobrir depois de lhe ter enfiado um dedo pela orelha, por causa de qualquer ofensa que ele proferiu contra a minha nação, e o resultado é que fiquei com o dedo cheio de uma substância peganhenta e esverdeada); ora, afirmara que os persas tinham sido derrotados pelos gregos porque eram guerreiros de má qualidade. Qual anjo vingador, saltei em cima dele e tirei partido da posição vantajosa que os degraus da capela do colégio me proporcionavam. Ainda me recordo, com uma pontinha de orgulho, que nessa ocasião o curso da História foi invertido.

Desde então que tenho vindo a defender o Irão. Desde a minha infância que fui ensinada que a família e a pátria tomam precedência sobre tudo o mais. A família da minha mãe tem uma longa tradição de chefias militares que morreram em defesa do seu país. O coronel Mohammed Taghi Pessian, o avô de um dos meus primos, é um herói nacional. Foi um opositor do então Reza Khan, que posteriormente veio a ser o primeiro Xá Palevi, quando se tornou evidente que acabaria por trair os ideais que haviam inspirado o golpe que baniu os Qajars do Trono do Pavão. O coronel foi decapitado depois de uma contra-revolta fracassada, continuando a ser venerado até aos nossos dias em muitas regiões do Irão. Ainda existem alguns que continuam a dizer que o coronel deveria ter tomado o trono para si próprio pois estava ao seu alcance. Todavia, nós, os Pessian, somos republicanos.

Eu adorava que a minha mãe me contasse histórias da sua meninice. Descrevia-me as festas que tinham lugar em grandes salões de baile de paredes e tectos revestidos com espelhos e dourados e aos quais os convidados chegavam de carruagens que percorriam uma rotunda circular iluminada por lustres de cristal. Tinham lugar no Médio Oriente, mas para mim saíam directamente de Guerra e Paz - narrativas personificadas por belas damas e jovens oficiais nos seus uniformes garbosos. Estas pessoas prestaram vassalagem ao Xá Reza e ao seu filho desventurado, embora nunca tivessem aceite a nova dinastia.

Faltava ao Irão, pátria dos comerciantes e dos funcionários governamentais corruptos, o fascínio da vida dos nossos antepassados.

Recordava-me de muito pouco do mundo que havíamos deixado para trás, mas a minha prima mais velha, Bahar, ainda se recordava das ocasiões em que observava as festas às escondidas: as mulheres chegavam vestidas de sedas indecentes e usavam peles e diamantes.

Olhando para o passado, apercebo-me agora de que os únicos iranianos que conheci verdadeiramente eram pessoas que, como eu própria, haviam sido educadas nos países ocidentais, demasiado ricos para sentirem a necessidade de questionar o significado do uni verso, ou os nossos servos, que tendiam a dizer-nos apenas aquilo que sabiam de antemão que queríamos ouvir. É possível que tenha existido desde sempre uma nação tristonha e devota que se escondia bem longe dos clubes de golfe e bares nocturnos. Os homens e as mulheres que pertenciam ao meu estrato social vestiam Valentino e Dior, possuíam residências em Paris, Roma ou Los Angeles e falavam a língua persa com uma estranha mistura de palavras em francês ou alemão. Os iguais dos meus familiares passavam os Invernos em casas sumptuosas nas melhores áreas residenciais de Teerão, enquanto os Verões eram passados em vivendas palacianas na região setentrional. Haviam sido educados por amas e receberam a sua primeira instrução escolar de preceptoras vindas de Paris e Berlim. Os homens destas famílias eram educados em academias militares na Europa e na Rússia e também, posteriormente, nos Estados Unidos, antes de regressarem ao seu país onde ocupariam cargos governamentais.

O general Heydargholli Pessian (Agá Joon), o meu avô materno, recebeu treino militar numa academia alemã, tendo combatido ao serviço do exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Eram homens que regressavam com ideias ocidentais que não tinham cabimento numa sociedade que continuava a ser extremamente tradicional. Quando Agá Joon foi alvejado e ferido aquando de uma inspecção militar no Norte do país, receou-se que o Xá Reza tivesse tentado remover aquele espinho da sua presença. O primeiro Xá Palevi receara que o meu avô seguisse as pegadas do seu primo e chefiasse uma rebelião entre as hostes do exército.

Agá Joon (Avô Querido) sempre se opôs aos excessos do Xá Reza desde que Reza Khan se proclamou monarca, usurpando o lugar que deveria ter cabido a uma figura de Estado democraticamente eleita. Há já algum tempo que o xá procurava uma justificação para encarcerar o meu avô, encontrando-a finalmente quando Agá Joon se recusou a entregar-lhe a casa de família - conhecida como Palácio Pessian. Agá Joon escrevera uma missiva endereçada ao monarca em que lhe assegurava que No dia em que encontrar uma residência melhor para a minha família, Vossa Majestade poderá ficar com tudo o que eu deixar para trás.

Até mesmo hoje em dia, Agá Joon seria considerado um progressista. Deu origem a mulheres cujas ideias se elevavam muito acima de uma vida doméstica. Quando Agá Joon foi para a prisão em 1936, o general Amir Ahmadi (Dayee Jan), seu cunhado, pediu-lhe que o incumbisse dos destinos dos seus filhos: o meu avô respondeu-lhe dizendo que não tinha controlo sobre o destino da sua mulher e filhos, alegando que estes eram senhores das suas próprias vidas, pelo que lhe era impossível incumbir alguém de algo que ele não dominava.

A recusa de Agá Joon em entregar a Daydee Jan a responsabilidade pelo bem-estar da sua família enraiveceu a Maman Joon; esta idolatrava o irmão, agora ministro do Interior, e sentiu-se desejosa de controlar a maneira de ser das jovens. A Maman Joon e a sua mãe, Khanum Mammarl (Senhora Mãe), resolveram casar as raparigas antes que estas enveredassem por maus caminhos. A tia Goldie desafiou todas as tentativas para a obrigarem a casar, tendo sido ela própria quem escolheu o seu próprio marido, Jahan Khan. Por seu lado, a minha mãe apaixonou-se pelo meu pai, recusando toda a espécie de principes do Médio Oriente e pretendentes da nobreza iraniana. Acabou por ameaçar suicidar-se caso os pais não consentissem que se casasse com o meu pai. Casou-se com dezasseis anos de idade. As duas únicas irmãs solteiras, Omol e Homa, desposaram homens de ideias primitivas que não hesitaram em exercer a sua autoridade sobre elas.

A minha mãe educou as filhas de maneira a que estas viessem a ser mulheres fortes e independentes. Em criança, eu adorava ouvir as histórias de Agá Joon, especialmente sempre que ele argumentava que a sociedade deveria ser de molde a que qualquer rapariga pudesse percorrer toda nua um aquartelamento militar, de onde sairia com a sua virgindade intacta, sem que fosse forçada a cobrir a sua nudez. A Maman Joon sempre foi tratada pelo marido como uma parceira e nunca como uma dependente. Pôde prosseguir os seus estudos, aprendeu a falar francês e alemão e teve ao seu dispor um instrutor de ginástica, não se esperando dela que interviesse na gestão diária da casa. Numa ocasião em que uma das cozinheiras cometera o erro de lhe perguntar o que deveria preparar para o jantar, Agá Joon admoestou a mulher, dizendo-lhe que se quisesse ter casado com uma mulher que se preocupasse com esse género de tarefas não teria dado emprego a todos os empregados domésticos ao serviço do casal.

Os véus de corpo inteiro, a que se chama chador, assim como a segregação dos sexos, foram algo que se perdeu na História, um mundo mágico em que Khanum Maman tinha vivido, mas que para mim teve muito pouca relevância várias gerações depois, altura em que percorri um caminho mais iluminado. Não me apercebi de que existia uma escola de pensamento de acordo com a qual se continuava a acreditar que a única forma de preservar a virgindade de uma rapariga era mantê-la fechada a sete chaves. O Xá Reza, um rufião de linguagem obscena, a fazer fé no meu tio-avô, baniu o uso do véu em 1935, ano em que a minha mãe tinha apenas doze anos de idade. Existem ainda muitas pessoas que se recordam bem do medo que sentiam das patrulhas que eram enviadas para as ruas com a função de puxarem para o rosto o véu das mulheres que se atreviam a desafiar a lei.

Para assinalar a promulgação daquela nova lei, o xá deu um baile grandioso onde as mães, mulheres, irmãs e filhas dos ricos e poderosos desfilaram sem os trajes da fé islâmica. Muitas das que estiveram presentes nesse baile já tinham abandonado o véu, que consideravam ser algo para as mulheres de idade e para as que não tinham educação escolar. A Maman Joon recorda-se desse baile com uma satisfação algo maliciosa. Daydee Jan fora inspeccionar a sua aparência antes de ambos saírem de casa.

"Ele disse que só queria dizer-me uma coisa" contou ela. "Que me mantivesse afastada do filho do general Z. E tinha razão. Era o tipo de homem que não hesitaria em nos dizer que o nosso pó-de-arroz cheirava bem".

Também se recorda dos seus instrutores físicos, todos suecos, cuja missão era adelgaçar a sua ampla figura, preparando-a para poder sair às ruas sem os véus. As raparigas não são obrigadas a velarem o rosto até aos nove anos de idade, e por conseguinte, quando tinha vinte e oito anos, a Maman Joon mal tivera oportunidade de os usar antes de serem banidos.

A minha mãe aprendeu todas as artes de culinária adequadas a uma mulher, ensinaram-na a coser e a dar ordens numa casa cheia de pessoal doméstico, embora também tivesse aprendido a gerir as finanças de um lar, tarefa em que passava várias horas na companhia do gestor da propriedade inspeccionando os seus livros. Quando fez catorze anos, Agá Joon mandou construir para ela uma pequena loja adjacente a uma das paredes exteriores da residência de Verão da família, conhecida por Palácio Pessian por todos quantos habitavam no distrito a norte de Shemiran. Nessa altura ofereceu à minha mãe lápis e cadernos de apontamentos que ela venderia às crianças que passassem a caminho da escola, não fosse dar-se o caso de vir a ter necessidade das capacidades que lhe permitissem ganhar o seu sustento. A minha mãe e as irmãs aprenderam a montar, a falar quatro línguas e, na sua maior parte, conseguiram terminar cursos universitários. Na sua casa tinham campos de ténis e piscinas, sendo ensinadas pelos melhores professores que o dinheiro pudesse comprar.

Said, o meu irmão, foi durante muitos anos o único filho dos meus pais e o único sobrinho dos irmãos de ambos, o que tornou a sua vida preciosa para além do que se possa conceber. O instrumento cirúrgico utilizado para lhe seccionar o cordão umbilical provocou-lhe uma infecção nos intestinos e estômago, que começaram a enfraquecer e a deteriorar-se. Quando completou os treze anos, as suas entranhas debilitadas acabaram por ceder, dando origem a que as veias começassem a rebentar. Consequentemente, em 1959 o meu pai apressou-se a levar o filho para um hospital em Inglaterra, ao mesmo tempo que a minha mãe viajava para Mahshad, a capital da província de Khorasan, no Nordeste do Irão, a fim de rezar no santuário do Imã Reza.

Este era o segundo lugar mais sagrado dos xiitas islâmicos e encontrava-se sob a responsabilidade de um dos primos do meu pai. Devido a esta relação familiar, foi-nos concedido um encontro privado com o imã morto depois de a gentalha ter abandonado o templo. Apesar de nessa ocasião eu ter apenas dois anos, esta é a recordação mais vívida que guardo do Irão. Aquele santuário cintilava como a caverna de Aladino enquanto esperava num pátio interior à meia-noite. A cúpula dourada do santuário reflectia-se sob a luz dos holofotes nas fontes que adornavam o pátio. Senti-me fascinada por aquele santuário de reflexos rutilantes, e enquanto a minha mãe orava, eu examinava os reflexos projectados pelas velas que iluminavam o mausoléu, cujas cintilações eram reproduzidas nas paredes revestidas com espelhos. Lembro-me de me ter sentido aparvalhada perante o pensamento de que para lá da treliça prateada que encimava a sepultura, à qual a minha mãe se agarrava e rezava, se encontrava o corpo de um deus - ou assim imaginava eu. Na realidade, o Imã Reza era um descendente de Hazrat Ali, o fundador da fé xiita.

O milagre foi-nos concedido: as crises hemorrágicas abrandaram o suficiente para permitir aos cirurgiões que operassem o estômago de Said. Nessa noite falei a Deus, embora não fizesse a mais pequena ideia de quem Ele era, através do imã. Sabia apenas que Ele olharia sempre por mim e pela minha família, caso eu fosse boa para com os outros e nunca fizesse nada que magoasse outro ser humano, nem nada que pudesse ser menos honroso. Nos momentos de preocupação e de sofrimento continuo a recorrer ao Imã Reza, que nunca me deixou ficar mal.

Pouco depois partimos para Inglaterra, onde tencionávamos permanecer apenas por algumas semanas. No entanto, veio a revelar-se que continuaríamos indefinidamente nesse país. A minha mãe nunca mais quis voltar a viver distanciada de um bom hospital. Depois de Said ter alta - o que aconteceu uns seis meses mais tarde -, mudámo-nos para Oxford, onde o meu primo Hamzeh estudava.

O meu pai regressou ao Irão, o que nos forçou a aprender a viver sem a luz do seu sol. A Inglaterra constituiu para nós uma dose de realidade em comparação com a vida que até então tínhamos levado no Irão. Em vez de acordarmos com a escolha de uma ou duas pisci nas por detrás dos muros altos que nos separavam do resto do mundo, tínhamos de ir às piscinas municipais com o resto das pessoas comuns do país. Só quando comecei a estudar na Universidade de Manchester é que compreendi até que ponto viver ali na região none de Oxford me mantivera afastada do país real, tal como estivera no Irão. No Irão vivia e era tratada como uma princesa, e em Inglaterra continuara a manter-me afastada das pessoas do povo através de um Rolls-Royce a cujo volante se sentava o nosso motorista que me levava ao colégio - um estabelecimento educacional particular. Fazíamos parte das famílias com pergaminhos, e depois de um breve período de dificuldades durante a década de sessenta, voltámos a desfrutar da existência dos privilegiados.

Com treze anos, tomava pequenos goles de champanhe sentada na primeira classe de um avião, junto do agente obrigatório da SA VAK; ia a caminho da minha terra natal, que eu imaginava ser uma terra de fadas. Quando desembarquei do avião, gritei de alegria, sentindo o abraço cálido do Irão que me dava as boas-vindas.

Seguiram-se muitas férias de Verão passadas entre a alta sociedade iraniana. Mas com o passar do tempo comecei a sentir desprezo por um estilo de vida caracterizado por roupas de estilistas de renome e casamentos de prestígio. Sou forçada a admitir que eu não era uma grande autoridade quanto ao Irão que existia para lá dos círculos régios. Na altura em que regressei ao Irão para trabalhar durante um ano de intervalo entre o curso liceal e a entrada na universidade, em 1975, o único traje nacional que eu conhecia tinha a assinatura da Chanel. Vi muito pouco das condições em que viviam as pessoas comuns. O nosso motorista costumava deixar-me em frente do edifício da Televisão às cinco da manhã. Por volta do meio-dia comia no Country Club um almoço ligeiro composto por caviar e champanhe, e dissertava sobre a agonia em que viviam as pessoas por quem passava de fugida.

Chegava para as entrevistas da tarde num automóvel com matrícula atribuída pelo tribunal, uma concessão oferecida ao meu pai pela madrasta do xá. Isso garantia a inspiração de algo inferior à verdade completa durante a entrevista. Depois de ter passádo a entrevista a papel, a secretária do meu pai dactilografava-a e o paquete entregava-a na redacção. De tempos a tempos sentia-me invadida pela urgência de estar fisicamente presente na redacção, e então recolhia-me no gabinete do proprietário. As minhas obras de ane, através das quais expunha a corrupção e a ganância que grassavam no país, seriam publicadas no dia seguinte cheias de elogios a George - o nome que dávamos ao xá nas nossas conversas, receando que alguém nos ouvisse, o que teria como consequência sermos decapitados.

Apesar das minhas desavenças com os censores do jornal, ou talvez devido a isso, ofereceram-me o cargo de produtora de televisão. Mas antes de poder aceitar esse posto tive de regressar a Inglaterra para iniciar o meu curso universitário. Prestes a abandonar a estação televisiva, dirigi-me ao meu mentor e disse-lhe por chalaça:

- Enquanto eu estiver fora, faça o favor de se portar bem. Se cair em desgraça junto do xá, ficarei desempregada.

Quando a revolução rebentou, foi um dos primeiros a serem encostados à parede. O ano de 1980 trouxe-nos a estreita mentalidade inglesa da senhora Tatcher, em simultâneo com um novo elemento que foi acrescido à esquizofrénica caldeirada de identidades: o islamismo militante.

Desde sempre que assumimos que o fundamentalismo islâmico nunca nos afectaria. O islamismo acima de tudo era uma cultura que tinha precedência sobre a teologia. Contudo, o Islão que eu servi em 1979 - progressivo, socialista, libertador e sobretudo generoso - veio a revelar- se tão-somente um devaneio da minha imaginação. Quanto mais as pessoas em Inglaterra se inteiravam da realidade do Médio Oriente, mais eu me sentia uma estranha. Com o decorrer da década de oitenta, ia-me transformando num estereótipo terrorista.

Passei a conhecer o historial da minha família em grande parte através de histórias e de breves visitas durante o Verão. De todos os nossos familiares que nos visitavam em Oxford ao longo dos anos, a prima Bahar era a minha preferida.

Vi Bahar - cujo nome significa Primavera - pela primeira vez quando tinha nove anos. Aquele raio de sol entrou no mundo da minha infância trazendo ao colo o seu filho deficiente. Até mesmo nessa idade tão tenra, apercebi-me de que existia algo de incompatível entre aquela rapariga vivaz e o marido, um homem de idade de uma impenetrabilidade mortífera.

Bahar era tudo aquilo que estava implícito no seu nome: era a Primavera, era a renovação, era o desejo. Durante toda a sua vida tinha-se esforçado por se agarrar à alegria, não obstante a tragédia e o sofrimento que se atravessaram no seu caminho. Desde o dia do seu nascimento que o coração fraco trabalhou para alimentar um espírito que se maravilhava ante a beleza, recusando-se a aceitar a derrota. Toda a sua vida adulta foi dispendida a planear a fuga de uma vida que ameaçava estrangulá-la.

Bahar adora fazer compras, ainda continuo a cobiçar aquelas belas botas de verniz até à altura das coxas que ela comprou em King's Road nos anos sessenta. Recordo-me de a ver pela nossa casa num andar saltitante, entoando: "Na minha vida existem mil homens, e todos eles comem flocos de cereal", aperfeiçoando as palavras de um anúncio televisivo dessa época que referia apenas uns meros dois homens.

Sei que amava as duas filhas, embora escondesse bem os seus sentimentos. As garotas eram arrastadas por toda a Europa e acompanhavam-na todos os Verões, com a mais velha a arrumar a desordem em que a mãe deixava as coisas, advertindo Bahar constantemente de que estavam prestes a perder um comboio, de que o dinheiro estava quase a acabar-se ou que o tempo começava a escassear.

"E quem é que se importa com isso? ", diria Bahar com uma gargalhada, lançando para trás os cabelos de um castanho- avermelhado, para logo voltar a concentrar-se na aplicação das pestanas postiças, ao que se seguia a pintura dos lábios de um vermelho vivo.

Recordo uma ocasião depois de um passeio matinal por Londres em que percorremos as galerias de ane; tínhamos acabado de visitar a décima boutique quando, subitamente, as faces de Bahar adquiriram uma tonalidade de um púrpura-azulado. As veias começaram a inchar-lhe como se prestes a rebentarem através da sua delicada pele de um branco de alabastro.

Bahar caiu por terra esforçando-se por respirar, enquanto tentava desesperadamente emitir sons de alegria de forma a não alarmar quem a rodeava. Sabíamos que poderia morrer a qualquer instante; mas, de modo inexplicável, acabava sempre por sobreviver a esses ataques; a força do seu espírito levava sempre a melhor sobre a fragilidade do seu corpo.

A mãe de Bahar, a minha tia Goldie, fora uma mulher liberada antes mesmo de esse termo ter sido inventado. Certa ocasião em que Goldie ainda era uma criança, pediram-lhe para ajudar a criada a levantar a mesa - as senhoras deviam aprender a fazer tudo aquilo que depois instruíam ao pessoal doméstico - Goldie deixou cair a louça toda no chão à vista do pai e de toda a família. Mais tarde nessa mesma noite, a minha mãe tentou confortar a irmã.

- Não estou nada preocupada - disse Goldie à irmã, que ficou extremamente chocada. - Deixei cair a louça de propósito. Se tivesse levantado a mesa como deve ser, o mais certo era que me pedissem outra vez para ajudar, e eu tenho coisas mais importantes a fazer para me estar a preocupar com as tarefas domésticas. - Nunca mais houve ninguém que voltasse a pedir-lhe para levantar a mesa.

Com doze anos de idade já tinha escrito o seu primeiro romance, e aos dezasseis, este foi publicado no Irão e na Europa. Mais ou menos aos vinte anos, já conseguira fazer nome como jornalista - sob um pseudónimo masculino. O seu trabalho despertou a atenção de outro romancista, Jahan Khan, que também era redactor editorial de um jornal, que mostrou interesse em conhecer o jovem talentoso cujos artigos, escritos com tamanha frontalidade, haviam levado o sector intelectual iraniano a comentar o seu trabalho. Mas apaixonou-se pela loura de cabelos dourados que se apresentou no seu gabinete, e ao invés de um emprego ofereceu-lhe um anel de noivado.

Jahan Khan, um escritor cujos romances românticos haviam indignado a sociedade dotada de Teerão, apaixonara-se profunda e loucamente. No entanto, havia um pequeno problema de somenos importância: já tinha mulher e cinco filhos. Perseguiu Goldie até que ela acabou por ceder à sua proposta de casamento, mas sob uma condição - que ele não se divorciasse da sua primeira mulher. E foi assim que a tia Goldie se tornou numa segunda esposa, tendo dado à luz duas filhas, Bahar e Shahnaz. Enquanto os progenitores prosseguiam com as respectivas carreiras, as duas irmãs eram criadas pela avó materna, a Maman loon. O casamento durou quinze anos; a tia Goldie deu à luz dois rapazes nados-mortos, até que acabou por desistir de ser simultaneamente esposa muçulmana e mulher de carreira.

Depois do divórcio dos pais as duas garotas ficaram a viver com o pai, madrasta e meios-irmãos, tal como estipulava a lei no Irão. Esta mudança virou a vida de Bahar de pernas para o ar, uma vez que em casa da avó fora até então tratada como uma pequena princesa, a menina dos olhos da Maman Joon. Agora era uma estranha na casa de outra pessoa, descobrindo que já não lhe era possível levar sempre a sua avante. Quanto a Shahnaz, em grande parte sempre fora ignorada em casa da avó materna, situação que não se alterou no seeu novo lar.

A criança mimada cresceu e transformou-se numa mulher verdadeiramente feminina.

Um simples pestanejar das suas pestanas postiças derreteria o mais empedernido dos homens. À semelhança de sua mãe, Bahar era talentosa e tinha uma vontade férrea. Ao contrário da mãe, que foi abençoada com um pai de ideias progressistas, Bahar não tinha autorização para viver a vida à sua maneira. Antes de ter oportunidade para amadurecer e descobrir o seu verdadeiro eu, o seu príncipe assumiu a responsabilidade de a manter na linha.

O príncipe Nasser Khan era vinte anos mais velho do que ela, representando tudo aquilo que Bahar não era. Era um homem de uma seriedade grosseira, além de ser dolorosamente ortodoxo. Todavia era um príncipe, e por conseguinte um marido deveras adequado - era absolutamente irrelevante que não tivessem uma única coisa em comum. Nasser Khan era considerado o antídoto perfeito para o espírito extrovertido de Bahar. Esta fora     oferecida a um homem que poderia prender a sonhadora à terra, aquele que conseguiria domesticar o coração selvagem e estrangular-lhe o espírito imprudente. Ele tinha maneiras solenes, enquanto ela era uma mulher cheia de vivacidade; ele era religioso, em oposição ao misticismo da mulher; era empedernido, enquanto ela era fascinante.

Tendo tido a sorte de arranjar uma noiva de um encanto que ele jamais concebera, nem sequer nos seus sonhos mais irreais, o príncipe sem império iniciou afincadamente a tarefa de a vergar. Alegava que os seios da sua jovem mulher eram demasiado pequenos e as ancas tinham linhas muito arrapazadas, e também que ela cozinhava mal; a lista de defeitos era      interminável. Quando ela deu à luz um filho mentalmente retardado, a culpa foi toda da mulher, como é por de mais evidente. Ao fim e ao cabo, não era ela quem tinha um coração fraco?

O pequeno Jav transformou-se no centro da vida da mãe. Uma mulher com menos fibra do que Bahar teria procurado refúgio num estado depressivo, que foi o caminho escolhido pela nossa tia Homa como maneira de escapar a um casamento ensombrado; mas Bahar optou por não dar tréguas ao marido. Quase se atreveu a desafiar a própria vida para que esta a destruísse, sabendo que vivia uma existência a curto prazo. Quando já tinha quase trinta anos, garantiu à minha mãe, naquela sua maneira despreocupada, que nunca viria a completar cinquenta anos de idade. Duas semanas antes dessa data, seguiu as pegadas do filho que já fora sepultado. Bahar nunca considerara a morte de Jav, aos doze anos, como uma tragédia. Em vez disso, sentiu grande regozijo por ele se ter libertado de um corpo deformado que o aprisionara ao longo da sua curta vida. E contudo, faltaria alguma coisa ao   seu sorriso?   

Era como uma cigana, ansiando ardente e constantemente por novos estímulos e aventuras. No casamento fora-lhe negado qualquer tipo de realização pessoal, o que a levou a       procurá-la fora deste. Algures ao longo desse percurso encontrou o amor junto de um dos intelectuais que começara a admirar durante a sua juventude. Entregou inteiramente o seu coração a um poeta, o que serviu para lhe aliviar a tensão provocada por lhe dizerem insistentemente que fracassara como mãe e mulher.    

A última gota de água na relação com o marido verificou-se quando Bahar jazia na cama de um hospital às portas da morte, sob a enorme pressão de ter dado à luz o primeiro filho do casal. Tinham uma criada que vivia na cave da casa com um filho de dez anos.

Numa ocasião em que Bahar não estava em casa, a mulher decidiu cometer suicídio ingerindo veneno para ratos. Pouco tempo depois os arautos da maledicência começaram a espalhar o rumor de que a mulher fora amante do príncipe, dizendo-se à boca pequena que o filho era dele. Afirmaram que o príncipe tivera uma discussão com a criada no dia da morte desta, acrescentando que quando ele regressou a casa dera com ela em estado de coma e caída no chão e a deixara abandonada até que acabou por morrer. O garotinho nunca conseguiu recuperar-se do choque de ter encontrado a mãe morta, nem tão-pouco dos abusos de natureza sexual a que foi sujeito no orfanato que o recolheu depois do suicídio da mãe.

Duvido bastante que a maneira de ser do príncipe lhe permitisse ter uma amante, ou o deixasse ficar impávido e sereno enquanto a mulher agonizava. Mas o escândalo causou grandes danos, o que levou Bahar a perder toda e qualquer esperança na sua vida de casada, acabando por se render aos avanços amorosos do poeta. Este fazia-lhe uma corte cerradíssima, jogo em que Bahar entrou de bom grado, revelando uma delicadeza extremamente refinada ao ceder o suficiente para o manter na expectativa, mas nunca o bastante para lhe saciar a sede. O poeta também tinha idade suficiente para ser seu pai, se bem que possuísse o talento necessário para não ter de competir ou ressentir-se do potencial de Bahar. O pássaro engaiolado falava do dia em que as filhas seriam livres de partir para viverem as suas próprias vidas, altura em que ela própria alcançaria a liberdade que lhe permitisse seguir o exemplo da mãe.

Depois do divórcio, Goldie costumava comunicar com o resto da família através de intermináveis conversas ao telefone e de cartas hilariantes. Eu adorava-a, parece-me que ainda estou a ouvir a sua voz com um ligeiro estremecimento ao chamar-me "Pequeno Raio de Sol". Depois de ter sido aceite na universidade, Shahnaz regressou a casa de Goldie e ficou com a mãe durante alguns anos. Começou a viver da mesma maneira reclusa adoptada pela mãe, embora também tivesse aprendido que as mulheres podiam viver única e exclusivamente do seu intelecto e carreira profissional. Ambas levavam uma existência feliz, embora bastante recatada, o que não impedia que fosse uma vida extremamente divertida, o que ficou bem ilustrado pelo incidente de alguém que lhes fez uma visita a altas horas da noite.

A tia Goldie vivia numa casa desmesuradamente espaçosa, numa rua que tinha o nome do seu pai. Os gatunos que tentaram arrombar-lhe a casa durante a noite deveriam ter pensado que seria uma tarefa fácil de levar a cabo - uma residência recheada de toda a espécie de objectos de valor, sem nenhum homem que a protegesse. Os dois homens entraram furtivamente às primeiras horas da madrugada, e enquanto um deles se apoderava de tudo o que havia no piso térreo, o outro subiu até ao primeiro andar à procura de jóias.

A tia Goldie adorava comer, sendo frequente levar para a cama uma pequena refeição que comia antes de adormecer. Nessa noite deixara em cima do toucador o que restara de um pequeno banquete composto de pão, queijo e compota. O infeliz ladrão decidiu interromper o furto para encher o estômago. Enquanto mastigava a inesperada refeição, uma sombra abateu-se sobre os seus ombros e abocanhou-lhe a nuca. Era a minha tia. Temendo pela sua vida, o ladrão defendeu-se com todo o denodo enquanto Shahnaz observava a cena.

- Maman, queres que vá buscar a tesoura para lhe arrancares os olhos? - perguntava ela aos gritos.

A luta desenrolou-se durante mais de meia hora. A certa altura o homem levou a melhor a Goldie, mas pouco depois a minha tia voltou a imobilizá-lo. Finalmente, Goldie agarrou no homem exausto e arremessou-o pela janela fora. No dia seguinte ainda era bem visível o recorte do corpo no lugar onde se estatelara abaixo da janela.

Foram mulheres da fibra de Goldie e Shahnaz - esta última acabou por vir a ocupar o cargo de analista política na Universidade de Teerão - que trouxeram mudanças a uma sociedade que, no mínimo dos mínimos, caminhava para o progresso sob o reinado do último monarca persa. No período pré-revolução tinha havido pelo menos a ilusão de transformações na sociedade, o que levava estas mulheres a acreditarem que se encontravam numa estrada de sentido único, prestes a serem pessoas com liberdade de expressão e não meras escravas.

No tocante a Bahar, e independentemente do quão dolorosa foi a sua vida familiar num lar a que chamávamos a Casa do Desânimo, ela nunca perdeu a esperança de dias melhores ao dobrar da esquina. Costumávamos sentar-nos no degrau que separava a sala de jantar da de estar, tentando fazer com que o gramofone antigo funcionasse, enquanto Bahar fantasiava sobre a vida que poderia ter caso se tivesse casado com um dos playboys milionários do Irão.

- Se uma pessoa optar por se deitar com vários homens, é preferível ter a certeza de que o fazemos com classe - diria ela rindo-se à socapa.

A fragrância da água de rosas continua a trazer Bahar às minhas recordações. Parece que estou a vê-la aninhada em cima da cama e rodeada por bolas de algodão enquanto removia a maquilhagem acumulada no rosto ao longo do dia, planeando a vida que teria na Riviera.

 

                         O fim da velha ordem

Quando Woody Allen escreveu que a comédia era "tragédia mais tempo", poderia muito bem estar a referir-se às minhas tentativas para regressar à minha terra natal. Na altura, alguns dos eventos adquiriram proporções devastadoras mas, em retrospectiva, parecem-me ter sido hilariantemente engraçados - apoiada também no conhecimento seguro de que consegui sobreviver.

À medida que os "Filhos" de Khomeini saíam à liça para destronar o xá, o primo da minha avó, o marechal-de-campo Reza Khan, foi nomeado para ocupar a chefia do Ministério de Guerra. Ao contrário de Dayee Jan Amir Ahmadi, o irmão da Maman Joon que granjeara a reputação de comandante impiedoso, o marechal-de-campo Reza urgiu o xá a não abrir fogo sobre os manifestantes.

Eu ansiara por aquela revolução, mas quando finalmente aconteceu, veio acompanhada de um enorme sentimento de repulsa face ao horror das execuções sumárias a que deu origem. Na segurança do meu apartamento durante o último ano em que frequentei a Universidade de Manchester, mantinha-me ao corrente da situação recebendo informações que me chegavam de pessoas que conhecia desde a infância, e cujos cadáveres eram depois expostos na morgue. O sonho da liberdade transformara-se num autêntico pesadelo. O meu pai foi condenado sob a acusação de ser um agente da CIA, e a minha fortuna pessoal foi confiscada. Alguns membros da minha extensa família viram-se obrigados a esconder-se, enquanto outros foram enviados para a mal-afamada prisão de Evin.

Dado que tudo me indicava estar prestes a perder a minha pátria, aumentou a minha urgência de regressar para fazer parte do futuro que se avizinhava. Porém existiam dois problemas. O pouco domínio da língua, o que fazia com que os meus conterrâneos iranianos ficassem perdidos de riso e soltassem gargalhadas que raiavam o histerismo sempre que eu abria a boca. Acrescente-se a isto um acentuado sotaque britânico, a par de umas feições ligeiramente arménias, e seria fácil concluir que as coisas não me corriam de feição.

A chegada dos molás e da senhora Tatcher, o que aconteceu no mesmo ano, abanou os meus dois mundos. O Irão dava a impressão de estar em vias de se transformar num país-satélite do mundo árabe, e a Grã-Bretanha por seu lado corria o perigo de se tornar no mais recente Estado da federação que dentro em breve teria Ronald Reagan como presidente. Os dois países haviam sido reconstruídos à imagem dos seus novos dirigentes. Os molás assassinavam um mundo, enquanto Tatcher mutilava o outro. E então os primeiros foram longe de mais: tiveram a audácia de açambarcar as minhas vastas propriedades no Irão. Durante a minha adolescência fui mais rica do que qualquer outra pessoa que nunca tivesse trabalhado a sério na sua vida. E é claro que não me faltava a sensibilidade suficiente para me sentir terrivelmente culpada face a essa abastança. Agora dava-me conta de que estava a ser atacada.

Era-me muito dificil acreditar que a minha Pérsia estava a sofrer alterações tão radicais, não obstante a prova dada pelas imagens da revolução que eram transmitidas pela televisão. Seria realmente possível que alguma coisa, inclusive os molás, fosse capaz de quebrar o espírito dos persas? Tendo conseguido sobreviver a uma história de agressões e submissão, os persas haviam emergido da sua história antiga com uma identidade e espírito intactos. A chegada do islamismo forçara os persas zoroastrianos a viverem num mundo ambivalente em que eram aparentemente seguidores da fé árabe, enquanto em privado idolatravam o seu deus do fogo. No entanto, quando o islamismo se dividiu, os persas abraçaram a tendência xiita, passando a assumir a chefia desse movimento religioso. Quando Khomeini ocupou a governação do meu país, eu continuava convencida de que o amor dos persas por vinho, mulheres e música haveria de triunfar sobre aquele recém-descoberto fascínio pelo púlpito.

Infelizmente, veio a verificar-se que seria tudo menos fascínio, especialmente à luz da condenação judicial que o meu pai sofreu e que me tornou num dos novos pobres. O quinhão que me coubera do dinheiro de família fora investido em bens imobiliários de parceria com Baba, o meu pai. Estas propriedades eram agora tuteladas pela República Islâmica. Os meus pais separaram-se três anos antes da revolução e Baba desaparecera das nossas vidas. Quando Khomeini se tornou dono e senhor do Irão, senti-me completamente à deriva; a minha família e as minhas duas pátrias tinham mudado súbita e dramaticamente.

Foi no início de 1980 que lancei o primeiro olhar à terra de Ciro e Dário depois de parecer ter sido invadida por uma outra vaga de hordas chefiadas por Khomeini. Mau-grado o advento dos ayatollahs, as raparigas como eu continuavam a poder percorrer livremente as ruas com o rosto desvelado, isto é, caso não fôssemos sensíveis aos comentários ocasionais de "Morre, desavergonhada! " saídos da boca de uma das Irmãs de Zagnah - às quais sempre chamei Irmãs de Zahrah - com quem me cruzasse; essas mulheres cobriam-se com o chador, combatiam ao lado dos homens do Islão e vieram a simbolizar a condição feminina das iranianas.

O Irão converteu-se ao islamismo durante o século vI, mas só no século xvI, sob o domínio dos Safavids, é que a fé islâmica passou a ser a religião oficial do Estado. Desde então, o Islão dos xiitas tem continuado a ser a religião do Estado, e os monarcas subsequentes reinaram de parceria com os molás, adoptando várias formas desse modelo de governação a dois. No entanto, o Xá Reza dera os primeiros passos tendo como fito a implementação de um Estado secular, o que permitiria que todo o poder governativo ficasse nas mãos da coroa ao invés de ser partilhado com um turbante.

A revolução, que em tempos tivera um cunho islâmico-marxista, fora raptada pela extrema-direita, pelo que perdemos qualquer esperança de virmos a ter uma democracia a sério. Khomeini havia prometido que se retiraria para Qom, dissipou a cidade sagrada, mas o certo é que não parecia estar com grande pressa de cumprir essa promessa. E contudo, ainda havia pessoas que acreditavam que o país acabaria por se endireitar por si próprio. Havia muita gente convencida de que as execuções sumárias chegariam ao fim depois de o povo ter dado largas ao seu descontentamento e consequentemente, os molás retirar-se-iam para as suas mesquitas, deixando aos intelectuais e aos democratas a tarefa de construírem um Estado livre e secular. Contudo, os "Filhos" de Khomeini começaram a voltar-se uns contra os outros na competição ferrenha pelo poder. O complexo universitário transformou-se na linha da frente onde se travava a guerra entre fundamentalistas e intelectuais.

A nossa casa foi tomada de assalto, e até levaram as peças de roupa interior para os oprimidos. Houve um ministro que dormiu na cama dos meus pais enquanto os seus filhos tomavam banho na nossa piscina. Por conseguinte, o meu regresso revestiu-se de alguma estranheza, obrigando-me a mim e à minha mãe a viver em casa de outrem pela primeira vez na nossa vida. Foi a primeira de três estadias deveras infelizes na Casa do Desânimo.

A vida familiar de Bahar era tão conturbada quanto a da nossa nação. Ela acabara por decidir-se a abandonar o leito conjugal, deixando de o partilhar com o seu insípido príncipe. Nasser Khan aproveitou a oportunidade de ter dado alojamento a duas das tias de Baharuma delas a tia Homa que viera de Shiraz - para se queixar da recusa da mulher em cumprir as suas obrigações conjugais no respeitante ao sexo. Aquela situação era bastante constrangedora para uma jovem ingénua que só tinha vinte e três anos. Na altura eu era incapaz de compreender como é que Bahar podia achar tão repugnante manter relações sexuais com o marido depois de tantos anos de casamento e de três filhos.

Muitos anos mais tarde, vim a saber que os maridos podem violar as cônjuges, e que um homem que dá cumprimento ao ritual religioso de limpeza de todas as vezes que toca numa mulher, tem poder para nos fazer sentir como se fôssemos prostitutas porcas. A doutrina islâmica, da maneira como os iranianos fundamentalistas a interpretam e praticam, estipula que qualquer excitação de natureza sexual, ou o coito propriamente dito, deve ser imediatamente seguido de um ritual de lavagem e oração.

No entanto, a saga do amante da professora de piano alterou o equilíbrio da vida doméstica de Bahar. A revolução perfazia então um ano. O facto de vivermos na República de   Deus havia desafiado a percepção que tínhamos da realidade, e todavia a história da amante mergulhou-nos num episódio à Dallas.

Quebrado pelo ruir do sistema que lhe proporcionara poder e posição, Nasser Khan - que fora um oficial graduado das forças de segurança no regime do xá - tinha-se retirado aguardando que a CIA restabelecesse a velha ordem. Era de estatura elevada, senhor de umas feições muitíssimo atraentes, olhos de um verde-claro e cabelos de um louro- arenoso.   

No entanto, havia nele algo de extremamente frágil, algo que nos levava a pensar que seria derrubado se alguma coisa soprasse na sua direcção. Contudo, o seu corpo, apesar de se manter em forma, era vinte anos mais velho do que o da mulher, enquanto a sua mente se encontrava um século atrasada. A sua vida era regida pelo relógio; acordava à mesma hora    

todos os dias e fazia a sesta de acordo com as horas que o relógio lhe dava, o que também se aplicava às relações sexuais, mostrando-se incapaz de alterar a sua rotina mau-grado a crise que se desenrolava em seu redor. À medida que enfraquecia devido à retirada dos poderes que até então exercera, Bahar começava a ficar na mó de cima pela primeira vez durante aquele casamento tão torturado.      

Inicialmente sentiu-se revigorada pelas convulsões sociais provocadas pela revolução.    

O homem que regera a sua vida não passava presentemente de algo que ela modelava a seu bel-prazer. Dado que as filhas Nastaran e Nasrin eram cada vez mais capazes de orientar a casa à medida que iam crescendo, Bahar podia dispor de mais tempo para dedicar a si própria. Era uma artista de talento que começava a concentrar-se no aperfeiçoamento das suas capacidades como artista e pianista de mérito. Por volta de 1980as encomendas de pinturas em que retratava pessoas aumentavam progressivamente, o que fazia com que a víssemos com menor frequência dado que se refugiava no seu atelier. Mas o estrito regime moral imposto pelos molás significava que o marido adquirira novos poderes sobre ela em certos aspectos da sua vida e comportamento.      

A maior parte dos dias de Bahar começavam com uma lição de piano antes de ir para o seu atelier de pintura, onde um tutor supervisionava o seu trabalho. Pintava durante a maior       parte do dia, parando apenas para preparar as refeições. A sua professora de piano era uma mulher de meia-idade divorciada que, a despeito da campanha dos molás subjacente ao tema "do regresso às bases", mantinha um amante mais jovem. Era em casa desta mulher que Bahar contactava com o seu poeta, nessa altura exilado nos Estados Unidos e com quem por vezes conversava horas a fio ao telefone no mesmo dia. Mas ela nunca se apercebeu de que o amante da professora de piano ouvia tudo o que ela dizia.

Nunca chegámos a saber por que motivo é que a professora de piano acabou por banir o amante de sua casa, mas o jovem, agora privado de determinados privilégios, viu uma oportunidade de arranjar dinheiro fácil chantageando Bahar. Não só conseguira gravar um dos seus telefonemas como também se tinha apoderado de uma das contas de telefone onde estavam listados todos os números que haviam sido ligados dali de casa. E ameaçava entregá-la a Nasser Khan, a menos que recebesse o dinheiro que exigia.

Se a escolha fosse sua, Bahar não teria hesitado em entregar pessoalmente a dita lista ao marido. Nunca se interessara por ele, e quanto mais o homem envelhecia, mais repulsa lhe causava. Honra lhe seja feita, Nasser Khan tinha adquirido muitos bens imobiliários em nome da mulher e das filhas, pelo que Bahar pôde desfrutar por fim de alguma independência económica. A morte da mãe no ano anterior também contribuíra para o seu bem-estar económico, proporcionando-lhe consequentemente uma maior liberdade. No entanto, tolerara muitos anos de sofrimento para ceder o seu casamento de mão beijada, para além de se preocupar profundamente com a opinião que a sociedade poderia ter das filhas, que continuavam a depender do pai. O escândalo por si só teria sido suficientemente grave, havendo ainda que levar em consideração a possibilidade de poder vir a ser condenada a uma pena de cadeia ou até mesmo apedrejamento, caso o adultério viesse a ser provado ao abrigo das novas e estritas leis da fé islâmica. Se não houvesse outro motivo, o escândalo teria arruinado as hipóteses de as garotas entrarem na Universidade islâmica. Somente os bons, ou pelo menos os religiosos, tinham lugar nas instituições da revolução.

A persistência do amante, constantemente a telefonar a Bahar para a Casa do Desânimo, exigindo não só dinheiro mas também a sua ajuda para que a professora de piano fizesse as pazes com ele, forçou-a a fazer confidências à tia Homa que viera de Shiraz para ver a minha mãe. Bahar e Homa eram muito chegadas e partilhavam todos os seus segredos, espe ranças e receios. Em certa medida, e no tocante ao que era permitido no casamento, os pontos de vista da minha mãe eram mais estritos, o que as levou a ocultarem-lhe os pormenores da chantagem. No entanto, o homem estava a dar connosco em doidas, assim que ouvíamos o telefone corríamos a atender, não fosse Nasser Khan chegar-lhe primeiro do que nós.

A realidade é que tínhamos os nervos à flor da pele. Bahar passou a ficar mais tempo em casa e quando saía uma de nós era sempre designada para a "patrulha telefónica". Portanto, todas saltávamos de alegria cada vez que Nasser Khan se ausentava, o que nos permitia ir até às zonas mais conturbadas de Teerão deixar que o telefone tocasse na casa vazia. Numa ocasião dessas em que não vimos nada de empolgante, parámos perto do Majlis (o parlamento) para comermos algo num dos muitos cafés da baixa da cidade onde se comia deliciosamente.

Como de costume, os cabelos de Bahar recusavam-se terminantemente a ficarem confinados a um lenço de cabeça e soltavam-se em todas as direcções. No mês anterior, numa altura em que ela estava à espera da luz verde de um semáforo, um homem ao volante de um automóvel parado ao seu lado fez-lhe um gesto indicando-lhe que cobrisse melhor com o lenço o cabelo solto. Ela retribuiu-lhe com outro gesto que lhe dizia para se meter na sua vida. Acontece que o homem era um polícia de costumes vestido à paisana, e o resultado foi Bahar dar consigo na mal-afamada prisão de Evin. Era nesse estabelecimento prisional que o xá, e depois os molás, mandavam torturar e assassinar os seus opositores políticos. Colocaram Bahar numa cela juntamente com várias centenas de outras mulheres. Com dificuldades respiratórias e perante a perspectiva de vir a perder a vida no sistema prisional por não ter o medicamento para o coração, acabou por ceder e assinar uma confissão em que dizia ter trabalhado como prostituta. Na manhã seguinte foi libertada sob tutela do marido.

Enquanto esperávamos no carro que nos trouxessem as sanduíches, um bando de molás pararam na rua mesmo em frente de nós. Entrámos logo em acção, certificando-nos de que estávamos cobertas ao estilo islâmico. Fiquei abismada com aquela visão de molás revolucionários, autênticos, embrenhados numa conversa a menos de três metros de nós. Pouco depois o grupo desfez-se e avistámos o meu amigo Raffers mesmo à nossa frente; o seu verdadeiro nome era Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, o homem destinado a ocupar a presidência da república, embora na altura eu não soubesse que viria a gostar daquele homem. Nessa altura ele era apenas o porta-voz do Majlis, um molá dos mais importantes - o inimigo - e estava ali para quem o quisesse ver. A mão de Bahar afastou-se do lenço e dirigiu-se à chave na ignição; o motor começou a funcionar lentamente.

- Podíamos atropelá-lo - disse Bahar em voz baixa. - Uma pisadela do acelerador e ficaríamos livres de um deles - acrescentou numa voz rosnada.

Por breves instantes aquilo pareceu-me viável, uma acção que até poderia ser considerada louvável; mas fomos despertadas daquele devaneio quando as raparigas começaram a implorar à mãe que não fizesse uma coisa daquelas. Enquanto Raffers se mantinha de pé entre uma vida que faria dele um dos homens mais poderosos da nação, e a morte debaixo dos pneus de um velho Peugeot que caía aos bocados, vi por detrás dos olhos de Bahar um sofrimento que nunca tinha visto.

- Pensa nas garotas - disse-lhe eu. - Também serão levadas para a prisão juntamente connosco. destruirás as suas vidas. - O motor continuou a funcionar ao ralenti, mas ela hesitou o tempo suficiente para permitir a aproximação de um Mercedes-Benz novinho em folha, e o futuro presidente foi levado dali para fora no espaço de segundos. Sentia-me alagada em suor, e não tinha nada a ver com o calor.

É impossível não sentir simpatia por aqueles molás que continuam a ser obrigados a conduzir calhambeques a caírem de podres, ou que são obrigados a usar os transportes públicos enquanto percorrem ruas apinhadas de veículos, entre os quais se encontram os automóveis de luxo em que os seus irmãos revolucionários mais poderosos se fazem transportar por todo o seu novo reino.

Bahar desapareceu ao fim desse dia, regressando várias horas mais tarde para nos informar de que tinha resolvido o nosso pequeno problema com o telefone. Depois disso voltou a sentir-se livre e retomou a sua rotina habitual, com o seu livro de encomendas cheio para retratos que ia pintar. Quanto a mim, depois de ter pintado os cabelos de louro e de ter perdido montanhas de gordura, deu-me na cabeça ser imortalizada numa pintura a óleo; dois dias depois de Bahar ter feito as pazes com o amante da professora de piano, começou a pintar o meu retrato. Foi a meio de uma dessas sessões de pose que Bahar foi acometida de graves cólicas no estômago. Nessa noite ficou de cama com umas dores de cabeça insuportáveis.

Durante os dois dias seguintes medicou-se com os fármacos que guardava no armário, em tão grande número que poderiam fazer inveja à maior parte dos hospitais. Chamou-se uma enfermeira para lhe dar injecções enquanto Bahar dava as suas ordens da cama. Mas ao terceiro dia estava incapaz de falar e tivemos de chamar um médico, apesar de as persistentes dores de cabeça e o pescoço rígido serem sintomas suficientes para nos indicarem que deveria ser levada imediatamente para um hospital. O que era fácil de dizer mas nada fácil de fazer.

Quando conseguimos arranjar um táxi - Nasser Khan recusava-se a conduzir - já a noite se aproximava. Seguiu-se uma volta mistério por todos os hospitais de Teerão; nenhum deles tinha uma cama para Bahar. A minha mãe e a tia Homa decidiram entrar em acção, ligando para toda a gente importante que conheciam na cidade. Por volta da meia-noite já a tínhamos em segurança na cama de um dos primeiros hospitais a que tínhamos ido nesse dia terrível. Foi-lhe diagnosticada uma meningite. Fomos enviadas a todas as farmácias e hospitais à procura dos medicamentos que lhe salvariam a vida, até que finalmente tivemos de recorrer ao mercado negro.

Ao longo dos vários dias em que a sua mulher esteve entre a vida e a morte, Nasser Khan continuou a seguir a sua rotina diária de sempre, limitando-se a acrescentar uma visita ao hospital durante as suas tardes, uma espécie de programa pós-sesta. Esta atitude não contribuiu em nada para aumentar o grau de simpatia que eu tinha por ele. Mas agora, em retrospectiva, apercebo-me de que ele não era um homem maligno - de facto, não só é cortês como também é simpático; todavia, era incapaz de se desviar da linha a direito que traçara para a sua vida. Era absolutamente incapaz de se adaptar às alterações que a sua vida pública ou privada tinham sofrido - essa é que era a sua grande tragédia.

As tias e a irmã revezavam-se à cabeceira da cama do hospital onde Bahar ficou internada, uma vez que no Irão é normal que os cuidados de enfermagem sejam prestados por uma "companhia". Mais ou menos uma semana depois de Bahar ter sido admitida no hospital, Homa regressou a casa depois de um turno nocturno particularmente difícil e deu com Nasser a falar ao telefone; tinha o olhar de um homem embriagado, se bem que não fosse pessoa para beber. Defronte de si tinha uma lista com números de telefone. O motivo por que o amante rejeitado decidira concretizar a sua ameaça é um enigma que jamais viremos a deslindar, mas o certo é que nos levou a uma situação que por vezes não passava de uma farsa, mas que na sua maior parte era um pesadelo em que Nasser Khan envidava todos os seus esforços em perseguição da presa.

Finalmente o homem tinha qualquer coisa com que ocupar o seu tempo. Passava todos os momentos livres ao telefone, mal se alimentando ou dormindo, constantemente a ligar para números de telefone. Os que lhe respondiam do outro lado da linha eram saudados com as palavras: "Hassan. quem é ele? Onde é que ele está? O que é que ele faz? ". Depois de ter tentado todos os números e esgotar a lista com os indicativos de Los Angeles, começou a utilizar indicativos ao acaso e por vezes ligava para Idaho, enquanto noutras ocasiões os seus telefonemas iam parar a Mogadíscio. Podíamos ouvi-lo noite adentro: "Quem é esse Hassan? "

Tratava-se de uma situação bastante patética, e este homem de idade envelhecia de dia para dia, cada vez mais desfeito psicologicamente e numa espécie de demência crescente. Não fazia a mais pequena tentativa para decifrar o número de telefone correcto; limitava- se a ligar aleatoriamente e arengava com quem atendesse do outro lado. Estávamos encurraladas numa casa de doidos, tínhamos os nervos em franja. As delirantes arengas de Nasser Khan tornavam-se insuportáveis.

Havia alturas em que nos encontrávamos tranquilamente sentadas tentando ver qualquer programa de televisão e de repente Nasser Khan saía do seu quarto, todo desmazelado e por barbear; erguia os braços ao céu e começava a gritar:

- Alá, mata-a! Quero vê-la morta! Não permitas que ela se salve! - Aquela conduta não nos fazia sentir bem-vindas em sua casa e não contribuía em nada para o estado psicológico das duas garotas, cuja mãe se debatia entre a vida e a morte. E contudo, não obstante a cólera que Nasser Khan pudesse sentir em casa, todos os dias lá ia zelosamente à mesma hora a caminho do hospital. Aí chegado, sentava-se à beira da mulher, beijava-lhe a mão e tratava-a como se fosse o amor da sua vida.

Durante vários dias estivemos convencidas de que Bahar ia morrer. Quando foi admitida no hospital, já ia em estado de coma; o seu coração não conseguiria suportar tanto esforço, e o espírito dava a impressão de a ter abandonado. Foi então que num belo dia o telefone do quarto da doente começou a tocar. Ela falou durante menos de dois minutos na sua voz delicada e baixa, extremamente enfraquecida. Quando desligou, era uma mulher que renascera para a vida. O seu poeta ligara-lhe de Los Angeles e esse telefonema foi o sopro de vida que deu alento a Bahar. A partir desse momento não deu tréguas à doença, começando a ficar mais forte de dia para dia.

O seu poeta fora um dos locutores mais influentes em todo o Irão antes da revolução. Tivera a habilidade de estar sempre de bem com Deus e com o diabo, uma atitude que lhe permitiu ser tolerado pelo último regime, enquanto o novo não encontrava qualquer crime para o destruir. No entanto, acabou por ser forçado a abandonar o Irão por causa do seu cozinheiro, um homem que fora criado na casa de família e que veio a ser um membro proeminente de um Komieth local depois da chegada dos molás. Os Komieths, ou Comités dos Imãs, tinham-se espalhado por todas as regiões do Irão numa questão de escassas semanas na sequência do regresso do ayatollah Khomeini em Fevereiro de 1979, que até então vivera em exílio. Estes comités tinham por função prender pessoas abastadas nas localidades onde se instalavam, ao mesmo tempo que impunham à populaça os novos padrões islâmicos de conduta. Dado que havia poucas pessoas que estivessem ao corrente destes padrões, os Komieths andavam sempre muito atarefados. Dependiam de informadores que lhes indicavam quem eram os "tiranos locais" (expressão por que os ricos eram conhecidos nessa altura). Uma mulher de quem éramos amigas foi presa e posteriormente abatida depois de a sua criada ter dito ao Komieth que a imperatriz Farah assistira ao casamento da filha e oferecera à noiva um valioso anel com um diamante como prenda de casamento.

Aparentemente, o cozinheiro do poeta tivera um só desejo: ser proprietário da casa onde crescera. Os dois homens imaginavam que eram amigos antes da revolução, mas no período pós-revolucionário o poeta passou a ser o amo opressor, enquanto o cozinheiro era o servo oprimido. Este servo oprimido colocar-se-ia todas as noites à porta do poeta, lançando-lhe repetidamente acusações falsas umas atrás das outras. Por fim, o poeta foi incapaz de suportar aquela situação por mais tempo, sentindo- se aterrorizado perante a perspectiva de que o cozinheiro - depois da sua fracassada tentativa em mandá-lo para a prisãoencenasse um tiroteio, que nessa época era uma maneira muito vulgar de fazer desaparecer as pessoas que os tribunais não tinham razões para condenar. O poeta foi levado clandestinamente para os Estados Unidos, apenas com a roupa que na altura trazia no corpo.

Bahar precisou de um mês para se convalescer o súficiente para poder regressar a casa. Mas a mulher que entrou em casa nesse dia vinha ainda mais frágil do que antes da doença; mal conseguia andar e o seu riso ficara naquela cama de hospital. O seu coração exaurido tinha cada vez mais dificuldade em cumprir as suas funções. Pela primeira vez na sua vida, Bahar mostrava-se verdadeiramente desanimada, o seu corpo era um mero invólucro onde o anjo vivera. No entanto, o desejo que sentia em continuar a manter contacto com o seu poeta ao fim de pouco tempo fê-la sair do buraco sombrio onde caíra e o seu espírito elevou o corpo frágil acima das suas incapacidades físicas. Só conseguiu retomar inteiramente a sua vida normal quando conseguiu persuadir as tias de que já estava suficientemente forte para poder voltar a trabalhar - e, uma vez mais, viu-se com liberdade para começar uma vida em secretismo.

Em 1981 houve uma espécie de guerra civil entre as várias facções da revolução, o que nos obrigava a viver a nossa vida entre batalhas campais nas ruas, emboscadas à meia-noite e de quando em vez o ocasional rebentamento de uma bomba. Viviam-se tempos empolgantes.

Shiraz, a capital meridional da Pérsia da Antiguidade, foi a cidade mais atingida pelo descalabro. A universidade gozava de reputação internacional, atraindo estudantes e oradores de todos os cantos do mundo. Este encontro de culturas diversificadas propiciara um sector intelectual particularmente político - um estrato da sociedade que teria de ser suprimido caso os fundamentalistas quisessem ver coroados de êxito os seus esforços para se apoderarem da revolução.

A filha de Homa, Laleh, e o marido, um dirigente estudantil, foram obrigados a fugir para os Estados Unidos pois as suas vidas corriam perigo. Haviam-se conhecido numa festa

- chocante! - quando ela era ainda adolescente, e desde então passaram a ser inseparáveis. O marido de Laleh, Jobo, servira-se da sua posição como representante dos estudantes para espalhar a palavra da rebelião, mas a revolução, precisamente o animal que ele desejara promover, tinha-se voltado contra si e tentara aniquilá- lo, o que o forçou a partir para o exílio em 1981.

As ruas da maior parte das grandes cidades fervilhavam de medo, entusiasmo e expectativa. Era um espectáculo grandioso, a menos que, por acaso, fôssemos um dos participantes. Um desses actores era um oficial de patente elevada destacado para uma cadeia na região sul. Verdade seja dita, não era nenhum anjo, tendo permanecido impávido e sereno e um mero observador da repressão que o xá exercia sobre os mansos e os rebeldes.

- Não podemos alterar nada sem que nós próprios acabemos no cemitério - alegara ele enquanto ia enriquecendo graças ao antigo regime. Não lhe causara repugnância ter separado os prisioneiros em "pobres" e "pagadores". Estes últimos tinham direito às melhores celas e podiam mandar vir de fora as suas refeições, um privilégio entre muitos outros. Quando os manifestantes abriram as portas das penitenciárias, os primeiros deram largas à sua ira dirigindo-a contra o estrato social que acusavam como responsável pela sua miséria. O oficial em questão pensou que fora bafejado pela sorte ao ver que os molás não o tinham substituído. Também imaginou que o pior já tinha ficado para trás; contudo, a revolução colocara-o à beira da insanidade mental.

Durante os momentos de lucidez contava a quem o quisesse ouvir a história de Ali, o neto da viúva de noventa anos de idade do seu melhor amigo. O rapaz fora um viciado em heroína, o que levara a mãe a abordar o oficial pedindo-lhe que o prendesse por alguns dias, assustando-o de forma a abandonar aquela dependência. Ali estava encarcerado há dois dias quando a réplica do Irão ao juiz Roy Be, o ayatollah Chalkhali, chegou à cidade. Foi o começo da repressão sobre os mujahiddi e-Khalg-e-Irão, o grupo islamita-marxista que se batera por um Estado xiita sem a intervenção dos molás. Esta ideologia mereceu-lhes o privilégio de serem os primeiros a serem encostados a uma parede depois da revolução, tendo sido presos aos milhares. O juiz responsável pelos enforcamentos recebeu instruções para esvaziar as celas onde estes jovens idealistas, ainda que mal- avisados, tinham sido encarcerados.

O seu método de esvaziamento de celas prisionais consistia em levá- los a meio da noite perante um pelotão de fuzilamento. Numa determinada noite todas as celas ficaram vazias, incluindo aquela onde Ali sofria as consequências da falta de drogas. Embora nessa noite tivessem sido abatidas centenas de estudantes, o oficial da prisão não conseguiu conformar-se com a morte daquele viciado "inocente".

Havia muito pouca simpatia para com as facções extremadas que tinham alimentado o fogo da revolução. As pessoas chegavam ao ponto de se regozijar ao saberem que os mujahiddin de filosofia dura eram perseguidos e abatidos. Mas no meio de tanta mortandade ainda continuavam a existir casos esporádicos que suscitavam a simpatia do povo. Foi esse o caso de Sombol, a filha de uma das nossas amigas. Esta jovem de dezanove anos de idade, uma estudante de talento que frequentava o segundo ano do curso de Medicina, fora suficientemente idiota para não obedecer às instruções dos islâmicos que queriam que os estudantes boicotassem as palestras. Foi alvejada quando saía de uma conferência. Sobre o seu corpo foi deixada uma mensagem onde se lia que aquele seria o destino de todos os que se atrevessem a desobedecer e de todas aquelas que se recusassem a usar o véu. Essa jovem assistiu ao desenrolar da era pós-revolução sentada numa cadeira de rodas, com a espinha

desfeita pela bala disparada por um dos libertadores do povo.

Pouco tempo depois os ataques alastraram por toda a cidade de Teerão, onde continuava a haver muitas mulheres que se recusavam a cobrir o corpo da cabeça aos pés, mau-grado relatos de lançamento de ácido contra as suas faces, havendo também ocasiões em que chegavam a ser golpeadas. Apesar de uma das Irmãs do Islão ter espetado uma agulha enorme na minha anca descoberta, recusavamo-nos a ceder cobrindo aquilo que durante muitos anos fora exibido. Não queríamos acreditar que a mera visão do nosso cabelo, ou a fragrância do Chanel Nº 5 pudesse excitar sexualmente os filhos do Islão.

Era um enigma desconhecido de todos como havíamos chegado a uma situação daquelas. Os ayatollahs tinham investido contra nós enquanto dormíamos no meio da nossa bruma de auto-satisfação por um simulacro de progressos assumidos. Contudo, os excessos cometidos pelo regime do xá provocaram os mansos em demasia, pelo que tínhamos de suportar as consequências. Na minha anterior visita ao Irão, em 1975, as mulheres andavam pelas ruas praticamente nuas - chocando até mesmo os meus olhos ocidentalizados. A mulher do ministro não pedia meças a Sharon Stone quando foi ao salão de cabeleireiro no Hotel Hilton, onde pôs o cabeleireiro italiano num frenesim, quando ergueu um pé de unhas bem arranjadas, revelando os pêlos púbicos.

Agora a revolução fizera-nos descrever um círculo de trezentos e sessenta graus. Nesses tempos eu passava a maior parte dos meus dias com a minha prima Farah, a filha mais velha do meu tio Dada Jan. Tínhamos nascido no mesmo dia e na mesma maternidade, e éramos mais como irmãs do que primas. Ela casara-se com a tenra idade de dezasseis anos, sem nunca ter mostrado a mínima inclinação para fazer fosse o que fosse além de ser dona de casa, ir às compras, trocar mexericos, e continuar a ir às compras.

Farah punha-me doida, sempre a limpar e a aspirar; só me apetecia dizer cobras e lagartos quando o marido, conhecido na nossa família pela alcunha de Inútil, se sentava com os pés ao alto depois de um dia arduamente dispendido a perder o dinheiro dela num dos seus esquemas disparatados, gritando para que lhe levassem o seu chá. Parecia-me absurdo que ela corresse logo para a cozinha, de onde regressava com um copo alto cheio de chá a ferver. O chá domina a vida dos iranianos, e todas as casas têm o seu samovar que ferve vinte e quatro horas por dia. As boas esposas servem chá com graciosidade, e sempre que um pretendente se apresenta, a filha é incumbida de mostrar as suas habilidades nesse departamento.

Foi no apartamento de Farah que conheci os iranianos "comuns" da classe média. Entre essas pessoas, as mulheres tinham de trabalhar para poderem pagar a renda de casa, e comprar os escassos luxos importados do Ocidente em exibição nas lojas. Estas mulheres eram funcionárias públicas que ocupavam posições inferiores, hospedeiras das linhas aéreas e bancárias, sendo obrigadas a executar as tarefas domésticas a par das obrigações profissionais, sem qualquer ajuda de amas, cozinheiras ou almoços nos country clubs. Um dia, durante a primeira Primavera pós-revolução, um grupo destas mulheres apresentou-me à causa da mulher sob o islamismo. Várias semanas antes o regime tinha anunciado que todas as funcionárias públicas seriam obrigadas a usar véu - o hejab - qualquer membro do sexo feminino que entrasse numa repartição pública teria de se velar; regra que também se aplicava às estudantes, às quais passaria a ser distribuído um uniforme islâmico.

Foi o princípio do fim, mas nesses tempos ainda acreditávamos que o povo seria capaz de governar efectivamente o seu país. O novo traje islâmico era tão feio quanto se pudesse conceber. Consistia numa espécie de toucado, ou maghneh, que cobre a cabeça, o pescoço e os ombros, com uma abertura por onde o rosto espreita. Por baixo disto, as mulheres têm de usar uma peça de roupa larga a dar pela barriga da perna, o mantau (casaco), por cima de um par de calças que teriam de ser no mínimo dois tamanhos acima do número que a mulher em questão vestisse, o que garantia que não se veria nenhuma das formas do corpo. Por baixo disto usa-se um par de meias ou peúgas, apesar de a fé islâmica permitir que a mulher mostre os pés descalços. Estes uniformes vinham em três cores: preto, azul-marinho e um acastanhado tom de lama.

As senhoras faziam planos para se integrarem numa manifestação contra o hejab que teria lugar na semana seguinte em frente do palácio do primeiro-ministro. Quereríamos nós participar?

- Não, obrigada, o assunto não nos diz respeito - replicou Farah.

- Claro que iremos, logo atrás de vocês, lutando pela mesma causa - atalhei, mau-grado os olhares sombrios com que a minha prima me mimoseou.

Indo direita ao assunto, eu e duas das minhas vizinhas decidimos pintar os cabelos de um louro platinado como o de Marilyn Monroe - um outro símbolo do nosso desdém, um desafio patente. Dois dias antes da data combinada para a marcha de protesto, uma demonstração feminina de menores proporções contra o hejab terminou com quatro mortes e um grande número de ossos fracturados. Farah implorou-me que não participasse, mas eu estava firmemente determinada a participar, fossem quais fossem os riscos.

Por conseguinte, numa fresca manhã de Primavera fui de táxi buscar Farah e as suas vizinhas. Quando o motorista compreendeu que iamos a caminho da Avenida Palace onde a manifestação teria lugar, rogou-nos que regressássemos a casa. Sugeri-lhe que nos deixasse na cauda das manifestantes que convergiam vindas de quilómetros de distância, obrigando o veículo a deslocar-se a passo de caracol por entre o trânsito.

- Isto parece ser perigoso. Vou com vocês - anunciou o taxista enquanto procurava um lugar onde pudesse estacionar afastado das filas de Renault 5, o automóvel que as mulheres elegantes conduziam naquele ano.

Quando chegámos ao corpo principal de manifestantes, Farah ainda tentou afastar-me.

- Já vimos tudo o que tínhamos a ver; agora vamo-nos embora.

Mas eu fervilhava por dentro, queria participar naquela manifestação, e puxei-a para que continuássemos. Fomos empurradas para os passeios estreitos que ladeavam a avenida, enquanto guardas islâmicos na puberdade, os temidos pasdars, empunhavam pistolas-metralhadoras com cuja extremidade impeliam os nossos homens para o meio da rua entre os contra-manifestantes do Hezbollah, o Partido de Deus.

Marchámos sob os epítetos dejendeh (puta) e madarjendeh (a tua mãe é uma puta) e até mesmo pedar sag (o teu pai é um cão). Realmente! que linguagem saía da boca de bons rapazes muçulmanos! Senti um momento de dúvida quando observei o olhar do rapaz de quinze anos que me acenava com o cano da sua pistola-metralhadora. Mas era demasiado tarde para tentar fugir; encontrávamo-nos mesmo no centro da situação, entoando palavras de ordem e fazendo o gesto da paz.

Estava a começar a compreender o significado das palavras de ordem, quando me vi frente a frente com uma mulher que devia ser uma lutadora de sumo. Usava o chador negro preso por um alfimete ao cabelo e torcido em redor da cintura larga. A mamute começou a gritar às mulheres do pequeno grupo que me rodeava e estas retraíram-se perante aquela competição. Sentindo que o sangue me subia à cabeça, encetei impetuosamente com a velha megera uma discussão acalorada sobre a minha virtude. À medida que a nossa troca de palavras se tornava cada vez mais acesa, Farah empalidecia. Num acto de desespero, tapou-me a boca com a mão.

- Cala-te, minha idiota! Essa é Zahra, a Estripadora! - gritou-me.

- Quem? - perguntei, revelando toda a minha ignorância quanto à identidade dos actores menos importantes da nossa revolução.

- Ela costumava matar soldados apenas com as mãos. Diziam que os desmembrava, membro a membro - explicou-me a minha prima. Ambas avançámos sorrateiramente pelo meio da multidão, começando a afastar-nos da afável Zahra.

Finalmente, Bani-Sadr, o último primeiro- ministro verdadeiramente secular do Irão, deixou ver o bigode à janela do último andar do seu gabinete que mais parecia uma fortaleza, prometendo-nos que apresentaria os nossos pontos de vista ao ayurolluh. Na altura, pensei que era impossível acreditar num dirigente que tinha uma semelhança tão extraordinária com Charlie Chaplin.

Com o advento da revolução, os pusdars tomavam de assalto as residências dos déspotas, os taghouris, deixando-as completamente vazias. Corriam rumores de que as melhores peças eram levadas para Genebra, onde eram leiloadas por Mohammmed Ringo, o filho do ayatollah Montazeri. Dayee Jan fora forçado a abandonar uma casa dessas. Tinha morrido há quinze anos, mas os seus uniformes conseguiram sobreviver-lhe, a casa foi esvaziada de todos os seus tesouros; a sua viúva passou a viver no quarto da criada. Vários cidadãos "oprimidos" passaram a viver no salão de baile todo revestido com espelhos. Entre os objectos desviados da residência encontravam-se os uniformes de gala do marechal-de-campoque vieram a ser distribuídos entre as vítimas de um tremor de terra. A imagem de uma vítima meia-morta de fome sentada no meio dos escombros que restavam da sua casa, envergando um uniforme com dragonas e medalhas, buliu sempre com o meu sentido do absurdo. No entanto, era por de mais evidente que Bani-Sadr arranjara os seus fatos de uma maneira similar. Por que outro motivo é que seriam sempre três tamanhos acima da sua medida?

Depois de os enchumaçados se nos terem dirigido, começámos a regressar a casa, enquanto os arruaceiros do Hezbollah eram deixados à solta. Subitamente, a rua fervilhava de homens jovens - na verdade, meros rapazes - que brandiam canos de aço, pedras e facas. Eu disse a Farah que continuasse a caminhar calmamente, como se tivéssemos saído apenas para dar um passeio. Mas, de facto, a nossa passada não era exactamente a de quem passeava, embora eu mantivesse os olhos presos no pavimento, receando entrar em pânico caso olhasse para a multidão.

Ficámos rodeadas por mulheres que gritavam e por rapazes que escarneciam; de repente um objecto bateu-me violentamente na cabeça. Um segundo mais tarde vi uma coisa vermelha e redonda que caiu ao chão. Voltei-me para trás e olhei para Farah, que estava imobilizada e com uma expressão de terror no rosto. Senti a face fria.

- Partiram-me a cabeça, fui atingida por uma pedra e as dores ainda não começaram. Estou a sangrar. Oh, meu Deus, estou a sangrar!

Fiquei a olhar para a arma que me tinha atingido, caída aos meus pés, um bocado de sorvete que se derretia. Eu fora ferida na defesa da liberdade por um bocado de gelado de morango. Aqueles rapazes eram apenas aldeãos que alguém transportara de camioneta acenando-lhes com a promessa de uma sandes e um sorvete que não teriam de pagar, a troco de gritarem umas quantas obscenidades enquanto perseguiam algumas mulheres.

Todavia, o pânico instalara-se entre as mulheres; sabíamos que da próxima vez seríamos atingidas com pedras ou coisas piores. Nunca me senti tão satisfeita por ver alguém como quando avistei o nosso taxista que nos acenava de uma rua lateral. Ele conseguira regressar ao automóvel, passando pelos guardas armados até ao centro da manifestação.

- Entrem e agachem-se! - ordenou-nos. - Mais à frente estão a matar pessoas. Escondemo-nos no chão do veículo enquanto passávamos pelas milícias que tinham estado à espera junto dos automóveis estacionados. Quando me ergui um pouco e olhei de relance, o sangue espalhou-se pelo vidro da janela enquanto o táxi guinava para evitar atropelar um corpo caído no asfalto. Nas ruas laterais os veículos eram vandalizados e as mulheres arrastadas pelos cabelos. O vermelho já não era de sorvete de morango.

O carro parou com um solavanco. À nossa frente estava uma mulher de meia-idade que nos suplicava que a salvássemos.

Deixem-na - disse o taxista. Mas não podíamos proceder dessa maneira.

Quando saltou para o assento da frente, sacou de uma gigantesca faca de trinchar e começou a gritar aos homens que uma vez mais nos circundavam.

Havemos de vos apanhar, animais! Atrevam-se a barrar-nos o caminho!

Ali estava eu, encurralada no interior de um automóvel com uma lunática que brandia uma faca de trinchar, rodeada por revolucionários endurecidos e mais do que dispostos a desfazerem-me.

- Por favor, por favor, guarde isso! Em nome de Deus, esconda essa faca! - implorei.

Estou a cagar-me para a sua religião - ripostou a mulher aos gritos enquanto ten tava abrir ajanela.

- Ou guarda isso ou sai já do táxi para fora! - ordenou o motorista.

- Vou levá-los a todos connosco! - retorquiu a mulher numa linguagem bombástica continuando a brandir a faca.

Ainda estou para saber como é que conseguimos libertar-nos daquele inferno. O terror na sua forma mais simples fez com que só mais tarde os pormenores se registassem na minha mente, quando já seguíamos a salvo na estrada em direcção à zona norte de Teerão, altura em que pusemos a mulher demente fora do táxi.

Começava a compreender lentamente quão pouco conhecia a minha gente. Na semana seguinte acompanhei a minha mãe e Maman Joon numa peregrinação a Qom, uma cidade de assombração onde a maior parte dos residentes eram molás e os chadors estavam na ordem do dia.

Quando chegámos à cidade, entrámos num estranho mundo de colégios de teologia e de quartéis-generais dos ayatollahs. As ruínas do que em tempos foram cinemas e restaurantes, estavam desertas. Uma das Irmãs de Zahara avistou as unhas da minha mãe quando esta entrou no santuário de Hazrat Masumeh.

- Olhem para as unhas da rameira! - gritou a mulher, fazendo com que as pessoas se juntassem. Se não fosse a presença de um jovem, extremamente bem-parecido, um aprendiz de molá, é muito possível que nesse dia tivéssemos sido levadas à presença do nosso Cria dor. Mas o homem acorreu em nossa ajuda acompanhado de vários zeladores e empregados da limpeza do santuário. Levou-nos para sua casa, onde nos ofereceu uma deliciosa refeição antes de se despedir de nós. Jurei a mim mesma que nunca mais regressaria ali.

Nesse mesmo dia, já na estrada a caminho de Teerão, aprendi como era fácil ignorar o que se passava à nossa volta e deixar que as injustiças acontecessem impunemente. Digo a mim mesma que não havia nada que pudesse ter feito, mas mesmo assim continuo a sentir vergonha da minha indiferença. Vi um homem de idade, talvez da idade do meu avô, de pé entre dois pasdars enquanto o resto da sua família era obrigada a entrar num camião. Havia uma mulher de idade juntamente com vários homens jovens, todos com as mãos amarradas atrás das costas e a serem levados enquanto o idoso chorava. Sem sabermos como, parecia que tínhamos entrado num estúdio onde se filmasse um filme sobre uma guerra nazi.

Estávamos a viver nas profundas do inferno.

Devia ser por essa razão que muito provavelmente tantos de nós se reuniam com frequência para beber e jogar, à semelhança do que faziam os passageiros no salão de baile de um transatlântico, sem nos apercebermos de que tínhamos embatido contra um icebergue. Enquanto durante o dia Teerão mostrava a fachada, bastante razoável, de um estado policial, durante a noite transformava-se no Rio de Janeiro durante o período do Carnaval. Bahar costuma levar-me, bem como a minha mãe e as duas filhas, em passeios de carro pela capital à meia-noite. Amiudadas vezes as festas duravam até ao amanhecer, enquanto a nação recentemente libertada bebia o seu último gole da taça da liberdade.

Durante o primeiro ano as massas aguardavam que o novo regime honrasse a sua promessa de entregar a todos os iranianos, às suas portas, o quinhão que lhe caberia dos lucros da indústria petrolífera. Continuam à espera. No ar pairava uma sensação de "dentro em pouco todos ficaremos ricos, portanto vamos sair e começar a gastar o dinheiro". O centro das festividades era o recém-denominado Parque Mellat (Parque da Nação), situado no extremo norte da artéria que já não se chamava Avenida Palevi, embora poucas pessoas conseguissem recordar-se com exactidão do nome que lhe fora atribuído nessa semana. Toda a gente, munida de um tacho e de algumas cadeiras suplementares, improvisara um restaurante ao ar livre em redor do parque. Os bons cidadãos de Teerão - os ricos do norte da cidade e os pobres da zona sul - reuniam-se ali para comer, namoriscar, remar no lago, para observarem os jovens que se exibiam nos seus skateboards, ou simplesmente para escaparem ao medo que ensombrara a cidade durante o dia. No meio de toda aquela confusão, Zeeba, a filha de Dada Jan que tirara um curso de Engenharia, decidiu que efectivamente precisávamos era de uma boa reunião de família. Nos tempos mais próximos ela não estava disposta a abandonar as suas casas luxuosas, os seus três Mercedes e o seu jardim de Verão nas mãos "daqueles idiotas", parafraseando a sua expressão. A invasão da embaixada norte-americana em Teerão pelos estudantes, onde os diplomatas eram mantidos como reféns, dera uma nova esperança a muitos contra-revolucionários. Era a justificação de que a CIA necessitava para interferir no conflito.

- Conto contigo na minha festa - ordenou Zeeba pelo telefone, sabendo de antemão que a linha se encontrava sob escuta. A minha mãe e eu continuávamos alojadas em casa de Bahar e Nasser Khan, cuja situação de oficial graduado das forças de segurança do antigo regime do xá lhe garantia ter o telefone sob escuta. Entretanto, a tia Homa regressara a Shiraz, enquanto Maman Joon se encontrava em Damavand, no seu retiro da montanha onde se refugiava para fugir ao calor do Verão. A minha mãe e Homa conversavam há mais de uma hora sobre a questão da segurança da mãe de ambas já com oitenta e quatro anos.

Abordavam o mesmo assunto pela centésima vez, quando uma voz se intrometeu na linha.

- Estou farto de vos ouvir falar sobre a vossa mãe. Comecem a conversar sobre qualquer coisa mais interessante. - Pelo menos os espias tinham um bom sentido de humor. O espião que ouvia as conversas telefónicas de Zeeda deve ter-se sentido deliciado.

Vai ser a festa da estação. Toda a gente estará presente - dissera ela com entusiasmo. E, na verdade, toda a gente foi à festa. Os membros de menor importância da casa real saíram dos seus esconderijos. Mau-grado as ordens de execução, os mações vieram à superficie; o vinho abundava. As mulheres envergaram o que lhes restava dos trajes de grandes estilistas, vestidos que revelavam bastante dos seus corpos, e numa sala das traseiras droga era coisa que não faltava.

No entanto, os pasdars da vizinhança decidiram participar na nossa festa nocturna. Os festejos decorriam animadamente quando ouvimos a campainha da porta, ao mesmo tempo que nos apercebemos de que a garagem do piso térreo acabara de ser arrombada. Enquanto os revolucionários passavam pelos alojamentos dos servos, e pelos quartos do andar de cima, as mulheres corriam apressadamente para os seus casacos, e Zeeba procurava cheia de frenesim alguns lenços de cabeça que lhes pudesse emprestar, enquanto os homens se apressavam a esconder o ópio. Eu estava a enfiar uma garrafa de Bollinger dentro de uma das minhas botas de camurça quando a porta foi arrombada com um estrondo enorme.

As mulheres procuraram refúgio numa sala das traseiras, deixando que os nossos galantes homens lidassem com a situação espinhosa. Eu não tinha a menor dúvida de que estava a caminho de ser sentenciada a setenta chicotadas, mas, pior do que tudo o mais, estava bem ciente de que se encontravam presentes várias pessoas que teriam de enfrentar o carrasco.

- Por favor, meu Deus, faz com que tudo corra pelo melhor, permite que eles consigam fugir. Se me concederes este pedido, prometo-Te que direi todas as minhas namaz (orações rituais) durante o resto da minha vida. - Enquanto esperava, rezava. Repetia eu a minha promessa quando a porta da sala começou a abrir-se com lentidão, mas em vez de deparar com o mal-ajambrado e barbudo representante do Islão que esperara ver na ombreira da porta, avistei o primo em segundo grau, três vezes despromovido, da ex-imperatriz.

- Já se foram embora - anunciou ele. Pelos vistos, nem os temidos pasdurs eram aversos a um ou outro pequeno suborno, que aceitavam em nome do fundo "há que levar qualquer coisa".

Nessa época, a situação era de tal maneira caótica que quase toda a gente podia agir impunemente, desde que não destoasse muito do contexto em questão. Conheço um antigo ministro que deixou crescer a barba, comprou um manto dos que os molás usavam, bem como um turbante, andando à vontade pelas ruas e fazendo-se passar por um ayatollah, enquanto o tribunal islâmico o procurava por todo o país.

Ospasdars também não mostravam pejo nenhum em se aproveitarem das novas proibições. Houve um caso muito famoso de um bando da zona norte de Teerão que fez uma fortuna vendendo uma caixa de uísque. Um intermediário abordava as pessoas que queriam adquirir bebidas alcoólicas, convidava-as a irem buscar a sua água do diabo pela calada da noite, a uma casa situada num beco sem saída, e aí vendiam-lhes uma caixa de Johnny Walker Black Label, com o vendedor a insistir que a colocassem no porta-bagagens. Pouco depois o trouxa chegava ao fundo da rua e deparava com uma das muitas barreiras comuns por todo o Irhão nesses tempos. Era então que o uísque era descoberto e, ao cabo de muitas súplicas e pedidos, os pasdars aceitavam um suborno para não denunciarem o pobre alcoólico. Também confiscavam as bebidas, cuja caixa era devolvida à precedência, pronta para a próxima golpada.

No dia 17 de Setembro de 1980 a minha mãe cedeu finalmente às súplicas de uma amiga que durante uma quinzena telefonara de dia e de noite urgindo-nos a abandonar o Irão, ainda que temporariamente. Apanhámos um voo da Japan Airlines cinco dias antes de Saddam Hussein ter invadido o Irão, acção que mereceu o aplauso dos países ocidentais.

 

                           Maridos e amantes

O Irão entrou em guerra e fui para Hong Kong. Em Inglaterra, Maggie fabricava a sua "A Minha Geração", enquanto no Irão Saddam conseguia aquilo em que os molás tinham fracassado - unir todo o país atrás do ayatollah Khomeini.

Passei dois anos como uma estrangeira mais entre muitos, fazendo um belo trabalho no sentido de conseguir antagonizar o governo de Hong Kong. Talvez até bom de mais, uma vez que o gabinete do governador enviou um pedido ao proprietário do Hongkong Standard para que eu fosse substituída na missão de correspondente que faria a cobertura da histórica visita de Thatcher à China com a incumbência de vender ao desbarato uma das últimas colónias da Grã-Bretanha.

Demiti-me em grande estilo, saindo de rompante do gabinete para regressar alguns minutos mais tarde para ir buscar a minha mala de mão, e um gato vadio, de que me tinha esquecido. A tensão constante em que andava, tentando sobreviver tão longe da minha família e do lugar onde deixara as minhas raízes, qualquer que fosse o significado disto, começou a cobrar o seu preço; sentindo-me deprimida, ao que se aliava uma autodestruição mórbida, estava bem ciente de que teria de encontrar alguma coisa que me desse uma razão para continuar. Foi então que uma das minhas amigas recusou uma oferta para trabalhar no The Times como correspondente temporária em Teerão. Era a oportunidade de regressar às "minhas raízes".

Três anos a viver entre britânicos residentes no estrangeiro mostraram-me que fora de

Inglaterra eu não tinha nacionalidade, uma vez que não era considerada cidadã inglesa, e contudo era-me impossível reivindicar qualquer outra pátria de origem. A última gota de água transbordou durante uma daquelas ocasiões em Hong Kong em que se bebia desalmadamente até às primeiras horas da manhã, quando a aurora começava a surgir sobre o Porto Fragrante; um recém-chegado ao meu círculo de amigos mais íntimos perguntou-me de onde é que eu era exactamente. Para minha grande surpresa, nenhum dos meus amigos de peito foi capaz de lhe responder.

- É evidente que nasceu na Venezuela - adiantou um rapaz com que eu tinha saído durante vários meses.

Não sejas idiota, na América do Sul não há judeus - acrescentou o marido da minha melhor amiga.

Senti-me absolutamente à deriva. A nova ameaça que as hordas invasoras do Iraque representavam só serviu para acentuar ainda mais o meu recém-encontrado patriotismo iraniano.

Estávamos em 1984 e o estado policial, ou melhor dizendo, o estado dos molás, estava firmemente implantado. A lei Shariah imperava acima de tudo, não permitindo que se visse uma só madeixa de cabelos femininos pelas ruas da República de Deus. O véu e o estado islâmico haviam chegado para ficar, a despeito da sabedoria dos homens de idade que nas caves obscuras de Paris conspiravam para o derrubar. Os ministros depostos, juntamente com outros restos do antigo regime, reuniam-se em residências de Teerão ouvindo as várias estações de rádio que pregavam a resistência, incutindo esperanças de um regresso aos bons velhos tempos. Pouco depois as autoridades começaram a tornar estas transmissões ininteligíveis, nas quais se incluíam a Voz da América, o Serviço Mundial da BBC e a Rádio Livre do Irão, mas os esperançados continuavam à escuta, tentando decifrar as palavras por entre os ruídos e os estalidos das interferências.

Nasser Khan ligava religiosamente o seu antiquíssimo rádio para ouvir as últimas declarações dos vários "governos no exílio". O príncipe herdeiro, ou o meio-Palevi, como era conhecido por causa da moeda de ouro de tamanho ínfimo com essa mesma designação, e também Bani-Sadr, Shahpour Bakhtiar e a chefia mujahiddin, todos eles prometiam libertar o povo dentro de poucos dias. Quem os ouvia fazia frequentemente as suas próprias interpretações das palavras que mal se conseguiam entender. Continuavam a considerar os anos passados sob o domínio dos ayatollahs como um mero acaso fortuito na ordem natural das coisas. Os homens de idade reuniam-se para ouvirem a interferência dos barulhos e estalidos que substituíam as transmissões da Voz da América e que eram obra dos seus novos senhores.

- O que é que ele disse? - perguntaria um antigo ministro a um funcionário público deposto que ocupara um cargo importante.

- Eca o xá, estou pronto a jurar que era ele. Alá seja louvado, isto quer dizer que ele continua vivo - gritaria entusiasticamente um dos que sofria de um optimismo mortal.

- Pensei que era o novo xá. Disse-nos para estarmos preparados para um cerco a Teerão que terá a duração de três semanas, quando o seu exército chegar - faria coro um terceiro conspirador.

- Quanto tempo é que ainda falta para ele chegar? - perguntava um outro.

- Seis meses. Estes. desaparecerão dentro de seis meses. - Era uma resposta unâmime.

Caso hoje em dia se entre em qualquer casa localizada na zona norte de Teerão, existem boas hipóteses de se ouvir dizer "É uma questão de apenas mais seis meses". A única diferença é que essas casas outrora magnificentes se encontram presentemente ocupadas pelos "filhos da revolução", os novos-ricos e os poderosos que orquestraram a revolução, muitos dos quais adquiriram um gosto excessivo pela boa vida.

Em 1984 muitos dos iraquianos que não abandonaram o país, sempre na esperança de que os molás não conseguiriam sobreviver por muito tempo, viram-se encurralados por um regime que não lhes permitia continuar a fazer parte da sociedade, mas que por outro lado também não lhes concedia autorização para deixarem o país. Os pedidos de passaporte foram recusados a muitos milhares de antigos membros da administração pública, assim como a membros da família real. Para estas pessoas, a única esperança que lhes restava era a CIA ou os britânicos, que "decidiriam voltar a mudar as coisas". Dezasseis anos mais tarde, essa gente continua a aguardar que esses seis meses terminem - esta é a verdadeira tragédia de uma nação que não tem lugar para os seus gestores, para os seus técnicos especializados, para a sua gente academicamente educada.

No entanto, nesses tempos nem tudo era mau. Continuavam a existir ilhotas de muito entretenimento, como por exemplo o que era popularmente conhecido pelo nome de "Espectáculo Gilly". O ayatollah Gillani era um erudito islâmico de grande proeminência, tendo- lhe sido atribuído um programa na televisão no horário nobre, no qual pontificava sobre temas religiosos e conduta pessoal. Uma das suas obras-primas era um exemplo que demonstrava em que circunstâncias é que as crianças eram hulal (respeitadoras da lei) e o oposto, harum (desrespeitadoras da lei).

"Imaginem", costumava ele dizer aos seus espectadores masculinos, "que está uma noite quente e que estais a dormir na açoteia da vossa casa. Mais abaixo, a vossa tia dorme no jardim junto da casa. Nessa noite há um tremor de terra que vos faz cair do telhado em cima da vossa tia", continuava ele dirigindo-se sempre aos membros do sexo masculino do seu país. "Que Deus não o permita, mas a vossa tia engravida; essa criança seria halal? ". À imagem de alguém a cair de um telhado no meio de um terramoto, continuando a ter capaci dade para manter relações sexuais, era motivo de grande galhofa.

Todos nos recordamos da pergunta, mas são poucos os que não se esqueceram da resposta. Foi um dia triste quando o poder supremo compreendeu por fim o motivo por que Gilly era tão popular, decidindo então tirá-lo do ar. Bastantes anos mais tarde, Mohammed Hashemi, o director das emissões radiofónicas e televisivas da República do Irão, irmão do presidente Rafsanjani, contou-me como tentara evitar que Gilly fosse tão explícito nos seus programas.

- Recebemos tantas reclamações de pais que se sentiam chocados pela forma explícita de natureza sexual dos exemplos apresentados pelo ayatollah que decidi pedir-lhe que fosse mais moderado. Mas ele riu-se na minha cara, alegando que aquelas eram "as palavras de Deus", podendo ser encontradas no Corão, pelo que não havia a mínima necessidade de constrangimentos.

- Fosse como fosse, eu tinha de impedir que aquilo continuasse, dizendo-lhe que sendo assim teríamos de contratar actores e actrizes que exemplificassem os exemplos ao vivo, para que as pessoas compreendessem cabalmente o que ele queria dizer. Encolerizado, respondeu-me que isso seria repugnante, mas fiz-lhe notar que a minha sugestão se cingia à palavra de Deus, que poderia ser encontrada no Corão. Ele riu-se, replicando-me que compreendia o meu ponto de vista e que de futuro passaria a ser mais comedido. Mas pouco depois voltou a ser igual a si mesmo, o que nos obrigou a parar com o programa - concluiu o senhor Hashemi.

Uma outra fonte de entretenimento eram os inúmeros rumores sobre a forma como as pessoas tinham tentado pôr fora do país parte das suas fortunas. Para variar, as partes íntimas das mulheres passaram a ter outra utilização para além de servirem para satisfazer a luxúria dos seus homens. Mas passado pouco tempo as autoridades descobriram essa artimanha, e as mulheres passaram a ser revistadas no aeroporto, tendo de se despir completamente; essa missão cabia às Irmãs de Zahra, que se serviam do mesmo par de luvas para examinarem todos os orificios e dobras.

De um engenho ímpar, a nação iraniana aplicou todas as suas energias com a finalidade de levar a melhor e ludibriar as autoridades, mas estas, por seu turno, encontravam constantemente maneiras de lhes gorar os intuitos. A maior perita neste tipo de maquinação era uma senhora de sociedade que não estava disposta a fugir para os Estados Unidos sem levar as suas jóias. Com este propósito, pediu a um amigo que utilizasse um pé-de-cabra até conseguir fracturar-lhe o osso da perna. Em seguida, marcou passagem num voo com destino a Paris e na manhã que devia partir telefonou às autoridades alfandegárias informando que sabia de uma mulher que estava prestes a abandonar o país levando consigo jóias no valor de milhões de dólares que escondera no gesso da perna esquerda. Foi detida no aeroporto de Mehrabad, onde lhe cortaram o gesso, em cujo interior estava de facto uma perna fracturada.

Depois de muitos pedidos de desculpa, reservaram-lhe passagem no voo seguinte e deram-lhe uma escolta que a levou ao médico, que voltou a colocar-lhe a perna em gesso. Foram poucas as pessoas que repararam que o gesso era ligeiramente mais volumoso quando ela entrou a bordo do seu voo no dia seguinte, com a sua fortuna escondida e a salvo dentro do novo gesso.

Entretanto, o Estado islâmico havia graciosamente congelado a minha quota-parte da fortuna de família até que os tribunais descobrissem qualquer crime que lhes permitisse indiciar- me, ao abrigo do qual poderiam expropriar-me de todos os meus bens. Todas as provas indicavam que a Fundação para os Oprimidos, a organização que detinha poderes para se apropriar de terras e demais bens, não tinha a mínima intenção de os distribuir pelos oprimidos. Ser um dos "novos pobres" começara a perder o seu encanto, e eu já estava farta de tentar ganhar a minha vida através da escrita, enquanto existiam milhões em propriedades e rendas no Irão que não me beneficiavam em nada.

A minha mãe não se atrevera a dar-me autorização para regressar sozinha, mas a tia Omol, a sua meia-irmã, persuadiu-a a tentar recuperar algumas das propriedades que perdemos durante o processo revolucionário.

A minha mãe não é pessoa que se deixe intimidar, tal como nunca se furtou a qualquer confronto; no entanto, a minha participação em manifestações aquando da nossa última visita, além do incidente em que tentei participar numa sessão de socos em frente da Embaixada do lrão em Londres, convenceram-na de que não podia confiar em mim. Nessa altura, concluiu que deveríamos aproveitar para ver se conseguiríamos recuperar alguns dos nossos bens. Foi cheia de grandes esperanças que fui com a minha mãe e a minha tia Omol até à jóia da minha colecção, um bloco de escritórios no coração de Teerão. Quando o meu pai comprou o edificio de parceria comigo, tornei-me numa das adolescentes mais ricas de Teerão. Quando a Marinha Real iraniana arrendou os escritórios, convenci-me de que teria um inquilino de confiança para o resto da vida.

A nossa chegada ao edifício provocou grande agitação. Supostamente, os opressores não deveriam regressar para exigirem o dinheiro que lhes era devido. Fomos pressurosamente conduzidas ao gabinete de um "perito", o qual nos explicou que as rendas em débito, assim como o direito de propriedade do edifício, eram objecto de análise por parte do tribunal islâmico. Não havia nada que a Marinha pudesse fazer. Mas como éramos obviamente "mulheres honestas e necessitadas", talvez conseguisse que o tribunal pendesse a nosso favor. E dado que éramos umas pessoas tão boas e honestas, tinha a certeza de que gostariamos de dar um donativo em prol de uma causa muito querida ao seu coração - cem mil libras para a abertura de um poço numa aldeia remota. Uma vez que não nos podíamos dar ao luxo de um donativo no valor de cem mil libras, saímos prometendo que voltaríamos a ficar em contacto. Ele deve ter tido a percepção de que sua conduta era imprópria, dado que correu atrás de nós quando estávamos prestes a abandonar o edificio.

- Quase me esquecia de vos pedir uma coisa. É neste edificio que se realizam as orações distritais à hora do almoço. Todos os dias há mais de quinhentos muçulmanos que fazem as suas orações aqui, e necessitamos da aprovação do proprietário, caso contrário as nossas orações serão nulas. Por favor, podemos contar com a vossa bênção? - O homem acabara de me pedir um suborno para me ajudar a recuperar o que me pertencia por direito, e agora queria a minha bênção que evitaria que ele fosse parar ao inferno. Jovens muçulmanos haviam morrido aos milhões para que aquele homem, e outros da sua igualha, enchessem os bolsos.

Fiquei sem palavras. Limitei-me a virar costas e dirigi-me para a saída do edifício. Entretanto, no exterior juntara-se um grupo de homens depois de se ter espalhado a notícia de que eu regressara, e os inquilinos das lojas do piso térreo já se tinham reunido para apresen tarem as suas exigências injustas. O chefe era um merceeiro que arrendara o estabelecimento mais espaçoso, e fitava-me com o seu único olho, com uma expressão acusadora, dizendo-me que eu era filha de um ladrão, além de ser uma desertora. Como seria de esperar, não mencionou que arrendara a loja depois de celebrar um contrato de arrendamento muito astuto com o meu avô paterno, o qual se apoderara indevidamente da propriedade na nossa ausência para auferir de uns dinheiros suplementares que a minha tia perderia ao jogo. Chamei a atenção do merceeiro para o facto de que o ladrão era ele por se ter mudado para a nossa propriedade.

Devemos ter formado um par bastante estranho, os dois de pé no meio da rua brandindo punhos cerrados um ao outro enquanto os partidários de cada um nos mantinham afastados. Eu gritava tentando morder as mãos que me continham. Deixara todas as minhas finuras linguísticas em Oxford; portava-me como uma arruaceira, um soldado que lutava pela verdade, uma defensora da honra da minha família. Exigi a presença do Komiteh local para que pudéssemos apurar quem é que era o verdadeiro "ladrão e desertor".

Aquela troca de palavras foi revigorante, senti a adrenalina a fluir como nunca, eu fazia parte do mundo, era parte da vida, parte da História. A minha tia deu instruções ao nosso motorista para me ir buscar, apesar da proibição de contactos físicos entre membros de sexo oposto. Quando nos afastámos, o motorista disse-nos que lhe tinham oferecido um suborno elevado para que dissesse ao merceeiro onde é que eu vivia.

No dia seguinte alguém introduziu uma carta por baixo da porta da casa do meu avô, ameaçando-nos de que seríamos todos aniquilados caso não deixássemos as coisas como estavam. O meu avô veio ter comigo e pediu-me para não interferir. Era a primeira vez que o via desde que os meus pais se tinham separado em 1976. Admitiu ter vendido algumas propriedades e prometeu entregar parte dos lucros que a irmã do meu pai não tivesse perdido nos casinos, caso eu prometesse que não o incriminaria. De qualquer modo, eu não tinha intenção de o fazer, mas queria recuperar o que pertencera à minha mãe e família.

O tribunal islâmico encontrava-se sediado nas instalações da Penitenciária Ghasr, convenientemente oculto por detrás de uma alameda circundada por casernas do exército. Para se entrar era necessário atravessar uma zona militar onde ainda imperava o receio de que a qualquer momento os soldados fossem forçados a combater as tropas iraquianas nas ruas de Teerão.

Apresentei-me aos portões daquele complexo militar envergando o elegante e pequeno traje negro "tudo num só" estilo saca, tão popular naquele ano entre as revolucionárias islâmicas que seguiam os ditames da moda. Tinha um orifício para a cabeça e dois para as mãos; aquela vestimenta sem graça nenhuma fazia-me sentir parte das Irmãs de Zahra.

Sentia-me confiante: o tribunal islâmico certamente ficaria encantado comigo, ao ponto de me devolverem as chaves dos meus bens imobiliários, juntamente com um pedido de profusas desculpas, pois que uma coisinha tão doce e inocente como eu nunca poderia ser uma descrente em Deus. Não obstante, era muito possível depararem-se com um pequeno problema para me darem a conhecer esses sentimentos, devido às minhas insuficiências de expressão na língua farsi, pelo que tomei a precaução de levar como intérprete o meu primo Hamzeh, filho da minha tia Omol.

Havia placas de cartão que encaminhavam os que iam apresentar as suas súplicas, indicando-lhes um caminho estreito ao fundo do qual se viam duas espécies de barracas, e um número excessivo de rapazes armados em uniformes de combate. Havia cercas que separavam os homens das mulheres, canalizando os visitantes para portões ocultos por detrás de sacas de areia, protegidos por arame farpado e jovens de camuflados, armados até aos dentes, quais bandidos mexicanos. Preocupada com o que deveria dizer quando chegasse junto dos portões, dirigi-me para a fila dos homens com o intuito de me aconselhar com Hamzeh, o que me valeu a ponta do cano de uma metralhadora espetado contra o meu estômago.

- Retroceda! - ordenou-me um soldado. - Os homens e as mulheres têm de se manter separados. - Pensei que aquilo era uma brincadeira, mas quando começou a empurrar-me, apercebi-me de que falavam a sério quanto àquele assunto do islamismo. Um outro grupo começara a formar-se à nossa volta, composto por mães, pais, cônjuges, irmãos, irmãs e amigos daqueles a cujas portas alguém batera à meia- noite. Uma rapariga chorava enquanto um homem de idade dava explicações a um dos guardas.

- O marido da minha filha foi levado há três meses. Os militares foram buscá-lo a casa durante a noite, sem nos dizerem para onde o levavam, ou aquilo de que era acusado. Desde então que temos tentado saber do seu paradeiro. O nosso Komiteh mandou-nos ir à Penitenciária de Evin, mas disseram-nos que ele não estava lá e aconselharam-nos a virmos aqui. Em seguida, o senhor Alahi mandou-nos a uma prisão perto de Damavand. Já fomos dez vezes a todas as prisões, mas ninguém sabe para onde é que ele foi levado. Por favor por favor, vejam na vossa prisão, ou deixem-nos procurá-lo. Por amor de Alá, o rapaz só tinha vinte anos e estava casado há menos de um mês. Nunca tivemos nada a ver com questões políticas. somos pessoas pacíficas, gente vulgar - dizia ele num pranto convulsivo.

Entre aquela multidão existem pelo menos trinta histórias similares.

Depois de ter transposto os portões, fui levada apressadamente para uma barraca onde uma mulher velha, que parecia ter saído directamente de uma representação de Macbeth, me revistou. Apoderou-se da minha mala de mão e carimbou um pequeno pedaço de papel.

- Não perca isto, senão não volta a sair daqui - disse ela. Duas revistas corporais e cinco barreiras mais tarde, dei finalmente comigo à entrada do tribunal 29, a secção política.

- Nome! - rosnou um homem quando entrámos timidamente no tribunal 29, numa sala que parecia uma caixa e onde dois defensores da fé se apertavam por detrás da mesa que partilhavam.

- Esta é Perichehre Mosteshar - replicou Hamzeh -, o processo dela encontra-se em vosso poder.

- Ela não sabe falar? - rosnou o mais baixote sem levantar o olhar de uns papéis que tinha defronte de si.

O meufarsi não ser grande fluente - atrevi-me a dizer

- Nacionalidade? - avançou o homem.

- Iraniana, como é evidente - tartamudeei.

- Sendo assim, por que é que não sabe falar a sua própria língua? - questionou o homem, indicando a Hamzeh que saísse da sala.

Apeteceu-me perguntar por que carga de água é que podia ficar sozinha com homens naquele lugar quando não me tinha sido permitido estar na fila com o meu primo. Todavia, o ataque de ansiedade que se apoderara de mim coibiu-me de proferir uma só palavra.

Era óbvio que o homem que dispensara a presença de Hamzeh era o chefe. Do alto do seu metro e trinta, apresentava uma parecença assombrosa com Baldrick', o criado de Blackadder.

 

t Referência a uma personagem da série televisiva inglesa de grande popularidade interpretada pelo actor Rowan Atkinson, também conhecido pela famosa série Mr. Bean. (N. da T.)

 

- Sou o magistrado-inquiridor Babai - apresentou-se, fechando a pasta de cartolina que tinha à sua frente e entregando-a ao homem alto e mais novo, mas nem por isso muito asseado, que se encontrava ao seu lado.

- Para Evin - instruiu o lacaio antes de voltar a concentrar a sua atenção na minha pessoa.

- Por que razão é que não sabe falar a sua língua? - perguntou-me Babai com uma entoação na qual se intuía que essa lacuna seria o suficiente para que eu fosse condenada à danação eterna numa cela em Evin.

- Vivo em Inglaterra desde os meus dois anos - respondi no que pretendia passar por ser farsi. Eu falava fluentemente persa clássico e arábico depois de três anos de estudo destas línguas na Universidade de Manchester. Continuava a recordar-me vagamente de como traduzir passagens do Corão, mas o meufarsi corrente era falado com um acentuado sotaque britânico, num discurso em que as frases tinham tendência a ser uma tradução directa da língua inglesa, pelo que aos ouvidos do meu inquiridor deveria soar a uma espécie de patoá.

- Dois anos e esqueceu-se da sua língua materna! - exclamou o outro homem, que desempenhava o papel do "polícia bonzinho".

- Nunca aprendi a falá-la - repliquei. - Só estive aqui dois anos. Sabem muito bem que existem muitos iranianos que estiveram ausentes do país durante um curto espaço de tempo e que acrescentaram logo muitas palavras estrangeiras ao seu vocabulário. Acho que me saí muito bem por ter aprendido tanto dessa língua - aleguei em minha defesa.

Precisámos de meia hora para que ficasse bem esclarecido que saí do Irão quando tinha dois anos de idade, e não há dois anos. Os inquiridores já suavam profusamente devido ao esforço que precisavam de fazer para compreenderem a maneira singular como me expressava na sua língua.

- Por que motivo é que viveu em Inglaterra em vez de ter regressado ao seu país natal? - perguntou Babai numa voz que mais parecia um rosnar.

- Fiz o que os meus pais me mandaram - respondi.

- O que é que fez para dar apoio à revolução? - prosseguiu Babai.

- Nada. Nunca me envolvi em política; limitei- me a prosseguir os meus estudos universitários, o que me permitiria vir a ser uma pessoa que pudesse servir melhor a minha pátria - respondi, representando o papel da patriota.

- Quando é que viu o seu pai pela última vez? - interveio o polícia bonzinho enquanto Babai abria um volumoso processo com o meu nome, que entretanto lhe fora entregue por um dos seus lacaios. Não me pareceu que viesse a ser beneficiada se acrescentasse que isto servira de argumento a um filme famoso, assim como inspirara muitos desenhos animados.

- Não vejo o meu pai desde os três anos que antecederam a revolução - respondi por fim à beira das lágrimas. Eu nunca tinha estado em contacto com pessoas daquele jaez. Não compreendia quem eram nem o que esperavam, e contudo a minha vida poderia depender daquilo que lhes dissesse. Para mim, as classes trabalhadoras do Irão constituíam um mistério absoluto, mais ainda do que as classes devotas. À luz da perspectiva da compreensão que tínhamos uns dos outros, poderíamos muito bem ter vindo de planetas diferentes.

Os dois homens exibiam uma barba curta que se tornara obrigatória caso se pretendesse provar que se era um bom muçulmano; ao que tudo indicava, o Islão proíbe os homens de terem as faces escanhoadas. Como bons membros do Hezbollah, ambos usavam a fralda da camisa por fora das calças, o que se destinava a proteger-me, impedindo-me de ver a protu berância das suas partes íntimas, que poderiam excitar-me sexualmente. Os bons muçulmanos também usavam mangas compridas para ocultarem a carne aos olhos das mulheres lascivas, sendo-lhes igualmente interdito o uso desse símbolo da opressão ocidental: a gravata. Mas nunca consegui deslindar por que motivo insistem em calçar os sapatos calcando o cal canhar sobre a sola, o que lhes dá a aparência de chinelos. Mas, no seu todo, os dois tinham um aspecto insidioso e sinistro que me levava a não desejar estar a sós com eles na mesma sala.

Babai fez-me outra pergunta. Percebi que queria saber em que data é que me tinha acontecido qualquer coisa, embora não fizesse a mais pequena ideia daquilo a que se referia: aquela palavra era-me desconhecida.

- Peço desculpa, mas não entendo essa palavra - disse, sentindo-me como uma perfeita idiota.

- Quando é que nasceu? - explicou o polícia bonzinho.

- A 14 de Dezembro de 1956 - respondi, toda satisfeita por poder dar finalmente uma resposta clara.

Não, não! - gritou Babai. - A data islâmica, queremos a data islâmica!

- Diga-nos a data iraniana que nós faremos a conversão - ofereceu- se o polícia bonzinho.

Eu não fazia a mínima ideia. Nunca tive necessidade de usar qualquer outro calendário, além de que não estava certa da data de acordo com o calendário iraniano, quanto mais o islâmico. Posteriormente, vim a descobrir que nasci no dia 21 de Azar no ano iraniano de 1335.

- Você é mojarad ou motahel? - continuou Babai.

Desculpe? - perguntei a medo.

- Dai-me forças! - desabafou Babai secando o suor da testa. O homem estava a ficar deveras irritado ao fim de mais de noventa minutos de luta com o meu persa imperfeito.

- Tem marido? - gritou-me.

- Não - repliquei.

- Você tem vinte e sete anos. por que é que ainda não se casou? - atalhou o polícia bonzinho num timbre de voz que dizia: "talvez que eu tenha uma proposta a fazer-lhe".

- Calculo que é uma questão de sorte - saiu- me pela boca fora antes de ter reflectido na resposta a dar. Grande erro, grandessíssimo erro. Agora encontrava-me em presença de dois polícias mauzinhos.

- Você está-nos a mentir - rosnou o polícia ex-bonzinho.

- Pare de dizer aldrabices ou ficará metida num grande sarilho! - acrescentou Babai.

- Fale-me dos negócios do seu pai. Para quem é que ele trabalhava? - perguntou Babai mal- humorado.

- Por conta própria. para dizer a verdade, não sei bem.

- A soldo de quem é que ele espiava? Era só para a CIA ou havia outros? Quem eram os seus contactos no Irão? - vociferou Babai, que parecia querer fulminar-me. Eu já estava lavada em lágrimas, e bem no meu íntimo sentia-me furiosa comigo própria por mostrar tanta fraqueza.

- Você mente muito mal - continuou Babai enquanto me indicava que deveria aguardar fora da sala. provavelmente por alguém que trouxesse os grilhões.

Enquanto esperávamos sentados num banco no corredor, que naquele momento já estava deserto, Hamzeh tentava matar o tempo contando-me aspectos divertidos sobre as pessoas que entretanto saíram das outras salas e vieram para o corredor com números nas costas. Ouvira dizer que Ghasr estava sobrelotada, pelo que as autoridades esperavam a chegada de uma camioneta de Evin para transportar os prisioneiros. Foi então que ele me pôs algum dinheiro na mão.

- Esconde isto. pode ser que mais tarde venhas a precisar - disse-me num murmúrio, ao mesmo tempo que o meu coração tentava escapar- se-me do peito.

Quando o chamamento à oração começou a soar no corredor vazio, Babai meteu a cabeça por uma fresta da porta.

- Já pode ir-se embora. Volte cá à hora de abertura do próximo sábado, e traga alguém que conheça os factos do caso do seu pai. E não volte a usar esse traje, a menos que desejejuntar-se aos mujahiddin no cemitério!

No sábado, logo de manhã, já eu estava do lado de fora dos tribunais acompanhada da minha mãe e Hamzeh; eram sete e trinta. Duas horas mais tarde chegámos por fim à porta de Babai, onde aguardámos durante mais noventa minutos. A minha mãe e eu acabámos por ser chamadas, enquanto Hamzeh voltou a ficar no corredor.

- Você não deve mentir-me - advertiu-me Babai. - Devia, isso sim, sentir- se demasiado assustada para me mentir. Tenho as vossas vidas na palma da minha mão, para não mencionar que já sei muitas das coisas que tenciono perguntar-vos.

Tentei mostrar-me demasiado esperta para o meu próprio bem. Esforçava-me por falar na língua deles, a língua dos islamitas, mas as palavras saíam-me atabalhoadamente. O que eu lhe quis dizer foi que não lhe mentiria porque era temente a Deus, e não por ter medo dele.

- Não tenho medo de si - disse, tendo dificuldade com as palavras que devia usar para me fazer entender. Recomecei: - Não é você que me faz recear mentir - continuei.

- Não tenho medo de lhe mentir - persisti perante os olhares desconcertados dos meus atormentadores. - Não sinto receio de si. - mas antes de ter tido tempo para terminar a minha tirada, Hamzeh abriu a porta. Tinha os nossos passaportes numa das mãos.

- O que é que devo fazer com isto? - perguntou ele com os passaportes mesmo à frente do nariz de Babai.

- Entregue-mos e ponha-se a andar - ripostou Babai tirando-lhe os documentos da mão e guardando-os dentro de uma gaveta que fechou à chave. - E agora, já está com medo? - perguntou-me com um sorriso de escárnio.

Nessa noite estive outra vez com Babai, que me acenava com o meu passaporte defronte do meu rosto. Mas pelo menos tinha um aspecto bastante mais alinhado de gravata e fiaque negros. Em seguida vi-me no cume de uma montanha com a minha mãe, a qual estava a ser amarrada ao ventre de uma cabra particularmente biliosa. Eu estava vestida como se fosse uma ovelha, e caminhávamos com dificuldade pelo cimo das montanhas em direcção ao Paquistão, onde a minha irmã nos esperava com passaportes britânicos. Sentia-me envolta numa aura de alegria quando nos sentámos num avião com destino ao aeroporto de Heathrow. Finalmente começámos a aterrar; a liberdade estava à vista. Mas quando aterrámos avistei na pista de aterragem alguns guardas com uniformes verdes.

- Senhoras e senhores, fala-vos o vosso comandante. As autoridades de Heathrow pediram-me que vos informasse que enquanto estivemos no ar houve uma revolução islâmica no Reino Unido, pelo que devem observar os regulamentos islâmicos de vestuário quando desembarcarem.

Foi neste ponto que despertei aos gritos do meu sonho.

Durante os dois meses seguintes tive o prazer da companhia de Babai numa média de duas vezes por semana. No entanto, fiquei surpreendida quando ele me telefonou inesperadamente para me dizer que queria voltar a falar com a minha mãe.

Na manhã seguinte lá fomos outra vez acompanhadas de Hamzeh, mas desta feita só a minha mãe é que foi autorizada a entrar para lá dos portões que a levariam àquela espécie de abismo de terror. A minha mãe entrou às oito horas e por volta do meio-dia, quando fui chamada à guarita do guarda, continuava a não haver vestígios dela. O soldado disse-me que tinha um telefonema.

- Não fiques preocupada, minha querida, mas é possível que eles me retenham aqui. Não disponho de muito tempo, por isso passa o telefone ao teu primo - disse a minha mãe.

Senti o corpo completamente hirto; aquilo não era verdade, não podia estar a acontecer: Quando dei por mim, estava agarrada às grades que me separavam de minha mãe.

- Sacanas! Grandes sacanas! Não podem reter a minha mãe! Vou matar-vos a todos! - gritei, enquanto Hamzeh tentava persuadir-me a conter-me sem me tocar.

- Temos de ir para casa. Faltam apenas quarenta minutos até que ela seja levada para uma das celas; não podemos contactar com a tua mãe - disse-me Hamzeh. Acabei por soltar as grades.

Já no automóvel, a caminho de uma casa situada quase no outro lado da cidade, o meu primo explicou-me que o meu pai tinha escrito ao tribunal acusando a minha mãe de contrabandear jóias e dinheiro para fora do Irão depois da revolução. O meu avô, que tentava voltar a recuperar uma propriedade que queria pôr em seu nome, entregara essa carta ao tribunal. Babai admitira com toda a franqueza que o meu avô não lhe merecia confiança, teria concordado em libertar a minha mãe se pudéssemos pagar uma fiança no valor de quinhentas mil libras. Precisámos de uns bons vinte minutos para chegarmos a casa de Bahar. O nosso tio, Dada Jan, chegou com todo o dinheiro que conseguiu arranjar, assim como escrituras de algumas casas, e lá foi apressadamente para Ghasr com Hamzeh.

Tudo o que me ocorria fazer era procurar o meu avô. Eu sabia que ele continuava a ocupar uma sala num outro bloco de escritórios que também me pertencera, e que ele tinha arrendado a terceiros. Não sei como é que cheguei até lá, mas recordo-me bem de me ter sentido revoltada ao ver o estado do edifício enquanto subia as escadas para o escritório no quarto andar. No exterior do que em tempos haviam sido apartamentos para os ricos e poderosos os oprimidos tinham depositado pilhas de sapatos baratos todos empoeirados. Descalçar sapatos à porta de casa era um aspecto que mais dividia as classes sociais do Irão. As classes vindas de estratos superiores não se descalçavam, enquanto os seus serviçais andavam em casa com meias calçadas.

Houve uma secretária embasbacada que me disse que não via o meu avô há vários dias. Deixei-lhe uma mensagem.

- Diga a esse gatuno que se a minha mãe passar um só segundo que seja dentro de uma cela, as minhas irmãs, irmãos e todas as nossas famílias não terão descanso até o dizimarmos e aos filhos, eliminando-os da face da Terra.

Quando cheguei a casa, a minha mãe já tinha sido posta em liberdade.

Nessa noite o meu avô apresentou-se à porta de casa de Bahar, jurando a pés juntos que o que fizera fora apenas com o fito de salvaguardar a minha fortuna. Disse-me que tinha poupado algum dinheiro, aproximadamente um milhão de libras, afirmando que na manhã seguinte traria parte desse dinheiro. Nessa mesma noite afogou-se na banheira em sua casa.

É verdade o que se costuma dizer sobre o tipo de relacionamento que se desenvolve entre os reféns e os seus captores. Com o passar dos meses comecei a sentir-me muito chegada a Babai. Sob certos aspectos, era um homem muito inocente, tendo visto muito pouco do mundo na época anterior à revolução. Confiou-me que fora arrancado a uma vida tranquila numa aldeia remota a fim de ocupar o cargo de inquiridor. Fora escolhido para desempenhar aquelas funções por ter estado encarcerado durante três anos sob o regime do xá, tendo sido acusado de ter distribuído cassetes que continham a gravação de uma mensagem do ayatollah Khomeini, que na altura vivia exilado em Paris. A família fora expulsa de sua casa, e o irmão, que também trabalhava para a causa de Khomeini, desaparecera. O cargo que agora ocupava era a sua recompensa por ter ido parar à prisão.

Babai sentia-se fascinado pelo Ocidente, querendo saber o mais ínfimo pormenor da vida do dia-a-dia. Albergava a esperança de um dia vir a ser nomeado para a embaixada iraniana de um país na Europa.

- Nas universidades, em Inglaterra, eles fazem palestras em persa e inglês? - perguntou-me. Senti-me chocada ao constatar que Babai não tinha a mais pequena noção das diferenças entre os países. Dava a impressão de pensar que o farsi era uma língua universal, com variações regionais, à semelhança do que acontecia em algumas áreas do Irão, em que as pessoas falavam farsi e turco.

Decorridos mais ou menos quatro meses do meu cativeiro, a situação voltou a sofrer alterações. Talvez o polícia bonzinho tivesse participado da atitude moderada que Babai mostrava para comigo, dado que quando fui para uma das minhas sessões era aguardada no tribunal de Babai por uma situação bastante pior. Avistei um rapaz que não teria mais de quinze anos, junto de uma parede e falando incoerentemente, pedindo que o ajudassem.

- Eu não sabia que a arma estava carregada, eu não quis matá-lo - alegava o garoto. Fora enviado para a frente, um dos soldados que faziam parte do exército de Khomeini composto por vinte milhões de militares. Enquanto efectuava uma patrulha de vigilância com outro jovem soldado, a pistola do rapaz disparara-se matando o amigo. O jovem estava desesperado; implorava e jurava em nome de Deus que estava inocente, afirmando que era vítima de calúnias.

- Foste tu que o mataste, querias vê-lo morto! Posso ajudar-te, mas primeiro tens de confessar. Caso não confesses, não posso salvar-te do pelotão de fuzilamento - dizia-lhe aquele que em tempos fora o polícia bonzinho.

O rapaz começou a gritar e a chorar, chamava pela mãe numa voz lamuriada.

- Leva-o lá para baixo - instruiu Babai depois de eu ter sido testemunha do mais macabro deste drama. Olhava para um garoto que possivelmente poderia estar morto dentro em pouco, o que fez com que me sentisse contaminada pelo inferno que se desenrolava à minha volta.

Depois de o rapaz ter saído da sala, Babai concentrou-se em mim.

- Agora vamos tratar do seu caso - disse ele agarrando no telefone e começando a ligar um número. - Liguem-me ao director de Evin - falou ele para o bocal do auscultador. - Boa tarde, fala do tribunal 29, secção política, em Ghasr. Fala Babai. - Ouviu o que lhe diziam do outro lado da linha, após o que continuou: - Vou enviar-vos uma pessoa. - Pôs-se de novo à escuta. - Estamos cheios! - berrou ele subitamente através do telefone.

- Não é suposto termos presos políticos sob custódia, são do vosso pelouro, por conseguinte é aí que devem estar. - Bateu estrondosamente com o auscultador sobre o descanso.

Eu estava prestes a ser enviada para a famigerada Penitenciária de Evin, onde os disparos das armas dos pelotões de fuzilamento continuavam a manter acordadas pela noite adentro e até às primeiras horas do amanhecer as pessoas que viviam nas proximidades. Senti-me incapaz de perguntar o que estava a passar-se. Entretanto, o polícia bonzinho regressou com uma pilha de papéis. Babai apoderou-se deles e arremessou-os em frente de mim.

- Assine ao fundo de todas as páginas - ordenou-me.

- O que é isto? - perguntei.

- Um registo de tudo o que nos disse - explicou Babai.

- Mas está escrito em persa. Não sou capaz de ler nesta língua - fiz notar.

- Se pretender sair daqui ainda hoje, só lhe resta a alternativa de assinar - informou-me Babai. Ocorreu-me à mente o telefonema que ele tinha acabado de fazer e apressei-me a assinar, mas em inglês, esperando que se aqueles documentos alguma vez fossem apresentados num tribunal, a qualquer altura eu poderia alegar que não conhecia o seu conteúdo.

Depois de ter assinado, permitiram-me que partisse. Nunca senti um sentimento de tanta alegria como quando passei pelos numerosos postos de controlo. Já me encontrava na última guarita, com a minha mala de mão que entretanto me fora devolvida, e começava a abrir a porta que me daria acesso à liberdade, quando o telefone começou a tocar.

- É para si - disse a mulher. Senti que o coração me caía aos pés. Tudo não tinha passado de um engano e convenci-me de que não tencionavam pôr-me em liberdade, enquanto aceitava o auscultador e o encostava ao lenço preto que me cobria a cabeça.

- Parichehre, da próxima vez use mais do que esse lenço de assoar que traz na cabeça - advertiu-me uma voz antes de desligar.

Não existia nada que aliviasse a tensão que estes inquéritos judiciais acarretavam. Em casa, Bahar sentia-se deprimida, mais frágil do que antes, incapaz de fazer fosse o que fosse. Na mesma proporção em que o ambiente em casa se ia assombrando cada vez mais, o meu estado de espírito era cada vez mais acabrunhado. Tudo o que eu desejava era poder afastar-me de todo aquele ambiente fúnebre, mas estávamos encurraladas por aquele sacana do Babai. Desconfio que o homem tinha a esperança de que ao reter-nos no país a mim e à minha mãe, forçaria o meu pai a regressar de algures no Ocidente onde se escondera. Babai, um indivíduo a quem eu nunca teria dado consentimento para entrar em minha casa através da porta da frente, exercia um poder absoluto sobre mim. Senti- me surpreendida com a minha crescente arrogância, enquanto a estrutura de classes no Irão sofria uma inversão de cento e oitenta graus. Em tempos, afirmara-me como socialista, mas agora ia-me transformando numa pretensiosa.

O empolgamento que me fora proporcionado ao virar de cada esquina, onde deparava com uma luta acesa, tinha começado a dissipar-se. O sentimento de culpa por ter levado uma vida privilegiada começava a dar lugar a um sentimento de grande injustiça ao sabermos que todos os nossos bens se encontravam de posse de outrem. Imaginava um molá qualquer a dormir entre os lençóis que os meus pais me tinham comprado em Itália, visualizei os filhos dele a brincarem em cima das carpetes de seda que teriam feito parte do meu dote, sabendo de antemão que os dedos da sua mulher estariam adornados com as jóias de que havíamos sido espoliados quando a Guarda Islâmica tomou de assalto a nossa casa de Teerão.

Era impossível que a situação piorasse ainda mais, ou estaria eu enganada?

Começávamos a recuperar do choque provocado pelos nossos confrontos com Babai quando recebemos notícia de que Mina, a filha mais velha da tia Omol, fora levada da sua casa depois de uma rusga efectuada pelos pasdars. Na altura Mina estava sozinha em sua casa, apenas com os três filhos; a filha mais nova tinha apenas um ano de idade. Ordenaram-lhe que deixasse os filhos ao cuidado de uma vizinha, tendo-lhe sido prometido que dentro de duas horas estaria de retorno a casa. Passaram quatro meses até que teve oportunidade de voltar a ver os filhos; a exemplo do que acontecia com tanta gente durante esse período, Mina muito simplesmente desaparecera. Depois de muitos pedidos de retribuição de favores entre os membros do novo regime, a tia Omol, uma muçulmana devota e altamente respeitada pelas autoridades religiosas, ficou a saber que a filha se encontrava detida numa prisão próxima da casa de Bahar. Era suposto que fosse levada para Evin na noite em que os muja hiddin atacaram a penitenciária onde ela, juntamente com muitas outras prisioneiras políticas, haviam sido encarceradas.

Mina fora detida depois de o marido, que abandonara o lar do casal, ter sido preso sob a acusação de apoiar o primeiro-ministro Shahpour Bakhtiar, que ocupara esse cargo antes da revolução e na sequência da qual foi banido. A prisão para onde a tinham levado distava cerca de duzentos metros da residência de Bahar, e nessa noite mantivemo-nos agachadas no jardim da casa enquanto as balas faziam ricochete nas paredes.

Era uma sensação estranha. Em parte devia-se ao receio que sentíamos pela sorte dos prisioneiros caso a refrega pendesse a favor dos mujahiddin - aos pasdars não repugnava assassinar prisioneiros, o que preferiam fazer a libertá-los. Ao mesmo tempo, era empolgante encontrarmo- nos no meio de uma verdadeira batalha campal, ainda que a uma distância segura. Enquanto me mantinha de cócoras no alpendre das traseiras junto de Bahar, minha mãe e das duas garotas, os projécteis começaram a abalar o distrito, e balas perdidas acabavam por acertar no nosso jardim. A batalha recrudesceu pela noite adentro até ao alvorecer, enquanto Nasser Khan continuava a dormir placidamente. Nem sequer uma revolução tinha o poder de abalar a sua meticulosa rotina, a vida regimentada que cada vez mais estava a levar Bahar à loucura.

Mina foi a julgamento com outras duas mulheres mais ou menos quatro meses depois de ter sido levada para Evin. Os jornais noticiaram que as duas mulheres haviam sido executadas nessa manhã de horror, mas não recebemos qualquer notícia da minha prima. Às dez horas da manhã seguinte, a hora de eleição para as execuções, a tia Omol recebeu um telefonema em que lhe disseram que fosse buscar a filha. Ficámos com a certeza de que nos entregariam um cadáver, mas para grande alegria de minha tia encontrámos nos portões da cadeia uma Mina respirando vida, embora muito perturbada.

As torturas haviam sido bastante moderadas: Mina tinha alguém com dinheiro fora dos muros da prisão e tentava obter a sua liberdade; por conseguinte, tiveram mais cuidado com ela do que com a maioria das prisioneiras. Se bem que isso não tivesse obstado a que as autoridades prisionais a conduzissem para o pátio interior juntamente com as demais mulheres, todas as noites às três da madrugada; também não os impedira de a vendarem, nem tão-pouco evitara que a alinhassem com as outras, enquanto alvejavam as mulheres que a flanqueavam antes de a levarem de regresso à sua cela.

Homa serviu-se da desculpa de Bahar ter piorado de uma doença nos olhos para a afastar do marido e foi visitar-nos a Teerão. Ela era a confidente de maior confiança da sobrinha, dado que ambas viviam num verdadeiro inferno com maridos por quem não sentiam o mínimo afecto. Homa tinha apenas treze anos quando a casaram com o Gordo, um descendente do profeta Maomé (AS), com a única e exclusiva finalidade de forjar uma aliança a uma família extensa e influente na região meridional - o que serviu para alargar a esfera de influência da sua própria família. Homa era uma mulher de grande formosura e de uma inteligência extraordinária, assim como uma alma de poeta; por seu lado, os únicos objectivos de vida do marido cingiam-se a comer e a manter relações sexuais. Os mexericos não circulam no seio da nossa família com tanta rapidez quanto parecem circular por outros agregados familiares no Irão, o que não impediu que um determinado incidente me chegasse aos ouvidos: ainda casada de fresco, Homa regressou inesperadamente a sua casa onde deu com o noivo na cama com uma criada desdentada.

O insaciável apetite sexual do homem afastou vários amigos com filhas adolescentes, tendo causado à mulher toda uma vida de sofrimento e de embaraços. Em qualquer sociedade menos conservadora, e menos islâmica, possivelmente o Gordo poderia ter beneficiado de cuidados terapêuticos que o ajudassem a refrear os seus apetites por mulheres e álcool. Mas no seu mundo era frequente que as mulheres casassem sem amor, pelo que ninguém se surpreendia quando os homens procuravam satisfazer os seus prazeres onde podiam.

A minha prima Farah dissera-me numa ocasião que aquando de uma visita que Homa e o Gordo haviam feito a Teerão, alojando-se em casa dos seus pais, depois do almoço ele recolhia-se sempre para fazer a sesta, chamando pela mulher para que esta lhe fizesse companhia. Chamava com tanta insistência que acabava por fazer com que ela se sentisse cons trangida, obrigando-a a reunir-se-lhe na sala de estar onde manteria com ela relações sexuais no soalho e com a porta completamente aberta.

Eu detestava ter de me alojar em casa deles, dado que o Gordo tinha uma certa propensão para se exibir quando defecava, e só muito raramente é que se dava ao incómodo de fechar a porta da casa de banho. As suas estadias connosco também eram um autêntico pesadelo, uma vez que a maior parte do tempo estava semi-embriagado e urinava na banheira, dado que esta lhe proporcionava um alvo mais amplo; caso não houvesse banheira, isso significava que o chão ficaria com a sua quota-parte de urina. Homa passava a vida a limpar a porcaria que o marido fazia.

Nos bons velhos tempos do xá, este tipo de homens que sofriam de um excesso de apetites sexuais podiam satisfazer as suas necessidades noutros locais; contudo, o advento da revolução levou estes excessos dos maridos para o interior dos seus lares, e as mulheres, que há muitos anos eram deixadas em paz e sossego, passaram a ser chamadas para cumprirem os seus deveres conjugais.

Cinco anos depois da chegada dos molás, Homa sobrevivera à sua própria dança com a morte; metade das suas entranhas tiveram de ser removidas, o que teve como consequência uma infecção após três intervenções cirúrgicas em que lhe retiraram a maior parte do estômago. Recuperara e fora forçada a abandonar a cama onde convalescia para tentar libertar o Gordo da prisão. Nunca chegámos a descobrir o motivo por que foi detido, mas o certo é que Homa passou todos os dias, num período em que ainda se encontrava bastante doente, tentando mover as influências que o libertariam da cadeia.

Certo Inverno, numa altura em que a Maman Jan residia em Shiraz num apartamento no último andar da vivenda da minha tia, haviam já decorrido vários meses e Homa não obtivera quaisquer resultados nos seus esforços para conseguir a liberdade de um marido que não amava. A minha avó tinha ido visitar umas pessoas amigas enquanto Homa se dirigiu à prisão onde tentou falar com o director do estabelecimento penal. Aparentemente, fora injuriada, cuspiram-lhe em cima, e finalmente empurraram-na para uma dessas valas que escoam a água ao longo das bermas das ruas iranianas.

Constatando que a casa do casal que fora visitar não passaria numa inspecção mais cuidada às condições de higiene, Maman Jan decidiu regressar a sua casa a tempo de fazer as orações da tarde. Encontrou Homa dentro da banheira com os pulsos cortados e esvaída em sangue, às portas da morte. Era a sua terceira tentativa de suicídio, sendo a última em que os seus desejos seriam gorados.

Vários meses mais tarde, o Gordo foi libertado da penitenciária apesar de o seu caso não ter sido resolvido. Tal como já referi, nunca chegámos a descobrir a natureza dos crimes que lhe eram imputados, mas o que é inquestionável é que assombraram a família durante vários anos depois. Tendo atravessado o seu inferno pessoal ao longo dos últimos três ou quatro anos, Homa fazia planos para uma viagem aos Estados Unidos. Ficou combinado que a minha mãe e Maman Jan se lhe reuniriam em Los Angeles, onde viviam duas filhas de Homa, após o que acompanhariam a avó de regresso a Inglaterra, numa viagem que propi ciaria a Homa um período de descanso de que ela tão carenciada estava.

Entretanto, Bahar decidira ceder às sugestões do seu poeta, tendo finalmente decidido abandonar o Irão para se tornar sua mulher nos Estados Unidos. Chegou a Los Angeles plena de esperanças, convicta de que a revolução nunca lhe concederia espaço, nem às filhas, em solo iraniano. Por conseguinte, estava disposta a sofrer as consequências de um escândalo a fim de poder levar uma vida em liberdade.

Entretanto, Bahar combinara encontrar-se com Hassan dois dias depois da sua chegada. A família alojara-se em casa de Shirl, em Los Angeles, a filha muito bem casada de Homa, que também era amiga íntima do poeta. A minha mãe já tinha ouvido alguns mexericos sobre a relação de Bahar com o poeta, embora se recusasse a admitir esse relacionamento. Por seu lado, Maman Jan não aprovava o mínimo contacto entre o casal de apaixonados, uma vez que detestava o homem; portanto, foi no maior dos secretismos que Bahar conseguiu sair furtivamente de casa para o seu primeiro jantar com o homem que amava há dez anos.

Aquele amor entre os dois nascera quando ela ainda era jovem e solteira. Tinham conseguido manter a relação através de cartas e da poesia que ele escrevia, grande parte da qual tinha Bahar como tema ou era-lhe dedicada. Ele continuara a fazer-lhe a corte desde que chegara aos Estados Unidos, urgindo-a a abandonar o Irão para ir viver com ele e prometendo sustentá-la assim como às duas filhas. Nesta altura já Goldie tinha falecido, pelo que Bahar herdara uma pequena fortuna que lhe proporcionava independência económica. Entretanto, o poeta disse a Bahar que fora aconselhado "por um médico" a arranjar uma amante enquanto vivesse nos Estados Unidos, meramente por questões de saúde, com o que ela concordara. O amor que existia entre ambos era da mente e não carnal.

O poeta jura a pés juntos que a mulher que os acossou nessa primeira noite não era sua amante. De acordo com a sua versão dos acontecimentos que se verificaram nessa noite, ele conhecera aquela mulher iraniana "muito feia" quando ambos trabalhavam nas instalações da televisão do Irão, antes da revolução. Tinha-se tornado amigo dela e da sua família depois de terem fugido para Los Angeles, à semelhança do que fizera com inúmeros de outros exilados. Quando conseguiu o cargo na universidade, ela decidiu tirar o curso em que ele leccionava, passando ambos a manter uma relação exclusivamente de estudante e professor.

Contudo, ela começou a assediá-lo. Declarou-lhe o seu amor, apesar de ele a ter rejeitado. Foi então que se iniciou uma situação aterrorizadora, estilo "Instinto Fatal", durante a qual a mulher conseguiu introduzir-se no apartamento dele, esvaziando-o de tudo o que se encontrava no interior. A mulher encontrava-se presentemente de posse da sua agenda de endereços, não hesitando em assediar os seus amigos, família e, eventualmente, Bahar.

Na noite do grande encontro, ela fora em perseguição dos malfadados apaixonados até a um restaurante. No interior, a mulher pairava por perto enquanto o poeta sugeria a Bahar que fizessem uma viagem pelos Estados Unidos. Não nos devemos esquecer de que Bahar continuava a ser uma mulher casada, tendo sonhado com algo um pouco mais respeitável do que a pequena aventura que lhe estava a ser oferecida. Enquanto o casal se esforçava por chegar a um entendimento, Miss Maniaca foi avistada a sair sorrateiramente por detrás de umas plantas artificiais com um saco enorme e um estranho fulgor nos olhos.

O poeta jura que receou pela vida de Bahar, razão que o levou a conduzi-la pressurosamente para fora do restaurante, metendo-a dentro do seu automóvel e depositando-a à porta da casa de Shirl, com a sua admiradora à distância a invectivar os dois aos gritos.

Bahar partiu de Los Angeles sem ter voltado a ver o homem. Decidiu fazer uma visita a um tio, um médico exilado nos Estados Unidos, e após uma semana de exames médicos ele disse-lhe sem rodeios que ela já deveria ter morrido há muitos anos, acrescentando que a qualquer altura, num futuro mais próximo, ela iria desta para melhor.

Bahar regressou ao Irão com a intenção de pôr os seus assuntos em ordem. Enviou a filha mais nova para Paris, onde aprenderia francês, e fez sozinha uma viagem à Turquia para meditar na sua vida. Regressou da Turquia transformada numa mulher muito mais feliz e determinada a efectuar uma mudança na sua vida. Escreveu-nos dizendo-nos o quanto se tinha sentido bem à beira-mar nas costas turcas, relatando- nos como conseguira caminhar por várias horas e acrescentando que estava absolutamente convencida de que a sua única esperança de vida era mudar- se para o Mar Cáspio no Norte do Irão, onde a brisa marinha seria benéfica aos seus pulmões, e a beleza da paisagem serviria de inspiração para os seus quadros. Bahar preparava-se para abandonar a sua vida. Nos primeiros meses de 1991 telefonou para Oxford para falar com a minha mãe, pedindo-lhe que lhe prometesse que ajudaria a sua filha mais nova a ir para Inglaterra, onde a auxiliaria a entrar na universidade.

Bahar disse então que estava com uma pequena dor de cabeça e que se ia deitar. No dia seguinte levantou-se apenas para ser conduzida ao hospital. Uma semana mais tarde faleceu.

Homa também optara por ir para os Estados Unidos para escapar à sua vida amargurada, com o fim de passar a outros a responsabilidade que era a sua mãe, de molde a poder começar a pensar nas mudanças que desejava efectuar quanto ao seu futuro. Todavia, Maman Joon tinha ideias diversas; durante toda a noite não deixou que a sua filha mais nova se afastasse de si, e aquela mulher tão delicada e abnegada não foi capaz de negar à mãe o pedido que esta lhe fez de não deixar que a sua outra filha (a minha mãe) a levasse para a terra dos kafers (descrentes). E foi assim que mãe e filha regressaram ao Irão, para uma vida que, em última análise, acabaria por destruir a mais jovem, deixando a outra à deriva. Dado que tinha de cuidar da Maman Joon, Homa foi forçada a continuar a viver na sua casa em Shiraz, assim como com o marido que fazia parte do recheio. Deveria ter voltado para os Estados Unidos, onde teria levado uma existência confortável na companhia das filhas; contudo, a mãe recusara-se terminantemente a viver em solo que não fosse islâmico, suplicando à filha que não a abandonasse.

 

                     A geração seguinte

fedor da mone, deixado na esteira da revolução, juntamente com oito anos de guerra contra o Iraque, envolvia o quotidiano do Irão a que regressei em 1991 com a minha mãe e Mahshid. Vestíamos de negro em sinal de luto por uma prima muito querida, mas no mesmo instante em que desembarquei do avião deparei com toda uma nação de luto pela perda do seu espírito e esperanças.

A morte de Bahar foi a primeira numa fiada de perdas correspondente ao falecimento de pessoas que me eram muito queridas. Quando chegámos ao Irão, a contagem incluía duas das amigas mais chegadas que a minha mãe tivera; a cunhada viúva do tio Naj, que viveu em sua casa durante os últimos quarenta anos da sua vida; assim como um grande número de primos em segundo grau. Como se todas estas mortes não fossem o suficiente, soubemos do falecimento da filha de uma outra prima que vivia na Europa, enquanto o filho de uma outra foi atacado pelos fundamentalistas islâmicos na universidade que frequentava nos Estados Unidos. Para cúmulo de todas estas tragédias, descobriu-se que a filha mais velha de Homa, Shireen, tinha uns tumores suspeitos no ventre, tendo sido forçada a submeter-se a uma histerectomia. Todas estas adversidades tiveram lugar dois meses após o primeiro choque da morte de Bahar.

Eu tinha ansiado por poder regressar à minha terra natal, voltar ao seio da minha extensa família, assim como à maneira de ser acolhedora e de camaradagem que eram apanágio da região do Médio Oriente. Mas constatei que certamente havíamos aterrado no país errado. No passado, o ar tinha-me abraçado sempre com a sua calidez, de mistura com os aromas a mistério do oriente. Mas nesse dia ignorou o regresso dos seus nativos. Tão-pouco o aeroporto foi ao encontro das minhas expectativas. Não houve revistas em que tínhamos de nos despir, e as nossas malas de viagem mal passaram pela "Gestapo" alfandegária. Onde diabo é que eles teriam metido a revolução?

Sentia-se uma tensão no ar, mas que não tinha nada a ver com o fervor do zelo religioso. "Nem Ocidente nem Oriente, mas sim o Islão", haviam entoado as massas acenando despedidas à monarquia. Não lhes tinham deixado nada. Quando a aurora surgiu sobre Teerão era difícil detectar a energia que dera origem à República Islâmica. Toda aquela atmosfera era tão comum que não podia acreditar que se tratava do mesmo lugar que em tempos idos tanto me enchera de um entusiasmo aterrador.

Numa tentativa para atrair de volta dinheiro e profissionais especializados, Raffers prometera dar as boas-vindas e receber de braços abertos os exilados iranianos que regressassem à sua pátria. A maior parte dos passageiros que viajaram connosco no voo da Iran Air eram mulheres de exilados que tinham regressado para uma primeira avaliação da situação. Estas mulheres tinham partido do Irão quando o país ainda era um paraíso para os playboys; podíamos ver nos seus rostos o choque cultural enquanto desciam para o domínio dos molás. A maior parte delas cobrira pela primeira vez o rosto com o véu apenas há cinco horas, quando entraram a bordo do avião, e agora envidavam esforços para manterem os cabelos e corpos velados. Quando passassem pela alfândega, sentir-se-iam mais do que um tudo-nada mal trajadas ao descobrirem o exemplo multicolorido de feminilidade islâmica que as aguardava.

Com a finalidade de transformar as viagens numa experiência tão desagradável quanto possível para aqueles que ainda tinham a sorte de se permitirem esse luxo, a maior parte dos voos internacionais, especialmente os que eram oriundos de países não-amigos e de fé não-islâmica, aterram e partem de Teerão às primeiras horas do dia. Ali me encontrava eu de novo em Teerão, no actualmente super- asseado aeroporto de Mehrabad, de caneta em punho, pronta para iniciar a minha actividade de repórter assim que chegássemos à pista de aterragem. O sol erguia-se no firmamento, iluminando aquele novo alvorecer; contudo, por muito que procurasse, não fui capaz de encontrar um único vestígio de zelo revolucionário. Os pasdars, esses homens da Guarda Islâmica que no passado haviam aterrorizado toda a gente, passavam pelas brasas a um canto da área reservada às chegadas; um velhote brincava com contas de preocupação por baixo de uma tabuleta onde se lia: FUNDAçÃo PARA AQUELES QUE SACRIFICARAM AS SUAS VIDAS' BALCãO DE INFORMAÇÕES. No entanto, não se avistavam quaisquer familiares em pranto pelos mártires ou pelos que sacrificaram as suas vidas.

Estes últimos eram os rapazes que tinham fracassado na sua demanda pelo mane, embora tivessem alcançado o melhor estado a seguir a esse - tinham conseguido ficar com um membro ou com a coluna vertebral quebrada. Nas suas cadeiras de rodas, tinham direito a ficar na fila da frente durante qualquer evento que atraísse a atenção das câmaras de filmagens. Também fora implementada uma nova lei que estipulava que os negócios recém-formados deviam ser dirigidos por alguém disposto a sacrificar a sua vida a fim de poderem receber quaisquer subsídios estatais.

O engarrafamento provocado por cinco voos que chegaram simultaneamente a este potencial Estado do laissezfaire fazia com que as pessoas se arrastassem com inquietude   em direcção aos dois balcões onde os passaportes eram verificados. É aqui que as forças do islão se abatem sobre quem constasse da lista dos "inimigos" e tivesse a ingenuidade suficiente para se apresentar no Maharabad com um passaporte em nome próprio, pois é imediatamente levado para Evin. Mas como é muito pouco provável que Ronald Reagan ou Salman Rushtie se apresentassem numa das duas filas, não se corre qualquer perigo de maior. Não obstante, este raciocínio não evitou que sentisse guinadas no estômago quando o inspector alfandegário verificou o meu nome no Livro Grande. O seu ligeiro pestanejar perante o meu apelido levou-o a verificar de novo o meu primeiro nome e a contrastá-lo com o de meu pai - o qual constava da sua lista -, dando origem a uma risada de alívio que soou no meu íntimo.

Nessa outra vida que levei antes da chegada dos molás, o meu pai teria ido ao nosso encontro na pista de aterragem, acompanhado de vários lacaios que teriam tratado imediatamente de todas as formalidades com os passaportes e levantariam as malas de viagem que nenhum funcionário da alfândega se atreveria a abrir. Teríamos passado à frente das pessoas comuns, a exemplo do que presentemente acontecia com os molás e os da sua laia. A frota de automóveis norte-americanos devoradores de gasolina do meu pai, com as suas chapas de matrícula atribuídas pelo tribunal, ter-nos-iam levado rapidamente para casa, enquanto os polícias bateriam os calcanhares e deteriam o trânsito para que tivéssemos prioridade de passagem.      

Houve uma ocasião em que senti um baque de piedade por um desses molás, numa dessas raras vezes em que vi o interior da área reservada aos agentes alfandegários. Tínhamos chegado de Inglaterra, depois de termos passado por Paris e Roma onde nos entregámos a uma ida desenfreada às compras, e sentíamo-nos ansiosas por reavermos as nossas malas de viagem. Enquanto esperava que o jovem serviçal fosse buscar as malas, observei um mola de aspecto miserável que era tratado abaixo de cão pelas autoridades aduaneiras. Foi ignorado e empurrado para o fim da fila de pessoas que aguardavam que lhes inspeccionassem a bagagem. De cada vez que o molá conseguia chegar até a um dos agentes, era afastado sob uma barragem de impropérios - todos o insultavam em uníssono. Senti-me invadida por uma onda de fúria, mas não fiz nada para além de continuar a observar a cena, tal como os novos dirigentes do país observavam as minhas malas que estavam a ser esvaziadas para serem revistadas.

Se estivéssemos apenas de visita, teria sido empolgante encontrarmo-nos no coração da revolução, empurrados por pessoas que sabíamos que teriam certamente participado em batalhas sangrentas e lutas a que assistíamos na televisão na segurança das nossas casas. Mas agora, em vez de vermos velhas corujas que espalhavam os nossos pertences pelo chão, empurrando-nos para pequenos cubículos onde nos revistavam dos pés à cabeça, os agentes alfandegários eram corteses e prestáveis, ainda que lhes faltasse um mínimo de jovialidade.

Ninguém me tratou uma única vez por "Irmã", tão-pouco fui apelidada de rameira por algum fanático que tivesse passado por mim.

Era uma lástima que tivesse sido necessário ceifar a vida de vários milhões de pessoas para obtermos aquela república pouco convincente. Tinham posto cobro a uma sociedade onde eu poderia ter ordenado o encerramento de um estabelecimento caso não me fosse prestado o género de serviço de que me achava merecedora. Uma sociedade onde assistira ao espancamento de um homem cujo corpo foi transformado em polpa por dois rufias que trabalhavam para um general poderoso, e tudo porque o homem se limitara a estacionar numa rua pública no lugar reservado ao general em questão. Quando a polícia chegou ao local, o motorista foi detido pelas autoridades. A cólera por se sentirem impotentes perante situações daquelas levara as pessoas a saírem à rua e a espancarem os seus inimigos até à morte, junto de várias gerações de ira reprimida com violência.

Agora, em contraste com aquelas de nós que regressávamos à República de Deus usando os nossos trajes cinzentos e negros, as mulheres do novo Irão cintilavam sob as luzes do aeroporto. Desfilavam em tons de rosa e vermelho, assim como em verdes garridos. As bainhas dos casacos compridos e largos davam-lhes pelos tornozelos, o que era exigido para ocultar aquelas formas curvilíneas que enlouqueciam os homens. Os véus eram amplos e coloridos e os cabelos tinham recomeçado a aparecer à vista de todos. Elaborados penteados ao alto - pelos quais Joanna Lumley teria morrido - por vezes elevavam os lenços a uma altura de mais de vinte e dois ou vinte e cinco centímetros acima da cabeça. Os penteados tufados eram a palavra de ordem nesta estação para as raparigas de Teerão que gostavam de andar na moda. O cabelo de um negro asa de corvo era intercalado por espessas madeixas de louro, o que estava muito em moda. A maquilhagem tinha de ter, obrigatoriamente, uma espessura de cerca de cinco centímetros.

Uma mão-cheia de mulheres da revolução mostravam os seus "rostos de homem" em público - isto é, exibiam os seus bigodes e demais pêlos faciais em que não tocavam. Cobriam o corpo com roupas que se assemelhavam a compridos lençóis negros; as

 

Joanna Lumley: actriz da televisão inglesa reputada pelo seu glamnur, patente em séries como Os Iringadores. (N. do E.)

 

devotas só permitiam que se visse o nariz e um olho. Mesmo que fossem possíveis réplicas de Marilyn Monroe por baixo desses chador, os únicos homens que alguma vez viriam a confirmar essa possibilidade eram os seus maridos e os familiares de sangue.

Apesar da hora tão matutina, famílias inteiras tinham-se dirigido ao aeroporto para darem as boas-vindas aos passageiros dos voos que aterravam. Éramos esperadas pelo meu tio, e vários primos e primas. Aquela reunião familiar reavivou todos os sentimentos de perda pela morte de Bahar, e pelos muitos outros que tinham morrido nesses dias revolucionários.

Quando chegámos a casa de Bahar, não nos restava dúvida nenhuma de que o país mudara profundamente desde os tempos caóticos da revolução. Quanto mais não fosse, os chavões tinham desaparecido por completo. Os muros e paredes estavam limpos de quaisquer inscrições de MORTE Á AMÉRICA, expressão que costumava ver-se por todo o lado. O empate que se verificou na guerra Irão-Iraque explicava o desaparecimento da expressão mas com certeza que continuariam a existir alguns velhos inimigos que poderíamos continuar a insultar. Não havia ninguém neste país que continuasse a interessar-se pela situação?

Com o desaparecimento de Bahar, a Casa do Desânimo mergulhara numa escuridão de frialdade espiritual. O que lhe dera vida e ânimo tinha desaparecido, e os que haviam sobrevivido percorriam-na abstractamente como se fossem fantasmas. Quando deixou este mundo Bahar levara consigo o pouco fogo da vida que restara naquele lar. Era raro ligarem as luzes, nunca se ouvia música e o pó acumulava-se em cima do piano. O retrato a óleo de Bahar olhava-nos de uma parede que se avistava através do amplo vestíbulo, recordando a todos os que ali entravam que ela tinha partido.

A morte de Bahar havia sido de mais para a sua filha Nastaran. Deu- nos as boas-vindas como se fosse um autómato, continuando a andar pela casa a limpar e a cozinhar, se bem que a expressão no seu olhar gritasse que queria ser deixada a sós consigo mesma. Todas as tentativas para a confortar eram recebidas de maus modos. Era impossível penetrar naquela couraça exterior para se tentar descobrir o que se passava dentro da sua alma. Nastaran não vertera uma única lágrima em público desde a morte da mãe. Tanto quanto qualquer pessoa poderia dizer, tinha apenas uma mão- cheia de amigas, ninguém do sexo masculino, todas elas prestes a encontrarem maridos com quem iniciariam uma nova vida, mas ela continuava mergulhada no seu perpétuo luto.

Quase na casa dos trinta quando a mãe faleceu, esta jovem conhecia tanto do mundo quanto a rapariga média na faixa etária dos catorze anos. Passara grande parte da vida a cuidar da mãe doente e do irmão deficiente. Os seus objectivos de vida tinham sido estabelecidos pela mãe, pelo que se esforçara por concluir os seus estudos académicos tal como se esperara que fizesse. Esperava-se que as duas raparigas fossem maravilhosas e elegantes, anfitriãs magníficas e aplicadas nos estudos, vindo a transformar-se em mulheres de carreira. Enquanto preparava as refeições, Bahar costumava ouvir cassetes com gravações dos cursos Linguaphone em inglês, francês e alemão. Tinha estimulado as filhas a darem o seu

melhor na escola e na universidade, mas a pressão parecia ter deixado a filha mais velha aterrorizada e esgotada.

Nastaran oscilava à beira de um precipício. Perdera o centro do seu universo, e do dia

para a noite vira-se obrigada a assumir o papel de senhora da casa, sob a inspecção minuciosa de uma sociedade que se apressaria a apontar-lhe o mínimo defeito. Bahar delineara planos para que as filhas pudessem ir para um país do Ocidente, onde poderiam almejar a tudo o que lhe fora negado. Era ela quem tomava todas as decisões pelas filhas, ensinando-lhes aquilo que deveriam esperar da vida, mas nunca as equipou adequadamente para que pudessem ir em busca dos seus sonhos sem a ajuda de ninguém. Agora, todas esses esperanças estavam desfeitas; a jovem mulher herdara a tarefa de cuidar da casa do pai, cada vez mais incapacitado devido à doença de Parkinson.

No Irão, a pressão para que se seja uma esplêndida anfitriã é enorme; é um país onde as mulheres continuam a ser julgadas pela sua aparência e por aquilo que sabem fazer na cozinha. Aquela jovem mulher solitária vira-se sozinha de súbito, sabendo que tudo o que fizesse seria tema de conversa, analisado e criticado ao pormenor. A sua insistência em gerir

a casa sem a ajuda de ninguém acabou por se tornar insuportável. Não existe nada tão irritante como não se ser capaz de preparar o nosso próprio chá, lavar a louça, ir ao supermercado, enfim, as actividades do dia-a-dia de qualquer mulher. Sim, à primeira vista parece uma maravilha, e durante uma semana assim é, talvez até mesmo por um mês, mas depois de sete meses não é brincadeira nenhuma.

No dia em que Mahshid e Minu, a filha da tia Omol, saíram para fazer algumas compras, cometeram o grande erro de comprarem uns bolos para o chá quando já iam a caminho de casa. Nastaran ficou num estado de absoluta paranóia. Arengou e lamuriou-se, acusando-nos de estarmos a dizer-lhe indirectamente que era má anfitriã. Nessa noite chorou à mesa do jantar e forçou-nos a voltar ao assunto dos bolos.

Nunca mais se atrevam a trazer seja o que for para dentro da minha casa - disse ela para uma assistência absolutamente aparvalhada.

As filhas de Bahar não tinham sido educadas apenas para virem a ser mulheres, mas tal não obstou a que se vissem na ratoeira de uma sociedade que esperava que dessem cumprimento a essa responsabilidade antes de qualquer outra. A filha mais velha tinha

conseguido um feito quase impossível nos tempos que se seguiram à revolução: conseguira lugar na Universidade de Teerão, não obstante ser filha de um antigo chefe das forças de segurança. Licenciara-se com a nota mais elevada do seu curso, ganhando um prémio que o presidente atribuía a quem se distinguisse nos estudos. Nastaran emoldurou o diploma e o prémio e depois passou a dedicar-se à lida doméstica.

- Tenho uma criada que possui uma licenciatura universitária - costumava dizer Bahar na brincadeira. Era frequente ver as duas quando iam às compras: Bahar sentada no seu Peugeot pré-histórico, enquanto a filha, dentro da loja, erguia os legumes para aprovação da mãe.

A forma como Nastaran enfrentou a morte da mãe foi transformar-se numa máquina eficiente, aparentemente assumindo o seu lugar, enterrando o seu desgosto tão fundo que era impossível ver a dor que sentia.

E contudo, se existe alguma coisa em que os iranianos sejam excelentes, é chorar os nossos mortos. Sentimos um fascínio absoluto pela morte - de que outra maneira é que se poderiajustificar termos observado, impávidos, milhões dos nossos jovens a serem enviados para a morte ao longo da última década e meia? A morte é a ocasião em que nos cobrimos de negro da cabeça aos pés, um período da nossa vida em que nos permitimos gritar e prantear. São poucas as pessoas que actualmente tingem todas as suas roupas de preto, e todavia o luto continua a ser um processo exaustivo que se reveste de grande solenidade. Nenhuma notícia se espalha com tanta celeridade como a de uma morte, o que é sinal para que todos, e mais alguém, se ponham a caminho da casa do falecido. Espera-se que a família de luto encha os estômagos e acalente a alma destas hordas. Por pressuposto, esta manifestação de pesar servirá para ajudar os enlutados a esquecerem o seu desgosto, o qual dará lugar ao pânico que sentirão ao pensar como é que hão-de recuperar do custo incorrido.

As conversas são dominadas pelas opiniões referentes à hospitalidade mostrada no seguimento da última morte. "O arroz deles não estava tão saboroso como o de Mohammadis", ou "Não devem ter gasto muito com os serviços daquele molá. a voz do homem era terrível! ", e assim por diante. O dinheiro dispendido nas cerimónias fúnebres de Bahar teria sido suficiente para sustentar uma família média da classe trabalhadora, durante uns bons seis anos.

O custo da morte fica substancialmente reduzido caso se verifique a bem-aventurança de se ter sido um mártir. Quer o falecido em questão, quer aqueles que lhe foram mais queridos e mais chegados por laços consanguíneos, ficam com lugar garantido no Paraíso, além de que é também o Estado quem assume as cerimónias fúnebres, providenciando as carpi deiras, os comes e bebes e o que existe de melhor em matéria de molás: um que seja capaz de pôr os convidados num frenesim de choro. Tenho um amigo muito erudito cuja fluência da língua arábica lhe permite compreender os escritos do Corão e que costuma descrever o dia em que chegou às cerimónias fúnebres de um colega e deparou com os homens que choravam baba e ranho de todo o tamanho sem se terem apercebido de que a passagem que estava a ser lida não era a narrativa da morte de um qualquer muçulmano, mas um trecho que dizia: "O choro de um burro é o barulho mais feio que Alá criou".

No terceiro dia após a morte o corpo é lavado e só depois é sepultado. Em Tet todos os cadáveres têm de ser lavados no enorme cemitério de Behesht-e-Zahara (o Pai de Zahara), onde os mártires estão enterrados por quilómetros de solo. Enquanto os cadáveres esperam em fila a sua vez de serem atendidos pelos cangalheiros, os enlutados são leva dos para uma sala de espera onde aguardam a sua vez através de um monitor de televisão. Os lavadores de corpos trabalham por detrás de uma parede de vidro, observados por familiares do falecido que ali se encontram para verem o morto pela última vez. Na sala de observação dão- se muitos desfalecimentos e espumar de bocas.

Depois de lavado, o cadáver é embrulhado numa mortalha e levado para uma sala reservada às orações, onde as carpideiras se alinham por detrás do corpo e rezam. Os que forem destacados para levarem o corpo aos ombros prosseguem então até à sepultura, onde o filho mais velho do falecido, ou o pai, abre a mortalha e revela o rosto na campa, voltando-o na direcção de Meca.

Uma semana depois da morte, os enlutados realizam um cerimonial que consiste maioritariamente em grandes comezainas e prantos. Ao décimo quarto dia após a morte tem lugar uma outra cerimónia com um banquete magnífico. Tendo-lhes sido retirada a liberdade de darem as grandes festas de outrora, onde os homens e as mulheres costumavam beber i dançar e deitar-se uns com os outros, os iranianos passaram a aproveitar os cerimoniais fúnebres para darem largas a tudo aquilo que normalmente lhes é proibido fazer.

De uma maneira geral, qualquer pessoa se vestiria de preto durante um ano pela morte de um dos progenitores, marido, irmão ou irmã e filho ou filha; entre três a seis meses pelo falecimento de um primo ou prima, tia ou tio, e quarenta dias por um amigo íntimo ou familiar afastado. Ao longo dos primeiros quarenta dias do período de luto, espera-se que os familiares mais chegados do falecido ignorem a aparência física, não usando nunca maquilhagem; também não devem pintar o cabelo nem arranjar as sobrancelhas. Todo o evento social que não esteja associado à morte está absolutamente fora de questão pelo menos durante seis meses, enquanto os casamentos são, no mínimo dos mínimos, um ano para depois da última cerimónia que assinalará o aniversário da morte.

A morte da mulher deixou Nasser Khan desfeito, com a agravante de necessitar de cuidados constantes por causa da doença de Parkinson de que sofria. No cumprimento da promessa que fizera a Bahar, Nastaran tratou de tudo para que Nasrin pudesse frequentar um colégio na Europa, para onde iria no Outono. Por conseguinte, aos vinte e oito anos Nastaran encontrava-se encurralada, obrigada a carregar o fardo que fora da mãe. Comtinuar as passadas de alguém que, muito possivelmente, era inimitável. Eu passaria muito tempo em casa durante os sete meses seguintes, onde ela imperava com a afabilidade e graciosidade mostrada por Mrs. Danvers em Mandalay depois da morte de Rebecca.

Nos bons velhos tempos eram as serviçais que iam às compras, que cozinhavam e tratavam da limpeza da casa, enquanto as secretárias, os feitores e os moços de recados se ocupavam dos outros afazeres de natureza prática da vida. No mundo do Irão pós-revolucionário, a minha família e eu éramos como inválidos, perdidos num pesadelo em que não sabíamos o que fazer para que os nossos passaportes fossem renovados, aonde ir comprar pão fresco, e ir de um local a outro sem a ajuda de um motorista. A nova república carecia de uma entidade que eu compreendesse, sendo-me impossível ter a percepção do funcionamento das coisas. Até os nomes das ruas tinham sofrido alterações, pelo que era mais ou menos prisioneira na Casa do Desânimo. Nastaran não era nada prestável, não me explicava os mistérios da vida na Teerão do presente - dava a impressão de andar tão perdida quanto eu. Mas em vez de dizer "não sei", duas palavras que todos os iranianos detestam dizer, limitava-se a olhar com fixidez se lhe perguntássemos alguma coisa, e amiúde virava costas sem nos dar qualquer resposta.

O relacionamento cada vez pior que eu mantinha com Nastaran veio irremediavelmente ao de cima pouco depois da nossa chegada. Tínhamos andado à procura de um lugar qualquer onde alguém nos depilasse as pernas, o último dos cuidados femininos a ser banido pelo regime, por razão nenhuma que o justificasse. Ao cabo de porfiados esforços, lá conseguimos localizar um salão de cabeleireiro onde se realizava esta prática ilícita, tendo sido obrigadas a jurar segredo quando nos facultaram o endereço no outro extremo da cidade.

Nastaran queria depilar os pêlos da face, e numa bela tarde lá fomos no calhambeque de Bahar durante o Grande Sono, as horas dedicadas diariamente à sesta. As ruas estavam desertas quando entrámos numa alameda na periferia do que ainda podia ser chamado de zona norte de Teerão. Vimos um homem estendido no passeio do outro lado da alameda, de rosto para baixo contorcendo-se como um peixe fora de água.

- Pára! - gritei, mas Nastaran ignorou-me e continuou a conduzir. - Está ali uma pessoa que se sente mal. Não viste o homem? - perguntei numa fala atabalhoada.

- É problema que não me diz respeito - replicou numa voz cheia de frieza. - Se pararmos; vai dizer que o atropelámos.

 

Referência à personagem interpretada por Dame Judith Anderson no filme Rebecca (1940), da autoria de Alfred Hitchcock. (N do E.)

 

Cada vez nos afastávamos mais do homem. - Mas ele pode estar a morrer. Olha, há várias lojas por aqui. Pára para eu poder chamar uma ambulância - pedi-lhe num tom de exigência.

Mas ela não abrandou.

- Temos o dever de ajudar os nossos semelhantes. Se ajudar alguém, pode ser que um dia algum dos meus entes queridos seja ajudado por alguém se se encontrar em dificuldades.

- Tentei chamá-la à razão, mas ela, casmurra, preparava-se para entrar na via rápida.

Conclui que a minha insistência não me levava a lugar nenhum, e por isso contive as palavras até chegarmos ao nosso destino.

- Vou ver se apanho um táxi para regressar ao local onde o homem estava caído - informei indignada.

- Está bem! De acordo! - gritou-me Nastaran. - Eu levo-te lá.

Quando chegámos ao local em questão, o homem já tinha desaparecido - mas estaria eu disposta a desistir? Não. A pobre Nastaran mantinha-se sentada no automóvel enquanto eu procurava por todo o lado, entrando por um baldio adentro e abordando todos os que passavam por mim. Finalmente, decidi regressar às lojas que tínhamos visto numa praceta próxima. Verdade fosse dita, não passava de uma rua poeirenta com um círculo de relvado no meio, com algumas árvores raquíticas que mal davam sombra aos trabalhadores que dormitavam. Avistei um velhote desalinhado sentado na ombreira da porta do seu estabelecimento, com um cachimbo de barro entre os lábios; a pele engelhada pela idade formava pregas junto das dobras. Até essas rugas tinham poeira.

- Há pouco vi um homem caído perto daqui que estava a sentir-se mal. Sabe se alguém lhe prestou assistência? - perguntei ao velhote, que me brindou com uma expressão desdenhosa.

- Ponha-se a andar, sua puta nua! - ripostou ele numa voz rosnada.

- Estou a referir-me a um homem indisposto, ao cimo da rua... viu se alguém o ajudou? - tartamudeei.

- O meu filho morreu para que nos pudéssemos livrar das da sua laia. Mas ele morreu em nome de quê? Para que vocês possam continuar a exibir-se pelas ruas ao volante dos vossos carros de luxo? Deviam ter sido todos banidos da face da Terra - vociferou o velho.

Como é que eu poderia alguma vez fazê-lo compreender que eu também odiara o regime do xá, e que sentia tanta repulsa quanto ele, ao constatar que as personagens passaram a ser outras mas que a peça continuava a ser a mesma, com os poderosos a ficarem cada vez mais ricos enquanto os pobres continuavam a ser espezinhados? No entanto, e por fim, apercebi-me de que a minha presença não era desejada. A pequena madeixa que saíra do lenço que usava marcara-me, fazendo com que eu fosse considerada uma mulher demoníaca aos olhos daquele muçulmano, ao qual era indiferente que a escassos metros de distância pudesse estar um ser humano aflito e em sofrimento, caído no chão.

Mas aquele episódio não foi o fim da minha perturbação. Quando regressámos a casa, Nastaran irrompeu pela porta adentro afirmando que eu lhe tinha chamado assassina por não ter parado o carro.

- Quem, eu? - perguntei em estado de choque.

De uma maneira inexplicável, uma simples viagem de automóvel transformara-se num incidente de grandes proporções, do qual eu perdera grande parte da acção. Fica para aí a roer-se de inveja, Dallas; um dia passado em Teerão tem o condão de fazer com que os iguais passem por ser gente normal.

Até o varredor da rua me olhou de esguelha quando o episódio começou a espalhar-se, adquirindo proporções desmesuradas. Antes que me tivesse apercebido disso, haviam-se formado duas facções, cada uma a favor de uma de nós. Eu não tinha a mínima noção de como é que entrara naquela disputa. A partir desse dia aziago, viver naquela casa tornou-se numa batalha contínua. Se tivesse optado por ir para outro lado, isso teria ofendido Nasser Khan, que era um anfitrião excelente e generoso.

Agora também me encontrava encurralada pelas maneiras dos iranianos modernos. Grande parte do primeiro mês em que estive em Teerão foi passado em casa dado que o Verão não se coadunava muito bem com as camadas de roupas que tínhamos de usar antes de nos aventurarmos a sair à rua. Ir jantar fora trazia mais desvantagens que vantagens; estar-se sentada à mesa de um restaurante qualquer enquanto se comia com o lenço na cabeça e de casaco vestido não era a ideia que eu tinha para passar um bom bocado. Mas, para lá de todos os incómodos de situações como esta, entre os meus familiares reinava um desânimo ainda mais profundo.

A corrupção grassava por toda a parte, até mesmo no âmago da revolução. Ver-me-ia confrontada com a faceta inaceitável do regime revolucionário na pessoa de um advogado envolvido na apresentação do processo contra o meu pai e que permitiu que a Fundação para os Oprimidos se apoderasse dos nossos bens. Depois de ter destruído a vida de tantas pessoas, passou de couteiro a caçador furtivo, instalando-se num escritório de advocacia especializado na devolução, por parte da Fundação para os Oprimidos, do dinheiro dos capitalistas. Desconfio que ele tinha um colega no aeroporto que o informava do regresso dos Tiranos, o que fumdamento no facto de ele nos ter telefonado como que por acaso para o último endereço onde nos alojámos, o que sucedeu menos de uma semana depois da nossa chegada. A oferta dele: "Tentar corrigir o mal que foi feito".

Eu esperava encontrar alguém devastado por sentimentos de culpa; um filho da revolução que usasse umas calças de caqui, com barba de dois dias e com uma dessas camisolas Marco Polo tão populares nos nossos dias em que as gravatas eram um símbolo demoníaco. Ao invés, deparei com um homem que parecia ter acabado de sair das páginas de um catálogo Medallion Man. Ao contrário das minhas expectativas, usava um fato de seda tailandesa, de um azul refulgente, indumentária complementada por uma gravata, também de seda, com riscas douradas. A luz reflectia-se no mostrador do seu Rolex em ouro e no diamante bastante grande encastoado num anel de casamento. Senti-me capaz de torcer o pescoço daquele homem que me explicava, na sua voz de cana rachada, como é que a confiscação de propriedades fora uma terrível injustiça. Acrescentou que embora o julgamento a que eu fora levada não tivesse o mínimo merecimento em qualquer tribunal internacional, "seria necessário um juiz da República Islâmica suficientemente corajoso para assinar a ordem que reverteria a sentença". Mas, por um acaso meramente fortuito, ele continuava a manter uma forte ligação com gente importante nos ministérios e fundações que poderiam ter relevância no meu caso. Essas pessoas estariam dispostas a ajudar os espoliados a reaverem as suas propriedades, a troco de uma percentagem.

Belo trabalho para quem o conseguia arranjar!

- Não deixes que seja ele a tratar do assunto. Conheço alguém muito melhor para isso. Ele conhece toda a gente que ocupa cargos importantes, além de ter laços familiares com o ayatollah Yazdi - insistiu a minha prima Farah.

O seu senhor Arranja-Tudo já tinha ajudado um número infindável de exilados proeminentes, a troco de uns meros dez por cento dos lucros, afirmava ela, colocando à margem as minhas reservas quando vim a descobrir que o advogado em questão era inquilino da sogra de Farah. Certamente que um indivíduo que ganhava milhões em negócios de terras poderia muito bem ser proprietário da sua própria casa.

- Ele não quer dar muito nas vistas - justificara Farah quando levantei este aspecto. Três dias mais tarde, encontrei-me na sala de estar de Hadji Amini, verificando com os meus próprios olhos que, sem a menor dúvida, ele não gastava o dinheiro que certamente auferia. Tinha sessenta anos bem medidos e a mulher, que pouco depois nos serviu chá, era mais nova do que o marido uns bons trinta anos. Eu tinha descalçado os sapatos, colocando-os junto dos deles do lado de fora da porta.

Hadji anunciou-me que precisaria de uma procuração que lhe permitisse agir em meu nome - resumindo, para comprar, vender e transaccionar como bem lhe apetecesse. Também me explicou que Raffers era o único homem com poderes para reabrir o processo, mas acontecia que o presidente recebia milhares de pedidos todos os dias. Contudo, Hadji conhecia um homem que trabalhava no gabinete de Raffers e que poderia colocar o meu caso no topo da pilha por um mísero milhão e meio de tomans (nesses tempos, a taxa de câmbio rondava os duzentos e trinta tomans por uma libra).

Cheguei a um acordo com o homem, tendo como base a garantia de que não haveria corrupção no assunto, se bem que na ausência de subornos o processo pudesse levar vários anos a ser resolvido. Não me interpretem mal, mas eu queria voltar a ser rica, o que me permitiria dar-me ao luxo de escolher para quem é que trabalharia, e quando. Mas ainda era muito ingénua, acreditava que os assuntos poderiam ser concluídos sem que se pagassem luvas.

O Irão do xá fora um país corrupto e imoral ao extremo. O nosso monarca e a sua comitiva davam a impressão de passar mais tempo em St. Moritz do que em Teerão. Os estupefacientes tinham sido um aspecto normal do dia-a-dia, e a única qualificação exigida para que se ocupasse um cargo importante no governo, era que o candidato se relacionasse com alguém que pudesse influenciar a sua nomeação.

Durante a visita que fiz ao Irão em 1976 realizou-se uma festa muito elegante que durou todo o dia, dada por um dos generais mais poderosos do exército. A alta sociedade em peso foi convidada para essa festa. As nossas roupas tinham a assinatura de Valentino, Dior, Chanel ou qualquer outro estilista que naquela estação estivesse mais em voga. As bebidas corriam a jorros, enquanto o caviar era servido em grandes quantidades; os ricos e privilegiados perdiam fortunas às mesas de jogo colocadas nos jardins. Eu fizera uma pausa nas festividades e recolhera-me a uma pequena saleta adjacente ao vestibulo da terceira residência de luxo do general; avistei um outro general a entrar furtivamente para fazer um telefonema. Era por de mais evidente que estava a falar com outro oficial.

- Estou aqui com o ministro sicrano e beltrano que me instruiu para que lhe dissesse que o contrato de adjudicação dos novos tanques deve ser atribuído à companhia que represento - disse o general mais ou menos por estas palavras. O ministro em questão nunca chegara à fala com o general, não fazendo a mais pequena ideia de que acabara de o tornar num multimilionário. O oficial com quem falou jamais se atreveria a pôr a negociata em questão.

Ao que tudo indicava, o novo Irão não tinha mudado por aí além. Já esperava encontrar algumas situações de suborno, mas nunca à mesma escala do passado. O que encontrei foi um sistema que recorria aos subornos para tudo e mais alguma coisa, sem a mínima vergonha. Pelo menos no último regime as pessoas tentavam ocultar a sua corrupção, tendo perfeita consciência de que era uma prática reprovável. Todavia, na República de Deus os dirigentes consideravam que o que recebiam lhes era devido.

Até as lojas tinham duas classes de artigos: o que estava exposto à vista de todos, e os artigos de melhor qualidade guardados nas traseiras, que podiam ser adquiridos por preços exorbitantes. Chamar um táxi transformara-se numa questão em que ganharia quem oferecesse mais. Em tempos houve taxistas que estabeleciam previamente o preço de dez tomans para alguns trajectos já pré-definidos, mas neste novo Irão esperava-se que as pessoas se mantivessem no lancil dos passeios acenando com uma nota de cem tomans antes mesmo de o motorista decidir se pararia ou não. Depois de se ter entrado no veículo, tinham início as negociações e quem oferecesse uma tarifa maior é que estabelecia o trajecto.

Esta situação por si só causava uma tensão mais que suficiente, quanto mais ser-se obrigado a passar por essa experiência nos meses quentes de Verão com a cabeça bem aconchegadinha num lenço e o corpo envolto num casaco comprido que ficava inevitavelmente preso nos sítios mais inconvenientes. Na primeira tentativa que fiz para me deslocar por Teerão por meio dos transportes públicos, depois de ter aguardado durante catorze minutos à beira do passeio à espera que passasse um táxi, com o suor a escorrer-me para os olhos, decidi arriscar-me a apanhar um autocarro que parou à minha frente dando a impressão de ter surgido de nenhures. O autocarro era para ambos os sexos e estava cheio, pelo que me agarrei ao varão pelo lado de dentro da porta como se a minha vida dependesse disso.

- Dê-me o bilhete que eu passo-o ao revisor - ofereceu-se uma mulher de feições ossudas que usava um chador florido enquanto eu me colocava num espaço exíguo.

- Oh, é preciso ter bilhete? Não posso pagar ao motorista?

- Não se preocupe... alguém deve ter um bilhete a mais. Alguém tem um bilhete que possa dispensar à nossa irmã? - gritou ela.

Três pessoas aproximaram-se e ofereceram os seus bilhetes suplementares, que mostravam por cima das cabeças dos passageiros. Aceitei um deles, perguntando à mulher quanto é que lhe devia.

- Só tem de rezar uma oração por mim durante as suas namaz desta noite - disse ela regressando ao seu lugar tão apertado quanto o meu.

Reflectia eu no quanto os meus compatriotas iranianos eram generosos quando senti algo a espetar-me as nádegas. Voltei-me e vi um homem baixo, com uma pele de um amarelo-esverdeado, que me brindava com um sorriso rasgado revelando vários dentes de ouro, enquanto as suas virilhas se encostavam ainda mais ao meu traseiro. Não queria acreditar que ele estivesse a proceder deliberadamente daquela forma, mas saí espavorida do carro na paragem seguinte; pela primeira vez compreendi a sensatez que levava à exigência de segregação de sexos em alguns percursos dos transportes públicos. Claro que este género de experiência não é desconhecida das mulheres que utilizam o metropolitano londrino em horas de ponta.

Nessa mesma noite, Nasrin contou-me como nos dias que precederam a implementação da segregação preferia ficar todos os dias na universidade durante uma ou duas horas depois das aulas terem terminado para evitar a hora de ponta nos autocarros onde teria sido apalpada pelos homens nos trajectos pelas ruas da baixa da cidade.

Nessa noite, o tio da minha mãe, Naj, um jornalista de renome e membro parlamentar do antigo regime, veio visitar-nos e contou-nos algumas das anedotas mais recentes.

- Uma mulher vai num autocarro superlotado e de súbito dá meia- volta e pespega uma bofetada no homem que está atrás dela - dizia Naj. - Ambos prosseguem viagem, mas antes de terem avançado muito mais a mesma mulher volta-se para trás e dá nova bofetada ao homem antes de sair na paragem seguinte. Uma mulher perto do homem pergunta-lhe o que sucedeu: "O que é que você fez para que ela o esbofeteasse duas vezes? " - Naj soltou uma risada casquinada. O homem respondeu: "Oh, nada de mais. Reparei que tinha a saia presa entre as nádegas, pelo que a soltei e ela agradeceu-me com uma bofetada". "Mas por que motivo é que ela o esbofeteou da segunda vez? " - perguntou outra pessoa. "Bem, percebi que ela não tinha gostado que eu lhe tivesse soltado a saia, e por isso limitei-me a voltar a colocá-la no mesmo sítio".

Os britânicos são famosos pelo seu humor de retrete, enquanto os iranianos sentem um fascínio similar pelas questões de sexo. As piadas que correm por toda a República Islâmica concentram-se em grande parte no Islão e nos molás, e caso muitas delas fossem repetidas de forma a chegarem aos ouvidos dos pasdars, o contador poderia muito bem vir a dar consigo encostado ao muro sob a acusação de blasfémia.

Naqueles tempos não havia quase nada com que uma pessoa pudesse entreter-se durante os serões de Verão, uma vez que a programação televisiva era predominantemente religiosa, para além de apresentar a série Secret Army.

Eis outra coisa que me enfureceu: ali estávamos nós, com os cabelos escondidos do sol, mas os nossos homens podiam ir para suas casas ver raparigas de cabeça descoberta nos programas da televisão britânica.

A programação cinematográfica era mais controlada, exibindo filmes de temas religiosos e de morais elevadas. Os clubes nocturnos haviam sido incendiados ou transformados em pastelarias, pelo que as únicas alternativas para nos entretermos resumiam-se a reunirmo-nos durante o jantar, bebendo o mais recente substituto sintético de vodca enquanto contávamos as últimas anedotas. Mas nem assim assomava um sorriso aos lábios dos meus familiares, cansados de anos à espera de verem qualquer mudança. No entanto, continuávamos a encenar um simulacro de divertimento, desempenhando a farsa patética em que tentávamos manter elevada a moral do espírito persa.

Poucas das nossas anedotas se adequam a uma boa tradução para inglês, mas eu gostava bastante de uma série de piadas cujo alvo era o pobre ayatollah Montazeri caído em desgraça e afastado do lugar de herdeiro de Khomeini no Trono do Pavão pelo ayatollah Khamenei. As anedotas dirigidas ao desafortunado ex-sucessor espiritual tinham algum paralelo com as anedotas sobre os irlandeses que se contam em Inglaterra. A minha preferida era uma em que o ayatollah vai fazer um cruzeiro num paquete britânico acompanhado da sua comitiva. Neste cruzeiro era suposto que o ayatollah fosse visto todas as manhãs no tombadilho a dar o seu revigorante passeio matinal. Quando passava pelos oficiais do transatlântico, estes diriam: "Bom dia, Excelência" e Montazeri responderia: "Excelência, manhã boa". Decorridos alguns dias, um dos membros da sua comitiva virou-se para o ayatollah e disse-lhe: "Vossa Eminência, não fazia a mais pequena ideia que falasse tão bem inglês. O que é que diz a esta gente todas as manhãs? ". O ayatollah Montazeri replicou: "Oh, nada de importante. Eles dizem apenas Salaam Alaykum e eu respondo Alaykum Salaam".

Pergunto a mim mesma se o ayatolah teria a mínima percepção da sua reputação de agilidade mental enquanto estava confinado em casa sob prisão domiciliária quase virtual em Qom.

 

                       Por baixo do véu

A despeito das reservas que eu tinha quanto à nova ordem das coisas, foi com grandes expectativas que saltei da cama aos primeiros alvores do amanhecer no primeiro dia em que patiria em demanda da fama que me tornaria na Jornalista do Ano. Ainda não escrevera uma só palavra, mas já tinha memorizado o meu discurso de aceitação do prémio.

Tencionava escrever sobre o verdadeiro Médio Oriente, ia demonstrar que o Irão não era o Império do Mal, mas sim composto por gente comum que albergava esperanças vulgares, pessoas que sentiam o mesmo amor e dor à semelhança dos outros mortais.

Como sempre, a casa de Nasser Khan encontrava-se mergulhada no ambiente fúnebre próprio de um sepulcro. Eu sabia que ele detestava desperdiçar electricidade, mas aquilo era um novo começo e eu precisava de alguma luz na minha procura da fama e da fortuna. Aquela seria a minha grande reportagem e poucos de entre nós conseguiriam escrevê-la. Foi com um abandono de entusiasmo que liguei o interruptor do vestíbulo - nada! Tentei outro mas o resultado foi o mesmo. A luz da casa de banho deu-me a mesma resposta que obtivera na cozinha, onde a única fonte de iluminação era a chama que ardia sob o samovar.

Que divertido! A minha primeira falta de luz. Na realidade, aquilo era a vida típica da linha da frente. Que a luz fosse para o diabo, limitar-me-ia a lavar-me e a vestir-me e sair para averiguar aonde é que teria de ir para me registar como correspondente do Independent e do Observer, entre outros jornais. Sabia que não lhes deveria dizer que trabalhava para o The Economist, um jornal que não era muito amado pelos molás.

Na casa de banho dos hóspedes, os azulejos que haviam sobrado das outras divisões não condiziam uns com os outros, mas pelo menos existia uma sanita ocidental que funcionava e os canos começaram a gemer e a rosnar - mas nada de água. Muito bem; portanto, também me encontrava a meio do meu primeiro corte de água. Não tinha importância. Quem é que haveria de desejar estar num velho país enfadonho onde tudo funcionasse como devia ser? Um pouco de pequeno-almoço - chá, pão achatado iraniano, compota e queijo de cabra - e estava pronta a atacar o Ministério da Cultura e Orientação Islâmica, daqui em diante conhecido como "Obstrução" ou "Ministério dos Subornos", ambas descrições bastante mais minuciosas das suas verdadeiras funções.

Uma hora mais tarde, às oito, hora a que me haviam garantido que todos os iranianos já se encontravam nos seus postos de trabalho prontos para iniciarem um novo dia, tentei ligar para o ministério desejando obter algumas informações. Mas por que motivo é que a linha telefónica não funcionava?

Abanei o aparelho, bati-lhe, larguei-o e voltei a ligar sem quaisquer resultados.

- Tens de esperar até teres linha - respondeu-me Nastaran quando sugeri que talvez fosse melhor ir ao vizinho do lado de onde poderia ligar para participar a avaria. Ela desapareceu logo de imediato, o seu truque preferido, para não mais ser vista até por volta do meio-dia, altura em que descobri que preparava o almoço.

Por conseguinte, fiquei com o auscultador junto ao ouvido pelo que me pareceu ser uma eternidade. Com certeza que ela estava a brincar comigo - fiquei à espera durante pelo menos quinze minutos, e o telefone continuava absolutamente morto. As linhas telefónicas são um bem, compram-se e vendem-se, quantas mais se tem, mais importante se é.

A linha telefónica de que eu tentava servir-me não era realmente de Nasser Khan A sua linha telefónica fora confiscada pela Fundação para os Mártires, organismo que se apoderara dos bens do general a quem Bahar comprara a linha. Consequentemente, tínhamos de nos conformar e partilhar a linha com os vizinhos do andar de cima.

Pouco depois descobri que não estava sozinha, uma vez que o dono da linha levantara o auscultador. Inicialmente senti algum choque ao ouvir aquela voz que vinha de nenhures; mas passados alguns momentos compreendi o que tinha acontecido.

A voz gostava de tagarelar. Informou-me que era quase impossível obter-se linha em Teerão antes do meio-dia. Enquanto esperávamos, contou-me a história da sua vida. Perdera o marido há dez anos e vivera com a filha até há cerca de dois anos, altura em que o filho se divorciou. O filho desse casamento ficou a viver com o pai, tal como era habitual no Irão, pelo que a avó se tinha mudado para casa do filho a fim de poder cuidar do neto.

Estávamos nós a meio da história do seu segundo ataque de coração quando o telefone adquiriu vida; comecei a ouvir o sinal de que estava pronto para satisfazer as nossas necessidades telefónicas.

- Importa-se que eu faça um breve telefonema à minha filha? Senti umas pontadas no coração durante toda a noite e quero pedir-lhe que venha cá a casa para o que der e vier - pediu-me a mulher. Por mim, à vontade; agora já tínhamos linha.

Quarenta minutos mais tarde ouvi um clique que me indicava que ela estava a ligar outro número. Finalmente, duas horas mais tarde, voltei à linha mas esta decidiu fazer uma das suas pequenas sestas. Só depois de três horas desde que levantara o auscultador pela primeira vez é que obtive sinal de ligação, uma linha só para mim.

Já tinha ligado metade dos dígitos que compõem o número do ministério da Obstrução quando a linha se foi abaixo. Desta feita foram precisos apenas dois minutos para que a linha voltasse, comecei a ouvir, milagre dos milagres, o toque do telefone no outro lado da linha. Fui atendida por uma voz que me respondeu com o equivalente persa a "vá-se lixar! " ao meu pedido de querer falar com alguém responsável pelos assuntos dos jornalistas estrangeiros. Antes de ter oportunidade de voltar a ligar o mesmo número, o telefone começou a tocar:

- É do Hospital Mehr? - perguntou-me uma mulher numa voz à beira das lágrimas.

- Não, lamento muito, é uma casa particular - tartamudeei no meu jarsi pouco fluente antes de ela ter desligado abruptamente.

Voltou a tocar segundos mais tarde.

- É do Hospital Mehr? - perguntou ela outra vez.

Esta situação repetiu-se por três vezes antes de ela ter perdido as estribeiras por completo, altura em que fui sujeita a um chorrilho de impropérios que em grande parte punham em causa a legitimidade do meu nascimento, assunto em que se incluíam os molás, o xá, Ronald Reagan e aqueles "estupores dos ingleses que estão por detrás de todos os nossos problemas".

Uma vez mais, voltou a desligar-me o telefone na cara. Nos tempos que correm, a reparação dos telefones é uma indústria em franco crescimento no Irão.

Recomecei a ligar o número, mas a mulher voltou à linha.

- Hospital Mehr?

- Lamento mas sou eu de novo - respondi.

- O seu sotaque é um tudo-nada estranho. De onde é que você veio? - perguntou-me ela.

Vivi no estrangeiro desde criança - respondi, receando que a palavra "Inglaterra"

voltasse a incendiar-lhe os ânimos.

Veio cá de férias? - acrescentou ela.

- Não, regressei de vez - redargui cheia de orgulho.

- Está doida? - ripostou a mulher. - Isto aqui é um verdadeiro inferno. ponha-se daqui para fora enquanto pode. Eu daria tudo o que possuo na vida pela oportunidade de poder viver nos Estados Unidos. O meu marido era oficial do exército no regime desse sacana do xá que se pôs na alheta, o estupor, deixando-nos para pagar os erros da sua estupidez.

Agora o meu marido trabalha como moço de recados num escritório durante a manhã, e à tarde conduz um táxi. Se conseguisse encontrar um emprego de noite não o recusaria continuou ela a arengar. - A minha mãe foi levada para o hospital a noite passada. A minha irmã está com ela mas não posso deixar o meu bebé sozinho. Importa-se de segurar no seu auscultador durante uns segundos enquanto eu tento ligar outra vez? - pediu-me ela numa voz quase de súplica.

Não voltou a ligar, pelo que presumo que tenha conseguido falar com a mãe, ou talvez tenha apanhado outra linha trocada.

O sofrimento e o azedume manifestados por aquela mulher chocaram-me. Estava tudo muito bem no tocante a aceitar-se a perda de posição social e de fortuna no Irão a troco da segurança da região norte de Oxford, mas a minha experiência de ter sido privada de passaporte neste país ensinou-me o quanto a vida pode ser assustadora e desprovida de toda e qualquer esperança. Imaginei aquela mulher a incentivar o marido a fazer alguma coisa de positivo da sua vida. Visualizei-a no desfrute da posição de mulher de um oficial, o que de um dia para o outro lhe permitiria poder dar-se ao luxo de adquirir os vestidos da última moda de Paris, sem os quais nenhuma mulher respeitável da classe média iraniana se mostraria em público. Iria a festas onde o vinho seria servido a jorros, terminaria a noite num dos muitos clubes nocturnos onde a clientela era seleccionada e que abundavam por todo o Irão, na década de setenta. Durante o Verão, muito provavelmente iria para o mar Cáspio durante os fins-de-semana, passando os dias a exibir o seu biquini na praia, enquanto à noite gastaria o dinheiro do marido num casino.

Até eu cheguei a achar esse tipo de clubes nocturnos e discotecas um pouco avançados de mais para o meu gosto. Certa noite estive quase a ser beijada pelo belo filho de uma família de quem éramos amigos e cuja missão era ser o meu par. Antes de o rapaz me poder dar o seu beijo, o meu pai saltou detrás de uma coluna e ordenou- me que regressasse à mesa; enquanto me afastava, observei uma das muitas mulheres que se mantinham na área mais escura do clube a insinuar-se junto do meu pretendente e começando a roçar-se nas suas virilhas.

As pessoas para junto de quem eu regressara pareciam viver num limbo terreno, mas o certo é que não dei grande apreço àquela letargia. Depois de tudo feito e dito, eu era a estrangeira que descobria um pequeno Estado islâmico graciosamente antiquado, de ond poderia escapar caso as coisas não me corressem de feição. Mas os iranianos viviam na sua própria nação, junto da sua própria gente; e, todavia, compreendiam muito pouco das nov regras que lhes tinham sido impostas apenas há treze anos e que mudavam lentamente à medida que o poder saía das mãos dos fumdamentalistas e passava para as dos reformadores e depois para os da direita.

Muito do entusiasmo que eu sentira nessa manhã desvanecera-se quando finalmente consegui ligar para o Obstrução.

- Tem de vir cá pessoalmente - disse-me uma voz que desligou antes de eu ter oportunidade de lhe perguntar onde é que esse "cá" se situava exactamente. Exaurida, abandonei a minha demanda durante o resto do dia. Tinha de me familiarizar com o território antes de voltar a aventurar-me a apresentar-me a mim mesma.

A medida seguinte era, obviamente, arranjar forma de todos os jornais que se publicavam no país serem entregues diariamente na Casa do Desânimo. Um assunto fácil de resolver - só teria de ir ao quiosque e pedir que passassem a ser entregues ao domicílio. Era possível encontrá-los rua sim rua não. Mas qual seria o quiosque? Todos os vendedores de jornais num raio de mil e seiscentos metros se recusavam a fazer entregas ao domicílio. Mas havia alguém que todas as tardes entregava a Nasser Khan o seu vespertino. Nastaran, como de costume, afirmava não fazer a mais pequena ideia de como se conseguir a entrega domiciliária de jornais. Só me restava esperar pela chegada do homem que fazia a entrega do jornal em casa de Nasser Khan. Durante três dias só ouvi o barulho do seu motociclo à distância depois de ele se ter ido embora. Mas certa manhã ouvi o "vrumm, vrun" familiar e saí porta fora atrás do homem.

Ele mostrou-se algo mais do que um pouco embasbacado ao ver esta mulher de calções de algodão grosseiro e uma blusa exígua a aparecer-lhe à frente na terra dos véus. Enquanto explicava ao homem o que pretendia, pelo canto do olho via Nastaran toda retraída na ombreira da porta.

A manhã seguinte chegou, mas nada de jornais. Nesse fim de tarde, o jornal de Nasser Khan também não foi entregue. A falta de jornais continuou ao longo da semana, com Nastaran a acusar-me por ter ofendido as sensibilidades religiosas do ardina. Foi então que recebemos um aviso; vi-o nos degraus da frente e reconheci imediatamente a fotografia do ardina. Informava-nos do seu funeral e demais cerimónias fúnebres. No dia em que eu lhe fizera a minha encomenda, após terminar o seu giro de distribuição fora para casa e morrera acometido de uma síncope.

Passámos esse primeiro mês em Teerão em família, nas nossas casas. Mas com a aproximação da data em que Mahshid devia regressar a Inglaterra, Minu insistiu para que ela saísse, pelo menos para ver algumas das vistas da cidade. Mahshid só queria fazer essa visita turística o mais rapidamente possível. O pouco que vira do Irão naquela primeira visita pós-revolução não a tinha inspirado a desejar ver mais. Odiava o calor quase em todas as circunstâncias, mas era-lhe insuportável ter de o suportar vestida daquela maneira, pelo que preferia ficar a salvo do calor dentro de casa. Mas finalmente acabou por ceder e lá fomos nós visitar os palácios reais, agora abertos ao público.

Quando chegámos ao Sadreabad, um complexo formado por cinco palácios, lembrei-me das muitas noites de cólera por que passei ao observar os excessos do regime do xá. Houve uma ocasião em que estive prestes a lançar ao chão o primeiro-ministro Amir-Abbas naquela mesma propriedade. Na altura tinha treze anos e os meus pais haviam-me levado à minha primeira festa na corte real. Não me senti muito impressionada com as mesas repletas de ostras, caviar e todos esses pratos exóticos que não tinham qualquer significado na nossa era de hamburgers e batatas fritas. A família real estava sentada a ouvir os cantores de clubes nocturnos - eram os mais famosos que costumavam agraciar essas ocasiões - e eu juntara-me aos filhos dos ricos e famosos para brincar às escondidas.

Corria eu acaloradamente atrás do príncipe herdeiro, vários anos mais novo do que eu, quando contornei uma sebe e deparei com um homem gorducho que dizia ao príncipe que tivesse cuidado, enquanto agarrava o jornal que estivera a ler à luz de um dos candeeiros do jardim. Demasiado tarde, tentei deter os meus passos, mas só consegui ir contra o jornal cujas folhas voaram em todas as direcções, fazendo com que o primeiro-ministro ficasse a titubear sem saber bem o que dizer. Tristemente, o monarca que ele serviu durante treze anos deixou-o para trás, e viu a sua vida ceifada por uma bala do pelotão de fuzilamento.

Um ano mais tarde, estive fora desse mesmo palácio com a minha prima a observar a descolagem do helicóptero real. O polícia que mantinha a multidão afastada ordenou-nos que retomássemos o nosso caminho. Não estando acostumada a que ninguém se lhe dirigisse naqueles termos, Naz, a filha de um primo do xá, virou-se para ele e insultou-o de tudo e mais alguma coisa. Ele recompensou-a com uma estocada na cabeça com o bastão. Ela retribuiu-lhe contando o incidente aos nossos pais; o agente em questão foi afastado das suas funções e, muito plausivelmente, foi parar à cadeia. Era estranho ser-se uma criança com poderes para alterar, e até destruir, a vida de outros que não conheciam gente influente.

Recordava-me dos bons velhos tempos, ou dos maus velhos tempos, enquanto nos sentávamos no terraço do palácio do xá com um grupo de turistas que aguardava a próxima visita guiada. Um dos homens que esperava connosco perguntou a um pintor de idade por que motivo pintava o edificio. O homem lançou um rápido olhar em redor, certificando-se de que ospasdars não podiam ouvi-lo.

- O xá está de regresso, só estou a tornar o palácio mais apresentável para quando ele chegar. - Um grupo de pessoas que se encontravam suficientemente próximas para conseguir ouvir, começaram a aplaudir.

Tinham passado seis semanas. Mahshid regressou ao Reino Unido, e eu continuava sem me ter registado junto do Ministério dos Subornos. Em contrapartida, já tinha visto o interior de quase todas as repartições públicas do governo situadas na Avenida Vali- e-Asr, uma das quais, através de um telefonema de Minu, identificámos como sendo o Departamento da Comunicação Social Estrangeira do Ministério da Obstrução. Ao princípio nem sequer sabia como ir até à Vali-e-Asr, desconhecendo que era o novo nome da Avenida Palevi. Aquando da minha primeira visita pós-revolução tinha outro nome; estou em crer que chegou a chamar-se Avenida Khomeini, mas só por uma noite. As ruas mudavam de nome por dá cá aquela palha. Durante a guerra, as artérias da cidade recebiam o nome do último mártir que lá tivesse vivido, pelo que durante uma semana era a Rua Mártir Hassan Ali, para na seguinte passar a ser a Rua Mártir Mohammed Ali.

Corre uma anedota que diz que Raffers realizava uma visita à zona sul de Teerão, uma área pobre da cidade, quando avistou uma rua chamada Pimp Street. Indignado, exigiu que o nome fosse alterado até terminar a sua visita. Uma hora mais tarde voltou ao local e viu uma nova placa toponímica que dizia: "Rafsanjani, o antigopimp"'.

Chamem-lhe Vali-e-Asr ou Palevi, no que me dizia respeito, era o coração da cidade. Percorrer com o olhar a avenida ladeada por árvores que se estendem desde o centro até à baixa de Teerão, atravessando a zona elegante a norte de Teerão, até ao sopé das montanhas Elburz com os cumes cobertos de neve; nessa artéria é sempre Primavera, as pessoas são sempre livres e a Pérsia continua a ter o seu império. É majestosa.

Finalmente, descubro as instalações do Ministério da Obstrução no piso térreo de um dos edificios. O interior tinha um aspecto limpo, embora estivesse decorado com bastante mau gosto; nas paredes não se via coisa alguma, as mesas estavam em mau estado e o chão cheio de documentos abandonados pelos funcionários, que ficavam ofendidos se alguém lhes fizesse qualquer pedido que desse azo a terem de fazer algum trabalho. Quando entrei, ainda ia convencida de que encontraria argutos e dedicados soldados da revolução, gente que me destruiria - profissionalmente falando - se fizesse alguma asneira. Bem, de facto agiriam dessa maneira, isto é, se encontrasse alguém que me pudesse registar.

Minu acompanhava-me e tinha feito uma visita prévia no dia anterior, pelo que sabia a quem deveríamos dirigir-nos. Como é evidente, não se encontrava no seu posto de trabalho, o mesmo acontecendo com o chefe do departamento, embora a sua secretária estivesse presente. Minu ausentou-se enquanto esperávamos no gabinete desta pela chegada de alguém;

dez minutos mais tarde já tinha descoberto uma funcionária. Minu quase me puxou até ao

 

1 Palavra inglesa que significa "proxeneta, chulo". (N da T.)

 

gabinete de uma mulher cujo apelido, numa tradução livre, significava "Amiga do Lunático".

As duas mulheres simpatizaram imediatamente uma com a outra, começando logo a lamentar o declínio da qualidade dos serviços públicos. Minu, a irmã daquele mesmo Hamzeh que apresentara o meu passaporte há tantos anos, era uma antiga diplomata nomeada para trabalhar nos Estados Unidos e que se tinha demitido depois da revolução. Eu sorria maquinalmente, arreganhando os dentes como uma idiota chapada, enquanto Minu preenchia o impresso onde eu pedia uma acreditação de imprensa, e a sua nova amiga prometia dar já andamento ao processo, que estaria concluído dentro de duas semanas. Eu ainda não me apercebera de que para um funcionário público iraniano duas semanas queriam dizer "durante os próximos dois anos, salvo se eu conseguir encontrar uma maneira de não lhe dar andamento". Decorridas três semanas ainda não tinha recebido qualquer notícia do Ministério da Obstrução, mas isso não me impediu de escrever um artigo para o Independent, mau-grado as rigorosas advertências de Mis. Lunática, que me dissera que não me atrevesse a chegar a caneta a uma folha de papel até estar oficialmente acreditada. Comecei a ir amiudadas vezes às instalações do Ministério da Obstrução, na esperança de que ficassem tão fartos de me ver por ali que me dariam a acreditação só para me verem pelas costas. Foi o meu primeiro erro, porque foi precisamente durante uma dessas visitas que conheci o homem que mais tarde viria a ser o meu marido.

Antes de lhe ver o rosto, vi-lhe os sapatos. Eu estava sentada com os meus mentores do Ministério da Obstrução, os rapazes responsáveis pela secção da imprensa, que tinham de apor o seu selo de aprovação a tudo o que eu fizesse; há mais de uma hora que estava à espera de alguma indicação que me dissesse quando teria a minha acreditação. Eu queria participar numa conferência de imprensa que seria dada por alguns azerbeijaneses de visita ao país, mas as minhas hipóteses eram quase nulas na falta da acreditação de imprensa. A Ásia Central era o grande tópico do momento, com os meios de comunicação social em Inglaterra divididos sobre quem passaria a exercer mais influência, se o Irão ou a Turquia, nas repúblicas muçulmanas que haviam proclamado a sua independência recentemente.

O que vi a seguir foi um par de sapatos de verniz branco em mau estado, juntamente com umas peúgas brancas e um par de calças baratas de caqui. O que depois me despertou a atenção foram uns lábios parecidos com os do Mick Jagger, que rodeavam uns gigantescos dentes manchados presos a umas gengivas enegrecidas. "Mas que dentes tão grandes que tens, avozinha!", pensei, arreganhando os dentes para mim mesma. Posteriormente, vim a descobrir que ele interpretou esse sorriso como um convite a uma maior familiaridade:

Sempre me senti intrigada pelo motivo que levava algumas mulheres iranianas a mostrarem-se tão caras-de-pau em público.

Antes de o conhecer dei-lhe a alcunha de "Avozinha". As alcunhas eram a minha maneira de distinguir um Mohammed de outro. Entre os servidores da República Islâmica existe um número limitado de nomes para partilhar. Sempre que se queira confundir a telefonista de qualquer ministério, só temos de telefonar e pedir para falar com o senhor Mohammadi. Destes, geralmente, pode-se escolher entre uma dúzia com o nome de Mohammed Mohammadi, e um bom sortido de homens de apelido Mohammadi com o nome de Reza e Ali Akbar - embora este último dê a impressão de estar única e exclusivamente reservado aos ministros. O Ministério da Obstrução não era excepção a esta regra, os soldados de infantaria tinham tendência para se chamarem Mohammed, havendo um ou outro Ali ou Reza - ou ainda qualquer combinação destes. Os chefes preferiam nomes menos islâmicos, como por exemplo Said ou Faramarz.

A abundância do apelido Hashemi deve ter tido algo a ver com o facto de ser o nome de família do presidente, o que se reflectia na profusão de familiares colocados em lugares de poder e influência.

O Avozinha deu algumas instruções numa voz autoritária aos rapazes do Ministério da Obstrução, após o que concentrou a sua atenção na minha pessoa, apresentando-se como um dos "peritos" do departamento. Estendi-lhe a mão, mas arrepiei caminho ao ver a expressão de horror que se espalhou nos rostos dos meus dois mentores, o Rebotalho e o Apático. Que desgraça esquecer-me de que esta coisa do aperto de mão era considerada um "pecado vertical" (um pecado que se comete quando se está de pé), punível com a perda da nossa acreditação de imprensa - a qual eu ainda não possuía. Um pecado que eu cometeria vezes sem conta; uma pessoa sente-se tão constrangida quando se recusa a apertar a mão dos correspondentes estrangeiros que, inocentemente, a estende num gesto de amizade.

A minha tentativa de apertar a mão ao Avozinha foi puramente instintiva, mas ele encarou isso como se eu estivesse a atirar-me a ele descaradamente, não obstante eu ter afastado a mão imediatamente.

No dia seguinte telefonou-me para casa de Nasser Khan.

- Boa tarde. Miss Gharai?

Miss quem? - perguntei.

- Estou a falar com Miss Gharai, a correspondente do Independent? - inquiriu o Avozinha.

Embora o meu nome completo fosse Parichehre Mosteshar-Gharai, usava o nome de Cherry Mosteshar há tanto tempo que levei algum tempo a compreender que aquela Miss Gharai era efectivamente eu. No novo Irão, em que a diferença de classes fora supostamente eliminada, viria a concluir que era frequente as pessoas utilizarem o meu nome tribal Gharai em vez do meu apelido oficial, Mosteshar.

- Sim, sim, sou eu - confirmei, sentindo-me um pouco envergonhada.      

- Sou eu, Mohammed.

Que maravilha! Um nome que reduzia as probabilidades a somente vários milhões, pensei.

- Peço desculpa, mas não estou a identificá-lo - acrescentei. - Estou a ligar-lhe por causa da sua acreditação de imprensa - retorquiu ele numa voz murmurada. - Conhecemo-nos ontem. - Óptimo! Já foi aprovada? - perguntei.    

- Ainda não, estas coisas levam o seu tempo, tal como já lhe disseram. Mas esta noite há uma reunião muito interessante que pensei que talvez achasse útil - continuou ele.     

- Fantástico! Que género de reunião? - perguntei entusiasmada. - É privada, muito, muito privada, mas consegui arranjar-lhe um convite - disse ele um pouco presunçosamente, em minha opinião. - Pode ir? Aconselho-a a não faltar se quer tornar-se numa repórter famosa - acrescentou.

- Claro que vou. Qual é a morada?

- Esteja hoje à porta do ministério, às dezanove horas. Por favor, seja cuidadosa...

não fale disto a ninguém. Sabe que estou a correr um risco, você ainda não tem autorização para poder trabalhar como jornalista, pelo que não lhe é consentido falar com as pessoas que encontrará esta noite. Para si é uma oportunidade magnífica.    

Oh, meu Deus! Iam matar-me, ou então desapareceria sem deixar rasto. Mas por que razão é que desejariam fazer isso? Eu ainda não tinha feito nada de mal. Devem ter tido conhecimento do caso do meu pai e querem manter-me como refém como já haviam feito, na hipótese de ele regressar ao país. Não, isso não tinha dado resultado da última vez que o fizeram, e com certeza que saberiam que os jornais para que trabalho haveriam de protestar veementemente. Mas, e se eles me fizessem desaparecer? Quem é que viria a saber que fui atraída a uma cilada? A minha mãe saberia. Muito bem, que mais é que poderia acontecer de errado? As autoridades prender-me-iam por me encontrar com um desconhecido para fins imorais. Mas seriam obrigados a prendê-lo também.     

Concordei em me encontrar com o homem; depois de ter reflectido mais pormenorizadamente sobre o assunto, restava-me a alternativa de não aparecer. Durante o resto do dia fiquei preocupada com a perspectiva desse fim de tarde. Sem dúvida que necessitavam de jornalistas como eu; portanto, por que haveriam de me armar uma cilada? Talvez quisessem ter qualquer coisa sobre mim que lhes permitisse chantagear-me, obrigando-me a escrever artigos favoráveis ao regime, ou algo que pudessem utilizar mais tarde caso desejassem ver-se livres de mim. Às dezoito e trinta ajornalista levou a melhor à cobarde; chamei um táxi.

Uma das vantagens quando se sai na República Islâmica é as mulheres não terem de se arranjar muito. Bastava tapar a cabeça com um lenço, vestir o casaco e estávamos prontas para a festa. Nem sequer era preciso pôr maquilhagem.

A zona da Avenida Vali-e-Asr, onde o Ministério da Obstrução se encontrava instalado, era franqueada por lojas que vendiam artigos baratos e bijutaria provenientes do Ocidente:

mercadoria que se destinava em grande parte à classe média-baixa. Àquela hora de início da noite fervilhava de movimento, com famílias que passeavam ao longo dos amplos passeios como se estivessem nos Champs Elysées, com a única diferença de que as luzes dos estabelecimentos iluminavam rostos cansados e acabrunhados. Mohammed encontrava-se no meio de todo aquele movimento com um vestuário de mais mau gosto do que no dia anterior. Vestia umas calças cinzentas largas, o que complementava com uma camisa às riscas, um padrão semelhante ao da loja das espreguiçadeiras de praia, absolutamente inapropriada para uma missão secreta. Trocámos um aperto de mão e conduziu-me a um antiquíssimo automóvel vermelho de marca desconhecida que se mantinha de pé graças a muitas camadas de ferrugem. Tive de esperar que conseguisse abrir por dentro a porta do passageiro da frente servindo-se de       uma chave de parafusos.

Meia hora mais tarde atravessava um orificio num muro coberto por um cobertor que dava acesso a um pátio onde se viam vários brinquedos espalhados. As roupas penduradas numa corda a toda a largura do pátio pouco mais eram do que trapos. Haviam quatro crianças descalças em redor de uma pequena bacia no meio daquele espaço, com cabelos de um amarelo-avermelhado-claro cujas idades iam dos dois aos seis anos; olhavam mesmerizadas para os recém-chegados, como se tivéssemos vindo de Marte. Aquela era a residência de um iraniano, que em libanês era chamado Ani e da sua segunda mulher, Gisu. Esta iraniana não era a mãe das crianças, deu-nos as boas-vindas. Eu tinha-a visto de relance aquando da primeira visita que fiz ao Ministério da Obstrução, onde ela também trabalhava, e a sua presença naquela noite contribuiu bastante para o meu bem- estar.

O pouco que eu conseguia ver dela, coberta pelo chador, era espantoso. Tinha uns olhos verdes enormes, emoldurados por espessas e longas pestanas de um negro asa de corvo, encimados por sobrancelhas ligeiramente aclaradas. Nariz pequeno e perfeito e lábios      que pareciam ter servido de modelo a uma boa marca de bâton. Senti ciúmes: desejava sentir-me jovem e fascinante mesmo debaixo do véu.

A casa era um longo corredor com três quartos. À esquerda havia uma cozinha e um quarto nas traseiras e do lado contrário via-se uma sala comprida onde estavam sentados os outros convidados. Do lado de fora da porta havia um grande número de sapatos a que juntámos os nossos. Os muçulmanos não permitem que ninguém entre calçado em suas casas, com receio de que o soalho onde fazem as suas orações fique contaminado. Na sala principal não havia mobiliário, pelo que toda a gente se sentava no chão em cima de carpetes persas de preço elevado, que achei surpreendente encontrar ali. No extremo mais afastado da sala via-se uma pilha de colchões e roupa de cama, que seriam estendidos ao fim do dia,    na altura em que a sala seria convertida no quarto onde a família dormia. Os revolucionários muçulmanos preferem esta maneira de viver, mesmo que tenham dinheiro para custear tudo.    

O que é característico das culturas ocidentais, tal como mobilias - é o símbolo da sua religiosidade e cultura.  

Juntei-me ao círculo de mulheres sentadas à volta da sofreh (toalha de mesa), enquanto Gisu, de dezanove anos, trazia chá e fruta. As mulheres iranianas têm propensão para manterem o seu apelido de solteiras e é frequente serem apresentadas como "Miss Qomi, mulher do senhor Naghash", pelo que quando a conheci no escritório não fazia a mínima ideia de quem seria o seu marido.

O chador que ela usava estava preso a um lenço de cabeça fortemente apertado em redor do rosto, e por baixo usava um casaco comprido. Naquela noite, não havia a mínima       hipótese de alguém ver um centímetro que fosse da sua carne. Também se encontravam presentes outras três mulheres, uma libanesa e duas iranianas mais velhas. Os seis homens sentavam-se na outra extremidade da sala, próximos dos colchões. Três deles trabalhavam no Ministério da Obstrução; quanto aos outros, não fazia a mais pequena ideia das suas identidades. Os do Ministério da Obstrução usavam todos uns fatos mal arranjados e as horríveis meias brancas. Os dois desconhecidos envergavam fardas de faxina de tom bege, a vestimenta de eleição dos pasdars quando não estavam de serviço.   

As mulheres não escondiam a ansiedade com que desejavam que eu falasse sobre a Grã-Bretanha, querendo saber a opinião dos ingleses sobre o Irão. Todas tinham vivido no Líbano, e uma "fora treinada" na Síria, mas isso não as impedia de se sentirem fascinadas pelo Ocidente, especialmente no que dizia respeito à facilidade com que se podia obter o divórcio. Deleitavam-se com as histórias de mulheres que haviam sido absolvidas do assassínio dos maridos porque estes as tinham maltratado. Devem ter ouvido falar do caso de Mrs. Bobbit2; tenho a certeza de que se regozijaram.

Quando a refeição foi servida, os homens sentaram-se em redor da sofreh e a conversa generalizou-se bastante mais. Distribuíram-se à minha esquerda e direita, altura em que Mohammed me revelou o verdadeiro nome do nosso anfitrião. Senti que o sangue me gelava

 

Alusão a Lorena Bobbit, cidadã norte-americana que decepou o pénis do marido. (N da T.)

 

nas veias: era um nome imediatamente reconhecivel por quem estivesse ao corrente das actividades terroristas do Médio Oriente.

Eu tinha acreditado em Yasser Arafat quando ele alegou que o terrorismo era a única maneira de o povo palestiniano poder chamar a atenção do mundo para a sua causa. Chorei quando li o livro My People Shall Live' de Leila Khaled, membro da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Cheguei ao ponto de chamar George Habash ao meu gato, que era o nome do chefe da FPLP. Mas na presença deste homem senti um misto de terror e aversão. Pessoas cheias de vida, que tinham respirado, amado e comido, que tinham feito todas as outras coisas que comprovavam o facto de estarem vivas, haviam sido ceifadas a determinada altura por aquele homem sentado perto de mim, aquele libanês que combate pela liberdade e a cuja mesa eu estava sentada. Limitara-se a erguer a mão e a existência esvaíra-se desses corpos enquanto ele era espectador. Senti-me contaminada, como se a morte fosse poeira sobre aquele homem e pudesse passar para a minha alma.

Mas eu era uma jornalista e aquele era o género de pessoas que faziam a História, e por conseguinte limitei-me a continuar sentada e a ouvi-lo a explicar a luta internacional em que o islamismo se empenhava. Deixei-o tentar convencer-me de que a sua revolução libertaria a humanidade ao subjugar os povos ao despotismo do Islão. Ele admitia que o movimento se encontrava na "fase inicial", que era o braço armado da reacção política contra aquilo que o Terceiro Mundo entendiacomo imperialismo ocidental, ao invés de ser um desejo espontâneo por um mundo dominado pelo islamismo.

- O Islão é uma ferramenta, a exemplo do que sucedeu com o comunismo antes de nós. Mas é a melhor ferramenta e a única que pode triunfar, porque tem por fumdamento a palavra de Alá - insistia o homem.

Possuía um encanto natural que quase ultrapassou a repulsa que me inspirava ao pensar nas acções que teria cometido. Eu estava a partilhar o pão com um assassino bem-parecido e articulado, um homem de convicções apaixonadas que matava a sangue-frio. Num outro ambiente, eu teria discutido aquele assunto com ele durante toda a noite, mas se bem que a conversa fosse mantida em inglês, não fui capaz de evitar pensar que toda aquela encenação poderia ser uma armadilha destinada a fazer-me exprimir as minhas opiniões, razão por que falei muito pouco, tentando resistir ao desafio que seria argumentar sobre a essência da sua filosofia. No que me dizia respeito, a liberdade não significava dar às pessoas o direito de concordarem com qualquer sistema que lhes fosse imposto.

 

À letra, "O Meu Povo Viverá”. (N da T.)

 

Quando começámos a comer, já sentia um profumdo mal-estar. A última vez em que tinha passado toda a noite sentada no chão fora na universidade há catorze anos, quando o meu corpo ainda era leve e jovem. Agora estava com cãibras e começara a sentir dores nas costas. Apesar de haver talheres, os outros convidados serviam-se de bocados de pão para apanharem a comida que tinham nos pratos. Eu nunca tinha visto ninguém a comer com as mãos, mas devo confessar que não me desagradou; havia algo de reconfortantemente primitivo naquela maneira de comer. Todos tinham lavado as mãos antes de se sentarem à volta da toalha de mesa, e os alimentos nunca entravam em contacto com a pele; mas quando tentei seguir o exemplo dos demais, constatei que a gordura me escorria até aos cotovelos.

Os homens dominavam a conversa, discutindo temas elevados sobre filosofia e citando grandes eruditos muçulmanos de que eu nunca ouvira falar. Como era costume, utilizavam     "palavras grandiloquentes", pelo que pouco tempo depois já tinha perdido o fio à meada. Depois de Gisu ter levantado a louça, ajudada pela irmã mais nova que se mantivera escondida na cozinha, o nosso anfitrião Ani trouxe o necessário para se fumar ópio. Classifiquem-me de antiquada, mas a realidade é que sinto aversão por todos os estupefacientes que provoquem dependência.

Nós, as senhoras, retirámo-nos para a segurança da cozinha, e Gisu começou a contar-me a história da sua vida enquanto lavava a louça. Era filha de um funcionário bancário de categoria inferior. A mãe usara o véu, mas ninguém da sua geração tinha adoptado o vestuário islâmico - isto é, até ter sido apresentada a Ani por uma das suas colegas do ministério. Ele proporcionara-lhe uma posição social no Irão, na qualidade de mulher de um revolucionário famoso, e Gisu não desperdiçara a oportunidade, deixando-se persuadir de que o chador era um sinal de desafio político e não uma prova de submissão do sexo feminino.

- Ao princípio foi bom. A troco de ter aprendido tanta coisa, considerei que o chador era o preço que teria de pagar. Ani alargou as minhas perspectivas. deu-me livros para ler que mudaram a minha maneira de ser. Mas quanto mais vejo, mais quero ver e aceito cada vez menos as coisas sem uma justificação - disse-me ela. - Adoro o meu marido e quero obedecer-lhe, mas muitas vezes desejava que ele fosse um pouco diferente. Queria que ele partilhasse a sua vida comigo, mas desde que nos casámos mantém-me à margem. Ele ensina-me, mas nem sempre partilhamos. Por vezes sinto que sou uma mera criada, embora saiba que a obrigação de qualquer mulher é servir e honrar o marido. Os árabes são tão diferentes de nós, já reparou nisso? Bem vê, são homens muito estritos - confiou-me ela num desabafo.

Para minha vergonha, fiz um juízo de valores um tanto brusco quanto à rapariga, sem me ter apercebido ainda das pressões que mantêm as mulheres prisioneiras no seu papel de esposas e mães, aspectos que se sobrepõem às suas necessidades individuais. Não entendia por que motivo é que ela não dizia simplesmente "Basta! " ou optava por se separar do marido.

Tínhamos começado a analisar a dificil situação das muçulmanas quando Mohammed anunciou que estava na hora de irmos para casa. Pedi licença para ir à casa de banho antes de sairmos. Casa de banho! Fui levada a uma barraca ao fundo do pátio. Para meu grande horror, era um desses buracos abertos no solo. Os iranianos tinham voltado a adoptar cada vez mais aquela espécie de retrete desde a revolução. Sempre receei desequilibrar-me na extremidade do círculo e cair no buraco, e tinha de levantar as saias para não ficar toda salpicada.

Quando saí da retrete já passava bastante das onze da noite, o que significava que os bloqueios nas ruas já tinham sido activados. Da primeira vez que nos mandaram parar, senti que o meu coração parou de bater por instantes, mas Mohammed apresentou um cartão ao pasdar e pudemos prosseguir viagem depois de uma continência. Fiquei surpreendida ao ver que tratavam um funcionário público com tanto respeito, o que lhe dei a saber.

- É um cartão que guardei dos meus tempos de guerra - explicou- me o Avozinha. No exército, fui oficial da Fundação do Pensamento Islâmico. Tinha por fumção ir à frente de combate, onde dissertava sobre as razões por que os combatentes tinham de lutar na guerra.

Seguiu-se a história da sua vida. Era o sexto de nove filhos e três filhas, nascido no seio de uma família "nobre" da tribo nómada dos Qashqai, oriunda da região meridional do Irão. Nasceu numa aldeia nos arrabaldes da capital da região sul, Shiraz, embora se tivesse mudado para a cidade aos dezasseis anos. O homem sentado ao meu lado não aparentava ter mais de vinte e sete anos, apesar de eú lhe ter dado a alcunha de Avozinha; portanto, devia ter vindo para a grande cidade bastante depois do despontar do advento islâmico.

A doença levara-lhe dois irmãos - posteriormente vim a saber que eram atrasados mentais. Um outro irmão morreu na revolução e um outro na guerra contra o Iraque. Ele e o primo Apático, um dos meus mentores no Ministério da Obstrução que também perdeu um irmão na guerra, tinham-se casado com as mulheres dos irmãos falecidos. Mohammed tinha apenas dezanove anos quando assumiu a responsabilidade de uma mulher dez anos mais velha do que ele e dos dois filhos do irmão. Confiou-me que nunca desejara ter filhos, sentindo que os dois que herdara eram mais do que o suficiente.

- Detestava que eles me chamassem pai. Sempre que saíamos, fingia que não estava com eles - desabafou.

Com uma intimidade desconcertante, contou-me que a mulher o tinha ludibriado engravidando. Tentou divorciar-se dela por o ter atraiçoado, mas persuadiram-no de que fora um acidente, e que ela jamais permitiria que a situação voltasse a repetir-se. Dois anos depois do nascimento de uma filha voltou a engravidar, o que levou ambos novamente ao tribunal de divórcios. Na noite anterior à conclusão do divórcio, a mulher fora a casa da família dele   com a filha de tenra idade. A determinação de Mohammed ficou abalada ao ver lágrimas nos olhos da garotinha.

Um ano mais tarde levou a família a dar um passeio pelas montanhas por ocasião do aniversário da filha. Não me disse onde é que ele e a mulher se encontravam quando a garotinha correu para uma estrada de montanha e se atravessou à frente de um camião. Disse-me que ainda lhe parecia ouvir o barulho do impacto quando o veículo a atropelou. A filha morrera-lhe nos braços antes de terem tempo de chegar ao hospital. Senti muita pena dele.

- Naquela altura não havia nada que me impedisse de me divorciar da mulher do meu irmão - acrescentou com azedume.

- E a respeito dos seus filhos? - perguntei.

- A Fundação para os Máz-bres olha pelos filhos do meu irmão, e dou ao meu filho tudo o que ganho. Vivem na minha casa em Shiraz, não têm quaisquer dificuldades.

Queria perguntar-lhe onde é que vivia, mas contive a língua; aquele homem desconhecido já se tinha dado a demasiadas familiaridades para o meu gosto. Naquela altura, já concluíra que era bastante feio, apesar dos grandes olhos castanhos. As suas feições assemelhavam- se mais às de um mongol do que às dos iranianos, para além de ser mais baixo do que eu gostava num homem.

Entretanto, Mohammed começara a abordar o assunto da minha acreditação de imprensa. Não me coibi de lhe dar a saber o quão ineficiente achava os serviços do ministério: como era possível que fossem precisos mais de dois dias para investigar os antecedentes de alguém? Eu já havia sido informada de que a segurança não encontrara nada a apontar a meu respeito.

- Você não compreende o nosso sistema - disse o meu novo confidente. - As pessoas com quem trata muito provavelmente ganham menos num ano do que aquilo que você recebe por um único artigo. Não os pode censurar por pensarem que têm direito a um pouco mais da sua parte - explicou-me ele.

- Mas esse é o trabalho deles. Não lhes estou a pedir que façam mais do que aquilo para que são pagos - argumentei.

- Essa acreditação, para si, é uma coisa muito valiosa. Dar-lhe-á acesso a todos os ministros, permitir-lhe-á pedir-lhes favores, o que quer dizer que vale muito mais do que os dez mil tomans que homens como Ali auferem - acrescentou.

Tinha razão. À taxa de câmbio actual, eu ganharia seis vezes mais do que o salário mensal de Ali por um artigo médio a ser publicado num jornal de domingo, e sensivelmente quatro vezes mais o seu salário por mil palavras para o Independent. Mohammed acrescentou que não estava a dizer-me para oferecer um suborno de modo a apressar o meu assunto.

- Todavia, a oferta de um televisor a cores seria um gesto simpático - aconselhou-me ele.

Fiquei acordada toda a noite, debatendo comigo mesma aquele assunto. Sim, de facto estávamos a falar de uma subsistência de miséria. Por que é que não haveriam de ganhar uns dinheiros suplementares? Fosse como fosse, eram verbas que poderiam ser levadas à conta de despesas. Contudo, era errado; a corrupção era uma das principais razões que levaram à sublevação do povo, as pessoas tinham morrido por isso na revolução. Não teríamos essa obrigação para com os jovens que haviam oferecido as suas vidas em nome dos seus princípios? Quando a madrugada começou a despontar, já decidira que não me juntaria ao mundo dos subornos e da corrupção, não somente por causa dos meus ideais, mas também porque não fazia a mais vaga ideia de como agir numa situação daquelas. Não, seria preferível deixar as práticas censuráveis para quem tinha estômago para tais acções.

Desde o início que me senti fascinada pelo presidente Rafsanjani, havendo ocasiões em que sentia admiração pelo homem, enquanto noutras o odiava. Mas o que era certo e sabido é que, no que me dizia respeito, ele era o melhor de entre um bando pouco inspirador.

Vi-o em acção pela primeira vez numa cerimónia de entrega de prémios na Universidade de Teerão. Num discurso em que encorajava o ensino, mormente o estudo das Ciências, Raffers desafiava aqueles fundamentalistas que alegavam que não havia lugar para as Ciências modernas na República Islâmica pelo facto de ser uma matéria que não vinha mencionada no Corão, o que significava não ser necessária.

Depois de ter dado a conhecer a sua perspectiva, chegou a vez de um grupo de oradores do sexo masculino receberem prémios pela excelência do seu trabalho. Quando Raffers estendeu a mão ao primeiro docente universitário, o homem agarrou-a em vez de a apertar e baixou-se para a beijar. O presidente afastou a mão com rapidez, colocando-a firmemente atrás das costas num gesto que indicava claramente que aquele beija-mão não era necessário. Mas, como se aquilo nunca tivesse sucedido, o galardoado seguinte também se baixou fazendo menção de lhe beijar a mão. Todos os oradores tentaram concretizar o ritual do beija-mão. Deixava-me perplexa ver até que ponto a subserviência perante a autoridade se encontrava arraigada em homens inteligentes que se comportavam com tamanha falta de dignidade pessoal.

O espectáculo de homens adultos a quererem agarrar-se às mãos de Raffers trouxe-me à mente os tempos de outrora sob o regime do xá, quando a minha mãe nos ensinava a ser respeitadoras sem nunca sermos subservientes. Certa ocasião fomos ao casamento de um primo em segundo grau, no qual o xá e a imperatriz Farah estariam presentes. A minha mãe ensinou-me a mim e a Pari a fazer uma vénia quando fôssemos apresentadas ao casal real; somente um passo rápido à retaguarda, com um pé, ao mesmo tempo que inclinávamos a cabeça ligeiramente para a frente. A minha vénia foi um desastre, quase derrubei a "Luz dos Arianos", mas a minha mãe e Pari executaram as suas com toda a dignidade. O resto dos presentes roçaram o nariz pela carpete, nos seus esforços para tentarem mostrar-se os mais deferentes. Agora, os iranianos voltavam a assumir a mesma atitude, baixando-se com subserviência defronte de um dirigente, até que este começasse a acreditar na sua importância excessivamente sobrevalorizada.

Ali Khamenei, o actual Chefe Espiritual, agia de maneira bastante diversa da de Raffers. Ao fim e ao cabo, era preciso não esquecer que o homem era o sucessor de Khomeini e, aos olhos de muitos muçulmanos comuns, era o homem mais sagrado à face da Terra. Numa das suas frequentes viagens às províncias, os habitantes locais espalharam pétalas de flores pelas ruas à frente do seu Mercedes. Ao fim de cada dia formavam-se em fila para serem abençoados, altura em que os homens lhe beijavam a mão sem qualquer traço de vergonha. Quando chegava a vez das mulheres se abeirarem de Khamenei, que para algumas delas se tornara numa espécie de modelo de capa de revista (embora noutros aspectos fossem absolutamente normais), os dedos longos e de pele pálida da sua única mão boa - a outra fora estraçalhada por uma bomba dos terroristas - eram cobertos por um pano branco. Enquanto eu observava fascinada, uma mulher entregou qualquer coisa ao ayatollah e este levou-a à boca e chupou-a, após o que a cuspiu para a mão dela. No dia seguinte, um artigo publicado em todos os jornais explicava que a mulher oferecera um doce ao ayatollah e lhe pedira que o consagrasse.

Gisu prometera-me uma acreditação provisória que me permitiria assistir a uma das audiências em massa dadas por Khamenei, e cumprira a sua palavra. Era um desses muitos dias especiais que começaram a ter lugar depois da revolução e que são impossíveis de guardar na memória - o Dia de Apoio à Causa Palestiniana, o Dia da Mulher, o Dia da Mãe, o Dia da Grande Tia Duas Vezes Destituída, o Dia da Defesa Gloriosa, o Dia dos pasdars, o Dia de Nada a Celebrar, e assim por diante. Este, tanto quanto me recordo, era algo parecido com o Dia da Solidariedade para com o Terceiro Mundo, uma ocasião enjeitada por Raffers que, como eu, se recusava a aceitar que a Pérsia se juntara a esse grupo de países, já que há treze anos apenas estivera à beira de se juntar aos Países Desenvolvidos.

Os convidados tinham sido transportados em massa de avião por nações amigas, começando a convergir todos para Bait-al-Rahbar, a Casa do Dirigente, de onde o falecido Imã Khomeini tinha proclamado tantos dos seus éditos. Fica semioculta num labirinto de becos e ruas secundárias, o que serve para a proteger de qualquer ataque por terra. Os jornalistas provenientes do Terceiro Mundo reuniram-se aos seus congéneres locais durante o trajecto de dez minutos de autocarro pela rua do Hotel Laleh. Eu era a única mulher nesse autocarro pois Gisu fora para o local da cerimónia pelos seus próprios meios. Não constituía pecado sentar-me ao lado do "nosso irmão, jornalista muçulmano" oriundo do Paquistão, dado que os representantes masculinos vindos do Ministério da Obstrução se mantinham perto de nós embrenhados numa conversa. Mas depois de o autocarro ter parado e nos aproximarmos da casa "a Fragrância de Khamenei", expressão por que era conhecido o sucessor do grande revolucionário, mandaram-me dar a volta para entrar pela porta reservada às mulheres, onde Gisu aguardava.

Era um desses eventos a que se assistia usando apenas o essencial - não eram permitidos relógios, anéis, blocos de apontamentos, canetas, etc. Enquanto nos encaminhávamos para a galeria das mulheres, ainda relativamente deserta, Gisu começou a falar mal das chefias, presentes e passadas: uma actividade perigosa estando-se tão perto do poder central. Estaria ela a expressar os seus verdadeiros sentimentos, ou estaria a tentar fazer-me cair numa cilada para me incriminar a mim mesma? Estes receios possivelmente permanecerão para sempre e dividirão sempre o povo iraniano. Limitei-me a ouvi-la sem expressar as minhas opiniões.

Ao fundo do amplo recinto havia uma galeria destinada às mulheres, situada acima das fileiras de homens devotos que se mantinham de gatas no chão enquanto aguardavam a chegada do seu chefe espiritual ao palco enorme à frente e acima deles. Eu e as minhas companheiras de sexo sentámo-nos mesmo à frente; uma grade de aspecto pouco resistente era tudo o que se interpunha entre nós e a queda para os braços dos nossos irmãos mais abaixo.

Os homens já se encontravam presentes, eram às centenas, os iranianos à esquerda, os que tinham vindo do Paquistão e do Afeganistão situados à direita, enquanto o centro fora reservado a toda uma variedade de nacionalidades muçulmanas. Era ao centro que se encontravam os libaneses, cujos chefes incitavam o seu rebanho de forma a ficarem num estado frenético de devoção enquanto estes batiam no peito a um ritmo cadenciado e hipnótico, entoando: Allah o Akbar Khomeini Rahbar - "Deus é grande, Khomeini é o chefe".

Subitamente ouviram-se milhares de homens que entoavam cânticos em uníssono entre o som cavo dos punhos cerrados que batiam no peito. Marg Bar America ("Morte à América do Norte"), mais sons cavos, Marg Bar Israel, som cavo, Allah o Akbar, e outros sons cavos e mais cânticos correspondentes.

A galeria começava a encher-se com a entrada de um grupo de pelo menos setecentas mulheres encabeçadas por uma bastante corpulenta; todas elas riam à socapa enquanto entoavam os seus cânticos por baixo da indumentária que caracterizava o hejab do subcontinente. As cabeças estavam enfaixadas com várias camadas de lenços (que em tempos eram de cores garridas) com os padrões populares na Índia e no Paquistão; os chadors eram de tecidos multicoloridos e soltos, que usavam por cima de várias camisolas e blusas.

Levanta-te - ordenou-me a chefe.

- Desculpe, como disse? - perguntei pestanejando.

- Estes lugares estão reservados para o meu grupo - rosnou a mulher enquanto as suas senhoras me rodeavam, qual enxame de abelhas.

- Não estou a ver nada que indique isso - repliquei.

- Não faças caso dela - aconselhou-me Gisu acenando com um cartão mesmo à frente da cara da mulher.

Continuámos firmemente sentadas a olhar em frente enquanto a mulher dava largas ao seu descontentamento e o seu clã de mulheres se amontoavam umas em cima das outras para conseguirem uma panorâmica de grande plano do seu grandioso dirigente espiritual.

Acontece que a línguafarsi tem uma letra zeh que os nossos irmãos e irmãs do subcontinente indiano não conseguem rolar com a língua, pelo que a substituem pelo somjeh. Zendeh significa "estar vivo" emfarsi, enquanto umajendeh é uma prostituta. Quando as massas de fiéis começaram a entoar Khomeini zendeh ast - "Khomeini está vivo" -, as mulheres que se sentavam em cima das minhas pernas e mãos, assim como sobre qualquer superfície que não estivesse ocupada, entoavam Khomeáni jendeh ast. Era um trocadilho muito infeliz e alguém deveria ter tido a caridade de advertir as pobres mulheres.

Reflectia eu naquele incidente quando alguém anunciou num timbre de voz sonante:

- A Fragrância de Khomeini chegou. - Abriu-se uma porta no palco dando entrada ao Chefe da Revolução. Enquanto a multidão se punha pressurosamente de pé, as mulheres inclinaram-se para a frente para poderem olhar mais de perto, esmagando-me o peito contra o corrimão do gradeamento da galeria. Durante uns dois segundos fiquei incapaz de respirar, sentindo o meu tórax prestes a rebentar, mas à medida que o pânico me invadia, a mulher que fazia pressão sobre as minhas costas deslocou-se o suficiente e pude então libertar um braço e dar-lhe uma cotovelada, assim como à suas "irmãs", empurrando-as o suficiente para o lado de forma a conseguir respirar de novo.

Sentia-me enraivecida com aquelas megeras, o que não me levava a nada, mas de súbito elas sentaram-se quando o homem, em toda a sua grandiosidade, fez um gesto que indicava estar pronto para começar a falar. Tentei sentar-me, mas constatei que a cabeça de uma mu lher estava onde o meu traseiro deveria supostamente estar. Não havia um único centímetro onde eu coubesse, da mesma maneira que não havia espaço nenhum que me permitisse escapar-me dali.

Consequentemente, a única alternativa que me restava era permanecer de pé, reflectindo no contraste existente entre a calma que desce sobre os que esperam no exterior do Vaticano pela oportunidade de olharem, ainda que fugazmente, para o Papa, e o que os nossos queridos chefes espirituais inspiravam. Pouco tempo depois as minhas reflexões foram interrompidas pelas minhas "irmãs" que me gritavam para que me afastasse da sua frente de molde a poderem ver o seu Rahbar. Tinham-me moído literalmente, estava cheia de nódoas negras, sentia-me cansada, entristecida e muito irritada; é com embaraço que sou forçada a admitir que a minha linguagem não foi nada religiosa quando lhes perguntei como é que sugeriam que eu realizasse aquele verdadeiro milagre.

Nós, os iranianos, somos uma raça espiritual e não existe nada que possa retirar da nossa alma o instinto pelo sagrado. Até aqueles que nunca se levantaram ao amanhecer para efectuarem as orações matinais jamais sonhariam em passar por um hospital sem pedirem a Alá que ajudasse os doentes. Nunca liguei a ignição do meu carro sem dizer antes "Em nome de Alá". Invoco sempre o nome do Imã Ali para que me ajude quando tento erguer qualquer coisa pesada, acrescentando sempre a saudação Alyeh sal. aam depois do nome do Profeta Maomé (AS). Estas coisas estão profundamente enraizadas no nosso íntimo, sendo tão culturais quanto religiosas, e certamente que ficaríamos mais empobrecidos se as perdêssemos.

Sinto grande carinho pelos rituais religiosos; a peregrinação até ao santuário do Imã Reza enche-me de alegria, e em todos os aniversários das mortes de Hassan e Hussein, filhos do Imã Ali, vêm-me as lágrimas aos olhos. Os muçulmanos xiitas acreditam que o Imã Ali, primo e genro do próprio Profeta, deveria ter sucedido directamente a este, em vez de ter sido meramente o quarto imã. Ali e Hassan foram assassinados, e Hussein e os seus seguidores foram chacinados no campo de batalha em Karbala.

Um dos rituais por que sinto mais carinho, bastante mais do que por qualquer outro, é a cerimónia de culinária do samanu anual, e sempre que possível tento estar no Irão nessa altura. Quando era adolescente, ansiosa por me encontrar no meio da vida empolgante de Teerão, odiava os nossos fins-de-semana passados na casa de Verão da Maman Joon na encosta do monte Damavand, mas eventualmente acabei por adorar essas estadias. Era o mais próximo, na Terra, que nos podíamos encontrar do Jardim do Paraíso; era um lugar onde reinava uma quietude absoluta e o ar fresco era abundante, e também onde todos os frutos que mais nos apetecessem pendiam das árvores, cujas ramagens formavam um dossel que cobria aquele mundo de isolamento.

No bagh, ou jardins, os idosos da família e os seus convidados de fim-de-semana reuniam-se debaixo de um toldo montado no meio do jardim a falar de vinhos, mulheres e canções. Os alimentos e o sharbat, uma bebida doce geralmente preparada com sumo de frutos, eram tão frescos como o ar. Era sempre servido um almoço abundante e variado, e depois aqueles que desejassem passar pelas brasas podiam fazê-lo em camas cobertas por mosquiteiros colocadas debaixo das árvores junto de um riacho cuja água vinha de uma nascente na montanha e atravessava todos os jardins na encosta da montanha.

Quando se saía dos jardins percorrendo uma estrada de montanha, encontrávamo-nos de súbito nos campos estéreis que iam dar ao sopé de vários cumes de altura inferior que permitiam o acesso a Damavand. A menos de cem metros do perímetro dos jardins Pessian existe um cemitério no meio do campo. Nesses tempos da minha juventude, passava a hora da sesta a subir para este cemitério onde as pedras tumulares tinham retratos dos jovens tirados antes de ter chegado a hora final.

Mas quando aí regressei treze anos depois da revolução, constatei que Damavand se tinha transformado num local inteiramente diferente. A calma do Sabat - a sexta-feira nos países de fé muçulmana - era perturbada pelo som elevado que saía do altifalante instalado na mesquita da aldeia, de molde a que os crentes não pudessem escapar ao sermão do molá.

O cemitério crescera dez vezes mais devido aos corpos dos mártires que o alargavam até a escassos metros do reino da Maman Joon. Teimosamente, os habitantes da aldeia insistiam

em servir-se da zona inferior dos jardins como atalho, numa atitude pouco convincente de desafio à família que durante várias gerações dominara as suas vidas:

Meses depois do início da revolução, o jardineiro da Maman Joon, que trabalhava para ela há já vinte anos, fez uma tentativa de chantageá-la para que lhe oferecesse uma horta num terreno mais abaixo, ameaçando expô-la como inimiga da revolução. Nessa altura já com mais de oitenta anos de idade, a Maman Joon expulsara-o e àqueles que o acompanhavam nessa noite, dizendo-lhes que fizessem o seu pior. Foi uma situação bastante aterradora:

ficámos agachados com medo dentro da casa de Verão enquanto os guardas revolucionários e os habitantes da aldeia, gente que tinha trabalhado para nós desde a juventude da minha avó e até mesmo antes, viraram-se contra nós com a finalidade de se apossarem da nossa horta. A minha mãe e a Maman Joon fizeram frente às hordas de invasores, enquanto o tio Pessian e eu nos escondíamos. Pouco depois a multidão começou a dispersar e no dia seguinte contratámos um novo jardineiro.

Nove anos mais tarde, o episódio foi esquecido e perdoado, e Mashed- Ali, o jardineiro que tão determinado se mostrara em expulsar-nos dali para fora, estava de regresso para ajudar no ritual de cozinhar o samanu, um doce espesso feito a partir de trigo germinado e nozes. Comprara uma horta mais modesta numa área montanhosa mais abaixo, compra que só foi possível com a ajuda da minha avó. Actualmente os seus filhos seguiam carreiras profissionais em Teerão e as filhas tinham sido casadas aos treze anos com mancebos da aldeia. A primeira mulher do homem morreu e aos sessenta e três anos de idade voltou a casar, contraindo matrimónio com uma mulher trinta e cinco anos mais nova do que ele - não é todos os dias que surge a qualquer rapariga a oportunidade de desposar um marido que possui a sua própria horta.

Há já algumas semanas que as minhas pernas e costas estavam a dar-me grandes preocupações, e quando chegou a altura de fazermos a viagem de uma hora até Damavand mal conseguia caminhar sem a ajuda de alguém. A causa do meu estado fisico fora atribuída a uma situação de tensão, tendo-me sido prescrito um fim-de-semana afastada da grande cidade. Nesse mesmo fim-de-semana a maior parte da família reuniu-se em Damavand para a cerimónia.

Este ritual tivera início quando a Maman Joon fez um pacto com Deus há mais de sessenta anos. Depois do nascimento da tia Goldie, a Maman Joon não tinha conseguido voltar a engravidar, situação que se prolongou por mais de seis anos. Ainda não dera à luz um herdeiro varão e desesperava por ter mais filhos, o que a levou a fazer esse pacto. Caso Deus lhe concedesse mais filhos, fez a promessa de que todos os anos cozinharia aquele doce em homenagem à filha do Profeta, após o que o distribuiria entre os pobres que passavam fome. Depois disso teve mais três filhos, embora nenhum se mostrasse disposto a dar continuidade a essa tradição que tanto tempo consumia.

O trigo começara a germinar no dia anterior e as mulheres da aldeia tinham aparecido para ajudar a liquefazer os ingredientes, enquanto os seus maridos cavavam um fosso em cima do qual seria colocado um caldeirão gigantesco onde seria cozinhado o samanu. Ao amanhecer de sexta-feira todos os preparativos tinham sido feitos; a fogueira já fora acesa no fosso e o caldeirão estava em cima das chamas cheio com o preparado. À hora do almoço os ingredientes já ferviam, enquanto os convidados chegavam com pistácios e demais frutos secos que seriam adicionados à mistura, na esperança de que Deus também lhes concedesse os seus desejos. Todos mexíamos à vez a mistura com colheres de pau do tamanho de uma pessoa, enquanto proferíamos os nossos desejos de saúde e abastança. A Maman Joon desejou que eu finalmente encontrasse marido; por minha vez, desejei ser a vencedora do prémio Jornalista do Ano. Pelos vistos ela tinha mais influência do que eu junto do Todo-Poderoso.

Entretanto, os novos residentes da casa do jardineiro, uma família de refugiados curdos, andavam de um lado para o outro a servir chá e bolos aos convidados que chegavam e partiam uns atrás dos outros ao longo do dia. A Maman Joon não se sentia muito agradada por ter curdos ao seu serviço pois acreditava nas histórias dos maldizentes que afirmavam que eles nos cortariam a garganta assim que olhassem para nós, mas ela tinha uma explicação para o facto de lhes ter dado trabalho.

- Hoje em dia os iranianos são bons de mais para trabalharem como serviçais. Agora todos querem ser senhoras e cavalheiros - dizia ela com uma expressão de escárnio, como se isto fosse obviamente ridículo.

Eu observava a filha de seis anos do jardineiro, meia-escondida atrás das portas, a ver-nos com as nossas indumentárias de costureiros famosos, e perguntava-me o que é que o futuro lhe reservaria. Seria entregue a um desconhecido, à semelhança do que acontecia a todas as raparigas da aldeia? Passaria o resto da vida a servir o homem que lhe coubesse em sorte, ao mesmo tempo que trabalharia na cozinha de uma qualquer senhora nobre a fim de poder alimentar nove filhos, tal como a sua própria mãe era forçada a fazer? Alguma vez viria a ter a oportunidade de mexer o seu próprio samanu, pedindo a Deus que lhe desse a benesse de ganhar um prémio, ou que a deixasse publicar o seu primeiro livro, ou que lhe permitisse fechar um importante contrato de negócios? Agarrei na colher gigantesca e enquanto mexia o preparado rezei para que ela obtivesse o que mais desejasse.

A tia Homa arranjara maneira de escapar ao Gordo durante algumas semanas e veio à cidade visitar-nos, oportunidade que aproveitou para consultar o seu médico. O dia também coincidia com a data do seu aniversário mas, ali sentada na varanda da casa de baixo, com um bolo de aniversário de chocolate, a sua expressão era de tristeza, mesmo trágica. Tivera cinco filhas e um filho, mas só quatro das raparigas é que haviam sobrevivido. O seu único filho nasceu no assento traseiro de um táxi, tendo morrido sufocado antes de ela chegar ao hospital. A filha mais nova faleceu com doze anos: a garota tinha ido à cozinha dizer à criada que servisse um chá ao seu tio, Dada Jan; o gigantesco samovar foi derrubado por um cão de estimação excessivamente excitado e o resultado foi a menina morrer três dias depois devido às queimaduras que sofreu. Desde então o Gordo nunca mais voltou a falar còm Dada Jan, não tendo permitido à mulher que dirigisse a palavra a este último durante muitos anos.

Perguntei a Maman Jan como é que ela fora capaz de dar Homa em casamento ao Gordo, enquanto observávamos a minha tia a engolir dois tranquilizantes, sem os quais não se aguentaria durante o resto do dia. A Maman Joon assacou as culpas ao marido, o que deu origem a um coro de protestos por parte dos seus filhos ali reunidos.

Todo aquele fiasco começara quando a ama do tio se despediu, passando a trabalhar para o cunhado do Gordo. O pai deste, vindo das províncias, mudou-se para Teerão e conseguiu casar com uma mulher de famílias nobres, e foi para a filha desta que essa ama começou a trabalhar. Entretanto, a ama ouviu dizer que o irmão da sua nova senhora andava à procura de noiva e, presumindo que a família das províncias também era de boa cepa, sugeriu Homa, que na altura tinha apenas treze anos.

Um breve contacto que Agá Joon teve com o Gordo, um jovem sem educação e na altura sem nada de seu, fê-la recusar a dar-lhe a mão da filha, argumentando que, em qualquer dos casos, ela ainda não atingira a idade do consentimento, pelo que esse casamento se encontrava inteiramente fora de questão. Nessa época Daydee era o ministro do Interior e tinha enviado um médico do ministério para examinar a boca da rapariga, após o que declarou que ela tinha idade suficiente para se casar. Sob a pressão exercida pela mulher e pela sogra - tanto uma como a outra eram mulheres de grande força de carácter -, o avô foi forçado a dar o seu acordo àquela união nupcial. O matrimónio dos iranianos é composto por duas cerimónias que se realizam em datas diferentes, e só depois de celebrada a última é que a noiva é entregue ao marido. Durante vários anos, Agá Joon não permitiu que esta se realizasse. Ia adiando a segunda cerimónia ano após ano, até que finalmente foi obrigado a ceder - algo que nunca fizera no campo de batalha - quando a filha completou dezasseis anos. Na noite dos esponsais, ele chorou até ao romper do dia.

Com o descer do crepúsculo sobre Damavand, ainda havia cerca de vinte pessoas em      redor do samanu; os rostos de expressão expectante eram iluminados pelos tons ambarinos das brasas da fogueira. Quando o ar passou de fresco a gelado, foram retiradas algumas brasas com uma pá para serem colocadas em braseiros à volta dos quais nos juntámos a partilhar o calor e a esperança. Ao amanhecer o preparado estava pronto e as chamas foram extintas. Por cima do caldeirão colocou-se uma gaze enorme, após o que a mistura ficou a assentar.

Na manhã seguinte, sob a sombra fresca das nogueiras, os poderosos e os humildes reuniram-se no bagh dos Pessian com os seus tachos e panelas, enquanto a Maman Joon presidia à distribuição do samanu. Depois de todos terem partido, o jardineiro preparou nozes acabadas de colher e a sua mulher serviu uma refeição composta de pão da aldeia acabado de cozer e queijo fresco feito com o leite das vacas de um vizinho. Foi um momento maravilhoso, de uma serenidade absoluta, antes de regressarmos ao barulho, poluição e restrições de Teerão.

Pela primeira vez em muitos meses, senti-me revigorada e com pensamentos positivos quanto à minha vida. Tinha a sensação de que deixara para trás, em Damavand, todos os medos que as mortes recentes haviam trazido consigo. Mas essa tranquilidade não durou mais de uma noite. Na madrugada seguinte fomos acordados às duas horas para recebermos a má

nova de que o nosso médico de família, um amigo muito querido, morrera num acidente de viação próximo do mar Cáspio.

 

               O médico no lugar de Deus

Os médicos não são para curar, são para casar. Estudam durante sete anos com a finali dade de realizar os sonhos das jovens casadouras, que desejam ser chamadas "Khanoum Docton - "Senhora de Doutor.

- Vamos ter de te encontrar um médico simpático - disseram a uma só voz as duas mulheres de idade que eu nunca tinha visto em toda a minha vida.

- Isso é muito gentil da vossa parte. Talvez depois de termos deixado o luto - replicou a minha mãe.

- Nos dias que correm não nos podemos dar ao luxo de esperar. Todos os bons partidos são arrebanhados imediatamente. Além do mais, a pobre Parichehre já esperou tempo de mais - adiantou a mais velha das Irmãs Soturnas numa voz onde se adivinhava compaixão.

- Ela ainda não casou porque não quis. Anda demasiado atarefada com o seu trabalho - replicou a minha mãe num tom de desafio. - Seja como for, existem muito poucos homens que eu possa considerar suficientemente bons para desposarem a minha filha. Uma afirmação que resumia a história da minha vida.

- Que mal é que faria deixar que as raparigas conhecessem alguém? - perguntou a irmã mais nova.

- As raparigas? - exclamou a minha mãe fingindo-se intrigada, embora a tia Omol já lhe tivesse dado a conhecer aquela conspiração de mulheres.

- Sei de um homem bastante jovem que é verdadeiramente uma maravilha, um ginecologista com um consultório muito próspero situado em. hum. onde é que fica?

- Na melhor zona de Los Angeles. É muito possível que uma oportunidade como esta não volte a apresentar-se por muitos anos - acrescentou a mais nova com grande entusiasmo.

- Ficará em Teerão apenas por um mês, e anda à procura de uma noiva que possa levar consigo quando regressar. É um homem perfeito, alto e bem-parecido, além de que tem uma pele muito clara. Não vem de uma das melhores famílias e por isso para ele é bastante conveniente e vantajoso associar-se a uma boa família. Tem duas filhas da primeira mulher, uma mulher horrível que só queria andar na paródia e negligenciava a educação das filhas - explicou uma das irmãs.

- Quando começam a viver nos Estados Unidos, parece que essa situação sobe à cabeça de algumas destas mulheres. Inesperadamente, pensam que têm direito a uma vida própria, querem ser como as norte - americanas - acrescentou a mais nova.

- Mas o certo é que ela só conseguiu dar-lhe filhas, e por conseguinte a mulher que for capaz de lhe dar um filho ficará com a fortuna dele para os filhos - interveio a outra.

- Não me parece que possamos considerá-lo um bom partido - retorquiu a minha mãe na esperança vã de poder pôr um ponto final naquele assunto.

- Que mal é que poderá vir ao mundo em conhecê-lo? - insistiu a irmã mais velha.

- Na próxima sexta-feira ele vai almoçar a nossa casa com a mãe; você podia levar as raparigas - sugeriu ela.

- As raparigas? - perguntou a minha mãe de novo. Com um pequeno riso de nervosismo, a mais nova das Irmãs Soturnas passou a explicar.

- Pensámos que ele podia dar uma olhadela à Parichehre e também à Nastaran, podendo assim escolher a que mais lhe agradar.

A fúria que entrou em erupção dentro da minha mãe era algo digno de se presenciar. Não elevou o timbre de voz, não fez o menor movimento, e contudo a cólera abateu-se imperceptivelmente sobre a sala.

- Eu criei filhas e não cavalos - replicou ela às duas alcoviteiras enquanto os seus olhos diziam "morrei! ".

- Talvez nos pudesse emprestar um retrato para lhe mostrarmos - sugeriu a irmã mais velha e mais descarada enquanto ambas eram acompanhadas até à porta da rua.

As mulheres iranianas de certa idade sempre tiveram como ocupação principal a fumção de casamenteiras, uma vez que a maior parte das famílias continuava a combinar casamentos para os filhos, qualquer que seja o estrato social a que pertençam. No entanto, antes da chegada a cena dos ayatollahs havia cada vez mais raparigas que escolhiam os seus próprios namorados. Todavia, quando se tornou "ilegal" que os dois sexos se misturassem, esta prática de casamentos arranjados através de fotografias passou a ser muito comum.

Depois de ter seleccionado uma mão-cheia de noivas em perspectiva, o macho, que se considera um deus, dá início ao processo de conhecer pessoalmente as candidatas a sua noiva, de entre as quais escolherá a felizarda. Caso o noivo em perspectiva se encontre no exílio, sem desejos de regressar à República Islâmica, as candidatas poderão encontrar-se com ele na Turquia, e a senhora a quem couber a sorte de ter sido a escolhida terá direito a uma breve cerimónia nupcial antes de o esposo regressar ao seu país de exílio, onde começará a tratar do visto de entrada para a noiva. Muitas destas raparigas acabam por regressar à sua terra natal decorrido um ano, desencantadas com o homem e com os países ocidentais.

Por seu lado, as mulheres podem providenciar duas coisas: herança e respeitabilidade. As duas filhas de Bahar tinham uma abundância de ambas. Bem educadas e formosas; já haviam entrado de posse de uma fortuna considerável por morte da mãe, além de que o pai não dava a impressão de poder continuar neste mundo por muito mais tempo. Enquanto Bahar foi viva, rechaçara todas as tentativas feitas pelas alcoviteiras; contudo, a sua morte convenceu as mulheres de Teerão de que achar marido para as duas raparigas seria uma acção que lhes propiciaria pontos Brownie suplementares.

Uma boa casamenteira nunca se sente desencorajada na sua demanda em unir duas vidas. Aquelas duas irmãs, umas primas muito afastadas, eram viúvas que contavam no seu activo com um invejável número de casamentos de prestígio. Era possível que estivessem dispostas a desistir de me casarem, mas as duas filhas de Bahar eram perspectivas demasiado boas para serem abandonadas assim do pé para a mão. Não obstante, Nastaran recusava-se veementemente a ouvir falar de casamento e era de maneira nada diplomática que dizia em frente das tias e primas casadas que o casamento significava passar-se a ser uma escrava com funções de serva. Fora de tal maneira doutrinada contra o tipo de matrimónio semelhante ao que fora imposto à mãe que começou a desenvolver uma fobia contra o casamento fosse este de que espécie fosse.

Em contraste com a má experiência de Bahar, a Maman Joon teve um casamento idílico. Casara-se com o objectivo de criar uma dinastia, o que veio a concretizar-se. Adorava o meu Agá Joon, apesar de só o ter visto pela primeira vez aquando da primeira cerimónia matrimonial. A Maman Joon costumava falar do dia em que a mãe lhe anunciara estar prestes a casar-se. Não disse nada, embora a sua criada não se tivesse contido.

"E ele é bem-parecido? ", perguntara esta. Ao que a Maman Khanoum lhe respondeu que se calasse, caso contrário cortar-lhe-ia a língua, ou qualquer coisa desse género.

A Maman Joon sentia um pavor enorme perante a probabilidade de mais alguma das suas netas vir a ter a mesma sorte de Shahnaz, uma solteirona de quarenta anos que, muito plausivelmente, jamais viria a casar. Eu estava prestes a chegar à idade limite, sem muitas probabilidades de vir a caçar um parceiro se tal fosse deixado ao meu critério: Era precisamente este terror de eu poder ficar para tia que fazia com que ela conspirasse com as Irmãs Soturnas para tentar arranjar-me um encontro com aquele magnífico partido.

Tinha eu saído numa das minhas deslocações rotineiras ao Ministério da Obstrução para tentar obter a minha acreditação de imprensa e quando regressei a casa deparei com a minha mãe num tal estado de fúria que sentia dores no peito. Foi ter comigo à porta dizendo-me que fosse direita ao nosso quarto. Antes de ter tido tempo de chegar ao quarto, ouvi a Maman Joon a chamar-me.

- Chehreh Jan, vem até aqui, por favor.

As Irmãs Soturnas encontravam-se presentes e entre as duas estava sentado um homem de meia-idade, encurvado e de aspecto desleixado. As luzes do lustre de cristal reflectiam-se na sua cabeça calva, o que pelo menos emprestava um pouco de luminosidade à sua compleição emaciada. Tinha uns olhos de tamanho ínfimo e esbugalhados que mal se viam por detrás de umas lentes grossíssimas, ao que se acresciam as dúvidas que eu sentia quanto aos seus dentes serem os originais. Não devia andar muito longe da casa dos cinquenta, uma idade que poderia ser aceitável para uma mulher que se aproximasse dos quarenta, mas sugeri-lo para marido de Nastaran era inadmissível e grotesco.

Assim que o pude fazer sem mostrar descortesia, pedi licença para me ausentar; pouco depois as visitas foram-se embora com a promessa de voltarem dentro em breve. No dia seguinte o Agá Doctor (Senhor Doutor) telefonou perguntando se podia voltar a encontrar-se com Nastaran. Senti o coração quebrado, o que também aconteceu ao telefone quando Nastaran arremessou o auscultador com toda a sua força depois de ter agradecido profusamente ao seu pretendente, acrescentando que não tinha a mínima intenção de se casar.

A Maman Joon estava perplexa com a audácia da rapariga e concentrava as suas atenções em mim. Era frequente dizer-se que eu estava mortinha por me casar e ter filhos, mas que a minha mãe se opunha terminantemente a isso. Assim sendo, tratava-se de uma causa merecedora de vir a ser remediada, pelo que a Maman Joon redobrou os esforços para me encontrar um noivo. Com esta finalidade em vista, uma das primas da minha mãe e o marido dela foram convidados para tomar chá. Durante esta visita, o marido, que de uma maneira geral nós considerávamos bastante vulgar para uma família como a nossa, mencionou que o seu sobrinho se encontrava no Irão a fim de procurar noiva com quem casar. Não era médico, como é evidente, mas possuía um negócio próspero em Los Angeles, o que o tornava num excelente partido. Teria sido absolutamente inútil dizer-lhe que eu nunca viveria nessa cidade nem que me pagassem, pois ter-me-ia respondido que ninguém no seu perfeito juízo recusaria a oportunidade de poder viver nos Estados Unidos.

- Gostaria que me desses autorização para combinar um encontro - pediu-me ela. Seria um bom partido para ti. É muito rico. E tu também serias boa para ele.

De que maneira? - perguntei cortesmente.

- Porque se ele quisesse uma mulher que estivesse a viver no Irão, isso custar-lhe-ia milhões de dólares para conseguir levá-la para os Estados Unidos, mas tu tens cidadania britânica, pelo que para te levar para lá só lhe custaria o preço da passagem de avião. Na verdade seria um casamento talhado no céu.

Precisei de todo o meu engenho para arranjar desculpas que justificassem não ter tempo para me encontrar com aquele marido de sonho. Posteriormente, vim a saber que o homem partiu de mãos a abanar, pelo que se conformou em casar com uma namorada norte- americana com quem já vivia há seis anos. Apesar de muitos iranianos terem amantes de países ocidentais com quem vivem, regressam ao Irão com a intenção de arranjarem uma mulher com quem casar e que mal conhecem.

Um dos meus amigos explicou-me esta incongruência numa altura em que procurava noiva para o irmão que vivia em Idaho há mais de vinte anos, os dez últimos com uma rapariga chamada Mandy.

- Ele só pretende uma mulher que nunca tenha sido tocada por outro homem. Todos os homens desejam uma virgem se lhe puderem deitar a mão - disse-me ele com o ar de alguém que me anunciasse uma verdade universal.

No Irão só existem três categorias de mulheres: as virgens solteiras, as casadas e as putas por casar. Muitas das "virgens" que tive oportunidade de conhecer ao longo dos anos admitiram permitir que os namorados as penetrassem pela porta das traseiras; dessa forma, proporcionavam-lhes prazer ao mesmo tempo que mantinham a sua virgindade física intacta, o que lhes garantia um bom marido. Em Inglaterra, qualquer mulher se sentiria constrangida ao admitir que continuava virgem aos trinta e cinco anos de idade; contudo, no Irão é um estado obrigatório, ainda que a mulher tenha sessenta e cinco anos, desde que não seja casada. Em muitas famílias, na sua maior parte das classes trabalhadoras, continua a ser costume os familiares reunirem-se do lado de fora da porta do quarto dos noivos à espera que o noivo lhes entregue um lençol manchado de sangue na noite de núpcias. Há muitos casamentos que acabaram nessa mesma noite quando a noiva não sangrou, o que automaticamente significava que não era virgem. Também explica o cacarejar ocasional de uma galinha a ser decapitada, som que sai do quarto dos noivos.

Todos os jornais e revistas que circulam pelos países cristãos desejavam artigos que tivessem como tema a forma como as mulheres são tratadas no Irão. Queriam barrigas ou goelas cortadas, casos de submissão, repressão e degradação. Muitas das minhas colegas proporcionaram-lhes precisamente o que queriam, a imagem de mulheres na condição de escravas e servas. Mas esse aspecto limitava-se a focar uma das duas facetas. Ninguém veio ao Irão com o fim de olhar para o coração dessas mulheres, para se inteirar das suas verdadeiras angústias. Chegaram para verem apenas aquilo que queriam ver, e por isso o artigo perdeu todo o impacto que poderia ter tido, porquanto ignoraram as verdades mais importantes. Olharam para os véus, e disseram: "Isto é repulsivo", e depois foram procurar algo mais igualmente repugnante. Fizeram comentários do género: "As mulheres que querem vir a ser médicas não o podem fazer, e portanto tornam-se cabeleireiras"; consequentemente, as mulheres que exerciam medicina escarneciam desse tipo de repórteres, enquanto as cabeleireiras não ocultavam o desprezo que lhes mereciam. Não compreenderam que é necessário dinheiro e contactos influentes para se poder entrar na Faculdade de Medicina; tão-pouco levaram em linha de conta que a maior parte das cabeleireiras que trabalham no Irhão são arménias, uma tradição que passa de geração para geração, tal como o trabalho nas minas de carvão em tempos passados. No Irão, são os estratos sociais que ditam as profissões, com muita mais ênfase do que o sexo da pessoa em questão.

Eu queria conversar com mulheres verdadeiras, com mulheres que desempenhavam um papel activo na revolução, de alma e coração. Queria ver se as muçulmanas devotas e piedosas tinham interesses pessoais. Na realidade, concluí que eram mais infelizes que os demais, uma vez que se esforçavam por ver o bem num sistema que lhes atribuía a classificação de cidadãs de segunda classe. Estas mulheres tinham agido como homens e agora esperava-se que se confinassem aos seus lares. Havia nove mulheres membros do parlamento, mas a sua presença era meramente simbólica, e a única conselheira de Raffers cingia-se unicamente aos assuntos relacionados com o seu sexo.

- O islamismo é, de muitas maneiras, uma religião plena de direitos da mulher - disse-me uma docente universitária.

Pedi-lhe que me desse um exemplo.

- Nenhuma mulher é obrigada a amamentar os filhos; de acordo com o Islão, não é um dever, ao contrário do que acontece nos países ocidentais. O islamismo diz que o marido lhe deve pagar pelas tarefas domésticas, e caso não pague, ela não é obrigada a fazer a lida da casa. O dinheiro que ganhar em qualquer emprego também é só dela. Não é obrigada a gastá-lo na casa ou com a família. O Islão diz que esse dinheiro lhe pertence, pelo que tem todo o direito a gastá-lo em si própria. Além do mais, o marido tem a obrigação de lhe comprar ouro e jóias com qualquer dinheiro que lhe sobre - concluiu ela.

No entanto, também admitiu que nenhuma mulher, a menos que fosse uma desnaturada, exigiria dinheiro ao marido antes de alimentar os filhos ou fazer as tarefas de casa.

Também mostrou algumas reservas quanto ao uso do chador - para podermos ser promovidas temos de usar obrigatoriamente o chador - explicou. - por outro lado, o lenço e o casaco não são símbolos autênticos de dedicação à revolução, mas as mulheres que não os usam nunca conseguirão chegar a posições cimeiras. Mas é capaz de me imaginar todas as manhãs a tentar segurar os livros numa mão, o meu filho pela outra, ao mesmo tempo que tenho de manter o chador na cabeça! É uma verdadeira tortura - acrescentou com uma pequena risada.

Não aceitou a hipótese de poder existir uma interpretação alternativa a estas tão apregoadas regalias femininas: o marido pagaria à mulher para que esta amamentasse os filhos porque também eram dele. A mulher é utilizada como um mero instrumento para gerar os descendentes dele, ao que se acresce as tarefas domésticas, e é remunerada por esse trabalho

como se fosse uma serva. Depois de divorciada, ela agarra nos seus pertences e no preço pago pela família da noiva, deixando a casa e os filhos com o marido. A finalidade deste costume talvez tenha sido a de a libertar, mas na prática só serve para a privar dos seus privilégios.

Os iranianos com quem fui criada encontravam-se a séculos de distância dos homens que conheci na República de Deus. Qualquer mulher poderia passear- se toda nua em frente do meu irmão que ele nem sequer soergueria um sobrolho. Sempre me encorajou a aplicar-me nos estudos antes de começar a trabalhar. Recordo-me de muitas noites durante a minha adolescência em que ele e a minha mãe ficavam a pé toda a noite a fazerem-me ver as vantagens de ter um diploma universitário na mão, dizendo-me que valia mais do que dez maridos na cama. Desde a minha infância que o meu pai me ensinou a lutar como um homem no caso de vir a ser necessário, a substituir fusíveis, a saber mexer em aparelhos de vídeo e a reparar motores de automóveis, juntamente com todos aqueles pequenos trabalhos que os pais habitualmente ensinam aos filhos varões. Pergunte-se a qualquer dos amigos dos meus progenitores quem era o homem mais masculino que conheciam, e existem boas hipóteses de essa pessoa indicar o meu pai; no entanto, ele sabia cozinhar, lavava a louça, aspirava e até comprava aqueles artigos embaraçosos que as mulheres gastam - e tudo isto antes do aparecimento do Novo Homem.

O nosso amigo Masoud era outro dos homens que aprendi a admirar, porque era justo e gentil, comportando-se como um perfeito cavalheiro. Tinha muito respeito por mim e pelas minhas irmãs e sempre nos tratou como o meu irmão. Masoud foi enviado para Oxford na adolescência e tornara-se tão íntimo da nossa casa que o considerávamos nosso irmão. Estudante brilhante, regressou ao Irão para assumir a responsabilidade da mãe e irmãs após a morte do pai. Actualmente é o cabeça de uma antiga família de grande influência da província de Khorasan, na fronteira com o Afeganistão. É uma família com uma história antiga e ilustre, e as suas vastas propriedades e riqueza permaneceram intactas até mesmo depois da ascensão dos molás.

As suas três irmãs e duas primas casaram-se com os filhos de outra família nobre também de Khorasan. Várias gerações de riqueza herdada proporcionou independência às raparigas, forçando-as a entrar bastante cedo no mundo dos negócios e das finanças. Fatieh, Fatimeh e Faatan eram o modelo por excelência da mulher livre, à semelhança do que sucedia com as primas e cunhadas, Mahnaz e Shomez. Posteriormente, numa altura em que senti a solidão em Teerão, foram estas mulheres encantadoras que me mostraram sentimentos de família, afabilidade e apoio: Passava mais tempo com elas do que com as minhas próprias primas, tendo compreendido que tinha mais em comum com o seu estilo de vida cosmopolita do que com as atitudes antiquadas e tradicionais que prevaleciam entre os meus. Por tudo isto, foi com grande choque que vim a saber que estas mulheres também haviam sucumbido às pressões de virem a ser "boas esposas iranianas".

Mahnaz dera uma festa em família como um gesto de boas-vindas a Masoud e à sua mulher de regresso à terra Natal vindos do Canadá, para onde ele se mudou quando a revolução começou a soçobrar em consequência da sobrecarga da guerra com o Iraque. A residência de Mahnaz era como um museu de bom gosto, recheada com peças de arte requintadas. Sentia-me maravilhada perante a sua colecção de peças islâmicas da Antiguidade, ficando com a respiração cortada ao ver a última adição àquela bela colecção, uma magnífica carpete de seda. A anfitriã ria-se à socapa enquanto nos contava a dificuldade que tivera para encontrar aquela carpete tão especial. A procura do objecto perfeito levara vários anos, obrigando-a a deslocar-se às regiões mais remotas do reino dos molás.

- Finalmente, na semana passada encontrei exactamente aquilo que tanto desejava. Há meses que sujeitava o intermediário a uma autêntica tortura, uma vez que queria a carpete avaliada e certificada. Foi então que chegou a altura de a pagar e tive de lhe dizer, como uma colegial mal comportada, que tinha de pedir autorização ao meu marido - disse ela enquanto o marido se mantinha sentado com uma expressão de embaraço. - Fatieh também queria adquirir uma carpete ao mesmo homem, e ali estávamos nós, duas mulheres adultas e abastadas que tinham de pedir aos maridos, por favor, se podíamos gastar o nosso próprio dinheiro.

- O quê? - perguntei atónita.

- Sim, somos demasiado idiotas e estúpidas para sabermos passar um cheque, e por conseguinte entregámos todo o nosso dinheiro aos nossos maridos que tão inteligentes são. Quando queremos comprar alguma coisa, vão à loja e inspeccionam e analisam o artigo em questão, enquanto nós pestanejamos timidamente até concordarem em nos dar algum do nosso dinheiro para adquirirmos o que escolhemos - concluiu ela numa atitude trocista.

- Mas por que motivo?

- Ora bem, minha querida Chehreh, sabes que os homens são seres delicados com egos muito à flor da pele, pelo que temos de ter a certeza de que estimulamos o seu orgulho - acrescentou ela com uma gargalhada.

Era-me impossível imaginar que o homem baixinho com quem Mahnaz se casara alguma vez se atrevesse a recusar o que quer que fosse que aquela mulher autoritária e cheia de dinamismo lhe pedisse. A inocente que ainda vivia dentro de mim pensou que aquele comportamento era muito estranho e pouco razoável. Eu jamais cederia àquele tipo de pressões; nunca estaria na mesma situação daquelas mulheres. Devia ter- me enganado a respeito delas - não eram as mulheres de carácter forte e determinado que eu sempre imaginara. As que eu conhecera nunca, mas nunca, cederiam a tais disparates. E quanto à minha mãe e irmãs? Também eram mulheres de fibra e inteligentes, o que não obstou a que entregassem as suas fortunas aos respectivos maridos.

Até mesmo as que se consideravam ocidentalizadas, e membros de pleno direito do regime decadente do xá, esperavam que as suas filhas não perdessem a virgindade antes do casamento. Aquilo que pudessem vir a fazer depois era coisa que dependeria inteiramente delas, mas uma filha promíscua podia dizer adeus a qualquer oportunidade de vir a arranjar um marido decente. Caso uma mulher ultrapassasse uma determinada idade sem se casar, as más-línguas entrariam logo em acção. Das duas uma: ou a rapariga em questão mantinha práticas sexuais ilícitas, sendo portanto uma rameira, ou então não se interessava pelo sexo oposto, o que implicitamente significava que gostava de mulheres. Uma das minhas mais recentes e queridas amigas tinha duas filhas que ela protegia com todo o recato, impedindo-lhes a mancha de qualquer contacto com homens. Aos vinte e um anos, a mais velha, Soosan, nunca saíra com nenhum rapaz; nunca fora a uma festa sem os pais ou acompanhada pelo irmão de vinte e cinco anos - ele próprio muito orgulhoso de ser virgem. Ainda não tinha autorização para sair à rua sozinha depois de escurecer, se bem que fosse somente para ir ao prédio ao lado da sua casa. Depois de ter deixado de estudar aos dezassete anos, Soosan deixara-se ficar em casa à espera do dia em que contrairia matrimónio. Não possuía o talento nem a inclinação necessários para estudar numa universidade, tão-pouco podia trabalhar num emprego comum para ganhar o seu sustento - isso seria uma vergonha para os seus pais, gente da classe média, que aos olhos do mundo dariam a impressão de não terem meios para sustentar a filha. Assim, passava os dias com uma amiga da mãe, ou com as filhas de uma vizinha, em particular com a filha de nove anos de idade. Foi em casa desta vizinha que assisti a uma cena que inicialmente me deu voltas ao estômago e que depois me encheu de pena.

Soosan e a garota estavam sentadas no chão enquanto as mães das duas raparigas discutiam a manhã fascinante que tinham passado comigo nas compras. A rapariga mais velha colocou lentamente a cabeça em cima do colo da mais pequena, e depois, para meu grande horror, vi as duas darem um beijo profumdo na boca. O beijo era tão apaixonado que me senti perturbada no lugar em que estava sentada, enquanto as mães não prestavam a mínima atenção àquelas carícias. Apeteceu-me dar largas à minha irritação, dizendo-lhes que estavam a permitir que a garota mais pequena sofresse abusos de natureza sexual. Durante pelo menos duas semanas senti-me fisicamente nauseada depois de ter visto aquele espectáculo, tentando evitar tanto as mães como as filhas. Dever-se-ia a minha repulsa a uma aversão arreigada que sentisse pelos homossexuais? Estou em crer que não, embora o facto de nunca ter presenciado um acto daqueles entre duas mulheres pudesse ter dado origem a esse sentimento.

Todavia, a minha cólera era dirigida a uma sociedade que se sente de tal maneira obcecada com o "pecado" do sexo entre um homem e uma mulher que obrigam as mulheres jovens a satisfazerem as suas necessidades por quaisquer meios ao seu alcance. Se Soosan tivesse beijado um rapaz defronte da sua família, teria ficado desgraçada para sempre e a sua vida provavelmente nunca mais voltaria a ser a mesma de antes. No entanto, com aquela garotinha podia fazer o que bem lhe aprouvesse, numa idade em que a petiza estava mais carenciada da protecção dos adultos.

Nastaran dedicava-se de alma e coração a cuidar das nossas necessidades e das do pai, o qual piorava de dia para dia. Os comprimidos que tomava pareciam não fazer qualquer efeito, e a morte de Bahar mergulhara-o num estado profundamente depressivo. A minha mãe sentia-se cada vez mais preocupada com o seu estado de saúde, tendo conseguido convencê-lo a marcar uma consulta com um novo médico que era famoso pelos bons resultados que obtinha no tratamento de doentes que sofriam da doença de Parkinson.

Mas isto era mais fácil de dizer do que fazer, tal como viemos a descobrir quando falámos com a recepcionista do médico em questão.

- Terão de estar no consultório às seis da manhã - informou-nos ela.

- Para quê? - perguntou a minha mãe mostrando grande perplexidade.

- Porque têm de estar na fila para marcar consulta. O senhor doutor tem muito que fazer e a sua agenda de marcações está preenchida durante os próximos seis meses. Qualquer pessoa que chegue depois das sete só muito dificilmente arranjará consulta - acrescentou, como se aquilo fosse a coisa mais natural deste mundo.

- Mas trata-se de uma urgência e foi uma amiga do senhor doutor que nos recomendou.

- É precisamente por essa razão que vos digo para virem sem consulta marcada - replicou ela com uma melhoria de boas maneiras.

- A que horas devemos vir? - perguntou a minha mãe, agora que já acentuara que conhecíamos pessoas influentes.

- Se quiserem que a consulta seja para o mesmo dia, têm de estar na fila às quatro da manhã.

- Mas há pouco disse-nos que teríamos de estar aí às seis horas.

- Mas isso é para as pessoas que têm consultas marcadas - replicou a recepcionista.

- A que horas é que o médico começa a dar consulta?

- Das dez à uma da tarde - replicou ela, desligando o telefone sem acrescentar mais nada.

Nasser Khan mal se tinha nas pernas. Precisava de uns bons dez minutos para se deslocar de um extremo do quarto ao outro. Para se levantar de uma cadeira, muitas das vezes tinha de fazer seis ou mais tentativas, e a sua voz quase desaparecera de todo. A ideia de ele sair às quatro da manhã a fim de esperar por alguém que só apareceria seis horas depois era absolutamente ridícula. Em tempos idos, antes de Nasser Khan ter realmente necessidade dos seus serviços, os melhores médicos da cidade ter-se-iam atropelado uns aos outros pela oportunidade de o tratarem.

Depois de termos pedido alguns favores a troco de outros feitos por ele, arranjou-se um médico que o examinaria. Saiu da consulta com uma prescrição cheia de novos medicamentos - fármacos que só se encontrariam no mercado negro. Os comerciantes de comprimidos costumavam reunir-se na Avenida Nasser Khosrow, na baixa de Teerão; para lá chegar era preciso meio dia através de um trânsito onde a lei é letra morta, para além de ser preciso uma conta bancária choruda para se poder negociar. A maior parte das farmácias da cidade têm as prateleiras vazias, mas na Avenida Nasser Khosrow os sacos transbordavam: continham no interior todos os medicamentos à face da Terra. Um comprimido que custaria ao doente uns meros dois tomans em qualquer farmácia, no mercado negro poderia custar duzentos tomans ou mais.

De uma maneira geral, não era muito saudável adoecer na República de Deus, salvo no caso de se ser um molá, um ministro, ou alguém bem relacionado com estes homens detentores do poder. Talvez as coisas tivessem sido assim no nosso apogeu - plausivelmente, seriam -, mas nessa altura éramos nós os privilegiados que gozavam de todas as mordomias, e imaginávamos que todos os outros dispunham destes benefícios só porque podíamos pagar para que os nossos serviçais e demais pessoal fossem tratados, educados e tivessem abrigo.

A minha mãe chegou à conclusão de que o menor aborrecimento lhe provocaria dificuldades respiratórias, acompanhadas de uma pontada aguda no peito. Nastaran era a fonte de muitos desses aborrecimentos devido à sua obstinação e grosseria. Por isso, quando a Maman Joon chegou de Damavand para o seu exame médico anual, a minha mãe foi com ela consultar um médico gentil mas já de idade.

Dei pela chegada das duas a casa quando estava numa sala das traseiras a escrever um desses artigos que, oficialmente, não tinha autorização para escrever. Dirigi-me ao vestíbulo para as saudar, mas a primeira coisa que a minha avó me disse imobilizou-me.

- A tua mãe teve um ataque de coração. Está gravemente doente e pode morrer a qualquer instante.

Fiquei petrificada e incapaz de me mexer quando a minha mãe entrou a rir, dizendo que tudo aquilo eram disparates.

Como é que aquilo seria possível? Aparentemente estava de boa saúde, nem sequer quisera ir ao médico, e agora podia estar à beira da morte. Não consegui suportar aquela ideia: a minha mãe era o centro das nossas vidas, era inconcebível que a sua vida corresse perigo. Aquele era o primeiro mês dos últimos seis em que não tinha havido uma morte, e quando eu já começava a pensar que poderia descontrair-me um pouco, surgia aquilo! Era óbvio que não lhe restava a mínima hipótese; não passaria daquela semana.

Oh, meu Deus, Mahshid e os outros vão-me matar! pensei; sem saber como, convenci-me de que aquela situação era culpa minha, por a ter trazido para aquela terra onde nada nos oferecia confiança.

O médico tinha-lhe dito que fosse imediatamente para casa e se deitasse - depois de ela se ter recusado a ser internada na Unidade de Cuidados Cardíacos do hospital que ele tinha de sociedade com outros médicos. Recomendou-lhe que não se levantasse da cama durante pelo menos um mês. Tinha de evitar comer alimentos salgados e gordos e não devia levantar nada que fosse pesado. Não tinha autorização para se sentar defronte de uma janela aberta, nem de estar a pé depois das vinte horas. Acima de tudo, não podia irritar-se, uma vez que qualquer aborrecimento poderia ser-lhe fatal. E, sem margem para qualquer dúvida, o regresso a Inglaterra de avião estava fora de questão, a menos que desejasse morrer. Durante o mês seguinte mal consegui conciliar o sono, mantendo- me acordada a ouvir a respiração da minha mãe, não fosse ela parar de respirar.

Um segundo médico confirmou que ela sofrera dois ataques cardíacos e que tinha uma grave angina de peito. Não muito convencida de que houvesse alguma anomalia no seu estado de saúde, a minha mãe continuava a fazer a sua vida normal, enquanto nós a observávamos consumidos de preocupação. Finalmente, acabou por concordar que passaria a ter mais cuidado se uma terceira opinião médica, a ser emitida pelo doutor Jalali, considerado um dos maiores especialistas do coração de Teerão, corroborasse o mesmo diagnóstico.

Este doutor Jalali foi o médico assistente de Bahar, o médico a quem ela telefonara na sua última semana de vida dizendo-lhe que não se sentia bem, mas na altura ele estava de partida para as suas férias e dissera-lhe que voltasse a ligar-lhe quando regressasse dentro de dez dias, ao invés de lhe indicar outro médico. Antes de ele vir de férias já ela tinha morrido.

Este episódio não nos permitia confiar nas suas capacidades clínicas, mas a realidade é que gozava da reputação de ser o melhor cardiologista da cidade, e Homa insistiu com a minha mãe para que o consultasse antes de ter concordado em vir a Teerão. Eu desejava desesperadamente que a minha tia estivesse connosco; queria uma "pessoa adulta" que assumisse a responsabilidade da situação.

A recepcionista do médico disse-nos que só haveria consulta para dali a três meses. Mas um telefonema feito por Farideh, a filha de Homa, uma médica especializada em oftalmologia, conseguiu-nos uma consulta para o dia seguinte às catorze horas.

O consultório situava-se num edificio reservado só a médicos, e ficava apenas a uns escassos metros de uma das propriedades que nos haviam sido confiscadas, o que nos causou um certo azedume logo à partida. Um elevador bastante antiquado, "apenas para nove corpos", levou-nos ao sexto andar, onde o doutor Jalali punha em prática o que aprendera na universidade. Passámos por meia dúzia de pessoas que aguardavam no corredor e batemos à porta.

- Esperem aí - rosnou uma enfermeira através da porta semiaberta antes de a bater com estrondo. Voltámos a bater, explicando-lhe que tínhamos consulta marcada. - Tal como toda a gente, vão ter de esperar - replicou ela desabrida, voltando a bater-nos com a porta na cara, mas desta feita com maior vigor.

Uma hora mais tarde continuávamos à espera, embora o número dos que aguardavam tivesse sido acrescido de mais vinte pessoas. Por volta das dezasseis horas dessa tarde todos os assentos ao longo do corredor já estavam ocupados, enquanto as mulheres trocavam histórias de horror sobre o coração.

- Eu já fui a todos os médicos de Teerão - dizia- nos uma avozinha de cabelos grisalhos, acrescentando que se sentiria muito melhor se conseguisse ver-se livre de três pedras que tinha na vesícula. - Eles ficam com o nosso dinheiro, e depois os grandes filhos da puta dizem-nos que estamos de perfeita saúde. - Tirou da sua mala de mão uma catrefa de exames médicos para melhor ilustrar as suas palávras. Foi então que uma mulher na casa dos vinte começou a comparar electrocardiogramas com os da avozinha. Entretanto, chegou um casal com umas palmeiras que a recepcionista se apressou a deixar entrar, uma mulher que todos os que esperavam naquela altura odiavam com todas as veras da sua alma. A minha mãe começou a bater à porta do consultório; esta abriu-se e revelou a mulher que tanto abominávamos.

- Algumas destas pessoas estão aqui desde manhã cedo à espera de consulta. Quando é que o médico tenciona vê-las? - perguntou ela num tom autoritário.

- Lamento muito, mas de momento o senhor doutor está com umas visitas - explicou a recepcionista voltando a fechar a porta, o que lhe evitou assistir à explosão de cólera da minha mãe.

Mais ou menos às dezoito horas, aquele "filho da puta" em particular ainda só tinha examinado uma mão-cheia de doentes, e a minha mãe, uma pessoa que regra geral era extremamente calma, sentia-se enraivecida e encorajava os outros pacientes a sublevarem-se. Naquele momento iniciava o seu discurso de abertura - "O que é que nós somos? Carneiros? " - quando a electricidade faltou. Do interior do edifício ouviam-se os gemidos de medo de doentes com corações fracos - o elevador tinha ficado preso algures num dos andares abaixo de nós.

Foram precisos vinte minutos para puxar os cabos do elevador a pulso até ao piso mesmo abaixo de nós, de onde saíram pelo menos doze pessoas num estado de grande aflição, entre homens e mulheres. Um casal já idoso teve de ser ajudado a sair. A minha mãe recomeçou o ataque contra o sistema.

- Se não permitirmos, eles não poderão tratar-nos desta forma. Se todos vós regressardes a vossas casas neste preciso momento, da próxima vez este pretenso médico será obrigado a tratar-vos como os seres humanos que sois, e não como se fôsseis gado.

Ouviram-se manifestações de aplauso das mais ou menos quarenta pessoas presentes e ali reunidas no meio da escuridão, mas como não conseguíamos ver um palmo à frente do nariz, ninguém arredou pé. Quando a energia eléctrica foi restabelecida, eu já tinha perdido a noção do tempo. Mas no momento em que virávamos costas para nos virmos embora, chamaram pelo nome da minha mãe.

- Mudei de ideias. Esse homem não é nenhum médico - disse a minha mãe, mas o resto dos presentes urgiu-a a que entrasse, embora o tenham feito com pouca veemência.

Já no interior do consultório, a recepcionista explicou-nos que naquele dia ainda não tinha chegado nenhuma das enfermeiras do senhor doutor, pelo que lhe coubera a ela fazer todos os exames aos pacientes. Quando mediu a tensão arterial da minha mãe, constatou que era "perigosamente" elevada, administrando-lhe de imediato um medicamento qualquer.

Antes de a recepcionista ter começado a fazer o electrocardiograma, tarefa para que não recebera formação, finalmente entrámos no gabinete do médico, que levou três minutos só para nos dizer que os seus dois outros colegas tinham feito o diagnóstico correcto quanto à doença da minha mãe, ressalvando que o tratamento prescrito não era o mais indicado. O número de ataques cardíacos anteriores aumentou para pelo menos três. Passou- lhe uma nova prescrição da qual constavam cerca de nove medicamentos, após o que fomos mandadas em paz.

Enquanto a minha mãe se dirigia à minha frente para a porta do gabinete, aquele monstro pôs a mão no meu braço e lançou-me um olhar de lástima.

- Tenha muito cuidado com ela. Mantenha-a debaixo de olho a todos os instantes - advertiu-me.

Quando saímos do edificio, a minha mãe levou a mão ao peito quando sentiu uma guinada de dor. Dois comprimidos mais tarde e já com a situação sob controlo, levou todo o percurso até casa a praguejar contra o homem que acabara de me meter na cabeça a ideia de que ela estava prestes a ir desta para melhor.

O mês seguinte foi uma luta constante para obrigar a minha mãe a ficar de cama. Não me atrevia a deixá-la sozinha por muito tempo, o que me impedia de dormir convenientemente.

Embora Homa nos tivesse prometido que viria a Teerão caso o médico confirmasse o diagnóstico dos outros, até à data ainda não nos honrara com a sua presença. Eu tinha esperado ver a minha tia a bater à nossa porta no mesmo minuto em que se inteirasse de que a irmã estava doente - uma irmã que se encontrava de visita àquele país, que estava longe da maior parte dos seus filhos e que não conhecia nada da vida do novo sistema islâmico. Mas, a pouco e pouco, ia-me apercebendo de que mesmo aqueles que tinham continuado a viver no Irão também não compreendiam o novo e incessante sistema tortuoso imposto pelos molás. Metade do povo da nação parecia sofrer de paralisia, enquanto a outra metade tentava ganhar dinheiro suficiente para se pôr a andar dali para fora.

De facto, a mulher que soubera que a sua irmã estava doente deixara de poder suportar a sua própria vida. A mulher que em tempos fora tão mimada, era agora manipulada como uma marioneta nas mãos de um marido demoníaco que a obrigava a andar de um lado para o outro de manhã à noite, chamando-a sempre que precisava de alguma coisa de todas as vezes que Homa tentava descansar um pouco. Antagonizava todos os que tentavam partilhar do fardo que era cuidar dele, e todo o pessoal doméstico contratado para trabalhar na sua casa não chegava a durar uma semana pois fartavam-se da irascibilidade do homem. Nesse ano serviu-se da idade e do estado do seu coração como armas poderosas para manter a mulher em casa em Shiraz tanto quanto lhe foi possível. A notícia de que a minha mãe adoecera fez com que o Gordo se fosse dramaticamente abaixo, o que se reflectiu no seu estado de saúde, garantindo assim que a mulher não o abandonaria nem por um momento sequer. As duas irmãs estavam reduzidas a falar apenas pelo telefone, e mesmo assim só noite dentro quando ele já se encontrava a dormir.

"Um dia destes deixo-o. só preciso de me reapossar do meu dinheiro" tornara-se a frase habitual de Homa, mas naquele Verão as suas palavras já haviam perdido todo e qualquer resquício de credibilidade. Era como se tivesse acabado por se render à sua infeliz situação.

A única mulher que visitava a minha mãe com regularidade era a sua amiga de infância, Ghodsi, outra vítima de um mau casamento com um homem excessivamente prepotente. Ficava a fazer companhia à minha mãe enquanto eu e Nastaran fazíamos as compras para a casa - desculpa que Ghodsi arranjara para poder sair de sua casa. Decorridas duas horas ia-se sempre embora.

Ghodsi chegava ao ponto de se preocupar com a tensão que a doença da minha mãe me provocava. Certo dia em que já descia os degraus da entrada, voltou-se para mim e insistiu em convidar-me para almoçar fora num daqueles dias, dado que eu não saía de casa há dez dias. A refeição foi apressada porque Ghodsi não tirava os olhos do relógio. Dissera ao marido, conhecido pelas amigas dela pela alcunha de o Diabo, que precisava de mandar fazer roupas novas para quando tirasse o luto que ainda usava por morte da mãe, e que por isso ia comprar tecido.

Nessa mesma noite, Ghodsi telefonou-me.

- Caso a Seyxna ligue para ti, diz-lhe que hoje foste comigo à loja dos tecidospediu-me ela numa voz que deixava adivinhar o pânico que sentia. - Quando cheguei a casa, o Diabo perguntou-me se tinha comprado alguma coisa e respondi-lhe que sim. Pouco depois a Seyma ligou e o pai disse-lhe que eu saíra para comprar uns tecidos; não lhe pude dizer que não era verdade porque ele estava a ouvir a nossa conversa. Ela quis saber as cores e tipos de tecido e tive de inventar dizendo-lhe que compreijersey cinzento. Depois perguntou-me quanto é que tinha custado, mas não faço a mais pequena ideia do preço desse género de tecido, por isso disse-lhe que foi a quatro mil tomans o metro - concluiu Ghodsi, que entretanto se ria à socapa.

Mas foi então que as coisas começaram a complicar-se, porque aquele preço era uma autêntica pechincha, pelo que Seyma queria sabér onde é que a mãe tinha comprado o tecido.

- Disse-lhe que não me recordava. "Sabes bem que eu esqueço-me sempre dos sítios aonde vou". Depois quis que lhe dissesse pelo menos o nome da rua, e vi-me obrigada a dizer-lhe que foi na Rua Yazd, onde sei que existem algumas lojas de tecidos. Começou a perguntar-me o aspecto da loja e descreveu-me uma delas, ao que eu respondi: "Sim, foi nessa". Vinte minutos mais tarde estava a bater à porta; queria ver a qualidade do jersey. Alegou que pretendia comprar uns quantos metros logo de manhãzinha, mas eu percebi que ela só queria descobrir se eu estava a mentir. Disse-lhe que tu é que tinhas ficado com o tecido. Portanto, se ela te telefonar, diz-lhe que não te sentes bem e que não tens disposição para visitas.

No dia seguinte, Ghodsi deu outra escapadela e passou quatro horas tentando encontrar o tecido de que falara à filha. Acabou por se decidir por um tom de antracite que passaria por cinzento caso se semicerrasse os olhos. Inspirada pelo triunfo da sua mentira não ter sido posta a descoberto, também comprou um tecido dejersey azul-marinho com que mandaria fazer um fato para a outra filha, Shahpari.

Agora as duas irmãs eram inimigas figadais; Shahpari deixara de estar nas boas graças do pai, enquanto a irmã passara a ser a menina dos olhos dele. E foi assim que nos lançámos numa outra impostura. No dia em que os fatos ficaram prontos, fui buscar Ghodsi com minha prima Minu que fazia de motorista. Mas acontece que Seyma fizera uma das suas raras visitas à mãe, insistindo em ir à modista connosco. Já no automóvel, Ghodsi meteu furtivamente algum dinheiro na mala de mão de Minu, pedindo-lhe apressadamente que dissesse que o segundo fato era dela. A pobre modista ficou toda atarantada quando Minu, que ela nunca vira, não se calava, dizendo o quanto adorava a sua nova fatiota. Mas acontece que Shahpari tem uma figura muito miúda, enquanto       Minu é substancialmente mais alta e encorpada... Eu não sabia se havia de rir ou de chorar.

- Experimenta-o - insistiayma desconfiada, como era evidente. Por seu lado, as faces da mãe desta passavam por todas as tonalidades de vermelho, enquanto eu fazia todos os esforços para conter uma explosão de gargalhadas. A única que se mostrava calma e tranquila era Minu, dizendo placidamente que estava com o período, o que fazia com que inchasse, pelo que só experimentaria o fato quando chegasse a casa.

Durante o trajecto até casa, Ghodsi tomou dois Valium.

Era absolutamente inacreditável como o pai e as filhas tinham sido capazes de abalar aquela mulher a tal ponto. Passava a vida a dizer que só continuava a levar aquela vida que detestava porque queria reaver o seu dinheiro. O Diabo conseguira deitar a mão à sua fortuna, gastando grande parte ao desbarato para mimar o seu ego e comprando casas em lugares exóticos aonde só muito raramente iam. Entretanto, ia sujeitando a mulher a uma tortura quase imperceptível.

Certo dia, aquando de uma estadia na vivenda que possuíam na Riviera, o Diabo contou-me uma história que me pôs o sangue a ferver, mas ele achava que era muito engraçada. O casal tinha decidido passar o dia em Monte Carlo. Quando já se encontravam na auto-estrada, ele informou que estavam quase sem gasolina, assacando as culpas a Ghodsi porquanto ela fora a última pessoa a conduzir o carro. Em vez de tentar encontrar um posto de combustíveis, o homem continuou a guiar, repetindo insistentemente que dentro em breve ficariam sem gasolina. Ghodsi, que nas melhores das suas fases tinha sempre os nervos em franja, fumava cigarro atrás de cigárro.

- Quando estendeu a mão para o isqueiro do automóvel, ralhei-lhe e disse-lhe que estava a desperdiçar gasolina - contou-nos o Diabo. Ghodsi, entretanto, soltava umas risadinhas de nervosismo. - Ela afastou a mão tão depressa que parecia que tinha apanhado um choque eléctrico. Fiquei perdido de riso quando ela finalmente compreendeu que o isqueiro não tinha nada a ver com a gasolina.

Este é apenas um pequeno exemplo dos métodos de que o homem se servia contra a sua mulher. Nunca lhe era permitido sentir-se em tranquilidade, uma vez que ele não perdia uma oportunidade de a enervar.

Mais ou menos seis meses antes da doença da minha mãe, Ghodsi tentou matar-se. Não foi a sua primeira tentativa, mas foi a que esteve mais perto de ser bem sucedida. Na altura a tia Homa e o Gordo estavam em Teerão para assistirem ao funeral de um amigo, tendo passado o serão com Ghodsi. O Diabo telefonou às primeiras horas da manhã dizendo que a mulher tinha ingerido uns comprimidos quaisquer. Homa apressou-se a ir a casa da amiga e encontrou-a em estado de coma. Só ao cabo de vários dias nos cuidados intensivos é que ela recobrou a consciência.

Depois de convalescida, decidiu de uma vez por todas que deixaria o marido e iria para Shiraz com Homa. Havia dias em que se mantinha firme na decisão que tomara, mas quanto mais tempo estava afastada do marido mais vacilava; falando amiudadas vezes em voltar para casa "para ir buscar o seu dinheiro". Decorrido um mês regressou ao seu inferno de solidão, e passados dois meses começou de novo a ameaçar cometer suicídio.

A minha mãe ia recobrando forças a pouco e pouco, embora continuasse a necessitar de tomar grandes quantidades de medicamentos que obtínhamos através do irmão de um amigo que era médico. A minha mãe consultara-o por diversas vezes em ocasiões anteriores, pelo que o considerávamos mais como amigo do que médico. Nesse Outono aparecia lá por casa de tempos a tempos, mantendo-a sob vigilância. Certa manhã chegou cedo para lhe dizer que se ausentaria por uns dias porque tinha de ir a algures no Sul. Nessa mesma noite a irmã telefonou-nos numa grande aflição informando-nos de que ele tivera um acidente e que nin guém sabia do seu paradeiro. Na manhã seguinte inteirámo-nos de que tinha falecido.

Aquilo estava a tornar-se ridículo.

Quando os médicos finalmente deram autorização à minha mãe para poder viajar, levámo-la para Shiraz. Tanto ela como eu estávamos a precisar de uma mudança de ares:

por causa da sua doença, o facto de eu ter de cumprir prazos de entrega relativos aos artigos para várias revistas, ao que se acrescia o facto de termos de viver na Casa do Desânimo, eram tudo factores que começavam a bulir-me com os nervos. O Verão já tinha chegado ao fim e eu continuava a aguardar que me dessem a acreditação de imprensa, apesar de Mohammed me ter prometido que ia tentar apressar as coisas. A Maman Joon ia passar o Inverno em Shiraz e decidimos ir com ela.

O nosso primeiro dia e noite na Cidade da Rosa e do Rouxinol passaram sem incidentes. O apartamento antigo que partilhámos com a Maman Joon estava bastante mais deteriorado do que da última vez que eu lá estivera em 1980. Dava a impressão de ter sido apanhado num buraco do tempo - os comandos do ar condicionado haviam caído da parede e alguém os prendera com fita adesiva, o papel de parede começara a descolar-se e a alcatifa estava puída pelo muito uso. A cozinha transformara-se numa casa de lavagens onde a Maman Joon lavava num lava-louças manchado. Para lhe chegar, era obrigada a subir para cima de uma caixa de sabão muito periclitante.

Na segunda noite, estávamos nós no andar de baixo a ver um filme em vídeo do casamento de uma rapariga que não conhecíamos, quando a Maman Joon decidiu ir para a cama. Não permitia que nenhuma de nós subisse com ela, pelo que nos instalámos para ver outro vídeo. Duas horas mais tarde ouvimos pancadas no tecto. Poucos segundos decorridos já eu subira ao andar de cima, onde deparei com a Maman Joon estendida no meio do soalho da sala de estar. Tinha caído da caixa de sabão, tendo tentado arrastar-se até ao telefone. Gritava de dores, agarrada à anca direita. Eram duas da madrugada quando a minha tia telefonou a um médico amigo, um especialista em otorrinolaringologia que se apressou a ir a nossa casa. Garantiu-nos que ela não tinha fracturado nenhum osso e aconselhou-nos a deixá-la no chão até de manhã, altura em que poderíamos levá-la ao hospital para lhe fazerem uma radiografia.

Deixou-nos às três aconchegadas no soalho em redor da Maman Joon que não se calava, afirmando que tinha a perna em fogo. Algum tempo depois, sentia-se tão mal que achámos preferível chamar uma ambulância que a levasse ao hospital onde, apesar da hora, talvez houvesse alguém que a examinasse. A ambulância chegou e o motorista, que presumo que também fosse um paramédico, puxou a perna da Maman Joon em várias direcções, declarando que se mantinha intacta. Colocou-a em cima da cama e deixou-nos a tarefa de tentar minimizar as dores, colocando-lhe a perna em diversas posições até termos encontrado a mais confortável. No dia seguinte a radiografia confirmou-nos não haver nada partido; o médico prescreveu à Maman Joon algumas sessões de fisioterapia. Os gritos de dor e os constantes gemidos de agonia foram atribuídos ao histerismo de uma mulher idosa que procurava despertar a atenção dos outros. Independentemente do quanto ela insistisse em que havia algo de terrivelmente mal com a sua perna, que ia piorando de dia para dia, os médicos continuavam a dizer que as suas queixas deviam ser ignoradas.

Tendo em vista o coração debilitado da minha mãe, ao que se juntavam as dores nas costas que afligiam a tia Homa, eu não era exactamente uma pessoa que respirasse saúde; por conseguinte, cabia ao motorista de Homa a tarefa de levar a Maman Joon à casa de banho, lugar que ela tinha necessidade de visitar mais ou menos de meia em meia hora, nunca conseguindo dormir mais de alguns minutos seguidos. Havia momentos em que o que mais desejava era muito simplesmente uma hora de silêncio.

A minha mãe encontrava-se à beira de perder toda a sua paciência; ela própria tinha razões de sobejo para não confiar nos médicos, mas Homa insistia em que a mãe beneficiava dos melhores cuidados médicos possíveis. fomos ao médico com muita frequência apenas para sermos recambiadas de volta a casa, apesar do estado da Maman Joon se agravar de dia para dia, o que era por de mais evidente. Nenhuma quantidade de analgésicos, incluindo injecções de morfina, conseguiam adormecê-la-à noite, e como ela não dormia, mais ninguém era capaz de conciliar o sono. A Maman Joon mostrava-se cada vez mais frágil e desesperada. Não sabíamos o que havíamos de fazer para a ajudarmos.

Enquanto andávamos aflitas em Shiraz por causa do seu estado de saúde, a sua nora, Khanoum Sepahbod ("Senhora Generala"), a viúva de Daydee Jan, lutava pela sua própria vida em Teerão. Era a última de uma estirpe de grandes senhoras nobres.

Eu estava convencida de que daria em doida se mais algum azar daquela onda de pouca sorte nos atingisse. Foi por essa altura que Goodi, o filho de dez anos de Dada Jan, nos telefonou de Teerão para saber do estado de saúde da avó. A minha mãe e Homa estavam ocupadas a massajar a perna doente e por isso fui eu quem falou com ele.

Se eu te contar uma coisa, prometes que não dizes nada a ninguém? - perguntou-me ele.

- Claro que não digo - assegurei-lhe, sentada aos pés da cama da Maman Joon.

- Khanoum Sepahbod morreu - anunciou ele.

Fiquei atordoada. Só me apetecia chorar e gritar, não queria que aquilo fosse verdade, mas era, e eu nem sequer me atrevia a mostrar a tristeza que me assolava. Aquela era uma notícia que ninguém precisava de receber. Mas por muito que eu tentasse, era mais forte do que eu; tinha de contar a alguém, e por isso, assim que Homa desceu ao andar de baixo, fui atrás dela para lhe dar a má nova. Chorou por alguns instantes, e de súbito as suas lágrimas secaram.

- Vou dizer a Ghodsi. Vou ligar-lhe para lhe contar imediatamente. Ela está sempre a arranjar más notícias; portanto, agora é a minha vez de o fazer - disse a minha tia cheia de ódio e azedume que lhe transpareciam da voz, o que não era nada característico da sua forma de ser.

A Maman Joon não se mostrou muito perturbada com a notícia, parecendo ter ficado mais determinada em não se apagar durante o sono. Naquela casa, poucas de nós conseguiamos dormir, excepto no tocante ao Gordo, que aproveitou a oportunidade de ter tantas mulheres da família Pessian em reclusão para se exibir da forma mais ordinária que lhe foi possível. Ao fim da tarde em que regressámos com a Maman Joon do hospital onde fora radiografada, a minha mãe e Homa ajudaram-na a deitar-se e dei comigo sozinha sentada à mesa da sala de jantar com ele e o motorista; este último era um homem novo chamado Hamid, cuja irmã, Fati, era a noiva do casamento que vimos em vídeo na noite anterior.

- Então, os médicos tiveram uma boa panorâmica da rata da tua avó? - perguntou o Gordo.

Ali estava eu, muito contra a minha vontade, com aquele homem gordo que mais parecia um sapo, através de cuja braguilha das calças se via o pijama, sentado a encher o bandulho e agindo com a sua maneira de ser habitual. A vaga de fantasias sensuais que se adivinhavam nos seus lábios fez-me fugir dali lavada em lágrimas como uma completa idiota, mas eram lágrimas de raiva. Já tivera ocasião de o ver reduzir Homa a esse estado com as suas explosões de grosseria. Eu, a mulher que já ouvira tudo na vida, devia ter-me fingido de forte, mas além de me sentir extremamente chocada, fui incapaz de outra reacção.

Só desejava que a minha mãe melhorasse o suficiente para poder fazer a viagem aérea de regresso a Inglaterra, onde voltaria a sentir-me em segurança. Mas parecia que o pesadelo se estendera até à Grã-Bretanha. Se bem que eu não visse os filhos de Robert Maxwell' desde os meus tempos de estudante, aceitei a morte do pai de ambos como se fosse outro incidente funesto que tomava de assalto a minha sanidade mental. Todas as pessoas que haviam atravessado a minha vida davam a impressão de estar a morrer. Situação que se agravou quando Mahshid, agora em segurança de volta a Oxford, me deu a notícia de que o sobrinho de uma das minhas amigas de infância fora encontrado morto na sua cama, sem que ninguém soubesse com exactidão por que motivo.

- O Freddy Mercury' morreu ontem à noite - acrescentou ela quando eu ainda não me tinha recomposto daquela última tragédia.

 

Judeu checoslovaco que adoptou a cidadania britânica. Foi senhor de um vasto império da comunicação social; morreu a bordo do seu iate em 1991, em condições misteriosas. (N da T.)

O famoso vocalista da conhecida e popular banda The Queen. (N. do E.)

 

Senti-me devastada: esta morte parecia-me mais pessoál do que todos os falecimentos do ano anterior. Freddy fora um rapaz simpático, um zoroastriano, e todos sabemos que estes foram originalmente persas. Nós, os persas, tínhamo-nos sentido tão orgulhosos por um dos "nossos rapazes" se ter saído tão bem. Apesar de os molás terem proibido toda a música pop, assim como a cultura ocidental, Freddy continua a ser visto na sequência de abertura de um resumo noticioso semanal transmitido às sextas-feiras pela televisão iraniana.

Estava eu prestes a chegar à conclusão de que esta tentativa de iniciar uma nova vida no Irão fora um erro terrivel, só me restando fazer as malas e regressar a Inglaterra, quando o primo de Mohammed no Ministério da Obstrução me telefonou a informar-me de que estavam à minha espera para uma entrevista com os "nossos irmãos do Pensamento Islâmico", marcada para daí a dois dias. Eu não fazia a mais pequena ideia do que era o "Pensamento Islâmico", tal como não sabia que tipo de perguntas me fariam. Uma das minhas amigas que vivia em Teerão e se mantinha ao corrente deste tipo de coisas, sugeriu que talvez se tratasse de uma sessão onde eu teria de provar que era uma boa muçulmana. Num grande estado de pânico, comecei a tentar aprender os nomes dos imãs xiitas, e outros pormenores similares de natureza religiosa. Desta vez talvez viessem a descobrir a minha ignorância, e em consequência disso o meu destino seria a Penitenciária de Evin.

 

                   O ódio a Robert Fisk

O percurso para se obter uma acreditação de imprensa na República Islâmica é longo e traiçoeiro, um processo que foi atrasado em vários meses por causa de um tal Robert Fisk, uma super- estrela da imprensa. Permitam-me que vos diga que desde o início me senti irracionalmente invejosa do senhor Fisk, o que acontecia há vários anos. Ele fazia precisamente aquilo que eu desejava fazer - cobrir todos os acontecimentos jornalísticos do Médio Oriente - e, pior ainda, cumprindo muito bem essa missão.

Comecei a ressentir-me ainda mais dele quando, na posição de sub-redactora do Independent, me disseram que os seus artigos eram sagrados e que devia tratá-los como se fossem a palavra de Deus. Poderia massacrar a meu bel-prazer os artigos escritos pelos outros jornalistas, mas no que se referia a Fisk era necessário que estivesse bem segura de ter uma justificação muito boa antes de alterar qualquer coisa, até mesmo a vírgula mais insignificante.

Aquando do meu regresso ao Irão, prometera a mim mesma que um dia faria com que o meu nome fosse sinónimo da cobertura jornalística de todos os assuntos islâmicos. Tendo posto de parte a ideia da prática de subornos, voltei-me para a "influência inapropriada", numa tentativa para apressar o Ministério da Obstrução. Uma velha amiga, que recentemente regressara ao país depois de ter vivido em França, conhecia um rapaz que por seu lado conhecia um homem que era casado com a prima da mulher de um outro homem que chefiava o departamento que deveria emitir a minha acreditação. Uma palavra dita ao ouvido certo e o meu pedido foi imediatamente colocado no topo da lista.

Imaginei que a espera terminara quando Mohammed me disse que me passariam uma acreditação "provisória" que me permitiria assistir a conferências de imprensa restritas, assim como a quaisquer eventos que o Ministério da Obstrução me desse a conhecer.

Contudo, não poderia escrever uma só palavra, sob pena de vir a sofrer um castigo exemplar, que não houvesse sido previamente sancionada pelos meus mentores. Fazendo letra morta destas advertências, há já vários meses que escrevia artigos de imprensa. As conversações de paz relativas ao Médio Oriente, que teriam lugar dentro em breve em Madrid, eram o acontecimento mais importante de 1992 relativo a essa parte do mundo, pelo que fiquei contentíssima quando a República Islâmica decidiu dar uma conferência de imprensa alternativa. Tratava-se de um evento a que eu não poderia faltar fosse por que motivo fosse; não só por causa do impacto que aquelas notícias teriam, mas também porque se dizia que gente como George Habash, e até talvez mesmo Yasser Arafat, estariam presentes. No entanto, o Ministério da Obstrução, do alto da sua sabedoria, decidiu que não era necessário eu assistir a esta alegre reunião de terroristas que teria lugar no Hotel Esteghlal - o Hilton de Teerão. Depois de muita indignação, de pleno direito, ao que aliei ameaças de embaraçar o regime dizendo ao mundo que me haviam impedido de estar presente, desisti da tentativa de obter a bênção deles. Não obstante todos os entraves, decidi assistir a essa conferência de imprensa.

Desde o meu regresso ao Irão que o Hotel Hilton era a minha base, sendo aí que me encontrava com todos os meus contactos, para além de utilizar o fax do hotel para enviar os meus artigos - com toda a certeza que não teria qualquer dificuldade em encontrar um membro do pessoal do hotel que me deixasse entrar pela calada. Nunca me passou pela cabeça que os funcionários do Ministério dos Subornos dependéssem daquela conferência de imprensa para aumentar os seus ganhos anuais, e que uma bela aparelhagem estereofónica para um dos meus mentores, uma ou duas moedas de ouro, pudessem abrir-me as portas do hotel. Enquanto os combatentes pela liberdade vindos dos quatro cantos do universo convergiam para Teerão, imaginei que "não" significava realmente "não": Pensavam que me podiam manter à margem, não é verdade? Pois bem, homens melhores do que aqueles haviam fracassado, para além de que os de pouca coragem nunca tinham ganho prémios. Seria fácil; limitar-me-ia a entrar no hotel como se não fosse nada comigo, alegando que ia buscar um fax - já tinha combinado que me fosse enviado um desses documentos no primeiro dia da conferência. A Unidade de Comandos da Guarda Islâmica, destacada para a entrada do Hotel Hilton, tinha outras ideias. Todas as minhas afirmações de que era a correspondente do Independent não conseguiram persuadi-los a afastar o cano da metralhadora que - uma vez mais - mantinham mesmo à frente do meu nariz.

- Que maneira pouco islâmica de tratar uma senhora - queixei-me enquanto retrocedia até à segurança do automóvel que alugara, e que naquele momento bloqueava o acesso às viaturas oficiais que saíam da auto-estrada a caminho da conferência. Seria forçada a experimentar outra estratégia.

Entretanto, surgiu uma caravana de limusinas blindadas equipadas com radar, de proveniência norte-americana, que transportavam os grandes e poderosos das esferas terroristas. As figuras de menor importância eram conduzidas de um lado para o outro numa frota de carros similares, BMWs de um azul-marinho, assim como alguns dos melhores modelos Mercedes-Benz. Dado que não podia entrar, pelo menos estava decidida a assistir ao espectáculo. Assim, instalei-me junto de uma parede preparada para a minha vigília, ignorando as instruções dos militares para que saísse dali para fora.

Uma das vantagens da tradição islâmica é que os homens não podem tocar em mulheres desconhecidas; por conseguinte, determinada a não arredar pé, os guardas não podiam fazer mais nada para além de franzirem o cenho, limitando-se a acenarem-me com as suas armas. Finalmente, acabaram por concluir que se eu era suficientemente idiota para me sentar sob o sol escaldante do meio-dia, também seria suficientemente doida para me arriscar a ser alvejada, e optaram então por se recolherem à sombra de um toldo improvisado.

Por volta da hora do almoço saiu um grupo de mujahiddin afegãos que se reuniu à minha frente a discutir como é que haveriam de passar a tarde. O meu pushsto não era suficientemente fluente para me permitir acompanhar a conversa, mas entendi o bastante para compreender que consideravam aquela visita a Teerão como uma oportunidade para um pouco de "descanso e recreação", afastados da sua própria guerra civil. Estavam prestes a prosseguir caminho quando os guardas deslocaram a barreira, dando entrada a um Mercedes particularmente luxuoso. Um pouco recuados, os afegãos reconheceram um dos seus dirigentes, e enquanto se manifestavam ruidosamente, com risos e acenos de aprovação, a figura franzina sentada no assento traseiro acenou com um coto onde em tempos estivera uma mão. Este gesto deu origem a mais manifestações de regozijo. Depois de estes lutadores da fé se terem finalmente dispersado, comecei a ponderar nos beneficios que a breve ausência destes homens representava para os povos do respectivo país natal, que sofriam na pele as consequências dos seus jogos de guerra.

A intervalos irregulares, iam chegando alguns iranianos que não tinham a percepção de que o Hilton fora declarado parte da Palestina pelo tempo que a conferência duraria. Sem uma só excepção, os iranianos amaldiçoavam o governo que desbaratava o dinheiro dos contribuintes naquela "ralé" ou "naqueles campónios", ou ainda "naqueles assassinos e selvagens". No entanto, honra fosse feita aos molás: aquele tipo de críticas jamais teria sido tolerado sob o regime do xá.

Num fax subserviente - que enviei da estação principal dos correios - endereçado à redacção do Independent, pedia desculpa por ter sido impossibilitada de fazer a cobertura da conferência; não tive resposta, o que me levou a convencer-me que deveriam considerar que eu era absolutamente inútil. Mais tarde, vim a saber a razão daquele silêncio, não através dos meus colegas, mas sim pelo Ministério da Obstrução.

Um telefonema logo de manhã; feito pela Ms. Lunática, convocou-me para uma reunião para o dia seguinte com os funcionários do Ministério da Obstrução.

- Recebemos um relatório de Londres que nos informa que tem andado a escrever artigos para a imprensa sem a nossa autorização - disse-me ela; o que eu não podia negar.

- Não posso fazer mais nada por si - acrescentou ela depois de me garantir que, segundo as circunstâncias, não havia maneira nenhuma de eu vir a receber a minha acreditação de jornalista.

Um telefonema a Mohammed confirmou que eu estava metida em grandes apuros; todavia, ele estava seguro de que se limitariam a pedir- me que abandonasse o país.

Na manhã seguinte fui apressadamente conduzida ao gabinete de um homem baixinho e com bigode que não era mal-parecido de todo, vestido com estilo em tons de um bege imaculado. Perguntou-me se eu preferia conversar emfarsi ou em inglês, tendo eu optado pela minha língua materna, pensando que aquilo seria levado a meu favor por não dar a impressão de ser demasiado britânica. O facto de não ser capaz de me expressar fluentemente nessa língua não me impediu de fazer essa opção. Na realidade, tenho a certeza de que aquela singularidade na minha maneira de falar pode muito bem ter contribuído para me salvar então, e em muitas outras ocasiões, de um destino pior.

- Recebemos informações de que escreveu um artigo que lesa a reputação da República Islâmica, assim como a dos seus dirigentes - disse o homem com toda a solenidade.

- Nem sempre estive contra o meu país Natal nem contra os meus concidadãos, pelos quais estive pronta a morrer. Venho de uma família em que alguns de nós já morreram pela sua pátria - disse eu atabalhoadamente, esquecendo-me da palavra para mártires. Vi pela expressão dos seus olhos que ele não tinha a menor noção do que é que eu estava para ali a papaguear.

- Foi publicado um artigo altamente prejudicial para nós, creio que no Independentcontinuou ele.

- Eu nunca escrevi nada de mal. Como é que não sabe ao certo qual foi o jornal? perguntei numa frase em que as regras gramaticais me abandonaram.

- O autor desse artigo foi Robert Fisk; portanto, só pode ter sido no Independent. Ao fim e ao cabo, a correspondente desse jornal neste país é você - redarguiu, como se aquilo que me estava a dizer fizesse algum sentido.

- Por acaso eu pareço-me com Robert Fisk? - perguntei cheia de indignação. A minha frase não tinha o mínimo significado emfarsi, pelo que ele se limitou a ficar a olhar para mim. - Não sou Robert Fisk; não escrevo no estilo de Robert Fisk. Se Robert Fisk escreveu algo que não lhe agrada, deve dizer isso ao próprio Robert Fisk e não a mim.

- Mas acontece que Robert Fisk já abandonou o Irão - adiantou ele como se aquilo explicasse tudo.

- Portanto, como não pode chegar a Robert Fisk, decide implicar comigo! O presidente Rafsanjani pede aos iranianos que regressem ao seu país para ajudarem a sua pátria e a revolução, dizendo que os iranianos devem ter precedência sobre os estrangeiros. Eu tenho uma posição segura no Independent, que me permitiu vir para cá com o fim de servir o meu país e tentar reverter as coisas erradas que foram ditas sobre nós. Mas lá porque houve um estrangeiro qualquer que escreveu algo prejudicial, eu não tenho de sofrer as consequências. Seja como for, nunca deveriam ter permitido que ele entrasse no país. Tinham uma pessoa registada como correspondente do Independent aqui. Devíamos sentir-nos irritados convosco por continuarem a mostrar mais deferência para com os estrangeiros do que para com os iranianos - retorqui com veemência, começando a aquecer a respeito do assunto que me interessava.

O inquiridor replicou um tanto envergonhado que Robert Fisk estava impedido de entrar no país. De acordo com o que o Ministério da Obstrução dizia, ele entrara furtivamente com a delegação libanesa, não tendo sido descoberto na lista daqueles a quem haviam sido dados vistos de entrada. Ditas aquelas palavras, mandou-me embora, dizendo-me que seriam forçados a reter a minha acreditação de imprensa por pelo menos dois meses. Mas acrescentou que não havia razões para que eu me preocupasse; tencionava informar as autoridades da segurança nacional que acreditava que eu amava verdadeiramente a minha nação.

Londres manteve-se surpreendentemente silenciosa acerca do assunto respeitante ao senhor Fisk que eu odiava de morte, um sentimento cada vez mais crescente. Apesar de não ter sido punida até ao momento por ter escrito os artigos, sabia que a partir de agora a vigilância sobre mim passaria a ser mais apertada. Consequentemente, estava restringida às publicações que não mencionavam o nome dos autores dos artigos que publicavam.

A minha experiência com o Ministério da Obstrução não me encheu de confiança quando finalmente chegou o dia em que me reuniria com o Pensamento Islâmico, o que quer que isso fosse. Nos meus anos de universidade tinha estudado o Corão por alto, ouvindo atentamente as versões islamitas dos meus pais e da Maman Joon; no entanto, para lá dos conhcimentos básicos, eu pouco mais sabia.

Foi com alguma perturbação que entrei no gabinete onde o meu inquiridor conduziria a reunião. A última vez que eu tinha visto uma personagem como a que encontrei sentada por detrás de uma secretária em mau estado fora num desses noticiários de Teerão durante o periodo revolucionário, quando os homens barbudos batiam no peito, assim como na cabeça de outras pessoas, numa demonstração de devoção a Khomeini. Aquele homem corpulento, que usava o casaco obrigatório de camuflado de combate, e a bara curta que tão em moda estava, parecia ter saído directamente das ruas ensanguentadas onde as multidões faziam em pedaços os corpos dos "servos do regime tirânico".

A cena com que me deparei poderia ter feito parte de um qualquer romance de espiões, num estilo literário de cordel. A sua silhueta sentada recortava-se contra a luminosidade que entrava por uma janela. Havia sobre a secretária um candeeiro de luz intensa, apesar da luz do sol que inundava a sala. Presumo que a intenção era eu não poder discernir com clareza as feições do homem - naquela altura, eu já deveria tremer que nem varas verdes. Mas aquela encenação tão óbvia só me deu vontade de rir, o que me incutiu alguma tranquilidade. Tinha tido tantas dificuldades até ao momento que seria com grande alívio que aceitaria qualquer decisão que não me fosse favorável.

Pensei que a figura que se mantinha de pé a um canto era uma versão particularmente realista daqueles índios de madeira que costumamos ver à entrada das lojas nos filmes de índios, até que se mexeu sentando- se à minha frente. Durante os noventa minutos seguintes, manteve-se a olhar fixamente para os pés, afivelando uma expressão imperscrutável num rosto bastante enrugado. Touro Sentado, alcunha que entretanto lhe dei, dado que ninguém me indicou qualquer outro nome, personagem que passaria a ser a minha sombra ao longo dos dezoito meses que se seguiram, período em que acabei por desistir de me ocultar atrás de pilares sempre que dava pela sua presença - o que aconteceu amiudadas vezes.

É possível que aquela encenação não primasse pela qualidade, mas quem a dirigia não era nenhum espião de romances de cordel; era o artigo no que tinha de mais genuíno. Naquele dia, quando finalmente acabou com os seus jogos de mente aplicados à minha pessoa, fiquei convencida de que era realmente uma espia britânica enviada ao Irão com a missão de fazer cair o governo islâmico. Ele nunca fez qualquer alusão directa a esse assunto, mas os seus olhos diziam-me: Ambos sabemos quem tu és".

Expliquei o quanto desejava aclarar qualquer aspecto menos claro relativo ao Irão e ao islamismo, afirmando ser minha intenção repor a verdade quanto aos preconceitos, e interpretações erróneas, que haviam dominado a imprensa ocidental.

- Não queremos pessoas que venham cá com o único fito de ganhar dinheiro e logo depois regressar aos países ocidentais - disse-me ele depois de eu ter acabado de falar atabalhoadamente sobre as minhas intenções.

-Eu estou aqui para ficar e para servir a minha pátria - garanti-lhe com veemência. Iniciou o interrogatório pelo dia do meu nascimento, após o que começou a abordar os trinta e quatro anos seguintes, que foram analisados com um pormenor microscópico. Sempre que eu me sentia à vontade com um tópico qualquer, ele saltava de imediato para qualquer outro ponto que eu mencionara de fugida anteriormente, submetendo-me a um interrogatório cerrado para saber exactamente o significado das minhas palavras. Enquanto eu lhe falava dos meus dias de estudante universitária, de repente ele fazia-me perguntas sobre os meus pais. Certamente estaria ao corrente dos antecedentes da minha família, se bem que não tenha mencionado os tribunais nem as condenações. Enquanto eu falava, sentia-me aterrorizada com a possibilidade de alguma madeixa de cabelo se escapar de debaixo do keffyeh, a toalha de mesa que Yasser Arafat costuma usar enrolada à cabeça. Teria eu removido todos os vestigios de rimel na noite passada? Eram estes os pensamentos que me passavam pela cabeça enquanto enumerava os empregos que tive desde que saí de Manchester.

Ainda pensei em repetir as mentiras inofensivas que tinha dito a Babai, a fim de evitar ter de admitir que era jornalista, ainda que todos os muçulmanos soubessem que "o mentiroso é o inimigo de Deus e irá para o Inferno". Nessa ocasião eu dissera que estivera em Hong Kong com o propósito de estudar gestão portuária - foi a primeira coisa que me ocorreu à mente. Depois de ter dito a primeira mentira, só me restava continuar, dizendo que tinha estudado gestão portuária na universidade. Desta feita joguei pelo seguro, revertendo à minha profissão de jornalista.

Nenhum de nós aludiu ao facto de eu ser supostamente filha de um notório agente da CIA - é o que se encontra lavrado na sentença de julgamento do tribunal islâmico que nos espoliou dos nossos bens. Também não mencionou que o meu nome consta da lista dos que estão impedidos de efectuar qualquer transacção financeira, o que na prática significa que nem sequer posso abrir uma conta bancária, comprar um carro ou alugar um apartamento.

Eu estava bastante acostumada a que o meufarsi atabalhoado causasse grande hilaridade, mas quanto mais aquele fulano se embrenhava na nossa entrevista, mais ele desfrutava da situação, e menos eu compreendia aquilo que me dizia. O divertimento alcançou o seu pico quando me fez a pergunta seguinte.

- Está com muita pressa em obter a sua acreditação de imprensa?

- Não me parece que se possa dizer que vos tenha dado pressa. há já quatro meses que aguardo esse documento - repliquei um tanto quanto irritada.

Os seus lábios rasgaram-se inesperadamente num sorriso alargado, ao mesmo tempo que os seus olhos adquiriam um brilhozinho malicioso.

- Para ser exacto, exactamente há três meses e dez dias - conseguiu ele dizer antes de começar a rir-se a bandeiras despregadas. Até mesmo Touro Sentado conseguiu esboçar o arremedo de um sorriso.

- Está enganado. passaram precisamente quatro meses - repliquei.

- Não, não e não - contrapôs ele rindo-se à socapa. Faz hoje exactamente três meses e dez dias - insistiu por entre um riso casquinado.

Teria o homem perdido o juízo? Procurei o meu diário dentro da minha mala de mão.

- Olhe - disse eu abrindo o diário na entrada onde escrevera "Fui pedir a acreditação e conheci a mulher lunática que falava com fantasmas". Nesta altura ele ria-se com tanta alacridade que esteve quase a cair da cadeira abaixo. Mal conseguia proferir as palavras enquanto me explicava que teria de regressar para outra reunião dentro de "algumas semanas", e quando me mandou embora ouvi-o desmanchar-se a rir.

Nessa mesma noite descrevi a Minu aquela cena absolutamente extraordinária.

- O grande sabujo! - exclamou ela enrubescendo. Ao cabo de muitas insistências da minha parte, acabou por me explicar que três meses e dez dias era o período de tempo que uma mulher tinha de esperar entre casamentos temporários, o que se destinava a garantir que ela não estava grávida.

- Ele estava a atirar-se a ti, o grande sacana! - acrescentou Minu para o caso de eu ainda não ter entendido a mensagem.

Aquilo não podia estar a acontecer, encontrávamo-nos na República Islâmica, para não mencionar que o homem era sem sombra de dúvida do Hezbollah. Num país onde um homem e uma mulher estão proibidos de trocar um aperto de mão, certamente que um funcionário público não se atreveria a fazer investidas amorosas contra uma jornalista jovem e inocente.

O islamismo xiita é único ao permitir os seegheh, ou seja, "casamentos temporários". As duas partes concordam em casar por uma hora, um mês oumesmo cinquenta anospelo espaço de tempo que desejarem. O homem poderá pôr fim a este tipo de matrimónios a qualquer altura, enquanto a mulher não poderá casar com outro homem nos cem dias seguin tes, para que se conheça a identidade do pai caso ela tenha engravidado.

Os homens de fé muçulmana nunca devem ser privados das suas actividades sexuais. Anos atrás ouvi o ayatollah Khomeini aconselhar as mulheres casadas a arranjarem um seegheh para os maridos enquanto estivessem com o período, ou para quando estes tivessem de se ausentar em viagem. Foi-me quase impossível acreditar no que ouvia. Esta prática encontrava-se especialmente bem aperfeiçoada nos locais de peregrinação como Qom e Mahshad onde os peregrinos do sexo masculino arranjavam um seegheh pela duração da visita religiosa. Na época do meu bisavô, quando os homens ricos enviavam as respectivas mulheres para fora da cidade a fim de fugirem aos efeitos do calor, costumavam combinar este tipo de casamentos para saciarem os seus apetites carnais. Havia muita gente que afirmava que a Fundação pára o Matrimónio, estabelecida após a revolução, mais não era do que o bordel legalizado através do qual o regime faculta mulheres aos fiéis - na sua maior parte por meio de casamentos temporários.

Aquelas peripécias propiciaram um breve interlúdio no drama prestes a passar a um novo acto.

No dia a seguir ao meu encontro com Touro Sentado e o seu chefe, Olhos Cintilantes, chegaram notícias de Shiraz que nos informavam que a Maman Joon fora consultar outro médico que confirmou que efectivamente ela tinha fracturado a bacia. A partir do momento em que esta fractura foi diagnosticada, foi preciso exercer todas as influências para se conseguir que ela fosse internada no "melhor hospital ortopédico de Shiraz", antes de se começar a mover céu e terra para encontrarmos o osso substituto. Homa entregou-o literalmente ao cirurgião quando este entrou no bloco operatório.

Tratava-se de um hospital saído do inferno. Quando lá entrei pela primeira vez, desatei a chorar incontrolavelmente. A tinta estava toda a lascar das paredes, e o ambiente tresandava ao fedor cediço que emanava das latrinas. Nas enfermarias ouviam-se gemidos vindos de camas que eram partilhadas com baratas.

A Maman Joon encontrava-se numa enfermaria para quatro pessoas, mesmo em frente de uma das casas de banho que tanto fediam. O seu colchão ortopédico tinha uma cratera mesmo ao meio; os lençóis do hospital, rasgados e com nódoas, já haviam sido substituídos por outros trazidos de casa. A torneira do lavatório junto da porta gotejava durante toda a noite, e também não teria merecido quaisquer prémios pelo asseio. Todo o chão do hospital era uma enorme imundície, o mesmo acontecendo às paredes - o interior era de uma esqualidez confrangedora. Havia um enorme caixote do lixo por baixo do lavatório onde eram colocados os pensos sujos de doentes presentes e de outros que já ali não estavam, situação que se mantinha apesar da propagação da Sida. Encontrava-se como que em combustão lenta, ameaçando infectar-nos a todos.

Nos primeiros dias de internamento, a enfermaria foi partilhada só por mais duas pacientes. Na cama ao lado da de Maman Joon estava deitada uma jovem encantadora de dezanove anos da tribo Lar, uma gente maravilhosa que primava pela vivacidade. Não fazia ideia de que deixara de ser mãe, uma vez que a filha recém-nascida tinha morrido na colisão que a levou de urgência àquele lugar de Hades' com um fragmento de metal que lhe trespassou a espinha. Era fascinante observar as visitas que recebia. Sempre que chegavam em grupo, vinham de mãos dadas, oscilando e fazendo pequenas vénias sucessivas, enquanto beijavam as mãos uns dos outros numa espécie de ritual elaboradamente coreografado. A mãe e a

 

O deus dos Infernos na mitologia grega. Na crença popular, confunde-se com Plutão. (N da T.)

 

sogra da rapariga revezavam-se nos cuidados que lhe prestavam dia e noite. Foi esta última quem nos contou que a jovem perdera o filho no ano anterior: caíra acidentalmente dentro do poço da aldeia e morrera afogado.

Não se sabia ao certo se a rapariga conseguiria voltar a caminhar. No seu segundo dia de internamento, o cirurgião deteve-se junto da cama durante o tempo suficiente para lhe perguntar se o penso do ferimento fora substituído. Não havia sido. Nessa noite, por volta da meia-noite, a minha avó mantinha-se de vigília quando as outras doentes foram despertadas pelos gritos da rapariga. Uma enfermeira estava debruçada sobre ela e tinha o penso sujo na mão.

- Se não gosta de estar neste hospital, pode ir-se embora neste preciso momento. Vamos lá, levante-se e ponha-se na rua! - berrou ela enquanto a doente gemia de dores. Aquele "anjo" tinha-se aproximado furtivamente da jovem enquanto esta dormia e arrancara-lhe o penso de repelão.

- A quem é que podemos participar dela? - perguntou a minha mãe à minha tia no dia seguinte.

- Não há ninguém a quem nos possamos queixar - disse-nos a irmã da terceira paciente. - Quando nos queixamos, elas ainda tornam as coisas piores para as internadas.

Isto não impediu que a minha mãe fosse falar com o administrador do hospital, dizendo-lhe que participaria dele junto da Cruz Vermelha Internacional. Subitamente, começámos a receber um tratamento de quatro estrelas no nosso pequeno canto das tormentas.

O terceiro canto daquele reino quase dominado por Hades era ocupado por Nosrat, uma octogenária que éra uma vendedeira ambulante sob os cuidados da sua irmã, Tooran. Nosrat era á sombra de uma mulher devido aos muitos anos de dependência do ópio, vício que a deixara quase transparente, com uns cabelos esparsos que lhe davam pela cintura, brancos nas raízes mas com uns resíduos de um laranja-acobreado nas pontas, o que era devido a uma tinta à base de hena. As duas irmãs foram abandonadas pelos respectivos maridos, que por seu lado também eram irmãos, assim como pelas primas, há mais de trinta anos. Em tempos Tooran fora proprietária de uma caravana onde vendia fruta e verduras às esquinas das ruas da cidade.

- Os nossos vizinhos tinham aversão a ver duas mulheres que se governavam sem a ajuda de ninguém. Fizeram tudo e mais alguma coisa para nos dificultarem a vida - confiou-nos Tooran. Finalmente, foram obrigadas a desistir do seu meio de vida, tendo perdido a caravana. Desde então que subsistiam vendendo cigarros num tabuleiro no passeio de uma rua, mas certo dia uma mula ficou enraivecida e deu um coice na anca de Nosrat.

Nas poucas ocasiões em que esta se encontrava mentalmente consciente, Nosrat sentava-se na cama e falava com toda a gente que quisesse dar-lhe ouvidos.

- Não tenho sorte nenhuma, até mesmo na minha pouca sorte. Certas pessoas que são atropeladas por um BMW podem vir a receber algum dinheiro de um homem rico. Eu. fico partida ao meio depois de uma mula ter colidido comigo. Musa Agá (o dono da mula) nem tem dinheiro para mandar cantar um cego, quanto mais para me pagar as despesas do hospital - diria ela num riso casquinado.

Se havia alguém que tinha motivos para desistir de viver era Tooran: não só fora abandonada pelo marido, mas também pelos filhos posteriormente. Mau-grado a sua idade avançada, continuava a ver-se forçada a trabalhar para poder sustentar-se, assim como à irmã, que depois daquela fractura necessitaria de cuidados constantes. Não obstante a adversidade, provavelmente era a mulher com mais vivacidade que alguma vez conheci, sempre com um sorriso nos lábios e um bom humor que nos ajudava a passar alguns dos piores dias. Nunca mais me esquecerei da ocasião em que me aventurei a ir a uma das fétidas casas de banho do hospital, onde descobri que a pessoa que a utilizara antes de mim tinha vazado os intestinos no chão. Vomitei no enorme caixote do lixo por baixo do lavatório da enfermaria. A visão dos pensos cheios de sangue fez com que o meu estômago se revoltasse ainda mais. Tooran não perdeu tempo, começando logo a tratar da limpeza e providenciando para que o caixote do lixo fosse removido, após o que agarrou numa mangueira com que limpou as fezes do chão da casa de banho. Dava a impressão de considerar que era um favor permitirem-lhe fazer aquilo.

Esta cena tornou a situação ainda mais confrangedora quando finalmente ela se foi abaixo entregando-se a uma crise de choro. Este episódio aconteceu ao fim de uma tarde, enquanto as doentes e os familiares que as tinham ido visitar trocavam histórias de horror relativas ao hospital. Inesperadamente, Tooran começou a arengar acusando os médicos de serem uns carniceiros.

- Não são os médicos, mas sim o sistema e nós que permitimos que nos tratem tão mal - disse eu na minha total ignorância.

- Como é que eu poderia impedir isto? - perguntou-me ela aos gritos e atravessando a enfermaria num passo apressado, enquanto levantava as camisolas revelando uma série de cicatrizes grotescas na região onde deveria ter estado o seu seio direito.

Até mesmo aos olhos de qualquer amador, aquilo parecia obra de um carniceiro e não de um cirurgião: as cicatrizes eram irregulares, com pedaços de carne que oscilavam entre os pontos da sutura. Iam do ombro direito até ao umbigo, assim como do topo do outro seio até à linha da cintura no lado oposto. A meio do peito tinha outra cicatriz de lado a lado.

- Eu não sou ninguém, não sou nada! Eles podem cortar-me e deitar-me para o lixo. O nosso sobrinho morreu na guerra deles, mas houve um fumcionário gordo que me disse que não sabe quando é que a Fundação para os Mártires terá dinheiro para poder pagar a conta do hospital pelo internamento da minha irmã. Já devo trinta mil tomans que fui obrigada a pedir emprestados antes de nos deixarem entrar nesta pocilga - desabafou ela por entre as lágrimas.

Quando estávamos todas a sentir-nos verdadeiramente deprimidas, as coisas pioraram ainda mais. Uma mulher que fora abandonada nas escadas do hospital foi atirada para a quarta cama sem quaisquer cerimónias. Tinha as pernas esmagadas e era óbvio que o seu delírio se devia às dores que sofria. No primeiro dia encheram-na de medicamentos, após o que foi levada não sei para onde - presumimos que para a sala de operações. No seu regresso à enfermaria, foi ignorada por médicos e enfermeiras. Estava imunda, ao ponto de a enfermaria cheirar ainda pior do que antes. Tooran assumiu a responsabilidade dos cuidados a prestar àquela mulher, que sujava constantemente a cama e tinha de ser alimentada à força - ocasiões em que era frequente resistir, ferrando os dentes na mão que a alimentava. A revolução islâmica prometera humilhar os poderosos, exaltando os mansos e os oprimidos. Pois bem, a mulher do general certamente fora humilhada, mas o certo é que os mansos se encontravam na mesma situação. É possível que as personagens se tivessem alterado, mas o poder era comandado pelos melhores, enquanto os oprimidos, os vendedores de rua, as raparigas das aldeias com as pernas esmagadas e as jovens mães desgostosas, continuavam todas no escalão mais inferior da sociedade.

Nunca me senti tão feliz por poder abandonar um lugar como quando saí para não mais voltar àquele hospital. Quando a Maman Joon regressou a casa, já tínhamos meios para poder pagar a uma criada que ficou a viver connosco e que nos ajudava com os cuidados prestados à convalescente, para além de também podermos pagar as visitas que o cirurgião e a fisioterapeuta faziam ao domicílio. Caso a meio da noite ela não fosse capaz de suportar as dores, ainda tínhamos meios financeiros para pagar ao homem que chamávamos para lhe dar uma injecção de morfina. Mas apesar de todas estas vantagens, cada vez nos desintegrávamos mais; portanto, como é que aquela gente indefesa se sentiria?

Eu tinha chegado ao Irão apenas há cinco meses, mas só me apetecia atirar-me abaixo da janela mais próxima.

Homa mostrava-se cada vez mais deprimida, sendo frequente darmos com ela a chorar a um canto qualquer da casa. Mergulhava num pranto convulsivo, dizendo-nos como tinha esperado poder proporcionar-nos uma estadia agradável em Shiraz e estarmos ali confinadas em sua casa, forçadas a tratar de uma mulher de idade e a tolerar as impertinências do marido. Ele tirava o maior partido possível da situação, sabendo de antemão que, fizesse o que fizesse, nenhuma de nós se encontrava em situação de sair porta fora. Assim, começou a acusar a minha tia de cometer adultério com todo o bicho careta. Se fosse visitada por alguma das suas amigas, ele não hesitaria em atormentá-la com as alegações mais ordinárias que se pudesse conceber. Recordo-me de uma ocasião em que esperávamos dois irmãos solteiros para o jantar, enquanto o Gordo descrevia com pormenores minuciosamente gráficos os actos sexuais que afirmava serem praticados pelos dois homens.

Foi com grande alívio que recebi um telefonema de Teerão que me convocava para a segunda entrevista com Olhos Cintilantes.

Naquela altura, a última coisa de que eu necessitava era voltar para a Casa do Desânimo, e por isso recorri a Mrs. Mo, uma amiga muito chegada e de longa data da família, que me salvou ao oferecer-me algum espaço no seu andar. O senhor Mo fora um daqueles amigos queridos que tinham falecido nesse mesmo ano. A viúva vivia num apartamento de um só quarto, com uma filha divorciada de quarenta anos de idade, a qual abandonara os filhos em Espanha, e o filho de trinta e cinco anos, cuja segunda mulher fugira para a Suécia depois de ter levantado o dinheiro todo que tinham na conta bancária. As duas mulheres passavam o dia a mudar de poltrona para poltrona enquanto iam deixando cinza dos cigarros por onde passavam. O filho ensinava Inglês entre os períodos em que dormia horas a fio, sonos que por vezes duravam três dias seguidos. Todavia, eram pessoas generosas, e pelo menos apareciam alguns vizinhos com quem nos entretínhamos. Até tinham contratado um homem que entregava as cassetes de vídeo ao domicílio e cujas visitas nocturnas eram o ponto alto da nossa semana. Sentia-me esfaimada por cultura ocidental, tinha saudades dos cinemas e da Rádio 4, mais do que de quaisquer dos "outros instrumentos da decadência" que deixara ao partir de Inglaterra.

O único senão em viver com a família Mo era que se por acaso deixámos qualquer coisa abandonada naquele apartamento, era certo e sabido que seria deveras improvável que se voltasse a encontrá- la. No meu primeiro dia perdi um par de sapatos que foram encontrados seis meses mais tarde, quando foi preciso remover da casa de banho um amontoado de roupas do chão que ficou inundado. Eram pessoas da noite que só adquiriam vida depois da meia-noite, o que na prática significava que só muito raramente é que eu ia para a cama suficientemente cedo para não acordar com o aspecto de uma morta-viva caso no dia seguinte tivesse de me levantar cedo. Apesar de todos estes inconvenientes, era preferível à Casa do Desânimo, dado que podia dispor de uma aparelhagem estereofónica e de um vídeo, para além de pessoas normais que estavam sempre a chegar e a partir, ao invés do olhar mesmerizado de cansaço de Nastaran.

Vivíamos numa torre de apartamentos de "luxo" situada na elegante via rápida Jordan - a que agora fora dado a nome de África pelos molás - ao longo da qual se poderiam encontrar as mais elegantes boutiques e restaurantes. Os quase cinco quilómetros de extensão desta artéria urbana transformaram- se num ponto de encontro da juventude mais abastada, permitindo aos jovens travar novos conhecimentos, sendo pois inevitável a presença da polícia de costumes. Um olhar mais experimentado saberia diferenciar de imediato entre aquelas mulheres que, como eu própria, tentavam inocentemente chamar um táxi, e aquelas que haviam saído de casa com a finalidade de conhecerem homens com quem passariam uns momentos agradáveis, já para não mencionar um terceiro grupo que exercia a profissão mais antiga do mundo. Infelizmente, a maior parte dos homens que cruzavam aquela zona da cidade em velocidade moderada careciam desse olhar experimentado, fazendo sinais de luzes a qualquer coisa que usasse um lenço na cabeça. Este facto tornava a vida em Teerão ainda mais confusa dada a escassez de táxis, o desemprego crescente e a inflação que atingia níveis inacreditáveis, o que forçara muitos cidadãos comuns a servirem-se dos seus próprios automóveis para o transporte público de pessoas. Por conseguinte, quem seria aquele homem que nos fazia sinais de luzes: um pervertido ou alguém que só pretendia ganhar uns dinheiros suplementares?

Havia pelo menos três mulheres que afirmavam ser protagonistas de uma das melhores histórias que se contavam por Teerão nesse Inverno, o que não me permite garantir a sua veracidade; mas, a ser verdadeira, merece a fama de que goza. O episódio começa com a Senhora X que numa manhã fria de Inverno aguarda que passe um táxi; surge um carro que lhe faz sinais de luzes e que pára, oferecendo-lhe uma boleia.

No interior já seguiam três mulheres no assento de trás e que usavam o chador negro como mandavam as regras; consequentemente, ela sentiu-se em segurança quando se sentou no lugar do passageiro da frente, toda satisfeita porque o motorista pararia mesmo à frente da porta de sua casa. Mas em vez de prosseguir pela rua que os levaria para a zona norte de Teerão, ele entrou na auto-estrada que os levaria para sul, assegurando à mulher que assim atalhava caminho. Ela começou a sentir-se assustada e pediu ao homem que a deixasse apear-se, mas o motorista limitou-se a aumentar a velocidade; os seus gritos foram ignorados enquanto se dirigiam cada vez mais para sul. Ao avistar uma patrulha da polícia de costumes, a Senhora X tirou o lenço da cabeça revelando uns longos cabelos louros. Para ter a certeza de que chamara a atenção da polícia, a senhora em questão despiu o casaco e mostrou o rego dos seios e os braços desnudados. A polícia de costumes começou a correr na sua direcção para a prender, acabando por levar o motorista e os outros três homens disfarçados de mulher que continuavam sentados no banco traseiro do carro.

Shiraz estava cheia de histórias extraordinárias dos pasdars. A história que vos conto a seguir foi-me narrada por um dos amigos de Homa que continuava a ser capaz de se rir mesmo ao fim de três meses passados na cadeia, contando-nos como fora detido pela polícia islâmica numa noite em que ia a caminho de casa depois de uma festa onde as bebidas alcoólicas não haviam faltado. Sentado ao seu lado no Range-Rover seguia o filho de oito anos de idade que adorava o pai: considerava-o o modelo real do seu grande herói, Rambo.

O guarda indicou ao pai com um gesto que saísse do veículo; mas estava inegavelmente um tudo-nada embriagado e quando abriu a porta do jipe, o garoto começou a falar todo entusiasmado.

- Dá-lhe um soco! Dá-lhe uma pancada rápida na nuca! Vá lá, papá, dá-lhe uma sova que o reduza a polpa!

- Está calado, meu filho! - ordenou o homem aterrorizado.

Pai e filho foram logo levados para o Komiteh mais próximo, onde o homem utilizou o único telefonema a que tinha direito para ligar ao irmão, pedindo-lhe que fosse em seu auxílio.

Quando este chegou, foi levado pressurosamente para o gabinete do comandante do Komiteh, onde o informaram de que tanto o pai como o filho teriam de passar a noite ali.

- Mas o garoto não fez nada de mal - protestou o irmão.

- É dos lábios das criancinhas que nos inteiramos da verdade. Precisamos da presença dele para chegarmos ao âmago do assunto - explicou o comandante presumidamente.

O irmão pediu licença para poder ver o sobrinho, com a intenção de, no mínimo dos mínimos, confortar o petiz e explicar-lhe o que estava a passar-se. O garoto foi levado à presença do tio, que o sentou em cima do joelho; o comandante ligou um número utilizando o seu telefone, dando início a uma convérsa em que discutia os preparativos para uma manifestação de apoio à Palestina.

- Conta-me o que é que sucedeu - disse o homem ao sobrinho.

- Seguíamos no jipe quando um polícia nos mandou parar; por isso, o meu pai abriu a porta e bateu com ela em cheio no estômago do militar, que caiu logo no chão. Em seguida, o pai atirou- se a ele e deu-lhe um pontapé na cabeça, antes de o apanhar e de o atirar para o meio da rua. O soldado tentou levantar-se, mas o meu pai saltou logo para cima dele e começou a dar-lhe murros atrás de murros. pumba, pumba, até que o guarda começou a deitar sangue e a implorar- lhe que tivesse piedade. - O garoto narrava a sua versão dos acontecimentos.

- Já chega, já chega! Não digas essas mentiras - gritou o comandante, esquecendo-se momentaneamente do seu telefonema. - Levem o rapaz daqui para fora - instruiu, tendo perdido todas as esperanças na sua melhor testemunha.

Sentia-me preparada para enfrentar a minha segunda reunião com Olhos Cintilantes, um homem cujo nome era aparentemente demasiado secreto para que eu pudesse tomar conhecimento dele, o que não o impedia de dar a impressão de pretender tornar-se um pouco mais familiar do que seria de esperar por parte de um pilar do Hezbollah. A sua aparência não era menos repulsiva do que aquando do nosso primeiro encontro. Existe qualquer coisa naquela barba curta tão em moda quando combinada com uma tez escura que é irracionalmente assustadora. Não compreendia nem metade do que ele me dizia na sua linguagem arábica cheia de arabescos utilizada pelos molás e correligionários. Mas, para meu grande alívio, a primeira coisa que me disse foi que tinha decidido aprovar o meu registo como jornalista estrangeira.

A segunda coisa que me disse não era lá muito tranquilizante, uma vez que se esperava que eu desse a conhecer todos os meus movimentos àquele homem, tendo-me sido revelado o seu nome: o senhor Mousavi. Mais tarde, vim a descobrir que também dava pelo nome de senhor Jabari, entre outros pseudónimos; tinha por incumbência manter-se a par das idas e vindas de todos os jornalistas que trabalhassem para "o Grande Satanás" (os Estados Unidos da América), assim como para "o Pequeno Satanás" (a Grã-Bretanha).

Era extraordinariamente convincente quando me explicou que o pequeno bando de jornalistas, fotógrafos, operadores de câmara e tradutores ao serviço dos meios de comunicação social estrangeira perfaziam quarenta ao todo e que se encontravam divididos em pequenos grupos renhidos que não hesitavam em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para preju dicar os campos rivais. Era com o objectivo de me proteger daquelas conspirações que Mousavi insistia para que eu o considerasse o meu melhor amigo e conselheiro.

- Quando se encontra alguém a quem não se possa apontar nada, gosto de os proteger de qualquer mal, de aconselhar e promover os interesses dessas pessoas - disse-me ele com um brilhozinho nos olhos que não me agradou rigorosamente nada.

Para que eu pudesse ficar assim protegida, devia telefonar a Mousavi pelo menos uma vez por semana, dando-lhe conta do teor dos artigos que tencionava escrever. Também teria de lhe participar se algum dos outros jornalistas me abordasse tentando recrutar-me para o seu campo. Não tinha permissão para assistir a nenhum evento sem que antes informasse o Ministério da Obstrução. Afirmava que tinha conhecimento de jornalistas do campo adversário que costumavam telefonar aos recém- chegados à profissão, dando-lhes dicas de reuniões fictícias que teriam lugar numa zona diametralmente oposta àquela onde o evento se realizaria. As entrevistas em privado tinham de ser previamente aprovadas por Mousavi. E caso eu pretendesse viajar, ainda que fosse uma viagem de lazer, também seria obrigada a obter a sua autorização.

Pôs-me ao corrente de tudo isto com a mesma atitude de alguém que falasse a uma criança que não poria em causa a necessidade que tinha de ser aconselhada. Era assim que as mulheres eram vistas - como pessoas que seriam autorizadas a melhorar a imagem pública do país no respeitante aos direitos humanos, mas que todavia eram incapazes de cumprir essa missão como qualquer homem o faria. Foram muitas as vezes em que fui forçada a sorrir, quando o que me apetecia era eriçar-me sempre que alguma alma bem-intencionada me dizia que trabalhava com tanta eficiência como um homem.

- Esses outros jornalistas, os conspiradores, são muito ignorantes na sua maior parte. Não são profissionais como você - diria Mousavi numa tentativa de me lisonjear. Muitos deles nem sequer possuem diploma liceal. Portanto, por que motivo lhe parece que tenham permissão para trabalhar nessa profissão?

- Não sei. - Todavia, era capaz de adivinhar o que ele diria a seguir.

- São agentes desses grupos que detêm posições governamentais, que desejam a queda de alguns dirigentes e que só pretendem guindar-se ao poder e criar problemas. Das duas uma: ou tentarão recrutá-la ou desacreditá-la. Mantenha-se afastada dessa gente. Mas não se esqueça de me informar sempre que tiver algum contacto com eles. Nessa altura, quando tentarem criar-lhe problemas, poderei dizer que estava a par de determinados assuntos. Se eu estiver avisado, estarei em posição de protegê-la. É da maior importância que siga as minhas instruções à risca. Não mencione a minha existência a ninguém, muito em particular junto das pessoas que trabalham para o Ministério da Orientação: também não se pode ter confiança nessa gente.

- Sendo assim, em quem é que posso confiar? - perguntei perplexa.

- Em mim - respondeu-me Mousavi com os dentes arreganhados.

Os artigos de imprensa não eram censurados, a fazer fé no que ele me disse: Mas não deixou de me advertir de que qualquer coisa "contra os interesses nacionais" seria um acto severamente punido. E, desta maneira tão arguta, garantiu que eu própria é que censuraria constantemente o meu trabalho, embora não me encontrasse em posição de poder acusar as autoridades de um processo de censura específico.

- O que é que seria considerado como sendo contra os interesses nacionais?

- Oh, nada de muito específico. somente o género de coisas que a França ou a Inglaterra considerariam lesivas dos seus interesses nacionais - explicou Mousavi. Em seguida deu-me um número de telefone através do qual eu poderia contactá-lo. um número que mais tarde vim a descobrir pertencer ao Ministério da Segurança. No caso de algum dos meus leitores vier a desejar contactar esta gente tão furtiva, o número que deve ligar é o 236555 de Teerão.

Aquilo de que eu ainda não me tinha apercebido é que ninguém consegue nada de graça do Ministério da Obstrução. É possível que tenha conseguido obter a permissão da polícia de segurança para que a acreditação me fosse concedida, mas o Funcionário Mesquinho não estava disposto a colocar o meu nome na sua lista de jornalistas sem que antes lhe fosse oferecida uma pequena "prenda". Os dignitários estrangeiros iam e vinham, realizavam-se conferências e faziam-se discursos, mas eu só tinha conhecimento desses eventos quando eram publicados na imprensa local. Quando me queixava junto do Ministério da Obstrução, limitavam-se a encolher os ombros, pedindo desculpas e afirmando que a omissão seria corrigida daí em diante. Mas tal nunca vinha a verificar-se.

O departamento que se ocupava da tortura diária dos jornalistas estrangeiros era dirigido por quatro homens, alguns dos quais eram honestos, ao contrário dos seus colegas. Grande parte desse trabalho era efectuado por Matt Busby - bom, era esse o nome que eu lhe dei devido à paixão que tinha por futebol. Matt era o homem que corria todos os riscos ao aceitar os "subornos". Por ocasião do Ano Novo, esperava-se que os jornalistas oferecessem a esses funcionários um azadi de ouro, uma moeda que valia aproximadamente doze mil tomans.

Um televisor apressava o processo de pedido de acreditações, enquanto uma aparelhagem estereofónica nos abria as portas de acesso às conferências de imprensa mais melindrosas. Mais ou menos cinquenta dólares proporcionar-nos-iam uma entrevista a sós, enquanto cem nos permitiam viajar dentro do país. Os jornalistas estrangeiros podiam contar que os seus agentes no Irão tivessem de pagar trezentos dólares para conseguirem obter um visto de entrada, as entrevistas poderiam chegar a custar setenta dólares, enquanto as viagens locais lhes custariam pelo menos cem por dia, para além das despesas relativas ao funcionário destacado para os acompanhar. O Ministério da Obstrução só paga aos seus funcionários quatro dólares em ajudas de custo por diaa fim de acompanharem os jornalistas estrangeiros.

Toda a população andava atrás do todo-poderoso dólar. As rendas de casa tinham de ser pagas nessa moeda, assim como os subornos, existindo alguns produtos que só poderiam ser adquiridos mediante a moeda norte- americana.

Entre os funcionários que trabalhavam no Ministério da Obstrução, Reza tinha a incumbência de travar amizade com um determinado jornalista a quem daria a entender que os outros esperavam receber alguma coisa por fora, afirmando sempre que não tinha nada a ver com o assunto, quando era ele próprio quem de facto estabelecia o preço, distribuindo os lucros entre o seu pequeno bando. Depois tínhamos Ali, cuja grande relutância em fazer o menor trabalho punha a descoberto que na realidade era o espião dos serviços de segurança. Um outro Mohammed dava a impressão de ser o único que fazia qualquer trabalho a sério, mas o que lhe permitia ganhar dinheiro éra a gestão de um serviço de vídeo à margem da lei, o que fazia a partir do seu gabinete no ministério. Tive oportunidade de ver muitos dos filmes proibidos, tanto estrangeiros como iranianos, graças à amabilidade deste outro Mohammed ao qual vim a dar a alcunha de Coelho por causa dos dentes da frente saídos para fora.

Depois tínhamos ainda as personagens de somenos importância, como por exemplo o Apático, cuja única função parecia ser a compilação de informações respeitantes aos jornalistas estrangeiros, mantendo o Ministério dos Negócios Estrangeiros ao corrente da situação, com base no que este decidiria se deveria conceder vistos de entrada ou não. Passou muitas horas a interrogar-me sobre vários jornalistas de nacionalidade britânica. O regime dava a impressão de temer David Hirst mais do que qualquer outro, que escreve sobre o Médio Oriente por conta do Guardian.

A minha primeira sessão com o Apático começou da seguinte forma:

- Qual é a sua opinião sobre Robert Fisk como jornalista?

- Odeio Robert Fisk - repliquei bem do fundo do coração.

 

                 As meninas de bem não riem

Estava eu toda contente a escrever a vigésima versão do meu artigo autorizado, cujo tema eram as mulheres do Irão, quando o locutor do noticiário transmitido pela rádio anunciou que Turgut Ozal, o primeiro- ministro da Turquia, visitaria Teerão no dia seguinte para uma conferência dentro do âmbito da OCE. De mal a menos, tomaria conhecimento de algumas notícias a sério, e tencionava estar presente custasse o que custasse.

- Por que é que eu não fui informada sobre a conferência da OCE? - perguntei irritada, ao que Matt tartamudeou uma resposta mal-amanhada quanto à lista antiga ter sido enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros por engano. Depois de várias ameaças terríveis em que eu lhe disse que o exporia, acabou por me assegurar que as acreditações de imprensa seriam atribuídas na manhã seguinte no Centro de Estudos Estratégicos - o antigo Clube dos Negócios Estrangeiros onde na minha adolescência tinha dançado muitas noites pela noite adentro.

Logo na manhã seguinte apresentei-me aos portões do lugar que tanto frequentara em tempos idos com a cabeça coberta de maneira solta com o meu kefjìyeh, o que indicava a minha solidariedade para com a causa palestiniana, assim como um casaco desenxabido de um tom acastanhado que me dava pelos tornozelos, o que demonstrava que era uma das oprimidas. Quando cheguei, constatei que ninguém sabia nada sobre assunto nenhum relacionado com a imprensa. Disseram-me que me fosse embora antes que me prendessem por estar a interferir com os últimos preparativos. Duas horas depois de uma pequena discussão - que vim a descobrir ser a norma quando se desejava que alguém fizesse alguma coisa sem termos de pagar no Irão livre - deixaram-me ficar na guarita do porteiro a assar enquanto tentavam descobrir aonde é que eu me devia dirigir. Decorridos vinte minutos, aventurei-me a sair de novo. Seguiram-se mais gritos através de transmissores-receptores, tendo passado meia hora até que um homem de barba bem aparada, um funcionário muito bem vestido, me abordou afirmando ser do Departamento de Relações Públicas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. A alegria que senti ao vê-lo foi sol de pouca dura pois disse-me que não sabia onde é que estavam a ser distribuídas as acreditações de imprensa, com a agravante de não haver ninguém por perto que nos pudesse esclarecer.

Naquele momento, eu já estava prestes a perder a paciência, dado que nunca fora uma pessoa a quem agradasse muito madrugar, e ainda faltava uma boa hora até à hora a que gostava de despertar. Já me sentia exausta e emocionalmente exaurida. A minha arrogância levou a melhór ao meu bom senso; comecei a pontificar quanto ao estado lamentável em que se encontrava a nova república.

- Milhares dos nossos jovens terão morrido apenas para que vocês pudessem ser tão incompetentes como os que vos precederam? - perguntei, fartando-me de arengar sobre o mesmo tópico. Para minha grande surpresa, as coisas estavam a correr-me bem com aquele punhado de guardas dos Serviços de Segurança e toda a espécie de lacaios que se haviam reunido em meu redor. Caso eu pusesse em questão o caminho que a revolução estava a levar, poderia acontecer-me uma de duas coisas: consegue-se o que se quer ou vai-se parar à prisão.

Este era o meu primeiro contacto com os homens do Ministério dos Negócios Estrangeiros, inteiramente diferentes da tropa de choque composta por muçulmanos do Hezbollah. Estes homens tinham bons cortes de cabelo e barbas cuidadosamente aparadas. Usavam fatos impecáveis de um azul-escuro, ao invés dos casacos de camuflagem e das calças de combate. Complementavam o vestuário com camisas de um branco imaculado sem colarinho, substituído por um pequeno cós, todas abotoadas até cima para impedir que alguma mulher inocente se sentisse excitada ao ver uma nesga de pêlos do peito. Usavam - oh alegria das alegrias - peúgas espessas de um azul-marinho e calçavam sapatos bem engraxados. Assim é que devia ser.

Finalmente encontrou-se alguém que pensava que as acreditações seriam distribuídas no Hilton. Vinte minutos mais tarde eu já estava no hotel, de onde fui enviada de volta ao centro de investigação. Aí, após mais dissertações temerárias, consegui obter o número do quarto do hotel, uma informação por assim dizer tirada a ferros, onde estas acreditações tão evasivas estavam a ser entregues.

Uma vez mais de volta ao Hilton, detiveram-me junto dos elevadores, não fosse eu alguma rameira que se aprontasse a subir para servir um dos nossos visitantes estrangeiros. Ao cabo de todas estas dificuldades, lá passei pelos agentes de segurança, assim como por outras almas penadas que também queriam acreditações e que se encontravam à porta da suite 1242. Ali fui informada de que o meu nome não constava da lista de jornalistas a quem seria permitido fazer a cobertura da conferência. Estava pronta a matar alguém quando um outro senhor Mohammed me fechou a porta na cara. Comecei a bater vigorosamente, mas disseram-me que me pusesse a andar uma vez que não podiam fazer nada por mim.

- Quer vocês gostem quer não, tenho de escrever um artigo hoje mesmo - disse eu no meu melhorfarsi. - O meu redactor em Londres quer receber mil palavras ainda esta noite. Posso escrever sobre a vossa conferência, tal como o vosso governo deseja, ou em alternativa posso escrever que me impediram de assistir à conferência. - Tinha acabado de proferir a última palavra quando a porta voltou a fechar-se com estrondo.

No entanto, eu tinha-me transformado numa espécie de heroína folclórica junto dos membros da imprensa que se reuniam do lado de fora da porta, tendo sido aplaudida por muitos deles, enquanto outros gritavam que devia esquecer a conferência e optar por escrever a outra história. Para ser franca, devo admitir que me senti agradada ao ver iranianos que se sentiam com tal liberdade para expressarem a sua oposição e frustrações, não muito afastados dos funcionários que os podiam ouvir. Talvez nem tudo fosse assim tão mau na República de Deus.

Quanto a mim, continuava a não fazer absolutamente nenhuma ideia do que era uma conferência OCE, embora me sentisse determinada a fazer a sua cobertura jornalística. Por volta do meio-dia tinha voltado ao átrio do hotel e telefonei para o Ministério da Obstrução, após o que subiria de novo, fazendo valer os meus direitos a que já tinha dado voz uma meia dúzia de vezes. Do ministério disseram-me que não podiam fazer nada, dado que a conferência fora organizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, além de que todos os funcionários que ocupavam posições importantes estavam fora. Os funcionários iranianos tinham tendência para estarem "fora" com muita frequência.

- Vocês, os jornalistas, não deviam depender tanto de nós. Um bom jornalista vai para a rua e consegue a sua história apesar de todas as dificuldades. Agarram-se à sua história que nem leões - disse-me Reza, o cretino, ao telefone numa voz desdenhosa.

- Em locais onde existe liberdade, de facto é esse o caso - ripostei, sentindo que a minha boca tinha adquirido uma mente muito sua -, mas acontece que aqui é muito possível que nos decepem as mãos se nos artevermos a respirar sem a vossa autorização. Lamentei a minha tirada assim que me saiu da boca para fora, mas já era tarde de mais, as palavras haviam sido ditas e não havia maneira de desfazer o que estava feito.

É preciso compreender que eu estava exausta e cheia de calor. Tinha andado de um lado para o outro sem saber ao certo para onde me dirigir, caíra esparramada no chão por duas vezes ao tropeçar na bainha do casaco, não conseguia ouvir metade do que me era dito por causa do trapo que trazia enrolado à cabeça, e quando ouvia não era capaz de perceber metade das palavras.

Quando o chamamento à oração começou a ecoar pelos corredores do outrora luxuoso hotel, estabelecimento que actualmente era gerido pela Fundação para os Oprimidos, regressei num passo intempestivo à suite 1242 e, uma vez mais, bati vigorosamente à porta.

Quando a cabeça reapareceu, ouvi-me a dizer:

- Acabei de ligar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, de onde o senhor Hashemi me disse que vocês mesmos é que têm obrigação de deslindar esta confusão; caso não o façam, ele vai querer saber por que motivo.

Eu nunca tinha ouvido falar de um senhor Hashemi no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas dado que Raffers tinha arranjado empregos para os seus familiares na maior parte dos ministérios, decidi arriscar, partindo do princípio de que deveria existir alguém neste ministério que usasse o apelido hifenizado do presidente.

Constatei que acabara de dizer "Abre-te Sésamo". Pressurosamente, permitiram-me a entrada, tendo sido conduzida para a dianteira da fila onde as pessoas aguardavam a sua vez de serem fotografadas; essas fotografias seriam colocadas na acreditação. Muitos meses mais tarde, descobri que um dos irmãos do presidente, um tal Hojat-ol-Islam Mahmud Hashemi-Bahramani-Rafsanjani, era director da Quarta Secção Política do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ao que tudo indicava, as pessoas continuavam a poder obter o que desejavam à mera menção do nome adequado. Ninguém se atreveria a pôr em questão uma ordem dada pelo irmão de Raffers.

Dez minutos mais tarde, saí do hotel com a acreditação que me permitiria acesso à conferência da OCE. Agora só me faltava descobrir de que é que tratava.

Vim a saber que OCE era o acrónimo da Organização de Cooperação Económica, organismo que até a esse ano era formado pelo Irão, Turquia e Paquistão. Contudo, no pós-desmembramento da União Soviética, as repúblicas da Ásia Central passaram a ser membros-observadores, com vista a virem a fazer parte da organização. Como resultado da competição entre a Turquia e o Irão, países que se digladiavam para conquistarem os corações e mentes dessas repúblicas que recentemente se tinham tornado independentes, aquela cimeira revestia-se de uma componente internacional, pelo que os delegados chegavam com a imprensa mundial atrás de si.

Aquela seria a ocasião em que me encontraria pela primeira vez com a maior parte dos meus colegas jornalistas, tendo ficado bem ciente ao fim de pouco tempo de que, na realidade, existiam quatro grupos principais entre os correspondentes da imprensa estrangeiratodos paladinos de um ou outro dos escassos jornalistas profissionais que trabalhavam no Irão. A maioria dos correspondentes alinhavam-se para serem contados atrás do seu homem, quer este fosse da Reuters ou da concorrente principal desta agência noticiosa, a France Press. Ambos eram homens encantadores, jornalistas inteligentes e conscienciosos, pelo que nunca fui capaz de me comprometer profissionalmente com qualquer deles. Nunca fui muito de aliar forças, pelo menos no que diz respeito a facções, tendo chegado à conclusão de que é bastante mais compensador manter um bom relacionamento com toda a gente. Os repórteres fotográficos formavam o outro grupo poderoso, sendo os mais renhidamente competitivos.

Por fim, tínhamos o grupo mais asqueroso: aqueles que trabalhavam para os meios de comunicação social japoneses: Eram-lhes pagas avultadas quantias em dinheiro para se sentarem em escritórios de luxo - muitas vezes com piscina. Eram conduzidos às conferências de imprensa por motoristas desses escritórios, em automóveis de marcas japonesas, novinhos em folha, gozando do acesso a todos os meios noticiosos. Na sua maior parte eram jornalistas contentes consigo próprios, sem quaisquer preocupações e demasiado felizes para estarem dispostos a enfrentar situações menos agradáveis.

Dos quarenta "correspondentes estrangeiros acreditados", somente três de nós éramos mulheres: uma ex-arquitecta; uma atraente húngara casada com um iraniano; e eu. Eu estava presente numa ocasião em que a húngara foi ao Ministério da Obstrução para que lhe renovassem a acreditação de jornalista. Ela não conseguia compreender a conversa, e por conseguinte não sabia que Matt e os seus amigalhaços a mantinham à espera porque queriam ter "mais tempo para poderem olhar bem para ela". Aonde quer que fosse, a húngara causava um grande burburinho com a sua pele de um branco-lírio e a franja de um louro-cinza que se via a sair do lenço que usava de forma despreocupada.

Havia mais três mulheres da imprensa iraniana que faziam a cobertura da conferência; dado que os seguranças nos franziam o cenho de todas as vezes que ousávamos passar por um dos nossos colegas do sexo masculino, instintivamente mantínhamo-nos juntas. Durante um dos longos intervalos dos trabalhos, enquanto os dirigentes se reuniam em privado, nós, as mulheres, sentávamo-nos em fileira a dar dois dedos de conversa e a rir embora em tom moderado, focando os preceitos asininos a que as mulheres tinham de obedecer. As jornalistas locais explicaram-me que até há bem pouco tempo não eram autorizadas a trabalhar fora dos escritórios, ttendo-lhes sido absolutamente interdito cobrir qualquer acontecimento onde Raffers estivesse presente. No entanto, recentemente tinha-lhes sido permitido fazer a cobertura jornalística das deslocações de Raffers, até mesmo quando ele percorria o país; apesar de continuarem a estar proibidas de fazerem viagens ao estrangeiro. Uma dessas raparigas fora obrigada a casar antes de conseguir uma subvenção que lhe permitiria viajar para o estrangeiro, onde tencionava prosseguir os seus estudos, porque a República Islâmica se recusava a "contribuir para a corrupção das nossas mulheres". Ela pôs-nos a rir às gargalhadas, mas um dos acólitos do Ministério dos Negócios Estrangeiros abordou-nos.

- Irmãs, falem em voz baixa. O senhor Rafsanjani é capaz de vos ouvir.

- E que mal é que isso tem? - perguntei a uma das minhas colegas locais.

- Caso ele ouça as nossas vozes, sentir-se-á excitado e Ozal ficará com a impressão errada - explicou ela com uma expressão de quem não dizia aquilo inteiramente na brincadeira.

Sentindo receio em falar, puxei de um cigarro e juntei-me a um grupo de jornalistas do sexo masculino para planearmos uma estratégia conjunta que nos permitisse cobrir todos os trabalhos da tarde.

O mesmo homem voltou a abordar-me.

Apague o cigarro - ordenou-me. - As meninas de bem não riem, não falam nem fumam.

Mais tarde, nessa mesma tarde, voltei a ser abordada pelo mesmo fumcionário, que se desfez em desculpas.

- Por favor, tente compreender, a culpa não é nossa. Só espero que não se tenha sentido ofendida. Certamente que não nos teria agradecido se permitíssemos que ficasse com uma má reputação por aqui, e logo no início da sua carreira, não é verdade?

Como é que aquele indivíduo, que eu não conhecia de lado nenhum, sabia em que fase é que a minha carreira se encontrava?

No final daquele primeiro dia de trabalhos os chefes de Estado fariam as suas orações da noite em conjunto, o que era uma boa oportunidade fotográfica, e mesmo aqueles de nós que só poderíamos descrever a cena através da escrita, fomos apressadamente conduzidos para o centro da mesquita. Raffers conduziria a cerimónia religiosa na sua qualidade de clérigo mais antigo naquela sessão de orações. Mas quando avançou colocando-se à frente de Ozal, o dirigente turco gritou uma ordem aos seus guarda-costas, que começaram a juntar os jornalistas e a afastá-los dali. Desencadeou-se um burburinho e vários fotógrafos viram as suas máquinas fotográficas quebradas.

Mais tarde informaram-nos que Ozal não desejava ser fotografado atrás de Raffers, uma vez que isso daria a impressão de que ele era inferior, havendo o receio de que a República Islâmica pudesse utilizar essa fotografia na sua cruzada de conquista de influência na Ásia Central.

No dia seguinte, voltei a encontrar-me com Mohammed. Ele andava pelas proximidades do centro de investigação, tendo sido bastante vago quanto ao motivo que o levara ali.

- Faço algum trabalho para o Orientação Islâmica, e um pouco para o Ministério dos Negócios Estrangeiros - disse-me. Mostrou-se divertido quando lhe narrei as reprimendas a que fora sujeita no dia anterior. - Dentro em pouco ficará a saber o que é que pode e não pode fazer - acrescentou rindo-se.

- Mas ninguém disse a nenhum dos homens que não podia fumar - queixei-me.

- Essa gente é muito antiquada. ainda acreditam que fumar deveria ser vedado às mulheres - explicou-me ele, para logo me advertir de que deveria ir à minha vida antes que fôssemos vistos e começassem a espalhar rumores sobre nós dois.

Senti que não haveria nada a ganhar em persistir com aquele assunto: não fumar era um problema de somenos importância comparado com os muitos com que as mulheres eram obrigadas a confrontar-se e ultrapassar diariamente; portanto, de que é que me valeria fazer ondas? Mas quanto mais a minha estadia no Irão se prolongava, mais me apercebia de que eram estas pequenas coisas que contribuíam cada vez mais para um sistema que colocava as mulheres à margem da sociedade. Retirar poder e liberdade de acção às mulheres em coisas insignificantes, era um meio de as dominar. Se estivesse escrito no Corão que "as mulheres não fumarão", talvez estivesse disposta a aceitar aquela regra como parte de uma tradição teológica profundamente arraigada. Mas, à semelhança do que acontecia com tantos métodos utilizados no controlo das mulheres, aquilo era obra do homem e não tinha nada a ver com a palavra de Deus.

Parece que me tinha transformado em tópico de conversação, não só porque era uma das poucas mulheres com vida profissional pública, mas também porque falava iraniano com um acentuado sotaque britânico, para além de ter sido suficientemente "louca" para regressar ao Irão numa altura em que a maioria das pessoas - sem dúvida alguma grande parte dos que eu conhecia - andavam desesperadas por poderem abandonar o país. O facto de ter vivido no estrangeiro emprestava-me ainda mais fascínio junto da nova estirpe de funcionários públicos do Irão, muitos dos quais nunca haviam saído das suas aldeias antes da revolução. Aonde quer que eu fosse, pessoas que nunca encontrei na vida já tinham ouvido falar de mim; esta fama que adquirira recentemente era uma situação deveras agradável.

Entre as sessões de trabalho, os delegados da OCE e a imprensa mundial ali reunida eram entretidos com grande prodigalidade. Senti-me particularmente irritada com o chefe de mesa, que tentava empurrar-me para o bolo e café sempre que tentava entrevistar qualquer pessoa. Finalmente, vi-me na contingência de lhe dizer, sem estar com meias- palavras, que deixasse de me aborrecer. Nessa segunda tarde, logo a seguir à escaramuça com o chefe de mesa, a conferência reabriria com um discurso do representante do ministro dos Negócios Estrangeiros. Era com expectativa que aguardava esse discurso, visto que se alegava que era uma fonte de informações muito apurada e articulada. Enquanto esperava, o chefe de mesa subiu ao estrado e começou a proferir um discurso de boas-vindas dirigidas aos vários ministros que se tinham deslocado a Teerão. Aquele era precisamente o homem em cujas boas graças era tão importante que eu caísse.

A sociedade sem classes que a revolução criara havia tornado quase impossível distinguir o ministro do rapaz que servia o chá; não obstante, é forçoso que se admire uma nação onde o representante de um ministro tem a humildade suficiente para também trabalhar como chefe de mesa. Senti-me de tal maneira constrangida que nunca mais tive a coragem de olhar o homem de frente sem me sentir assolada por um sentimento de alguma vergonha, embora ele tivesse continuado a oferecer-me refrescos e a sua assistência.

O certo é que não me encontrava na disposição de tolerar qualquer campanha de obstáculos orquestrada por outro Ministério da Obstrução, o que era exactamente aquilo com que estava prestes a confrontar-me dado que uma vez mais vi o meu nome eliminado da lista dos jornalistas convidados para os eventos oficiais. Quando os vários dignitários vindos do mundo muçulmano começaram a reunir-se na Praça Azadi (Liberdade) para celebrarem o décimo terceiro aniversário da revolução, dei comigo entre as pessoas comuns que convergiam para o largo vindas de todas as direcções, em vez de estar sentada no espaço vedado reservado aos membros da imprensa.

Aqui sentia por fim o sentimento de comunhão e de fervor revolucionário que até então me faltara. Eram milhões de pessoas que marchavam ombro a ombro com os seus dirigentes. Durante meio dia toda a gente foi realmente igual; esta havia sido a razão por que a revolução atraíra tanto o povo. Longe iam os helicópteros e os cortejos de limusinas que costumavam transportar o xá e a sua família, assim como os seus oficiais, por todo o país, alheados das vidas e preocupações do cidadão comum. Naquele dia, Raffers marchou do seu gabinete em direcção à praça juntamente com o mais humilde dos seus concidadãos, enquanto eu caminhava entre uma mão-cheia de ministros e um ou dois batalhões de corpos da Guarda Islâmica. É possível que a revolução se tenha tornado famosa pelos seus cânticos contra a América do Norte, mas também tinha servido para inspirar algumas canções inflamadas e marchas que haviam ocupado o lugar da música pop que entretanto fora banida. Naquele momento eram entoadas enquanto as massas tiravam o maior partido possível daquele feriado.

Gradualmente, fui-me apercebendo de que era a única mulher que não usava o chador negro, mas ao invés de ter dado nas vistas, sendo considerada o inimigo do povo, tal como esperava, as pessoas viravam-se para me olharem com amizade e afabilidade. Enquanto passava pelas muitas bancas que distribuíam comida e refrigerantes grátis, chamavam-me para que me servisse do que estava exposto. As mulheres encetavam conversa comigo e só um homem é que me sussurrou "puta".

O aspecto que mais me impressionou durante a marcha foi a protecção que me concederam quando um jovem atrevido decidiu assediar-me. Começou a seguir-me e a encostar-se a mim, olhando fixamente para onde supunha estarem os meus seios. Desejosa de pôr à prova os novos princípios de moralidade, chamei três guardas islâmicos que passavam na altura - os três rondavam os quinze anos de idade - e pedi-lhes que repreendessem o rapaz. Riram-se enquanto este acelerava o passo. De súbito surgiu ao meu lado um dos acólitos do Hezbollah.

- Foi aquele que usa um casaco preto? - perguntou ele de forma casual. Em seguida dirigiu-se ao rapaz em questão, o qual compreendeu que a brincadeira tinha acabado, e começou a andar ainda com mais rapidez. O homem passou o resto da marcha entre mim e o jovem. Ao fim e ao cabo, ser escoltada por homens dos Serviços de Segurança tem as suas vantagens.

Quando cheguei ao largo, uma rápida troca de palavras e o acenar da acreditação de jornalista concedeu-me o acesso ao espaço reservado às figuras oficiais, entre os lugares destinados aos dignitários que estavam de visita ao Irhão. À nossa frente estendia-se um mar de multidão; milhões de iranianos entoavam "Morte à América, morte aos sionistas e morte aos sérvios", palavras de ordem proferidas em uníssono. Uma banda começou a tocar e as crianças em idade escolar acenaram com bandeiras coloridas, ao mesmo tempo que entoavam canções revolucionárias. Pouco depois o silêncio abateu-se sobre a praça, mas o estado de espírito dos presentes ficou um tanto quanto arruinado quando o bem conhecido hino revolucionário Jesus Christ Superstar começou a ser entoado, ao mesmo tempo que Raffers assomava no estrado perante os gritos histéricos de aclamação da multidão. Era evidente que todos os presentes adoravam aquele homem.

"Hashemi, Hashemi, seguir-te-emos até à morte", gritavam enquanto ele esboçava aquele sorriso arreganhado de simplório que tão característico lhe era e que o tornava tão bem-amado do povo. A sua expressão parecia estar sempre a dizer: "Serei eu esta pessoa, este homem por quem toda esta gente se sente afectada? ".

Os humildes da nação encontravam-se óbvia e profumdamente envolvidos num caso de amor com Raffers. Aquele era um mundo muito distante da zona norte de Teerão, onde as pessoas acossadas esperavam pelo regresso do passado, deplorando o facto de os molás comuns serem cada vez mais abastados e se mudarem para os seus luxuosos blocos de apartamentos.

Era cada vez mais evidente que eu teria de bater o pé junto do Ministério da Obstrução, caso contrário jamais me levariam a sério. Por conseguinte, foi uma correspondente do Independent, serena mas determinada, quem entrou intempestivamente pelas instalações adentro no dia seguinte à festa do aniversário da revolução, e então comecei a queixar-me por ter sido excluída de novo. O gabinete onde Matt e Ali trabalhavam estava cheio de homens que se encontravam ali para trocarem dois dedos de conversa ou para obterem autorização para enviarem alguma reportagem em filme para fora do país, ou ainda para que as suas acreditações fossem renovadas - o que tinha de ser feito de seis em seis meses. Senti-me surpreendida por nenhum daqueles homens se levantar para me oferecer o seu lugar, apesar da habitual e muito escrupulosa observação da etiqueta por parte dos iranianos. Deixei-me ficar de pé a um canto à espera que me atendessem. Finalmente, um dos fotógrafos desocupou o seu lugar. Enquanto me apressava para esse assento, sentindo que o problema com as minhas costas se agravava por causa das dificuldades com que me deparei durante a conferência da OCE, a par da marcha do dia anterior, Matt abanou a cabeça e aproximou-se interpondo-se no meu caminho.

- Não pode sentar-se ali - disse-me numa voz segredada.

- E por que não? - perguntei-lhe, sentindo- me um tudo-nada perturbada.

- Ainda está quente com o calor do corpo do homem - explicou-me ele.

- Deixe-se de brincadeiras, não sou assim tão estúpida para o levar a sério - retorqui, rindo-me.

Mas ele falava muito a sério. Começou a explicar-me que muitos "fundamentalistas" veriam a minha atitude como uma tentativa para me excitar sexualmente com o calor deixado pelo corpo do homem, pelo que seria considerada uma puta por um acto tão indecente. Nunca em toda a minha vida tinha ouvido tanto disparate junto, mas infelizmente aquela "crença" foi-me confirmada por aqueles mais familiarizados com as preocupações de natureza sexual dos fanáticos.

Finalmente, a minha mãe estava em condições de saúde que lhe permitissem viajar para Inglaterra; a Maman Joon tivera alta do hospital, embora estivesse incapaz de caminhar, enquanto eu me encontrava lançada na trilha do jornalismo que me permitiria ganhar pré mios. Naquele momento não havia nada que me pudesse correr mal.

A partida da minha mãe fazia-se sem percalços de maior. O táxi chegou pontualmente às três da manhã, o que nos permitiu chegar ao aeroporto com as quatro horas obrigatórias de antecedência, onde deparámos com a sua cadeira de rodas a postos à sua espera. Um dos bagageiros levou-a ao balcão da companhia aérea, e depois para a área de inspecção da bagagem, enquanto eu ficava com Minu a observar através da parede de vidro que dividia o recinto reservado às chegadas e partidas. O bagageiro levou as malas da minha mãe para o fim da fila, onde aguardariam a sua vez de serem inspeccionadas por um funcionário da alfândega que ele nos prometeu que seria benevolente. Todas as malas de viagem são revistadas manualmente por funcionários que procuram artigos proibidos como biscoitos de arroz, tabuleiros de gamão, assim como a ocasional barra de ouro. Enquanto as malas da minha mãe esperavam a sua vez de serem inspeccionadas, ela foi levada na sua cadeira de rodas até onde lhe devolveriam o passaporte. Os iranianos que desejam deixar o país têm de obter antecipadamente um visto de saída, após o que são obrigados a entregar os seus passaportes cinco dias antes da data marcada para a viagem, e só depois é que as autoridades darão ou não aos portadores autorização para poderem viajar. O funcionário que se encontrava por detrás de um vidro à prova de bala procurou um passaporte na pilha que tinha à sua frente, após o que conferiu uma lista.

Quando a minha mãe foi conduzida a um lugar perto de onde nos encontrávamos, olhou-nos, sorriu e abanou a cabeça. Apeteceu-me vomitar, tal o choque que senti quando me apercebi de que ela deveria constar da listagem de "Partidas Proibidas". Não conseguia acreditar numa coisa daquelas. Estávamos outra vez encurraladas!

A partida do voo estava marcada para as sete horas, mas às seis e trinta continuávamos a tentar persuadir os soldados do lado de fora da secção de passaportes para que nos permitissem entrar no outro extremo da cidade, bastante afastado do aeroporto.

- Não está ninguém aqui, irmã - disse-me um soldado imberbe.

- Olhe, eu escrevo para o jornal Independent e a minha mãe tem de apanhar um voo dentro de menos de uma hora, portanto, deixe-me entrar para deslindar toda esta confusão - disse-lhe eu num tom autoritário, acenando-lhe com a minha acreditação de jornalista em frente do rosto.

Tinha deixado de ser uma suplicante à porta dos molás; assumira o papel de herdeira de uma grandiosa tradição militar e estava empenhada em obrigar aquela gente a deslindar o meu problema servindo-me apenas da minha força de vontade. Todavia, o soldado sonolento, que esperava ser rendido do serviço nocturno, era um bem-aventurado alheio à pessoa com quem estava a tratar e recusava-se a deixar-me entrar.

A minha mãe e Minu regressaram àquela fortaleza inexpugnável na manhã seguinte e foram informadas de que o meu pai retirara a autorização de que a minha mãe carecia para poder viajar. Era absolutamente indiferente que os meus pais se tivessem divorciado num tribunal britânico há mais de dez anos; o facto de o meu pai ter fugido da República Islâmica não tinha a menor relevância para o caso, e na sequência disso ele foi marcado como inimigo do Estado. Nesta nação, qualquer homem detinha todo o poder sobre a sua mulher, ainda que se assumisse que era um agente a soldo da CIA, velando constantemente pela pureza dela.

Deram-nos uma fotocópia da carta que o dirigente das orações de sexta-feira em Londres escrevera, confirmando que a minha mãe continuava casada com o meu pai, o que lhe dava o direito de a impedir de viajar. Também havia uma carta escrita pelo meu pai retirando-lhe o direito de viajar para "toda a sua vida".

Até mesmo sob o regime do xá, as mulheres necessitavam do consentimento por escrito dos maridos para poderem ter passaporte e abandonar o país - privilégios que são dos direitos fundamentais do homem noutras partes do mundo. Nunca deixa de me irritar que os debates que abordam o tema das violações dos direitos humanos se restrinjam tão frequentemente ao número de pessoas que são mantidas encarceradas, ou às que são fisicamente torturadas, enquanto muitos governos exercem uma forma de tortura bastante mais encapotada, ao que se alia a recusa de identidade e o poder que cada um deve ter sobre a sua própria vida.

A minha mãe teve sorte pelo facto de ser uma mulher com instrução e fortemente determinada, nada disposta a aceitar de boa-mente aquela situação absolutamente ridícula. Felizmente também pudemos contar com Minu, a única do nosso clã que sabia como movimentar- se nos meandros do sistema.

Dois dias depois da reclusão da minha mãe, confinada às fronteiras da República de Deus, apresentámo-nos diante do tribunal de família situado na baixa de Teerão. Fomos levadas a um gabinete nas entranhas do edifício, onde duas mulheres anotaram os dados da minha mãe, enquanto os seus filhos permaneciam sentados num canto da sala fazendo os trabalhos de casa. Pouco depois fomos enviadas para uma sala ao fundo do corredor, onde mais ou menos uns vinte suplicantes se esforçavam por atrair a atenção do funcionário. Tanto homens como mulheres acotovelavam-se uns aos outros a fim de serem ouvidos, acenando com bocados de papel acima das suas cabeças e empurrando as pernas dos que se encontravam amontoados à sua frente. Numa atitude resoluta, o funcionário bloqueava a porta que dava acesso à sala onde outros funcionários distribuíam as pessoas por diversos tribunais.

Era por de mais evidente que o funcionário era oriundo do Azerbeijão, a província do Norte a que os meus antepassados haviam chamado lar depois de terem desagradado aos czares. Foram necessárias apenas algumas palavras bem escolhidas por Minu, num turco que ela aprendera com os serviçais, para que nos permitissem a entrada na sala onde o nosso caso começou a ser apreciado.

- Dá-lhe qualquer coisa - sussurrou a minha mãe quando o funcionário nos escoltou pessoalmente através de umas escadas estreitas que nos levaram até à sala de um tribunal.

- Não posso fazer uma coisa dessas à vista de toda a gente - replicou Minu.

- Ele quer uma gorjeta. dá-lhe qualquer coisa - insistiu a minha mãe.

- Ainda vamos presas por suborno - retrucou Minu.

- Já te disse para lhe dares qualquer coisa. Ele não nos ajudará a conseguir a decisão que mais nos convém se não lhe deres qualquer coisa.

- Minha querida tia, não posso fazer isso. Não sei como fazer uma coisa dessas. Acabaremos por ser apanhadas e passaremos os próximos dez anos na prisão. Isto agora não é como antigamente; as pessoas já não aceitam subornos - explicou Minu, que dava a impressão de se encontrar à beira de um ataque de pânico.

- Não sejas ingénua a esse ponto. é possível que as pessoas sejam outras, mas o sistema é o mesmo - ripostou a minha mãe.

Fomos conduzidas até à câmara da Secção de Família do Tribunal Islâmico.

- Falamos consigo mais tarde - segredou a minha mãe ao funcionário que nos acompanhou.

Este sorriu e dirigiu-se a um homem sentado a uma secretária ao fundo da sala de espera. Encetaram uma longa conversa e viravam a cabeça de tempos a tempos como quem não quer a coisa, para nos observarem pelo canto do olho. Entretanto, sentámo-nos no espaço exiguo de um de dois bancos corridos colocados ao longo das paredes da sala. Havia duas portas, uma que dava acesso ao Tribunal de Família e outra ao Tribunal Criminal. Entretanto, a minha mãe começou a travar uma conversa trivial com a mulher sentada ao seu lado e que esperava a sua vez de ser julgada por ter tentado assassinar o marido que a maltratava.

As salas de tribunal pouco mais eram do que gabinetes espaçosos onde se sentavam três ou quatro juízes que ouviam as petições dos suplicantes que defendiam os seus casos; sentavam-se por baixo dos retratos obrigatórios de Khomeini, Khamenei e Raffers - imagens que haviam substituído os retratos do xá, da imperatriz e do príncipe herdeiro. Aquela sala de tribunal estava muito longe de se assemelhar às de Inglaterra onde o meu irmão Said a minha irmã Pari, assim com o marido desta, David, exerciam advocacia.

A minha mãe teve sorte; a mulher sentada ao seu lado disse-lhe que o funcionário a tinha enviado para um juiz que não era molá, um magistrado que conseguira sobreviver do antigo regime e que interpretava a lei sem os preconceitos de que o organismo religioso enfermava. Enquanto eu esperava do lado de fora, a minha mãe entrou para tomar conhecimento do seu destino. A mulher sentada ao meu lado que usava o chador negro perguntou-me o motivo que nos trouxera ao tribunal. Mesmo estando velada, consegui aperceber-me de que era extremamente bela e radiante de vitalidade; tinha um nariz com uma estrutura óssea delicada e de traços perfeitos, coberto por uma pele de um branco leitoso sem a mínima imperfeição. Os seus olhos grandes de um castanho-claro eram encimados por umas sobrancelhas fartas, ao que se aliava um par de malares que qualquer mulher daria tudo para possuir. Enquanto lhe contava a nossa história, a mulher, que não deveria ter muito mais de vinte e quatro anos, franziu o sobrolho.

- Grandes estupores! - exclamou ela quando acabei. - São uma cambada de filhos da puta. Se derem autorização à sua mãe para abandonar o país, você deve ir com ela. Isto não é lugar onde se possa viver. São todos uns estupores. Eu própria vivo na esperança de poder ir para a Suécia logo que a minha sentença termine - acrescentou ela.

- A sua sentença?

- Saí de Evin numa licença precária de duas semanas - adiantou ela, como se aquilo fosse a coisa mais vulgar do mundo. Talvez fosse, à luz da sua perspectiva. - Quero pedir ao juiz que me conceda outra semana, de forma a poder arranjar um visto de saída para me poder juntar à minha irmã e ao marido dela na Suécia logo que for libertada. Aqui não me resta qualquer espécie de vida.

Começou a explicar-me que os estupores a tinham sentenciado a três anos em Evin por razão nenhuma que o justificasse.

- Estes sacanas pregam connosco na cadeia só por termos passado uns quantos cheques falsos. Nunca tinha ido parar à prisão por esse motivo. As mães deles são todas umas putas - acrescentou venenosamente. - Queria prolongar a minha saída precária por mais uma semana, mas o juiz de hoje não é boa pessoa. Amanhã tenciono regressar para falar com Hadji. Ele dá-me sempre mais tempo. É um bom homem que tem procedido com generosidade para comigo desde que estou na prisão - continuou. Em seguida inclinou-se mais para mim e segredou-me ao ouvido: - Sempre que ele precisa, recebe um pouco de conforto da minha parte:

Há mais de nove anos que a vida dela era entrar e sair da penitenciária, culpando os molás por a encarcerarem, forçando-a a manter-se afastada da filha. Ansiava por poder viver num país onde não "encarcerassem as pessoas sem razão".

- Como é a vida em Evin? - perguntei.

- Para nós não é muito má, mas algumas mulheres são muito maltratadas - respondeu de uma maneira conspiratória.

- Estão lá muitas prisioneiras políticas? Como é a vida delas? - perguntei, sentindo-me fascinada com a proximidade daquela mulher que praticamente vivia a sua vida entre as paredes daquela prisão que tanto medo inspirava nas almas de todos os que ouviam falar do seu nome.

- Certas prisioneiras têm um estatuto especial. Mas estão confinadas a uma secção à parte das outras. Não as vemos mas por vezes ouvimo-las - confiou-me.

- Ouvem o quê? - perguntei.

- Às vezes ouvimos gritos e muito choro vindos da secção especial. À noite, de vez em quando somos acordadas pelos disparos que se ouvem no pátio da prisão, mas nunca temos oportunidade de ver as especiais - acrescentou num tom de voz tão casual como se estivesse a discutir o preço da carne de vaca.

Estaria ela a dizer-me apenas aquilo que pensava ser o que eu desejava ouvir, ou estaria a relatar-me a verdade? Eu queria desesperadamente uma oportunidade de conseguir fazer uma visita a Evin - claro que nunca na situação de prisioneira -, e já há algum tempo que arquitectava um esquema que me permitisse transpor as portas dessa prisão.

Para minha vergonha, não foi preciso muito tempo para me esquecer da situação aflitiva das mulheres encarceradas em Evin - bastou a minha mãe sair da sala do tribunal. Os seus esforços não tinham surtido o efeito desejado; a sua expressão estava ensombrada por um sentimento de raiva. Ó meu Deus, estamos encurraladas de novo! Por que carga de água regressei a este país malfadado? Por que razão trouxe a minha mãe para cá? Agora está destinada a morrer neste lugar e tudo por minha culpa, pensei para comigo enquanto todos os que se encontravam presentes naquela antecâmara mostravam expressões de expectativa.

- O que é que sucedeu? - perguntou finalmente um homem sentado próximo da porta.

- Ela pode deixar o país - respondeu Minu, provocando uma vaga de aplausos e outras manifestações de regozijo. A mulher de Evin abraçou- me e beijou-me enquanto alguns dos outros me davam palmadas nas costas. Toda aquela gente que vivia situações de adversidade partilhava uma estranha união, sentindo júbilo pela fuga de um deles, como se a sorte destes lhes desse esperança de um dia poderem vir a ser senhores dos seus destinos.

O juiz chegara à conclusão de que a lei, que concedia aos homens poderes sobre os movimentos das respectivas mulheres, se destinava a manter as famílias unidas e não a mantê-las desagregadas. Uma vez que o meu pai não se encontrava no país em que tentava encurralar a minha mãe, na realidade servia-se da lei para fazer o contrário daquilo a que esta se destinava. O juiz assinou a autorização que permitiria à minha mãe abandonar o país.

Por conseguinte, por que motivo se mostrava tão furiosa?

Era-lhe "consentido" que partisse; havia uma terceira pessoa que lhe concedia esse direito de que estivera prestes a ser privada pelo ex- marido. O juiz advertira-a de que se regressasse ao Irão talvez não tivesse tanta sorte.

O funcionário acabou por não receber a sua gorjeta.

Este desumanizar da mulher é quase uma coisa inconcebível para quem nunca viveu a realidade iraniana, este dado assumido de que os outros gozavam do direito de pôr e dispor das vidas dos membros do sexo feminino.

A partir daquele momento a minha mãe gozava de toda a liberdade de viajar, mas as adversidades que eu encontrara ao longo dos últimos meses haviam-me deixado nervosa e um pouco assustada. Chegara a um ponto em que deixara de ter a certeza se conseguiria enquadrar-me na minha identidade de iraniana. Aquela não era a Pérsia que eu amara; aquela era uma pátria onde pessoas que me eram desconhecidas, com convicções estranhas, tinham poder sobre a minha vida, onde eu não podia influenciar os acontecimentos que moldavam a minha existência. Sabia que não me encontrava preparada para permanecer por minha conta e risco. Depois de eu lhe ter pedido bastante, a minha mãe concordou em ficar durante mais umas semanas.

Naquela altura, Mohammed já chamara a si a minha causa, pelo que nos encontrávamos pelo menos uma vez de dez em dez dias, o que fazíamos com a finalidade de "trocarmos ideias". Ele explicava-me as facções e divisões no seio do regime. Por meu lado, falava-lhe da vida nos países ocidentais e da maneira como o jornalismo era exercido nessas nações.

Apesar da neve que caía durante o Inverno, costumávamos encontrar-nos para almoçarmos num dos restaurantes de Darband, o distrito aninhado nas encostas das montanhas de Elburz, que agora se encontrava abandonado pelas multidões que ali procuravam refúgio durante os meses de Verão para fugirem aos olhares da polícia de costumes.

Naquele ano, parecia que toda a gente do Irão desejava elucidar-me com a sua versão do mundo sob o regime dos molás, embora algumas destas pessoas não pudessem correr o risco de serem vistas em público na minha companhia. Os funcionários governamentais eram constantemente advertidos no sentido de não confraternizarem com os estrangeiros, sob pena de irem parar à cadeia, enquanto os iranianos comuns eram avisados para que se mantivessem afastados de todos os estrangeiros, a menos que fossem obrigados a encontrar-se com eles por via das suas profissões. Mohammed explicou-me que arriscava a sua liberdade sempre que se encontrava comigo, mas, tal como acontecia comigo, amava o seu país e pressentia que eu haveria de me "tornar muito famosa e importante" como escritora no Irão. Intriga e lisonja: uma combinação deveras tentadora.

Os nossos encontros fortuitos pareciam directamente retirados de um dos livros de Le Carré. Eu chegava ao ponto de mudar de táxi três ou quatro vezes durante um só percurso, na tentativa ténue de despistar alguém que me seguisse, apesar de não ter a certeza de estar a ser mantida sob vigilância. Para todos os efeitos, era uma jornalista de investigação, uma patriota, uma heroína e libertadora, tudo numa só pessoa. Cada vez era mais evidente que Mohammed puxava os cordelinhos e o Ministério da Obstrução lá saltava. Continuava a ser bastante vago quanto à exactidão do organismo para que trabalhava, assim como quanto à natureza específica do seu trabalho. Mas desde que ele fosse responsável pela distribuição de boletins e memorandos internos governamentais, eu não tencionava queixar-me. Muito daquilo que me chegava às mãos era "estritamente confidencial", de acordo com o que ele me dizia, o que aumentava a ilusão de que me encontrava no mundo de George Smiley'.

 

Alusão a uma personagem dos livros de espionagem do escritor John Le Carré. (N da T.)

 

Shirazi, o meu mentor preferido do Ministério da Obstrução, por mero acaso era primo de Mohammed, e não me foi preciso muito tempo para compreender que manter uma amizade com Mohammed significava que não tinha a mínima dificuldade em constar na lista de jornalistas, para além de ficar conhecedora das notícias antes mesmo dos ofertantes de moedas de ouro e de aparelhagens estereofónicas de fabrico japonês.

Por uma vez na vida, a incapacidade que eu tinha em me exprimir fluentemente na língua do país começou a ser uma vantagem, dado que Matt e Shirazi chamavam a si a tarefa de me ensinarem a língua, para além de me instruírem sobre os comportamentos em vigor no novo Irão. Era convidada para comer de travessas partilhadas por todos, e comíamos com as mãos. Também se mostravam deliciados perante a minha ignorância quanto às expressões e costumes tradicionais. Certa ocasião em que estava sentada com Matt no Ministério da Obstrução, um dos motoristas de um determinado ministro perguntou a Matt se tinha "linha". Comecei a remexer na minha mala de mão à procura do meu pequeno estojo de costura de viagem. Enquanto entregava a linha toda inchada de orgulho, os dois homens ficarám perdidos de riso. Fui informada que "linha" era o termo em calão para cigarro.

Quando a comitiva das Nações Unidas chegou à cidade, foi-me dada a oportunidade de testemunhar outra prova da eficiência iraniana. A ONU tinha escolhido Teerão, o centro de conferências dos países do Terceiro Mundo, para a realização de uma conferência sobre um tópico extremamente enfadonho. e de valor noticioso bastante insignificante. Mas, uma vez mais, os países da Ásia Central participariam a fim de serem integrados no tecido mundial, e eu estaria presente para assistir aos trabalhos.

No dia anterior ao início da conferência, os jornalistas encontravam-se de novo no Hilton, e desta feita desde o meio-dia até às quinze do dia seguinte enquanto os delegados e os jornalistas tentavam registar-se. Em primeiro lugar, a máquina fotográfica - operada pelos agentes de segurança - com que seriam tiradas as fotografias a serem colocadas nas acreditações dos que assistiriam à conferência, não chegou até às vinte e duas horas dessa noite. Em seguida foi preciso descobrir o código de cores que serviam de pano de fundo e que diferenciavam os delegados, tradutores, secretárias e membros da imprensa. Na manhã seguinte, todos estávamos de posse das nossas acreditações, reunidos no Hilton para sermos levados em BMW e Mercedes até ao centro de televisão onde a conferência teria lugar.

- As mulheres pelas traseiras! - gritava um soldado enquanto uma mão-cheia de mulheres eram largadas na frente do edificio. Três revistas corporais mais tarde permitiram-nos o acesso pela porta principal, onde duas mulheres inspeccionavam as nossas indumentárias.

- Não pode entrar com esse lenço - disse-me a mulher mais feia apontando para o meu kefiyeh.

- E por que não? Serve para cobrir o meu cabelo - argumentei.

A discussão prolongou-se por dez minutos até que finalmente a mulher finalizou a discussão.

- Tem de usar veo e não há mais nada a dizer sobre o assunto. O branco é haram (proibido) no Islão.

Mas foi aí que eu a apanhei!

- No dia em que o presidente Rafsanjani substituir o seu turbante branco por um de tecido preto, eu também substituirei o meu lenço branco por um negro - disse-lhe.

Resultou; ela ficou com uma expressão embasbacada mas deixou-me entrar sem ter murmurado uma só palavra. Somente os molás que descendem directamente do Profeta Maomé (AS) é que podem usar turbantes negros. Raffers não é um desses descendentes, pelo que tem de usar branco. Senti-me bastante esperta e satisfeita comigo própria até a essa mesma noite quando recebi um telefonema de Shirazi.

- O que é que você disse hoje? Provocou um burburinho enorme - disse-me ele sem ocultar o seu estado de pânico.

- Nada - garanti-lhe.

- Recebemos uma informação através do Serviço Secreto de que insultou o presidente - explicou ele.

- Nem sequer vi o presidente - repliquei.

Posteriormente, vim a descobrir que o meu comentário foi relatado à SAVAMA, o organismo sucessor da SAPAK, a polícia secreta do xá, tendo sido interpretado como tendo saído da boca de um opressor que apelidara o presidente de arrivista. O que era irónico, uma vez que ele era o único da nossa classe de dirigentes de quem eu não tinha essa opinião. Contudo, o incidente contribuiu em muito para a minha imagem. Uma mulher que se atrevia a desafiar os mais importantes do país certamente teria alguém de muito peso por detrás de si.

Muitos iranianos continuam a acreditar que caso se ergam as barbas de um molá encontrar-se-ão as palavras "fabricado em Inglaterra" escritas à largura da garganta. Eu trabalhava para um jornal inglês e tinha a ousadia de desafiar o presidente; consequentemente, eu deveria ser uma espia britânica. Esta convicção foi ilustrada pela chegada ao Irão do produtor de uma série televisiva da BBC, Living Islamz, que inspirou o Keyhan, um jornal diário de tendência radical a publicar o cabeçalho: "Infame Espião Britânico em Teerão. Passa Informações a Agentes Disfarçados de Jornalistas". Esta história chegou-me aos ouvidos numa

 

O Islão Vivo. (N da T.)

 

ocasião em que estava no Hotel Laleh, onde trocava dois dedos de conversa com o pretenso espião britânico. Pareceu-me ser um homem bastante inofensivo, uma pessoa de boa índole, um produtor de televisão afável, cujo dente solto oscilava enquanto me descrevia as muitas viagens que fizera ao Irão.

Por acaso, ficámos ao lado um do outro enquanto esperávamos por uma conferência de imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros que fora marcada para essa tarde. Primeiro fora atrasada uma hora, para pouco depois nos dizerem que só se realizaria dali a quatro horas. Depois de os jornalistas se terem voltado a reunir, os funcionários do Ministério da Obstrução apresentaram o seu pedido de desculpas; o funcionário governamental que aguardávamos ainda não tinha chegado; no entanto, envidavam todos os esforços para o encontrarem. Às vinte e duas e trinta dessa mesma noite desistiram por fin do homem, dizendo aos membros da comunicação social que regressassem a suas casas. Nessa noite confirmei ainda mais que era verdadeiramente uma espia britânica, ao jantar com o meu "mestre-espião" no hotel.

Subitamente, tornei-me muito popular nas festas em que os meus novos amigos se deleitavam naquilo que sentiam ser a glória das influências. Foi numa dessas festas que fui abordada pela primeira vez, tendo-me sido dirigido um convite para me tornar naquilo que toda a gente já pensava que eu era - uma espia.

 

                 Facções no seio de facções

Fazer o papel de Mata Hari sempre preencheu as fantasias da minha meninice. Propiciava-me todo o fascínio e poder sem quaisquer dos riscos e problemas inerentes à actividade de uma espia na vida real. Mas as coisas começavam a sair fora dos eixos à medida que a realidade passava dos limites da fantasia.

O diplomata encantador que me dirigira o convite para espiar de verdade deixara-me perplexa. Estaria ele a fazer uma abordagem genuína, ou estaria eu a ler nas suas palavras um significado que na realidade não continham? Eu nem sequer era capaz de extrair ao sistema iraniano as notícias mais inócuas, quanto mais obter segredos de Estado. Mohammed permitia-me o acesso a alguns documentos que talvez pudessem ser interessantes, mas certamente que qualquer pessoa com um pouco de iniciativa poderia tê-los obtido sem dificuldades de maior.

Tenho de confessar que por uma fracção de segundos desejei fazer parte daquela fraternidade secreta: Cherry Bind - com permissão para brincar aos espiões. Todavia, eu sabia antecipadamente que o mais provável teria sido ficar estarrecida quando tivesse de levar a cabo o meu trabalho de campo. A única coisa a fazer era rir-me do assunto. Optei por dizer ao homem que ele seria muito disparatado por tentar recrutar os serviços de alguém cujo livro preferido por acaso era O Nosso Homem em Havana, a história de Graham Greene sobre um espião relutante que enganava os seus superiores com agentes e relatórios fictícios.

- Pense melhor sobre o assunto - aconselhou- me ele.

De facto pensei no assunto, e os meus pensamentos assustaram-me.

Dois dos meus melhores amigos em Teerão eram um diplomata britânico, David Reddaway, e a sua deliciosa mulher Roshan, uma irano-americana. Passámos juntos alguns momentos muito felizes em que desfrutei de muitas noites deveras agradáveis na companhia dos dois. São das pessoas mais encantadoras que me foi dado conhecer, tendo- se tornado praticamente na minha família, o meu oásis de sanidade e momentos alegres. Mas na República de Deus os iranianos não se podem dar socialmente com os estrangeiros sem que haja alguém como Mousavi que tente tirar qualquer partido desse tipo de amizades. Eu estava a ficar cada vez menos popular à medida que ia recusando pedidos que as pessoas me faziam - grandes amigos que não mencionavam o meu nome há vinte anos - e que me pediam que obtivesse vistos através do meu amigo Reddaway.

- David não daria um visto nem sequer à sua própria avó - disse eu a Farah, que me pediu que ajudasse um casal a arranjar um visto britânico pois tinham a intenção de se refugiarem em Inglaterra.

Mas isso não era nada em comparação com a pressão que Mousavi exercia sobre mim, pretendendo que eu fizesse um registo das visitas que fazia a casa dos meus amigos. Finalmente conseguiu que eu os abandonasse, cortando assim as relações que eram vitais na minha vida. Menciono aqui o nome dos Reddaway por duas razões: a primeira é o facto de o relacionamento que mantinha com ambos me permitir continuar sã de mente; e a segunda para que fique bem esclarecido que eles não tiveram nada a ver com qualquer dos convites que me foram feitos para espiar. Os britânicos nunca me pediram nada dessa natureza, para além de seremjustos e frontais.

Durante todos os minutos em que me mantive acordada ao longo da semana seguinte, só pensava nessa proposta. Uma parte de mim sentia-se empolgada, enquanto a outra se sentia ultrajada. Eu sabia que seria uma acção imoral e que sem dúvida alguma um país onde nunca pusera pé não poderia inspirar-me sentimentos de lealdade. Caso pretendesse ganhar dinheiro a qualquer custo, existiam outras maneiras melhores e mais seguras de o conseguir. Mas para lá das minhas reservas de ordem moral, havia um impedimento bastante maior, o medo de vir a ser executada.

Estava impossibilitada de ir a qualquer lugar sem que não houvesse alguém a tentar recrutar-me para uma causa ou outra. Como se isto não bastasse, o velho Mousavi interferia sistematicamente na situação. Ele já tinha aludido em várias ocasiões a uma possível "cooperação mais chegada" durante as nossas reuniões semanais no Ministério da Obstrução. Eu tencionava regressar a Oxford para umas pequenas férias, assim como para reavaliar a minha situação, quando Mousavi me telefonou dizendo que tínhamos de alterar o local do nosso encontro semanal. Disse-me que se encontraria comigo no átrio do Hotel Hilton na manhã seguinte.

Mas quando lá cheguei, não vi vestígios de Mousavi - somente um recepcionista que me chamou para atender um dos telefones do hotel.

- Miss Gharai? - perguntou a voz de Mousavi. Que estranho! Habitualmente tratava-me pela primeira metade do meu apelido. - Estou no quarto 1215. Importa-se de fazer o favor de subir?

Na minha cabeça começaram a soar um milhão de campainhas de alarme. Ao fim e ao cabo, aquele homem tentara namoriscar comigo de forma tão ultrajante, e agora pretendia ficar a sós comigo num quarto de hotel. Era muito frequente os iranianos pensarem que as mulheres que viviam nos países ocidentais tinham um comportamento promíscuo, o que me levava a recear que aquele homem pudesse estar a tentar ter uma reunião um tudo-nada recreativa. Tentaria seduzir-me ou violar-me? Isso seria impensável na devota República Islâmica. Esperaria ele poder levar aquela tentativa avante, ou não? O bom senso dizia-me: Não sejas tão pateta; és uma profissional; estás à altura de lidar com qualquer situação.

Enquanto este debate acalorado tinha lugar na minha mente, dirigi-me para os elevadores apenas para me ver confrontada pelo segurança do hotel responsável por velar pelos bons costumes. Graças a Deus que me apareceu uma justificação para não subir ao quarto; ele jamais deixaria uma mulher chegar perto de um dos quartos, pensei. Expliquei-lhe que tinha recebido instruções para me encontrar com o senhor Mousavi. Obviamente esse não seria o nome com que ele se registara no Hilton, uma vez que o homem da segurança se mantinha firme entre mim e o elevador.

- Estou a referir-me ao senhor Mousavi do Pensamento Islâmico. E também do Ministério da Orientação - acrescentei, sem me ter apercebido até então de que na verdade Mousavi pertencia a um organismo inteiramente diverso.

Continuei a ser brindada com um olhar estóico.

- Olhe, sou repórter - adiantei, procurando a minha acreditação de jornalista recém- adquirida.

As reacções do segurança continuavam a ser nulas.

- Tenho de ir ao quarto 1215 - expliquei.

Observei um vislumbre de compreensão naqueles olhos castanhos de forma oval. Pareceu-me ter visto também um pouco de pânico.

- Sim, sim - disse o segurança afastando-se pressurosamente para o lado. O que é que ele teria querido dizer com aquele "Sim, sim"? O que é que seria o quarto 1215? O quarto onde oficialmente se cometiam crimes de estupro? O quarto do não-regresso?

Volta para trás disse-me a voz do bom senso quando entrei no elevador. Não saias, continuou a dizer-me quando cheguei ao décimo segundo andar.

Senti que me faltavam as pernas e as mãos tremiam-me, ainda que muito ligeiramente, mas segui em frente determinada, dirigindo-me ao quarto 1215, entregando-me à sorte que me aguardava. Nesta altura já me tinha convencido de que, fosse por que meio fosse, Mousavi já tomara conhecimento do convite que me fora dirigido para espiar e planeava o meu desaparecimento. Coitada da pobre da minha mãe. Seguramente que aquilo seria a sua morte. Volta para trás, volta para trás, insistia a voz dentro de mim. A verdade é que ninguém se interessa com o que está a acontecer no Irão. Por que hás-de desperdiçar a tua vida com reportagens que as pessoas esquecerão logo depois de as terem lido - argumentava a voz enquanto me aproximava inexoravelmente do quarto 1215.

Os dígitos pareciam olhar-me com fixidez: 1215 - qual número de prisioneira que seria tatuado no meu braço. Estava pronta a desatar a correr, e ao mesmo tempo a minha imaginação conduzia-me ao mundo da intriga e da conspiração.

Bati à porta.

Alegria! De dentro ninguém respondeu. Voltei a bater; continuei a não ter resposta.

Era uma cilada. Caso girasse a maçaneta, a porta abrir-se-ia e no interior depararia com um corpo inanimado - talvez até fosse o mesmo diplomata que desejava controlar as minhas acções de espia. Nessa altura Mousavi chegaria e seria arrastada para a cadeia, e todos os meus protestos seriam inúteis, porque seria acusada de acções criminosas, e não como prisioneira política.

Adeus, minha mãe, não chores por mim, porque pereci fazendo aquilo que me pareceu ser o mais acertado. Sustive a respiração e empurrei a porta.

Nada. Encontrava-se fechada à chave.

Estava prestes a fazer meia-volta e pôr-me a andar dali para fora mas ouvi uma voz à distância.

- Miss Gharai!

No extremo mais afastado do corredor avistei a figura ligeiramente rechonchuda vestida de verde: Mousavi. Tinha mudado de quarto de forma a que ninguém soubesse que havia sido ele quem me violara e matara. Senti que as minhas pernas se transformavam em borracha, ao mesmo tempo que o meu coração subia à força até à garganta e saía da boca, enquanto atravessava num passo vacilante o vasto abismo que nos separava.

Foi então que dei pela presença de Touro Sentado, que espreitava furtivamente da ombreira da porta do quarto. Graças a Deus eram dois! pensei com um alívio feito de ingenuidade.

Ao invés de violação e morte, fui brindada com um banquete de comida de hotel acompanhado de lisonjas. Ao que tudo indicava, era por de mais evidente que eu era uma patriota sem paralelo, um modelo ímpar de pureza e habilidade. Nessa qualidade, devia sentir-me ansiosa por proteger a minha pátria bem-amada dos ataques por parte dos "inimigos prontos a corromper os nossos jovens e a enxovalhar o povo inocente". Resumindo e concluindo, aquela adulação devia-se ao facto de Mousavi me ter escolhido entre os muitos que se ofereceriam" para bisbilhotar entre os meus colegas jornalistas, amigos e diplomatas com quem eu me dava. Em compensação por aquele pequeno favor, Mousavi apresentar-me-ia a pessoas de agências noticiosas que queriam algumas informações pelas quais me pagariam. Faria com que eu fosse nomeada como correspondente independente de algumas das melhores publicações mundiais, recompensando-me ainda com montes de dinheiro. Resumindo e concluindo, era suposto que estruturássemos a força especial do serviço de espionagem semimercenário, fornecendo informações aos molás, e a recompensa seria disseminar a nível mundial a sua versão dos acontecimentos.

Nenhuma das minhas justificações, em que alegava ser a pior escolha que eles poderiam ter feito, surtia qualquer efeito na determinação inabalável de Mousavi. Não lhe tinha passado despercebido que eu conseguira encontrar um lugar no seio de todos os grupos em que os jornalistas se dividiam, para além de ter travado uma amizade íntima e pessoal com diplomatas "influentes". E, como seria de esperar, eu necessitava de dinheiro para saldar as dívidas que tinha contraído em Inglaterra.

Como é que ele teria tido conhecimento de tudo aquilo? Estaria o cartão de crédito do Barclays a fornecer aos Serviços Secretos do todo o mundo informações sobre a situação financeira de qualquer pessoa? Teria o SAVAMA um agente infiltrado no NatWest?

- O meu editor não é nenhum idiota. É capaz de detectar qualquer história que não seja cem por cento correcta. Caso eu adquirisse a reputação de ser o vosso porta-voz, ninguém aceitaria as minhas reportagens - argumentei.

- Claro - concordou Mousavi com um acenar de cabeça. - Não lhe estamos a pedir que diga mentiras, mas sim que trabalhe connosco de forma a que eu lhe possa dar informações verdadeiras. informações que nenhum outro jornalista conseguirá obter. - Eu já tinha começado a serenar um pouco quando Mousavi acrescentou: - Não se esqueça do que eu lhe disse quando aprovei o seu pedido de registo como jornalista. E também não se esqueça de que é iraniana. Você não é como esses jornalistas estrangeiros que acabámos de expulsar do país.

Já no táxi a caminho de casa, passei pela Penitenciária de Evin e senti o sangue gelar- me nas veias, compreendendo o quão perto me encontrava de ir parar àquela prisão. Os meus pensamentos estavam num turbilhão. Necessitava de ser aconselhada, mas naquela altura estava absolutamente convencida de que alguém observava todos os meus movimentos. Se eu ignorasse essa vigilância, talvez desistissem de mim, oferecendo aquele extraordinário privilégio a outra pessoa qualquer.

Nessa mesma noite telefonei a um amigo em Inglaterra que tinha alguma experiência em assuntos desta natureza.

- Pediram-me que me juntasse à "Gente de Smiley" - disse-lhe eu, aludindo ao romance que sabia que ele lera.

- Nós ou eles? - perguntou ele.

- Não tenho bem a certeza quem é que "nós" e "eles" possam ser, mas até agora parece-me que estamos a falar de dois campos opostos - repliquei.

- E estás disposta a fazer isso?

- Preferia casar com o Boy George, mas acontece que existe um pequeno senão: não sei se me será permitido continuar a respirar se me recusar - retorqui, tentando gracejar. Verdade fosse dita, Mousavi não tinha ameaçado a minha vida, somente o meu ganha-pão, recordando-me que poderia privar-me da minha acreditação de jornalista.

- Nesse caso, alinha no jogo deles. Não te recuses, mas não lhes digas nada de relevante - aconselhou-me ele.

- Não sei se conseguirei sair-me bem com esse estratagema - repliquei. Mas foi o que fiz. Durante o resto da minha permanência no Irão consegui iludir Mousavi, deixando-o sempre com a esperança suficiente de que passado pouco tempo o informaria de algo que tivesse descoberto. O que foi feito à custa da minha vida particular, uma vez que comecei a evitar a companhia dos meus colegas jornalistas e amigos; o preço que era obrigada a pagar a fim de permanecer activa profissionalmente. Havia alguns dias em que tinha sérias reservas quanto a ser capaz de aguentar aquela situação até à minha viagem de regresso a Inglaterra dentro de três semanas. Todavia, essas três semanas revelaram-se as mais momentosas até à data.

Começaram com a notícia de que uma outra amiga querida, a mulher que me levara do hospital depois de a minha mãe me ter dado à luz, sofria de uma grave doença cancerígena. Havia dias em que só me apetecia refugiar-me na cama, tal o receio que sentia em receber mais más notícias que me aguardariam no mundo fora de casa. A falta de qualquer apoio, tanto para mim como para a minha mãe adoentada, por parte de familiares e amigos, realçava um sentimento em que me parecia estar no inferno. Sentia-me emocionalmente magoada e extremamente desiludida.

Durante o dia tinha de enfrentar todos os obstáculos do quotidiano em Teerão, ao que se aliava o fardo de suportar uma anfitriã que cada vez se mostrava mais perturbada e hostil. Despertei núma das minhas muitas noites de insónia e descobri que tinha uma irritação num dos braços. Ao anoitecer tinha o corpo todo coberto de borbulhas, o que se foi agravando até ficar transformada numa massa avermelhada e tumefacta. A borbulhagem não me abandonou, não obstante ter-me besuntado com tudo o que o ervanário do nosso distrito podia fornecer, da ingestão de comprinídos que posteriormente vim a descobrir serem uma medicação para a esquizofrenia e que me haviam sido prescritos por um médico tresloucado, depois de ter consumido todas as melancias existentes na cidade.

Consequentemente, todas as aflições por que passava foram acrescidas de uma comichão de endoidcer. De cada vez que tinha de sair para fazer qualquer reportagem, sentia-me aterrorizada pela possibilidade de poder acontecer alguma coisa à minha mãe durante as minhas ausências. Os meus conhecimentos defarsi tinham melhorado embora continuasse a não falar a língua fluentemente, pelo que todos os contactos eram um martírio em que tinha de me esforçar com todo o denodo para compreender e ser compreendida pelos meus concidadãos.

Numa noite em que regressava a casa depois de um jantar na embaixada britânica, nos tempos em que ainda continuava a ir lá, o motorista do táxi que me transportava comentou que o meufarsi era "excelente".

- Obrigada. Devia ser - repliquei.

- Porquê? Vive no Irão há muito tempo? - perguntou-me o homem.

- Não. Só cheguei a Teerão há aproximadamente seis meses - redargui.

- Nesse caso, fala extraordinariamente bem - comentou ele com entusiasmo.

- Sou persa - confessei um tudo-nada envergonhada.

- Alá seja louvado! Sendo assim, é deveras surpreendente - replicou ele, fazendo com que o sangue me afluísse às faces.

Por fim, uma das minhas primas que exercia medicina sugeriu que uns quantos tranquilizantes talvez me ajudassem. Duas noites a tomar Vallium e as borbulhas desapareceram por completo.

No campo da política, as coisas estavam a tornar-se cada vez mais interessantes à medida que os "fundamentalistas" ou os da linha dura tentavam agarrar-se ao poder sob um massacre reformador por parte dos "moderados" - os homens de Rafsanjani.

Mas no Irão nada prima pela frontalidade. Esses homens da linha dura, os indivíduos da Esquerda que nutriam tanto antagonismo contra os países do Ocidente e que eram contra toda e qualquer reforma económica, não se opunham a que as mulheres da nação exibissem aqui e ali uma madeixa de cabelo. Por seu turno, os moderados mostravam pouco interesse pelos assuntos económicos, desde que estes lhes proporcionassem carradas e carradas de dinheiro; eram os homens dos bazares e os lojistas da classe média, que obrigavam as suas mulheres a andarem envoltas naquela espécie de mortalhas negras. Eram os indivíduos que se sentiam excitados ao ouvirem o som da voz de uma mulher a cantar e que acreditavam piamente que Michael Johnson provinha das sementes de Satanás, mas que viam às escondidas o filme Na Cama com Madona. Foi esta última estirpe de chauvinismo, que começara a surgir na época de Raffers, que em última análise acabaria por frustrar os seus grandes planos de reforma.

Tínhamos regressado ao centro de investigação onde eu me tinha transformado numa estrela de bastante notoriedade depois da conferência da OCE. O episódio dos meus esforços obstinados para conseguir entrar tinha-se espalhado, o que me tornara numa espécie de heroína. Os olhos do porteiro adquiriam um novo fulgor sempre que eu chegava, mostrando-se sempre disposto a relatar a história do nosso primeiro encontro a quem lhe quisesse dar ouvidos.

- Nunca pensei que ela conseguisse entrar, jamais, depois de algumas das coisas que ela disse nessa altura. Mas o certo é que eles ficaram com receio desta rapariguinha - diria ele todo radiante. Por conseguinte, estou em crer que muita da pretensa ousadia resulta pura e simplesmente da ignorância e estupidez. Eu não tinha tido o discernimento suficiente para compreender que o meu desbocamento ainda me traria problemas.

Nesta visita ao centro, a alguns dias apenas da data da minha partida, estávamos uma vez mais reunidos para outra conferência onde seria debatido o destino da Ásia Central no seio da família islâmica, o que me proporcionou outra oportunidade de me aproximar de Raffers. Nesse dia Minu tinha-me deixado bastante cedo no centro sem qualquer problema. No seu todo, tratou-se de um acontecimento bastante enfadonho. A única nota interessante foi uma breve conferência de imprensa dada por Raffers, o qual entrou com o seu sorriso característico que parecia dizer: "Serei realmente o presidente do Irão? Não há dúvida de que conseguimos enganar os idiotas".

Do centro de investigação até à rua principal mais próxima mediava um percurso de cerca de oitocentos metros pela encosta acima de uma colina, mas nessa noite escura e fria de Janeiro deu-me a sensação de serem cerca de quinze quilómetros ao sentir que as minhas pernas e costas começavam a doer-me outra vez. O meu objectivo encontrava-se à vista quando o homem que me seguira à saída do centro me alcançou.

- Permite-me que lhe ofereça um cigarro? - perguntou-me ele.

Oh, não! Outro que pensa que fez um engate.

- Não, obrigada - respondi olhando bem em frente.

- Quem é a mulher que a deixou aqui esta manhã? É a sua irmã?

O homem conseguiu despertar a minha atenção.

- Não.

- Por que razão é que não fez nenhuma pergunta ao presidente Rafsanjani?

- Esteve a observar-me? - perguntei exasperada.

- As minhas funções são essas - retorquiu ele.

- Qual é o seu tipo de trabalho?

- Sou o guarda-costas do presidente - redarguiu ele numa atitude casual.

- De verdade? Como é ele? Acredita realmente nas reformas de que fala? - O meu entusiasmo era tal que me ocorreram à mente muitas perguntas, umas atrás das outras.

- Não tem carro? - perguntou ele, ignorando a minha pergunta.

- Não, quando chegar à rua tenciono apanhar um táxi. Também se vai embora agora?

- Não, só saí por uns momentos para comprar cigarros. Mas se quiser posso acompanhá-la até arranjar um táxi - ofereceu-se ele.

As campainhas de alarme soaram de novo na minha cabeça, pelo que recusei a sua simpática oferta, fazendo um comentário à laia de piada sobre as mulheres independentes, mas nada poderia demovê-lo. Naquela altura, ambos nos encontrávamos no passeio de uma rua principal mal iluminada. Antes de me aperceber do que estava a passar-se, surgiu um automóvel vermelho cheio de homens peludos. A porta do assento de trás abriu-se.

- Ainda bem que já chegaram, o senhor Mousavi levá-la-á a casa - disse o meu companheiro, empurrando-me para a parte de trás do carro. "Outro Mousavi não", pensei enquanto o automóvel arrancava a grande velocidade.

Eu devia ter-me sentido aterrorizada mas, pelo contrário, pensei na grande aventura que me estava a acontecer por fim. O facto de não me terem perguntado o meu endereço não me preocupou; neste país, toda a gente dava a impressão de estar ao corrente da minha vida. No entanto, quando começámos a dirigir-nos para sul, afastando-nos da minha área de segurança, da zona que me era familiar, comecei a pensar numa maneira de escapar. O automóvel seguia cada vez mais para sul da cidade; comecei a fantasiar em aproveitar uma altura em que o carro reduzisse a velocidade para me lançar pela porta fora.

O homem que seguia no assento do passageiro da frente tinha uma fisionomia particularmente horrenda. Os pêlos da sua barba de três dias espetavam-se em todas as direcções num rosto coberto de verrugas e marcas de acne. Voltou-se para trás e olhou-me fixamente com uns olhos minúsculos, e o sorriso arreganhado de alguém que não estava no seu juízo perfeito.

- Não se aflija, Miss Mosteshar - tentou ele tranquilizar-me.

- Nós somos jornalistas tal como você é - acrescentou o motorista, que era apenas uma massa de pêlos faciais negros do meu ângulo de observação.

Ao meu lado sentava-se uma réplica do Médio Oriente de Billy Bunter', com o acne da

 

Personagem da literatura juvenil inglesa criada por Frank Richards (pseudónimo de Charles Hamilton, 1875-1961) que num dos seus livros inventa uma escola ficcional, Greygriars, onde pontua o famoso gorducho desajeitado chamado Billy Bunter. (N. do E.)

 

puberdade por baixo do qual se via um rosto de querubim. No canto mais afastado avistei uma versão de Al Pacino. Abandonei os planos de me lançar para fora do carro.

- Por que motivo é que não fez nenhuma pergunta ao presidente Rafsanjani? - perguntou-me o motorista.

Seria que todo o mundo se tinha apercebido dessa lacuna?

Inscrevi o meu nome na lista, mas não fui chamada - justifiquei.

- Devia ter insistido. Nem toda a gente goza do privilégio de trabalhar para o Independent - comentou a versão de Al Pacino.

- Especialmente porque o Irão é proprietário desse jornal - acrescentou a réplica de Billy, o que fez com que todos começassem a rir-se à socapa. Não era a primeira vez que eu ouvia aquela afirmação estrambólica, e inexplicável, expressa por jornalistas iranianos.

- Não me parece que isso corresponda à verdade - disse eu na defensiva. Eles continuaram com os seus risos casquinados, exibindo uma expressão que dizia "Nós sabemos muito mais do que esta rapariga idiota", a qual os homens do Irão haviam aperfeiçoado ao pormenor.

Finalmente, dei-me conta de que chegara o momento de lhes perguntar para onde tencionavam levar-me.

- Para uma pequena conversa - informou-me o motorista enquanto virava para o Largo Shoush, dirigindo-se ainda mais para sul. Não tinha bem a noção do local onde nos encontrávamos, mas reconheci o Largo Shoush dos tempos em que costumava acompanhar visitantes estrangeiros para lhes mostrar "onde as pessoas pobres viviam". Gostaria de dizer que continuava a manter a serenidade e postura, mas a realidade é que a pulsação do meu coração se acelerara mais do que o habitual, e os meus pensamentos concentravam-se na forma como a minha mãe reagiria se não me visse chegar a casa.

Continuámos a rolar no automóvel durante várias horas enquanto os meus "raptores" me interrogavam sobre as minhas inclinações políticas. Sugeri que cooperassem dizendo-me quem eram e o que desejavam de mim. Quando chegámos ao seu território entre os pardieiros de Teerão, os quatro homens mostraram-se bastante mais abertos. Eram jornalistas que trabalhavam para alguns jornais da oposição, muito próximos do principal rival político de Raffers, Hojat-ol-Islam Ali Akbar Mohtashemi, o antigo ministro do Interior que levara o Hezbollah para o Líbano, o mesmo homem que causara tantos problemas por ter concedido uma entrevista a Robert Fisk. Na posição de ministro do Interior, Mohtashemi fora responsável pelos governadores regionais, pelas forças policiais e pelos Komitehs. Também partilhara a responsabilidade dos Serviços de Segurança.

Quando nos encontramos no Irão, aprendemos muito rapidamente a nunca falar daquilo em que acreditamos, especialmente com desconhecidos. A desconfiança era algo que nos ficara dos tempos do xá que tinha transformado metade da população em informadores. Consequentemente, decidi manter-me calada, não obstante todas as pressões que aqueles homens exercessem sobre mim a fim de tomarem conhecimento dos meus pontos de vista acerca de Raffers e Khamenei.

- Não esteja receosa. Somos patriotas tal como você - assegurou-me o motorista.

- Como é que vocês sabem o que eu sou? - perguntei, à falta de uma pergunta mais inteligente.

- Nas suas veias corre o sangue do coronel Mohammed Taghi Pessian. o que faz com que seja nossa "irmã". Partilhamos da visão que ele tinha da nossa nação - explicou ele enquanto eu ficava de boca aberta. Aqueles indivíduos tinham feito os seus trabalhos de casa.

- Pensámos que talvez pudéssemos partilhar algumas informações consigo. dar-lhe a conhecer os nossos pontos de vista - acrescentou a réplica de Al Pacino.

- Oh, sim, claro, ficaria encantada. Boa ideia - apressei-me a dizer, na esperança de que agora pudesse regressar a casa e esquecer-me de que aquele incidente tivera lugar.

Mas não estava destinado que assim fosse, pelo menos por enquanto, uma vez que não tinham a intenção de me deixarem ir em liberdade até me terem dado a conhecer as suas ideias políticas, assegurando-se de que eu tinha tomado apontamentos extensos e minuciosos - o que não era tarefa fácil naquela escuridão, apertada na parte de trás de um automóvel pequeno, ao lado de Deus sabia quem.

Mohtashemi e os seus apoiantes continuavam a focar o tema da economia e do controlo central; a nação fechada ao mundo, que era a única defesa contra as influências imperialistas. Eram os jovens turcos do Irão, profundamente empenhados na defesa das tradições anti-imperialistas, os jovens estudantes, os molás progressistas e muitos membros da Guarda Islâmica que juravam fidelidade a este grupo. Conhecê-los equivalia a conhecer o coração do radicalismo de que a insurgência islâmica enfermava.

Às primeiras horas da manhã fui finalmente conduzida à casa de Bahar, onde se despediram de mim com a promessa de que voltaríamos a encontrar-nos em breve. Quando cheguei a casa, a minha mãe encontrava-se num estado de grande aflição. Já tinha imaginado um sem-número de tragédias horrendas que me pudessem ter acontecido. Limitei-me a relatar-lhe a minha aventura por alto, na esperança de que o assunto fosse rapidamente encerrado. Na manhã seguinte Nastaran abanou-me despertando-me às sete horas, brindando-me com uma expressão de escárnio. Disse-me que tinha um telefonema, como se me estivesse a acusar de um assassínio em massa. Era o motorista: apresentou-se dizendo que era "Hussein, o seu motorista da noite passada".

- Há uma coisa muito importante que tem de ver. Vá ter comigo às oito horas à esquina da Vali-e-Asr com a via rápida Modarres - instruiu-me ele.

Era a minha grande oportunidade de me encontrar com os verdadeiros revolucionários, as pessoas que mantinham o mundo como se este fosse seu refém, os que puxavam os cordelinhos sempre que os fundamentalistas islâmicos pegavam em armas. Tratava-se de uma situação que também era extremamente atemorizante, uma vez que não podia pôr de parte a possibilidade de estarem a armar-me uma cilada. Convocou-se uma reunião de família e o consenso geral foi que eu devia manter-me bastante afastada daquela gente - embora alguns dos meus familiares compreendessem os motivos por detrás do jornalismo moderno. Nenhum deles tinha o mínimo desejo de conhecer aqueles estranhos que haviam invadido o seu país, manter qualquer contacto que lhes fosse impossível evitar. No fim da conversa, senti que qualquer encontro fortuito poderia ser facilmente interpretado como algo à margem da minha actividade de jornalista. Pelo pensamento passou-me a imagem do outro Mousavi a receber um relatório do meu encontro, acompanhado de fotografias tiradas quando entrava num automóvel com um grupo que constituía a maior ameaça a Raffers. Era evidente que o presidente tinha a intenção de esmagar Mohtashemi e os da sua igualha. Não me sentia nada ansiosa de ser assinalada como um deles. Por conseguinte, optei por ficar em casa.

Diariamente, ao longo das duas semanas seguintes, um dos quatro contactava-me e urgia-me a encontrar-me com eles. Perante tanta insistência, acabei por concordar em encontrar-me com a réplica de Al Pacino, embora na altura não tivesse sabido que seria com ele. Não estava disposta a marcar o encontro na esquina de uma rua qualquer, pelo que sugeri que depois do jantar tomássemos café no Hilton.

Quis a pouca sorte que a primeira pessoa que avistei assim que entrei no hotel fosse o outro Mousavi. No entanto, precisei de algum tempo para compreender que se tratava dele. Despertou-me a atenção porque era o homem mais elegante que se encontrava no vestíbulo do hotel. Estava maravilhosamente bem vestido, envergando um fato azul-marinho com um bom corte e que obviamente custara bom dinheiro, o que complementava com uma camisa branca de cós em vez de colarinho, primorosamente engomada, para além do cabelo com um penteado diferente. Enquanto olhava para ele como que mesmerizada, senti o coração cair-me aos pés ao constatar que Mousavi conversava descontraidamente com alguns dignitários estrangeiros de visita ao Irão. Foi então que deu pela minha presença, indicando-me com um ligeiro abanar de cabeça e um pestanejar daqueles olhos cintilantes "Você não me conhece".

Antes de ter tido oportunidade para me recompor, a versão de Al Pacino encontrava-se ao meu lado, sendo por de mais patente que se sentia satisfeito por eu não ter faltado ao encontro. O átrio do Hilton tem duas áreas onde as pessoas se podem sentar: "Reservada Apenas a Homens" e outra para a "Família". O chefe de mesa - o ex-chefe de mesa do antigo Bar Hunter do hotel nos tempos do antigo xá, na época em que ainda era permitido servir-se bebidas alcoólicas - chamava a si a missão da sua vida: tornar a minha existência num inferno. Assim que nos sentámos, o homem investiu na nossa direcção reclamando que o meu lenço de cabeça não estava colocado de "forma correcta", pelo que era obrigado a pedir-me que abandonasse o hotel.

O meu relacionamento com o Gorducho - alcunha por que afectuosamente o conhecia - tinha-se azedado logo no início da era pós-xá. Quando cheguei pela primeira vez ao hotel, foi com toda a inocência - é bem verdade! - que me aproximei casualmente das janelas que davam para as traseiras do vestíbulo para olhar para fora. Nesse momento o Gorducho atravessara desabridamente o vasto átrio aos gritos.

"Pare, pare! Homens nus! ". A tentativa que fiz na brincadeira para me colocar de forma a ter um ângulo de visão mais favorável não foi nada apreciada. Aquilo que eu correra o risco de ver limitava-se à piscina do hotel onde em tempos adquiri um bronzeado bastante acentuado divertindo-me nas águas límpidas. No Irão, as mulheres não têm autorização para verem homens nus, à semelhança do que acontece com os homens que estão impedidos de verem mulheres nuas, pelo que os dois sexos não podiam banhar-se em conjunto, actividade que era coisa do passado. O Gorducho e eu encenámos um ritual em que me disse que me fosse embora, ao que lhe respondi que tinha acabado de entrevistar o presidente, ou um ministro qualquer, ou até mesmo um ayatollah, e que se o meu hejab era suficientemente bom para eles, com certeza que era bom para os seus padrões de decoro. Sem dúvida nenhuma que me recusava a ser apelidada de Jezebel por um homem que não me servira mais do que uns quantos gins com água tónica, e se não beijou os pés do meu pai, pouco lhe faltou para receber uma das gorjetas mais do que generosas que ele tinha fama de dar.

De forma surpreendente, para um revolucionário esquerdista, Al Pacino dava a impressão de se sentir como se estivesse em sua casa naquele luxuoso hotel que presentemente era propriedade da Fundação para os Oprimidos. O seu fato também era azul- marinho e estava bem engomado, ainda que uns quantos anos fora de moda, se bem que a sua barba por fazer fosse mais adequada para um episódio da série televisiva Miami Uice - um programa que ele tinha adorado durante os três anos em que trabalhara na embaixada de Londres. À luz de uma análise mais de perto, parecia-se mais com um Dustin Hoffman mal nutrido, com a sua pele descorada agarrada aos ossos como se fosse um pergaminho seco e translúcido. Tive oportunidade de constatar que era peludo porque usava o género de peúgas quase transparentes através de cujo tecido os pêlos dos pés tentavam escapar-se.

Confessou-me ter gostado de viver em Inglaterra, onde passava a maior parte dos seus serões em casa a ver televisão. Todos os movimentos dos diplomatas eram vigiados de perto a fim de se assegurarem de que não se aventuravam a ir dançar nos antros de carne branca que abundavam no Ocidente. Falámos sobre o Cheers, um lugar fantástico caso as bebidas fossem ignoradas, e o Casualty, o que fez com que a nossa conversa se desviasse para a experiência dele na linha da frente.

Quando os médicos não encontravam um parceiro adequado, ou hipocondríacos desmesuradamente activos, na sua maior parte tinham tendência para se manterem bem afastados dos morteiros e das balas do inimigo iraquiano. Mau-grado ter tido metade de uma coxa despedaçada, a réplica de Al Pacino ajudara os que estavam em piores condições do que ele nas trincheiras. Depois de ter sido ferido decorreram três dias até que a assistência médica chegasse; durante esse interim, injectou morfina em todas as veias que lhe restavam.

- Ao princípio deram-nos medicamentos mais do que suficientes, mas não tínhamos médicos a sério e as ambulâncias eram escassas durante os últimos anos de combates. Fosse como fosse, logo de princípio tínhamos poucas armas e munições, pelo que ordenei aos meus homens que se mantivessem em silêncio. De cada vez que lançávamos um míssil em direcção do território iraquiano, eles respondiam-nos com cem - confiou- me ele com um sentido de humor que gritava um sentimento profundo, bem mais profundo do que o do corpo.

Então, começou a perguntar-me se eu poderia, com toda a honestidade, dizer que aquilo com que me deparei no Irão do presidente Rafsanjani era aquilo que tinha motivado centenas de milhar de jovens a morrerem pela liberdade. Ele tinha razão: não existia maneira possível de eu poder conciliar esta versão distorcida do Islão, e esta sociedade rica e corrupta com a visão que inspirara a queda do regime do xá. O que não significava que eu estivesse de acordo com essa visão, fosse de que maneira fosse, mas fora a vontade do povo, tendo-se desvanecido logo que se deixara de pedir às pessoas que dessem as suas vidas pela revolução.

Hassan, nome que me confiou ser o seu, riu-se dizendo que eu era uma tonta cheia de ingenuidade.

- Eles não se limitaram a prometer Alá e um lugar no Paraíso a todos os sacrificados. Também prometeram que entregariam à porta de cada cidadão a quota-parte que lhes caberia dos lucros da indústria petrolífera. Garantiram que os pedintes que vagueiam pelo Largo Shoush seriam alojados nos palácios do xá, prometendo ainda que funcionário algum jamais

 

Palavra inglesa que significa "casualidade e baixas numa guerra. (N. da T.)

 

aceitaria um suborno, assegurando o mesmo em relação a todas as forças policiais. Mas, acima de tudo, prometeram-nos que ficaríamos tão ricos como as pessoas como você foram em tempos idos. Foi por essa razão que as mães e os pais não hesitaram em enviar os seus filhos para a carnificina, quer para a do xá, quer para a de Saddam do Iraque. Aqueles que tinham ideais verdadeiros foram perseguidos tenazmente e chacinados, ou forçados a viverem em exílio quando deixaram de ser necessários - concluiu ele numa voz acalorada.

Hassan estava a ser surpreendentemente honesto para alguém que conversava num local público com uma pessoa que não conhecia minimamente. As sinetas de alarme voltaram a soar na minha cabeça. Esta desconfiança que nutrimos em relação a toda a gente é o aspecto mais lamentável da cultura iraniana, para além de ser uma das razões principais de como povo sermos tão facilmente alienáveis, conquistados e manipulados.

Falou-me ainda das pessoas que viviam na espécie de pobreza que os molás tinham prometido erradicar, em que vinte pessoas eram forçadas a viver num só quarto sem electricidade e sem água corrente. Pressentindo a minha relutância em acreditar que a situação fosse assim tão grave até em Teerão, ofereceu-se para me levar às proximidades do caminho-de-ferro onde poderia ver com os meus próprios olhos as condições em que as pessoas viviam. Concordei em encontrar-me de novo com ele depois de regressar (isto é, se regressasse) da minha estadia em Inglaterra.

Por fim, a minha mãe e eu seguimos a bordo de um avião com destino a Londres; todavia, embora de volta ao Reino Unido, não senti a grande sensação de alívio que esperara sentir. Ao invés, senti um certo mal-estar por ter a cabeça descoberta em público. Os dias sombrios mergulharam-me numa profunda depressão, ao mesmo tempo que a reserva proverbial dos britânicos fez-me sentir saudades das ruas de Teerão onde cada estranho com quem nos cruzamos nos dá no mínimo a saudação e, com mais frequência do que o contrário, nos começa a contar toda a história da sua vida. Parte de mim não desejava voltar a ver outro molá, enquanto a outra parte morria por saber tudo o que estaria a passar-se durante a minha ausência. Quem estaria a apunhalar quem pelas costas? Que facção se encontraria na mó de cima? Que grandes furos jornalísticos teriam os meus rivais enquanto eu me mantinha afastada? Em última análise, a curiosidade profissional sobrepôs-se às frustrações de natureza pessoal, e decorridas umas meras seis semanas resolvi regressar a "casa".

Entretanto, tinha perdido a primeira volta das eleições parlamentares daquele ano que afastaram Mohtashemi e a maior parte da sua facção política do Majlis; apesar disso, ainda cheguei a tempo de presenciar alguns tumultos deveras empolgantes.

 

                     Fogueiras de futilidades

O cheiro do arroz a cozinhar pairava no pequeno apartamento enquanto Farah, qual es crava, preparava toda uma variedade de artigos alimentares que cozinhava na sua cozinha de cores coordenadas. Infelizmente eram cores escuras, mormente verde-escuro e tons de mogno. Todo o apartamento de dois quartos não tinha luminosidade natural; havia alguns candeeiros que propiciavam uma luz mortiça que nos permitia andar pela casa. Não obstante a luminosidade esplendorosa que se via fora do apartamento, encontrava-me num mundo sombrio preenchido de melancolia, onde pessoas entorpecidas vinham e iam, esperando que as suas vidas recomeçassem.

Sou o género de pessoa que liga as luzes até mesmo durante o dia. Sei que é um acto muito irresponsável tendo em linha de conta o aquecimento global do planeta e tudo o mais, mas cheguei à conclusão de que a luminosidade é o melhor antídoto para combater a depressão. E contudo, nas casas dos meus familiares reinava sempre uma semiobscuridade; impediam a entrada dos raios de sol que poderiam ter contribuído para aliviar a tristeza colectiva que os assolava. Pelo menos não fui forçada a voltar à Casa do Desânimo - isso teria sido a última gota de água. Em vez disso, observava a minha prima "gémea", Farah, numa grande azáfama com aquelas tarefas domésticas, enquanto os seus dois garotinhos adoráveis, de seis e oito anos, me mostravam a sua colecção de bichos-da-seda.

Farah nasceu três horas antes de mim, na mesma enfermaria da mesma maternidade, e desde então temos sido mais irmãs do que primas. Isto é, até eu ter cometido o erro de aceitar o seu convite de me alojar em sua casa na companhia do loquaz marido, um inútil, e dos seus três filhos.

Eu partilhava um quarto com os rapazes enquanto a petiza de quatro anos era transferida para o quarto dos pais. Não era uma situação perfeita, embora não fosse insustentável. Pela primeira vez em quase um ano, dispunha de todo um roupeiro apenas para meu uso e sentia que tinha espaço. No entanto, existia um pequeno senão: Farah tinha o vício de fazer compras, e em conjunto éramos as duas o sonho de qualquer lojista.

Farah herdara uma pequena mas bastante conveniente fortuna por morte de sua mãe, tendo-a entregue ao marido, o único homem que conhecera em toda a sua vida e de quem ficou noiva aos catorze anos, tendo-se casado dois anos depois. Ele não era precisamente aquilo a que chamaríamos "um dos nossos", e todavia fora educado de forma a ser a melhor coisa depois de um médico ou um arquitecto, já para não mencionar que ela estava apaixonada por ele. O meu tio ficou suficientemente feliz e sentiu-se aliviado da tarefa que era ter de casar uma filha com alguém que não fosse do agrado desta. O marido de Farah merecia a alcunha que lhe dei de Inútil pois fracassava em tudo o que tentasse fazer. Grande parte da fortuna de Farah foi desbaratada por causa desses fracassos.

O Inútil era de etnia turca, um povo que tem vindo a ser o alvo das piadas dos iranianos devido à sua alegada estupidez, algo muito semelhante às anedotas que se conta sobre os irlandeses. Mas no que dizia respeito ao Inútil, por vezes ficava-se com a impressão de que não era piada nenhuma. Numa noite em que jantámos em casa de uns amigos, um dos outros convidados descreveu ao Inútil um esquema para a construção de um complexo comercial de grandes proporções, prometendo dar ao jovem a empreitada de construção - isto é, depois de ele ter conseguido do governo a necessária autorização para a concretização do projecto. Num estado de êxtase sem paralelo, o Inútil tratou de alugar de imediato o equipamento e a força de trabalho necessários, mantendo-os de reserva enquanto os seus "sócios" lhe prometiam insistentemente que os trabalhos se iniciariam a qualquer momento. Depois de quase seis meses, continuava a pagar aos homens, assim como pelo aluguer da maquinaria de que não necessitava. A única propriedade de Farah que restava, um pequeno apartamento, estava hipotecada e o Inútil encontrava-se à beira da ruína. Como consequência, o casal fugiu para a Turquia onde os pais dele pouparam e fizeram tudo para conseguirem arranjar dinheiro com que o filho pudesse pagar as suas dívidas e assim salvar o apartamento de Farah. Cinco anos mais tarde as dívidas foram saldadas e o casal regressou a casa com tanto como quando tinham abandonado o país, a menos que se levasse em linha de conside ração o pequeno anjo, a criatura mais doce que alguma vez pisara o solo iraniano, a filha de ambos.

Haviam regressado aproximadamente três meses antes, para grande desagrado dele e alívio dela. No que dizia respeito ao Inútil, a Turquia era o berço da civilização, enquanto o Irão era o último lugar à face da Terra onde ele desejava viver. Farah adorava a sua terra natal, com todos os mexericos e faltas de lealdade a que nos podemos entregar de alma e coração somente no seio do nosso povo, com todas as pessoas cujos segredos conhecemos por dentro e por fora. Dentro em pouco viria a descobrir que a minha prima não se coibia de inventar uma ou duas petas, o que aparentemente fazia devido à necessidade de criar inimigos em pessoas que haviam sido suas amigas.

Nessa noite ela preparava-se para receber em sua casa um casal que tinham conhecido quando viveram em Ancara, Jahansah e a sua mulher Firouzeh, um casal arrivista da classe média que acreditava que as ruas de Los Angeles estavam pavimentadas a ouro. Há sete anos que tentavam fugir para os Estados Unidos, e a despeito de terem perdido todos os seus bens numa série de tentativas fracassadas, não haviam desistido da esperança de conseguirem os seus intentos. Tendo aceitado o facto de que, na situação de família, jamais conseguiriam um visto de entrada nesse país, e por isso tinham encenado um divórcio com a ajuda de um molá desonesto, após o que Jahnshah tencionava tentar obter sozinho uma licença de trabalho (o Cartão Verde).

O resto do apartamento fora decorado com os mesmos tons de verde e mogno que predominavam na cozinha. Uma das varandas tinha sido convertida numa pequena divisão de leitura, onde actualmente era o meu escritório. Como de costume, o ar condicionado não funcionava nessa noite porque não havia gasóleo para o gerador - o Irão sofria de uma grande escassez de combustíveis, o que era inacreditável. Sóestávamos em Abril mas já estava imenso calor, e no entanto não nos atrevíamos a abrir as janelas por causa do cheiro nauseabundo que emanava dos esgotos. A maior parte das ruas no Irão são ladeadas por dois jubs, valas através das quais a água é escoada. Pois bem, outrora de facto era água o que corria por essas valas, mas à medida que a capital se foi expandindo e o seu desenvolvimento passou a ser da responsabilidade das forças da anarquia, a multitude de novos edificios que eram construídos sobrecarregava o sistema de esgotos e as canalizações sanitárias e muitos destes encontravam-se directamente ligadas a estes jubs a céu aberto.

- O presidente da câmara municipal é um grande estupor - desabafaria o Inútil furioso enquanto transpirava profusamente, sendo forçado a mudar de roupa uma vez mais antes da chegada dos seus convidados.

Por que razão é que o presidente da câmara era um estupor? Aqui estava uma pergunta que poderia ser colocada dado que era bastante pertinente.

A situação era muitíssimo simples: ele recusava-se a passar a licença de habitação referente ao prédio onde Farah e o Inútil residiam. Sem este documento de habitabilidade do apartamento, não podiam fazer a escritura da sua casa, e na ausência desta o valor de mercado do andar ficava reduzido a metade. Consequentemente, estavam impossibilitados de o vender mudando-se para outra casa.

E por que motivo desejavam eles mudar de casa?

Para se afastarem do fedor que se elevava dessas valas, como é evidente.

E o que é que levaria o presidente da câmara a não lhes conceder a referida licença de habitação?

- O estupor diz que não nos passa a licença sem que antes instalemos na cave a maquinaria necessária ao tratamento de detritos, deixando de os escoar para os jubs - lamentava-se ele.

- Uma atitude de grande intransigência - concordei, uma vez que me ensinaram que era uma grosseria contradizer ou pôr em questão o que os mais velhos nos diziam.

Entretanto, os convidados chegaram com uma hora de atraso, o que não é nada invulgar no Irão. Enquanto nos sentávamos para saborear uma vodca com Coca-Cola, o que era ilegal, Jahnshah concluiu que o presidente da câmara era efectivamente um sacana.

- Nem sequer nos deixa cortar as nossas próprias árvores. Sobrecarrega-nos com taxas de impostos absolutamente ridículas, e depois gasta-os ao desbarato construindo parques e chafarizes na zona sul. Não consigo dormir em paz à noite por causa do barulho dos camiões do lixo e dos homens que fazem a recolha dos contentores, pois agora só lhes é permitido trabalhar na cidade depois das onze da noite.

- Mas a verdade é que actualmente a cidade está muito mais bonita e limpa - aventurei-me a argumentar.

- E qual é a vantagem disso? Aquilo de que nós precisamos é de dinheiro e não de beleza! - ripostou Jahnshah. - Em Mahshad é que eles estão a agir com sensatez - acrescentou, dirigindo-se ao Inútil. - Têm ocorrido vários tumultos ao longo de toda a semana, o povo incendiou todos os edifícios municipais da localidade como forma de protesto contra o presidente da câmara.

- Bem. a realidade é que se tem passado algo mais do que isso - comecei a dizer a ninguém em particular.

Era óbvio que não me seria dada a oportunidade de participar naquele "diálogo de homens". Fui chamada à cozinha por uma Farah cheia de nervosismo. Era completamente irrelevante que eu fosse uma das poucas pessoas em condições de relatar ao mundo os acontecimentos nessa cidade, sendo insignificante que algumas das publicações de maior prestígio a nível mundial me tivessem pedido que escrevesse artigos sobre esses mesmos distúrbios. Aqueles homens eram os detentores da verdade, e eu tinha de pôr a mesa enquanto era obrigada a ouvir as suas arengas pouco informadas.

Mahshad fora entregue aos Basij (as forças das milícias voluntárias) depois de quatro dias de desacatos públicos. Apesar de uma censura virtual imposta à imprensa, Mohammed contou-me que pelo menos nove membros da Guarda Islâmica tinham sido aniquilados pelos manifestantes. As massas marcharam através da terceira cidade mais populosa do país, incendiando todos os edificios governamentais por que passavam. Mostrou-me relatórios governamentais que atestavam a prisão de mais de trezentas pessoas, ao que se acrescia a morte de dois rapazes de treze anos que haviam sido alvejados. Todavia, Mahshad era apenas o mais grave de uma série de confrontos entre a população e as forças governamentais; tinham-se verificado demonstrações de descontentamento em pelo menos quatro cidades das mais importantes. Mohammed tivera a oportunidade de testemunhar o insurgimento na sua cidade natal, Shiraz; enquanto por toda a nação se relatavam surtos de violência nas cidades de Arak e Tabriz situadas na região norte.

A situação em Mahshad fora despoletada num sábado calmo, quando um grupo de proprietários de terras confrontou as autoridades do município e a polícia na altura em que as forças policiais tentavam demolir um determinado número de habitações "construídas ilegalmente". Foram disparados alguns tiros, o que levou a multidão a reunir-se para observar o desacato que teve lugar num extenso troço de uma rua deserta que terminava abruptamente num descampado na linha periférica da cidade. Quando os disparos terminaram havia dois garotos mortos. Os corpos dos rapazes foram exibidos por toda a cidade, o que serviu para inflamar as massas ainda mais; pouco depois, todas as frustrações do quotidiano dos residentes desencadeou uma violência feroz.

O regime assacou as culpas destes tumultos aos Tondro (os da linha dura), os quais haviam sofrido uma derrota maciça nas eleições gerais.

- Seja como for, os tumultos tiveram início sob o pretexto dos protestos de natureza económica, mas estamos em crer que é tudo obra daqueles que não conseguiram manter assento no Majlis, de acordo com o que disse um membro da administração.

- Foi você? - perguntei a Hassan durante um piquenique que fizemos num bosque remoto.

- Eram as nossas armas - admitiu ele. - Mas o povo é que foi o causador das mortes. Não temos necessidade de inflamar as pessoas. elas já se sentem encolerizadas e entristecidas de sobejo sem qualquer ajuda da nossa parte.

Afirmava que Arak, onde a indignação dera lugar à violência, constituía um tiro de aviso disparado pelos candidatos da linha dura que se opunham às reformas de Raffers, os quais viram a sua candidatura recusada pelo Conselho dos Guardiões.

- Em Shiraz tudo começou com os Janbazans (os Sacrificadores da Vida) que se manifestaram contra os subsídios e beneficios insuficientes. Mas pouco tempo depois juntaram-se-lhes outros grupos que começaram a pegar fogo aos postos de abastecimento de combustível - contou-me Mohammed no quarto das traseiras de uma suite no Hotel Laleh, onde se instalaram os membros do Ministério dos Negócios Estrangeiros aquando das cerimónias de aniversário da morte de Khomeini.

Uma das manifestações em Arak, a oriente de Qom, levou ao primeiro derramamento de sangue, o que deu origem à imposição da lei marcial. Não obstante, o homem da rua só tomou conhecimento do sucedido através dos rumores que circulavam pela cidade; os meios oficiais da comunicação social não disseram uma única palavra.

Em seguida ocorreram os desacatos em Mahshad, onde os amotinados "anti-revolucionários" incendiaram o edifício da municipalidade, sorte que a biblioteca principal também sofreu, a exemplo do que aconteceu a várias esquadras, antes de se entregarem ferozmente a uma campanha de pilhagem e de destruição pelo fogo. O ministro do interior, o ayatollah Nouri, um homem de pouco carácter, não perdeu tempo em atribuir culpas às liberdades "concedidas pela revolução ao povo" e que estiveram na origem das infracções à lei e ordem pública.

- A partir de agora todas as recentes liberdades serão revogadas. Vamos regressar à imposição das regras mais estritas nas ruas - previu Mohammed, acrescentando que Rafsanjani e os seus apoiantes culpavam os radicais. - Não o dirão abertamente, mas esta percepção é por de mais evidente. O factor económico não passa de um mero pretexto. Não existe a mínima dúvida que estes desacatos são obra dos radicais.

A Primavera de Teerão, que Rafsanjani prometera ao povo aquando da destituição dos seguidores da linha dura que tinham ocupado cargos governamentais, estava a transformar-se num Verão de Descontentamento.

Nessa Primavera eu tinha começado a encontrar-me frequentemente com Hassan, o que me permitiu tomar conhecimento de muitos dos problemas que assolavam os pobres e aqueles que não detinham poder nenhum. Ele costumava passar por casa de Farah para falar comigo quase todos os dias, pelo que esta andava deveras entusiasmada com a possibilidade de nos virmos a casar. Eu podia cansar- me a garantir-lhe que o nosso relacionamento era pura e exclusivamente de natureza profissional, reiterando-lhe que éramos só amigos, que nada a demoveria da sua ideia; como ele era homem, consequentemente a relação só poderia ser sexual. Ele dava-me lições diárias defarsi, agindo como o meu acompanhante e orientador aonde quer que eu fosse. Hassan procedia desta forma há mais ou menos um mês, quando Farah nos informou que o meu tio queria falar com nós os dois. Senti-me francamente surpreendida uma vez que era a própria Farah quem insistia em convidar Hassan para sua casa; era-me impossível compreender de que maneira é que isto poderia afectar o meu tio. Contudo, no Irão não é costume desobedecer aos pedidos dos mais velhos, pelo que nos apresentámos obedientemente na residência dos Pessian.

Sem fazerem a menor alusão à minha pessoa, os dois homens começaram a debater o meu futuro e as intenções de Hassan. Fiquei atónita ao aperceber-me de que aquele homem inteligente e atractivo tinha esperanças de se casar comigo; todos tinham mais do que a sua quota-parte de maluquice.

Não podem estar a falar a sério, pensei para comigo enquanto os dois homens continuavam o processo de me negociar. Hassan admitiu que não tinha meios suficientes para sustentar uma mulher, para além de afirmar que desejava estar cem por cento seguro de que eu podia viver no Irão. Dada Jan instruiu-nos para que deixássemos de comprometer Farah ao encontrarmo-nos em sua casa. Isto pôs-me furiosa dado que era ela própria e o marido que insistentemente convidavam Hassan para sua casa. Tínhamos passado os últimos dois dias a percorrer toda a cidade de Teerão tentando encontrar peças sobressalentes para o ferro de engomar de Farah - depois de eu o ter estragado numa tentativa fútil de ajudar nas tarefas domésticas.

Mas quem se interessa com o que esta gente possa pensar? Isto é absolutamente ridiculo! Seja comofor, a nossa familia não costumaproceder nestes moldes; não vemos o sexo em tudo. Como é que o meu tio se atreve a ter uma atitude destas, perguntei a mim mesma, sentindo-me intimamente furiosa. Fiquei com a impressão de terem abusado de mim. Tinham-me despido de toda a minha dignidade, acusando-me de actos que eu não cometera e em que nem sequer havia pensado. Quem é que no seu juízo perfeito poderia encontrar tamanha obscenidade num comportamento perfeitamente razoável? Tudo aquilo era tão patético e aberrante. Eu era uma mulher adulta que já há vários anos tomava as suas próprias decisões, mau-grado a educação restrita que me haviam dado. E contudo, aqueles dois homens chamavam a si a responsabilidade de saberem melhor do que eu aquilo que eu devia fazer com a minha vida, sem terem sequer a mínima percepção de que o seu comportamento era extremamente invulgar.

- Desde quando é que passámos a ser algo mais do que simples amigos e colegas? perguntei quando já nos encontrávamos em segurança dentro da carcaça enferrujada sobre rodas com pretensões a automóvel.

- Não te preocupes. Aqui é muito normal considerar que um homem e uma mulher vistos juntos devem casar-se. Ninguém é capaz de entender uma relação de amizade entre dois membros de sexos opostos. Só temos de alinhar no jogo deles, fingindo que temos a intenção de nos casar, caso contrário a tua reputação ficará prejudicada - explicou-me Hassan.

- Nunca ouvi uma coisa tão inverosímil! - repliquei indignada, deixando que o assunto ficasse por ali.

Firmemente determinada a não permitir que de futuro ninguém metesse o nariz nos meus assuntos, resolvi passar a encontrar-me com Hassan fora da presença dos de vistas curtas. Como resultado dessa decisão, os nossos encontros começaram a ter lugar às esquinas de ruas, bosques suburbanos ou estradas desertas, sempre pela calada da noite. Foi durante um destes encontros que Hassan declarou o amor que sentia por mim, dando-me a conhecer o seu desejo de viver comigo o resto da sua vida. Estávamos sentados no assento traseiro do seu calhambeque estacionado numa rua estreita no distrito Darous de Teerão; os vidros das janelas do carro gotejavam com a condensação enquanto ele me apresentava os seus protestos de amor e respeito.

- Achas que algum dia virás a querer-me bem? - perguntou-me.

As minhas pequenas vozes disseram-me: Nunca! Mas quando abri a boca estava a dar-lhe esperanças, dizendo-lhe que me sentia confusa, que não tinha sequer a certeza de desejar viver no Irão para sempre.

- Isso não interessa para o caso. Estou disposto a viver contigo onde quer que seja, até mesmo em Inglaterra, se assim o desejares - disse-me ele.

Mais um! outra pobre alma encurralada disposta a todos os esforços para abandonar a República de Deus! Era tudo tão simples, este amor à primeira vista; na verdade, tratava-se de um olhar deitado à liberdade.

Na ocasião seguinte em que aludiu ao assunto do amor, estávamos sentados em plena Selva da Natureza, um extenso arvoredo bem tratado junto à estrada para Karaj, onde partilhávamos pizza e melancia que Hassan refrescara sob a água de um chafariz instalado entre as árvores e as valas onde se costumava fazer churrascos. A nódoa de melancia que manchou o meu bloco de apontamentos permanecerá muito depois de este jovem radical e impetuoso ter acalmado.

Era um facto que Hassan se preocupava com o bem-estar das pessoas, fossem estas ricas ou pobres, muçulmanas ou ateias. Comunista realista, Hassan pregava o evangelho da responsabilidade. Defendia que aqueles que possuíam mais do que o suficiente para as necessidades essenciais do dia-a-dia tinham a obrigação de garantir o bem-estar dos seus semelhantes.

- Não culpo ninguém por ser aquilo que é. O teu pai era rico, pelo que aceitaste sem qualquer objecção a vida que ele te proporcionou, o que é muito natural. Que bem poderá advir por se andar por aí a dizer aos abastados que devem desistir de tudo o que têm em beneficio dos carenciados? O resultado é aquilo que presentemente temos no Irão, os ricos não são os mesmos de outros tempos, mas continua a haver pessoas abastadas.

- Tu ficaste um pouco mais pobre, sem dúvida, mas o marido da minha irmã continua a ser pobre. Era pobre ontem e continuará a ser pobre amanhã. Há-de continuar a ser pobre até que os ricos reconheçam que têm o dever de servir os outros.

- Preferiria sentar-me à mesa com uma pessoa boa, independentemente do quanto pudesse ter, do que com um molá que enche os bolsos prometendo ao povo ignorante um caminho rápido que os levará ao Paraíso - desabafou ele. - Não tencionas escrever tudo o que te disse para o teu jornal, pois não? - perguntou-me.

- E por que não? Pensei que me tinhas dado o teu acordo para que eu escrevesse o que me disseste - repliquei.

- Digo-te tudo isto para que possas compreender a situação, para que haja alguém que tenha conhecimento, para que um dia os demais venham a saber e possam reflectir. Ao longo da minha vida, já escapei à morte numa ocasião e não me encontro muito preparado para fazer novamente face a uma situação semelhante. Podes contar essa história mais tarde, quando houver alguma distância entre nós os dois, numa altura em que não consigam estabelecer uma ligação entre mim e o que relatares - acrescentou num tom de voz que era quase uma súplica. Mas mudou de ideias logo depois de me ter dito aquelas palavras.

- Deves contar tudo, agora, dizendo que fui eu que te disse, não me importo com as consequências. Tem de haver alguém que nos devolva os nossos ideais, que nos permita regressar ao espírito que nos impeliu a sair às ruas e enfrentar as balas das forças do xá.

Sentado à minha frente, Hassan era um esqueleto com uns olhos de expressão ardente. A sua camisa de um rosa-pastel estava enxovalhada de muitos dias de uso. Eu deveria estar a absorver toda a enormidade das decepções que aquele homem sentira; todavia, dei comigo incapaz de deixar de pensar no sarro negro que se acumulara na parte de trás do colarinho dessa camisa, uma sujidade que se revelava um pouco sempre que virava a cabeça no ardor do seu discurso.

- Pensei que me tinhas dito que o povo agia motivado por dinheiro - recordei-lhe.

- Isso não se aplica a todos. somente aos que conseguiram sobreviver.

- Quando é que eles estiveram prestes a aniquilar-te? - perguntei.

- Ela era maravilhosa - replicou com uma expressão sonhadora nos olhos e que deixava adivinhar que se encontrava a anos-luz de distância, num outro tempo e num outro lugar. - Era um pouco parecida contigo. Nunca amei tanto outra mulher como a ela - declarou Hassan.

Oh, não, está quase afazer outra investida amorosa! Eu devia sentir-me envergonhada por aquele pensamento pouco caridoso, pois aquele rapaz estava a reviver os seus sofrimentos.

- O grupo era composto por oito de nós - acrescentou numa voz comovida.

- Que grupo? - perguntei com a boca cheia depizza.

- Os mujahiddin, éramos mujahiddin. Éramos oito. duas mulheres e seis homens. Tínhamos fugido para o Norte para nos escondermos na selva - continuou Hassan, como se houvesse regressado à selva a que se referia. - Chamava-se Golestan. A Selva de Golestan (a terra das flores). Sentíamo-nos verdadeiramente felizes nesse lugar, só nós os oito. Mas depois começou a ser perigoso, e um amigo alojou-nos numa casa da cidade. Deviam estar a comer quando os pasdars chegaram - acrescentou Hassan.

Quanto a mim, mantinha-me em silêncio; não precisava de lhe dar o mínimo encorajamento.

- O nosso comandante incumbiu-me de uma missão em Teerão. Tínhamos feito um ataque coroado de êxito, razão por que fomos enviados para a segurança da selva. Mas surgiu um trabalho que exigia a minha presença e me obrigou a regressar à cidade.

- Na altura estavam a almoçar sentados em redor da sofreh estendida no soalho. O meu melhor amigo teve morte imediata. Empunhava uma arma e mataram-no sem mais delongas. Quanto a ela, levaram-na. Durante seis semanas não tivemos notícia nenhuma, e então informaram os pais dela para irem levantar o corpo da filha - continuou ele com lágrimas que lhe caíam pelas faces abaixo.

- Dizem que o mais certo foi eu ter participado deles. Alegam que é por esse motivo que actualmente estou envolvido na política, ao invés de me encontrar numa sepultura ao lado dela - continuou Hassan, que chorava abertamente. - Não podíamos combatê-los do exterior, era preferível infiltrarmo-nos e tentar mantê- los no caminho certo.

- E qual é o caminho certo? - perguntei. Ele limitou-se a olhar-me com uma expressão apalermada.

Os mujahiddin-e-Khalg-e-Irão, os Combatentes do Povo do Irão, provaram o antigo axioma que demonstra que a primeira coisa que qualquer revolução faz é entrar em confronto com os seus próprios filhos. Pereceram às centenas de milhar sob o reino de terror do xá; em seguida, morreram aos milhões às mãos das pessoas que haviam ajudado a tomarem o lugar deste. Os muj eram marxistas de inspiração islâmica, de acordo com a classificação que a imprensa ocidental lhes atribuiu nas reportagens televisivas da revolução. De início bateram-se por um Estado islâmico sem os ayatollahs, mas gradualmente foram forçados a aceitar que necessitavam do ímpeto que uma figura pública como Khomeini poderia dar ao seu processo de rebelião. Depois de o regime do xá ter sido derrubado, os muj passaram a representar uma ameaça verdadeira à autoridade dos molás. Eram tão islâmicos em todos os aspectos quanto os clérigos, e contudo acreditavam numa nação controlada por uma força jovem composta por voluntários, com poderes arbitrários de prisão e execução.

O Partido de Deus, o Hezbollah, vencera a guerra civil resultante da revolução, e os cemitérios encheram-se com mais cadáveres de jovens. À medida que os muj iam perdendo o apoio do povo, principalmente por terem como alvo o cidadão comum, o seu canto no Paraíso de Zahra foi literalmente transformado numa retrete pública. A rebelião fomentada pelos muj foi implacavelmente esmagada; a vítima mais jovem desta purga foi uma garota de dez anos, Zahara Maqsadi. Os encarcerados eram retirados das suas celas para serem alvejados depois do escurecer. A Prisão de Evin transformou-se nos Campos de Matança dos molás.

- Alguma vez mataste alguém? - perguntei de caneta empunhada, preparada para escrever o artigo que me daria o Prémio Pulitzer.

- Claro que sim.

- Sentes remorsos por teres agido dessa forma?

- Por vezes - admitiu Hassan.

- Quando?

- Sempre que vejo o destino a que condenei o meu povo.

- Achas que a situação poderá vir a alterar-se?

- Estamos a envidar todos os esforços nesse sentido.

- Como? - continuei.

- Só tens de observar e ouvir o que se passa à tua volta para descobrires isso. Estamos no meio de qualquer coisa que em breve abalará esta nação. As pessoas já não conseguem aguentar a pressão que os molás lhes impõem.

- Que regime colocarias no lugar deles?

- Liberdade.

- Estás a referir-te à liberdade dos mujahiddin?

- Não, são corruptos. Nunca deveriam ter ido combater contra Saddam no Iraque. Seremos incapazes de sobreviver, a menos que concedamos ao povo o direito de opção quanto à maneira como desejam viver. Estou em crer que o povo optará pelo islamismo. Viverão existências boas e puras se obedecerem aos seus princípios morais sem se deixarem contaminar. Caso contrário, inevitavelmente chafurdarão no deboche e obscenidade, a despeito de tudo o que o regime possa fazer.

- O que é que desejas para o teu próprio futuro?

- Não quero pôr as minhas acções em questão enquanto estiver deitado à espera que a morte me venha buscar. Acredito que Alá concede a todos três dias durante os quais têm a percepção de estarem prestes a morrer, período esse que nos dá a oportunidade de analisarmos a nossa vida. Quero estar em posição de poder examinar uma vida em que servi a sociedade e ajudei os meus semelhantes. Não desejo pensar que toda a minha vida se resumiu a adquirir riqueza pessoal - acrescentou Hassan como se fizesse um discurso que tivera ocasião de proferir várias vezes no passado.

- Sim, sim, sim - concordei, sentindo que ele tinha articulado com exactidão os sentimentos que eu guardava no meu coração. Era um homem encantador, uma pessoa verdadeiramente honrada num mundo sem escrúpulos.

Há três dias que chovia incessantemente; encharquei-me até aos ossos a caminho do local onde combinámos encontrar-nos. Não queria arriscar-me a que alguém me visse a encontrar- me com Hassan. Uma vez mais, os vidros das janelas do automóvel estavam todos embaciados devido à condensação e Hassan transpirava abundantemente. Comecei por lhe dizer que me sentia muito lisonjeada; no entanto, antes de ter a oportunidade de chegar ao "mas", ele lançou-se sobre mim e começou a sufocar-me com o beijo mais desajeitado que alguma vez me haviam dado. Com rapidez, tentei afastá-lo de mim.

Encontrávamo-nos neste preparo quando as duas portas da frente foram abertas, revelando dois guardas islâmicos que nos olhavam com fixidez.

- O que é que vocês os dois estão a fazer aqui?

- Esta é a minha mulher. Viemos até aqui para tentarmos resolver uma discussão que tivemos - explicou Hassan de imediato, veloz que nem um relâmpago.

- Às dez e meia da noite? - perguntou o segundo guarda mostrando-se céptico.

- Vivemos em casa dos meus pais. Não dispomos de um lugar tranquilo onde possamos conversar, além de que eles estão sempre a intrometer-se nos nossos assuntos; portanto, precisámos de encontrar um lugar sossegado onde pudéssemos resolver as nossas diferenças

- continuou Hassan a forjar aquela história com a maior das facilidades.

Aqueles jovens protectores da fé já tinham ouvido tudo aquilo noutras ocasiões semelhantes. Sem me darem tempo para que me pudesse recuperar do terror extremo que se assenhoreara de mim, os dois abriram as portas de trás do carro e deram-nos instruções para que nos dirigíssemos ao Komiteh mais próximo. Aí chegados, o guarda mais jovem afirmou-nos que teríamos de provar que éramos de facto casados, caso contrário seríamos chicoteados.

- São apenas setenta e seis chicotadas desde que o presidente Rafsanjani subiu ao poder - acrescentou o mais jovem.

- Somos casados e tanto ela como eu somos jornalistas importantes - retorquiu Hassan. - Prender-nos não servirá os interesses de ninguém. - Tirou uma acreditação de imprensa de uma das suas algibeiras e mostrou-a aos dois guardas.

- Não diga mais nada - atalhou o guarda mais velho. Os três homens saíram para a chuva torrencial, dando início a uma discussão muito acalorada. Ao cabo de dez minutos o guarda mais jovem regressou ao interior e perguntou-me se eu sabia o nome do pai de Hassan. Tartamudeei qualquer coisa que se traduziu em tê-lo tratado sempre por "pai". O rapaz riu-se.

- O mais certo é ele ter mulher. Por que é que anda a perder o seu tempo com homens da laia dele? Ele prometeu-lhe casar consigo? Pois bem, não acredite no que ele lhe diz, se por acaso lhe fez essa promessa. Não estou a tentar arranjar-lhe problemas, mas acontece que você é como minha irmã, e por isso estou a aconselhá-la; não deve voltar a encontrar-se com este homem - advertiu- me ele veementemente. - Quando ele voltar para dentro, diga-lhe que lhe fiz perguntas sobre o seu trabalho e a sua casa. Por favor, seja muito cuidadosa.

Quando Hassan, todo ensopado, voltou ao interior do posto, quis saber o que é que o rapaz me tinha dito. Limitei-me a contar-lhe a mentira que o outro me aconselhara, após o que ele me perguntou quanto dinheiro tinha comigo.

- Eles querem dinheiro para nos deixarem em paz - explicou. Eu tinha mil tomans (cerca de um terço do salário médio mensal), de que Hassan se apoderou para entregar aos guardas. Presumo que lhes tenha dado esse dinheiro. Em seguida, bastante aliviados, dirigimo-nos para casa.

Na manhã seguinte Farah decidiu que havia chegado a altura de entrarmos na segunda fase do jogo do casamento, em que se averiguava o passado do noivo em perspectiva. Finalmente, acabei por lhe confiar que continuava a encontrar-me com ele, narrando-lhe também o episódio do nosso encontro com os guardas islâmicos. Foi nessa altura que Hassan me disse onde é que vivia e o nome dos progenitores, não fosse dar-se o caso de sermos abordados de novo pelos zeladores dos bons costumes. Sob muitos aspectos, Hassan era bastante matreiro, conhecedor das maneiras como se aprende quando a vida tem de ser uma mentira, sempre que temos de ocultar o que nos vai no íntimo com receio do carrasco. Ele conseguiu imprimir um cunho de veracidade às suas palavras quando me pediu que nunca lhe telefonasse para casa por causa da mãe que era ciumenta e desconfiada. Acreditei em todas as histórias sobre a forma como ela manipulava o filho para que este vivesse apenas para ela, tendo conseguido impedi-lo de permanecer em Inglaterra; acrescentou ainda que a mãe ameaçava matar-se à mínima provocação por parte do filho.

- Ela ainda há-de obrigar-me a casar com uma prima qualquer, com receio de que eu me possa envolver com uma mulher como tu, que poderia levar-me para o estrangeiro - confiou-me Hassan.

Afirmava que quando foi para Londres só informou a mãe quando chegou ao aeroporto, altura em que telefonou deixando uma mensagem à tia, com temor de que as lágrimas dela o forçassem a regressar a casa.

Mas Farah não desistia facilmente e, para variar, o serviço de informações telefónicas proporcionou-nos um número de telefone sem a mínima demora. Antes que eu a pudesse impedir, Farah agarrou-se ao telefone fazendo-se passar por alguém de um dos jornais para que Hassan trabalhava. Optei por me esconder no meu quarto, enquanto ela fingia que necessitavam urgentemente de falar com ele. Falou com o irmão, que lhe disse que não fazia a mais pequena ideia do seu paradeiro - eu sabia de antemão que ele assistiria a um seminário de economia onde ficaria todo o dia.

Em seguida, de acordo com o que Farah me disse, o irmão acrescentou:

- Espere um pouco que vou perguntar à mulher se sabe onde é que ele está. A minha prima bisbilhoteira entrou de rompante no meu quarto, aos gritos.

- O estupor é casado! É casado! - repetiu, girando sobre os calcanhares e, antes que alguém tivesse oportunidade de dizer "Longa vida a Khomeini", agarrou-se de novo ao telefone e contou todo o episódio ao pai, e depois à melhor amiga e a uma vizinha. Ao fim da tarde, a minha tia em Shiraz já se encontrava a par do assunto, e no dia seguinte os estranhos já teciam comentários sobre o incidente em todos os autocarros e táxis da cidade.

Como se por obra da Providência, recebi um telefonema; foi com toda a satisfação que concordei em ir a Mahshad, onde confirmaria a veracidade dos relatos que davam conta dos tumultos aí ocorridos e tentaria descobrir quem se encontrava por detrás desses motins.

À A TENÇÃO DO SENHOR S. KUSHA, SECçÃO DE JORNALISTAS ESTRANGEIROS, MINISTÉRIO DA CULTURA E ORIENTAÇÃO ISLÂMICA.

Caro senhor Kusha,

Na continuidade da nossa conversa telefónica na quinta feira passada, passo a informá-lo dos pormenores que me solicitou.

Em primeiro lugar, tenho a dizer que considero a actuação das forças da ordem, que estiveram envolvidas na minha detenção, repreensivel e contrária aos ideais que regem a República Islâmica. No entanto, devo admitir que aceito este tipo de assédio comofazendo parte dos riscos que a minha profissão me obriga a correr.

Na semana passada liguei várias vezes para o seu departamento, tanto no sábado como no domingo, com a finalidade de me inteirar do que o senhor poderia fazer para que eu me deslocasse a Mahshad. Ao cabo de várias tentativas, consegui falar com alguém do ministério, que me informou de que a sua secção esteve encerrada por vários dias. Consequentemente, vi-me impossibilitada de lhe dar a conhecer a minha intenção de visitar Mahshad.

Viajei para essa cidade durante a noite de domingo para segunda feira e cheguei na segunda à tarde. Ao longo do meio dia que estive em Mahshad, dei uma volta pela cidade e falei com alguns residentes sobre os últimos tumultos.

Não me encontrei com ninguém que tivesse estado directamente envolvido nos referidos motins, e a minha intenção era escrever um artigo onde abordaria o estado de espirito do cidadão comum, que foi apanhado de surpresa no meio dos referidos desacatos públicos.

Passei esse serão na companhia de pessoas amigas, tendo visitado o santuário do Imã Reza. Pernoitei em casa de uma amiga e abandonei a cidade santa às três da madrugada de terça feira.

Às sete horas dessa mesma manhã, o táxi em que eu viajava foi mandado parar na estrada para norte, num posto de controlo a pouca distância depois de termos passado pela Selva de Golestan - onde posteriormente me informaram que fora o local onde muitos mujahiddin se ocultaram quandoforam declarados foras-da-lei depois da vitória da Revolução Islâmica. Dei a conhecer ao oficial responsável que era umajornalista que regressava de Mahshad.

Embora lhe tenha mostrado a minha acreditação de imprensa, explicando-lhe o motivo da minha viagem, fui submetida a uma revista física, sem que ninguém me tivesse dado uma justificação quanto ao motivo por que me impediram de continuar a minha viagem. Tambémfui sujeita a abusos de natureza verbal.

Na minha mala de mão tinha vinte e cinco mil tomans para pagar a tarifa do táxi. Este dinheiro foi amontoado em cima de uma mesa efoi-me dada autorização para recuperar todos os outros objectos que me pertenciam. Nessa altura o oficial responsável examinou a pilha de dinheiro que continuava sobre a mesa, enquanto me advertia de que eupoderia ficar detida por algum tempo.

Mandaram-me sair do edifício e, já no exterior, um soldado sugeriu-me que poderia resolver os meus problemas por meio do dinheiro. Foi então que o oficial responsável entrou no meu táxi, pedindo ao motorista que o levasse a uma distância a mais ou menos cem metros ao fundo da rua. Senti que ele estava à espera que eu lhe oferecesse algum dinheiro; mostrou-se bastante irado quando essa oferta não se concretizou.

Parámos em vários postos de controlo ao longo da estrada e uma vez mais um subalterno militar sugeriu-me oferecer um determinado montante em dinheiro. Finalmente, fui enviada para as instalações do exército, para o quartel-general dasforças de segurança em Minoodash. Fui escoltada no táxi por umjovem soldado que abertamente se ofereceu para me deixar seguir em paz caso eu pagasse as suas dividas. Certamente que eu poderia ter-me poupado muito tempo e problemas caso tivesse optado porpagar os quatro mil tomans que ele me exigiu. No entanto, considero que a prática de suborno é um dos costumes mais repreensiveis, pelo que em circunstância alguma estaria disposta a pactuar com uma lei que encoraja um sistema para os pobres e outro para os ricos.

Chegada a Minoodash, fui interrogada ao longo de várias horas por dois oficiais que se recusaram a dar-me os seus nomes. Facultei-lhes todos os números de telefone e nomes dosfuncionários do Ministério da Orientação em Teerão, e todavia recusaram-se a entrar em contacto convosco.

Todos os meus apontamentos de reportagem foram lidos e pediram-me que indicasse a palavra mujahiddin. Quando o meu bloco de apontamentos me foi devolvido, as páginas que continham esta palavra haviam sido arrancadas. As minhas cartas pessoais, recibos, diários, etc. foram examinados e até a minha roupa interior sujafoi sujeita a exame.

Fui obrigada a sentar-me ao ar livre sem qualquer resguardo do sol durante cinco das horas mais quentes do dia. Abusivamente, tiraram a máquinafotográfica da minha mala de mão e apossaram-se do rolo que só continhafotografias de natureza pessoal, não me tendo sido posteriormente devolvido, tal como aconteceu com uma cassete que continha apenas um método de hipnose terapêutica que utilizo para me descontrair.

Fui forçada a aguardar por mais duas horas que me devolvessem os meus papéis pessoais - não me resta a minima dúvida de que entretanto tenham sido fotocopiados. Obrigaram-me a assinar duas páginas com apontamentos escritos à mão, apesar de eu ter informado o oficial que só sabia ler farsi escrito à máquina, e mesmo assim com muita lentidão, uma vez que tinham passado já uns bons quinze anos desde a última ocasião em que escrevi nessa lingua. Não obstante estajustificação, ameaçaram deter-me até que eu me decidisse a assinar, e não me restou outra opção senão obedecer.

As pessoas que me detiveram não só se comportaram com grosseria como também são responsáveis por umas instalações militares que se encontram num estado verdadeiramente deplorável. Não aceitaram de bom grado o que eu lhes disse quanto àforma como meu avô os teria obrigado, a bem ou a mal, a terem um comportamento digno de militares. Devo confessar que acho inadmissivel que soldados iranianos tenham um aspecto tão desleixado, e que homens que estão de serviço tenham permissão para usarem sandálias de borracha e que aqueles que calçam botas não sejam obrigados a mantê-las devidamente engraxadas.

No entanto, não quero deixar de agradecer ao jovem recruta que teve a humanidade suficiente para me oferecer chá e água, apesar das ordens que recebeu em contrário. Se nãofosse a cortesia deste jovem militar, acredito que o meu estado de saúde teria sido gravemente afectado.

Agora só espero que o assunto tenha sido encerrado de uma vez por todas. Não aguardo qualquer pedido de desculpas, da mesma maneira que não espero receber qualquer indemnização pelo tempo que perdi ou pelo meu casaco que ficou rasgado durante a revista inicial a que fui sujeita.

Com toda a veemência, só espero que um dia não seja necessário que ocorram incidentes tão lamentáveis nas estradas do Irão, por onde se deveria poder circular em liberdade, assim como desejo que os meus concidadãos possam tratar das suas vidas sem quaisquer obstáculos.

Com os meus melhores cumprimentos, Parichehre Mosteshar-Gharai

A odisseia de ter sido detida preventivamente numa estrada remota da região norte e ter sido confinada a umas instalações militares ocultas do resto do mundo, fracassou no objectivo de me inspirar a espécie de temor apropriada a uma situação com aquelas características. O facto de o meu taxista ter sido membro da elite da Guarda Imperial no tempo do xá e ter passado três anos numa prisão revolucionária não teria beneficiado em nada o meu caso, caso aqueles que me mantiveram em cativeiro tivessem decidido prolongar a minha estadia. As coisas poderiam muito bem ter sido bastante diferentes se eu tivesse mostrado sinais de receio, mas adoptei automaticamente a atitude dos Pessian, imaginando-me no lugar do meu avô, o general, e isso deu-me poder, situação que não se teria verificado caso me tivesse considerado vítima do sistema.

Quando nessa noite nos afastámos finalmente das casernas, o meu taxista disse-me:

Deus gosta realmente de si. Porquê?

- Sempre que tenho de sair da cidade levo a minha arma. Desta vez também fui buscá-la a casa, mas cheguei à conclusão de que tinha perdido a chave da cómoda onde guardo o revólver dos meus tempos de militar. Ter-nos-iam alvejado se tivessem encontrado uma jornalista britânica, e um antigo membro da Guarda Imperial, no caminho de retorno de uma área onde se verificaram confrontos graves com armas de fogo.

Durante a viagem de dezasseis horas de regresso a Teerão tive muito tempo para poder reflectir no disparate que tinha feito ao decidir ir a Mahshad, e ainda por cima de carro. Não vale a pena mencionar o risco que corri de ser atacada por bandidos que haviam regressado de novo às estradas iranianas; também não vou mencionar os troços de estrada que haviam sido destruídos pelas cheias, transformando num perigo ainda maior uma viagem já de si dificil através das estradas de montanha; sem mencionar que tinha sido apelidada de espia britânica pelo jornal Keyhan; sem esquecer que fui transportada no táxi de um ex-membro do comando das forças de elite leais ao xá. O que é que teria sucedido se eles se tivessem apercebido de que um dos membros do clã Pessian regressara à mesma província onde o seu distinto primo em segundo grau levou a cabo uma tentativa de golpe de estado há uma geração atrás?

Mandaram-nos voltar a parar em mais duas ocasiões, uma num posto de controlo mesmo nos arredores de Teerão.

- Desta vez não faça qualquer alusão à sua profissão de jornalista - aconselhou-me o taxista depois de ter sido interrogado.

Corroborei a sua história, dizendo que tinha ido em peregrinação à cidade santa. O oficial quis saber por que motivo não era acompanhada e expliquei-lhe que não tinha família no Irão. Duas horas mais tarde, permitiram-me retomar caminho.

Sentia-me mais do que um pouco irritada quando nos detiveram de novo numa estrada de montanha a quatro horas de distância de Teerão. Desta feita fomos mandados parar por um polícia de trânsito por termos excedido o limite de velocidade. A multa regulamentar era de cinco mil tomans, mas o polícia aceitou duzentos e cinquenta tomans para si próprio, numa combinação particular encetada pelo meu motorista, e uma vez mais regressámos à estrada.

De retorno a Teerão, constatei que um sentimento de pânico generalizado se instalara no seio da minha família e amigos, dado que as notícias relativas à minha aventura já lhes haviam chegado aos ouvidos. Farah conseguiu pôr todos num estado de grande aflição, dado que o meu regresso sofreu um atraso de mais de catorze horas. Logo que souberam da minha detenção, o pânico espalhou-se entre as pessoas, que se apressaram a percorrer as estradas desertas de montanha onde tinham enterrado aparelhagens de vídeo, filmes, cartas de jogar, bebidas alcoólicas e toda uma variedade de outros pertences interditos à população iraniana.

E foi assim que me deixaram sozinha para redigir o meu artigo quando ouvi a campainha da porta. Quando a abri, deparei com o corredor mergulhado na escuridão; quando premi o interruptor da luz, avistei um clássico lacaio do Hezbollah ao cimo das escadas.

- Posso ajudá-lo em alguma coisa?

- Ando a fazer perguntas sobre um dos seus vizinhos, o casal Emani. Por acaso conhece-os?

- Não, não conheço ninguém que viva no prédio - respondi, sem acreditar numa única das suas palavras.

- O senhor Emani está prestes a ser promovido, e é por isso que andamos a fazer algumas perguntas - explicou ele de forma pouco convincente. - O seu marido encontra-se em casa? - O homem tentava saber se eu estava sozinha ou não.

- Não, sou convidada da família que vive nesta casa e que de momento está ausente - repliquei sem pensar no que dizia.

Com aquelas palavras, bati com a porta, à espera que fosse aberta a pontapé. Pela primeira vez, senti-me assustada, uma vez que tinha ouvido falar da forma como eles costumavam cercar as pessoas no interior das suas casas, após o que enviavam alguém que avaliasse o grau de facilidade com que poderiam proceder à detenção da pessoa em questão para depois a atacarem.

Mais tarde vim a saber que de facto havia um vizinho de apelido Emani, tendo a mulher deste confirmado que o marido estava prestes a ser promovido; o homem pertencia aos Serviços de Segurança. Nessa mesma manhã um indivíduo foi ao prédio com a finalidade de fazer perguntas sobre os hábitos do casal. Toda a gente se sentia bastante preocupada porque uma outra vizinha tinha ido à porta usando um vestido sem alças e com a cabeça descoberta, e de momento sentia-se aterrorizada pela possibilidade de vir a ser presa sob a acusação de indecência. Uma outra narrou as perguntas que o homem lhe havia feito: "Alguma vez viu Mrs. Emani sem um hejab apropriado? Sabe se os Emani bebem álcool? Costumam participar nas orações da sexta-feira? Rezam com regularidade? ". Ao que tudo indicava, era uma prática normal, e até Nastaran foi obrigada a sujeitar-se a esta espécie de investigação à moralidade de cada um antes de lhe terem dado o emprego na universidade.

Quanto ao assunto da minha detenção, Mousavi, Mohammed, Matt e Ms. Lunática asseguraram-me que somente a sua intervenção directa junto da SAVAMA é que me salvara a pele, o que me evitara ser encarcerada por ter ido a Mahshad sem autorização prévia.

Nesse ano a morte pairava por toda a parte, situação a que eu não conseguia escapar quer na minha vida profissional quer na pessoal.

No Irão vivia-se um dia igual a todos os outros quando saí de Mehrabad em direcção a Bandar Abbas, um porto meridional, a fim de comemorar o aniversário do ataque ao Airbus das Linhas Aéreas Iranianas acima do golfo por um navio norte-americano, e no qual morreram mais de trezentos passageiros inocentes.

Passei esse dia na companhia de familiares lacrimejantes que desejavam saber por que razão o homem que ordenara o ataque ao avião fora galardoado com uma medalha de valor atribuída pelo presidente norte- americano. Esforcei-me por manter o lenço em redor da cabeça enquanto seguia a bordo de um navio de guerra que se dirigia para o ponto onde o aparelho fora abatido sobre o golfo; quando já me encontrava dentro de um táxi de regresso a casa e percorria as ruas de Teerão, sentia-me exausta e deprimida.

Era sexta-feira e a Vali-e-Asr estava deserta quando o meu táxi entrou nessa zona vindo de uma rua lateral. O meu taxista aplicou travões a fundo enquanto um Range-Rover azul-marinho novinho em folha tentava controlar a velocidade a que seguia pela rua deserta. Encontrávamo-nos a uns escassos metros dos dois rapazes; vi-os serem arremessados pelo ar enquanto a viatura continuava a rolar; os corpos dos garotos elevavam-se e caíam, uma, duas, três vezes. O vidro do pára-brisas estilhaçou-se e os corpos ficaram presos na estrutura metálica, sendo depois cuspidos através do espaço deixado pelo vidro. Vi os corpos suspensos e encurralados enquanto a viatura continuava a atropelá-los uma e duas vezes. Observei o sangue que brotava dos seus corpos quando finalmente se libertaram, altura em que o veículo os atropelou uma quinta vez elevando-se parcialmente do solo de cada vez que o volante guinava. Observei os seus corpos jovens a voarem através do ar mesmo à minha frente, o que me permitiu ver os ossos fracturados do pescoço do mais novo. Tive ainda oportunidade de ver toda a massa avermelhada que restou depois de o asfalto da rua ter arrancado a carne do rosto do outro garoto.

Quando cheguei a casa toda eu tremia que nem varas verdes; deparei com o Inútil todo aninhado queixando-se de uma gripe que não conseguia tratar. Eu chorava, mas ele ignorou tudo o que eu tinha acabado de testemunhar, considerando o incidente como parte de mais um dia soalheiro em Teerão. Eram apenas mais dois jovens entre as centenas que morriam todos os dias nas ruas da capital - que perecem por falta de um pouco de bom senso, que morrem porque conduzir uma viatura ao estilo de James Bond é ser-se macho; garotos que são aniquilados porque as pessoas sabem de antemão que à força de dinheiro serão capazes de se eximirem às sanções que lhes são impostas numa tentativa de se introduzir um simulacro de lei e ordem em algumas das mais perigosas ruas a nível mundial.

Eu continuava bastante abalada quando na semana seguinte Farah e o Inútil tomaram posse de um Renault 5 novinho em folha. Tinham encomendado um automóvel branco, mas pouco depois souberam que para o receberem teriam de subornar o concessionário dessa marca. Ficaram-se por um suborno mais reduzido, aceitando a entrega de uma viatura cinzenta.

No dia em que foi entregue, o zelador do bloco de apartamentos de uma vintena de andares em que habitávamos trouxe um cordeiro que seria sacrificado. O animal foi degolado em frente do automóvel, que logo a seguir rolou sobre o sangue derramado. O sangue ficou espalhado pelo volante, e na traseira do veículo foi deixada a impressão ensanguentada de duas mãos. Este ritual destinava-se a proteger os bons muçulmanos de eventuais acidentes.

Em seguida, estes mesmos bons muçulmanos levaram-me a dar um passeio no seu carro novo. Farah sentou-se comigo no assento de trás, enquanto as três crianças tiveram autorização para se sentarem no banco do passageiro da frente. Sob a minha perspectiva, tudo aquilo me parecia ridículo: pessoas com uma educação académica não hesitavam em pôr em prática, nos nossos dias, um ritual de sangue com a finalidade de afastar possíveis acidentes, e por outro lado não tomavam a medida elementar de colocarem os cintos de segurança.

- Não sei se sabem, mas nos países ocidentais seria proibido por lei que as crianças desta idade se sentassem no assento da frente - comentei de forma casual.

- Sim, eu sei - replicou Farah. - Eles são muito mais civilizados do que nós. Só me apeteceu gritar: "Estúpida, se sabes que é mais seguro para os teus filhos, por que é que não tomas essa medida? ". Mantive-me em silêncio, mas tudo aquilo parecia estar a roer-me por dentro. De cada vez que entrava naquele automóvel e apertava o meu cinto de segurança, Farah e o Inútil riam-se da minha precaução.

- Realmente, Parichehre, és tão engraçada - diriam eles.

Nada era assim tão engraçado quando se estava deitado numa cama de hospital a lutar pela nossa vida, ao mesmo tempo que as nossas famílias se preparavam uma vez mais para outro período de luto.

A nossa desgraça tem sido esta incapacidade, ou recusa, em calcular as consequências das nossas acções. Odiávamos o xá, e por isso só desejávamos que ele fosse removido do poder, e assim saíamos para a rua sem pensarmos a sério naquilo que desejávamos eém seu lugar. A nossa revolução tem sido de ódio; ódio pelo xá e pelos seus iguais, em vez de carinho e amor pela nossa pátria e pelo seu futuro.

 

 

                                                                    CONTINUA

 

 

           Sexo, drogas e rezas de sexta feira

Depois do fiasco com Hassan, refugiei-me num bloco de apartamentos onde vivia Goli, a melhor amiga que tinha no Irão; foi aí que conheci Nahid.

Com quinze anos, Nahid fora forçada a casar com o primo. Deixou-o quatro anos mais tarde, assim como aos gémeos de seis meses, para se tornar na mulher do marido de outra. Ia-se mudar para a parte alta da cidade e nenhum obstáculo poderia impedi-la de o fazer.

Hadji Abbas era o veículo escolhido que a transportaria de uma vida de pobreza para uma de abastança. Não era relevante que ele fosse trinta anos mais velho do que ela, para além de ser casado com outra mulher e ter oito filhos. Não interessa que a sua família a tivesse deserdado. Nahid estava firmemente determinada a vir a ser a mulher de um dos mais bem sucedidos negociantes em ferro no bazar de Teerão.

 

 

 

 

Alta, de pele clara e senhora de uns olhos verdes com uma expressão penetrante, tudo qualidades muito apreciadas pelos iranianos -, não se deparou com entraves de maior para atrair Hadji, um homem muito estimado que tinha pouco que o recomendasse para além do seu dinheiro. Feio, na perspectiva de qualquer pessoa, Hadji não era feito da matéria dos sonhos de qualquer jovem mulher. O antenome "Hadji" indica uma pessoa que fez a peregrinação a Meca - uma obrigação de todos os muçulmanos. Mas também é utilizado pelos comerciantes da classe média como sinal de respeito para com aqueles que são particularmente devotos ou excepcionalmente ricos. Hadji Abbas era ambas as coisas.

Nahid acreditara que, com o tempo, os seus encantos acabariam por afastar Hadji da sua primeira mulher já de idade. Hadji sentia-se enamorado, mas em simultâneo temia Deus, pelo que as duas relações eram postas em prática seguindo a lei islâmica ao pé da letra. As suas noites eram alternadas, uma com Nahid e a seguinte no leito da primeira mulher. Sempre que fazia amor com Nahid, ela sabia que ele acabara de fazer o mesmo "no outro lado", ou que faria o mesmo na noite seguinte. Para grande fúria da sua jovem mulher... 

 

                                                                              

                      

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