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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PÉTALAS AO VENTO / V. C. Andrews
PÉTALAS AO VENTO / V. C. Andrews

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PÉTALAS AO VENTO

Primeira Parte

 

Livres, afinal!

Como éramos jovens no dia em que fugimos! Como nos deveríamos sentir exuberantes por estarmos livres, finalmente, de um lugar tão sombrio, solitário e abafado! Quão lamentavelmente satisfeitos deveríamos estar por viajarmos num ônibus que rumava vagarosamente para o sul! Entretanto, se estávamos alegres, não o demonstrávamos. Ficamos os três calados, pálidos, olhando pelas janelas, muito amedrontados por tudo que víamos.

Livres! Haveria palavra mais maravilhosa que esta? Não, mesmo que as mãos frias e esqueléticas da morte se estendessem para arrastar-nos de volta, caso Deus não estivesse em algum lugar lá em cima, ou talvez até no interior do ônibus, viajando conosco e zelando por nós. Em alguma época de nossa vida tínhamos que acreditar em alguém.

As horas se passaram com os quilômetros. Nossos nervos se tornaram sensíveis porque o ônibus fazia freqüentes paradas para embarcar e desembarcar passageiros. Fazia paradas para descanso, para o café da manhã e, então, para embarcar uma enorme senhora preta que o aguardava no ponto em que uma estrada de terra desembocava no piso de concreto da rodovia interestadual. A mulher levou uma eternidade para subir no ônibus e, depois, puxar para dentro as muitas trouxas que trazia consigo. Quando, afinal, ela se sentou numa poltrona, cruzamos o limite estadual entre a Virgínia e a Carolina do Norte.

Oh! Que alívio sairmos do estado onde fôramos prisioneiros! Pela primeira vez em muitos anos, comecei a relaxar um pouco. Éramos os três passageiros mais jovens no ônibus. Chris tinha dezessete anos, notavelmente bonito, com cabelos longos e ondulados que lhe tapavam os ombros e se curvavam para cima. Seus olhos azuis orlados por cílios escuros rivalizavam com a cor do céu de verão e sua personalidade era como um cálido dia ensolarado; tinha no rosto uma expressão corajosa, a despeito de nossa situação desanimadora. O nariz reto e de conformação fina adquirira força e maturidade que prometiam fazer dele tudo o que nosso pai fora: o tipo de homem que fazia o coração de todas as mulheres palpitar quando ele as olhava, e mesmo quando não olhava. Tinha uma expressão confiante; parecia quase feliz. Se ele não olhasse para Carrie, poderia até mesmo ser feliz. Entretanto, quando lhe viu o rosto pálido e doentio, franziu a testa e seus olhos se toldaram de preocupação. Começou a dedilhar o violão que trazia a tiracolo. Chris tocou “Oh, Suzana”, cantando baixinho numa voz doce e melancólica que me tocou o coração. Entreolhando-nos, entristecemo-nos com as lembranças evocadas pela melodia. Éramos como um só, ele e eu. Não podia fitá-lo por muito tempo, pois tinha medo de chorar.

Encolhida em meu colo, estava minha irmãzinha. Não aparentava mais que três anos, tão miúda, tão penosamente miúda e enfraquecida, embora já tivesse oito. Em seus grandes olhos azuis, marcados por olheiras, havia mais sofrimentos e segredos sombrios do que uma criança de sua idade deveria conhecer. Os olhos de Carrie eram idosos, muito idosos. Ela nada esperava: nem felicidade, nem amor, nada, pois tudo o que houvera de maravilhoso em sua vida lhe fora tomado. Enfraquecida pela apatia, parecia disposta a passar da vida para a morte. Magoava-me vê-la tão sozinha, tão terrivelmente solitária, agora que Cory se fora.

Eu tinha quinze anos. Estávamos em novembro de 1960. Eu queria tudo, precisava de tudo, e sentia um medo horrível de que jamais em minha vida conseguisse encontrar o bastante para compensar tudo o que perdera. Sentia-me tensa, pronta para gritar se mais alguma coisa ruim acontecesse. Como um estopim enrolado e ligado a uma bomba-relógio, sabia que mais cedo ou mais tarde eu explodiria e derrubaria todos os que viviam em Foxworth Hall!

Chris pousou a mão na minha, como se pudesse ler-me os pensamentos e soubesse que eu já planejava o modo de trazer o inferno a todos os que nos tinham tentado destruir. Disse em voz baixa:

— Não fique assim, Cathy. Tudo dará certo. Estaremos bem.

Continuava a ser o eterno e incorrigível otimista, acreditando, a despeito de tudo, que as coisas que aconteciam só podiam ser para o melhor? Oh! Deus! Como podia ele pensar assim quando Cory estava morto? Como isso poderia ser para o melhor?

— Cathy — sussurrou. — Precisamos aproveitar ao máximo o que nos resta, isto é, um ao outro. Temos que aceitar o que aconteceu e partirmos daí. Temos que acreditar em nós mesmos, em nossos talentos; se acreditarmos, havemos de conseguir o que desejamos. É assim que funciona, Cathy, pode crer. Tem que dar certo!

Ele desejava ser um médico insípido e sério, que passava os dias em consultórios, cercado pelas misérias humanas. Eu desejava algo muito mais fantasioso... e uma montanha disso! Queria realizar todos os meus sonhos estrelados de amor e romance no palco, onde eu seria a “prima ballerina” mais famosa do mundo; nada menos que isso me satisfaria! Isso mostraria a Mamãe!

Maldita seja, Mamãe! Espero que Foxworth Hall queime até os alicerces! Espero que você jamais consiga dormir uma noite tranqüila naquela grandiosa cama de cisne; nunca mais! Espero que seu jovem marido arranje uma amante mais jovem e bonita que você! Espero que ele lhe dê o inferno que você merece!

Carrie virou-se para murmurar:

— Cathy, não me sinto bem... Estou com uma coisa engraçada no estômago...

Fui dominada pelo medo. O rostinho miúdo de minha irmã parecia doentiamente pálido; seus cabelos, antes sedosos e brilhantes, escorriam em mechas sem vida. Sua voz estava reduzida a um débil sussurro.

— Querida, querida — reconfortei-a, beijando-a. — Agüente firme. Logo nós a levaremos a um médico. Não demoraremos a chegar à Flórida e lá nunca mais ficaremos trancados.

Carrie relaxou em meus braços, enquanto eu olhava desoladamente para o musgo espanhol pendente das árvores que indicava encontrarmo-nos agora na Carolina do Norte. Ainda tínhamos que atravessar a Geórgia. Seria uma longa viagem até chegarmos a Sarasota. Carrie teve um sobressalto violento, passando a engasgar-se e ter ânsias de vômitos.

Precavidamente, eu enchera os bolsos de guardanapos em nossa última parada, de modo que pude limpar Carrie. Passei-a para os braços de Chris, de modo a poder ajoelhar-me no chão do ônibus e limpar o resto. Chris escorregou pelo assento até a janela e tentou abri-la a fim de jogar fora os guardanapos sujos. Por mais força que ele usasse para puxá-la e empurrá-la a janela não se moveu. Carrie começou a chorar.

— Enfie os guardanapos no espaço entre a poltrona e a parede do ônibus — sussurrou Chris.

Mas o atento motorista devia estar observando pelo retrovisor, pois gritou:

— Vocês aí atrás, garotos! Livrem-se dessa porcaria de outra maneira!

Que outra maneira poderia haver senão esvaziar o estojo da máquina Polaroid de Chris, que eu estava usando como bolsa, e enfiar nele os fedorentos guardanapos?

— Desculpem-me — soluçou Carrie, desesperadamente agarrada a Chris. — Eu não queria vomitar. Agora, vamos para a cadeia?

— Não, claro que não — disse Chris com seu jeito paternal. — Em menos de duas horas estaremos na Flórida. Tente agüentar firme até lá. Se saltarmos agora, perderemos o dinheiro que pagamos pelas passagens e não temos muito para desperdiçar.

Carrie começou a choramingar e tremer. Apalpei-lhe a testa: estava úmida. Agora, o rosto não estava apenas pálido, mas branco! Como o de Cory antes de morrer.

Orei a Deus para que, pelo menos uma vez, tivesse piedade de nós. Já não suportáramos o suficiente? Aquilo precisava continuar, interminavelmente? Enquanto eu hesitava, sentindo também um melindroso desejo de vomitar, Carrie começou tudo outra vez. Eu simplesmente não podia acreditar que ela ainda tivesse dentro de si algo para vomitar. Apoiei-me de encontro a Chris enquanto Carrie ficou inerte nos braços dele, parecendo estar angustiosamente próxima da inconsciência.

— Creio que ela está entrando em estado de choque — sussurrou Chris, quase tão pálido quanto Carrie.

Foi quando um passageiro mesquinho e sem coração começou a reclamar em altos brados, de modo que os mais bondosos pareciam embaraçados e indecisos quanto ao que fazer para ajudar-nos. O olhar de Chris procurou o meu, numa indagação muda: “que fazer em seguida?”

Eu começava a entrar em pânico. Então, ao longo do corredor, balançando de um lado para outro ao avançar em nossa direção, surgiu a enorme mulher negra, exibindo um sorriso reconfortante. Trouxe sacos de papel e os segurou enquanto eu jogava dentro deles os malcheirosos guardanapos. Com gestos, mas sem palavras, deu-me palmadinhas no ombro. Acariciou o queixo de Carrie e entregou-me um punhado de trapos tirados de uma das suas trouxas.

— Muito obrigada — murmurei, sorrindo desajeitadamente enquanto me limpava da melhor maneira possível.

Depois fiz o mesmo com Carrie e Chris. A mulher pegou os trapos, enfiou os num saco de papel e recuou um pouco, como se para proteger-nos.

Cheia de gratidão sorri para a mulher imensamente gorda que enchia o corredor do ônibus com seu corpanzil coberto pelo berrante vestido estampado. Ela piscou para mim e sorriu também.

— Cathy — disse Chris, parecendo ainda mais preocupado que antes. — Precisamos levar Carrie a um médico, e depressa!

— Mas pagamos a passagem até Sarasota!

— Eu sei. Mas trata-se de uma emergência!

A nossa benfeitora sorriu animadoramente e depois debruçou-se para examinar o rosto de Carrie. Pousou a grande mão preta na testa úmida da menina e depois tomou-lhe o pulso. Fez com as mãos alguns gestos que me intrigaram, mas Chris disse:

— Creio que ela é muda, Cathy. Esses são gestos usados pelos surdos-mudos.

Sacudi os ombros, para indicar que não a compreendia. Ela franziu a testa e depois tirou do bolso sob o pesado suéter vermelha um bloco de folhas de papel multicor. Rabiscou muito depressa um bilhete que me entregou em seguida. Escrevera: “Meu nome é Henrietta Beech. Posso ouvir, mas não falar. A menininha está muito doente mesmo e precisa de um bom médico.”

Li o bilhete e tornei a olhar para ela, esperando que tivesse mais informações.

— Conhece algum bom médico? — indaguei.

Ela meneou vigorosamente a cabeça em afirmativa e logo rabiscou outro rápido bilhete: “Vocês têm sorte porque estou no ônibus e posso levá-los ao meu filho, que é ótimo médico.”

— Puxa vida! — murmurou Chris, quando lhe passei o bilhete. — Devemos ter mesmo uma boa estrela para encontrarmos alguém que nos indique tal médico!

— Escute aqui, motorista! — gritou o mais malvado dos passageiros do ônibus. — Leve essa criança para um hospital! Macacos me mordam se paguei meu bom dinheiro para viajar num ônibus fedendo a vômito!

Os demais passageiros fitaram-no com ar de reprovação e pude ver, pelo retrovisor, que o rosto do motorista ficou rubro de raiva ou, talvez, de humilhação. Nossos olhos se encontraram no espelho. Então ele me disse, encabulado:

— Sinto muito, mas tenho mulher e cinco filhos. Se eu não cumprir os horários, minha mulher e meus filhos ficarão sem comida, porque perderei o emprego.

Calada, implorei-lhe com o olhar, ouvindo-o murmurar com seus botões:

— Malditos domingos! Os dias de semana correm muito bem. Então chegam os domingos, malditos domingos!

Foi então que Henrietta Beech pareceu ter escutado o suficiente. Tornou a pegar o lápis e escreveu no bloco outro bilhete que logo passou a mim.

“Muito bem. O moço ao volante detesta os domingos. Se ele continuar ignorando a menininha doente, os pais dela processarão os chefões da empresa de ônibus por uma indenização de dois milhões de dólares!”

Mal Chris teve tempo de ler o bilhete e Henrietta se afastou pelo corredor, até enfiar o papel sob o nariz do motorista. Com um gesto impaciente, o motorista afastou o braço da negra, mas esta voltou a insistir e, desta vez, ele fez uma tentativa para ler enquanto mantinha a atenção voltada para o tráfego.

— Oh! Deus! — suspirou o motorista, cujo rosto eu podia ver pelo espelho. – O hospital mais próximo fica a trinta quilômetros fora de meu itinerário!

Chris e eu observamos enquanto a gigantesca senhora negra fazia gestos e sinais que deixaram o motorista tão frustrado quanto havíamos ficado. Mais uma vez, Henrietta foi obrigada a escrever um bilhete. E o conteúdo deste, qualquer que fosse, levou o motorista a tirar o ônibus da larga rodovia e tomar uma estrada lateral que ia a uma cidade chamada Clairmont. Henrietta Beech permaneceu ao lado do motorista, obviamente dando-lhe instruções, mas voltava-se para nós a intervalos, exibindo um brilhante sorriso, para mostrar-nos que tudo correria bem.

Em breve percorríamos ruas largas e tranqüilas, orladas de árvores cujas copas se curvavam graciosamente para formar uma espécie de toldo. As casas que vi eram grandes, aristocráticas, com pórticos e elevadas cúpulas.

Embora nas montanhas da Virgínia já tivesse nevado uma ou duas vezes, aqui o outono ainda não pousara sua mão gelada. Os bordos, faias, carvalhos e magnólias ainda mantinham a maioria das folhas de verão e algumas flores continuavam vivas.

O motorista julgava que Henrietta Beech não o orientava corretamente e, para falar com franqueza, eu era da mesma opinião. Na realidade, não se instalavam hospitais naquele tipo de ruas residenciais. Entretanto, exatamente quando eu começava a preocupar-me, o ônibus parou bruscamente diante de uma grande casa branca que se erguia no topo de uma colina baixa e arredondada, cercada por espaçosos gramados e canteiros floridos.

— Vocês aí, garotos! — gritou o motorista, virando-se para nós. — Peguem sua tralha e entreguem as passagens para devolução do dinheiro, ou tratem de utilizá-las antes que o prazo expire!

Então saltou rapidamente do ônibus e abriu o bagageiro na parte interior da carroceria, tirando cerca de quarenta malas antes de chegar às nossas duas. Pendurei a tiracolo o violão e o banjo de Cory, enquanto Chris, muito devagar e com extrema ternura, erguia Carrie nos braços.

Como uma gorda galinha protegendo seus pintinhos, Henrietta Beech conduziu-nos ao longo da comprida alameda de tijolos que levava à varanda da frente. Ali eu hesitei, olhando para a casa e para as duplas portas pretas. À direita, um pequeno aviso impresso dizia: EXCLUSIVO DOS PACIENTES. Tratava-se, evidentemente, de um médico que tinha consultório na própria residência. Nossas duas maletas foram deixadas na sombra, perto da calçada de concreto, enquanto eu examinava a varanda até avistar um homem adormecido numa cadeira de vime branca. Nossa boa samaritana aproximou-se dele com um largo sorriso antes de tocar-lhe de leve no braço. Como o homem continuasse a dormir, ela fez sinal para que avançássemos e falássemos por nós mesmos. Em seguida, apontou para a casa e fez sinais para indicar que entraria a fim de preparar algo para comermos.

Eu teria preferido que ela ficasse para apresentar-nos ao homem e explicar-lhe o motivo de nossa presença em sua varanda num domingo. Enquanto Chris e eu avançávamos nas pontas dos pés, sentindo-me dominada pelo medo, eu aspirava o ar carregado pelo perfume das rosas e tinha a impressão de que já estivera ali e conhecia o local. O ar fresco com perfume de rosas não era o tipo de ar que eu me acostumara a esperar que alguém como eu merecesse.

— É domingo, maldito domingo — sussurrei para Chris. — Aquele médico pode não gostar de estarmos aqui.

— Ele é um médico — replicou Chris. — Está acostumado a que lhe roubem os momentos de lazer... mas você pode tratar de acordá-lo.

Aproximei-me vagarosamente. Era um homem grande, usando um terno cinza claro com um cravo branco na lapela. Tinha as pernas compridas esticadas e apoiadas no topo da balaustrada da varanda. Parecia um tanto elegante, apesar de escarrapachado como estava, com as mãos pendentes dos braços da poltrona de vime. Dava a impressão de estar tão acomodado que me pareceu uma grande pena acordá-lo e arrastá-lo de volta ao trabalho.

— É o Dr. Paul Sheffield? — indagou Chris, que lera a placa com o nome do médico.

Carrie jazia nos braços de Chris, o pescoço arqueado para trás, os olhos fechados, os compridos cabelos dourados balançando-se à brisa suave e cálida.

Relutantemente, o médico acordou. Fitou-nos durante longo intervalo, como se não conseguisse acreditar nos próprios olhos. Eu sabia que tínhamos uma aparência estranha, em nossas muitas camadas de roupas. Ele sacudiu a cabeça, como se tentasse focalizar os olhos; eram olhos castanhos, muito bonitos, matizados por tons azuis, verdes e dourados sobre o fundo castanho claro. Aqueles olhos notáveis me beberam, engolindo-me em seguida. O homem parecia atordoado, levemente ébrio e por demais sonolento para afivelar a máscara profissional que o impediria de baixar os olhos do meu rosto para meus seios e descer até minhas pernas, antes de refazer lentamente o mesmo trajeto em direção inversa. Mais uma vez, ficou como que hipnotizado por meu rosto, meus cabelos. Eu sabia que os cabelos estavam compridos demais, mal cortados no alto da cabeça, desbotado e frágil nas pontas.

— O senhor é o médico, não é? — quis saber Chris.

— Sim, é claro. Sou o Dr. Sheffield — disse o homem finalmente, passando a prestar atenção em Chris e Carrie.

Com surpreendente graça e rapidez, ergueu as pernas da balaustrada, postou-se de pé à nossa frente, muito mais alto que nós, passou os dedos esguios pelo cabelo escuro e depois se aproximou para examinar com atenção o rostinho miúdo e branco de Carrie. Usou o polegar e o indicador para afastar-lhe as pálpebras fechadas e fitou por um instante o que lhe revelava aquele olho azul.

— Há quanto tempo essa criança está inconsciente?

— Há alguns minutos — disse Chris, que quase já era um médico de tanto estudar enquanto ficamos trancados no sótão. — Carrie vomitou três vezes no ônibus e depois começou a tremer e suar. Havia no ônibus uma senhora chamada Henrietta Beech. Foi ela quem nos trouxe para cá.

O médico meneou a cabeça e explicou que a Sra. Beech era sua governanta e cozinheira. Em seguida, fez-nos entrar pela porta reservada exclusivamente aos pacientes, conduzindo-nos a uma parte da casa onde havia um consultório e duas saletas de exames, não parando de desculpar-se por não ter disponível a sua enfermeira de costume.

— Tire todas as roupas de Carrie, menos as calcinhas — ordenou-me ele.

Enquanto eu obedecia, Chris correu de volta à calçada para pegar nossas maletas.

Invadidos por mil e uma ansiedades, Chris e eu nos encostamos à parede e observamos enquanto o médico verificava a pressão, o pulso e a temperatura de Carrie, auscultando-lhe o coração pela frente e por trás. A essa altura, Carrie já recobrara os sentidos, de modo que ele lhe pediu que tossisse. Tudo o que eu conseguia fazer era indagar-me por que tudo de ruim nos acontecia. Por que o destino se mostrava tão persistentemente contra nós? Éramos tão ruins quanto afirmava a avó? Carrie morreria também?

— Carrie — disse jovialmente o Dr. Sheffield, depois que terminei de vesti-la outra vez. — Vamos deixá-la neste quarto por algum tempo, a fim de que você possa descansar — explicou, agasalhando-a com um cobertor leve. — Agora, não tenha receio. Estaremos aí ao lado, no meu consultório. Sei que essa mesa não é muito macia, mas tente dormir enquanto converso com seus irmãos.

Ela o fitava com olhos muito abertos e inexpressivos, sem realmente importar-se com o fato de a mesa ser ou não macia.

Poucos minutos mais tarde, o Dr. Sheffield estava sentado à sua grande e impressionante mesa de trabalho, com os cotovelos apoiados sobre o mata-borrão. Então começou a falar com muita seriedade e alguma preocupação:

— Vocês dois me parecem embaraçados e pouco à vontade. Não temam estarem interrompendo minhas folias dominicais, pois não sou muito dado a elas. Sou viúvo e, para mim, o domingo é um dia como qualquer outro...

Oh! Sim! Ele podia dizer aquilo, mas parecia cansado, como se trabalhasse durante muitas horas a fio. Eu estava nervosamente sentada na beirada do macio sofá de couro marrom ao lado de Chris. O sol que se filtrava pelas janelas incidia diretamente em nossos rostos, enquanto o médico permanecia à sombra. Minhas roupas causavam-me uma sensação úmida e desconfortável. De repente, lembrei-me do motivo. Levantei-me depressa e abri o fecho da saia externa. Fiquei bastante satisfeita ao ver o médico sobressaltar-se. Como saíra da sala quando eu começara a despir Carrie, não percebera que eu usava dois vestidos por baixo da saia. Quando tornei a sentar-me ao lado de Chris, estava usando apenas um vestido azul, estilo princesa, que me caía bem e estava limpo.

— Sempre usa mais de um vestido aos domingos? — perguntou ele.

— Só nos domingos em que fujo — respondi. — E temos apenas duas malas, de modo que precisamos de espaço para guardar os objetos valiosos que poderemos empenhar mais tarde, quando houver necessidade.

Chris deu-me uma cotovelada rápida, numa advertência muda de que eu estava falando demais. Contudo, eu sabia a respeito de médicos, principalmente por intermédio dele. Aquele médico sentado à mesa era digno de confiança; estava escrito em seus olhos. Poderíamos contar-lhe qualquer coisa, tudo mesmo.

— Então, estão fugindo — comentou o Dr. Sheffield. — Fugindo de quê? De pais que os ofenderam por negar-lhes alguns privilégios?

Oh! Se ele soubesse!

— É uma longa estória, Doutor — respondeu Chris. — E, no momento, só desejamos saber a respeito de Carrie.

— Sim, tem razão — concordou ele. — Portanto, falaremos a respeito de Carrie — acrescentou, assumindo uma atitude profissional. — Não sei quem vocês são, de onde vêm ou por que julgam que devem fugir. Mas aquela garotinha está muito, muito doente. Se hoje não fosse domingo, eu a internaria num hospital para fazer outros exames que não tenho condições de fazer aqui. Sugiro que entrem imediatamente em contato com seus pais.

Exatamente as palavras certas para me causarem pânico!

— Somos órfãos — disse Chris. — Mas não se preocupe quanto a receber seus honorários. Podemos pagar.

— É bom terem dinheiro — disse o médico. — Vão precisar dele.

Lançou-nos um prolongado olhar observador, avaliando-nos.

— Duas semanas num hospital seriam suficientes para descobrirmos o fator na doença de sua irmã que não consigo perceber neste momento.

E enquanto prendíamos a respiração, atordoados por sabermos que Carrie estava tão doente, o médico fez uma previsão aproximada da quantia que aquilo custaria. Ficamos perplexos. Oh! Meu bom Deus! Nosso tesouro roubado não daria para pagar uma semana de hospital, muito menos duas.

Meu olhar deparou com a expressão apavorada nos olhos azuis de Chris. O que faríamos agora? Não podíamos pagar tanto dinheiro!

O médico percebeu prontamente nossa situação.

— Ainda são órfãos? — indagou suavemente.

— Sim, ainda somos órfãos — declarou Chris em tom de desafio; em seguida, olhou firme para mim, indicando que eu deveria manter a boca fechada. — Uma vez órfãos, assim permanecemos. Agora, diga-nos o que suspeita haver de errado com nossa irmã e o que pode fazer para curá-la.

— Calma lá, meu rapaz. Antes, terá que responder algumas perguntas — disse o médico com voz suave, mas firme o suficiente para nos mostrar que ele comandava a situação. — Em primeiro lugar qual o seu sobrenome?

— Sou Christopher Dollanganger e esta é minha irmã, Catherine Leigh Dollanganger, e Carrie tem oito anos, quer o senhor acredite ou não!

— Por que não haveria de acreditar? — replicou tranqüilamente o médico, embora poucos minutos antes, na pequena sala de exames, se mostrasse chocado ao ser informado sobre a idade de Carrie.

— Compreendemos que Carrie é muito franzina para a idade que tem — disse Christopher, na defensiva.

— Certamente é muito franzina.

O médico olhou para mim ao dizer isso e depois fitou Chris. Debruçou-se sobre os braços cruzados, numa atitude amistosa e confidencial que me tornou tensa de expectativa.

— Agora, ouçam. Vamos parar de desconfiar uns dos outros. Sou um médico e tudo o que me confidenciarem permanecerá confidencial. Se desejam realmente ajudar sua irmã, não podem ficar aí sentados, inventando mentiras. Precisam falar a verdade, do contrário estarão desperdiçando meu tempo e colocando em risco a vida de Carrie.

Ficamos ambos calados, de mãos dadas, ombro a ombro. Senti Chris estremecer e estremeci também. Estávamos com medo, mortos de medo de contar a verdade nua e crua, pois quem acreditaria em nós? Confiáramos antes em quem era supostamente honrado; portanto, como poderíamos confiar outra vez? Não obstante, aquele homem sentado à mesa... parecia-me tão familiar, como se eu já o tivesse visto antes.

— Está bem — disse ele. — Se é difícil para vocês, deixem-me fazer mais perguntas. Digam-me o que todos três comeram na última refeição.

Chris suspirou, aliviado.

— Nossa última refeição foi o café da manhã, hoje mesmo. Comemos todos três a mesma coisa: cachorros-quentes com todos os molhos, batatas fritas com molho de tomate, milk-shake de chocolate. Carrie comeu apenas um pouco da sua porção. É enjoada para comer, mesmo nas melhores circunstâncias. Eu diria que nunca teve um apetite saudável.

Franzindo a testa, o médico anotou tudo.

— E todos três comeram exatamente as mesmas coisas no café da manhã? Mas só Carrie teve náuseas?

— Certo. Só Carrie.

— Carrie costuma ter náuseas?

— Ocasionalmente, mas não com freqüência.

— Como ocasionalmente?

— Bem... — Disse Chris, devagar. — Carrie vomitou duas vezes na semana passada e cerca de cinco vezes no último mês. Isso me tem preocupado muito: os ataques de vômito parecem tornar-se mais violentos e surgem com maior freqüência.

Oh! A maneira evasiva como Chris relatava a situação de Carrie fez-me ficar realmente furiosa! Ele protegia nossa mãe até mesmo agora, depois de tudo o que ela fizera. Talvez fosse minha expressão que traiu Chris e levou o médico a debruçar-se em minha direção, como se soubesse que escutaria de mim um relato mais completo.

— Ouçam: vieram procurar-me em busca de auxílio e estou disposto a fazer o possível, mas não me darão uma oportunidade justa se não me fornecerem todos os fatos. Se Carrie sofre de algum mal interno, não posso olhar dentro dela para verificar o que é; ela precisa me dizer, ou vocês terão que contar. Preciso de informações para trabalhar, informações completas. Já sei que Carrie é subnutrida, sub-exercitada e franzina demais para sua idade. Percebi que vocês três têm pupilas dilatadas! Vejo que todos estão pálidos, magros e com aparência cansada. Não consigo compreender por que razão hesitam em questão de dinheiro quando usam relógios que me parecem muito caros e alguém escolheu suas roupas com bom gosto e considerável dispêndio, embora esteja além de minha capacidade imaginar o motivo pelo qual elas não se lhes ajustem bem ao corpo. Ficam aí sentados, com relógios de ouro e brilhantes, usando roupas elegantes e surrados sapatos de tênis, dizendo-me meias-verdades. Portanto, agora vou-lhes dizer algumas verdades inteiras! — sua voz se tornou mais forte e dominadora. — Desconfio de que sua irmãzinha esteja perigosamente anêmica. E por estar anêmica, é suscetível a uma infinidade de infecções. Sua pressão arterial está perigosamente baixa. E existe algum fator fugidio que não consegui identificar. Portanto, amanhã Carrie será internada num hospital, quer vocês chamem ou não seus pais, e tratem de empenhar seus valiosos relógios para pagar pela vida dela. Agora... se a internarmos no hospital esta noite, podemos começar os exames amanhã cedo.

— Faça o que julgar necessário — disse Chris num tom inexpressivo.

— Espere um minuto! — gritei, erguendo-me de um salto e chegando à mesa do médico. — Meu irmão não lhe contou tudo!

Lancei por cima do ombro um olhar duro a Chris, enquanto ele me fixava com a feroz expressão que me proibia revelar toda a verdade. Pensei amargamente: “Não se preocupe, protegerei o máximo possível nossa preciosa mãe!”

Creio que Chris percebeu, pois vieram-lhe lágrimas aos olhos. Oh! Quanto aquela mulher fizera para magoá-lo, para ferir todos nós, e ele ainda conseguia chorar por ela! Suas lágrimas arrancaram-me lágrimas do coração, não por ela, mas por ele, que a amava tanto, e por mim, que o amava tanto; lágrimas por tudo o que havíamos compartilhado e sofrido...

Ele meneou a cabeça como se concordasse e me mandasse prosseguir. Então, comecei a contar ao médico o que lhe deve ter parecido uma estória inacreditável. A princípio, percebi que ele julgava que eu estava mentindo ou, ao menos, exagerando. Por que todos os dias os jornais publicavam as coisas horríveis que pais amorosos faziam aos filhos?

— E assim, depois que Papai morreu naquele acidente, Mamãe veio contar-nos que estava muito endividada e não tinha meios de ganhar o sustento de nós cinco. Começou a escrever cartas aos pais, que moravam na Virgínia. No início, eles não responderam; afinal, certo dia, chegou uma carta. Ela nos disse que os pais moravam numa bela mansão luxuosa, na Virgínia, e eram fabulosamente ricos; todavia, ela se casara com um meio-tio e fora deserdada. Agora, íamos perder tudo o que possuíamos. Tivemos que deixar nossas bicicletas na garagem e ela nem mesmo nos deu tempo de nos despedirmos dos amigos. Naquela mesma manhã, partimos de trem para as montanhas Blue Ridge.

— Estávamos felizes por irmos morar numa bela mansão luxuosa, mas não muito alegres por termos que enfrentar um avô que nos parecia cruel. Nossa mãe nos disse que precisaríamos permanecer escondidos até que ela recuperasse a afeição do pai. Mamãe afirmou que seria apenas uma noite; talvez duas ou três, no máximo. Então, poderíamos descer para conhecermos o pai dela. Ele estava morrendo de uma doença cardíaca e nunca subia escadas, de modo que estaríamos seguros lá em cima desde que não fizéssemos muito barulho. Então nossa avó permitiu que usássemos o sótão para brincar. Era enorme e sujo, cheio de aranhas, camundongos e insetos. E era lá que brincávamos até que Mamãe conseguisse recuperar a boa vontade do pai e pudéssemos descer e começar a gozar a vida de crianças ricas. Todavia, logo descobrimos que nosso avô jamais perdoaria Mamãe por ter-se casado com o meio-irmão dele e que permaneceríamos “frutos do Demônio”. Teríamos que viver lá em cima até que ele morresse!

A despeito da expressão de dolorida incredulidade nos olhos do médico, prossegui:

— Como se não fosse bastante ruim vivermos trancados num quarto, com o sótão servindo de playground, logo descobrimos que nossa avó também nos odiava! Ela nos deu uma longa lista do que podíamos e não podíamos fazer. Jamais deveríamos espiar pelas janelas ou mesmo abrir as pesadas cortinas para deixar entrar alguma luz.

— A princípio, as refeições que nossa avó nos levava numa cesta de piquenique eram razoáveis, mas pioraram até constarem apenas de sanduíches, salada de batatas e galinha frita. Nunca tínhamos sobremesa, pois estragaria nossos dentes e não podíamos ir ao dentista. Naturalmente, quando chegavam nossos aniversários, Mamãe contrabandeava sorvetes e um bolo de padaria, além de dar-nos muitos presentes. Oh! Pode apostar que ela nos comprava de tudo para compensar o que nos fazia, como se livros, jogos e brinquedos pudessem compensar tudo o que estávamos perdendo: nossa saúde, a confiança em nós mesmos. E, pior que tudo, começamos a perder a confiança nela!

— Chegou um ano novo e, naquele verão, Mamãe nem mesmo nos visitou! Então, tornou a aparecer em outubro para dizer-nos que se casara pela segunda vez e passara o verão viajando pela Europa em lua-de-mel! Tive ímpetos de matá-la! Ela devia ter-nos contado, mas partira sem uma palavra de explicação! Trouxe-nos presentes caros, roupas que não se ajustavam, imaginando que isso nos compensava por tudo, quando, na verdade, não compensava nada! Afinal, consegui convencer Chris de que precisávamos encontrar uma maneira de fugir daquela casa e esquecer a herança da fortuna. Chris não queria fugir, pois julgava que nosso avô podia morrer de um dia para outro e ele queria ir para a universidade cursar a faculdade de medicina, tornando-se médico como o senhor.

— Um médico como eu... — disse o Dr. Sheffield, suspirando, os olhos cheios de simpatia e toldados por algo mais sombrio. — É uma estória estranha, Cathy, difícil de acreditar.

— Espere um minuto! — exclamei. — Ainda não terminei. Não lhe contei o pior! Nosso avô morreu e incluiu nossa mãe no testamento, para que ela herdasse a imensa fortuna, mas acrescentou um codicilo estipulando que ela jamais poderia ter filhos. Se algum dia ficasse provado que ela tivera filhos do primeiro casamento, seria obrigada a abrir mão da herança e de tudo o que tivesse comprado com aquele dinheiro!

Fiz uma pausa. Lancei um olhar a Chris, que permanecia sentado, parecendo muito pálido e fraco, fitando-me com olhos magoados e suplicantes. Mas ele não precisava preocupar-se; eu não pretendia falar de Cory. Virei-me novamente para o médico:

— Agora, quanto ao misterioso e fugidio fator que o senhor não consegue identificar, o mal que aflige Carrie, fazendo-a vomitar e a nós também, às vezes, na verdade, é muito simples. Compreenda: quando nossa mãe percebeu que jamais poderia reconhecer-nos como filhos e, ao mesmo tempo, conservar a herança, resolveu livrar-se de nós. A avó começou a colocar rosquinhas açucaradas na cesta de comida. E nós praticamente as devorávamos, sem saber que estavam cobertas de arsênico.

Portanto, eu revelara.

Rosquinhas envenenadas para adoçar nossos dias de prisão, enquanto saíamos furtivamente do quarto usando a chave de madeira fabricada por Chris. Dia a dia, durante nove meses, enquanto nos esgueirávamos até o grandioso apartamento de nossa mãe e surrupiávamos todas as notas de um e de cinco dólares que podíamos encontrar. Ao longo de quase um ano, percorremos os corredores compridos e escuros, entrando no quarto dela para roubar quanto dinheiro pudéssemos.

— Naquele único quarto trancado, doutor, nós vivemos três anos, quatro meses e dezesseis dias.

Quando terminei minha longa estória, o médico ficou muito calado, fitando-me com compaixão, choque e preocupação.

— Como vê, Doutor — disse eu, para concluir — o senhor não nos pode obrigar a procurar a polícia e contar nossa estória! Talvez jogassem a avó e nossa mãe numa cela, mas nós também sofreríamos! Não só pela publicidade, mas por nos separarem. Mandar-nos-iam para lares adotivos, ou nos colocariam sob a custódia de um tribunal e juramos permanecer juntos para sempre!

Chris fitava o chão. Falou sem erguer os olhos.

— Cuide de nossa irmã. Faça o que for necessário para curá-la. Cathy e eu daremos um jeito de saldar nossas obrigações.

— Calma, Chris — disse o médico, com seu jeito vagaroso e paciente. — Você e Cathy também ingeriram arsênico e terão que passar por alguns dos mesmos exames a que será submetida Carrie por minha ordem. Olhe só para vocês dois: magros, pálidos, debilitados. Necessitam de boa alimentação, repouso, muito ar livre e sol. Talvez eu possa fazer algo para ajudar.

— É um estranho para nós, senhor — disse Chris num tom respeitoso. — E não esperamos ou queremos a piedade ou caridade de ninguém. Cathy e eu não estamos tão doentes ou debilitados. Carrie é a mais afetada.

Cheia de indignação, girei nos calcanhares para olhar Chris com expressão furiosa. Seríamos imbecis se rejeitássemos a ajuda daquele homem bondoso só para salvar um pouco de nosso orgulho que tantas derrotas sofrera no passado. Que diferença poderia fazer mais uma vez?

—... Sim — continuou o médico, como se eu e Chris já tivéssemos concordado com sua generosa proposta de auxílio. — As despesas não são tão elevadas para um paciente de “fora” quanto para um internado — não há diárias a pagar. Agora, escutem bem: é apenas uma sugestão, que vocês têm liberdade para recusar e viajar para onde bem entenderem... A propósito, para onde estão indo?

— Para Sarasota, na Flórida — disse Chris, em tom débil. — Cathy e eu costumávamos balançar-nos nas cordas quando estávamos no sótão, de modo que imaginamos poder tornar-nos acrobatas, com alguma prática.

Parecia tolice ouvi-lo dizer aquilo em voz alta. Esperei que o médico risse, mas não o fez. Simplesmente pareceu ainda mais entristecido.

— Francamente, Chris, eu detestaria ver você e Cathy arriscarem a vida dessa maneira e, como médico, creio que não devo permitir que partam nas condições em que se encontram. Tudo em minha ética pessoal e profissional me impede de deixá-los partir sem o tratamento médico adequado. O bom senso me aconselha a manter-me distante e não dar a mínima importância ao que acontece com três garotos sozinhos. Pelo que sei, essa estória horrenda talvez não passe de um monte de mentiras destinadas a captar minha simpatia — o Dr. Sheffield sorriu bondosamente para atenuar a rudeza das palavras. — Não obstante, minha intuição me induz a acreditar no que me contaram. Suas roupas caras, os relógios e os sapatos de tênis, a palidez da pele e a expressão assediada do olhar, tudo isso testemunha em favor da verdade.

Sua voz era impressionante, hipnótica, suave e melodiosa, com um leve sotaque sulino.

— Vamos — insistiu ele, encantando-me, senão a Chris. — Esqueçam o orgulho e a caridade. Venham morar em minha casa de doze cômodos solitários. Deus deve ter colocado Henrietta naquele ônibus para conduzi-los a mim. Henny é uma excelente trabalhadora e mantém a casa imaculada, mas reclama constantemente de que doze quartos e quatro banheiros são demais para uma mulher cuidar sozinha. Lá atrás, tenho dois hectares de jardins. Pago dois jardineiros para ajudarem, pois não posso dedicar à jardinagem todo o tempo necessário.

Nesse ponto, ele fixou diretamente em Chris os olhos brilhantes.

— Você pode ajudar a pagar a hospedagem aparando os gramados, podando as sebes, preparando os canteiros para o inverno. Cathy pode cuidar da casa.

Lançou-me um olhar indagador e brincalhão, os olhos faiscando.

— Sabe cozinhar?

Cozinhar? Estaria ele brincando? Passáramos mais de três anos trancados naquele quarto do último andar e nem mesmo tínhamos uma torradeira para esquentar o pão de manhã, nem manteiga ou margarina.

— Não! — repliquei com rispidez. — Não sei cozinhar. Sou bailarina. Quando me tornar uma prima ballerina famosa, contratarei uma cozinheira, como o senhor faz. Não quero ficar prisioneira na cozinha de um homem, lavando louça para ele, tendo seus filhos, preparando sua comida! Isso não é para mim.

— Compreendo — disse ele, com o rosto inexpressivo.

— Não quero parecer ingrata — expliquei. — Farei o possível para ajudar a Sra. Beech. Até mesmo aprenderei a cozinhar para ela... e para o senhor.

— Ótimo — disse ele, os olhos risonhos lançando faíscas, sorrindo ao apoiar o queixo nas mãos. — Você vai ser uma prima ballerina e Chris um médico famoso... e vão conseguir tudo isso fugindo para a Flórida e trabalhando num circo? Naturalmente, pertenço a uma geração mais insípida e não consigo acompanhar-lhes o raciocínio. Isso faz realmente algum sentido para vocês?

Agora, que estávamos longe do quarto trancado e do sótão, à forte luz da realidade, não, aquilo não fazia sentido; parecia mais uma fantasia tola, infantil e afastada da realidade.

— Entendem que seriam obrigados a enfrentar acrobatas profissionais? — indagou o médico. — Teriam que competir com pessoas treinadas desde a infância, descendentes de longas linhagens de artistas circenses. Não seria fácil. Ainda assim, admito que exista algo nesses olhos azuis que me diz que vocês são dois jovens muito decididos e não há dúvida de que conseguirão tudo o que desejarem, desde que realmente desejem muito. Contudo, e a escola? E quanto a Carrie? O que fará ela enquanto vocês dois ficam pendurados nos trapézios? Não precisam responder — interpôs rapidamente, quando meus lábios se entreabriram para falar. — Tenho certeza de que apresentarão argumentos para convencer-me, mas devo dissuadi-los. Em primeiro lugar; precisam cuidar da própria saúde e de Carrie. A qualquer momento, um de vocês dois pode adoecer tão repentinamente quanto Carrie e ficar tão mal quanto ela. Afinal, não viviam os três juntos nas mais miseráveis condições?

“Nós quatro, não três”, sussurrou uma voz aos meus ouvidos. Mas não mencionei Cory.

— Se falou sério a respeito de acolher-nos enquanto Carrie se recupera, ficamos extremamente gratos — disse Chris, com os olhos brilhando de desconfiança. — Trabalharemos com afinco e, quando pudermos, partiremos depois de pagar-lhe cada centavo que o senhor gastar conosco.

— Falei sério. E não precisam pagar-me, exceto trabalhando na casa e no jardim. Portanto, como podem ver, não se trata de piedade ou caridade, mas apenas de um acerto comercial em benefício de todos.

 

Um Novo Lar

Foi assim que começou. Ingressamos tranqüilamente na casa do doutor e em sua vida. Nós o encampamos, compreendo agora. Tornamo-nos importantes para ele, como se nunca tivesse vivido antes de nossa chegada; isto eu também entendo agora. Ele dava a impressão de que lhe fazíamos um favor ao aliviá-lo de uma vida solitária e enfadonha com nossa presença juvenil. Fazia-nos sentir que nós éramos generosos ao compartilhar de sua vida; oh! desejávamos tanto acreditar em alguém!

Ele destinou a Carrie e a mim um quarto grandioso, com duas camas gêmeas e quatro altas janelas voltadas para o sul, duas janelas para leste e oeste. Chris e eu olhávamos com uma terrível mágoa dividida entre nós. Pela primeira vez há tanto tempo dormiríamos em quartos diferentes. Eu não queria afastar-me dele e enfrentar a noite sozinha com Carrie, a quem eu nunca poderia proteger como ele protegia. Creio que nosso médico pressentiu algo que o aconselhou a deixar-nos a sós, pois pediu licença e afastou-se na direção da outra extremidade do corredor. Só então Chris falou:

— Precisamos tomar cuidado, Cathy. Não queremos que ele desconfie...

— Não há o que desconfiar. Tudo está acabado — repliquei, mas não o encarei, adivinhando mesmo então que jamais acabaria.

Oh! Mamãe! Veja o que você começou ao colocar-nos, os quatro, num único quarto trancado e deixar-nos crescer lá dentro, sabendo como seria! Você, dentre todas as pessoas neste mundo, deveria saber!

— Não — sussurrou Chris. — Dê-me um beijo de boa-noite. Não haverá percevejos em nossas camas.

Ele me beijou, eu o beijei, dissemo-nos boa-noite e isto foi tudo. Com lágrimas nos olhos, observei meu irmão recuar ao longo do corredor, ainda olhando para mim.

Em nosso quarto, Carrie gritou bem alto:

— Não consigo dormir numa caminha pequena só para mim! — chorou. — Vou cair da cama! Cathy, por que esta cama é tão pequena?

Tudo terminou com a volta do médico e Chris ao quarto, retirando a mesinha de cabeceira que separava as camas. Então, juntaram as duas camas de solteiro, que passaram a parecer uma larga cama de casal. Isto agradou imensamente a Carrie, mas com o passar das noites, a fenda entre as duas camas foi-se alargando cada vez mais até que eu, que tinha sono agitado, acabei por acordar com uma perna e um braço enfiados na brecha, arrastando Carrie comigo para o chão.

Adorei o quarto que Paul reservara para nós. Era lindo, com papel de parede azul claro e cortinas combinando no mesmo tom. O tapete era azul, também. Cada uma de nós tinha uma poltrona com almofadas amarelo-limão e todos os móveis eram brancos, em estilo antigo. Nada sombrio. Nenhuma gravura do inferno nas paredes. Todo o inferno que eu tinha estava na mente, por recordar demais o passado. Mamãe poderia ter encontrado outra solução, se realmente desejasse! Não precisava trancar-nos naquele quarto! Foi ambição, avareza, aquela maldita herança... e Cory estava sepultado por causa da fraqueza de Mamãe!

— Esqueça, Cathy — disse Chris, quando nos despedimos outra vez.

Eu sentia um medo horrível de contar-lhe o que suspeitava. Baixei a cabeça, colando-a ao seu peito.

— Chris, cometemos um pecado, não foi?

— Não acontecerá novamente — replicou ele.

Em seguida, afastou-se de mim e saiu quase correndo pelo corredor, como se eu o perseguisse. Eu desejava levar uma vida boa, sem magoar ninguém, especialmente Chris. Mesmo assim, tive que levantar-me da cama e ir para junto de Chris. Enquanto ele dormia, esgueirei-me para a cama, deitando-me a seu lado. Chris acordou ao ouvir o rangido das molas da cama.

— Cathy, que diabo está fazendo aqui?

— Está chovendo lá fora — sussurrei. — Deixe-me ficar deitada perto de você um momento. Depois, irei embora.

Nenhum de nós dois se mexeu, ou mesmo ousou respirar. Então, sem que chegássemos a perceber como aconteceu, estávamos abraçados e ele me beijava. Beijos tão ardentes e fervorosos que me obrigaram a corresponder, embora não quisesse. Era mau e pecaminoso! Mesmo assim, eu não queria que Chris parasse. A mulher adormecida dentro de mim despertou e assumiu o comando, desejando o que Chris sentia que precisava ter; e eu, a parte pensante, calculista, empurrei-o para longe de mim.

— Que está fazendo? Pensei que você tivesse dito que isto nunca mais aconteceria.

— Você veio... — disse ele, engasgado.

— Não para isto!

— De que acha você que sou feito? De aço? Cathy, não torne a fazer isto.

Voltei para meu quarto e chorei na cama, pois ele estava na outra extremidade do corredor e não perto de mim, para acordar-me se eu tivesse um pesadelo. Ninguém para me reconfortar. Ninguém para me dar forças. Então, as palavras de minha mãe voltaram a perseguir-me com uma idéia horrível: seria eu tão igual a ela? Crescera para ser uma mulher fraca, do tipo parasita, que necessita sempre de um homem para protegê-la? Não! Eu era auto-suficiente!

Creio que foi no dia seguinte que o Dr. Paul me trouxe quatro quadros para pendurar no quarto. Bailarinas em quatro posições diferentes. Para Carrie, ele trouxe uma jarra de vidro fosco cheia de delicadas violetas plásticas. Já tomara conhecimento da paixão de Carrie por roxo e vermelho.

— Façam o que quiserem para deixar o quarto a seu gosto — disse ele. — Se não gostam das cores, mudaremos tudo na primavera.

Fitei-o, espantada. Na primavera não mais estaríamos ali.

Carrie ficou sentada, segurando sua jarra de violetas, enquanto eu me obriguei a dizer o que devia.

— Dr. Paul, não estaremos mais aqui na primavera, de modo que não nos podemos dar ao luxo de nos apegarmos demais aos quartos que o senhor nos destinou.

Ele estava junto à porta, prestes a sair, mas parou e virou-se para me olhar. Era alto, com um metro e oitenta e cinco, ou mais; tinha ombros tão largos que quase ocupavam toda a porta.

— Julguei que gostassem daqui — disse num tom tristonho, os olhos escuros desolados.

— Eu gosto daqui! — respondi depressa. — Todos nós gostamos daqui, mas não devemos abusar para sempre da sua bondade.

Ele meneou a cabeça, sem responder, e saiu. Virei-me e percebi que Carrie me fitava com uma boa dose de animosidade.

O doutor levava diariamente Carrie consigo ao hospital. No início, ela chorava e se recusava a ir a menos que eu a acompanhasse. Inventava estórias fantásticas a respeito do que lhe faziam no hospital e reclamava da quantidade de perguntas que lhe faziam.

— Carrie, você bem sabe que nunca mentimos. Nós três sempre dizemos a verdade uns aos outros, mas não contamos a todo mundo nossa vida naquele quarto. Entendeu?

Ela me encarou com os grandes olhos assustados.

— Não contei a ninguém que Cory foi embora para o céu e me abandonou. Não contei a ninguém, a não ser ao Dr. Paul.

— Contou a ele?

— Não pude deixar de contar, Cathy — disse Carrie, enterrando o rosto no travesseiro e começando a chorar.

Portanto, agora o Dr. Paul sabia a respeito de Cory e de como este morrera no hospital, supostamente de pneumonia. Seus olhos estavam cheios de profunda tristeza naquela noite, quando ele interrogou Chris e a mim, desejando conhecer todos os detalhes da doença de Cory, que resultara em sua morte.

Chris e eu estávamos aconchegados um de encontro ao outro no sofá da sala de visitas quando Paul disse:

— Fico muito feliz por comunicar-lhes que o arsênico não causou qualquer dano permanente aos órgãos de Carrie, como temíamos a princípio. Ora, não fiquem assim. Não revelei o segredo de vocês, mas tive que dizer aos técnicos do laboratório o que deveriam pesquisar. Inventei uma estória a respeito de vocês terem ingerido o veneno acidentalmente; disse também que seus pais eram meus amigos e que eu estava pensando seriamente em assumir a responsabilidade legal de tutor de todos três.

— Carrie ficará boa? — sussurrei, sufocada de alívio.

— Sim, ela ficará boa — desde que não se pendure em trapézios — respondeu ele com um sorriso. — Marquei hora para vocês dois serem examinados amanhã por mim, a menos que tenham alguma objeção.

Oh! Eu tinha objeções! Não estava disposta a despir-me e permitir que ele me apalpasse, mesmo que houvesse uma enfermeira na sala. Chris me afirmara ser tolice pensar que um médico de quarenta anos tivesse algum prazer erótico ao olhar para uma garota da minha idade. Mas, ao fazer tal afirmativa, estava olhando para o outro lado. Portanto, como poderia eu saber o que ele realmente pensava a respeito?

Talvez Chris tivesse razão, pois quando fiquei deitada na mesa de exames, nua e coberta com um roupão de papel, o Dr. Paul não parecia o mesmo homem que me olhava quando estávamos na parte residencial da casa. Fez comigo o mesmo que fizera com Carrie, mas insistiu num número ainda maior de perguntas. Perguntas embaraçosas.

— Já ficou sem menstruação por mais de dois meses?

— Na verdade, nunca fui regular! Comecei aos doze anos e duas vezes fiquei sem menstruação de três a seis meses. Preocupava-me com isso, mas Chris leu a respeito num dos livros de medicina que Mamãe comprara para ele e me explicou que excesso de ansiedades e de tensões podem acarretar essa irregularidade. O senhor não acha... quero dizer... não há nada errado comigo, não é?

— Não que eu possa perceber. Você me parece bastante normal. Apenas magra demais, muito pálida e ligeiramente anêmica. Chris também, embora, por ser do sexo masculino, menos que você. Vou receitar vitaminas especiais para todos três.

Fiquei aliviada quando tudo terminou e pude vestir-me e escapar daquele consultório onde as mulheres que trabalhavam para o Dr. Paul me olhavam de modo tão esquisito. Corri de volta à cozinha. A Sra. Beech estava preparando o jantar. Seu sorriso brilhou amplamente quando entrei, iluminando a cara de lua coberta por uma pele tão negra e lisa como borracha lubrificada. Os dentes que ela exibia eram os mais alvos e perfeitos que eu já vira.

— Puxa vida! Graças a Deus, terminou! — exclamei, deixando-me cair numa cadeira e pegando uma faca para descascar batatas. — Não gosto de ter médicos me cutucando. Gosto mais do Dr. Paul quando ele é apenas um homem como os outros. Quando ele veste aquele comprido avental branco, parece colocar também uma viseira sobre os olhos. Então, não posso perceber o que está pensando. E sou muito boa leitora de olhares, Sra. Beech.

Ela sorriu para mim com fingida malícia e tirou um bloquinho cor-de-rosa do grande bolso quadrado do avental branco engomado. Com o avental amarrado em torno do corpo, parecia mais um acolchoado de penas de ganso enrolado, vagando mudamente de um lado para outro. A essa altura, eu já sabia que ela sofria de mudez congênita. Embora estivesse procurando ensinar-nos sua linguagem de mímica, nenhum de nós ainda aprendera o suficiente para conversar com rapidez. Creio que eu gostava demais dos bilhetes que ela redigia, escritos com a rapidez do raio, num estilo muito abreviado.

— O Doutor diz que jovens precisam de muitas frutas e legumes frescos, bastante carne magra, mas devagar com amidos e sobremesas. Quer que ganhem músculos e não banha.

Já havíamos ganho um pouco de peso nas duas semanas em que comemos os deliciosos quitutes da Sra. Beech, até mesmo Carrie, que era tão malditamente cheia de “não-me-toques”. Agora, comia com entusiasmo, o que era algo notável para uma criança como ela.

Então, enquanto eu continuava a descascar as batatas, a Sra. Beech redigiu outro bilhete, quando seus sinais fracassaram em mais uma tentativa de comunicação.

“Menina-Fada, de agora em diante sou apenas Henny. Nada de Sra. Beech.”

Ela era a primeira pessoa de cor que eu conhecera e, embora a princípio eu me sentisse pouco à vontade e levemente temerosa em sua presença, duas semanas de intimidade me haviam ensinado muito. Tratava-se apenas de um ser humano de outra raça e cor diferente, com as mesmas sensibilidades, esperanças e temores que todos nós.

Eu adorava Henny, seus largos sorrisos, seus amplos e esvoaçantes vestidos estampados com flores de cores berrantes, e, acima de tudo, adorava a sabedoria que suas pequenas folhas de papel colorido transmitiam. Eventualmente, aprendi a compreender sua linguagem de mímica, embora nunca me tenha aperfeiçoado nela tanto quanto “o filho médico” de Henny.

Paul Scott Sheffield era um homem estranho. Freqüentemente parecia triste quando não havia motivo aparente para entristecer-se. Então, sorria:

— Sim, Deus prestou um grande favor a Henny e a mim quando colocou vocês três naquele ônibus. Perdi uma família, chorei muito por ela, mas o destino foi muito bondoso ao enviar-me outra família, feita sob medida.

— Chris — disse eu naquela noite, quando nos separamos com relutância. — Quando vivíamos trancados, você era o homem, o chefe da casa... Às vezes sinto uma coisa esquisita ao ver o Dr. Paul por perto, observando o que fazemos e escutando o que dizemos.

Chris corou.

— Eu sei; ele está tomando meu lugar. Para ser sincero, — aqui ele fez uma breve pausa e ficou ainda mais vermelho — não me agrada vê-lo tomar meu lugar em sua vida, Cathy, mas sou muito grato pelo que ele fez em favor de Carrie.

De certo modo, tudo o que nosso “doutor” fizera por nós tornava Mamãe mil vezes pior. Dez mil vezes pior!

O dia seguinte foi aniversário de Chris; jamais conseguirei esquecer. Surpreendi-me ao verificar que o médico planejara uma festa com muitos presentes ótimos, que trouxeram um novo brilho aos olhos de Chris, mas logo os toldaram com o sentimento de culpa que nos dominava. Já tínhamos aceitado demais. Já fazíamos planos para partir dentro em breve. Simplesmente não podíamos permanecer, aproveitando-nos da bondade do Dr. Paul, agora que Carrie já estava bem e podia viajar.

Depois da festa, Chris e eu nos sentamos na varanda dos fundos, ruminando o assunto. Um olhar ao rosto de meu irmão bastou-me para perceber que ele não desejava abandonar o único homem que podia e haveria de ajudá-lo a alcançar seu objetivo de formar-se em medicina.

— Realmente não me agrada o modo como ele não pára de olhar você, Cathy. O olhar dele a acompanha por toda parte. Aqui está você, tão disponível, e homens da idade dele acham garotas da sua idade irresistíveis.

Era mesmo? Que fascinante saber disso!

— Mas os médicos têm muitas enfermeiras a seu dispor — respondi sem muita convicção, sabendo que seria capaz de qualquer coisa, menos matar alguém, para ver Chris atingir seu objetivo. — Lembra-se do dia em que aqui chegamos? Ele falou no tipo de competição que enfrentaríamos no circo. E está com a razão, Chris: não podemos trabalhar num circo. Isso não passa de um sonho tolo.

Chris franziu a testa, fitando o espaço.

— Sei de tudo isso.

— Chris, ele é apenas solitário. Talvez olhe para mim apenas porque não tem algo mais interessante para observar.

Não obstante, fascinava-me saber que homens de quarenta anos eram suscetíveis aos encantos de garotas de quinze. Como era maravilhoso exercer sobre eles o mesmo poder que minha mãe!

— Chris, se o Dr. Paul disser a coisa certa... quero dizer, se ele real e sinceramente nos quiser aqui, você ficará?

Ainda com a testa franzida, ele olhou para as sebes que aparara tão recentemente. Depois de refletir bastante, respondeu devagar:

— Vamos testá-lo. Se lhe dissermos que vamos partir e ele não levantar objeções, será um modo delicado de nos dar conhecimento de que realmente não se importa.

— Acha justo testá-lo dessa maneira?

— Sim. É uma ótima forma de dar-lhe a oportunidade de livrar-se de nós sem sentir remorsos. Você sabe, gente como ele muitas vezes pratica boas ações porque se acha no dever disso e não porque realmente deseja agir assim.

— Oh!...

Não éramos dados a procrastinar. Na noite seguinte, depois do jantar, o Dr. Paul veio juntar-se a nós na varanda dos fundos. Eu já o chamava simplesmente de Paul em meus pensamentos, tornando-me íntima, gostando dele cada vez mais por mostrar-se tão naturalmente elegante, limpo, educado, ao sentar-se na predileta cadeira de balanço de vime pintada de branco, usando um suéter vermelho tricotado à mão, calças esporte cinzentas, e tirando baforadas sonhadoras do cigarro. Nós três também usávamos suéteres, pois a noite estava fria. Chris sentou-se a meu lado, empoleirado na balaustrada, enquanto Carrie permanecia agachada no último degrau da escada. Os jardins de Paul eram fabulosos. Rasos degraus de mármore, com três metros de largura, levavam a um nível inferior, de onde outros degraus subiam para um local mais elevado. Havia uma pequena ponte japonesa laqueada de vermelho, arqueando-se sobre um pequeno riacho. Estátuas de mulheres e homens nus colocadas a esmo davam aos jardins uma atmosfera de sedução, de sensualidade. Eram nus clássicos, graciosos e em poses elegantes, mas, ainda assim... ainda assim... eu sabia muito bem para que servia aquele jardim, pois já estivera ali muitas vezes, anteriormente, em meus sonhos.

Enquanto o vento se tornava mais frio e começava a soprar as folhas mortas de um lado para outro, o médico nos contou que viajava para o exterior em anos alternados, a fim de procurar as lindas estátuas de mármore e despachá-las para casa, aumentando a coleção. Na última vez, tivera a sorte de encontrar uma cópia em tamanho natural de O Beijo, de Rodin.

Suspirei com o vento. Não desejava partir. Gostava de ficar ali com Paul, com Henny, com os jardins que me encantavam e faziam-me sentir fascinante, linda, desejável.

— Portanto, todas as minhas rosas são de espécies antigas, que não tiveram o aroma deturpado pelos cruzamentos e enxertos — disse o Dr. Paul. — Para que ter rosas se não possuírem perfume?

À luz esmaecida e purpúrea do crepúsculo, seus olhos cintilantes encontraram os meus. Minhas pulsações se aceleraram, obrigando-me a suspirar outra vez. Imaginei como teria sido a esposa de Paul e como seria sentir-se amada por alguém como ele. Com um sentimento de culpa, desviei os olhos de seu olhar prolongado e perscrutador, temerosa de que ele percebesse meus pensamentos.

— Parece perturbada, Cathy. Por quê?

A pergunta parecia zombar de mim, como se ele já conhecesse meus segredos. Chris virou a cabeça para lançar-me um duro olhar de advertência.

— Estava observando seu suéter vermelho — respondi tolamente. — Foi Henny quem o fez?

Paul riu baixinho, baixando os olhos para o belo suéter.

— Não, não foi Henny. Minha irmã mais velha o tricotou como presente de aniversário e o enviou pelo correio. Ela mora no outro lado da cidade.

— Por que enviou o presente pelo correio, em vez de trazê-lo pessoalmente? — perguntei. — E pior, por que não nos contou que fez aniversário? Nós também lhe daríamos presentes.

— Bem — começou ele, acomodando-se na cadeira e cruzando as pernas. — Meu aniversário foi pouco antes de vocês chegarem. Fiz quarenta anos, caso Henny ainda não lhes tenha contado. Faz treze anos que estou viúvo e minha irmã, Amanda, não fala comigo desde o dia em que minha esposa e filho morreram num acidente.

Sua voz foi sumindo aos poucos e ele fitou o espaço com ar pensativo, solene, distante.

Folhas mortas corriam pelo gramado, subiam pelo alpendre e vinham parar aos meus pés, como patinhos escuros e ressecados. Tudo aquilo me levou de volta a uma certa noite proibida, em que Chris e eu rezamos tão desesperadamente, encolhidos nas telhas frias de ardósia, sob uma lua que parecia o olho irado de Deus. Haveria um preço a pagar por apenas um terrível pecado cometido? Haveria? A avó se apressaria em responder: “Sim! Vocês merecem o pior dos castigos! Filhos do Demônio, eu já sabia!”

E enquanto eu me debatia interiormente, Chris tomou a palavra:

— Doutor, Cathy e eu estivemos conversando e achamos que agora, que Carrie já melhorou, devemos seguir nosso caminho. Agradecemos profundamente tudo o que o senhor fez por nós e pretendemos pagar-lhe cada centavo, embora isto talvez nos leve alguns anos...

Os dedos de Chris apertaram os meus, prevenindo-me para não dizer algo diferente:

— Um momento, Chris — interrompeu o Dr. Paul, empertigando-se bruscamente na cadeira e plantando solidamente os pés no chão. Era óbvio que levava a sério a situação.

— Não julguem, por um segundo sequer, que eu não percebi que este momento estava prestes a chegar. Tenho temido cada amanhecer, receoso de acordar e verificar que vocês se foram. Estive pesquisando as possibilidades de assumir a tutela de vocês três. E verifiquei que não é tão complicado quanto eu imaginava. Ao que parece, a maioria das crianças que fogem de casa alegam ser órfãs, de modo que vocês precisam fornecer-me provas de que seu pai morreu realmente. Se ele estiver vivo, necessitarei do seu consentimento, bem como do de sua mãe.

Sufoquei-me! O consentimento de minha mãe! Isso significava que teríamos que vê-la outra vez! Eu não a queria ver, nunca mais!

Ele prosseguiu, com olhar suave ao perceber meu constrangimento:

— O tribunal intimaria sua mãe a comparecer a uma audiência. Se ela residisse neste estado, teria que cumprir a intimação num prazo de três dias, mas como mora na Virgínia terá prazo de três semanas. Se ela não comparecer, ao invés de conceder-me a tutela temporária de vocês, o tribunal me garantirá a tutela permanente, mas só se vocês estiverem dispostos a declarar que tenho feito um bom trabalho como seu guardião.

— Tem sido maravilhoso! — exclamei. — Mas ela não virá! Se alguém descobrir que existimos, ela perderá toda aquela fortuna. Portanto, quer manter-nos em segredo! O marido também poderia ficar contra ela se soubesse que nos escondeu dele. Pode apostar o que quiser como conseguirá a tutela permanente, se assim desejar e talvez termine arrependido disso!

A mão de Chris apertou ainda mais a minha e Carrie ergueu os olhos grandes e amedrontados.

— Dentro de poucas semanas, chegará o Natal. Vão permitir que eu passe mais um feriado solitário, sozinho nesta casa? Já faz quase três semanas que estão aqui e expliquei a todos que perguntaram, que vocês são filhos de um parente meu que faleceu há pouco tempo. Não estou mergulhando às cegas nesta situação. Henny e eu pensamos muito sobre o assunto. Ela acha, assim como eu, que vocês são um grande benefício para nós. Queremos ambos que vocês três permaneçam aqui. Ter gente jovem na casa faz com que esta se assemelhe mais a um verdadeiro lar. Sinto-me mais saudável do que me sentia há anos; e mais feliz, também. Desde a morte de minha esposa e filho, tenho sentido falta de uma família. Durante todo este tempo, nunca me acostumei novamente a ser solteiro — seu tom persuasivo tornou-se tristonho. — Sinto que o destino quer que eu tenha a custódia de vocês. Sinto que Deus planejou a presença de Henny naquele ônibus, a fim de que pudesse trazê-los para mim. E quando o destino se intromete e assume as decisões, quem sou eu para recusar? Aceito o fato de que vocês três são um auxílio enviado por Deus para que eu compense os erros que cometi no passado.

Puxa! Enviados por Deus! Eu estava praticamente convencida. Sabia que as pessoas sempre conseguem encontrar a motivação que justifique seus desejos; oh! como eu sabia bem disso! Mesmo assim, as lágrimas me assomaram aos olhos quando fitei Chris numa interrogação muda. Ele enfrentou meu olhar e sacudiu a cabeça, confuso, sem saber ao certo o que eu desejava. Sua mão apertou a minha como uma garra de aço enquanto ele disse, olhando para mim e não para o Dr. Paul:

— Sentimos muito que tenha perdido a esposa e o filho, senhor. Mas não podemos substituí-los e não sei se estaríamos agindo certo ao sobrecarregá-lo com as despesas de três crianças que não são seus filhos.

Então, fitando o médico diretamente nos olhos, acrescentou:

— E existe algo mais em que o senhor deve pensar; será muito difícil conseguir outra esposa quando assumir nossa tutela.

— Não pretendo casar-me outra vez — disse o Dr. Paul num tom estranho, prosseguindo com ar abstrato: — Minha esposa se chamava Júlia e meu filho Scotty. Tinha apenas três anos quando morreu.

— Oh! — sussurrei. — Como deve ser horrível perder um filho tão pequeno, além da esposa, também!

O evidente remorso e sofrimento do Dr. Paul me tocaram; eu sintonizava perfeitamente com os que sofriam.

— Morreram num acidente, um acidente de automóvel, como nosso pai? — indaguei.

— Num acidente — respondeu ele bruscamente. — Mas não de automóvel.

— Nosso pai tinha apenas trinta e seis anos quando morreu; tínhamos preparado uma festa surpresa de aniversário, com bolo, presentes... mas ele não chegou... apenas dois patrulheiros rodoviários...

— Sim, Cathy — disse ele suavemente. — Você me contou. Os anos de adolescência não são fáceis para ninguém. Ser jovem e sozinho, sem instrução adequada, com pouco dinheiro, sem família, sem amigos...

— Temos um ao outro — declarou Chris em tom firme, como se para testá-lo ainda mais. — Portanto, nunca ficaremos verdadeiramente sozinhos.

Paul prosseguiu:

— Se não me querem e o que tenho para lhes oferecer não é o bastante, sigam para a Flórida com as minhas bênçãos. Jogue fora todas as longas horas que passou estudando, Chris, justamente quando está quase atingindo sua meta. E você, Cathy, pode esquecer o sonho de tornar-se uma prima ballerina. E não julguem, por um segundo que seja, que será uma vida saudável e feliz para Carrie. Não estou procurando persuadi-los a ficar, pois farão o que desejam e o que têm de fazer. Portanto, decidam: ou ficam comigo e a oportunidade de realizarem suas aspirações, ou partem para enfrentar um mundo cruel e desconhecido.

Fiquei sentada na balaustrada, o mais perto possível de Chris, minha mão na dele. Eu queria ficar. Queria o que o médico poderia proporcionar a Chris, para não falar em Carrie e em mim.

As brisas do sul continuavam a soprar, acariciando-me o rosto, sussurrando de modo mais que convincente que tudo daria certo. Eu podia escutar os movimentos de Henny na cozinha, preparando massa fresca para os pães que comeríamos na manhã seguinte, dourados com manteiga derretida. Manteiga era uma das coisas que nos tinham sido negadas e o luxo do qual Chris sentia maior falta.

Tudo ali me encantava: o ar, o brilho suave e cálido nos olhos do médico. Até mesmo o barulho que Henny fazia com as panelas tinha um efeito mágico em meu coração que, de tão sobrecarregado durante tão longo tempo, começou a parecer mais leve. Talvez a perfeição existisse fora dos contos de fadas. Talvez fôssemos suficientemente bons para andar eretos e orgulhosos sob o céu azul criado por Deus; talvez não fôssemos brotos contaminados, produzidos pela semente errada plantada em solo errado.

E, mais do que tudo que o médico dissera, mais do que insinuavam seus olhos cintilantes, creio que foram as roseiras ainda em flor, apesar de estarmos no inverno, que me provocaram uma sensação de tonteira com a avassaladora doçura de seu perfume.

Mas não fomos Chris e eu que decidimos. Foi Carrie. De repente, ergueu-se de um salto do último degrau e voou para os braços estendidos do médico. Jogou-se contra ele, enlaçando-lhe o pescoço com os bracinhos magros.

— Não quero ir! Eu amo o senhor, Dr. Paul! — gritou, quase frenética. – Não quero nada de Flórida! Não quero nada de circo! Não quero ir para lugar nenhum!

Então, começou a chorar, desabafando sua dor por causa de Cory, reprimida por tanto tempo. O Dr. Paul ergueu-a, segurando-a no colo, beijando-lhe o rosto molhado de lágrimas antes de usar o lenço para enxugá-las.

— Eu também amo você, Carrie. Sempre desejei uma garotinha de cachos dourados e grandes olhos azuis, como os seus.

Mas ele não olhou para Carrie. Falou olhando para mim.

— E quero ficar aqui para o Natal — soluçou Carrie. — Nunca vi Papai Noel, nem uma vez.

Claro que vira, havia anos, quando nossos pais levaram os gêmeos a uma grande loja de departamentos e Papai tirou uma fotografia dos dois no colo de Papai Noel. Mas talvez Carrie tivesse esquecido.

Como era possível um desconhecido entrar tão facilmente em nossas vidas, dando-nos tanto amor, quando nossos próprios parentes consangüíneos tinham procurado dar-nos a morte?

 

A segunda oportunidade da vida

Carrie decidira. Ficamos. Mesmo que ela não tivesse decidido, ficaríamos. Como poderíamos deixar de fazê-lo?

Tentamos dar ao Dr. Paul o dinheiro que nos restava. Ele recusou:

— Guardem o dinheiro para vocês. Tiveram muito trabalho para consegui-lo, não foi? E acho melhor saberem que já falei com meu advogado: ele redigirá as petições para que sua mãe seja intimada a vir até Clairmont. Sei que vocês acreditam que ela não virá, mas nunca se pode ter certeza. Se eu tiver a sorte de receber a custódia permanente de vocês, darei a cada um uma mesada, que será dividida em parcelas semanais. Ninguém consegue ficar livre e feliz sem algum dinheiro no bolso. A maioria de meus colegas dá aos filhos adolescentes cinco dólares por semana. Três dólares devem bastar para uma menina da idade de Carrie.

O Dr. Paul tencionava comprar todas as nossas roupas e tudo o que precisássemos para freqüentarmos a escola. Só conseguimos fitá-lo, boquiabertos, perplexos por ser ele tão generoso conosco outra vez.

Poucos dias antes do Natal, ele nos levou a um centro comercial atapetado de vermelho; o teto era uma cúpula de vidro; gente fervilhava por toda parte, enquanto o sistema de alto-falantes tocava músicas natalinas em estilo “pop”. Era como um conto de fadas! Eu estava fascinada; o mesmo acontecia a Chris, Carrie e ao nosso Doutor, cuja mão enorme segurava a minúscula mão de Carrie, enquanto eu e Chris andávamos de mãos dadas. Percebi que ele nos observava, saboreando nossos olhares espantados. Ficamos encantados, atônitos, impressionados, desejando muitas coisas e temerosos de que ele, ao perceber, tentasse satisfazer todos os nossos anseios.

Chegando ao departamento que vendia roupas para moças adolescentes, passei a andar em círculos. Atordoada e esfuziada por tanta coisa, olhava isso e aquilo, incapaz de decidir o que comprar quando tudo era tão bonito e eu jamais tivera anteriormente uma oportunidade de fazer compras para mim mesma. Chris riu de minha indecisão.

— Vá em frente — disse-me ele. — Agora que tem a oportunidade para vestir-se bem, experimente tudo que gostar.

Eu sabia o que ele estava pensando, pois era meu costume reclamar de que Mamãe nunca comprava roupas que me caíssem corretamente.

Com extremo cuidado, selecionei parcimoniosamente as roupas que julguei adequadas para a escola, cujas aulas se iniciariam, para nós, em janeiro. Além disso, eu precisava de um casaco, sapatos de verdade, uma capa e chapéu de chuva, bem como um guarda-chuva. Tudo que aquele homem generoso e bem intencionado me permitia comprar causava-me sentimento de culpa, como se nos estivéssemos aproveitando dele.

A fim de recompensar minha lentidão e relutância em comprar exageradamente, Paul declarou num tom impaciente:

— Pelo amor de Deus, Cathy! Não julgue que faremos compras assim todas as semanas. Quero que vocês façam hoje as compras para todo o inverno. Chris, enquanto terminamos aqui, corra ao departamento juvenil masculino e comece a escolher o que deseja. Enquanto você faz isso, Cathy e eu podemos escolher para Carrie as roupas de que ela necessita.

Percebi que todas as adolescentes na loja se voltavam a fim de olhar para meu irmão quando este se encaminhou ao departamento juvenil masculino.

Afinal, seríamos crianças normais. Então, quando eu já começava a me sentir relativamente segura, Carrie soltou um grito capaz de rachar todos os palácios de cristal em Londres! Seus berros abalaram as balconistas, assustaram os fregueses, e uma senhora esbarrou com o carrinho de bebê contra um manequim, que caiu fragorosamente. O bebê no carrinho juntou seus berros aos gritos de Carrie!

Chris veio correndo para ver quem tentava assassinar sua irmãzinha. Esta se mantinha ereta, com os pés afastados um do outro, a cabeça atirada para trás, lágrimas de frustração escorrendo pelo rosto.

— Meu Deus! Que aconteceu agora? — indagou Chris, enquanto o nosso médico permanecia estático, perplexo.

Homens... o que sabiam eles, afinal? Obviamente, Carrie sentia-se injuriada pelos lindos vestidinhos em tons pastéis que lhe apresentavam para aprovação. Roupas de bebês, eis o problema. Mesmo assim, todos eram grandes demais para ela e, além disso, nenhum tinha cor vermelha ou roxa; estavam absolutamente fora do estilo de Carrie!

— Tentem no departamento de bebês — sugeriu a loura impiedosa e petulante, com o cabelo penteado em forma de casa de marimbondos.

Sorriu graciosamente para o nosso doutor, que pareceu encabulado.

Carrie tinha oito anos! A simples menção de “roupas de bebê” era insultuosa! Ela franziu o rosto até parecer uma ameixa murcha.

— Não posso ir à escola com roupas de bebê! — continuou a chorar, com o rosto comprimido em minha coxa e agarrando-se às minhas pernas. — Cathy, não me obrigue a usar vestidinhos rosa ou azuis de bebê! Todo mundo vai zombar de mim! Sei que vai! Quero roxo, vermelho, nada de cores de bebês!

O Dr. Paul procurou consolá-la.

— Querida, eu adoro garotas louras de olhos azuis com roupas em tons pastéis. Portanto, por que não espera até crescer mais um pouco para usar cores brilhantes?

Tom meloso como aquele era coisa que alguém tão teimoso quanto Carrie simplesmente não conseguia engolir. Seus olhos faiscaram e ela cerrou os punhos, preparando-se para desferir pontapés e aprontando as cordas vocais para berrar, quando uma senhora gorda que devia ter uma neta com o gênio de Carrie sugeriu calmamente que esta podia ter roupas feitas sob medida. Carrie hesitou, insegura, olhando alternadamente de mim para o Dr. Paul, depois de Chris para a balconista.

— Uma solução perfeita! — exclamou o Dr. Paul entusiasticamente, parecendo aliviado. — Vou comprar uma máquina de costura e Cathy poderá fazer roupas roxas, vermelhas e azuis brilhantes. Você ficará arrasadora!

— Não quero ficar arrasadora! — quero apenas cores brilhantes.

Carrie fez beicinho e eu fiquei boquiaberta. Eu era uma bailarina, não uma costureira! (Algo que não escapou à observação de Carrie).

— Cathy não sabe fazer boas roupas — declarou ela. — Cathy só sabe dançar.

Quanta lealdade! A mim, que ensinara Cory e Carrie a escrever, com pouco auxílio por parte de Chris!

— O que há com você, Carrie? — indagou rispidamente Chris. — Porta-se como um bebê. Cathy é capaz de fazer tudo o que lhe der na cabeça — nunca se esqueça disso!

O médico concordou prontamente. Permaneci calada enquanto fomos procurar uma máquina de costura elétrica.

— Enquanto isso, porém, que tal comprarmos alguns vestidos amarelos, azuis e cor-de-rosa, heim, Carrie? — sorriu o Dr. Paul, com ar zombeteiro. — E Cathy poderá economizar-me muito dinheiro fazendo roupas para ela, também.

A despeito da costura que eu teria de aprender, aquele dia foi celestial para nós. Voltamos para casa, carregados de presentes, após nos embelezarmos em barbeiros e salões de cabeleireiros. Cada um de nós usava sapatos novos, com solas de couro. Eu ganhara meu primeiro par de sandálias de salto alto e uma dúzia de pares de meias de nylon! Minhas primeiras meias de nylon, meu primeiro sutiã e, além de tudo isso, uma sacola de compras cheia de cosméticos! Eu levara uma eternidade para escolher os artigos de maquilagem, enquanto o Dr. Paul se mantinha de lado, observando-me com a mais estranha das expressões.

Chris resmungara que eu não precisava de ruge ou batom, nem de sombra ou delineador, nem de base.

— Você nada sabe a respeito de ser uma garota — repliquei com ar de superioridade.

Era minha primeira expedição para compras e, por Deus!, pretendia aproveitar-me ao máximo dela! Tinha que comprar tudo o que vira na fabulosa penteadeira de Mamãe. Até mesmo o tipo de creme contra rugas que ela usava, bem como um preparado de lama para firmeza da pele.

Mal saltamos do carro e terminamos de descarregar os presentes, Chris, Carrie e eu corremos ao andar de cima para experimentarmos todas as nossas roupas novas. Engraçado como anteriormente ganhávamos roupas novas com tanta facilidade e não nos sentíamos tão felizes como agora. Naquela época não havia ninguém para apreciá-las. Não obstante, sendo eu o que era, lembrei-me de Mamãe quando vesti o vestido de veludo azul com minúsculos botões na frente. Quanta ironia eu sentir vontade de chorar pela mãe que perdêramos e a quem eu estava decidida a odiar para sempre! Sentei-me na beirada da cama e refleti sobre o assunto. Mamãe nos dava roupas novas, jogos e brinquedos, movida pelo remorso do que nos estava fazendo, privando-nos de uma infância normal. Uma infância que jamais teríamos oportunidade para recuperar. Anos perdidos, alguns dos melhores anos da vida e Cory numa sepultura, sem roupas novas.

O violão de Cory estava no canto, onde Carrie podia acordar e vê-lo ao lado do banjo. Por que éramos sempre nós quem sofríamos? Por que não nossa mãe? Então, tive uma súbita lembrança! Bart Winslow era da Carolina do Sul! Desci correndo à biblioteca do nosso médico e tomei emprestado seu grande Atlas geográfico. Voltei correndo ao quarto e procurei o mapa da Carolina do Sul. Encontrei Clairmont... mas mal acreditei em meus olhos ao verificar que era uma cidade vizinha a Greenglenna! Não, era coincidência demais... ou não seria? Ergui os olhos e fitei o espaço. Deus nos levara a morar ali, perto de Mamãe, se ela alguma vez visitasse a cidade natal do marido. Deus quisera dar-me a oportunidade de também causar sofrimento. Tão logo me fosse possível, eu iria a Greenglenna colher todas as informações disponíveis a respeito de Bart Winslow e sua família. Eu ganhava cinco dólares semanais, dava para fazer uma assinatura do jornal comunitário que relatava todas as atividades sociais das pessoas ricas que residiam nas proximidades de Foxworth Hall.

Sim, eu fugira de Foxworth Hall, mas tomaria conhecimento de cada movimento feito por nossa mãe e, quando ela viesse à Carolina do Sul, eu saberia! Mais cedo ou mais tarde, Mamãe ouviria falar de mim e ficaria sabendo que eu nunca, jamais esqueceria ou perdoaria. De algum jeito ou maneira, ela sofreria dez vezes mais do que havíamos sofrido!

Tendo chegado a essa decisão, fiquei livre para juntar-me a Chris e Carrie na sala de visitas, a fim de desfilar todas as nossas roupas novas diante do Dr. Paul e de Henny. O sorriso de Henny brilhava como o sol de verão. Observei os olhos bonitos de nosso benfeitor e percebi neles uma sombra. Olhava-nos com a testa franzida, pensativo, sem demonstrar admiração ou aprovação. De repente, levantou se e saiu da sala, apresentando a esfarrapada desculpa de precisar tratar de alguns papéis.

Logo Henny tornou-se minha mentora em todos os assuntos domésticos. Ensinou-me a fazer biscoitos, inclusive a massa, e tentou conseguir que eu fizesse pães leves e fofos. Bum! O punho de Henny batia na massa. Então, limpou a farinha de trigo das mãos e rabiscou um bilhete: “A vista de Henny está fraca para enxergar coisas pequenas, como buracos de agulha. Você tem boa vista. Pregue os botões que faltam nas camisas do filho médico, está bem?”

— Claro — concordei sem entusiasmo. — Consigo enxergar buracos de agulha e também sei fazer tricô, crochê, bordado de crivo e de lã. Minha mãe me ensinou a fazer todas essas coisas para manter-me ocupada.

De repente, não consegui mais falar. Tive vontade de chorar. Vi o lindo rosto de minha mãe. Vi Papai. Vi Chris e eu quando crianças, correndo ao voltarmos da escola, entrando em casa com neve nos ombros e encontrando Mamãe a tricotar roupinhas de bebê para os gêmeos. Não pude deixar de encostar a testa no colo de Henny e chorar, chorar de verdade. Henny não podia falar, mas sua mão suave no meu ombro demonstrou que ela compreendia. Quando ergui os olhos, percebi que ela também chorava. Grandes lágrimas lhe escorriam pelo rosto, pingando no berrante vestido vermelho.

— Não chore, Henny. Será um prazer pregar os botões nas camisas do Dr. Paul. Ele nos salvou a vida e não existe nada que eu não seja capaz de fazer por ele.

Henny lançou-me um olhar estranho e depois foi buscar um monte de roupas para costurar e cerca de doze camisas nas quais faltavam botões.

Chris passava cada momento disponível em companhia do Dr. Paul, que lhe dava lições para que ele pudesse ingressar num curso especial de preparação para a faculdade de Medicina, no meio do ano letivo. Carrie era nosso maior problema. Sabia ler e escrever, mas era muito franzina. Como se daria numa escola pública, onde as crianças nem sempre são bondosas?

— Pretendo matricular Carrie numa escola particular — explicou o nosso médico. — Uma ótima escola para meninas, dirigida por uma excelente equipe. Já que faço parte da junta diretora, creio que Carrie receberá uma atenção especial e não será submetida a qualquer espécie de tensão.

Lançou-me um olhar significativo.

Aquele era meu maior temor: que Carrie fosse ridicularizada e se sentisse envergonhada da cabeça grande e do corpo miúdo. Em certa época, Carrie fora tão bem proporcionada, tão perfeita. Todos aqueles anos perdidos, durante os quais o acesso ao sol nos fora negado, haviam-na tornado tão franzina. Fora isso, eu tinha certeza!

Eu sentia um medo mortal que Mamãe aparecesse no dia marcado para a audiência no tribunal. Contudo, tinha quase certeza de que ela não viria. Como poderia comparecer? Tinha muito a perder e nada a ganhar. Que éramos nós, senão pesadas cargas, difíceis de suportar? Além disso, havia a cadeia, uma acusação de homicídio...

Sentamo-nos muito calados ao lado de Paul, usando nossas melhores roupas para comparecer perante o juiz, e esperamos. Esperamos uma eternidade. Por dentro, eu parecia uma corda de violino, tão esticada e tensa a ponto de estourar e começar a chorar a qualquer momento. Ela não nos queria. Ao não aparecer, mostrava-nos mais uma vez quão pouco se importava conosco! O juiz nos olhou com grande piedade, fazendo-me sentir pena de todos nós e muita raiva dela! Oh! Que ela fosse para o inferno! Trouxera-nos ao mundo, afirmava ter amado nosso pai! Como podia fazer isto com os filhos dele, seus próprios filhos? Que tipo de mãe era ela? Eu não queria a piedade daquele juiz nem a de Paul. Mantive a cabeça erguida, mordendo a língua para não gritar. Atrevi-me a olhar para Chris e vi-o sentado, o rosto inexpressivo, embora eu soubesse que seu coração se despedaçava tanto quanto o meu. Carrie estava enroscada como uma bola no colo do médico, que a tranqüilizava com carícias, murmurando-lhe algo ao ouvido. Creio que ele disse:

— Não importa, tudo está bem. Agora, vocês me têm por pai e Henny por mãe. Enquanto eu viver, nunca lhes faltará nada.

Naquela noite chorei. Molhei o travesseiro com lágrimas derramadas por uma mãe que eu amara tanto a ponto de me causar dor lembrar os dias em que Papai ainda era vivo e a nossa vida no lar era perfeita. Chorei por todas as coisas boas que ela nos proporcionara naquela época e, sobretudo, por todo o amor que ela nos dedicara então. Chorei mais por Cory, que era como meu próprio filho. E foi então que parei de chorar e voltei-me para pensamentos amargos e cruéis de vingança. Quando se deseja derrotar alguém, o caminho mais certo é pensar da mesma maneira que a pessoa. O que a magoaria mais? Ela não desejaria lembrar-se de nós. Tentaria esquecer nossa existência. Bem, não esqueceria. Eu providenciaria para que não esquecesse. Naquele mesmo Natal, eu lhe enviaria um cartão assinado com as seguintes palavras: “Das quatro Bonecas de Dresden vivas que você rejeitou”. Mas precisei mudar para: “Das três Bonecas de Dresden vivas que você rejeitou e também da morta, que você levou e nunca mais trouxe de volta”. Pude imaginá-la olhando para o cartão e dizendo com seus botões: Fiz apenas o que tinha de fazer.

Tínhamos baixado a guarda e nos permitido sermos vulneráveis outra vez. Deixamos que a fé, a esperança e a confiança viessem dançar como confeitos em nossas mentes.

Os contos de fadas podiam tornar-se realidade.

Estavam acontecendo conosco. A rainha malvada saíra de nossas vidas e Branca de Neve assumiria o trono algum dia. Não comeria a maçã envenenada. Mas todo conto de fadas tem um dragão a ser morto, uma bruxa a ser vencida, ou algum obstáculo para dificultar as coisas. Durante todo o tempo eu sabia quem era a bruxa e esta era a parte mais triste de mim mesma.

Levantei-me e saí para a varanda do andar superior, a fim de olhar a lua. Vi Chris postado junto à balaustrada, olhando também para a luz. Pela atitude curvada de seus ombros normalmente tão orgulhosos e eretos, compreendi que ele sangrava interiormente, assim como eu. Avancei nas pontas dos pés, tencionando surpreendê-lo. Quando me aproximei, porém, ele se voltou e estendeu os braços para mim. Sem pensar, lancei-me neles, abraçando-lhe o pescoço. Ele usava o roupão quente que Mamãe lhe dera de presente no Natal anterior, embora já estivesse pequeno demais. Quando procurasse sob a árvore na manhã de Natal, ele encontraria um roupão novo, com seu monograma bordado no bolso do peito, CFS, pois nunca mais desejava ser chamado de Foxworth, mas de Sheffield.

Seus olhos azuis buscaram os meus. Olhos tão cheios de vida. Eu o amava tanto quanto amava o meu lado melhor, o lado mais alegre e mais feliz.

— Cathy — sussurrou ele, os olhos brilhando, e acariciou-me as costas. — Se tem vontade de chorar, não hesite. Eu entenderei. Chore bastante por mim, também. Eu estava esperando, rezando, que Mamãe viesse e, de algum modo, apresentasse uma explicação razoável para ter feito o que fez.

— Uma explicação razoável para assassinato? — repliquei amargamente. – Como poderia ela inventar uma desculpa bastante inteligente para isso? Não é tão esperta a esse ponto.

Chris pareceu tão desolado e magoado que apertei ainda mais os braços em torno de seu pescoço. Enfiei os dedos em seus cabelos, enroscando-os. Baixei a outra mão para acariciar-lhe o rosto. Amor, uma palavra de sentido tão amplo, diferente de sexo e dez vezes mais irresistível. Senti-me transbordar de amor quando Chris encostou o rosto em meus cabelos e começou a soluçar. Murmurava meu nome repetidamente, como se eu fosse a única pessoa no mundo capaz de ser real, sólida, digna de confiança.

De algum modo, os lábios dele encontraram os meus e nos beijamos com tamanha paixão que ele ficou excitado e tentou puxar-me para seu quarto.

— Quero apenas abraçá-la, Cathy, só isso. Nada mais. Quando eu for para a faculdade, precisarei de algo a que me agarrar... Dê-me um pouquinho mais, Cathy, por favor.

Antes que eu pudesse responder, ele tornou a me abraçar, beijando-me com lábios tão ardentes que fiquei aterrorizada e excitada também.

— Não! Pare com isso! — exclamei, mas ele insistiu, tocando-me os seios e afastando-me a camisola para poder beijá-los. Furiosa, sibilei: — Chris! Não me ame, Chris. Quando você se for, o que sente por mim desaparecerá como se nunca tivesse existido. Obrigar-nos-emos a amar outras pessoas, a fim de nos sentirmos limpos. Não podemos ser como nossos pais em duplicata. Não podemos cometer o mesmo erro.

Ele me abraçou com mais força e ficou calado. Compreendi que estava refletindo. Jamais haveria outros. Ele não permitiria que isto acontecesse. Uma mulher o magoara profundamente demais, traindo-o de modo terrivelmente monstruoso quando ele era jovem e muito, muito vulnerável. Só conseguia confiar em mim.

Recuou, com duas lágrimas brilhando nos cantos dos olhos. Cabia-me romper o laço, ali e agora. Para o bem dele. Todo mundo sempre fazia algo pelo bem de alguém.

Não consegui adormecer. Ouvia-o chamar-me, desejando-me. Levantei-me da cama e esgueirei-me pelo corredor, deitando-me mais uma vez na cama de Chris, que me aguardava deitado.

— Você jamais se livrará de mim, Cathy. Jamais. Enquanto você viver, será você e eu.

— Não!

— Sim!

— Não!

Mas eu o beijei. Depois, pulei da cama e corri de volta a meu quarto, batendo a porta e trancando-a. O que havia comigo? Jamais deveria ter ido ao quarto de Chris e me deitado em sua cama. Seria eu tão pecaminosa quanto afirmava nossa avó?

Não, não era.

Não podia ser!

 

Visões de confeitos

Era Natal. A árvore tocava o teto de três metros e sessenta de altura e, espalhados sob ela, havia presentes suficientes para dez crianças! Carrie estava eletrizada por cada coisa que Papai Noel lhe trouxera. Chris e eu utilizamos o que nos restava do dinheiro roubado para comprar um delicioso robe de chambre vermelho para Paul e um brilhante vestido de veludo vermelho-rubi para Henny, tamanho cinqüenta e oito! Estonteada e satisfeita, Henny segurou o vestido na frente do corpo, depois rabiscou um bilhete de agradecimento: “Dará ótimo vestido de ir à igreja. Todas as amigas ficarão com inveja.”

Paul experimentou o luxuoso robe de chambre novo. Ficou divino naquela cor que lhe caía maravilhosamente bem.

Então veio a maior de todas as surpresas. Paul se encaminhou para mim e acocorou-se nos calcanhares. Tirou da carteira cinco grandes bilhetes amarelos. Se ele nada fizesse durante um ano inteiro senão imaginar um meio de me causar o maior prazer possível, não alcançaria mais sucesso. Ali, abertas em leque na sua mão grande e bem feita, estavam cinco entradas para o Quebra-nozes, apresentado pela Escola de Ballet Rosencoff!

— Ouvi dizer que é uma companhia de balé muito profissional — explicou ele. — Não entendo muito de balé, mas andei indagando por aí e fui informado de que é uma das melhores. Também dão aulas a alunos principiantes, médios e adiantados. Em que nível você está?

— Adiantado! — proclamou Chris, enquanto eu só conseguia fitar Paul, emudecida de felicidade. — Cathy era principiante quando fomos morar no sótão. Mas algo maravilhoso lhe ocorreu lá em cima: o espírito de Anna Pavlova encarnou em seu corpo. E Cathy aprendeu sozinha como fazer pointe.

Naquela noite, todos nós, inclusive Henny, sentamo-nos, encantados, no centro da terceira fila da platéia. Os bailarinos no palco não eram apenas bons, eram soberbos! Especialmente o belo homem chamado Julian Marquet, que dançou o papel principal. Como num sonho, acompanhei Paul aos bastidores no intervalo, pois ia ser apresentada aos bailarinos!

Paul conduziu-me até um casal que estava perto do palco.

— Madame, Georges — disse ele a uma mulherzinha lustrosa como uma foca e não muito mais alta que o homem a seu lado. — Esta é minha tutelada, Catherine Doll, de quem lhes falei. Este é o irmão dela, Chris. E esta beleza mais jovem é Carrie. Vocês já conhecem Hennetta Beech...

— Sim, naturalmente — disse a dama que parecia uma bailarina, falava como bailarina e usava o cabelo preso à nuca, como é costume das bailarinas: penteado para trás e amarrado num grande coque.

Sobre a malha preta, usava um esvoaçante vestido de chiffon preto e, por cima de tudo isso, um bolero de pele de leopardo. Seu marido, Georges, era um homem calado, magro mas robusto, de rosto pálido e cabelos espantosamente negros, com lábios tão vermelhos que pareciam feitos de sangue coagulado. Formavam realmente um par, pois os lábios da mulher também estavam pintados de escarlate e seus olhos pareciam pintados a carvão num rosto de gesso branco. Dois pares de olhos negros examinaram-me e, depois, estudaram Chris.

— Você também é bailarino? — perguntaram a meu irmão.

Oh! Deus! Será que falavam sempre ao mesmo tempo?

— Não! Não danço — respondeu Chris, aparentemente embaraçado.

— Ah! Que pena — suspirou tristemente a madame. — Que par glorioso vocês formariam no palco! As pessoas lotariam os teatros só para ver uma beleza como a que você e sua irmã possuem.

Lançou um rápido olhar à pequena Carrie, temerosamente agarrada à minha mão, e ignorou-a com a maior naturalidade.

— Chris pretende ser médico — explicou o Dr. Paul.

— Ah! — exclamou Madame Rosencoff, como se Chris tivesse perdido o juízo.

Tanto ela como o marido voltaram os olhos de ébano para mim, concentrando-se com tamanha intensidade que comecei a sentir-me quente, suada e encabulada.

— Já estudou dança? (Ela sempre dava à palavra "dança" uma pronúncia peculiar, como se tivesse um “u”: “daunça”).

— Sim — respondi com voz sumida.

— Que idade tinha ao começar?

— Quatro anos.

— E agora tem...?

— Farei dezesseis em abril.

— Bom. Muito, muito bom — disse ela, esfregando as palmas das mãos compridas e ossudas. — Mais que onze anos de aprendizado profissional. Com que idade fez pointe?

— Doze;

— Maravilhoso! — exclamou ela. — Nunca permito que as meninas façam pointe completa antes dos treze anos, a menos que sejam excelentes.

Então, franziu a testa, desconfiada:

— Você é excelente, ou apenas medíocre?

— Não sei.

— Quer dizer que nunca ninguém lhe disse?

— Exato.

— Então, deve ser apenas medíocre,

Esboçou uma expressão desdenhosa, voltou-se para o marido e: dispensou-nos com um gesto arrogante da mão.

— Ora, espere um momento! — explodiu Chris, parecendo vermelho e muito zangado. — Não vi naquele palco, esta noite, uma só bailarina que se compare a Cathy! Nenhuma! Aquela garota que dança o papel principal de Clara às vezes sai do compasso da música. Cathy nunca perde o compasso! Seu ritmo é perfeito; seu ouvido é perfeito! Mesmo quando dança a mesma melodia, Cathy sempre varia um pouco, de modo que nunca duplica uma dança, improvisando sempre para aperfeiçoar-se e torná-la mais bonita, mais emocionante. Vocês teriam sorte se possuíssem uma bailarina como Cathy na sua companhia!

Os olhos negros e oblíquos voltaram-se para Chris, saboreando-lhe a intensidade do relato.

— Você é uma autoridade em balé? — indagou a madame com algum desdém. — Você sabe como separar as bailarinas bem dotadas da horda medíocre?

Chris parecia imerso num sonho, com os pés pregados no chão, e até mesmo sua voz tinha um tom rouco que lhe traía os sentimentos:

— Só sei o que vejo e as emoções que Cathy me faz sentir quando dança. Só sei que quando a música se inicia e ela começa a dançar meu coração pára de bater. Só sei que quando a dança termina eu chego a sentir dor porque toda aquela beleza desaparece, Ela não apenas dança um papel, ela é o personagem; faz-nos acreditar, porque ela acredita. E não existe na sua companhia uma só bailarina que me alcance, agarre meu coração e o aperte até fazê-lo latejar. Portanto, tratem de rejeitar Cathy e deixem que alguma outra companhia se beneficie com os lucros da sua estupidez!

Os olhos negros de Madame fixaram-se prolongada e penetrantemente no rosto de Chris, como os de nosso médico. Então, lentamente, Madame Rosencoff se voltou para mim; fui medida, pesada e avaliada dos cabelos às pontas dos pés.

— Amanhã, há uma hora em ponto, você dançará para mim no meu estúdio.

Não era um pedido, mas uma ordem que não admitia desobediência. Por algum motivo, fiquei furiosa quando deveria sentir-me feliz.

— Amanhã é cedo demais — repliquei. — Não tenho roupas, nem malhas, nem sapatilhas.

Tudo aquilo fora deixado para trás, no sótão de Foxworth Hall.

— Ninharias — rejeitou ela com um gesto petulante da mão. — Dar-lhe-emos todo o necessário. Trate apenas de estar lá e não se atrase, pois exigimos que nossos bailarinos sejam disciplinados em tudo, inclusive em pontualidade.

Fomos dispensados com um gesto majestoso e Madame Rosencoff se afastou graciosamente, rebocando o marido, deixando-me atordoada. Boquiaberta e emudecida, percebi que estava sendo atentamente observada por Julian Marquet, o bailarino, que deveria ter escutado cada palavra de nossa conversa. Seus olhos brilhavam de interesse e admiração.

— Sinta-se lisonjeada, Catherine — disse ele. — Normalmente, ela e Georges não aceitam bailarinos que não tenham aguardado meses, ou até mesmo anos, para fazer um teste.

Naquela noite chorei nos braços de Chris.

— Estou destreinada — solucei. — Sei que vou fazer papel de tola amanhã. Não é justo ela me recusar um prazo maior para me preparar! Preciso recuperar a agilidade. Estarei rígida, desajeitada, e eles me rejeitarão. Sei que rejeitarão!

— Ora, deixe disso, Cathy — disse ele, abraçando-me com mais força. — Já vi você nesta casa, segurando o poste do pé da cama e fazendo seus pliés e tendus. Você não está rígida ou destreinada, está apenas amedrontada. Sofre simplesmente um ataque de nervosismo muito comum aos artistas antes de pisarem o palco. Só isso. E não tem necessidade de preocupar-se: é magnífica. Eu sei e você também sabe.

Deu-me um leve beijo de boa noite nos lábios, deixou cair os braços ao longo do corpo e recuou em direção à porta.

— Esta noite, vou ajoelhar-me e rezar por você. Pedirei a Deus que você os deixe tontos amanhã. E lá estarei para gozar-lhes as caras de espanto, pois ninguém vai acreditar na maravilha que você é quando dança.

Com isso, retirou-se do quarto. E fui deixada cheia de ânsia e desejo. Enfiei-me sob as cobertas e permaneci bem acordada, dominada por mil e uma trepidações.

Amanhã seria meu grande dia, minha oportunidade de provar o que eu era e se possuía aquele algo especial que é preciso ter quando se deseja atingir o topo. Eu tinha que ser a melhor; nada menos que isto me serviria. Tinha que mostrar a Mamãe, à avó, a Paul, a Chris, a todo mundo! Eu não era má, ou corrupta, ou filha de Demônio. Era apenas eu, a melhor bailarina do mundo!

Debati-me, virei-me na cama, mergulhei e emergi de pesadelos, enquanto Carrie continuava a dormir placidamente. Em meus sonhos eu fazia tudo errado durante o teste e, o que era pior, fazia tudo errado pelo resto de minha vida inteira! Terminava como uma velhinha encarquilhada, mendigando nas ruas de uma grande metrópole. No escuro, passava por minha mãe e lhe implorava uma esmola. Ela continuava jovem e bonita, elegantemente trajada, coberta de jóias e peles, acompanhada pelo sempre jovem e fiel Bart Winslow.

Acordei. Ainda era noite. Que noite comprida! Desci as escadas e encontrei as luzes da árvore de Natal acesas. Chris, deitado no chão, fitava os galhos da árvore. Era o que costumávamos fazer quando crianças. Embora eu devesse saber que não estava correto, sentir-me irresistivelmente atraída para ele, deitei-me a seu lado. Olhei para a árvore cintilante, que parecia irreal.

— Pensei que você tivesse esquecido — murmurou Chris sem me olhar. — Lembre-se: quando estávamos em Foxworth Hall, a árvore de Natal era pequena e ficava em cima de uma mesa, de modo que não nos podíamos deitar sob ela como agora. E veja o que aconteceu. No futuro, mesmo que nossas árvores tenham menos de meio metro de altura, nós as penduraremos bem alto, para podermos deitar-nos embaixo.

O modo como ele disse aquilo preocupou-me. Virei lentamente a cabeça a fim de ver-lhe o perfil. Chris era tão lindo, ali deitado, com os cabelos louros mudando constantemente de cor. Cada mecha parecia captar uma tonalidade diferente do arco-íris e, quando ele virou a cabeça para fitar-me, seus olhos também brilhavam.

— Você parece... tão divino — disse com voz tensa. — Vejo doçura em seus olhos e as jóias da coroa da Inglaterra também.

— Não... isso é o que vejo nos seus, Cathy. Está linda nessa camisola branca. Adoro quando usa camisolas brancas com fitas de cetim azul. Adoro a maneira como seus cabelos se abrem em leque e você vira a cabeça, descansando o rosto num travesseiro de cetim dourado.

Aproximou-se de mim, de modo que também seu rosto repousou em meus cabelos. Aproximando-se ainda mais, até que nossas testas quase se tocaram. Seu hálito cálido me acariciou o rosto. Movi a cabeça para trás, arqueando o pescoço. Não me senti totalmente real quando seus lábios quentes me beijaram a curva do pescoço, permanecendo ali. Prendi a respiração. Por longos, intermináveis momentos esperei que ele se afastasse. Queria afastar-me dele, mas não conseguia. Uma doce paz me invadiu, estremecendo-me a pele com uma sensação deliciosa e arrepiante.

— Não me beije outra vez — sussurrei, agarrando-me mais a ele, comprimindo-lhe a cabeça contra meu pescoço.

— Eu a amo — sufocou ele. — Nunca haverá ninguém para mim, a não ser você. Recordarei esta noite com você, sob a árvore de Natal, e me lembrarei de como você foi bondosa ao me permitir abraçá-la assim.

— Chris, você tem mesmo que ir embora e tornar-se médico? Não pode ficar aqui e decidir-se por alguma outra profissão?

Ele levantou a cabeça para fitar-me nos olhos.

— Cathy... você precisa perguntar? Foi a única coisa que eu realmente quis em toda a minha vida, mas você...

Recomecei a soluçar. Não queria que ele fosse! Fiz-lhe cócegas no rosto com as pontas do meu cabelo até que ele soltou um grito e me beijou os lábios, um beijo tão suave, que desejava tornar-se mais ousado, mas temia que eu me afastasse caso isto acontecesse. Quando o beijo terminou, Chris disse uma porção de loucuras a respeito de minha beleza angelical.

— Cathy... olhe para mim! Não vire a cabeça para fingir que não sabe o que estou fazendo e dizendo! Veja o tormento que me causa! Como poderei encontrar outra pessoa, se você faz parte de meus ossos, de minha carne? Suas pulsações se aceleram quando as minhas o fazem! Seus olhos ardem quando os meus também ardem, não negue!

Seus dedos trêmulos começaram a abrir os pequenos botões cobertos de renda que fechavam minha camisola até a cintura. Fechei os olhos e vi-me outra vez no sótão, quando Chris me ferira acidentalmente o flanco com a tesoura e, agora, eu sangrava e sentia dor, necessitando beijar-lhe os lábios para aliviar o sofrimento.

— Como são lindos os seus seios! — suspirou ele, esfregando de leve o nariz nos bicos eriçados. — Lembro-me de como seu peito era chato e, depois, começou a crescer. Você era tão tímida com relação a eles, sempre querendo usar suéteres largos para que eu não os percebesse. Por que se envergonhava?

Tive a impressão de pairar acima da cena, observando-o beijar-me os seios e, bem no íntimo, estremeci. Por que lhe permitia fazer aquilo? Meus braços lhe puxaram o corpo com mais força contra mim e, quando meus lábios tornaram a encontrar os seus, talvez tenham sido meus próprios dedos que abriram os botões do seu pijama, de modo a sentir-lhe o peito nu de encontro ao meu. Mesclamo-nos numa massa ardente de desejo insatisfeito, antes que eu gritasse de repente:

— Não! Seria pecado!

— Então, vamos pecar!

— Então, não me deixe nunca mais! Esqueça a medicina! Fique comigo! Não vá embora e me deixe sozinha! Tenho medo de mim mesma, sem você! Às vezes, cometo loucuras! Por favor, Chris, não me deixe sozinha! Nunca estive sozinha, por favor, fique!

— Tenho que ser médico — gemeu ele. — Peça-me para desistir de qualquer outra coisa e concordarei. Mas não me peça para abrir mão da única coisa que nos manteve juntos. Você não desistiria da dança... não é mesmo?

Eu não sabia, enquanto correspondia a seus beijos cada vez mais exigentes, o fogo entre nós aumentando, dominando-nos e arrastando-nos à beira do inferno.

— Eu a amo tanto que, às vezes, nem sei o que fazer! — exclamou ele. — Se ao menos pudesse possuí-la uma única vez e você não sentisse dor, só prazer...

O inesperado abrir de seus lábios quentes, a língua que obrigava meus lábios a se abrirem também, percorreram-me o corpo como um choque elétrico!

— Eu a amo! Oh! como eu a amo! Sonho com você! Penso em você o dia inteiro!

E continuou a dizer coisas assim, respirando mais depressa até ficar ofegante, enquanto eu era dominada por meu corpo pronto e ansioso por ser satisfeito. Enquanto meus pensamentos queriam rejeitar Chris, meu corpo o desejava! Sufoquei-me de vergonha!

— Aqui não — disse ele entre beijos. — Lá em cima, no meu quarto.

— Não! Sou sua irmã... e seu quarto fica perto demais do de Paul. Ele nos escutaria.

— Então, usaremos o seu quarto. Carrie é capaz de dormir durante uma batalha.

Antes que eu me desse conta do que acontecia, Chris pegou-me nos braços, subiu correndo a escada dos fundos, entrou em meu quarto e caiu comigo na cama. Tirou minha camisola e o seu pijama; então, deitado junto a mim, recomeçou o que iniciara. Eu não queria aquilo. Não queria que se repetisse!

— Pare! — protestei, rolando na cama para sair de baixo dele.

Caí no chão. Numa fração de segundo, Chris estava no chão comigo, lutando. Rolamos interminavelmente, dois corpos nus que, de repente, bateram em algo sólido. Foi o que deteve Chris. Ele fitou a caixa de doces, um pão, maçãs, laranjas, meio quilo de queijo, várias latas de atum, ervilhas, suco de tomate, mais um abridor de latas, pratos, copos e talheres.

— Cathy! Por que rouba comida de Paul e a esconde sob a cama?

Sacudi a cabeça, sem saber ao certo por que motivo roubara a comida e a escondera. Então, sentei-me e, recatadamente, peguei a camisola que ele arrancara e segurei-a em frente do corpo.

— Vá embora! Deixe-me em paz! Amo você apenas como irmão, Christopher!

Ele se aproximou, abraçando-me e pousando a cabeça no meu ombro.

— Sinto muito. Oh! Querida! Sei por que razão pegou a comida: tem necessidade de manter alimentos ao alcance da mão, sente medo de sermos castigados novamente. Não sabe que sou a única pessoa que compreenderá? Cathy, deixe-me amá-la apenas mais uma vez, só mais uma vez, para durar pelo resto de nossas vidas. Deixe-me ao menos uma vez proporcionar-lhe o prazer que não lhe dei antes; só uma vez, para durar até o final de nossas vidas.

Esbofeteei-lhe o rosto!

— Não! — bradei furiosa. — Nunca mais! Você prometeu e julguei que fosse cumprir a promessa! Se tem que ser médico, ir embora e deixar-me sozinha, então a resposta será sempre não!

Calei-me. Não desejava dizer aquilo.

— Chris... não me olhe assim, por favor!

Ele vestiu vagarosamente o pijama. Depois, lançou-me um olhar magoado.

— Não haverá vida para mim se eu não for médico, Cathy.

Tapei a boca com ambas as mãos, para não gritar. O que havia de errado em mim? Não tinha o direito de exigir-lhe que abandonasse o seu sonho. Eu não era como minha mãe, que fazia todo mundo sofrer para satisfazer suas vontades. Solucei nos braços de Chris. Em meu irmão, eu já encontrara o amor eterno, sempre vivo, primaveril, que jamais poderia florescer.

Mais tarde, deitada de olhos abertos em minha cama, compreendi pelo modo desesperançado e inerte como me sentia, que até mesmo num vale sem montanhas o vento ainda era capaz de soprar.

 

O teste

Era o dia seguinte ao Natal. À uma hora da tarde eu precisava estar em Greenglenna, terra natal de Bart Winslow e sede da Escola de Ballet Rosencoff. Embarcamos todos no automóvel do Dr. Paul e chegamos lá cinco minutos antes da hora.

Madame Rosencoff disse-me que, se fosse aceita, eu deveria chamá-la de Madame Marisha. Se fracassasse, nunca mais deveria dirigir-me a ela, por qualquer nome. Usava apenas uma malha preta que realçava todos os contornos de seu corpo soberbo, ágil e esguia apesar de estar beirando os cinqüenta anos de idade. Os bicos dos seios empurravam as malhas do tecido negro, duros como pontas de metal. O marido, Georges, também usava malha preta para mostrar o corpo magro mas musculoso, que já revelava sinais de idade nas pequenas protuberâncias da barriga. Vinte moças e três rapazes deviam fazer testes.

— Que música escolhe? — indagou ela.

(Tive a impressão de que o marido jamais falaria, embora me observasse constantemente com os negros olhos brilhantes).

— “A Bela Adormecida”, — respondi timidamente, pois julgava o papel da Princesa Aurora a melhor de todas as obras do repertório clássico.

Portanto, por que escolher uma peça menos exigente?

— Sou capaz de dançar sozinha o Adágio da Rosa — gabei-me.

— Maravilhoso — disse ela, sarcástica, acrescentando com desdém ainda maior: — Só por sua aparência, adivinhei que escolheria A Bela Adormecida.

Seu tom me fez desejar ter escolhido algo mais fácil.

— Que cor de malha prefere?

— Rosa.

— Foi o que presumi.

Jogou-me uma desbotada malha cor-de-rosa e depois, com a mesma indiferença, escolheu a esmo um par de sapatilhas numa fileira tripla com dúzias delas. Por mais incrível que pareça jogou-me um par que se ajustou com perfeição aos meus pés. Após despir-me e vestir a malha e as sapatilhas, sentei-me a uma longa penteadeira com um espelho do mesmo comprimento e comecei a prender o cabelo. Ninguém precisou dizer-me que Madame desejaria ver-me o pescoço e qualquer épaulement que eu fizesse certamente lhe desagradaria. Isso, eu já sabia.

Mal terminei de vestir-me e prender o cabelo, com um bando de garotas soltando risadinhas ao meu redor, quando Madame Marisha enfiou a cabeça pela porta entreaberta, a fim de verificar se eu já estava pronta. Seus olhos negros me estudaram criticamente.

— Nada mau. Venha comigo — ordenou, afastando-se.

Tinha pernas fortes e musculosas. Como permitira que aquilo acontecesse? Eu jamais ficaria tanto em pointe até que minhas pernas se tornassem masculinas como as dela.

Nunca!

Madame levou-me a um amplo salão cujo assoalho polido não era tão liso quanto aparentava. Ao longo das paredes havia cadeiras para os espectadores e vi Chris, Carrie, Henny e o Dr. Paul ali sentados. Agora arrependia-me de tê-los convidado. Se eu fracassasse, eles assistiriam à minha humilhação. Havia também outras oito ou dez pessoas, mas não lhes prestei muita atenção. As moças e rapazes da companhia agruparam-se num canto para assistirem. Eu estava mais amedrontada do que presumi que ficasse. Claro que praticara um pouco desde que fugira de Foxworth Hall, mas não com a mesma dedicação que empregava no sótão. Deveria ter passado a noite inteira fazendo exercícios e chegado à escola de madrugada, para aquecer-me melhor. Então, talvez não me sentisse tão nervosa a ponto de querer vomitar.

Desejava ser a última, a fim de observar todas as outras, ver os erros que cometessem e tirar lições deles, ou assistir às bem sucedidas e aproveitar-me disso. Dessa forma, poderia avaliar o que eu deveria fazer.

O próprio Georges sentou-se ao piano. Engoli em seco, para aliviar o nó que me apertava a garganta; tinha a boca seca e borboletas em pânico esvoaçavam-me dentro do peito enquanto meus olhos buscavam entre os espectadores a pedra-ímã de que eu necessitava: os olhos azuis de Chris. E como sempre, lá estava ele para sorrir, telegrafando-me seu orgulho, confiança e imorredoura admiração. Meu querido, meu amado Christopher como sempre presente quando eu precisava dele, sempre me dando algo e tornando-me melhor do que seria sem ele. “Oh! Deus!” Rezei. “Ajude-me a ser boa! Permita-me corresponder às expectativas de Chris!”

Não consegui olhar para Paul. Este desejava ser meu pai, não minha pedra ímã. Se eu fracassasse e o embaraçasse, certamente passaria a encarar-me de uma maneira diferente. Eu perderia o encanto que tinha para ele. Deixaria de ser uma pessoa especial.

Um toque em meu braço sobressaltou-me. Girando nos calcanhares, deparei com Julian Marquet.

— Quebre uma perna — sussurrou ele, sorrindo para mostrar dentes muito alvos e perfeitos.

Seus olhos escuros brilhavam travessamente. Era mais alto que a maioria dos bailarinos, com quase um metro e oitenta, e eu logo saberia que tinha dezenove anos. Tinha a pele clara como a minha, embora, em contraste com os cabelos escuros, parecesse muito pálida. O queixo forte tinha uma cova central; uma covinha no lado direito do rosto parecia brincar de aparecer e desaparecer à vontade. Agradeci-lhe os votos de boa sorte, muito impressionada com sua beleza física.

— Puxa! — exclamou quando lhe sorri. Tinha uma voz grave. — Você é muito bonita. Pena que seja uma garotinha.

— Não sou garotinha!

— O que é, então, uma senhora de dezoito anos?

Sorri, muito satisfeita por aparentar aquela idade.

— Talvez sim, talvez não.

Ele sorriu, como se conhecesse todas as respostas. Pelo modo como se gabava de ser um dos melhores bailarinos de uma companhia de Nova York, talvez conhecesse realmente todas as respostas.

— Estou aqui apenas durante as festas do final de ano, para dar uma ajuda à Madame. Logo voltarei a Nova York, que é o meu lugar. Olhou em torno, como se as “províncias” o matassem de tédio. Meu coração deu uma cambalhota. Rezei para que ele fosse um dos bailarinos com quem eu trabalharia. Trocamos mais algumas palavras, então soou a minha “deixa” musical. De repente, eu estava sozinha no sótão, com flores coloridas de papel penduradas em barbantes compridos; ninguém senão eu e aquele amante secreto que dançava à pequena distância de mim, nunca permitindo que eu me aproximasse o suficiente para ver-lhe o rosto.

Comecei a dançar, tímida a princípio, mas depois fazendo as coisas certas, todos os entrechats, movimentos de braços e piruetas. Tive o cuidado de manter os olhos abertos e o rosto sempre voltado para os espectadores que eu não conseguia ver. Então a magia chegou e tomou conta de mim. Não precisei planejar o movimento nem contar o compasso, pois a música me dizia o que fazer e como fazer; eu era a sua voz e, portanto, infalível. E como sempre, aquele homem surgiu para dançar comigo — só que desta vez eu lhe vi o rosto! Um rosto lindo, pálido, com olhos escuros e faiscantes, cabelos negros como a noite e lábios de rubi. Julian! Eu o vi como num sonho, estendendo os braços fortes, apoiando um joelho no chão, a outra perna esticada graciosamente para trás. Com os olhos, fez-me sinal para correr e pular nos braços que me aguardavam. Encantada por vê-lo ali, um verdadeiro profissional, estava a meio caminho do ponto onde deveria iniciar o salto quando senti uma dor lancinante no abdome! Dobrei-me, gritando! A meus pés, uma grande poça de sangue! O sangue me escorria pelas pernas, manchando a malha e as sapatilhas cor-de-rosa. Escorreguei e caí ao chão, sentindo-me tão fraca que só consegui permanecer deitada, imóvel, e escutar os gritos. Os gritos não eram meus, mas de Carrie. Fechei os olhos, sem me importar em saber quem veio socorrer-me.

À distância, escutei as vozes de Paul e Chris. O rosto preocupado de meu irmão debruçou-se, revelando nitidamente todo o seu amor por mim; senti-me simultaneamente reconfortada e temerosa, pois não queria que Paul percebesse. Chris disse-me algo a respeito de não ter medo. Então, a escuridão chegou e carregou-me para um lugar muito remoto, onde ninguém me queria. E minha carreira de bailarina, ainda nem iniciada, estava terminada. Terminada.

Emergi de um sonho povoado por bruxas e vi Chris sentado na cama de hospital, segurando-me a mão inerte... e aqueles olhos azuis... Oh! Meu Deus! Aqueles olhos...

— Olá — disse ele suavemente, apertando-me os dedos. — Estava esperando que voltasse a si.

— Olá.

Ele sorriu, debruçando-se para beijar-me o rosto.

— Uma coisa eu lhe digo, Catherine Doll: você realmente sabe dar um final dramático à dança!

— Sim, isso é talento. Verdadeiro talento. Acho melhor dedicar-me ao teatro.

Ele sacudiu os ombros, indiferente.

— Creio que seria uma ótima atriz, mas duvido que tente.

— Oh! Chris! — protestei com voz sumida. — Você sabe que estraguei toda e qualquer possibilidade! Por que sangrei daquela maneira? Sabia que meu olhar estava carregado de medo, medo de que ele percebesse e adivinhasse a causa. Chris inclinou-se para me abraçar e estreitar contra o peito.

— A vida oferece mais que uma oportunidade, Cathy, como você bem sabe, Você precisou fazer uma D & C. Amanhã, estará boa e de pé.

— O que é uma D & C?

Ele sorriu, acariciando-me ternamente o rosto, sempre esquecido de que eu não era tão esclarecida quanto ele em questões médicas.

— Abreviatura de dilatação e curetagem, um processo no qual uma mulher é dilatada e o médico emprega um instrumento chamado cureta para raspar a parede interna do útero. Aqueles períodos em que você não ficou menstruada devem ter provocado coágulos, que se soltaram de repente.

— Quem fez a curetagem? — sussurrei, com medo de que fosse Paul.

— Um ginecologista chamado Dr. Jarvis, amigo do nosso doutor. Paul afirma que é o melhor ginecologista da região.

Nossos olhares se encontraram.

— Foi só isso, Cathy... nada mais.

Recostei-me nos travesseiros, sem saber o que pensar. De todas as ocasiões para acontecer algo assim... diante de todas as pessoas que eu tentava impressionar! Oh! Meu Deus! Por que a vida era tão cruel para mim?

— Abra os olhos, minha dama Catherine — disse Chris. — Está fazendo tempestade num copo de água, quando, na verdade, não faz diferença nenhuma. Dê uma olhada naquela cômoda e veja todas as flores lindas que recebeu. Flores reais, não de papel. Espero que não se importe de eu ter lido os cartões.

Naturalmente, eu não me importava que ele lesse. Chris foi à cômoda e logo voltou, colocando em minha mão flácida um pequeno envelope branco. Olhei para o enorme ramalhete de flores, julgando que fosse lembrança de Paul. Só então olhei para o envelope. Meus dedos trêmulos tiraram dele um pequeno cartão que dizia: “Espero que se recupere depressa. Aguardo-a na próxima segunda-feira, às três em ponto. Madame Marisha.”

Marisha! Eu fora aceita!

— Chris, os Rosencoff me querem!

— Claro que querem — disse ele suavemente. — Do contrário, seriam imbecis. Mas aquela mulher me mata de medo! Apesar de ser miúda, eu não desejaria tê-la controlando minha vida. Todavia, creio que você saberá muito bem como lidar com ela; de todo modo, sempre poderá ter outra hemorragia.

Sentei-me na cama para abraçá-lo.

— Tudo vai dar certo para nós, não vai, Chris? Acha realmente que poderá ser assim? Será que teremos tanta sorte?

Chris meneou a cabeça, sorrindo, e apontou para outro buquê. Fora enviado por Julian Marquet, acompanhado de um rápido bilhete: “Tornarei a vê-la quando vier de Nova York Portanto, Catherine Doll, não se esqueça de mim.”

Vi por cima do ombro de Chris, enquanto este me estreitava nos braços, Paul entrar no quarto e hesitar junto à porta ao observar-nos. Em seguida, exibiu um sorriso e avançou. Chris e eu nos separamos depressa.

 

Voltam os tempos de escola

Chegou o dia de janeiro em que tivemos que separar-nos. Tínhamos prestado exames para avaliar nossa capacidade e para nosso grande espanto recebêramos todos notas excelentes. Classifiquei-me para a décima série, Carrie para a terceira e Chris para o curso preparatório para a faculdade de Medicina. Mas o rosto de Carrie não demonstrava satisfação quando ela berrou:

— Não! Não! — preparou-se para desferir pontapés e cerrou os punhos para combater quem tentasse forçá-la. — Não quero escola particular para garotinhas esquisitas! Não irei! Não podem me obrigar! Vou contar ao Dr. Paul, Cathy!

Tinha o rosto rubro de fúria e sua voz chorosa parecia o uivo de uma sirene. Não fiquei eufórica com a idéia de enviar Carrie a um colégio interno situado a dezesseis quilômetros da cidade. Chris também partiria, no dia seguinte à ida de Carrie. Eu ficaria sozinha para freqüentar o ginásio e tínhamos feito a solene promessa de jamais nos separarmos. (Eu me obrigara a devolver a comida roubada e ninguém tinha conhecimento do fato, exceto Chris).   Peguei Carrie no colo para explicar-lhe que o Dr. Paul escolhera aquela escola muito especial e já pagara uma enorme quantia de matrícula.

Ela fechou os olhos com força, tentando não escutar.

— E não é uma escola para garotinhas esquisitas, Carrie — acrescentei em tom tranqüilizador, beijando-lhe a testa. — É uma escola para meninas ricas, cujos pais podem pagar pelo melhor. Deve sentir-se muito orgulhosa e afortunada por termos o Dr. Paul como nosso responsável legal.

Consegui convencê-la? Alguma vez conseguira convencê-la de alguma coisa?

— Mesmo assim, não quero ir — chorou ela, obstinada. — Por que não posso ir para a sua escola, Cathy? Por que tenho que ir sozinha, sem ninguém comigo?

— Ninguém? — repeti, rindo para esconder que sentia um temor semelhante ao dela. — Não estará sozinha, querida. Ficará com centenas de outras meninas da sua idade. A sua é uma escola primária; eu tenho que freqüentar o ginásio.

Embalei-a em meus braços, alisando-lhe a comprida e brilhante cascata de cabelos dourados, depois voltei seu provocante rostinho de boneca para o meu. Era uma coisinha linda. Como seria bela caso o corpo crescesse em proporção com a cabeça!

— Carrie, você tem quatro pessoas que a amam muito: o Dr. Paul, Henny, Chris e eu. Todos nós desejamos o que é melhor para você e, mesmo que alguns quilômetros nos separem, você permanecerá em nossos corações e pensamentos. Além disso, poderá vir passar todos os fins de semana em casa. E, acredite se quiser, a escola não é um lugar tão ruim; na verdade, é divertida. Você partilhará um belo quarto com uma menina da sua idade, terá ótimas professoras e, melhor que tudo, estará em companhia de meninas que a acharão a coisa mais linda que já tiveram oportunidade de ver. E deve ter a companhia de outras crianças; é necessário. Sei que estar com muitas meninas é um bocado divertido. A gente joga, tem sociedades secretas, dá festas, troca segredos e ri a noite inteira. Você vai adorar.

Sim. Claro. Ela adoraria. Carrie só aquiesceu depois de derramar uma torrente de lágrimas, os olhos suplicantes dizendo-me que ela só iria para agradar a mim e ao Dr. Paul, a quem ela queria muito bem. E, para ela, aquele internato de meninas seria uma cama de pregos que ela se via obrigada a suportar. Paul e Chris entraram bem a tempo de ouvi-la perguntar:

— E terei que ficar lá por muito, muito tempo?

Ambos tinham-se trancado na biblioteca de Paul durante muitas horas, com Paul ensinando a Chris a parte de química que este não estudara no sótão enquanto lá estivemos presos. Paul lançou um rápido olhar a Carrie, percebeu-lhe o sofrimento e se encaminhou para o armário embutido no corredor. Voltou logo depois com uma grande caixa embrulhada em papel roxo e amarrada com uma fita de cetim vermelho de dez centímetros de largura.

— Isto é para a minha loura predileta — anunciou.

Os olhos grandes e assustados de Carrie o fitaram antes que ela exibisse um leve sorriso.

— Oh! — exclamou, deliciada ao abrir o presente e deparar com o conjunto de malas vermelhas, completo, de couro, tendo até mesmo uma frasqueira com pente de ouro, escova de cabelo, espelho e uma série de frascos para cosméticos. Havia igualmente uma pasta de couro vermelho para papéis, a fim de que ela pudesse escrever cartas para nós.

— É lindo! — exclamou Carrie, imediatamente conquistada pela cor vermelha e excelente qualidade do presente. — Eu não sabia que faziam malas vermelhas com espelhos de ouro dentro!

Tive que olhar para Paul, que certamente não julgava que uma garotinha precisasse de maquilagem. Como se lesse meus pensamentos, ele disse:

— Sei que é um presente um tanto adulto, mas desejava dar à Carrie algo que ela pudesse usar durante muitos e muitos anos. Quando ela olhar para essas malas, daqui a anos, vai lembrar-se de mim.

— São as malas mais lindas que já vi — declarei alegremente. — Você poderá colocar na frasqueira suas escovas de dentes, pasta dentifrícia, talco e água de colônia.

— Não vou botar água de colônia fedorenta nas minhas malas!

Todos nós tivemos que rir. Então, levantei-me e subi correndo a escada para buscar uma caixinha, que levei para Carrie. Segurei a caixa com extremo cuidado, indecisa se devia entregá-la à Carrie e despertar velhas lembranças.

— Dentro desta caixa estão alguns velhos amigos seus, Carrie. Quando estiver na Escola Para Moças Bem Educadas da Srta. Emily Dean Calhoun e se sentir solitária, basta abrir a caixinha e ver o que há dentro dela. Não mostre o conteúdo a qualquer pessoa, mas apenas às suas amigas mais íntimas.

Carrie arregalou os olhos ao ver as minúsculas pessoas de porcelana e o bebê de quem ela tanto gostava, roubadas por mim daquela enorme e fabulosa casa de bonecas com a qual ela passara tantas horas brincando no sótão. Eu trouxera até mesmo o berço.

— O Sr. e a Sra. Parkins — murmurou Carrie, com lágrimas de felicidade nos grandes olhos azuis. — E Clara, a nenenzinha! De onde vieram eles, Cathy?

— Você sabe de onde vieram.

Ela olhou para mim, segurando a caixa cheia de algodão para proteger os frágeis bonecos e o berço de madeira feito à mão, uma herança inestimável.

— Cathy, onde está Mamãe?

Oh! Deus! Exatamente o que eu não desejava que ela perguntasse!

— Carrie, você bem sabe que devemos dizer a todo mundo que nossos pais morreram.

— Mamãe morreu mesmo?

— Não... mas precisamos fingir que morreu.

— Por quê?

Mais uma vez, tive que explicar a Carrie o motivo pelo qual jamais poderíamos revelar nossa verdadeira identidade e o fato de nossa mãe ainda estar viva: seríamos trancados de volta naquele quarto horrível. Carrie permaneceu sentada no chão, perto das lindas malas de couro vermelho, segurando no colo a caixa com os bonecos de porcelana, a fitar-me com o olhar assustado, sem compreender.

— Falo sério, Carrie! Você nunca falará na nossa família a não ser com Chris, o Dr. Paul, Henny e eu. Compreende?

Ela assentiu com a cabeça, mas não compreendeu. Seus lábios trêmulos e expressão tristonha revelavam claramente: ela ainda queria Mamãe! Então, chegou o dia terrível em que fizemos de automóvel o trajeto de dezesseis quilômetros até a elegante escola particular para filhas de gente rica. O prédio era grande, pintado de branco, tendo na frente o pórtico e as colunas características de arquitetura da região. Uma placa de bronze ao lado da porta principal anunciava: FUNDADA EM 1824.

Fomos recebidos num escritório aquecido e acolhedor por uma descendente do fundador da escola, a Srta. Emily Dean Dewhurst. Uma mulher bonita e imponente, com cabelos espantosamente brancos e nem uma só ruga que lhe traísse a idade.

— É uma linda criança, Dr. Sheffield. Naturalmente faremos o possível para mantê-la feliz e confortável enquanto estuda.

Curvei-me para abraçar e beijar Carrie, que estremecia, e sussurrei-lhe ao ouvido:

— Anime-se e faça um esforço para divertir-se. Não se sinta abandonada. Todos os fins-de-semana viremos buscá-la para irmos juntos para casa. Será tão ruim?

Carrie animou-se e forçou um sorriso:

— Sim, posso fazer isso — murmurou com voz sumida.

Não foi fácil irmos embora, deixando Carrie naquela mansão bonita pintada de branco.

No dia seguinte foi a vez de Chris partir para o curso preparatório. Oh! Como doeu vê-lo arrumar as bagagens! Observei mas não consegui falar. Chris e eu não suportávamos olhar um para o outro.

A escola de Chris ficava ainda mais afastada. Paul dirigiu quarenta e oito quilômetros antes de chegarmos ao campus com prédios de tijolos cor-de-rosa e, mais uma vez, as indefectíveis colunas brancas. Sentindo que precisávamos ficar a sós, Paul apresentou uma desculpa esfarrapada de querer inspecionar os jardins. Chris e eu não ficamos realmente a sós, mas numa alcova com grandes portas para o exterior. Rapazes passavam constantemente lá fora para espiar-nos. Eu desejava ficar nos braços de Chris, com o rosto colado ao seu. Queria que aquilo fosse um adeus ao amor, um adeus tão completo que nos desse a certeza de que o amor se fora para sempre, ao menos o amor que estava errado entre nós.

— Chris — gaguejei, à beira das lágrimas. — O que farei sem você?

Seus olhos azuis mudavam constantemente de tonalidade, acompanhando lhe o caleidoscópio de emoções.

— Nada mudará, Cathy — sussurrou ele com voz embargada, segurando-me as mãos. — Quando nos encontrarmos outra vez, ainda sentiremos a mesma coisa. Eu a amo. Sempre a amarei, seja certo ou errado. Não consigo evitar. Estudarei com tanto afinco que nem terei tempo de pensar em você, ou sentir saudades, ou imaginar o que estará acontecendo em sua vida.

— E acabará sendo o mais jovem médico diplomado na história da humanidade — zombei, embora minha voz estivesse tão embargada quanto a sua. — Poupe um pouquinho de amor para mim e guarde-o bem no fundo do coração, da mesma forma como guardarei meu amor por você. Não podemos cometer o mesmo erro que nossos pais.

Chris suspirou pesadamente e baixou a cabeça, observando o chão a seus pés. Ou talvez observasse meus pés, calçados em sapatos de salto alto que tornavam minhas pernas muito mais bonitas.

— Cuide-se bem.

— É claro. E você também. Não estude demais. Divirta-se e escreva-me ao menos uma vez por dia, pois acho que não devemos engordar a conta de telefone do Dr. Paul.

— Cathy, você é muito bonita. Talvez bonita demais. Olho para você e revejo nossa mãe em seu modo de gesticular e de tombar a cabeça para um lado. Não encante demais o nosso médico. Quero dizer: afinal, ele é um homem. Não tem esposa e você estará morando na mesma casa que ele.

Ergueu a cabeça, com uma súbita expressão penetrante no olhar.

— Não cometa erros ao tentar fugir do que sente por mim. Falo sério, Cathy.

— Prometo comportar-me.

Era uma promessa tão fraca, quando ele despertara em mim aquele anseio primitivo, que deveria ser contido até que eu tivesse idade suficiente para enfrentá-lo. Agora, tudo o que eu desejava era ser amada e satisfeita por alguém com quem me sentisse bem.

— Paul é um grande sujeito — disse Chris, hesitante. — Eu gosto dele. Carrie o ama. O que sente você por ele?

— Gosto dele, como você e Carrie. Sinto gratidão. Isso não é errado.

— Ele não fez nada fora do certo?

— Não. É honrado e decente.

— Eu o vejo sempre olhando para você, Cathy. É tão jovem, tão bela, tão necessitada de amor... — fez uma pausa e corou, desviando culposamente o olhar antes de acrescentar: — Sinto-me mesquinho ao lhe dizer isso, quando ele fez tanta coisa por nós, mas às vezes penso que nos aceitou apenas... bem... apenas por causa de você. Porque deseja você!

— Chris, ele é vinte e cinco anos mais velho que eu! Como pode pensar uma coisa dessas?

Chris pareceu aliviado.

— Tem razão — disse ele. — Você é tutelada de Paul e moça demais para ele. Nesses hospitais devem existir muitas beldades que ficariam felizes se pudessem estar com ele. Creio que você estará segura.

Sorrindo, puxou-me para si e baixou os lábios até os meus. Apenas um beijo leve e terno, uma despedida temporária.

— Perdoe-me pela noite de Natal — disse ele quando terminou o beijo.

Meu coração era uma ruína dolorosa quando recuei para deixá-lo. Como viveria sem ele a meu lado? Mais uma das coisas que ela nos fizera: querermo-nos demais, quando nunca deveríamos amar-nos daquela forma. Culpa dela, sempre culpa dela! Tudo que houvera de errado em nossas vidas podia ser atribuído a ela!

— Não estude demais, Chris, ou logo precisará usar óculos.

Chris riu, fazendo um gesto de adeus com evidente relutância. Nenhum de nós conseguiu pronunciar a palavra “adeus”. Girei nos calcanhares, as lágrimas queimando-me os olhos enquanto corri pelos compridos corredores, e saí para o sol brilhante. No carro branco de Paul, derreei-me no assento e solucei de verdade, como Carrie quando chorava. De repente, Paul pareceu surgir do nada e sentou-se, calado, ao volante. Ligou o motor, fez a manobra e partiu em direção à estrada. Não mencionou meus olhos inflamados nem o lencinho úmido que eu tinha na mão para enxugar as lágrimas que continuavam a brotar. Não me indagou por que razão eu permanecia tão calada, quando geralmente brincava, provocava ou tagarelava coisas sem sentido só para não escutar o silêncio. Quietude, silêncio. Ouça as penas caírem, escute a casa estalar. Era a escuridão do sótão. As mãos fortes e bem cuidadas de Paul dirigiam o automóvel com uma habilidade tranqüila e natural, enquanto ele se mantinha relaxado no assento. Estudei-as, pois, em seguida aos olhos, as mãos eram a primeira coisa que eu notava num homem. Depois, baixei os olhos para suas pernas: coxas bem torneadas, que as calças de malha azul mostravam muito bem, talvez bem demais, pois de repente já não me senti triste ou deprimida, mas dominada por uma onda de sensualidade.

Árvores gigantescas orlavam a estrada larga e negra, troncos retorcidos e escuros, grossos e velhos.

— Magnólias Buli Bay — disse Paul. — é uma pena não estarem floridas nesta época. Mas não demorarão muito a florir, pois nossos invernos são curtos. Uma coisa que você não deve esquecer: jamais cheire ou toque numa flor de magnólia; se o fizer, murchará e morrerá com ela.

Lançou-me um olhar provocante, de modo que não pude perceber se dizia ou não a verdade.

— Antes de você chegar com seus irmãos, eu costumava ter medo de entrar com o carro na minha rua. Estava sempre tão solitário! Agora, volto para casa cheio de felicidade. É gostoso ser feliz outra vez. Obrigado, Cathy, por terem vindo para o Sul e não para o Norte ou o Oeste.

Logo que chegamos em casa, Paul foi para o consultório e eu subi, a fim de tentar afugentar a solidão exercitando-me na barra. Paul não veio jantar em casa e isto piorou ainda mais a situação. Também não apareceu após o jantar, de modo que fui deitar-me cedo. Sozinha. Carrie se fora. O meu fiel Christopher também. Pela primeira vez, dormiríamos sob tetos separados. Eu precisava de alguém; sentia-me mal, amedrontada. O silêncio da casa e o profundo negrume da noite pareciam gritar ao meu redor: Sozinha! Sozinha! Você está sozinha e ninguém se importa, ninguém se importa! Pensei em comida. Preocupei-me por não manter um grande suprimento ao alcance da mão. Então, lembrei-me de que devia tomar um pouco de leite quente. Diziam que leite quente ajudava a dormir e dormir era o de que precisava.

 

Sedutora, eu?

A luz suave da lareira iluminava a sala de visitas. As achas cinzentas tinham se transformado em cinzas e Paul, envolto no quente robe vermelho, estava sentado numa poltrona de braços, tirando lentas baforadas do cachimbo.

Olhei para aquela cabeça envolta num halo de fumaça e vi uma pessoa cálida, necessitada, triste e ansiosa, como eu. E, como a tola que eu era com tanta freqüência, aproximei-me dele com pés descalços e silenciosos. Que bom vê-lo usar nosso presente tão depressa. Eu estava usando um presente dele: um leve pegnoir azul-turquesa de tecido vaporoso, que esvoaçava sobre uma camisola da mesma cor. Paul sobressaltou-se ao ver-me ali, tão perto de sua poltrona, altas horas da noite. Contudo, ficou calado para não quebrar o encanto que, de algum modo, nos unia numa necessidade mútua. Havia muita coisa que eu não conhecia a respeito de mim mesma, do mesmo modo que não compreendi o impulso que me levou a erguer a mão para acariciar-lhe o rosto. Tinha a pele áspera, como se precisasse fazer a barba. Recostou a cabeça na poltrona e virou o rosto para o meu.

— Por que me toca, Catherine?

A pergunta, feita numa voz tensa e fria, poderia fazer-me sentir rejeitada e magoada, mas seus olhos eram poças límpidas e suaves de desejo; eu já vira desejo anteriormente, só que em olhos diferentes dos dele.

— Não gosta que o toquem?

— Não uma jovem sedutora, com roupas transparentes, vinte e cinco anos mais moça que eu.

— Vinte e quatro anos e sete meses mais moça — corrigi. — E minha avó materna se casou com um homem de cinqüenta e cinco anos, quando tinha apenas dezesseis.

— Ela era uma tola e ele também.

— Minha mãe disse que ela foi boa esposa para ele — acrescentei, sem jeito.

— Por que não está deitada, dormindo? — indagou Paul, ríspido.

— Não consigo dormir. Acho que estou por demais excitada ante a perspectiva de iniciar as aulas amanhã.

— Então, acho melhor voltar para a cama, para acordar bem descansada.

Comecei a obedecer, de verdade, pois a idéia do leite quente ainda não me saíra da cabeça; por outro lado, tive também outras idéias, mais sedutoras.

— Dr. Paul...

— Detesto quando você me chama assim! — interrompeu ele. — Use meu primeiro nome ou não fale comigo.

— Acho que devo tratar o senhor com o respeito que merece.

— Que se dane o respeito! Não sou diferente dos outros homens. Um médico não é infalível, Catherine.

— Por que me chama de Catherine?

— Por que não deveria chamá-la de Catherine? É o seu nome e me parece um tratamento mais adulto que Cathy.

— Há pouco, quando lhe toquei o rosto, olhou-me com raiva, como se não quisesse que eu fosse adulta.

— Você é uma feiticeira. Em um segundo, transforma-se de uma garota ingênua numa mulher sedutora e provocante; uma mulher que parece saber exatamente o que está fazendo quando coloca a mão no meu rosto.

Meus olhos se desviaram ante a investida. Senti-me corada, nervosa, arrependida de não ter ido diretamente para a cozinha. Olhei para os valiosos livros nas estantes e os pequenos objetos de arte que ele parecia adorar. Para onde eu olhasse, havia algo que me recordava que a coisa de que ele mais necessitava era beleza.

— Catherine, vou-lhe fazer agora uma pergunta sobre um assunto que não me diz respeito, mas que sinto necessidade de indagar. O que realmente existe entre você e seu irmão?

Meus joelhos começaram a chocalhar nervosamente. Oh! Meu Deus! Será que nossas fisionomias revelavam? Por que ele tinha que perguntar? Não era da sua conta. Não tinha o direito de fazer tal pergunta. O bom senso e a capacidade de julgamento deveriam ter-me colado a língua no céu da boca, impedindo-me de responder, envergonhada e sem jeito:

— Ficaria chocado se soubesse que quando estávamos trancados num quarto, sempre juntos, os quatro irmãos, quando cada dia equivalia a uma eternidade, Chris e eu nem sempre nos encarávamos como irmãos? Chris fixou uma barra no sótão, a fim de que eu pudesse manter os músculos ágeis e continuar a sonhar que poderia ser, algum dia, uma grande bailarina. E enquanto eu dançava naquele assoalho de madeira macia e apodrecida, ele estudava na sala de aulas do sótão, passando horas e horas a ler velhas enciclopédias. Escutava a música de meus bailados e vinha observar-me, oculto nas sombras...

— Prossiga — instou ele, quando fiz uma pausa.

Fiquei de cabeça baixa, recordando o passado, esquecendo-me de Paul. Então, este se inclinou repentinamente, agarrou-me e sentou-me em seu colo.

— Conte-me o resto.

Eu não queria contar, mas seus olhos brilhavam, exigentes, fazendo-o parecer uma pessoa diferente. Engolindo em seco, continuei com relutância:

— A música sempre me causou uma sensação especial, mesmo quando era criança. Apodera-se de mim, animando-me, e me faz dançar. E quando me enlevo dessa maneira, não existe outro modo de voltar à realidade senão sentindo amor por alguém. Se voltar a sentir os pés no chão, com ninguém ali para amar, fico vazia e perdida. E não me agrada ficar vazia e perdida.

— Então, você dançava no sótão, deixando-se levar pela imaginação fantasiosa, e ao voltar à realidade constatava que a única pessoa ali presente a quem você podia amar era o seu irmão? — perguntou ele com gélida veemência, os olhos queimando os meus — Correto? Você tinha outra espécie de amor que reservava para os pequenos gêmeos, não é mesmo? Para eles, você era mãe. Eu sei. Vejo isto a cada vez que você olha para Carrie ou fala de Cory. Mas que tipo de amor nutre por Christopher? Maternal? Fraternal? Ou é... — fez uma pausa, corando, e sacudiu-me. — O que fez com seu irmão quando estavam trancados lá em cima, sozinhos?

Dominada pelo pânico, sacudi a cabeça e empurrei suas mãos de meus ombros.

— Chris e eu fomos decentes! Fizemos o melhor possível!

— “O melhor possível”? — bradou ele, com olhar duro e belicoso, como se o homem bondoso e gentil que eu conhecera não passasse de um disfarce. — Que diabo quer dizer isso?

— Tudo o que você precisa saber! — reagi com violência, os olhos ardendo de raiva tão grande e brutal quanto a dele. — Acusa-me de seduzi-lo. Mas é você quem faz isso: observa cada movimento que faço! Despe-me com os olhos. Leva-me para a cama com o olhar. Fala em aulas de balé e em enviar meu irmão para a faculdade de medicina, mas durante todo o tempo insinua que, mais cedo ou mais tarde, exigirá o pagamento em troca disso; e eu sei que tipo de pagamento você tem em mente!

Libertei as mãos e rasguei a frente do peignoir, deixando à mostra o diáfano corpete da camisola azul-turquesa.

— Veja o tipo de presente que me deu! É a camisola adequada a uma mocinha de quinze anos? Não! É o tipo de camisola que a noiva usa na noite de núpcias! E você me fez presente dela, viu Chris franzir a testa, e nem mesmo teve a decência de corar!

O riso dele zombou de mim. Senti o cheiro do forte vinho tinto que ele gostava de tomar antes de deitar-se. Seu hálito quente em meu rosto, seu rosto muito próximo ao meu, de modo que via cada fio de cabelo que brotava da pele. Era o vinho que lhe provocava aquele comportamento, refleti. Só o vinho. Qualquer mulher em seu colo serviria, qualquer mulher! Provocadoramente, ele tocou os bicos de meus seios, passando de um para outro. Então, teve a audácia de enfiar a mão por baixo de meu corpete, para poder acariciar os seios jovens, inflamados de calor pelas inesperadas carícias. Os bicos se enrijeceram e passei a respirar tão depressa e profundamente quanto ele.

— Quer despir-se para mim, Catherine? — indagou com aquele seu ar zombeteiro. — Quer sentar-se nua em meu colo e deixar-me fazer tudo a meu modo? Ou prefere pegar aquele cinzeiro de cristal veneziano e quebrá-lo em minha cabeça?

Olhou-me fixamente. Então, de repente, chocado ao perceber onde estava sua mão, cobrindo meu seio esquerdo, puxou-a bruscamente, como se o contato com minha pele o queimasse. Procurou recompor o frágil tecido de meu peignoir, escondendo o que antes seus olhos devoravam avidamente. Olhou-me os lábios levemente entreabertos que esperavam ser beijados; julgo que planejava beijá-los antes de recuperar o controle e afastar-me de si com um empurrão. Naquele momento, um trovão ribombou no céu e um raio desceu, iluminando a noite e provocando fogo ao atingir um fio telefônico lá fora. Dei um pulo! Gritei! Tão repentinamente quanto retirara a mão de meu seio, Paul emergiu da névoa mental, transformando-se outra vez no que costumava ser: um homem solitário e introspectivo, decidido a manter-se distante. O quanto fui sábia, em minha inocência, para compreender isto antes que ele dissesse bruscamente:

— Que diabo está fazendo sentada em meu colo, seminua? Por que me permitiu fazer o que fiz?

Permaneci calada. Paul estava envergonhado; agora, eu o percebia à luz fraca do fogo que morria na lareira e à claridade dos relâmpagos intermitentes. Tinha a respeito de si mesmo todos os tipos de pensamentos condenatórios, punitivos, reprobatórios, açoitando-se com eles, e eu sabia que a culpa era minha; como sempre, a culpa era minha.

— Sinto muito, Catherine. Não sei o que me possuiu para me fazer agir dessa maneira.

— Eu o perdôo.

— Por que me perdoa?

— Porque o amo.

Mais uma vez, Paul virou a cabeça de perfil e não lhe pude ver os olhos e ler o que neles havia.

— Você não me ama — replicou calmamente. — Apenas sente gratidão pelo que fiz.

— Eu o amo e sou sua quando, ou se, você me quiser. E pode dizer que não me ama, mas estará mentindo, pois vejo isso nos seus olhos cada vez que você olha para mim.

Aproximei-me e virei-lhe o rosto para o meu.

— Quando fui trancada por Mamãe, jurei que ao ficar livre abriria a porta para o amor se este chegasse e exigisse de mim. No primeiro dia em que aqui cheguei, encontrei amor em seus olhos. Não precisa casar comigo; basta amar-me quando precisar de mim.

Paul me abraçou e observamos a tempestade. O inverno lutou contra a primavera e terminou vencendo. Agora, caía apenas granizo; os trovões e raios tinham sumido e eu me sentia tão... tão bem! Éramos muito semelhantes, Paul e eu.

— Por que não tem medo de mim? — perguntou ele, em voz baixa, enquanto suas mãos grandes e delicadas acariciavam-me as costas e os cabelos. — Sabe que não deveria estar aqui, permitindo que eu a abrace ou a toque.

— Paul... — comecei, hesitante. — Não sou má, nem Chris. Quando estávamos trancados, fizemos o melhor possível, juro. Mas ficamos fechados num único quarto e estávamos crescendo. A avó tinha uma lista de regras que nos proibiam até mesmo de olhar um para o outro; agora, creio que entendo o motivo. Nossos olhares se cruzavam com muita freqüência e, sem dizer uma só palavra, Chris conseguia reconfortar-me. E dizia que meus olhos lhe faziam o mesmo efeito. Isto não era sermos maus, era?

Eu não deveria perguntar. Além disso, é claro que tinham de olhar um para o outro. É para isso que possuímos olhos.

— Vivendo como vivemos por tanto tempo, não sei muito a respeito das moças de minha idade, mas desde que tinha apenas a altura da mesa, qualquer espécie de beleza me ilumina por dentro. Apenas o sol incidindo nas pétalas de uma rosa, ou o modo como a luz atravessa as folhas das árvores e destaca as nervuras, ou a forma como a chuva na estrada torna o óleo iridescente, tudo isto me faz sentir bela. Mais do que qualquer outra coisa, quando a música está tocando, o meu tipo de música, de bailado, não preciso de sol, flores ou ar livre. Acendo-me interiormente e o local onde me encontro se transforma, num passe de mágica, em palácios de mármore, ou num bosque verdejante onde fico em total liberdade. Eu costumava fazer isso no sótão e sempre um homem de cabelos escuros dançava perto de mim. Jamais lhe vi o rosto, embora desejasse. Certa vez, pronunciei-lhe o nome, mas, quando acordei, não consegui lembrar-me de qual fosse. Portanto, creio que estou realmente apaixonada por ele, embora não saiba quem seja. Toda vez que vejo um homem de cabelos escuros que se movimenta graciosamente, desconfio de que seja ele.

Paul riu baixinho e enfiou os dedos compridos em meus cabelos soltos.

— Ora, como você é romântica!

— Você zomba de mim. Acha que não passo de uma criança. Julga que beijar-me não seria excitante.

Paul sorriu, aceitou o desafio e lentamente, muito lentamente, inclinou a cabeça até seus lábios encontrarem os meus. Oh! Então era assim, o beijo de um desconhecido! Arrepios elétricos subiram e desceram loucamente ao longo de meus braços e todos os nervos que uma “criança” da minha idade ainda não deveria possuir arderam em fogo! Afastei-me bruscamente, amedrontada. Eu era má, pecaminosa, filha do Demônio! E Chris ficaria chocado!

— Que diabo estamos fazendo? — bradou Paul, livrando-se do encantamento que eu lhe lançara. — Que tipo de diabinho é você para deixar-me tocá-la com tanta intimidade e beijá-la? Você é muito linda, Catherine, mas não passa de uma criança.

Alguma compreensão toldou-lhe o olhar quando ele adivinhou em parte meus motivos.

— Agora, meta bem uma coisa na sua cabecinha: você nada me deve, nada! O que faço por você, seu irmão e sua irmã é por livre e espontânea vontade, por prazer, sem esperar qualquer retribuição de qualquer espécie. Entendeu?

— Mas... mas... — gaguejei. — Sempre detestei quando chove forte e o vento sopra à noite. Esta é a primeira vez em que me sinto aquecida e protegida, aqui, com você, perto do fogo.

— E segura? — brincou ele. — Acha que está segura comigo, sentando-se em meu colo e beijando-me daquela maneira? De que pensa que sou feito?

— Da mesma coisa que os outros homens, Só que melhor.

— Catherine — disse Paul, com voz mais suave e bondosa. — Já cometi tantos erros na vida e vocês três me ofereceram uma oportunidade para redimir-me deles. Se eu ousar encostar um dedo em você, quero que grite por socorro. Se não houver outra pessoa em casa, fuja para seu quarto ou quebre-me alguma coisa na cabeça.

— Ohhh! — Sussurrei. — Pensei que me amava!

As lágrimas me escorreram pelo rosto. Senti-me outra vez uma criança, punida por excesso de presunção. Quanta tolice acreditar que o amor já estivesse batendo à minha porta! Amuei-me quando Paul me afastou de si. Então, ajudou-me a levantar, mas manteve as mãos em minha cintura ao fitar-me o rosto.

— Meu Deus! Como você é bonita e desejável — comentou com um suspiro. — Não me tente demais, Catherine... para seu próprio bem.

— Não precisa amar-me — repliquei, baixando a cabeça para esconder o rosto e verificando que o cabelo comprido era um bom esconderijo. Respondi desavergonhadamente: — Basta usar-me quando quiser e isso será o bastante para mim.

Paul recostou-se na poltrona, retirando as mãos de minha cintura.

— Catherine, jamais permita que eu volte a escutá-la fazendo semelhante oferta. Você vive num país de fadas, não na realidade. As meninas se machucam quando brincam de adultas. Poupe-se para o homem com quem se casará, mas, pelo amor de Deus, espere crescer primeiro! Não tenha pressa de se entregar ao sexo com o primeiro homem que a desejar.

Recuei, com medo dele. Paul levantou-se, para manter-me ao alcance dos braços.

— Linda criança, os olhos de Clairmont estão fixos em você e em mim, imaginando, especulando. Não gozo de uma reputação imaculada. Portanto, para a saúde de minha clínica médica e o bem de minha alma e consciência, mantenha-se afastada de mim. Sou apenas um homem, não um santo.

Mais uma vez, recuei amedrontada, subi as escadas correndo como se ele me perseguisse. Pois, afinal, Paul não era o tipo de homem que eu queria. Não ele, um médico, talvez um mulherengo, a última espécie de homem que poderia preencher meus sonhos de amor fiel, devotado, eterno e romântico! A escola para a qual Paul me enviou era grande e moderna, com uma piscina interna. Meus colegas me achavam bonita e diziam que falava engraçado, como uma nortista. Riam do modo como eu pronunciava todas as palavras com “a” aberto. Não me agradava ser alvo de risos. Não me agradava ser diferente. Queria ser como as outras, mas, por mais que me esforçasse, verifiquei que era diferente. Como poderia ser de outra forma? Ela me tornara diferente. Eu sabia que Chris também se sentia solitário em sua escola, pois era um estranho num mundo que continuara a existir sem nós. Eu temia por Carrie na sua escola, sozinha, também tornada diferente. Maldita fosse Mamãe por fazer tanto no sentido de alienar-nos dos outros, a ponto de não podermos mesclar-nos na multidão, falar como eles falavam, acreditar no que acreditavam. Eu era uma forasteira e minhas colegas faziam tudo para que eu o sentisse de todas as formas possíveis.

Só um lugar me deixava à vontade. Eu saía diretamente do ginásio para pegar um ônibus que me levasse às aulas de balé, carregando comigo a sacola com as malhas, sapatilhas e uma bolsinha. No camarim, as moças compartilhavam todos os segredos. Contavam piadas ridículas, estórias de sexo, algumas até mesmo pornográficas. O sexo pairava no ar, cercando-nos por todos os lados, bafejando cálida e exigentemente em nossas nucas. Ao modo tolo das mocinhas, elas discutiam se deviam ou não preservar o corpo para os eventuais maridos. Se deviam namorar inteiramente vestidas ou despidas, se deviam ir “até o final”, ou como conter um rapaz depois de excitá-lo “inocentemente”. Uma vez que me sentia tão mais sábia que as outras quanto ao assunto, abstinha-me de dar palpites. Podia imaginar como esbugalhariam os olhos se eu ousasse falar de meu passado, dos anos em que vivera “em lugar nenhum”; da maneira como o amor brotara num solo estéril! Não poderia censurá-las.

Não censurava ou culpava ninguém, exceto a única pessoa que fizera tudo aquilo acontecer: Mamãe! Um dia, corri do ponto de ônibus para casa e redigi uma carta longa e venenosa à minha mãe e depois não soube para onde enviá-la. Deixei-a de lado até que descobrisse o endereço em Greenglenna. Uma coisa era certa: não queria que ela soubesse onde morávamos. Embora ela houvesse recebido a intimação, esta não mencionava o nome ou endereço de Paul, mas apenas o endereço do tribunal. Mais cedo ou mais tarde, porém, ela teria notícias minhas e muito sofreria com isso.

Todos os dias começávamos usando pesados agasalhos tricotados para aquecer as pernas e fazíamos exercícios na barra até acelerar as pulsações, aquecer os músculos e, ao começarmos a suar, retirávamos os agasalhos de lã. Nossos cabelos, enrolados como os das mulheres que esfregam assoalhos, também ficavam molhados de suor. Assim, tomávamos dois a três banhos de chuveiro por dia, em especial aos sábados, quando trabalhávamos de oito a dez horas. Fazíamos pliés, tendus, glissés, fondus e ronds de jambe à terre e nada disso era fácil. Às vezes, a dor de imprimir rotação aos quadris nos rodopios quase me arrancava gritos. Então, vinham os frappes em três quartos de pointe, os ronds de jambe em l'air, os petit e grande batllements, os developpés e todos os exercícios de aquecimento que nos tornavam os músculos mais compridos, fortes e ágeis. Em seguida, deixávamos a barra e passávamos ao centro do salão, para repetir tudo aquilo sem o auxílio da barra.

E o início era a parte mais fácil, porque dali em diante o trabalho aumentava de dificuldade, exigindo habilidades técnicas espantosamente dolorosas de conseguir. Ouvir dizer que eu era boa, até mesmo excelente, elevavam-me às alturas... de modo que houvera benefícios produzidos por dançar no sótão, ao dançar mesmo quando estava morrendo; assim refletia eu, fazendo pliés... un, deux... interminavelmente, enquanto Georges continuava a martelar o velho piano. Além disso, havia Julian. Algo o trazia freqüentemente de volta a Clairmont. Julguei que suas visitas tivessem como objetivo saciar o ego, de modo que pudéssemos ficar sentadas no chão, formando um círculo no centro do qual ele se apresentava, exibindo seu virtuosismo superior, seus rodopios que pareciam mais velozes que a vista. Sua incrível elevação nos saltos desafiava a gravidade e, partindo desses grand jetés, ele pousava os pés de volta ao chão com a leveza de uma pluma. Encurralou-me num canto para afirmar que era a “sua” maneira de dançar que adicionava tanta sensação ao espetáculo.

— Na verdade, Cathy, você jamais terá visto balé antes de assistir a um espetáculo em Nova York.

Bocejou, simulando enfado, e voltou os atrevidos olhos negros na direção de Norma Belle, que usava uma justa malha transparente. Perguntei depressa por que ele voltava com tanta freqüência a Clairmont se Nova York era o melhor lugar para se estar.

— Para visitar meus pais — disse ele, com certa indiferença. — Como deve saber, Madame é minha mãe.

— Oh! eu não sabia.

— Claro que não. Não gosto de me gabar do fato — disse ele com um devastador sorriso de malícia. — Você ainda é virgem?

Repliquei que isso não era de sua conta e ele riu outra vez.

— Você é boa demais para este lugar provinciano, Cathy. Você é diferente. Não sei definir exatamente, mas faz as outras garotas parecerem desajeitadas e sem graça. Qual é o seu segredo?

— Qual é o seu?

Ele sorriu e colocou a mão espalmada em meu peito.

— Sou grande, eis aí o meu segredo. Sou o melhor que existe. Em breve, o mundo inteiro saberá.

Raivosa, afastei-lhe a mão com um tapa, pisei-lhe no pé e me afastei, dizendo:

— Pare com isso!

De repente, com a mesma rapidez com que me encurralou, ele perdeu totalmente o interesse por mim e foi embora, deixando-me de olhos arregalados.

Na maior parte das vezes, eu voltava para casa direto da aula de balé e passava o resto do tempo com Paul. Este era ótima companhia quando não estava cansado. Falava-me de seus pacientes, sem mencionar nomes, e relatava casos de sua infância e de como sempre desejara ser médico, como Chris. Tinha que sair logo depois do jantar para fazer a ronda em três hospitais das redondezas, inclusive um em Greenglenna. Eu tentava ajudar Henny após o jantar, enquanto aguardava que Paul regressasse. Às vezes, assistíamos a programas de TV, outras vezes ele me levava ao cinema.

— Antes de vocês chegarem, eu nunca ia ao cinema.

— Nunca? — indaguei.

— Bem, quase nunca — disse Paul. — Tive alguns encontros antes de você chegar, mas, depois disso, parece que meu tempo disponível desapareceu. Não sei o que some com ele.

— Falar comigo — repliquei, provocando-o ao correr-lhe o dedo pelo rosto bem barbeado. — Acho que sei mais a seu respeito do que sobre qualquer outra pessoa neste mundo, com exceção de Chris e Carrie.

— Não — declarou ele com voz tensa. — Eu não lhe conto tudo.

— Por que não?

— Você não precisa conhecer todos os meus segredos sombrios.

— Já lhe revelei todos os meus segredos sombrios e você não se afastou de mim.

— Vá deitar-se, Catherine!

Ergui-me de um salto, corri até ele e beijei-lhe o rosto, que estava muito corado. Então, saí correndo para a escada. Quando cheguei ao topo, virei-me e deparei com ele parado junto ao pilar do corrimão, olhando para cima como se a visão de minhas pernas abaixo da curta camisola baby-doll cor-de-rosa o fascinasse.

— E não ande pela casa com essas roupas! — advertiu. — Trate de usar um roupão!

— Foi o senhor quem me deu esta camisola, Doutor. Não imaginei que desejasse ver-me coberta do pescoço aos tornozelos. Pensei que queria ver-me com ela.

— Você pensa demais.

De manhã, levantava-me muito cedo, antes das seis, a fim de poder tomar café da manhã com Paul. Este gostava de minha companhia à mesa, embora não o dissesse. Não obstante, eu percebia. Eu conseguira encantá-lo, enfeitiçá-lo. Aprendia a ser cada vez mais como Mamãe. Creio que Paul tentava evitar-me, mas eu não permitia. Era o homem adequado para me ensinar o que eu necessitava saber. Seu quarto ficava perto do meu, mas nunca ousei procurá-lo à noite, como fazia com Chris. Sentia falta de Chris e de Carrie. Quando acordava, doía-me não vê-los no mesmo quarto, sofria ainda mais por não tê-los à mesa do café e, se Paul ali não estivesse, creio que todos os meus dias se iniciariam com lágrimas em vez de sorrisos forçados.

— Sorria para mim, minha Catherine — disse-me Paul certa manhã, quando eu fitava meu prato de canjica, ovos mexidos e toucinho.

Ergui os olhos, despertada por algo que ouvi em sua voz: um tom tristonho, como se ele precisasse de mim.

— Jamais diga meu nome desta maneira outra vez — adverti com voz embargada. — Chris costumava chamar-me de sua Lady Catherine e não gosto de ouvir qualquer outra pessoa dizer que sou sua Catherine.

Paul não disse mais nada, limitando-se a deixar de lado o jornal, levantar-se da mesa e sair para a garagem. De lá, iria aos hospitais e depois voltaria ao consultório em casa; eu só tornaria a vê-lo à hora do jantar. Não o via o suficiente; jamais via o suficiente as pessoas de quem eu gostava. Só nos fins de semana, quando Chris e Carrie estavam em casa, Paul parecia ficar realmente à vontade comigo. Ainda assim, quando Chris e Carrie retornavam às respectivas escolas, algo se interpunha entre nós, uma espécie de centelha sutil que revelava estar Paul tão atraído por mim quanto eu por ele. Tentei adivinhar se seu verdadeiro motivo era o mesmo que o meu. Estaria procurando fugir às lembranças de sua Júlia, deixando me penetrar em seu coração? Exatamente como eu tentava fugir de Chris? Contudo, minha vergonha era maior que a sua ou, pelo menos, era o que eu pensava na época. Julgava ser a única com um passado feio e sombrio. Nunca pude sonhar que alguém tão bom e nobre como Paul tivesse máculas na vida.

Apenas duas semanas se passaram e Julian tornou a voar de Nova York para Clairmont. Desta feita, deixou bem claro que viera apenas para ver-me. Senti-me lisonjeada e um tanto embaraçada, pois ele já atingira o sucesso, enquanto eu ainda me limitava a alimentar esperanças. Julian tinha um velho calhambeque de fundo de quintal, alegando que o carro lhe custara apenas o tempo gasto para montá-lo, pois todas as peças vinham de ferros-velhos.

— Depois de dançar, o que mais gosto de fazer é mexer em automóveis — explicou-me ele, ao dar-me carona da aula de balé para casa. — Algum dia, quando eu for rico, terei carros de luxo: três ou quatro. Ou talvez até sete, um para cada dia da semana.

Ri, pois aquilo me soou por demais extravagante e ostensivo.

— Dançar é tão remunerativo?

— Será, quando eu atingir o topo da carreira — replicou Julian confidencialmente.

Tive que virara cabeça para fitar-lhe o belo perfil. Examinando separadamente as feições, uma a uma, era possível encontrar falhas nelas, pois o nariz poderia ser melhor, a pele necessitava de mais cor e talvez os lábios fossem por demais cheios, vermelhos e sensuais. Em conjunto, porém, o resultado era sensacional.

— Cathy — começou ele, lançando-me um prolongado olhar enquanto o calhambeque seguia tossindo e espirrando. — Você adoraria Nova York. Lá existe tanta coisa para se fazer, para se ver, para se experimentar. Aquele médico com quem você mora não é seu verdadeiro pai; não deve ficar presa a este fim de mundo só para agradá-lo. Pense em Nova York o mais breve possível.

Passou o braço por meus ombros, puxando-me para perto de si.

— Que dupla formaríamos, você e eu — comentou suavemente.

E, num tom persuasivo, pintou em cores vivas um quadro do que seria nossa vida em Nova York. Deixou bem explícito que eu ficaria sob sua proteção e compartilharia de sua cama.

— Eu não o conheço — respondi, movendo-me para ficar o mais longe possível dele. — Não lhe conheço o passado, nem você conhece o meu. Nada temos de semelhante e, embora eu me sinta lisonjeada por sua atenção, também tenho medo de você.

— Por quê? Não tenciono violentá-la.

Detestei-o por dizer aquilo. Não era estupro que me amedrontava. Na verdade, eu não sabia o que me causava medo nele, a menos que sentisse mais medo de mim mesma quando estava a seu lado.

— Diga-me quem é você, Julian Marquet. Conte-me a respeito de sua infância, de seu país. Diga-me por que motivo se julga uma dádiva divina ao mundo do balé e a todas as mulheres que o conhecem.

Com a maior naturalidade, ele acendeu um cigarro, embora não devesse fumar.

— Saia comigo esta noite e lhe darei todas as respostas que deseja.

Chegamos à grande casa em Bellefair Drive. Julian estacionou em frente e olhei para as janelas suavemente iluminadas ao brilho rosado do crepúsculo. Mal consegui discernir a sombra escura de Henny, que espiou para ver quem estacionava o carro à sua porta. Pensei em Paul, mas, acima de tudo, lembrei-me de Chris, a minha outra metade. Chris aprovaria Julian? Julguei que não aprovaria, mas, não obstante, aceitei o convite para sair com Julian naquela noite. E que noite ela se revelou!

 

Meu primeiro encontro

Hesitei em abordar com Paul o assunto de Julian. Era noite de sábado; Chris e Carrie estavam em casa e, na verdade, eu preferiria ir a um cinema com eles e Paul. Foi com grande relutância que mencionei o fato de ter um encontro marcado com Julian Marquet.

— Esta noite, Paul, se você não se importar. Está bem?

Paul lançou-me um olhar cansado e um sorriso amarelo.

— Acho que já é tempo de você começar a sair com rapazes. Ele não é muito mais velho que você, é?

— Não — murmurei, um tanto desapontada por ele não levantar objeções.

Julian chegou pontualmente às oito horas. Estava bem arrumado, com terno novo, sapatos engraxados, os cabelos revoltos bem penteados e maneiras tão perfeitas que nem parecia a mesma pessoa. Apertou a mão de Paul, curvou-se para beijar Carrie. Chris o fitava raivosamente. Meus irmãos estavam andando de bicicleta quando eu falara com Paul a respeito de meu primeiro encontro com um rapaz e, mesmo enquanto Julian me ajudava a vestir um casaco leve, senti a desaprovação de Chris.

Julian levou-me a um restaurante muito elegante, onde luzes coloridas rodopiavam e música de rock enchia o ambiente. Com surpreendente segurança, Julian examinou a lista de vinhos e depois provou a bebida trazida pelo garçom, meneando a cabeça em aprovação. Tudo aquilo era total novidade para mim e senti-me nervosa, temendo cometer uma gafe. Julian entregou-me um cardápio. Minhas mãos tremiam tanto que o devolvi a ele, pedindo-lhe que escolhesse por mim. Eu não sabia ler francês, mas Julian, a julgar pela rapidez com que selecionou nossos pratos, sabia muito bem. Quando a salada e o prato principal chegaram, estavam tão deliciosos quanto ele prometera. Eu usava um vestido novo, bem decotado na frente e por demais adulto para uma garota da minha idade. Desejava parecer sofisticada, embora não o fosse.

— Você é linda — disse Julian, quando eu pensava a mesma coisa a seu respeito, sentindo-me esquisita, como se traísse alguém. — Linda demais para permanecer enfiada aqui nesta aldeia de matutos anos a fio, enquanto minha mãe explora seu talento. Ao contrário do que lhe disse antes, Cathy, não sou primeiro bailarino; apenas faço parte do corpo de baile. Queria impressioná-la. Todavia, tenho absoluta certeza de que se formássemos um par, alcançaríamos grande sucesso. Existe entre nós uma certa magia que jamais encontrei com outra bailarina. Naturalmente, você teria que começar no corpo de baile, mas logo Madame Zolta perceberia que seu talento ultrapassa em muito sua idade e experiência. Ela é uma gralha velha, Cathy, mas nada tem de tola. Tive que dançar como um louco para chegar onde estou, mas poderia facilitar as coisas para você. Com meu auxílio, você progrediria mais depressa que eu. Juntos, formaríamos um par sensacional. Seu tipo louro complementaria o meu moreno: a combinação perfeita.

E prosseguiu naquele tom, quase me convencendo de que eu já era grande bailarina, ao mesmo tempo em que outra parte de mim, bem no fundo, sabia que eu não era sensacional nem estava perto de poder apresentar-me em Nova York. Além disso, havia Chris, a quem eu não poderia ver se fosse para Nova York, Carrie que precisava de mim nos fins de semana. E Paul, que de algum modo tinha um lugar em minha vida; disso eu tinha absoluta certeza. O problema era: que tipo de lugar?

Depois do vinho e do jantar, Julian levou-me para a pista de dança. Logo dançávamos rock como nenhum dos presentes seria capaz. Todos se afastaram para observar e, depois, aplaudir. Eu estava zonza com a proximidade de Julian e a quantidade de vinho que consumira. A caminho de casa, Julian estacionou numa alameda retirada, onde os namorados costumavam parar. Eu jamais fizera aquilo e não estava preparada para alguém tão avassalador quanto Julian.

— Cathy, Cathy, Cathy — murmurava ele, beijando-me o pescoço, as orelhas, enquanto a mão procurava acariciar a parte superior de minha coxa.

— Pare! — gritei — Não faça isso! Não o conheço bem! Está avançando depressa demais!

— Porta-se como uma criança — disse ele, aborrecido. — Tomei um avião em Nova York só para vê-la e nem mesmo permite que eu a beije.

— Julian! — esbravejei. — Leve-me para casa!

— Uma criança — resmungou ele raivosamente, ligando o motor. — Não passa de uma maldita criança linda que tenta e seduz, mas não satisfaz. Cresça, Cathy, pois não estarei por perto pelo resto da vida.

Ele fazia parte do meu mundo, do encantador mundo da dança; de repente tive medo de perdê-lo.

— Por que se chama Marquet quando o sobrenome de seu pai é Rosencoff? — indaguei, estendendo a mão para desligar o motor.

Julian sorriu, recostou-se no banco e virou-se para mim.

— Está bem, se prefere conversar. Creio que você e eu somos muito parecidos, por mais que se recuse a admitir. Madame e Georges são meus pais, mas nunca me encararam como um filho. Especialmente meu pai, que vê em mim uma continuação de si mesmo. Na sua opinião, se eu for um grande bailarino, não será por meu próprio mérito, mas porque sou seu filho e tenho o seu nome. Portanto, resolvi pôr fim a tal idéia e troquei de sobrenome. Inventei um, como faz qualquer artista que resolve mudar de nome. Sabe quantas partidas de beisebol eu já joguei? Nenhuma! Eles nunca permitiram. Futebol estava fora de quaisquer cogitações. Além disso, mantinham-me tão ocupado ensaiando posições de balé que eu estava sempre cansado demais para fazer qualquer outra coisa. Georges nunca me permitiu chamá-lo de “Pai”, mesmo quando eu era pequeno. A partir de uma certa época, eu não o chamaria assim mesmo que ele se prostrasse de joelhos e me implorasse. Sempre me esforcei ao máximo para agradá-lo e nunca consegui. Ele sempre encontrava alguma falha, algum pequeno detalhe que impedia que minhas apresentações fossem perfeitas. Portanto, quando eu me tornar um grande bailarino, será por minha própria conta e ninguém saberá que ele é meu pai! Ou que Marisha é minha mãe. Assim, trate de não espalhar a novidade entre seus colegas. Nenhum deles sabe. Não é engraçado? Tenho um ataque de nervos toda vez que Georges ousa mencionar que tem um filho; então, recuso-me a dançar. Isto quase o mata, de modo que ele permitiu que eu partisse para Nova York, pois julgava que seria incapaz de vencer sem usar o seu nome. Mas venci sem a sua ajuda. E creio que isto também o mata. Agora, fale-me a respeito de você. Por que mora com um médico e não com seus pais?

— Meus pais morreram — declarei, aborrecida com a pergunta. — O Dr. Paul era amigo de meu pai e nos acolheu em sua casa. Teve pena de nós e não quis que fossemos para um orfanato.

— Vocês tiveram sorte — comentou ele com certa amargura. — Eu nunca tive essa felicidade.

Então, aproximou-se até que nossas testas se tocaram e as bocas ficaram bem próximas. Pude sentir-lhe o hálito quente em meu rosto.

— Cathy, não desejo dizer ou fazer qualquer coisa errada com você. Quero transformá-la na melhor coisa que já surgiu em minha vida. Sou o décimo-terceiro membro de uma linhagem de bailarinos que se casaram, na maioria dos casos, com grandes bailarinas. Como supõe que isso me faça sentir? Não muito afortunado, pode apostar. Fui para Nova York quando tinha dezoito anos e completei vinte em fevereiro passado. Dois anos e ainda não sou um astro. Com você, eu poderia ser. Tenho que provar a Georges que sou o melhor, muito melhor do que ele conseguiu ser. Jamais contei isto a alguém, mas machuquei as costas, na adolescência tentando erguer um motor pesado demais. Sinto dores constantes, mas, mesmo assim, continuo a dançar. E não se trata apenas de você ser pequena e leve. Conheço outras bailarinas menores e mais leves, mas você possui algo em suas proporções que parece proporcionar o equilíbrio certo quando eu a levanto. Ou talvez seja porque seu corpo se ajusta às minhas mãos... Seja lá o que for, o fato é que você foi feita sob medida para mim. Por favor, Cathy, venha comigo para Nova York.

— Não se aproveitaria de mim, se eu aceitasse?

— Seria o seu anjo da guarda.

— Nova York é tão grande...

— Conheço-a como a palma de minha mão. Logo você a conhecerá tão bem quanto eu.

— Há meu irmão e minha irmã. Não quero deixá-los ainda tão cedo.

— Eventualmente, será obrigada a deixá-los. Quanto mais tempo permanecer aqui, mais difícil será afastar-se. Cresça, Cathy, torne-se independente. É impossível ser independente em casa, deixando-se dominar pelos outros.

Fitou o espaço, a testa franzida numa expressão de amargura. Senti pena dele e fiquei emocionada.

— Talvez. Deixe-me pensar um pouco mais no assunto.

Quando entrei no quarto para me despir, Chris estava na varanda, perto da minha porta. Quando o avistei lá fora, de pijama, senti-me atraída para ele pela atitude de seus ombros encurvados.

— Como foi? — indagou sem me encarar.

Gesticulei nervosamente.

— Muito bem, creio. Tomamos vinho no jantar. Julian ficou um pouco tocado, acho. Talvez eu também tenha ficado.

Chris se voltou para me fitar nos olhos.

— Não gosto dele, Cathy! Seria melhor que ficasse em Nova York e deixasse você em paz! Pelo que ouvi seus colegas de balé comentarem, Julian arrogou-se o direito de exclusividade sobre você, de modo que nenhum dos outros bailarinos a convidará para sair. Ele é de Nova York, Cathy. Aqueles caras agem depressa e você tem apenas quinze anos!

Avançou para tomar-me nos braços.

— Com quem você tem saído? — indaguei, sufocando um soluço. — Não me diga que não tem saído com garotas.

Ele manteve o rosto colado ao meu quando replicou pausadamente:

— Ainda não conheci uma garota que se comparasse a você.

— Como vão os estudos? — perguntei, tentando desviar-lhe o pensamento de mim.

— Muito bem Quando não estou pensando em tudo o que serei obrigado a estudar no primeiro ano de medicina, anatomia geral, micro-anatomia e neuro-anatomia, consigo preparar-me para o exame de ingresso à faculdade.

— O que faz nas horas vagas?

— Que horas vagas? Não me sobra tempo quando paro de me preocupar com o que possa estar acontecendo com você! Gosto do curso, Cathy. Realmente teria prazer em fazê-lo se não passasse o tempo todo pensando em você. Vivo à espera dos fins-de-semana, quando posso rever Carrie e você.

— Oh! Chris... precisa esquecer-me e tentar encontrar outra pessoa.

Mas um simples olhar à sua expressão torturada foi-me suficiente para compreender que o que se iniciara há tanto tempo atrás não seria fácil de deter. Eu precisava tratar de encontrar outra pessoa, pois só assim Chris perceberia que tudo acabara para sempre. Meus pensamentos se voltaram para Julian, que tanto lutava para provar que era melhor bailarino que o pai. Como era semelhante a mim, que tinha a necessidade de mostrar-me melhor que minha mãe em todos os sentidos!

Da outra vez que Julian veio de Nova York, eu estava preparada. Não negaceei quando ele me convidou para sair. Era melhor que fosse ele; afinal tínhamos os mesmos objetivos. Então, após um cinema e uma visita a um clube para tomarmos um refrigerante e uma cerveja, ele tornou a levar o carro para a alameda dos namorados que, aparentemente, existia em todas as cidades. Desta feita, permiti que ele fosse um pouco além de beijar-me. Logo ele se tornou ofegante, tocando-me com tanta perícia que em breve comecei a corresponder, mesmo involuntariamente. Julian deitou-me de costas no assento. De repente, percebi o que ele pretendia fazer. Agarrei minha bolsa e comecei a bater-lhe com ela no rosto.

— Pare! Já lhe disse antes: vamos mais devagar!

— Foi você quem pediu! — esbravejou ele. — Não pode acender-me e depois apagar-me. Detesto garotas deste tipo!

Lembrei-me de Chris e comecei a chorar.

— Por favor, Julian. Gosto de você, palavra de honra, mas não me dá oportunidade de amá-lo. Por favor, pare de agir com tanta pressa!

Julian agarrou-me o braço e torceu-o impiedosamente para as costas até que gritei de dor. Julguei que pretendesse quebrá-lo, mas ele me soltou quando eu já estava prestes a berrar de pavor.

— Ouça. Cathy. Já estou meio apaixonado por você, mas garota nenhuma pode tratar-me como um matuto. Existem muitas garotas dispostas a se entregarem. Portanto, não preciso de você tanto quanto imagina; não em troca de nada!

Naturalmente Julian não precisava de mim. Ninguém precisava de mim, exceto Chris e Carrie, embora Chris necessitasse de mim de um modo errado. Mamãe o perturbara e distorcera, empurrando-o para mim; agora, ele não conseguia afastar-se. Mamãe tinha que pagar por tudo que nos causara de errado. Se Chris e eu tínhamos pecado, ela nos obrigara a isso.

Naquela noite pensei muito em uma maneira de poder fazer Mamãe pagar e encontrei a resposta exata, o preço que lhe causaria maior sofrimento. Não seria dinheiro, pois isto ela tinha de sobra. Teria que ser alguma coisa que ela prezasse mais que dinheiro. Duas coisas: sua honrada reputação, um tanto prejudicada pelo fato de haver-se casado com seu meio-tio, e seu jovem marido. Ela perderia ambas, quando eu desse minha tarefa por terminada.

Então chorei. Por Chris, por Carrie que não crescia e por Cory que, provavelmente, não passava de um monte de ossos na sepultura. Virei-me na cama, querendo abraçar Carrie e estreitá-la contra mim. Mas Carrie estava no internato para meninas, a dezesseis quilômetros do perímetro urbano. A escola de Chris ficava a cinqüenta quilômetros. Chovia forte. O matraquear das gotas no telhado era como o rufar de tambores militares que me levavam a sonhar e voltar exatamente para onde eu não desejava. Vi-me jogada de volta num quarto trancado, abarrotado de brinquedos, jogos e grandes móveis escuros, com gravuras do inferno nas paredes. Sentada numa velha cadeira de balanço prestes a desmontar-se, eu segurava no colo um frágil irmãozinho que me chamava de “Mamãe”, acalentando-o enquanto as tábuas do assoalho rangiam, o vento uivava, a chuva batia com força e, por cima, por baixo e em torno de nós, a enorme mansão com incontáveis aposentos aguardava o momento de devorar-nos.

Detestei a chuva que caía logo acima de minha cabeça, como costumava cair quando éramos prisioneiros. Como nossa vida piorava quando chovia e o quarto se tornava úmido e frio, quando no sótão só havia uma escuridão deprimente e rostos mortos ao longo das paredes. Faixas como tecido cinza de nossa avó vieram apertar-me a cabeça, esmagando-me os pensamentos, confundindo-me e aterrorizando-me. Não conseguindo dormir, saí da cama e vesti um negligé transparente. Por algum motivo peculiar, esgueirei-me até o quarto de Paul e abri cautelosamente a porta. O despertador na mesinha de cabeceira marcava duas horas e ele ainda não estava em casa! Ninguém na casa exceto Henny, que ficava tão longe, na outra extremidade da casa, em seu quarto adjacente à cozinha. Sacudi a cabeça e tornei a olhar para a cama perfeitamente arrumada de Paul. Oh! Chris era louco ao desejar ser médico! Jamais teria uma noite inteira de repouso. E estava chovendo. Ocorriam muitos acidentes em noites chuvosas. Se Paul morresse? O que seria de nós? “Paul, Paul!” gritei com meus botões ao correr para a escada, descendo-a depressa e indo espiar pelas vidraças da sala. Rezei para ver um carro branco estacionado na alameda de acesso ou chegando ao portão. “Meu Deus!” Implorei. “Não permita que ele sofra um acidente! Por favor, não o leve como levou Papai! Por favor!”

— Cathy, por que não está deitada?

Girei nos calcanhares. Lá estava Paul, confortavelmente sentado em sua poltrona predileta, fumando um cigarro no escuro. A luz mal dava para perceber que ele usava o roupão vermelho que lhe tínhamos dado de presente no Natal. Fui invadida por um grande alívio ao vê-lo em segurança e não estendido, morto, sobre uma mesa de necrotério. Pensamentos mórbidos. Papai, mal consigo lembrar-me de sua fisionomia ou do som de sua voz. E aquele seu cheiro característico desapareceu.

— Há algo errado, Catherine?

Errado? Por que ele me chamava de Catherine à noite; quando estávamos sozinhos, e só Cathy durante o dia? Tudo estava errado! Os jornais de Greenglenna e o da Virgínia que eu assinara e recebia na escola de balé falavam a respeito das providências tomadas pela Sra. Bartholomew Winslow para instalar sua segunda casa “de inverno” em Greenglenna. Mandara realizar uma extensa reforma para que o lar do marido ficasse restaurado exatamente como quando fora construído. Minha mãe só se satisfazia com o melhor! Por algum motivo que nem mesmo eu conhecia, ataquei Paul como uma megera:

— Há quanto tempo está em casa? — bradei. — Preocupei-me tanto com você que nem consegui dormir! E você estava aqui, o tempo todo! Não veio jantar hoje. Também não veio jantar ontem; devia levar-me ao cinema, mas esqueceu completamente! Terminei os deveres de casa, vesti as melhores roupas e fiquei sentada, esperando que você aparecesse, mas esqueceu-se! Por que permite que os pacientes lhe façam tantas exigências que o impedem de ter sua própria vida?

Paul passou muito tempo sem responder. Então, quando tornei a abrir a boca para falar, ele disse num tom suave:

— Parece mesmo perturbada. A única desculpa que posso apresentar é dizer que sou médico e o tempo de um médico nunca lhe pertence. Sinto muito ter esquecido o cinema. Peço-lhe desculpas por não ter telefonado para explicar que houve uma emergência e não pude voltar a tempo.

— Esqueceu-se... como pôde esquecer-se? Ontem, esqueceu-se de trazer as coisas da lista que lhe entreguei, de modo que após esperar horas a fio por você, fiquei sentada na esperança de que talvez trouxesse o xampu que lhe pedi. Mas você não trouxe!

— Mais uma vez, peço-lhe desculpas. Às vezes, tenho algo na cabeça além do cinema e do xampu que você pediu.

— Está sendo sarcástico?

— Estou tentando controlar a raiva. Seria ótimo se você pudesse controlar a sua.

— Não estou com raiva! — berrei.

Paul era tão semelhante a Mamãe, tão controlado, tão seguro, quando eu jamais conseguia sê-lo! Não se importava. Por este motivo, conseguia permanecer sentado, olhando para mim daquela forma! Realmente não se importava de fazer promessas e não as cumprir, como ela! Avancei para agredi-lo, mas ele me segurou os pulsos, fitando-me totalmente surpreso.

— Seria capaz de me bater, Catherine? Será que ir ao cinema significa tanto para você que não consegue compreender como pude esquecer-me? Agora peça desculpas por ter gritado comigo, da mesma forma que lhe pedi desculpas por desapontá-la.

O que me torturava era algo mais que simples desapontamento! Em lugar nenhum existia alguém em quem eu pudesse confiar, à exceção de Chris, que era território proibido para mim. Só Chris jamais se esqueceria de algo que eu desejasse ou necessitasse. Estremeci. Oh! que tipo de pessoa era eu? Seria tão semelhante a Mamãe a ponto de ter que conseguir tudo o que queria, quando queria, sem me importar com o que pudesse custar aos outros? Pretenderia obrigar Paul a pagar pelo mal que ela me causara? Ele não tinha a menor culpa.

— Paul, desculpe-me ter gritado. Eu o compreendo.

— Deve estar muito cansada. Talvez leve as aulas de balé a sério demais. Talvez deva relaxar um pouco.

Como poderia eu explicar-lhe que era impossível relaxar? Eu tinha que ser a melhor e ser a melhor em qualquer atividade significava horas e horas de trabalho insano. Eu estava disposta a abrir mão totalmente de todos os divertimentos aproveitados pelas moças da minha idade. Não queria um namorado que não fosse bailarino. Não queria amigas que não dançassem. Não queria coisa nenhuma que pudesse constituir obstáculo à minha carreira e, não obstante... não obstante... ali sentado, encarando-me, estava um homem que declarava necessitar de mim e ficara magoado com a maneira detestável pela qual eu o tratara.

— Hoje, li a respeito de minha mãe — declarei, sem jeito. — Está remodelando e redecorando uma casa. Ela sempre consegue o que quer. Eu nunca consigo alguma coisa. Portanto, sou malcriada com você e me esqueço de tudo o que fez por nós.

Recuei alguns passos, com uma vergonha que chegava a doer.

— Há quanto tempo está em casa? — indaguei.

— Desde onze e meia — respondeu Paul. — Comi a salada e o bife que Henny deixou para mim no forno. Mas não consigo dormir bem quando estou fatigado demais. E não gosto do barulho da chuva no telhado.

— Porque a chuva o isola do resto do mundo, causando-lhe solidão?

Paul sorriu de leve.

— Sim, algo mais ou menos desse tipo. Como adivinhou?

O que ele sentia estava estampado no rosto tão sombrio quanto a espaçosa sala de estar. Paul pensava nela: em Júlia, sua falecida esposa. Sempre apresentava um semblante triste quando se lembrava dela. Aproximei-me da poltrona e, impulsivamente, estendi a mão para tocar-lhe o rosto.

— Por que continua a fumar? Como pode aconselhar os pacientes a deixarem o vício, se você mesmo não o faz?

— Como sabe o que digo aos meus pacientes? — indagou ele naquela voz macia que me provocava arrepios na espinha.

Soltei um riso nervoso, replicando que nem sempre ele fechava bem a porta do consultório e, se eu estivesse no corredor dos fundos, às vezes escutava certas coisas, embora involuntariamente. Ele replicou que eu devia ir para a cama e deixar de perambular pelo corredor dos fundos, que não era meu lugar. Acrescentou que continuaria a fumar enquanto desejasse.

— Às vezes, porta-se como uma esposa, fazendo perguntas dessa espécie e zangando-se porque me esqueci de comprar algo para você na farmácia. Tem certeza de que está tão desesperadamente necessitada de xampu?

Sentindo-me tola, tornei a zangar-me.

— Só lhe pedi que me trouxesse as coisas daquela lista porque você costuma passar por uma drogaria onde tudo é mais barato! Minha intenção era apenas economizar seu dinheiro! De agora em diante, nunca mais lhe pedirei para comprar algo de que eu necessite! Quando você me convidar para jantar fora ou ir a um cinema, estarei preparada para ser desapontada e, assim, não me desapontarei. Acho melhor estar pronta para esperar o pior de todo mundo.

— Catherine! Pode odiar-me, se é o que deseja. Pode fazer-me pagar por tudo o que sofreu. Então, talvez consiga dormir à noite, em vez de se debater na cama, chorar dormindo e chamar por sua mãe como uma criança de três anos.

Aturdida, arregalei os olhos.

— Eu chamo por ela?

— Sim. Muitas e muitas vezes eu a ouvi chamar por sua mãe — respondeu ele, com os olhos cheios de pena. — Não se envergonhe de ser humana, Catherine. Todos nós esperamos o melhor de nossas mães.

Eu não queria falar a respeito dela. Portanto, aproximei-me outra vez da poltrona.

— Julian está de volta à cidade. Já que você me deu o bolo ontem, saí com ele esta noite. Julian acha que estou pronta para enfrentar Nova York. Acredita que sua professora de balé, Madame Zolta, poderá desenvolver-me mais depressa que sua mãe. Julga que, juntos, formaremos um par brilhante.

— E o que pensa você?

— Acho que ainda não estou pronta para enfrentar Nova York — murmurei. – Mas Julian fala com tanto entusiasmo que às vezes me faz acreditar, porque parece tão convicto.

— Vá devagar, Catherine. Julian é um jovem bonito, com arrogância suficiente para dez homens maduros. Trate de usar o seu bom senso e não se deixe influenciar por alguém que talvez deseje apenas usá-la.

— Toda noite sonho que estou em Nova York, no palco. Vejo minha mãe na platéia, observando-me cheia de incredulidade. Ela quis me matar. Eu quero que ela me veja dançar e compreenda que tenho muito mais que ela a dar ao mundo.

Paul franziu a testa, como se tivesse levado uma punhalada.

— Por que sente tanta necessidade de vingar-se? Julguei que acolhendo vocês três e fazendo o melhor possível em seu favor, você encontraria a paz e perdoaria tudo. Não consegue perdoar e esquecer? A única possibilidade que nós, pobres seres humanos, temos de alcançar a santidade é aprendendo a perdoar e esquecer.

— Você e Chris — atalhei com amargura. — Para você, é fácil falar em perdoar e esquecer, porque não foi vítima. Mas eu fui. Perdi meu irmão mais moço, que era como um filho para mim. Eu amava Cory e ela lhe roubou a vida. Eu a odeio por isso! Odeio por dez milhões de motivos, portanto, não me venha falar em perdoar e esquecer, pois ela terá que pagar pelo que fez! Mentiu para nós, traindo-nos da pior maneira possível! Não nos disse uma só palavra que nos informasse da morte de nosso avô e continuou a manter-nos trancados durante nove longos meses e nesses nove meses intermináveis, alimentou-nos com doces envenenados! Assim, não se atreva a falar em perdoar e esquecer! Não sei como perdoar ou esquecer! Só sei odiar! E você nem imagina o que seja odiar como eu odeio!

— Não, mesmo? — replicou ele num tom inexpressivo.

— Não. Você não sabe.

Quando comecei a soluçar, com as lágrimas escorrendo-me pelo rosto, Paul sentou-me em seu colo. Reconfortou-me como um pai, com beijinhos suaves e mãos caridosas que me acariciavam.

— Catherine, também tenho minha estória para contar. Talvez, sob certos aspectos, se iguale ao horror da sua. Talvez, se eu lhe contar, você consiga tirar proveito de algo que aprendi.

Observei-lhe o rosto. Paul afrouxou os braços em torno de mim, recostando-se na poltrona.

— Vai contar-me a respeito de Júlia e Scotty?

— Sim — a voz dele assumiu um tom duro. Com os olhos fixos nas vidraças banhadas pela chuva, apertou-me a mão com força. — Você julga que apenas sua mãe cometeu crimes contra as pessoas que ama. Pois está enganada. Isso acontece todos os dias. Às vezes, no intuito de ganhar dinheiro. Contudo, existem outros motivos.

Fez uma pausa, suspirou e prosseguiu:

— Espero que você, após escutar minha estória, consiga voltar para a cama e esquecer a vingança. Se não conseguir, causará mais mágoa a si mesma que a qualquer outra pessoa.

Eu não acreditei naquilo porque não desejava acreditar, mas estava bastante ansiosa para saber como Júlia e Scotty haviam morrido no mesmo dia. Quando Paul começou a falar de Júlia, tive medo do final. Fechei os olhos com força, desejando então que meus ouvidos não fossem obrigados a escutar, pois não necessitava de mais nada para acrescentar à angústia que já sentia por um menino morto. Mas Paul falou por minha causa, para salvar-me; como se isto fosse possível!

— Júlia e eu éramos namorados de infância. Ela nunca teve outro namorado; eu nunca tive outra namorada. Júlia me pertencia e eu fazia questão de deixar o fato bem evidente para todos os outros meninos. Nunca proporcionei a mim mesmo, nem a ela, a oportunidade de experimentar como eram os outros e isto foi um erro terrível. Fomos bastante tolos para acreditarmos que nosso amor duraria para sempre. Namorávamos firmes e trocávamos cartas, embora morássemos apenas a alguns quarteirões de distância um do outro. Com o decorrer do tempo, Júlia tornou-se cada vez mais bela. Eu me julgava o sujeito mais afortunado do mundo e Júlia me achava perfeito. Colocamo-nos mutuamente em pedestais. Ela seria a esposa perfeita para um médico e eu seria o marido ideal; teríamos três filhos. Júlia era filha única, mimada pelos pais. Ela adorava o pai e costumava dizer que eu era como ele.

Neste ponto, a voz de Paul se tornou mais profunda, como se o que tinha a dizer fosse muito doloroso.

— Coloquei um anel de noivado no dedo de Júlia no dia em que ela completou dezoito anos. Na época, eu tinha dezenove. Quando fui para a universidade, lembrava-me dela aqui e imaginava que homem a estaria cobiçando. Tinha medo de perdê-la para outro, se não nos casássemos logo. Portanto, casamo-nos quando Júlia tinha dezenove anos e eu vinte.

Sua voz assumiu um tom amargo, os olhos ficaram inexpressivos e seus braços me estreitaram.

— Júlia e eu nos beijáramos muitas vezes e andávamos sempre de mãos dadas, mas ela jamais permitiu que eu fizesse algo mais íntimo; isto teria que esperar até que ela tivesse uma aliança no dedo. Eu tivera algumas experiências sexuais, não muitas. Júlia era virgem e julgava que eu também fosse. Não levei meus votos matrimoniais na brincadeira e estava decidido a ser exatamente o tipo de marido capaz de fazê-la feliz. Amava-a muito. Assim, na nossa noite de núpcias, Júlia levou duas horas para despir-se no banheiro. Entrou no quarto usando uma longa camisola branca e tinha o rosto tão branco quanto a camisola. Percebi que estava aterrorizada. Convenci-me de que me portaria com tanta ternura e amor que ela feria prazer em ser minha esposa. Júlia não sentia prazer no sexo, Cathy. Fiz o possível para excitá-la, enquanto ela se encolhia com os olhos arregalados e cheios de pavor; gritou quando tentei despir-lhe a camisola. Depois que ela me implorou que lhe desse mais tempo, parei e decidi tentar outra vez na noite seguinte. Entretanto, na noite seguinte tudo se repetiu, só que pior. Ela indagou, lacrimosa: “Ora, por que não pode ficar aqui deitado e apenas me abraçar? Por que tem que ser tão feio?” Eu também era apenas um menino e não sabia como enfrentar uma situação daquelas. Amava Júlia, desejava-a e, afinal, terminei por possuí-la à força ou, pelo menos, era o que ela não se cansava de repetir. Não obstante, eu a amava. Amara-a durante a maior parte de minha vida e simplesmente não conseguia acreditar que fizera a escolha errada. Portanto, passei a ler todos os livros sobre relações sexuais que consegui encontrar, tentando todas as técnicas para excitá-la e fazer com que me desejasse, mas só lhe causei repulsa. Comecei a beber depois que me formei na universidade e, quando sentia vontade, procurava alguma outra mulher que tivesse prazer em minha companhia na cama. Os anos se passaram enquanto Júlia se mantinha distante, tratando de conservar a casa limpa e arrumada, lavar minhas roupas, passar minhas camisas e pregar os botões que caíam. Era tão linda, tão desejável e estava tão próxima de mim que eu ocasionalmente a forçava, embora ela sempre chorasse depois. Então Júlia descobriu que estava grávida. Fiquei eufórico e creio que ela também. Nunca uma criança foi tão amada e mimada como meu filho e, felizmente, era o tipo de menino que não se deixa estragar por excesso de amor.

A voz de Paul passou para um tom ainda mais grave, enquanto me aninhei melhor em seus braços, temendo o que estava por vir, pois sabia que era algo terrível.

— Após o nascimento de Scotty, Júlia disse-me sem maiores rodeios que já cumprira o seu dever, dando-me um filho, e que daquele momento em diante eu deveria deixá-la em paz. Não me incomodei com ter de deixá-la em paz, mas fiquei profundamente magoado. Conversei com a mãe dela a respeito de nosso problema e minha sogra insinuou que havia um sombrio segredo no passado de Júlia, algo a respeito de um primo que lhe fizera certas coisas quando ela tinha apenas quatro anos de idade. Jamais fiquei sabendo ao certo o que fez o primo, mas, fosse lá o que fosse, inibiu para sempre o sexo de minha esposa. Sugeri a Júlia que fôssemos ambos consultar um conselheiro matrimonial ou um psicólogo, mas ela se recusou terminantemente, alegando que seria por demais embaraçoso e querendo saber por que motivo eu não podia deixá-la em paz.

— Depois disso, deixei-a realmente em paz — prosseguiu Paul. — Sempre havia por perto mulheres dispostas a satisfazer os desejos de um homem e eu tinha no consultório uma linda recepcionista que não fazia, segredo de estar mais do que disponível a qualquer hora e em qualquer lugar. Tivemos um caso que durou vários anos. Julguei que éramos ambos muito discretos e que ninguém tinha conhecimento de nossas relações. Então, certo dia, ela me procurou para dizer que estava esperando um filho meu. Não pude acreditar, pois ela me dizia que tomava pílulas anticoncepcionais. Nem mesmo pude acreditar que a criança fosse minha, pois sabia que ela possuía vários amantes. Portanto, recusei-me a pedir divórcio de minha esposa e arriscar-me a perder Scotty para servir de pai a um filho que talvez nem fosse meu. Ela perdeu a calma. Naquela noite, voltei para casa e encontrei uma esposa que eu jamais tivera oportunidade de conhecer. Júlia acusou-me furiosamente de infidelidade conjugal, argumentando que fizera o melhor possível e dera-me o filho que eu tanto desejava. Agora, eu a traía, quebrando meus votos matrimoniais e transformando-a em alvo de zombaria da cidade inteira! Ameaçou matar-se. Tive pena dela quando gritou que me faria pagar caro, que me faria sofrer! Já ameaçara matar-se antes, mas nunca tentara o suicídio. Julguei que aquela explosão serviria para purificar a atmosfera entre nós. Júlia nunca mais me falou no caso. Na verdade, parou de falar comigo, a não ser quando Scotty estava por perto, pois desejava que nosso filho tivesse um lar normal, com pais ostensivamente felizes. Eu lhe dera um filho que ela amava de forma quase irracional.

— Então, chegou o mês de junho e o aniversário de Scotty, que completava três anos. Júlia planejou para ele uma festa de aniversário e convidou seis outras crianças que, naturalmente, viriam com as respectivas mães. Foi num sábado. Eu estava em casa e, a fim de ajudar a acalmar Scotty, que estava por demais excitado com a perspectiva da festa, dei-lhe um veleiro de brinquedo para combinar com a roupa de marinheiro que ele usaria naquele dia. Júlia, vestindo voile azul, desceu a escada com Scotty. Seus belos cabelos escuros estavam amarrados para trás com uma fita de cetim azul. Scotty segurava a mão da mãe e trazia sob o outro braço o veleiro que eu lhe dera. Júlia me disse que temia não ter comprado balas suficientes para a festa e, já que fazia um dia tão lindo, iria a pé com Scotty até a confeitaria mais próxima, a fim de comprar mais balas. Ofereci-me para levá-los no carro, mas ela recusou, pois queria que eu permanecesse em casa para a eventualidade de algum convidado chegar antes da hora. Sentei-me na varanda da frente e esperei. Dentro de casa, a mesa da sala de jantar estava arrumada para a festa, com bolas penduradas no lustre, línguas-de-sogra, chapéus de palhaço e outros brindes para as crianças. Henny preparara um bolo enorme.

— Os convidados começaram a chegar por volta das duas horas. Júlia e Scotty ainda não tinham voltado. Comecei a ficar preocupado, de modo que peguei o carro e fui à confeitaria, esperando vê-los no caminho. Mas não os vi. Na confeitaria, perguntei se tinham comprado balas, mas ninguém os vira lá. Foi então que comecei a sentir-me realmente amedrontado. Rodei pelas ruas a procurá-los, parando para indagar dos transeuntes se tinham visto uma senhora vestida de azul e um menino com roupa de marinheiro. Acho que interroguei cinco ou seis pessoas antes que um rapaz de bicicleta me desse uma resposta positiva: vira uma senhora de azul e um menino carregando um veleiro de brinquedo. Apontou a direção que haviam tomado. Dirigiam-se ao rio! Segui com o carro até onde me foi possível. Então, saltei e corri a pé ao longo da trilha de terra, temendo chegar lá tarde demais. Tentei acalmar-me, dizendo com meus botões que Scotty apenas desejava colocar o bote e flutuar no rio, como eu costumava fazer quando criança. Corri tão depressa que meu coração chegou a doer. Então, cheguei à margem gramada do rio. Lá estavam eles: ambos flutuavam na água, de rosto para cima. Júlia mantinha os braços apertados em torno de Scotty, que obviamente lutara para libertar-se dela. O pequeno veleiro vagava ao sabor da correnteza. A fita azul se soltara do cabelo de Júlia e também flutuava. As mechas de longos cabelos escuros estendiam-se para enroscar-se nas plantas aquáticas. O rio era raso, chegando apenas à altura dos joelhos de uma pessoa adulta.

Sentindo a terrível angústia de Paul, produzi um som sufocado, mas ele não escutou. Prosseguiu:

— Num piscar de olhos, tomei-os nos braços e os trouxe de volta à margem. Júlia ainda vivia, mas Scotty parecia morto. Portanto, tentei tratar dele, num esforço inútil para fazê-lo recobrar os sentidos. Fiz todo o possível para bombear-lhe a água dos pulmões, mas meu filho estava morto. Então, repeti o processo com Júlia, que tossiu, engasgou-se e vomitou a água. Não abriu os olhos, mas, pelo menos, ainda respirava. Coloquei-os ambos no carro e os levei ao hospital mais próximo onde os médicos lutaram desesperadamente para reviver Júlia. Mas não conseguiram, da mesma forma que eu não conseguira reviver Scotty.

Paul fez uma pausa e me fitou no fundo dos olhos.

— Eis a minha estória para uma garota que julga ser a única pessoa que sofreu, a única que perdeu alguém, a única que tem saudade e tristeza. Oh! Eu tenho saudade e tristeza como você, mas também carrego comigo o remorso. Deveria ter percebido quão instável era Júlia. Assistimos à Medéia na TV, poucos dias antes do aniversário de Scotty, e Júlia demonstrara um interesse desusado, embora não gostasse de televisão. Fui estúpido por não perceber o que ela estava pensando e planejando fazer. Não obstante, mesmo agora ainda não consigo compreender como ela foi capaz de matar nosso filho, a quem tanto amava. Poderia ter-se divorciado de mim e eu não lhe tiraria Scotty. Contudo, isso não seria vingança suficiente para Júlia. Ela teve que matar a pessoa que eu mais amava: meu filho.

Não consegui falar. Que espécie de mulher fora Júlia? Semelhante à minha mãe? Minha mãe matara para ganhar uma fortuna. Júlia matara por vingança. Faria eu a mesma coisa? Não, não, claro que não. Minha maneira seria melhor, muito melhor, pois ela continuaria viva para continuar sofrendo interminavelmente.

— Sinto muito — declarei com voz embargada, com tanta pena que tive necessidade de beijar o rosto de Paul. — Mas você pode ter outros filhos. Pode casar-se novamente.

Abracei-o quando ele sacudiu a cabeça.

— Esqueça Júlia! — exclamei, abraçando-lhe o pescoço e estreitando-me contra ele. — Não vive me dizendo para perdoar e esquecer? Perdoe-se e esqueça o que aconteceu a Júlia.

Lembrei-me de meu pai e minha mãe; estavam sempre acariciando-se e beijando-se. Desde pequenina, sei que os homens precisam ser amados e acariciados. Costumava observar minha mãe para ver como ela amansava Papai se este ficava zangado. Fazia-o por meio de beijos, olhares ternos e pequenas carícias. Joguei a cabeça para trás e sorri para Paul como vira Mamãe sorrir para Papai.

— Diga-me como uma esposa deve agir na noite de núpcias. Não quero desapontar meu noivo.

— Não lhe direi tal coisa!

— Então eu apenas fingirei que você é meu noivo e que acabo de sair do banheiro, depois de me despir. Ou acha melhor despir-me na sua frente? Que tal?

Ele pigarreou e tentou afastar-me de si, mas agarrei-me como visgo.

— Acho que você deve ir para a cama e esquecer essa brincadeira de fingir.

Permaneci onde estava. Beijei-o repetidamente e logo ele começou a corresponder. Senti-lhe a carne esquentar, mas, de repente, seus lábios se contraíram numa linha firme sob os meus e ele passou os braços por baixo de meus joelhos e ombros. Levantou-se comigo nos braços e se encaminhou para a escada. Julguei que me levava a seu quarto a fim de fazermos amor e me senti amedrontada, envergonhada, mas também ansiosa e excitada. Entretanto, Paul foi direto ao meu quarto e, parando ao lado de minha cama estreita, hesitou. Apertou-me contra o coração por um tempo dolorosamente prolongado, enquanto a chuva fustigava as vidraças. Paul deu a impressão de esquecer-se de quem eu era e roçou o rosto áspero no meu, acariciando-me sem usar as mãos. Mais uma vez, como sempre, tive que falar e estragar tudo.

— Paul...

Minha voz tímida arrancou-o de um devaneio que, se eu ficasse calada, talvez me conduzisse mais cedo ao êxtase sempre adiado pelo qual meu corpo tanto ansiava.

— Quando estávamos trancados no quarto, nossa avó nos chamava de filhos do Demônio. Dizia que éramos sementes daninhas plantadas no solo errado e jamais produziríamos algo de bom. Tornou-nos inseguros a respeito do que éramos, fazendo-nos duvidar de que tínhamos direito de viver. Foi tão terrível o que Mamãe fez: casar-se com seu meio-tio, que era apenas três anos mais velho que ela? Nenhuma mulher que tivesse um coração dentro do peito seria capaz de resistir a ele. Tenho certeza de que eu não resistiria. Ele era como você. Nossos avós julgavam que nossos pais haviam cometido um pecado mortal e, por isso, éramos desprezados, até mesmo os gêmeos, tão pequenos e adoráveis. Chamavam-nos de corruptos. Tinham razão? Estavam certos ao desejarem matar-nos?

Eu pronunciara exatamente as palavras certas para trazer Paul de volta à realidade. Largou-me depressa e virou a cabeça para o lado, a fim de que eu não lhe visse os olhos. Eu detestava quando as pessoas ocultavam os olhos e eu não podia ler neles a verdade sobre o que pensavam.

— Creio que seus pais estavam muito apaixonados e eram muito jovens — disse Paul numa voz tensa e estranha. — Tão apaixonados que não pararam a fim de analisar o futuro e as conseqüências.

— Oh! — exclamei, ultrajada. — Acha que os avós tinham razão; que somos frutos do mal!

Ele girou para me encarar, os lábios cheios e sensuais entreabertos, uma expressão furiosa no rosto.

— Não torça o que digo para satisfazer sua necessidade de vingança. Nunca existe motivo suficiente para justificar homicídio, a menos que seja em legítima defesa. Vocês não são maus. Seus avós eram tolos preconceituosos que deveriam ter aprendido a aceitar a realidade e aproveitá-la da melhor forma possível. E tinham muito de que se orgulharem dos quatro netos que seus pais lhes deram. E, caso seus pais tenham assumido um risco calculado quando resolveram ter filhos, eu diria que acertaram em cheio. Deus e as probabilidades tomaram seu partido e deram a vocês muita beleza, o dom de saber apreciá-la e, talvez, até mesmo um excesso de talentos. Não há dúvida de que tenho à minha frente uma garota fervilhante de emoções adultas, grandes demais para seu tamanho e idade.

— Paul...?

— Não me olhe assim, Catherine.

— Não sei como estou olhando.

— Vá dormir, Catherine Sheffield, imediatamente!

— Como me chamou? — perguntei, enquanto ele recuava em direção à porta. Paul sorriu.

— Não foi uma falha freudiana, se é isso que está pensando. Dollanganger é um nome comprido demais. Sheffield seria uma escolha bem melhor. Podemos providenciar para que seu nome seja mudado legalmente.

— Oh! — murmurei, doente de desapontamento.

— Escute aqui, Catherine — disse ele da porta, tão volumoso que bloqueava a luz do corredor. — Está jogando um jogo perigoso. Tenta seduzir-me; é muito linda e difícil de resistir. Mas seu lugar em minha vida é o de filha, nada mais que isso.

— Estava chovendo naquele dia de junho em que você sepultou Júlia e Scotty?

— Que diferença faz? Qualquer dia em que enterramos entes queridos é chuvoso!

E se afastou de minha porta, caminhando depressa para seu quarto, onde entrou e bateu a porta com força. Portanto, eu tentara duas vezes e ele me rejeitara outras tantas. Agora, eu estava livre para prosseguir meu alegre e destrutivo caminho, para dançar cada vez mais, até chegar ao topo. E isto seria uma lição para Mamãe, que só sabia bordar e tricotar, ensinando-lhe quem era mais inteligente e talentosa. Ela veria quem era capaz de ganhar uma fortuna por seus próprios meios, sem precisar vender o corpo, sem apelar para assassinato a fim de herdá-la! O mundo inteiro tomaria conhecimento de mim! Comparar-me-iam com Anna Pavlova e me considerariam melhor. Minha mãe compareceria a uma festa em minha homenagem, acompanhada pelo marido. Estaria velha, abatida, cansada, enquanto eu seria fresca e jovem: seu marido Bart viria diretamente a mim, embevecido, para beijar-me a mão.

“É a mulher mais linda e talentosa do mundo” diria ele.

E bastaria seu olhar para demonstrar que me amava, dez vezes mais do que jamais amara minha mãe. Então, quando eu possuísse Bart e ela estivesse sozinha, abandonada, eu revelaria a ele minha verdadeira identidade. A princípio, ele não acreditaria. Depois, acabaria acreditando. E odiaria minha mãe! Tomar-lhe-ia todo o dinheiro. Para onde iria a fortuna? Parei, confusa. Que seria feito do dinheiro se fosse tomado de Mamãe? Voltaria à avó? Certamente não viria para nós, Chris, Carrie e eu, pois não existíamos como membros da família Foxworth. Então sorri com meus botões ao lembrar-me das quatro certidões de nascimento que eu encontrara costuradas sob o forro de uma das nossas velhas maletas. Comecei a rir. Oh! Mamãe! Quantas coisas estúpidas você fez! Imaginem: esconder as certidões de nascimento! Com aqueles documentos, eu podia provar que Cory existira; sem eles, seria a minha palavra contra a dela, a menos que a polícia decidisse ir a Gladstone e encontrasse o médico que fizera o parto dos gêmeos. E havia também nossa antiga babá Sra. Simpson... e Jim Johnston. Oh! Eu esperava que nenhum deles se tivesse mudado da cidade e que todos ainda se lembrassem das quatro “Bonecas de Dresden”. E eu sabia que era má, nascida para ser má, como dissera minha avó desde o início. Fora castigada antes de cometer qualquer ato mau; portanto, por que não permitir que o castigo correspondesse a um crime que ainda estava por ser cometido? Não havia motivo pelo qual eu devesse ser perseguida e desgraçada pelo simples fato de haver, numa ocasião de sofrimento e miséria, procurado refúgio nos braços de meu irmão. Apenas me voltara para o homem que mais necessitava de mim. Se isso era pecado, dar o que suas palavras recusavam e seu olhar implorava, então, que me deixassem ser má! À medida que ficava sonolenta, comecei a planejar tudo. Ele não se afastaria, rejeitando-me, porque eu tornaria tal coisa impossível. Ele não desejaria magoar-me. Possuir-me-ia e pensaria consigo que fora obrigado a isso; não teria o mínimo remorso.

A culpa seria toda minha. E Chris me odiaria; seria obrigado a procurar outra pessoa.

 

Mais suave que todas as rosas

Completei dezesseis anos em abril de 1961. Encontrava-me na idade florescente e propícia em que todos os homens, jovens e velhos, principalmente os que já passavam dos quarenta anos, viravam-se na rua para olhar-me. Quando eu esperava o ônibus na esquina, os carros diminuíam a velocidade porque os motoristas não podiam deixar de fitar-me com olhos esbugalhados e cobiçosos. E se eles ficavam maravilhados, mais ainda ficava eu. Pavoneava-me diante dos muitos espelhos da casa de Paul e via, às vezes, surpresa, uma jovem linda, cuja beleza chegava a tirar o fôlego. E aquela visão gloriosa era eu! Era espantosamente bela e tinha consciência do fato. Julian vinha freqüentemente de Nova York deleitar em mim o olhar desejoso, declarando saber o que queria, embora eu não soubesse o que eu queria. Via Chris apenas nos fins-de-semana e sabia que ele ainda me desejava, continuando a amar-me mais do que chegaria a amar outra pessoa. Chris e Carrie vieram para casa no fim de semana de meu aniversário e rimos, abraçamo-nos e falamos tão depressa como se nunca dispuséssemos de tempo para dizer tudo o que queríamos, especialmente Chris e eu. Tive vontade de dizer a Chris que Mamãe em breve viria morar em Greenglenna, mas temi que ele me impedisse de fazer o que planejava, de modo que não mencionei o assunto. Após algum tempo, Carrie afastou-se para sentar-se num canto e observar com seus olhos grandes e tristes o nosso benfeitor, aquele homem grande e bonito que me mandara vestir minhas melhores roupas.

— Por que não usa aquele vestido que vem reservando para uma ocasião especial? Para festejar seu aniversário, pretendo oferecer-lhe um festim de gourmet no meu restaurante favorito: The Plantation House.

Tive que subir imediatamente e começar a preparar-me. Pretendia aproveitar ao máximo meu aniversário. Meu rosto não precisava de maquilagem, mas coloquei-a assim mesmo, o serviço completo, incluindo máscara preta como nanquim nos cílios, dando-me ao trabalho de usar o curvex. Minhas unhas brilhavam como pérolas e o vestido de gala era cor-de-rosa. Oh! Como me senti linda ao arrumar-me diante do espelho triplo colocado sobre minha penteadeira.

— Minha Lady Catherine — disse Chris da porta aberta. — Está muito linda, mas é profundo mau gosto admirar-se tanto a ponto de beijar a própria imagem no espelho. No duro, Cathy, deve esperar elogios dos outros e não fazê-los a si mesma.

— Tenho medo de que ninguém me elogie — repliquei na defensiva. — Portanto, elogio-me a fim de ficar mais confiante em mim. Estou linda ou apenas bonita?

— Está linda, sim — disse Chris numa voz engasgada e esquisita. — Duvido que encontre outra garota tão linda como você está agora.

— Diria que estou melhorando com a idade?

— Não lhe farei mais elogios! Não é de espantar que nossa avó tenha quebrado todos os espelhos! Sinto vontade de fazer o mesmo. Quanta vaidade e convencimento!

Franzi a testa, não gostando de ser lembrada da velha.

— Você está fantástico, Chris! — repliquei comum largo e ardoroso sorriso. — Não sinto vergonha ou embaraço de fazer elogios quando são merecidos. Você é tão bonito quanto Papai.

Cada vez que vinha para casa da escola, Chris parecia mais maduro e bonito. Não obstante, quando eu o observava com mais atenção percebia que a sabedoria emprestava-lhe ao olhar uma característica estranha, algo que o fazia parecer muito, muito mais velho que eu. Parecia também mais triste e mais vulnerável que eu, uma combinação extremamente atraente.

— Por que não é feliz, Chris? — perguntei. — A vida o decepciona? Está aquém do que você imaginava quando estávamos presos e tínhamos tantos sonhos para o futuro? Arrepende-se, agora, de ter resolvido ser médico? Em vez disso, preferiria ser bailarino, como eu?

Eu me aproximara para observar seus olhos tão reveladores, mas Chris baixou-os para ocultá-los. Tentou circundar minha cintura com as mãos, mas a circunferência não era tão pequena, nem suas mãos tão grandes. Ou estaria apenas arranjando uma desculpa para tocar-me? Transformando em brincadeira algo muito sério. Seria isso? Abaixei-me para fitar-lhe o rosto e nele encontrei o amor que procurava. De repente, desejei não ter tomado conhecimento.

— Não me respondeu, Chris.

— O que perguntou?

— A vida, os estudos de medicina, estão correspondendo às suas expectativas?

— O que corresponde às nossas expectativas?

— Isso me parece cinismo. É o meu estilo, não o seu.

Chris ergueu a cabeça e exibiu um brilhante sorriso. Oh! Meu Deus!

— Sim — disse ele. — A vida aqui fora é o que eu imaginava que fosse. Fui realista, ao contrário de você. Gosto da escola e das amizades que fiz. Entretanto, ainda sinto saudades de você; é difícil viver longe, sempre a imaginar o que você andará aprontando.

Desviou outra vez os olhos, que se toldaram com um desejo impossível de satisfazer.

— Feliz aniversário, minha Lady Catherine — disse baixinho, roçando de leve os lábios nos meus, num leve beijo que não ousava passar desse ponto. Então, tomou-me a mão: — Vamos. Todos estão prontos, menos a vaidosa e convencida aniversariante.

Descemos a escada de mãos dadas. Paul e Carrie já estavam prontos, aguardando. Henny também. A casa parecia esquisita, tão silenciosa e carregada de expectativa, tão fantasmagoricamente escura, com todas as luzes apagadas, menos as do vestíbulo. Que gozado! Então, de repente, um coro berrou no escuro:

— Surpresa! Surpresa!

As vozes continuaram a berrar quando todas as luzes se acenderam e meus colegas da aula de balé cercaram Chris e a mim. Henny trouxe um bolo de aniversário com três camadas, cada uma menor que a inferior, declarando orgulhosamente tê-lo preparado e decorado pessoalmente. “Que eu consiga sempre sucesso em tudo o que tentar”, desejei de olhos fechados, apagando as velas. Estou ganhando terreno sobre você, Mamãe, tornando-me mais velha e esperta a cada dia. Quando chegar a hora, estarei pronta para derrotá-la!

Soprei com tanta força que a cera cor-de-rosa derretida respingou as delicadas rosas de açúcar que repousavam entre folhas de glacê verde claro. Em frente a mim estava Julian, cujos olhos negros, pregados nos meus, repetiam mudamente a mesma pergunta. Sempre que eu procurava o olhar de Chris, ele desviava o rosto para o lado ou baixava os olhos para fitar o chão. Carrie mantinha-se colada a Paul, que se sentara a alguma distância dos ruidosos festejos e tentava não parecer severo. Tão logo terminei de abrir todos os presentes, Paul se ergueu, pegou Carrie no colo e desapareceu com ela na escada.

— Boa noite, Cathy — disse Carrie, o rostinho feliz e corado cheio de sono. — É a melhor festa de aniversário que já vi.

Quase chorei de dor ao escutar aquelas palavras, pois Carrie já tinha quase nove anos e as festas de aniversário de que podia lembrar-se, com exceção da festa de Chris, em novembro passado, foram meras tentativas de transformar pouco em muito.

— Por que parece tão triste? — quis saber Julian, que se aproximara para me abraçar. — Alegre-se, pois agora tem-me a seus pés, pronto para incendiar-lhe o coração e o corpo.

Na verdade, eu o detestava quando se comportava assim, tentando demonstrar de todos os modos possíveis que eu era sua propriedade exclusiva. Seu presente fora uma sacola de couro para carregar meu material de balé: malhas, sapatilhas, etc. Afastei-me dele com uma pirueta, pois não desejava ser dominada por ninguém naquela noite. Todas as garotas que ainda não estavam vidradas em Julian gamaram por Chris de imediato, o que nada contribuiu para fazer com que Julian detestasse menos meu irmão. Não sei o que ateou fogo à lenha, mas, de repente, Chris e Julian estavam num canto, discutindo e prestes a se engalfinharem.

— Não me importa o que você pensa! — bradou Chris, com sua característica frieza nos momentos de maior raiva. — Minha irmã é jovem demais para ter um amante e ainda não está pronta para enfrentar Nova York!

— Você! Seu... — retrucou Julian, furioso. — Que sabe você a respeito de balé? Não sabe nada! Nem mesmo é capaz de mover os pés sem pisar nos próprios calos!

— Talvez seja verdade — disse Chris num tom gelado. — Mas possuo outras habilidades. Além disso, estamos falando de minha irmã e do fato de ela ainda ser menor de idade. Não permitirei que você a convença a acompanhá-lo a Nova York quando ela nem mesmo ainda terminou o ginásio!

Minha cabeça se movia de um lado para outro, observando um de cada vez; era difícil dizer qual o mais bonito dentre os dois. Senti-me doente por eles demonstrarem publicamente a hostilidade que sentiam um pelo outro e porque eu desejava tanto que se gostassem mutuamente. Estremeci, prestes a gritar para que parassem de discutir. Mas fiquei calada.

— Cathy — chamou Chris, sem desviar por um instante os olhos de Julian, que parecia pronto a desferir um murro ou pontapé. — Você acredita francamente que está preparada para estrear em Nova York?

— Não... — respondi, quase num sussurro.

Julian lançou-me um olhar raivoso, pois vivia insistindo a cada minuto que estávamos juntos, tentando convencer-me a acompanhá-lo a Nova York para ser sua amante e par de balé. Eu sabia por que razão ele me desejava: meu peso, altura e equilíbrio adequavam-se com perfeição à sua capacidade. É imprescindível encontrar o par ideal quando se deseja impressionar a platéia num pas de deux.

— Que todos os seus aniversários sejam um inferno na terra! — bradou Julian, dirigindo-se à porta e batendo-a com força atrás de si.

E assim terminou minha festa de aniversário, com todos indo embora parecendo embaraçados. Chris subiu para seu quarto sem me dizer boa-noite. Com lágrimas nos olhos, comecei a catar as migalhas que haviam caído no tapete da sala de visitas. Encontrei um buraco no luxuoso tapete verde, produzido por um cigarro que alguém deixara cair. Alguém quebrara uma das valiosas peças de Paul, uma cintilante e transparente rosa de cristal. Segurei os pedaços do objeto, pensando em comprar a cola adequada para restaurá-lo e até mesmo imaginando um meio, pois tinha que haver algum, de tapar o buraco no tapete e eliminar as manchas circulares deixadas pelos copos nos móveis envernizados.

— Não se preocupe com a rosa — disse Paul às minhas costas. — Não passa de uma quinquilharia barata. Sempre posso comprar outra.

Voltei-me para encará-lo. Paul postara-se com a maior naturalidade junto ao arco que levava ao vestíbulo. Enfrentou meu olhar lacrimoso com seus olhos suaves e bondosos.

— Era uma linda rosa — declarei, engasgada. — E sei que custou caro. Comprar-lhe-ei outra, se encontrar a duplicata. E também lhe darei algo melhor quando...

— Esqueça.

— Mais uma vez, muito obrigada pela linda caixinha de música — disse eu, levando nervosamente a mão ao profundo decote e tentando esconder o sulco entre meus seios. — Certa vez, meu pai me deu uma caixinha de música com uma bailarina, mas fui obrigada a abandoná-la...

Minha voz se embargou e não consegui continuar, pois a lembrança de meu pai sempre me deixava em ruínas, desolada e sem esperanças.

— Chris me falou da caixinha de música que seu pai lhe deu e procurei uma igual para comprar. Acertei?

— Sim — respondi, embora não fossem iguais.

— Ótimo. Agora, vá dormir. Esqueça a desordem: Henny limpará tudo. Parece sonolenta.

Logo subi para meu quarto, onde verifiquei, espantada, que Chris me aguardava.

— O que está havendo entre você e Julian? — indagou ele com ar feroz.

— Nada!

— Não minta para mim, Cathy! Ele não vem de avião de Nova York até aqui sem um objetivo!

— Meta-se com sua vida, Christopher! — repliquei furiosa. — Não tento dizer o que você deve fazer; portanto, exijo que proceda da mesma forma em relação a mim! Você não é santo e eu não sou anjo! O problema é que você não passa de um homem como os outros, pensando que pode fazer o que bem entender, enquanto eu devo ficar quietinha de lado, muito recatada e pura, à espera de que apareça alguém que se case comigo! Pois não sou esse tipo de mulher! Ninguém vai me obrigar a fazer o que não quero, nunca mais! Nem Paul! Nem Madame! Nem Julian! Nem você também!

Chris ficou muito pálido, contendo-se para não me interromper.

— Quero que se mantenha fora de minha vida, Christopher! Farei o que tiver que fazer, qualquer coisa que for preciso, para chegar ao topo!

Seus celestiais olhos azuis lançaram-me diabólicas centelhas elétricas.

— Presumo que seja capaz de dormir com qualquer homem, se julgar necessário.

— Farei o que for preciso! — retruquei raivosa, embora não tivesse pensado no assunto.

Chris pareceu prestes a esbofetear-me e o esforço que fez para controlar-se obrigou-o a cerrar os punhos ao longo do corpo. Uma faixa branca circundou-lhe os lábios contraídos.

— O que deu em você Cathy? — começou num tom magoado. — Jamais imaginei que se transformasse em outra oportunista.

Enfrentei-lhe amargamente o olhar. O que ele julgava estar fazendo? Tivéramos a felicidade de topar com um homem solitário, infeliz, e o estávamos usando; mais cedo ou mais tarde, teríamos que pagar um preço por isso. Nossa avó sempre nos dizia que ninguém faz nada em troco de nada. Mas, de todo modo, eu não podia dizer algo mais para magoar Chris e também não podia pronunciar uma só palavra contra Paul, que nos acolhera e fazia por nós tudo o que lhe era possível. Na realidade, sobravam-me razões para saber que ele não esperava qualquer tipo de retribuição ou recompensa.

— Cathy — implorou Chris. — Detesto cada palavra que você acaba de dizer. Como pode falar comigo dessa maneira quando sabe o quanto a amo e respeito? Não se passa um único dia sem que eu sinta sua falta. Vivo em função dos fins de semana, quando posso estar com você e Carrie. Não se afaste de mim, Cathy; eu preciso de você. Sempre precisarei. Morro de medo quando penso que, nem de longe, sou tão necessário em sua vida.

Segurou-me os braços e ter-me-ia puxado de encontro ao peito, mas libertei-me com um arranco e dei-lhe as costas. Como poderia discernir entre o certo e o errado quando ninguém parecia mais incomodar-se com isso?

— Chris — respondi com voz embargada. — Desculpe-me ter falado com você daquela forma. Importo-me muito com o que você pensa, mas estou dilacerada por dentro. Acho que preciso ter imediatamente tudo o que desejo, a fim de compensar tudo o que perdi e sofri. Julian quer que eu vá com ele para Nova York. Julgo que ainda não estou suficientemente preparada e não possuo a disciplina necessária. Madame sempre me diz isso e acho que está certa. Julian diz que me ama e que cuidará de mim. Entretanto, não tenho certeza do que seja o amor, ou de que ele realmente me ame; talvez deseje apenas utilizar-me para atingir seu objetivo. Por outro lado, o objetivo de Julian é também o meu. Portanto, diga-me como posso saber se ele me ama ou se deseja apenas usar-me.

— Você permitiu que ele lhe fizesse amor? — indagou ele friamente, com uma expressão morta.

— Não! Claro que não!

Seus braços me envolveram, apertando-me.

— Aguarde ao menos mais um ano, Cathy. Confie em Madame Marisha, não em Julian. Ela sabe mais que ele.

Fez uma pausa, obrigando-me a erguer o rosto. Estudei-lhe a fisionomia bonita e tentei adivinhar por que motivo ele hesitava em prosseguir. Eu era um instrumento de desejo, cheia de uma insaciável necessidade de satisfação. Tinha medo, também, do que existia dentro de mim. Medo de ser como Mamãe. Quando me olhava no espelho, via o rosto de minha mãe começando a surgir de modo mais definido em minhas feições. Sentia-me exultada por parecer fisicamente com ela, mas, paradoxalmente, detestava-me por ser seu reflexo vivo. Não, eu não era como ela por dentro, mas apenas por fora. Minha beleza não era simplesmente superficial.

Não parei de repetir isso para mim mesma ao fazer o trajeto até o centro da cidade de Greenglenna. Na prefeitura local arranjei uma desculpa esfarrapada para procurar a certidão de nascimento de minha mãe, a fim de poder examinar a certidão de nascimento de Bart Winslow. Constatei que ele era oito anos mais moço que minha mãe e descobri também o seu endereço exato. Percorri a pé quinze quarteirões, até chegar a uma tranqüila rua orlada de olmos, onde as velhas mansões se apresentavam em mau estado de conservação. Todas, exceto a casa de Bart Winslow! Estava cercada de andaimes. Dúzias de operários colocavam novas esquadrias nas janelas de uma mansão de tijolos recém-pintada, com ornatos brancos em volta das portas e janelas, e o indefectível pórtico branco. Em outro dia, fui à biblioteca pública de Greenglenna, onde pesquisei a respeito da família Winslow. Para meu grande deleite, revendo os jornais antigos, encontrei uma colunista social que parecia dedicar a maior parte de sua coluna a Bart Winslow e sua esposa de origem aristocrática, fabulosamente rica e muito linda. “A herdeira de uma das maiores fortunas do país.” Recortei furtivamente a coluna e levei comigo para mostrar a Chris. Não queria que ele soubesse que Mamãe viria morar em Greenglenna. Chris ficou um tanto contrariado ao ler a coluna.

— Onde encontrou isto, Cathy?

Sacudi os ombros.

— Oh! Num jornal da Virgínia, que encontrei numa banca da cidade.

— Ela está novamente na Europa — comentou ele num tom esquisito. – Gostaria de saber por que motivo viaja tanto pela Europa.

Pousou em mim os olhos azuis e suas feições se suavizaram numa expressão sonhadora.

— Lembra-se do verão em que ela foi para a lua-de-mel?

Se me lembrava? Como poderia esquecer? Como se eu me pudesse permitir esquecer! Um dia, quando eu também fosse rica e famosa, Mamãe teria notícias minhas. Então, seria melhor ela estar bem preparada, pois, pouco a pouco, eu estava estabelecendo minha estratégia.

Julian não vinha a Greenglenna com a mesma freqüência que antes da minha festa de aniversário. Calculei que Chris o tivesse afugentado. E não sabia se o fato me tornava feliz ou infeliz. Quando vinha visitar os pais, Julian me ignorava. Passou a dar alguma atenção a Lorraine Du Val, minha melhor amiga. Por algum motivo, fiquei magoada e ressentida, não apenas com ele, mas também com Lorraine. Escondida num canto, observei-os dançar um apaixonado pas de deux. Foi ali que me decidi a estudar balé com o dobro do afinco, pois também mostraria algo a Julian! Haveria de mostrar a todos do que eu era feita! Aço recoberto com malha fina e saiotes de tule!

 

Coruja no telhado

Agora, narrarei um episódio na vida de Carrie, pois esta é também a estória dela, tanto quanto minha e de Chris. Atualmente, revendo o passado, reflito sobre o que a vida se tornou para Carrie e acredito com a máxima convicção, que o ocorrido a Carrie na Escola para Moças Bem Educadas da Srta. Emily Dean Calhoun teve profunda influência na maneira pela qual ela passou a encarar-se no futuro. Oh! Seria preciso fazer uma piscina para eu encher com minhas lágrimas antes de começar o relato, pois eu a amava tanto que padecia todos os seus sofrimentos, até mesmo hoje.

Pelas peças do quebra-cabeça que recolhi da própria Carrie e da Srta. Dewhurst, bem como de várias outras alunas daquela escola, procurarei narrar do modo mais franco possível o pesadelo que Carrie foi obrigada a suportar. Carrie passava os fins-de-semana conosco, mas voltara a ser a mesma criaturinha calada, um tanto apática, que tanto sofrera com a morte do irmão gêmeo. Tudo em Carrie me preocupava. Embora eu a interrogasse, ela insistia em afirmar que tudo estava bem e se recusava a dizer uma só palavra contra a escola, as colegas ou as professoras. Disse apenas uma coisa, uma única coisa, para expressar seus sentimentos e foi uma pista muito evidente:

— Gosto do tapete; parece grama colorida.

Só isso. Deixou-me pensativa, preocupada, tentando adivinhar o que a perturbava. Eu tinha certeza de que alguma coisa estava errada, mas Carrie não me dizia o que era. Todas as sextas-feiras, por volta das quatro da tarde, Paul ia de carro buscar Carrie e Chris, a fim de trazê-los para casa. Fazia o possível para tornar nossos fins-de-semana memoráveis. Embora Carrie parecesse feliz em nossa companhia, raramente ria. Por mais que tentássemos, tudo o que conseguíamos arrancar dela era um sorriso amarelo.

— O que há de errado com Carrie? — indagava Chris.

Eu só podia encolher os ombros. Em algum ponto dos acontecimentos, perdera a confiança de Carrie. Agora, seus grandes olhos azuis viviam pregados em Paul, implorando-lhe mudamente. Mas Paul olhava para mim, não para Carrie. À medida que se aproximava a hora de partir de volta à escola, Carrie se tornava muito calada; seu olhar ficava inexpressivo e resignado. Dávamos beijos de despedida, recomendávamos que se portasse bem e fizesse amizades, acrescentávamos: “Se precisar de nós, basta telefonar.”

— Sim — dizia ela, com os olhos baixos.

Eu a abraçava com força, dizendo-lhe mais uma vez que a amava muito e que se estivesse infeliz devia contar-nos.

— Não estou infeliz — respondia ela, com os olhos fixos em Paul.

Era realmente uma escola linda. Eu adoraria estudar numa escola como aquela. Cada menina tinha o direito de decorar uma das paredes do quarto a seu gosto. A Srta. Dewhurst só impunha uma restrição: cada jovem tinha que escolher atividades “adequadas e dignas de uma dama”. No Sul, dava-se grande ênfase a uma feminilidade suave, passiva. Roupas macias, chiffon esvoaçante, vozes bem moduladas e discretas, olhos tímidos e baixos, mãos frágeis e gesticulantes para expressarem necessidade de proteção, e absolutamente nenhuma opinião que conflitasse com os pontos de vista masculinos, pois nunca, jamais, uma moça deveria permitir que um homem percebesse que ela talvez tivesse um intelecto superior ao seu. Aliás, pensando melhor, creio que não seria realmente a escola adequada para mim.

Carrie tinha uma cama de solteiro, coberta com uma brilhante colcha cor de púrpura. Sobre a cama, colocara almofadas cor-de-rosa, vermelhas, roxas, violetas e verdes, Ao lado da cama, uma mesinha de cabeceira com a jarra branca cheia de violetas plásticas que Paul lhe dera de presente. Sempre que possível, Paul levava flores de verdade para Carrie. Esta, porém, por estranho que pudesse parecer, adorava aquela jarrinha de violetas plásticas, preferindo-as às flores reais, que logo murchavam e morriam. Já que Carrie era a menor dentre as cem alunas da escola, tinha como companheira de quarto a segunda menor aluna, que se chamava Sissy Towers. Sissy tinha cabelos cor de tijolo, olhos rasgados e estreitos cor de esmeralda, pele branca como papel, além de um temperamento vingativo e mesquinho, que jamais exibia diante dos adultos. Pior ainda: apesar de ser a segunda menor aluna da escola, era quinze centímetros mais alta que Carrie!

Carrie comemorara seu nono aniversário com uma festa na semana anterior ao início de sua provação. Estávamos em maio e tudo começou numa quinta-feira. Os dias escolares encerravam-se às três da tarde e as alunas dispunham de duas horas para brincarem ao ar livre antes do jantar às cinco e meia. Todas elas usavam uniformes de cores correspondentes às classes de que faziam parte. Carrie estava na terceira série; seu uniforme era de tecido inglês amarelo, com um gracioso avental de organdi por cima. Carrie tinha grande aversão pela cor amarela. Para ela, assim como para Chris e para mim, o amarelo representava a cor de todas as melhores coisas que não pudemos ter enquanto permanecemos prisioneiros, fazendo-nos sentir perniciosos, indesejáveis e detestados. O amarelo era também a cor do sol que nos fora negado por tanto tempo. O sol era o que Cory mais desejava ver e agora, que todas as coisas amarelas nos eram tão facilmente acessíveis e a Cory não, aquela cor se tornara detestável para nós.

Sissy Towers adorava o amarelo. Tinha inveja dos longos cabelos louros e cacheados de Carrie, desprezando os próprios cabelos grossos e cor de ferrugem. Talvez invejasse também a beleza do rosto de boneca de Carrie e aqueles grandes olhos azuis de cílios compridos e recurvados, bem como os lábios vermelhos como morangos maduros. Oh! Sim, a nossa Carrie era uma boneca de rosto exótico, sensacionais cabelos louros e, o que era de causar uma pena infinita, aquela beleza coroava um corpo magro e pequeno demais, com um pescoço por demais delicado para suportar a cabeça que parecia pertencer a alguém de maior robustez e estatura.

O amarelo dominava a parte do quarto pertencente a Sissy: a colcha da cama e o forro das poltronas eram amarelos; as bonecas eram louras e usavam roupas amarelas; até o papel que encapava os livros e cadernos era amarelo. Sissy até mesmo usava saias e suéteres amarelos quando ia para casa. O fato de que as roupas amarelas faziam-na parecer doentiamente pálida não diminuía sua determinação no sentido de aborrecer Carrie com aquela cor, qualquer que fossem as conseqüências. E naquele dia, por algum motivo fútil que jamais foi elucidado, Sissy começou a perseguir Carrie de um modo mesquinho e vingativo.

— Carrie é anã... anã... anã... — cantava ela num refrão.

— Carrie devia estar no circo... circo... circo... — insistia Sissy, sem parar.

Então, pulou para a tampa de sua escrivaninha e, imitando a voz alta e metálica de um apregoador de circo que procura atrair a atenção do público para a exibição de fenômenos e monstros, passou a gritar:

— Venham logo! Venham todos! Paguem um quarto de dólar para verem a irmã viva do Pequeno Polegar! Venham ver a menor mulher do mundo! Comprem entrada e venham ver a anãzinha com os olhos enormes como os de uma coruja! Venham ver a cabeça enorme no pescocinho fino! Comprem entrada e venham ver a nossa monstrinha nua!

Dúzias de meninas se acotovelavam no quarto para fitarem Carrie agachada num canto do chão, com a cabeça baixa e os cabelos compridos ocultando o rosto envergonhado e apavorado. Sissy abriu a bolsinha para receber as moedas que as colegas ricas lhe pagavam de bom grado.

— Agora, dispa-se, anãzinha — ordenou Sissy. — Mostre ao público o que ele pagou para ver!

Trêmula, começando a chorar, Carrie encolheu-se ainda mais, puxando os joelhos de encontro ao peito e rezando para que Deus abrisse no chão um buraco por onde ela pudesse desaparecer. Entretanto, o chão jamais se abre para nós quando desejamos sumir de algum lugar. O assoalho permaneceu sólido e duro, enquanto a voz impiedosa de Sissy continuava sem cessar:

— Vejam como ela treme... Vejam como chocalha... Vai provocar um terremoto!

Todas as alunas soltavam risadinhas, exceto uma menina de dez anos, de tamanho normal, que olhou para Carrie com piedade e simpatia.

— Acho-a bonitinha — declarou Lacy St. John. — Deixe-a em paz, Sissy! O que você está fazendo não é bonito.

— Claro que não é bonito! — replicou Sissy com uma risada. — Mas é tão divertido! Ela é uma ratinha tímida! Sabe, ela nunca diz nada. Acho que nem sabe falar!

Sissy pulou da mesa e correu para onde estava Carrie, cutucando-a com a ponta do pé.

— Você tem língua, anãzinha? Vamos, garotinha dos olhos grandes, conte-nos como ficou parecendo tão esquisita! O gato lhe comeu a língua? Você não tem língua? Bote-a para fora!

Carrie baixou ainda mais a cabeça.

— Estão vendo? Ela não tem língua! — proclamou Sissy, pulando no mesmo lugar. Depois, fez uma pirueta e abriu os braços. — Vejam o que me deram como colega de quarto: uma coruja sem língua! Que podemos fazer para obrigá-la a falar?

Lacy aproximou-se de Carrie, numa atitude protetora.

— Vamos, Sissy. Isto já basta. Deixe-a em paz.

Girando sobre si mesma, Sissy pisou com força o pé de Lacy.

— Cale a boca! Este quarto é meu! Quando estiver no meu quarto, faça o que eu mandar! E sou do mesmo tamanho que você, Lacy St. John! Além disso, meu pai é mais rico que o seu!

— Acho que você é mesquinha, maldosa e ruim, atormentando Carrie desta maneira! — replicou Lacy.

Sissy ergueu os punhos como um boxeador profissional, dançando em torno de Lacy para desferir-lhe rápidos murros.

— Quer brigar comigo? Vamos, arregace as saias! Tente pegar-me antes que lhe feche os olhos!

E antes que Lacy pudesse erguer as mãos para proteger-se, Sissy desferiu-lhe um golpe de direita que lhe atingiu em cheio o olho esquerdo. Então, o punho esquerdo de Sissy acertou o belo nariz reto de Lacy! O sangue espirrou para todos os lados! Foi então que Carrie ergueu os olhos e viu a única menina que lhe demonstrara alguma consideração e bondade levar uma surra implacável. Foi o bastante para que Carrie colocasse em ação sua arma mais formidável: a voz. Começou a gritar. Jogando a cabeça para trás e empregando até a última gota de sua energia vocal, Carrie começou a gritar a plenos pulmões!

Em seu escritório no andar térreo, a Srta. Emily Dean Dewhurst sobressaltou-se, manchando de tinta a página do livro de registros. Correu para o corredor a fim de dar o alarme que chamaria às pressas todas as professoras. Eram oito horas da noite. A maior parte do corpo docente já se retirara para seus aposentos. Usando roupões de banho, negligés e até mesmo uma delas, aparentemente prestes a sair sorrateiramente da escola, num vestido de gala vermelho, as professoras correram em direção ao tumulto. Entrando no quarto que Carrie compartilhava com Sissy, depararam com uma cena apavorante. Uma dúzia de alunas engalfinhavam-se numa batalha, enquanto as outras se mantinham afastadas, observando. Uma delas, como Carrie, limitava-se a gritar; as outras gritavam, davam pontapés, rolavam atracadas pelo chão, puxando cabelos, mordendo, rasgando roupas e acima de todo aquele barulho, ressoava a trombeta metálica de um pequeno ser humano dominado pelo pavor.

— Onde está o homem... o homem? — quis saber a Srta. Longhurst, a professora que usava o vestido de gala vermelho, com o busto prestes a saltar do generoso decote.

— Controle-se, Srta Longhurst! — ordenou a Srta. Dewhurst, que avaliou prontamente a situação e planejou sua estratégia. — Não há homem algum aqui dentro.

Erguendo a voz tonitruante, comandou:

— Meninas! Parem imediatamente com esta bagunça, ou ficarão todas de castigo na escola durante o fim-de-semana!

Então, acrescentou em voz baixa para a sensual Srta. Longhurst:

— Você compareça a meu gabinete quando isto aqui estiver sob controle.

Cada menina naquele quarto que estava prestes a ter os cabelos puxados, o rosto arranhado por unhas, ficou repentinamente imóvel e calada. Horrorizadas, as alunas olharam em torno e viram o quarto cheio de professoras e, pior que tudo, a Srta. Dewhurst, famosa por não ter complacência em casos de tumulto, que não eram raros. Todas se calaram. Todas menos Carrie, que continuou a berrar, os olhos fechados com força, as pequenas mãos pálidas contraídas em punhos cerrados.

— Por que essa criança está gritando? — quis saber a Srta. Dewhurst, enquanto a Srta. Longhurst, com ar de culpada, se esgueirava para fora do quarto a fim de desfazer-se das provas que a incriminavam, pois em algum lugar havia um homem escondido à sua espera.

Naturalmente, foi Sissy Towers quem se recobrou primeiro.

— Foi ela quem começou tudo, Srta. Dewhurst. Tudo foi culpa de Carrie. Ela é como um neném. A senhorita precisa me arranjar uma nova colega de quarto, ou acabarei morrendo por ter que morar com um bebê.

— Repita o que acaba de dizer, Srta. Towers. Diga-me o que preciso fazer.

Intimidada, Sissy sorriu nervosamente.

— Quero dizer: eu gostaria de ter uma nova colega de quarto; não me sinto bem morando com alguém tão excepcionalmente pequena.

A Srta. Dewhurst encarou friamente Sissy Towers.

— Srta. Towers, você é excepcionalmente cruel. De agora em diante, ficará alojada no andar térreo, no quarto ao lado do meu, onde poderei mantê-la sob vigilância — declarou a diretora, correndo o olhar pelo quarto. — Quanto ao resto de vocês, notificarei seus pais de que suas saídas no fim de semana estão canceladas! Agora, cada uma se apresente à Srta. Littleton, para que seus deméritos sejam lançados nas fichas.

As alunas soltaram gemidos e, uma por uma, saíram do quarto para terem seus nomes anotados e devidamente marcados. Só quando a Srta. Dewhurst avançou até onde ela estava de gatinhas no chão, Carrie reduziu os berros a uma lamúria. Não obstante, continuou balançando a cabeça de um lado para outro, numa atitude histérica.

— Srta. Dollanganger, agora já está bastante calma para me contar o que aconteceu?

Carrie não conseguia falar. O pavor e a visão de sangue tinham-na levado de volta ao quarto trancado, ao dia faminto em que ela fora obrigada a beber sangue para não morrer de fome. A Srta. Dewhurst ficou emocionada e confusa. Fazia quarenta anos que via meninas chegarem e partirem; portanto, sabia que meninas podem ser tão devastadoramente mesquinhas e cruéis quanto meninos.

— Srta. Dollanganger, a menos que me responda, não visitará sua família neste fim-de-semana. Sei que passou por um grande aperto e desejo ser bondosa com você. Por favor, não pode explicar o que aconteceu?

Agora estendida ao comprido no chão, Carrie ergueu os olhos. Viu a idosa mulher postada a seu lado como uma torre, usando uma saia azul de tonalidade quase cinzenta. Cinza era a cor que nossa avó sempre usava. E nossa avó fazia coisas terríveis; de algum modo, ela causara a morte de Cory e agora vinha buscar Carrie, também!

— Eu a odeio! Eu a odeio! — berrou Carrie, sem parar, até que finalmente a Srta. Dewhurst se viu forçada a sair do quarto e mandar a enfermeira da escola ministrar sedativos a Carrie.

Na sexta-feira, atendi o telefone quando a Srta. Dewhurst ligou para informar que doze de suas alunas haviam transgredido as regras e desobedecido suas ordens, sendo Carrie uma delas.

— Sinto muito, realmente, mas não posso conceder privilégios à sua irmã e, ao mesmo tempo, castigar as outras. Ela estava no quarto e se recusou a calar-se quando mandei.

Esperei até a hora do jantar para discutir o assunto com Paul.

— É um erro terrível manter Carrie na escola durante o fim-de-semana, Paul. Sabe que lhe prometemos que ela poderia vir passar todos os fins-de-semana conosco. É pequena demais para poder causar algum problema e, portanto, não é justo castigá-la também.

— Francamente, Cathy — disse ele, pousando o garfo no prato. — A Srta. Dewhurst me telefonou logo após ter falado com você. Ela estabeleceu as normas da escola e se Carrie as desobedeceu deve ser punida como o resto das meninas. E, embora você não concorde, eu respeito a Srta. Dewhurst.

Chris, que chegara para passar o fim de semana em casa, tomou a palavra para concordar com Paul.

— Claro, Cathy. Sabe tão bem quanto eu o que Carrie é capaz de fazer quando cisma. Mesmo que se limite a gritar, pode deixar qualquer pessoa maluca... e surda.

O fim-de-semana sem Carrie foi um fiasco. Não consegui afastá-la do pensamento. Enervei-me, temi, preocupei-me por causa de Carrie. Tinha a impressão de escutá-la chamar por mim. Quando fechava os olhos, via-lhe o rostinho pálido com os grandes olhos azuis arregalados de medo. Ela estava bem! Tinha que estar, não é mesmo? O que poderia acontecer a uma menina numa escola tão cara e famosa, controlada por uma mulher responsável e respeitável como a Srta. Emily Dewhurst?

Quando Carrie estava sofrendo e às turras consigo mesma e o resto do mundo, não tendo a seu lado alguém que a amasse, retrocedia ao passado e refugiava-se no seguro conforto das minúsculas bonecas de porcelana que ocultava tão cuidadosamente por baixo de todas as suas roupas. Agora, era a única aluna da escola que tinha um quarto exclusivamente seu. Nem uma só vez em seus nove anos de vida Carrie passara a noite sozinha num quarto.

Agora estava sozinha e consciente do fato. Todas as alunas da escola se haviam voltado contra ela, inclusive a bonita Lacy St. John. Carrie retirava as bonecas de seu esconderijo muito secreto, o Sr. e a Sra. Parkins, bem como seu lindo e querido bebê, Clara, e conversava com elas como costumava fazer quando era prisioneira no sótão.

— E, Cathy — disse-me ela mais tarde — pensei que Mamãe talvez estivesse no céu de Deus, passeando nos jardins com Cory e Papai. Então, tive raiva de você e Chris por deixarem o Dr. Paul levar-me para aquele lugar, apesar de saberem o quanto eu gostava de estar com todos vocês. E odiei você, Cathy! Odiei todo mundo! Odiei Deus por fazer-me tão pequena e permitir que os outros zombassem de minha cabeça grande e corpo pequeno!

Nos pequenos halls e compridos corredores acarpetados de verde, Carrie escutava as meninas sussurrarem. Desviavam furtivamente os olhos quando Carrie as fitava.

— Eu dizia comigo mesma que não me importava — sussurrou-me Carrie com voz embargada. — Mas importava-me muito. Eu dizia com meus botões que era capaz de ser corajosa, como você, Chris e o Dr. Paul desejavam. Insistia em fazer-me sentir corajosa, mas, na realidade, não o era. Não gosto do escuro. E dizia comigo que Deus escutaria minhas preces e me faria crescer muito, pois todos crescem à medida que ficam mais velhos e o mesmo aconteceria comigo.

— Estava tão escuro, Cathy, e o quarto parecia tão grande e ameaçador. Você sabe que não gosto da noite e da escuridão sem uma lâmpada acesa. E eu ali sozinha. Até mesmo desejei ter Sissy de volta, pois ela seria melhor que ninguém. Algo se mexeu nas sombras e quase morri de medo. Embora não devesse fazê-lo, acendi uma lâmpada. Queria pegar todas as minhas bonecas para me fazerem companhia na cama. Tomaria cuidado para não me mexer dormindo e quebrá-las.

— Eu sempre guardava o Sr. e a Sra. Parkins à direita e à esquerda, com Clara entre eles, na última gaveta da minha cômoda. Peguei primeiro o chumaço de algodão do meio e senti algo duro dentro dele. Mas quando olhei, Cathy... quando olhei não encontrei o bebê, mas um graveto! Desembrulhei também o Sr. e a Sra. Parkins, mas só encontrei gravetos maiores! Doeu-me tanto não encontrá-los que comecei a chorar. Todas as minhas bonequinhas desapareceram, transformando-se em paus. Assim, fiquei sabendo que Deus nunca me faria crescer, já que transformara minhas lindas bonecas em pedaços de pau. Então, aconteceu-me uma coisa esquisita, como se eu também tivesse virado madeira. Senti-me rígida, sem conseguir enxergar direito. Fui para um canto e agachei-me lá, à espera de que algo de ruim acontecesse. A avó prometera que algo de ruim aconteceria se eu quebrasse alguma das bonecas, lembra-se?

Carrie nada mais me disse a respeito, mas, através de outras pessoas, tomei conhecimento do que aconteceu a seguir.

No escuro, muito depois de meia-noite, as doze meninas ricas cujas saídas no fim de semana foram canceladas pela Srta. Dewhurst esgueiraram-se até o quarto de Carrie. Foi Lacy St. John quem teve a integridade de revelar-me a verdade, mas só quando a Srta. Dewhurst estava fora do alcance de sua voz. Doze meninas, todas elas usando as longas camisolas brancas exigidas pelos regulamentos da escola, entraram no quarto de Carrie. Cada uma delas trazia uma vela acesa, segurando-a de forma a iluminar o rosto por baixo do queixo. Tal iluminação transformava-lhes os olhos em negras e fundas cavidades vazias, além de emprestar-lhes aos rostos juvenis uma aparência horrível, fantasmagórica, o suficiente para aterrorizar a menininha que continuava encolhida no canto, já mergulhada num transe de pavor.

Formaram um semicírculo diante de Carrie, olhando-a fixamente enquanto cada uma enfiava pela cabeça uma fronha com buracos no lugar dos olhos. Depois, veio o ritual de movimentarem as velas formando intricados desenhos de luz, enquanto entoavam cânticos como feiticeiras de verdade. Procuravam exorcizar a pequenez de Carrie. Tentavam “libertar” Carrie e elas mesmas dos malefícios que tinham sido levadas a praticar em legítima defesa contra alguém “tão excepcionalmente miúda e esquisita”.

Uma voz aguda erguia-se acima das outras e Carrie percebeu que pertencia a Sissy Towers. Para Carrie, todas aquelas meninas de camisolas compridas, encapuzadas por fronhas com buracos no lugar dos olhos, eram demônios saídos diretamente do inferno! Ela começou a choramingar e estremecer, tão apavorada quanto se a avó estivesse novamente no quarto, só que, desta feita, multiplicada uma dúzia de vezes!

— Não chore, não tema — disse a voz sepulcral sob o capuz sem boca. — Se sobreviver a esta noite, passando por esta iniciação, você, Carrie Dollanganger, tornar-se-á parte de nossa sociedade ultra-secreta e muito exclusiva. Se for bem sucedida, desta noite em diante compartilhará de nossos rituais secretos, de nossas festas secretas, de nossos tesouros secretos.

— Ohhh! — gemia Carrie. — Vão embora! Deixem-me em paz! Vão embora! Deixem-me em paz!

— Cale-se! — ordenou a voz aguda da “bruxa” invisível. — Não terá oportunidade de tornar-se uma de nós a menos que sacrifique suas posses mais queridas e preciosas. Ou faz isso ou será submetida a julgamento!

Encolhida no canto, Carrie só conseguia olhar para as sombras que se movimentavam por detrás das feiticeiras brancas que a ameaçavam. As chamas das velas deram a impressão de crescer cada vez mais, transformando o mundo de Carrie num universo de fogo amarelo e vermelho.

— Entregue-nos o que mais preza, ou terá que sofrer, sofrer, sofrer!

— Não tenho nada! — murmurou Carrie, com toda a franqueza.

— As bonecas: entregue-nos as lindas bonecas de porcelana — ordenou a voz austera. — Suas roupinhas de criança não nos servirão; não as queremos. Entregue-nos as bonecas: o homem, a mulher e o lindo bebê.

— Desapareceram! — gritou Carrie, temendo que lhe ateassem fogo. — Foram transformadas em pedaços de vau!

— Ah! Ah! Uma bela invenção! E mentira! Portanto, agora terá que sofrer, corujinha, para tornar-se uma de nós... ou morrer! Escolha.

Foi uma decisão fácil. Carrie meneou afirmativamente a cabeça e tentou não fungar.

— Muito bem. Desta noite em diante, você, Carrie Dollanganger, nome esquisito para um rosto esquisito, será uma de nós.

Dói-me relatar como elas pegaram Carrie, vendaram-lhe os olhos, ataram-lhe os pulsos atrás das costas e a empurraram para o corredor, galgando em seguida uma íngreme escada. De repente, emergiram ao ar livre. Carrie sentiu o ar fresco da noite, a inclinação sob seus pés descalços e deduziu, corretamente, que as meninas tinham-na levado para o telhado! Só existia uma coisa que Carrie temia mais que nossa avó: o telhado, qualquer telhado! Prevendo os gritos lancinantes de Carrie, as meninas tinham-na amordaçado.

— Agora, deite-se ou sente-se quietinha, como uma coruja bem comportada — ordenou a mesma voz ríspida. — Fique aqui pousada no telhado, perto da chaminé, à luz do luar, e de manhã será uma de nós.

Debatendo-se, já frenética, Carrie tentou resistir a tantas mãos que a obrigavam a sentar-se. Então, o que foi ainda pior, as mãos se afastaram e Carrie foi abandonada pelas meninas na escuridão do telhado, sozinha! Ouviu a distância as risadinhas que se afastavam e o estalido de um trinco se fechando.

— Cathy, Cathy! — berrou Carrie, sem produzir som. — Chris! Venham salvar-me! Dr. Paul, por que me colocou aqui? Será que ninguém me quer?

Soluçando, emitindo leves gemidos, amordaçada, manietada e com os olhos vendados, Carrie atreveu-se a enfrentar a íngreme inclinação daquele vasto telhado desconhecido e começou a avançar na direção de onde viera o estalido do trinco do alçapão. Progredia centímetro por centímetro, sentada e deslizando sobre as nádegas, rezando a cada movimento para não cair lá de cima. Pelo relato entrecortado que me fez do episódio, muito mais tarde, parece que não foi guiada apenas pelo instinto: escutava a voz de Cory, Vinda do alto e dominando o ruído da tempestade primaveril que se aproximava, uma voz suave e distante, que cantava enquanto Cory dedilhava no violão sua melancólica canção sobre encontrar um lar e rever o sol.

— Oh! Cathy, foi tudo tão estranho lá em cima! O vento soprava, a chuva começou a cair, os trovões ribombavam e os relâmpagos rasgavam o céu com uma claridade que eu podia divisar através da venda nos olhos e Cory continuou a cantar o tempo todo, guiando-me até o alçapão que se abriu quando usei os pés para empurrá-lo. Então, dei um jeito de esgueirar-me para dentro. Em seguida, rolei pela escada! Caí no escuro e escutei um osso quebrar-se. Senti uma dor terrível, que dava a impressão de me morder. Não conseguia ver ou sentir nada; nem mesmo escutava o barulho da chuva. E Cory se foi.

O domingo amanheceu. Paul, Chris e eu nos sentamos à mesa para um desjejum reforçado. Chris tinha na mão um pão caseiro coberto de manteiga e abriu a boca para arrancar pelo menos a metade com uma única dentada quando o telefone tocou no corredor. Paul gemeu ao pousar o garfo. Gemi também, pois acabava de preparar meu primeiro soufflé de queijo, que devia ser comido imediatamente.

— Incomoda-se de atender, Cathy? — indagou Paul. — Quero realmente provar seu soufflé. Tem uma aparência deliciosa e um cheiro celestial.

— Pois trate de comê-lo — respondi, levantando-me de um salto e correndo para o telefone. — Farei o possível para protegê-lo da chata da Sra. Williamson...

Paul riu baixinho, lançando um olhar divertido ao pegar novamente o garfo.

— Talvez não seja a minha viúva solitária com mais uma de suas mazelas.

Chris continuou a comer, sem fazer comentários. Peguei o telefone, dizendo com minha voz mais adulta e graciosa:

— Residência do Dr. Paul Sheffield.

— Aqui fala Emily Dean Dewhurst — disse a voz ríspida na outra ponta da linha. — Por favor, chame imediatamente o Dr. Sheffield ao telefone!

— Srta. Dewhurst! — exclamei, já alarmada. — Aqui fala Cathy, a irmã de Carrie. Ela está bem?

— Você e o Dr. Sheffield devem vir aqui imediatamente!

— Srta. Dewhurst...

Mas ela não me deixou terminar.

— Parece que sua irmã desapareceu de modo um tanto misterioso. Aos domingos, as meninas que tiveram como castigo o cancelamento da saída no fim-de-semana devem comparecer à capela, para os serviços dominicais. Fiz pessoalmente a chamada e Carrie não respondeu.

Meu coração ficou aos pulos, temendo o que viria em seguida. Mesmo assim, não esqueci de apertar o botão que ligava a voz da Srta. Dewhurst ao sistema de som adaptado ao telefone, de modo que Paul e Chris pudessem escutar a conversa enquanto comiam.

— Onde estava ela? — indaguei com voz sumida, sentindo-me aterrorizada.

A diretora replicou com calma:

— Um silêncio estranho reinou esta manhã quando sua irmã foi chamada, não respondeu, e eu perguntei onde ela estava. Enviei uma professora ao quarto de Carrie, mas esta não se encontrava lá. Então ordenei uma busca completa nos terrenos e no prédio da escola, do porão ao sótão. Ainda assim, sua irmã não foi encontrada. Se Carrie tivesse um caráter diferente, eu presumiria que fugiu e estava a caminho de casa. Mas algo no ambiente indica que pelo menos doze das meninas sabem o que aconteceu a Carrie e se recusam a falar e incriminar-se.

Esbugalhei os olhos.

— Quer dizer que ainda não conhece o paradeiro de Carrie?

Paul e Chris tinham parado de comer. Ambos me fitavam com crescente inquietação.

— Sinto muito, mas devo dizer que não sabemos onde ela está. Carrie não foi vista a partir das nove horas da noite de ontem. Mesmo que percorresse a pé todo o caminho até em casa, já teria chegado aí há esta hora, pois é quase meio-dia. Se ela não está aí nem aqui, ou está perdida, ferida... ou sofreu algum acidente...

Mal consegui conter um grito de aflição. Como podia ela falar com tanta indiferença? Por que motivo, sempre que algo terrível acontecia em nossas vidas, recebíamos a notícia num tom indiferente, inexpressivo?

O carro branco de Paul percorria velozmente a Rodovia Overland em direção à escola de Carrie. Eu estava sentada no banco dianteiro, espremida entre Paul e Chris. Meu irmão trouxera sua mala, a fim de poder pegar o ônibus de volta à faculdade após inteirar-se do que acontecera a Carrie. Segurava-me a mão com força, a fim de garantir-me que aquela de nossas crianças sobreviveria!

— Pare de ficar tão preocupada, Cathy — disse ele, passando-me o braço pelos ombros e puxando-me a cabeça de encontro ao peito. — Você conhece bem Carrie. Provavelmente, está escondida e não quer responder. Lembra-se de como ela se portava no sótão? Não ficava conosco, nem mesmo quando Cory desejava. Tinha sempre que se afastar para agir sozinha. Ela não fugiu. Tem muito medo do escuro. Alguém fez algo que a magoou e ela está se vingando, causando-lhes preocupações. Seria incapaz de enfrentar o mundo na calada da noite.

Na calada da noite! Oh! Deus! Eu gostaria que Chris não tivesse mencionado o sótão, onde Cory quase morrera num baú antes de partir deste mundo para encontrar-se no céu com Papai. Chris beijou-me o rosto, enxugando-me as lágrimas.

— Agora, vamos; não chore. Eu disse tudo errado. Carrie está bem.

— Como vem dizer que não sabe onde está a menina? — quis saber Paul num tom feroz, encarando friamente a Srta. Dewhurst. — Deu-me a entender que as alunas desta escola eram devidamente supervisionadas vinte e quatro horas por dia!

Estávamos no luxuoso gabinete da Srta. Emily Dean Dewhurst. Esta não se sentara à grande e impressionante mesa de trabalho, mas andava de um lado para outro, inquieta.

— Na verdade, Dr. Sheffield, jamais aconteceu antes algo semelhante. Nunca perdemos uma aluna. Verificamos os quartos todas as noites, a fim de nos certificarmos de que todas as meninas estejam acomodadas em suas camas e com as luzes apagadas. E Carrie estava na cama. Verifiquei-a pessoalmente, desejando reconfortá-la caso ela permitisse, mas Carrie se recusou a olhar para mim ou falar comigo. Naturalmente tudo começou com aquele tumulto no quarto de Carrie e os conseqüentes deméritos, que resultaram no cancelamento das licenças para as meninas saírem durante o fim-de-semana. Todas as professoras me auxiliaram na busca e interrogamos as meninas, que afirmam nada saberem a respeito. Imagino que saibam, mas se não quiseram falar, o que posso eu fazer?

— Por que não me notificou logo que deu pela falta de Carrie? — quis saber Paul.

Então tomei a palavra, pedindo para ser levada ao quarto de Carrie. A Srta. Dewhurst voltou-se ansiosamente para mim, aliviada por escapar à fúria do médico. Enquanto subíamos a escada, ela desfiou prolongadas escusas para que entendêssemos como era difícil controlar tantas meninas travessas. Quando, afinal, chegamos ao quarto de Carrie, várias alunas vinham em nosso rastro, sussurrando comentários a respeito do quanto Chris e eu nos parecíamos com Carrie, embora não fossemos “tão excepcionalmente pequenos”.

Chris virou-se para fitá-las com uma carranca.

— Não é de espantar que ela deteste a escola se vocês são capazes desse tipo de comentários!

Em seguida, assegurou:

— Nós a encontraremos, nem que tenhamos que permanecer aqui a semana inteira e torturar cada uma dessas bruxinhas para obrigá-las a contar o que sabem.

A Srta. Dewhurst explodiu:

— Meu caro jovem, ninguém tortura minhas meninas, a não ser eu!

Eu conhecia Carrie melhor que qualquer outra pessoa e procurei acompanhar o funcionamento de seu raciocínio. Ora, se eu tivesse a idade de Carrie, tentaria fugir de uma escola que, de modo injusto, me impedisse de passar o fim-de-semana em casa? Claro! Eu faria exatamente isso. Mas eu não era Carrie; ela não fugiria vestindo apenas uma camisola de dormir. Todos os pequenos uniformes de Carrie, feitos sob medida por Henny, lá estavam guardados com os suéteres, saias, blusas, vestidos bonitos; tudo. O que ela trouxera para a escola estava meticulosamente arrumado em seu lugar adequado. Só faltavam as bonecas de porcelana.

Ainda ajoelhada diante da cômoda de Carrie, sentei nos calcanhares e olhei para Paul, mostrando-lhe a caixinha que continha apenas chumaços de algodão e alguns gravetos.

— As bonecas não estão aqui — declarei atordoada, não entendendo a presença dos gravetos. — Até onde consigo perceber, a única peça de roupa que está faltando é uma das camisolas. Carrie jamais sairia ao ar livre vestindo apenas uma camisola. Tem que estar aqui: em algum lugar onde ninguém procurou.

— Procuramos em toda parte! — declarou a Srta. Dewhurst, impaciente, como se eu não tivesse voz ativa no assunto e valesse apenas a palavra do guardião, Dr. Paul Sheffield, cujo favor ela procurava ganhar até mesmo quando ele continuou a encará-la de modo severo e irritado.

Por algum motivo que não sei explicar, virei a cabeça a tempo de surpreender uma expressão de “gato que comeu o canário” no rosto pálido e doentio de uma garotinha ruiva e magricela a quem eu detestava pelo pouco que ouvira Carrie contar a seu respeito: a colega de quarto. Talvez fosse apenas o olhar, ou a maneira pela qual ela passava a mão na borda do grande bolso do avental de organdi, que me fez encará-la fixamente, procurando penetrar-lhe até o fundo do pensamento. A ruiva ficou ainda mais branca e desviou os olhos verdes para a janela; mexeu nervosamente os pés e retirou apressadamente a mão do bolso. Este era forrado e apresentava um volume suspeito.

— Você aí — disse eu. — É a colega de quarto de Carrie, não é?

— Era — murmurou a garota.

— O que tem no bolso?

Ela virou bruscamente a cabeça para mim, com os olhos verdes faiscando e os músculos dos lábios tremendo.

— Não é da sua conta!

— Srta. Towers! — advertiu severamente a Srta. Dewhurst. — Responda à pergunta da Srta. Dollanganger!

— É minha bolsa — disse Sissy Towers, encarando-me raivosamente com ar desafiador.

— Uma bolsa bem grande — comentei.

Num gesto repentino, curvei-me para a frente e agarrei Sissy Towers, abraçando-a pelos joelhos. Enquanto ela gritava e resistia, usei a mão livre para retirar do bolso dela um lenço azul. Do lenço caíram o Sr. e Sra. Parkins e o bebê, Clara. Segurando as três bonecas, indaguei:

— O que está fazendo com as bonecas de minha irmã?

— As bonecas são minhas! — disse a ruiva, apertando raivosamente os olhos penetrantes.

As meninas reunidas no quarto começaram a dar risadinhas e trocar comentários sussurrados.

— Suas? Pertencem à minha irmã!

— É mentira! — explodiu Sissy. — Está me roubando e meu pai pode mandar você para a cadeia!

A diabinha estendeu a mão para pegar as bonecas e ordenou:

— Srta. Dewhurst, mande essa criatura me deixar em paz! Não gosto dela, como não gosto de sua irmã anã!

Levantei-me, postando-me diante dela em atitude ameaçadora. Protegi as bonecas, colocando a mão atrás das costas. Para pegá-las, ela teria que passar sobre o meu cadáver!

— Srta. Dewhurst! — berrou a moleca, agredindo-me. — Meus pais me deram essas bonecas no Natal!

— Sua diabinha mentirosa! — respondi, louca para esbofetear-lhe o rosto atrevido. — Roubou estas bonecas e o berço do bebê. E por isso Carrie se encontra agora em extremo perigo! Eu sentia. Tinha certeza. Carrie precisava de auxílio, e depressa.

— Onde está minha irmã? — perguntei, quase fora de mim.

Olhei duro para a garota ruiva chamada Sissy, sabendo que ela conhecia o paradeiro de Carrie, mas nunca o revelaria. Estava escrito em seus olhos mesquinhos e maldosos. Foi então que Lacy St. John tomou a palavra e nos contou o que tinham feito a Carrie na noite anterior. Oh! Deus! Para Carrie não existia local mais terrível que um telhado, qualquer telhado! Voltei ao passado, quando Chris e eu tentamos levar os gêmeos para o telhado de Foxworth Hall, onde poderíamos segurá-los para tomarem banho de sol e respirarem ar puro, a fim de crescerem normalmente. E como crianças desvairadas, enlouquecidas pelo medo, eles tinham esperneado e berrado. Cerrei as pálpebras com força, concentrando-me totalmente em Carrie. Onde, onde, onde? Então, mentalmente, avistei-a encolhida num canto escuro do que parecia ser um profundo canyon que se erguesse em ambos os lados dela.

— Quero procurar pessoalmente no sótão — disse eu à Srta. Dewhurst.

Ela replicou rapidamente que já tinham revistado meticulosamente o sótão chamando interminavelmente por Carrie. Contudo, não conheciam Carrie tanto quanto eu. Não sabiam que minha irmãzinha era capaz de isolar-se num mundo remoto, onde não existiam sons, quando entrava em estado de choque. Chris, Paul, eu e todas as professoras galgamos a escada que levava ao sótão. Era muito semelhante ao que nos servira de prisão: um lugar vasto, empoeirado e escuro. Entretanto, não estava entulhado de móveis velhos cobertos com sujas capas cinzentas ou outros remanescentes do passado. Só havia pilhas e pilhas de pesados caixotes de madeira.

Carrie estava ali. Eu podia sentir isso. Sentia-lhe a presença como se ela estendesse a mão e me tocasse, embora eu só conseguisse ver as pilhas de caixotes.

— Carrie! — chamei, o mais alto possível. — Sou eu, Cathy! Não se esconda nem fique calada porque está com medo! Peguei suas bonecas! O Dr. Paul e Chris estão comigo! Viemos levá-la para casa e nunca mais você terá que ir para uma escola!

Chamei a atenção de Paul com uma leve cotovelada.

— Agora, chame-a você também.

Paul abandonou seu tom suave e assumiu uma voz tonitruante:

— Carrie, se consegue escutar-me, saiba que sua irmã diz a verdade. Queremos levá-la definitivamente para casa. Desculpe-me, Carrie. Pensei que você fosse gostar daqui. Agora, entendo que não poderia ser feliz na escola. Carrie, venha por favor! Precisamos de você!

Tive a impressão de ouvir uma leve lamúria. Corri naquela direção, com Chris nos calcanhares. Conhecíamos sótãos: como buscar, como encontrar. Estaquei de súbito e Chris esbarrou-me nas costas. Bem à nossa frente, nas sombras criadas pelas pilhas de pesados caixotes de madeira, avistei Carrie ainda de camisola, toda rasgada, suja e ensangüentada. Também ainda estava vendada e amordaçada. Os cabelos louros brilhavam na luz difusa. A perna de Carrie estava torcida sob o corpo, num ângulo grotesco.

— Meu Deus! — sussurraram Chris e Paul a um só tempo. — A perna parece quebrada.

— Espere um minuto — acautelou Paul em voz baixa, segurando-me pelos ombros quando eu, sem pensar, fiz menção de correr em socorro de Carrie. — Veja aqueles caixotes. Um movimento brusco de sua parte e eles cairão sobre você e Carrie.

Em algum lugar atrás de mim, uma professora gemeu e começou a rezar. Era incrível que Carrie, vendada e manietada, conseguisse arrastar-se por aquela estreita passagem. Uma pessoa adulta não o conseguiria. Mas eu poderia chegar até ela, pois ainda era suficientemente pequena. Enquanto falava, planejei o modo de agir.

— Carrie, faça exatamente o que digo. Não se incline para a direita ou para a esquerda. Cole-se de bruços no chão e rasteje na direção da minha voz. Rastejarei até aí, a fim de segurá-la por baixo dos braços. Mantenha a cabeça erguida, de modo a não arranhar o rosto. O Dr. Paul me agarrará pelos calcanhares e puxará nós duas para fora daí.

— Diga-lhe que a perna vai doer.

— Carrie, escutou o que disse o Dr. Paul? Sua perna doerá; portanto, faça o favor de não debater-se quando sentir a dor. Tudo acabará em questão de segundos e o Dr. Paul tratará de sua perna.

Tive a impressão de levar horas para arrastar-me lentamente pelo túnel, enquanto os caixotes tremiam e balançavam. Quando segurei Carrie pelos ombros, escutei o Dr. Paul gritar:

— Agora, Cathy!

Então, ele puxou depressa e com força. Os caixotes desabaram! A poeira voou para todos os lados. Em meio à confusão, fiquei junto a Carrie, retirando-lhe a venda e a mordaça, enquanto o Dr. Paul desatava os nós que a manietavam. Em seguida, Carrie agarrou-se a mim, piscando porque a luz lhe feria os olhos, chorando de dor na perna, aterrorizada de ver as professoras e a posição torta da própria perna.

Chris e eu viajamos na ambulância que veio buscar Carrie para levá-la ao hospital. Sentamo-nos no mesmo banquinho, cada um de nós segurando uma das mãos de Carrie. Paul nos seguiu em seu carro branco, a fim de estar presente para supervisionar o ortopedista que cuidaria da perna fraturada de Carrie. Deitados de costas no travesseiro ao lado da cabeça de Carrie, com sorrisos fixos e corpos rígidos, estavam as três bonecas de porcelana. Foi então que me lembrei: agora o berço do bebê também estava faltando, exatamente como o berço de Carrie desaparecera anos atrás.

A perna quebrada de Carrie estragou a longa viagem de férias de verão que o Dr. Paul planejara para todos nós. Mais uma vez, odiei violentamente Mamãe. A culpa era dela; sempre éramos castigados pelo que ela causava! Não era justo que Carrie fosse obrigada a ficar de cama, impedindo-nos de viajar para o Norte, enquanto nossa mãe vagabundeava por toda parte, comparecendo a festas, convivendo com o jet set e astros do cinema como se nós nem mesmo existíssemos! Agora, estava na Riviera francesa. Recortei a notícia da coluna social do jornal de Greenglenna e colei-a em meu grande álbum de vingança. Houve um artigo que mostrei a Chris antes de colá-lo no álbum. Não lhe mostrava todos os recortes, pois não queria que ele soubesse que eu tinha uma assinatura do jornal da Virgínia que noticiava tudo o que os Foxworth faziam.

— Onde arranjou isto? — quis saber ele, erguendo os olhos do recorte e devolvendo-o a mim.

— No jornal de Greenglenna. Preocupa-se mais com a alta sociedade que o Daily News de Clairmont. Nossa mãe é uma notícia quente, você sabia?

— Ao contrário de você, procuro esquecer! — replicou ele, irritado. — Não estamos tão mal, não é mesmo? Temos sorte de morarmos com Paul e a perna de Carrie voltará inteiramente ao normal. E haverá outros verões em que poderemos visitar a Nova Inglaterra.

Como ele podia ter certeza? Nada se oferece duas vezes. Talvez chegassem outros verões em que estivéssemos todos ocupados demais para viajar.

— Naturalmente, sendo “quase” médico, você deve saber que a perna de Carrie talvez não cresça enquanto estiver no aparelho de gesso, não é mesmo?

Chris me pareceu estranhamente inquieto.

— Se ela crescesse como uma criança normal, creio que poderia existir esse risco. Entretanto, Cathy, ela não cresce muito, de modo que há poucas probabilidades de que uma perna fique mais curta que a outra.

— Ora, vá enterrar o nariz num compêndio de anatomia! — repliquei furiosa, porque ele sempre dava pouca importância quando eu afirmava que Mamãe era a causadora de alguma coisa ruim.

No entanto, ele sabia tão bem quanto eu por que motivo Carrie não crescia. Privada de amor, de sol e de liberdade, era um milagre ela ter sobrevivido! Sem falar no arsênico! Maldita Mamãe, que sua alma ardesse no fogo do inferno!

Dia a dia, meticulosamente, eu aumentava minha coleção de recortes de notícias e fotografias tiradas de muitos jornais. Nelas enterrava quase todas as minhas economias. Embora olhasse as fotografias de Mamãe com ódio e aversão, admirava as de seu marido. Como era tão belo e forte seu jovem marido, alto, esbelto e bem bronzeado! Observei uma foto na qual ele erguia uma taça de champanhe para brindar a esposa no segundo aniversário de casamento.

Naquela noite, resolvi enviar um curto bilhete a Mamãe:

 

Cara Sra. Winslow,

Como me recordo de sua lua-de-mel. Foi um verão maravilhoso nas montanhas, tão refrescante e agradável, trancados num quarto cujas janelas nunca eram abertas.

Parabéns e meus melhores votos de felicidades, Sra. Winslow. E espero que todos os seus futuros verões, invernos, primaveras e outonos sejam assombrados pela lembrança do tipo de verões, invernos, primaveras e outonos que tiveram suas “Bonecas de Desdren”.

Dos que já não lhe pertencem,

o boneco médico,

a boneca bailarina,

a boneca que reza para crescer

e o boneco morto.

 

Corri para colocar a carta na caixa postal e mal a deixei cair pela fenda arrependi-me, desejando tê-la de volta. Chris me odiaria por fazer aquilo. Choveu naquela noite e levantei-me da cama para observar a tempestade. As lágrimas me escorriam pelo rosto como a chuva escorria pela vidraça. Era sábado e Chris estava em casa. Estava lá fora, na varanda, deixando que a chuva soprada pelo vento lhe molhasse o pijama, colando-lhe o tecido à pele.

Avistou-me quase no mesmo instante em que o vi e entrou em meu quarto sem dizer uma palavra. Abraçamo-nos; eu chorava por mais que me esforçasse para não fazê-lo. Ele mal conseguia conter as lágrimas. Eu queria que se fosse e, ao mesmo tempo, agarrava-o com força, chorando-lhe no ombro.

— Ora, Cathy, por que as lágrimas? — indagou, enquanto eu continuava a soluçar.

Quando consegui falar, perguntei:

— Chris, você não a ama mais, não é mesmo?

Ele hesitou, o que me fez o sangue ferver de raiva.

— Você a ama! — exclamei. — Como consegue, depois de tudo o que ela fez a Cory e Carrie? Chris, o que há de errado com você que lhe permite continuar a amá-la, quando deveria odiá-la tanto quanto eu?

Ele permaneceu mudo. E seu próprio silêncio constituiu uma resposta. Continuava a amá-la porque precisava fazê-lo para continuar me amando. Toda vez que olhava para mim, via nossa mãe e a imagem dela quando jovem. Chris era exatamente como Papai, que fora tão vulnerável ao tipo de beleza que eu possuía. Contudo, era apenas uma semelhança superficial. Eu não era fraca! Não era desprovida de talentos! Eu seria capaz de imaginar mil e uma maneiras diferentes de ganhar a vida sem precisar trancar meus quatro filhos num quarto miserável e abandoná-los aos cuidados de uma velha malvada que desejava vê-los sofrer por pecados que eles não tinham cometido!

Enquanto eu ruminava meus pensamentos vingativos e fazia planos para arruinar-lhe a vida na primeira oportunidade que surgisse, Chris beijava-me com ternura. Eu nem mesmo notara o fato.

— Pare com isso! — exclamei ao sentir a pressão de seus lábios nos meus, — Deixe-me em paz! Você não me ama como quero ser amada, por ser o que sou. Você me ama porque meu rosto é igual ao dela! Às vezes odeio meu rosto!

Chris pareceu profundamente magoado ao recuar na direção da porta.

— Estava apenas procurando reconfortá-la — declarou com voz embargada. – Não se transforme num monstro.

Meus temores de que a perna de Carrie saísse do aparelho de gesso mais curta que a outra foram infundados. Pouco tempo depois que o gesso foi retirado, ela recomeçou a andar tão bem quanto antes. Quando o outono se aproximou, Chris, Paul e eu tivemos uma conferência sobre o assunto e decidimos que, afinal, a melhor solução para o problema de Carrie seria uma escola pública, de onde ela voltasse para casa todos os dias. Tudo o que ela teria a fazer era tomar o ônibus escolar a três quarteirões de casa; o mesmo ônibus a traria de volta às três da tarde. Então, ela ficaria com Henny na ampla e gostosa cozinha de Paul até que eu voltasse da aula de balé.

Logo setembro chegou. Depois, passou-se novembro. E Carrie ainda não fizera uma só amizade. Desejava desesperadamente integrar-se a um grupo, mas sempre ficava de fora. Queria encontrar alguém que a tratasse como irmã, mas só topava com desconfiança, hostilidade e ridículo. Tudo indicava que Carrie passaria o resto da vida percorrendo os longos corredores daquela escola primária sem encontrar uma única amiga.

— Cathy — dizia-me ela. — Ninguém gosta de mim.

— Gostarão. Mais cedo ou mais tarde, perceberão o quanto você é delicada e maravilhosa. E você tem a nós todos, que a amamos e admiramos. Portanto, não se preocupe com os outros. Não dê importância ao que eles pensam!

Carrie fungou, pois dava importância, e muita!

Carrie dormia na sua cama de solteiro encostada à minha e todas as noites eu a via ajoelhar-se junto à cama, com as mãos unidas sob o queixo, e rezar de cabeça baixa.

— E, por favor, meu Deus! Permita que eu torne a encontrar minha mãe. Minha mãe de verdade. Acima de tudo, Senhor Deus, permita-me crescer um pouco mais. Não precisa tornar-me tão alta como Mamãe; basta eu ficar quase tão alta como Cathy. Por favor, meu Deus, por favor, por favor!

Deitada na cama ouvindo aquilo, eu fitava o teto e odiava Mamãe, realmente a desprezava e detestava! Como podia Carrie ainda querer uma mãe que fora tão cruel para ela? Teríamos, Chris e eu, agido corretamente ao ocultarmos dela a sinistra verdade sobre a maneira como nossa mãe tentara matar-nos? Sobre como ela era a causa de Carrie ser tão raquítica? Carrie atribuía à pequenez toda a sua infelicidade e solidão. Tinha consciência de possuir um rosto lindo e um cabelo sensacional, mas de que lhe adiantava isso se o rosto e o cabelo estavam numa cabeça desproporcionalmente avantajada em relação ao corpinho magro e miúdo? A beleza de Carrie em nada contribuía para angariar-lhe amizade e admiração. Muito pelo contrário.

“Cara de Boneca, Cabelo de Anjo. Ei, você aí, baixinha, ou será que é anã? Por que não vai trabalhar num circo e ser a maior atração?”

E Carrie corria de volta para casa, três quarteirões inteiros desde o ponto do ônibus, amedrontada e chorosa, mais uma vez atormentada por crianças desprovidas de sensibilidade.

— Eu não presto, Cathy! — chorava ela com o rosto enterrado em meu colo. — Ninguém gosta de mim! Não gostam do meu corpo porque é pequeno demais; não gostam de minha cabeça porque é grande demais. E nem mesmo gostam do que tenho de bonito, pois acham que está sendo desperdiçado em alguém tão raquítico como eu!

Eu fazia o possível para consolá-la, mas sentia-me impotente. Sabia que Carrie observava meus menores movimentos, comparando minhas proporções físicas com as suas. Ao fazê-lo, ela percebia o quanto eu era bem proporcionada e o quanto ela era grotesca. Se eu lhe pudesse dar uma parte de minha estatura, certamente o faria de bom grado. Em lugar disso, dava-lhe minhas preces. Noite após noite eu também me ajoelhava e pedia a Deus:

— Por favor, faça Carrie crescer! Por favor, meu Deus! Ela é tão jovem, magoa-se tanto, já sofreu tanta coisa! Seja bondoso. Olhe para baixo. Veja-nos aqui, Deus! Escute nossas preces!

Uma tarde, Carrie procurou a única pessoa capaz de lhe dar quase tudo. Portanto, por que não lhe daria estatura? Paul estava sentado na varanda dos fundos, bebericando vinho, mastigando iscas de queijo e bolachas salgadas. Eu estava na aula de balé, de modo que tomei conhecimento apenas da versão narrada por Paul.

— Carrie se aproximou de mim, Cathy, e indagou se eu não tinha uma máquina de esticar, para torná-la mais comprida.

Suspirei, enquanto ele prosseguia:

— Eu lhe respondi que, se tivesse tal máquina, seria um processo muito doloroso.

Eu tinha certeza de que ele respondera com amor, bondade e compreensão, sem zombaria.

— “Tenha paciência querida. Você está mais alta que quando chegou a esta casa. Com o tempo, crescerá mais. Ora, vi muitas crianças mais baixas que você crescerem de repente quando atingiram a puberdade.” Ela me encarou com aqueles medrosos olhos azuis e percebi que ficou desapontada. Eu lhe falhara. Compreendi isso pelo modo como ela se afastou, de ombros caídos e cabeça baixa. Suas esperanças devem ter atingido o auge quando seus malvados colegas de escola zombaram dela, sugerindo que procurasse uma “máquina de esticar”.

— A medicina moderna não dispõe de algum recurso para fazê-la crescer? — perguntei a Paul.

— Estou procurando — replicou ele com voz tensa. — Venderia minha alma para conseguir que Carrie tivesse a altura que deseja. Ceder-lhe-ia parte da minha altura, se fosse possível.

 

A sombra de mamãe

Fazia um ano e meio que estávamos com o nosso “doutor”. Que dias eufóricos e espantosos foram aqueles! Eu era como uma toupeira emergindo da escuridão para descobrir que os dias brilhantes eram muito diferentes do que eu supunha que fossem. Outrora, eu julgava que, uma vez livres de Foxworth Hall e eu já quase adulta, a vida me conduziria por um caminho largo e reto à fama, riqueza e felicidade. Tinha talento; percebia o fato nos olhares admirados de Madame e Georges. Madame, em especial, vigiava como uma águia as menores falhas de técnica e controle. E cada crítica recebida dizia-me que eu valia todos os seus esforços no sentido de transformar-me não apenas numa bailarina excelente, mas sensacional.

Durante as férias de verão, Chris arranjou emprego como garçom num café, das sete da manhã às sete da noite. Em agosto, tornaria a partir para a Universidade de Duke, onde cursaria o segundo ano preparatório para a faculdade de medicina. Carrie gastava o tempo andando no balanço, brincando com suas bonequinhas de porcelana, embora já tivesse dez anos e devesse estar abandonando brincadeiras com bonecas. Eu passava cinco dias da semana e metade dos sábados na aula de balé. Quando estava em casa, minha irmãzinha se grudava a mim como se fosse minha sombra. Quando eu saía, ela se tornava a sombra de Henny. Necessitava de uma companheira de sua idade, mas não conseguia encontrá-la. Agora, tinha apenas as bonequinhas de porcelana com quem confidenciar, pois já se sentia idosa demais para bancar o bebê com Chris e comigo. De repente, parou de reclamar do próprio raquitismo. Mas seus olhos, aqueles grandes olhos azuis, muito tristes e desolados, revelavam que ela ansiava por ser tão alta quanto as meninas que via na rua.

A solidão de Carrie doía-me de tal maneira que eu tornava a me lembrar de Mamãe, maldizendo-a com todas as minhas forças! Esperava que ela fosse pendurada pelos calcanhares sobre o fogo do inferno e atormentada por demônios armados com agudos tridentes. Com uma freqüência cada vez maior eu enviava bilhetes a Mamãe, no intuito de atormentar sua vida onde quer que ela estivesse. Ela jamais se demorava num só lugar o tempo suficiente para receber minhas cartas ou, se as recebia, preferia não respondê-las. Aguardei que os envelopes me fossem devolvidos com o carimbo DESTINATÁRIO NÃO ENCONTRADO, mas isto não ocorreu.

Todas as noites, eu lia cuidadosamente o jornal de Greenglenna, tentando descobrir o que minha mãe fazia e onde se encontrava. Às vezes, tinha notícias.

“A Sra. Bartholomew Winslow deixou Paris com destino a Roma, a fim de visitar o novo papa da alta costura internacional.”

Recortei aquelas linhas e colei-as no meu álbum. Oh! O que eu faria quando a encontrasse! Mais cedo ou mais tarde, ela regressaria a Greenglenna para residir na casa de Bart Winslow, recém-reformada, redecorada e mobiliada. Recortei também esta notícia e fitei prolongadamente a foto, que não lhe fazia justiça, o que era raro, pois em geral ela conseguia exibir um sorriso brilhante para mostrar ao mundo inteiro o quanto se sentia feliz e satisfeita com a vida que levava.

Chris partiu para a universidade em agosto, duas semanas antes de se reiniciarem minhas aulas no ginásio. Minha formatura seria no final de janeiro. Impaciente para terminar logo o ginásio, eu estudava como uma louca.

Os dias de outono se escoaram com rapidez, ao contrário de outros outonos em que o tempo parecia arrastar-se monotonamente enquanto eu ficava cada vez mais velha e a juventude me era roubada. O simples fato de me manter atualizada quanto às atividades de minha mãe era suficiente para ocupar-me o tempo livre. Então, quando realmente farejei o rastro da história da família de Bart, passei a gastar uma parte ainda maior de meu precioso tempo.

Em Greenglenna, passei horas a fio lendo velhos livros escritos sobre as famílias que haviam fundado a cidade. Os ancestrais de Bart Winslow tinham chegado aos Estados Unidos na mesma época em que os meus, no século XVIII; vieram também da Inglaterra, estabelecendo-se na parte da Virgínia que era atualmente a Carolina do Norte. Ergui os olhos da página e fitei o espaço. Seria mera coincidência que os ancestrais de Bart e os meus fizessem parte daquela “Colônia Perdida”? Alguns dos maridos tinham viajado de volta à Inglaterra para buscar suprimentos e só regressaram muito mais tarde, encontrando a colônia abandonada, sem um único sobrevivente para explicar o motivo. Depois da Revolução, os Winslow se transferiram para a Carolina do Sul. Que estranho! Atualmente os Foxworth também estavam na Carolina do Sul.

Nem um só dia se passava sem que eu esperasse topar com Mamãe enquanto fazia compras ou trafegava pelas movimentadas ruas de Greenglenna. Eu olhava para todas as louras que avistava na rua; entrava nas lojas elegantes para procurá-la. Vendedoras pernósticas se aproximavam silenciosamente por detrás de mim e indagavam se podiam ajudar-me em alguma coisa. É claro que não podiam. Eu procurava minha mãe e esta, certamente, não estava pendurada num cabide. Mas estava na cidade! A coluna social dera-me tal informação. Qualquer dia eu a encontraria!

Um sábado ensolarado, eu me apressava em fazer um favor a Madame Marisha quando, de repente, avistei na calçada, à minha frente, um homem e uma mulher tão familiares que meu coração quase parou de bater! Eram eles! Bastou-me o fato de vê-la caminhando com tanta naturalidade ao lado dele, evidentemente satisfeita, para que eu entrasse em pânico! Bílis amarga subiu-me à garganta. Ousei aproximar-me, de modo a ficar bem atrás deles. Se ela virasse a cabeça, certamente me avistaria, e o que faria eu, então? Cuspir-lhe-ia no rosto? Sim, gostaria de fazê-lo. Poderia também passar-lhe uma rasteira, fazendo-a cair, e observá-la perder a pose e a dignidade. Seria gostoso. Mas nada fiz senão tremer e sentir-me doente ao escutá-los conversar.

A voz dela era doce e suave, tão cultivada e aristocrática. Maravilhei-me ao constatar o quanto ainda se mantinha esbelta e elegante, os lindos cabelos louros e brilhantes levemente ondulados para trás, deixando o rosto inteiramente à mostra. Quando ela virou a cabeça para falar outra vez com o homem a seu lado, vi-lhe o perfil. Suspirei. Oh! Meu Deus! Minha mãe, naquele caro costume cor-de-rosa. A linda mãe a quem eu tanto amara. Minha mãe assassina, que ainda conseguia apoderar-se de meu coração e espremê-lo até secar, pois outrora eu a amara tanto, confiara tanto nela... e, bem no fundo de mim ainda existia aquela menininha, como Carrie, que ainda desejava uma mãe para amar. Por que, Mamãe? Por que tem que gostar mais do dinheiro que de seus próprios filhos?

Abafei um soluço que ela poderia ter escutado. Minhas emoções turbilhonavam descontroladas. Tive ímpetos de correr até ela e berrar-lhe acusações diante do marido, chocando-o e deixando-a aterrorizada! Ao mesmo tempo tive vontade de correr para ela, abraçá-la chamar-lhe o nome, implorar-lhe que voltasse a me amar como antes. Contudo, todas as minhas emoções ficaram submersas num maremoto de ódio e desejo de vingança. Não a abordei, pois ainda não me sentia preparada para fazê-lo. Ainda não era rica ou famosa. Ainda não era ninguém especial e ela continuava a ser uma grande beldade. Era uma das mulheres mais ricas da região e, também, uma das mais afortunadas.

Naquele dia, ousei arriscar-me muito, mas eles não se voltaram para ver-me. Minha mãe não era do tipo que olha para trás ou fita os transeuntes. Estava acostumada a ser o centro de atração dos olhares admirados. Avançava como uma rainha por entre os plebeus, como se as únicas pessoas na rua fossem ela e seu jovem marido. Quando me fartei de olhá-la, voltei a atenção para o marido, absorvendo seu tipo especial de beleza viril e felina. Já não usava o basto bigode escuro. Tinha os cabelos escuros suavemente ondulados para trás, num corte moderno. Lembrou-me um pouco Julian. As palavras trocadas por minha mãe e o marido não foram especialmente reveladoras. Discutiam o restaurante onde deviam jantar e ela queria saber se os móveis que tinham comprado naquela tarde poderiam ser melhores caso fizessem a compra em Nova York.

— Adorei aquele aparador que escolhemos — disse ela, num tom de voz que me levou de volta à infância. — Lembra-me muito um que comprei pouco antes da morte de Chris.

Oh! Sim. Aquele aparador custara dois mil e quinhentos dólares e era necessário para dar equilíbrio a um dos lados da sala. Então, Papai morrera no desastre e tudo que não fora pago nos foi tomado, inclusive o aparador. Acompanhei-lhes os passos, desafiando o destino a permitir que me avistassem. Estavam em Greenglenna, morando na casa de Bart Winslow. Enquanto os seguia, cheia de planos de vingança, odiando minha mãe e admirando seu marido, eu imaginava a maneira de fazê-la sofrer mais. E o que fiz? Acovardei-me! Não fiz nada, absolutamente nada! Furiosa comigo mesma, voltei para casa e esbravejei diante do espelho, odiando minha imagem por ser uma duplicata dela! Maldita fosse Mamãe! Peguei um pesado prendedor de papéis em cima da elegante escrivaninha em estilo provincial francês que Paul comprara para mim e atirei-o com força contra o espelho! Tome, Mamãe! Agora, está desfeita em pedaços! Sumiu, sumiu, sumiu! Então, comecei a chorar.

Posteriormente, um homem veio colocar outro espelho na moldura. Tola, eis o que eu era! Não fizera mais que gastar parte do dinheiro que vinha economizando para dar um belo presente a Paul em seu quadragésimo-segundo aniversário. Algum dia, eu me desforraria de uma maneira que não seria prejudicada. Seria mais que um simples espelho quebrado. Mais, muito mais!

 

Um presente de aniversário

As convenções médicas, assim como os pacientes, estragaram muitos dos meus planos. Naquele dia especial, faltei à aula de balé a fim de voltar correndo para casa direto do ginásio. Encontrei Henny na cozinha, trabalhando como uma escrava para preparar o jantar de gourmet que eu planejara: todos os pratos prediletos de Paul. Uma jambalaia crioula com camarão, carne de siri, arroz, pimentões verdes, cebolas, alho, cogumelos e tantos outros ingredientes que tive a impressão de que jamais acabaria de medir porções disto ou daquilo. Então era preciso refogar todos os cogumelos e outros legumes. Um prato complicado, que eu provavelmente não tornaria a preparar. Tão logo aquele foi para o forno, comecei outro bolo. O primeiro era úmido e macio, com um furo no meio. Enchi o buraco com glacê e dei-o às crianças das redondezas. Henny movimentava-se atarefadamente, sacudindo a cabeça e olhando-me com ar crítico.

Eu estava terminando de confeitar o segundo bolo quando Chris entrou pela porta dos fundos, carregando seu presente.

— Cheguei atrasado? — indagou ofegante. — Só poderei ficar até as nove horas. Preciso voltar à universidade antes da chamada noturna.

— Chegou bem a tempo — respondi afobada, ansiosa por subir para tomar banho e me vestir. — Arrume a mesa enquanto Henny termina a salada.

Naturalmente, arrumar a mesa era algo ofensivo à sua dignidade; contudo, para variar, ele obedeceu sem protestar.

Lavei o cabelo, enrolei-o, pintei as unhas dos pés e das mãos com um esmalte rosa prateado e poli-as esmeradamente. Maquilei-me com a habilidade resultante de horas de prática e longas consultas com Madame Marisha e as maquiladoras das grandes lojas de departamentos. Quando terminei, ninguém seria capaz de adivinhar que eu tinha apenas dezessete anos. Desci a escada sentindo-me elevada aos píncaros pela admiração que brilhava nos olhos de meu irmão, a inveja estampada no rosto de Carrie e o largo sorriso que dividia o rosto de Henny de uma orelha à outra.

Caprichei nos retoques finais da arrumação da mesa, ajeitando os apitos, línguas-de-sogra e os ridículos chapéus coloridos de palhaço. Chris encheu alguns balões e pendurou-os no lustre. Então, sentamo-nos todos, a fim de esperar que Paul chegasse para a sua “festa de surpresa”. Quando as horas se passaram e Paul não chegou, levantei-me e fiquei andando de um lado para outro, como fizera Mamãe na festa de trigésimo-sexto aniversário de Papai, quando ele nunca mais voltou para casa.

Afinal, Chris teve que ir embora. Em seguida, Carrie começou a bocejar e reclamar. Demos-lhe comida e permitimos que subisse para dormir. Agora Carrie dormia sozinha em seu próprio quarto, especialmente decorado em vermelho e roxo. Então, restamos apenas Henny e eu, assistindo à televisão, enquanto o prato crioulo esquentava e secava no forno, a salada começava a murchar. A certa altura, Henny bocejou e foi deitar-se. Fiquei sozinha, andando pela sala, preocupando-me, minha festa estragada.

Às dez horas, escutei o carro de Paul entrar na alameda de acesso. Ele veio pela porta da cozinha, carregando as malas que levara consigo para Chicago. Cumprimentou-me distraidamente antes de notar minhas roupas elegantes.

— Ei!... exclamou, lançando um olhar desconfiado à sala de jantar e vendo a decoração para a festa. — Por acaso consegui estragar algo que você planejava fazer?

Mostrou-se tão despreocupado com o fato de estar atrasado três horas que eu seria capaz de matá-lo se não o amasse tanto. Como as pessoas que sempre procuram ocultar seus sentimentos, ataquei-o raivosamente:

— Em primeiro lugar, por que teve que comparecer àquela convenção médica? Devia ter adivinhado que tínhamos planos especiais para seu aniversário! Além disso, telefonou para dizer-nos a que horas voltaria para casa, mas chega agora, com três horas de atraso!

— Meu vôo atrasou... — começou ele a explicar.

— Trabalhei como uma escrava para preparar um bolo tão gostoso como o que fazia a sua mãe — interrompi. — E você não apareceu em casa!

Afastei-o bruscamente e tirei o prato do forno.

— Estou faminto — disse Paul em tom humilde, como se pedisse desculpas. — Se você ainda não comeu, poderíamos aproveitar da melhor forma possível o que poderia ser uma ocasião muito festiva e feliz. Tenha piedade de mim, Cathy!Não posso controlar as condições atmosféricas.

Meneei rigidamente a cabeça para mostrar ao menos uma partícula de compreensão. Paul sorriu e acariciou-me o rosto com as costas da mão.

— Está com uma aparência absolutamente exótica — murmurou. — Portanto, trate de desfranzir a testa e preparar as coisas. Descerei dentro de dez minutos.

Em dez minutos ele tomou banho, fez a barba e vestiu roupas limpas. À luz de quatro velas, sentamo-nos à comprida mesa de jantar; tomei lugar à esquerda de Paul. Eu preparara a refeição de modo a não ter necessidade de levantar-me para servi-lo. Tudo o que era preciso fora arrumado num carrinho de servir. Os pratos a serem servidos quentes estavam sobre aquecedores elétricos e o champanhe gelava num balde de prata.

— O champanhe é presente de Chris — informei. — Ele tomou gosto por esse tipo de bebida.

Paul tirou a garrafa do balde de gelo e examinou o rótulo.

— Uma boa safra; deve ter custado caro. Seu irmão está adquirindo gostos de gourmet.

Comemos devagar. Tive a impressão de que sempre que erguia a cabeça meus olhos encontravam os dele. Paul chegara em casa parecendo cansado e mal arrumado; agora, mostrava-se completamente refeito. Estivera fora de casa durante duas semanas longas, muito longas. Semanas mortas, que me fizeram sentir falta da sua presença à porta aberta de meu quarto enquanto eu me exercitava na barra, aquecendo os músculos antes do café da manhã, ao som da maravilhosa música que me elevava a alma às nuvens.

Terminada a refeição, corri à cozinha e deslizei de volta com um lindo bolo de coco, decorado com pequenas velas verdes enfiadas em rosas vermelhas feitas de glacê. Em cima do bolo, eu escrevera com a maior arte que a bisnaga de glacê me permitira: “Parabéns, Paul.”

— O que acha? — indagou Paul, depois de soprar as velas.

— A respeito de quê? — redargüi pousando cuidadosamente sobre a mesa o bolo com vinte e seis velas — pois aquela era a idade que ele aparentava para mim, a idade que eu queria que ele tivesse.

Sentia-me como uma adolescente atolada num mundo adulto de areia movediça. Meu vestido curto e formal era de chiffon cor de fogo, alças finas e um decote que deixava à mostra o profundo vale entre meus seios. Entretanto, se minha tentativa de parecer sofisticada alcançara sucesso, por dentro eu me sentia atordoada ao tentar desempenhar o papel de sedutora.

— Do meu bigode... é claro que você notou. Faz meia hora que não tira os olhos dele.

— É bonito — gaguejei, ficando vermelha como meu vestido. — Fica bem em você.

— Ora, desde que chegou a esta casa você vem insinuando que eu seria muito mais bonito e atraente se usasse bigode. E agora, que me dei ao trabalho de deixá-lo crescer, você diz que me fica bem. É uma expressão muito fraca, Catherine.

— É porque... porque você fica tão bonito que só consigo encontrar expressões fracas — gaguejei outra vez. — Temo que Thelma Murkel já tenha encontrado todas as expressões fortes para elogiá-lo.

— Como, diabo, sabe a respeito dela? — quis saber Paul, apertando as pálpebras dos olhos bonitos.

Ora, ele deveria saber: mexericos. Portanto, respondi:

— Fui àquele hospital onde Thelma Murkel é a enfermeira-chefe do terceiro andar. Sentei-me perto do posto das enfermeiras e a observei durante cerca de duas horas. Na minha opinião, ela não chega a ser bonita, mas é atraente e pareceu-me terrivelmente autoritária. E flerta com todos os médicos, caso você ainda não tenha conhecimento do fato.

Deixei-o a rir, com os olhos brilhando. Thelma Murkel era enfermeira-chefe de um dos pavimentos do Hospital Clairmont Memorial e todos lá sabiam que estava decidida a tornar-se a segunda Sra. Paul Scott Sheffield. Entretanto, não passava de uma enfermeira num estéril uniforme branco, a quilômetros de distância de Paul, enquanto eu estava bem sob o nariz dele, com meu embriagador perfume novo a lhe despertar os sentidos (como dizia o anúncio: um aroma enfeitiçante, cheio de encanto e sedução, ao qual homem nenhum consegue resistir). Que possibilidades tinha Thelma Murkel, com vinte e nove anos de idade, contra alguém como eu?

Eu já estava zonza com três taças do champanhe importado trazido por Chris, mal conseguindo manter-me alerta, quando Paul começou a abrir os presentes que Chris, Carrie e eu tínhamos comprado para ele com nossas economias. Eu bordara para Paul uma tapeçaria mostrando a linda casa branca com as árvores aparecendo acima do telhado e parte do muro lateral com pequenas flores brilhantes. Chris riscara o desenho para mim e eu trabalhara como escrava durante muitas horas a fim de produzir um serviço perfeito.

— Que linda obra de arte! — exclamou Paul, espantado e impressionado.

Não pude deixar de relembrar a avó e o modo cruel pelo qual rejeitara nosso gesto dedicado e esperançoso de angariar-lhe a amizade.

— Muito obrigado, Catherine, por considerar-me tanto. Vou pendurá-la na parede do consultório, onde todos os clientes possam vê-la.

As lágrimas transbordaram-me dos olhos, manchando a maquilagem. Tentei enxugá-las furtivamente antes que Paul percebesse que não era apenas a luz de velas que me tornava tão bonita, mas três horas de cuidadosos preparativos. Ele não notou as lágrimas, nem o lenço que retirei do decote do vestido. Continuava a admirar os minúsculos pontos de bordado que eu fizera com tanto esmero. Então, deixando o presente de lado, captou-me o olhar com seus olhos faiscantes e ergueu-se para ajudar-me.

— A noite está bela demais para irmos dormir — declarou, lançando um olhar ao relógio. — Sinto vontade de passear no jardim ao luar. Já teve ímpetos dessa espécie?

Vontade? Ímpetos? Desejos? Eu era feita deles, grande parte dos quais por demais adolescentes e fantasiosos para se tornarem realidade. Não obstante, atravessando ao lado de Paul a magia do jardim japonês com a pequena ponte laqueada e subindo, de mãos dadas com ele, os degraus de mármore, tive a impressão de que penetrávamos juntos num país de sonhos. A mágica impressão era causada, naturalmente, pelas estátuas de mármore em tamanho natural, muito belas em sua fria e perfeita nudez.

A brisa fazia balançar o musgo espanhol nas árvores, obrigando Paul a abaixar-se enquanto eu podia permanecer ereta e sorrir, pois a estatura causava alguns problemas dos quais eu estava livre.

— Está zombando de mim, Catherine — disse Paul, exatamente como Chris costumava brincar comigo, dividindo-me o nome em sílabas lentas e distintas. Minha Lady Ca-the-ri-ne…

Corri à frente de Paul, descendo os degraus de mármore que levavam ao centro do jardim, onde “O Beijo”, de Rodin, dominava o panorama. Tudo me parecia azul-prateado e irreal; a lua grande e brilhando, cheia e sorridente, com longas mechas de nuvens encobrindo-a a intervalos, dando-lhe alternadamente um aspecto sinistro e alegre. Suspirei, pois fora exatamente assim naquela estranha noite em que Chris e eu estivemos juntos no telhado de Foxworth Hall, temerosos de termos que passar o resto da eternidade assando sobre o fogo do inferno.

— É uma pena você estar aqui comigo e não com aquele rapaz com quem costuma dançar — disse Paul, trazendo-me bruscamente de volta do passado.

— Julian? — indaguei espantada. — Está em Nova York esta semana... mas creio que voltará na próxima.

— Oh! — disse Paul. — Então, a próxima semana pertencerá a ele e não a mim.

— Tudo isso depende...

— De quê?

— Às vezes desejo a companhia dele, às vezes não. Às vezes ele parece apenas um menino e eu quero um homem. Por outro lado, às vezes ele é muito sofisticado e me impressiona. E quando danço com ele, apaixono-me loucamente pelo príncipe que ele representa. Fica esplêndido naquelas roupas...

— É — concordou Paul. — Já reparei nisso.

— Tem cabelos negros e brilhantes, enquanto você os tem num tom mesclado de castanho esfumaçado.

— Devo supor que negro brilhante seja mais romântico que mesclado de castanho esfumaçado? — provocou Paul.

— Depende.

— Catherine, você é totalmente feminina... Pare de dar respostas enigmáticas.

— Não sou enigmática; estou apenas dizendo que amor ou romance não são suficientes. Desejo talentos que me ajudem a viver sem ter que trancar meus filhos numa prisão para herdar uma fortuna que nada fiz para merecer. Quero saber como ganhar nossa vida e sustento, mesmo que não tenhamos um homem para amparar-nos.

— Catherine, Catherine — disse Paul, baixinho, tomando-me as mãos nas suas e apertando-as. — O quanto deve ter sido magoada por sua mãe! Fala de forma tão adulta, tão empedernida. Não permita que lembranças amargas lhe roubem uma de suas maiores qualidades: seu jeito suave e amoroso. Um homem gosta de cuidar da mulher que ama e dos filhos. Uma mulher agressiva e dominadora é uma das mais terríveis criaturas de Deus.

Libertei-me dele, corri para o balanço e sentei-me. Comecei a balançar-me, cada vez mais rápido e mais alto, retrocedendo ao sótão e aos balanços que eu lá usava nas noites longas e abafadas. Agora, estava aqui, livre no mundo normal, mas balançando-me como uma louca, para voltar ao sótão! O fato de rever Mamãe e seu marido deixava-me desesperada, fazendo-me desejar de imediato algo que precisava ser adiado para quando eu fosse mais velha.

Balancei-me tão alto, com tanta violência e abandono, que minha saia se ergueu com o vento, tapando-me o rosto e deixando-me cega. Tonta, caí bruscamente! Paul correu para mim, ajoelhando-se a fim de tomar-me nos braços.

— Machucou-se? — indagou, beijando-me antes que eu pudesse responder.

Não, eu não me machucara. Era bailarina e sabia cair. Paul começou a murmurar palavras de amor que eu tanto desejava ouvir; seus beijos se tornaram mais vagarosos e prolongados. A expressão de seus olhos causou-me uma embriaguez muito mais forte e gostosa do que qualquer champanhe importado poderia provocar.

Meus lábios se entreabriram sob seu demorado beijo. Prendi a respiração quando sua língua tocou a minha. Os beijos de Paul tornaram-se quentes e úmidos em minhas pálpebras, rosto, queixo, pescoço, ombros e colo, enquanto suas mãos procuravam e exploravam incessantemente minhas partes mais íntimas.

— Catherine — disse ele, ofegante, afastando-se um pouco e fitando-me com os olhos cheios de fogo. — Você é apenas uma criança. Não podemos permitir que isto aconteça. Eu jurei que nunca mais tornaria a acontecer; não com você!

Palavras inúteis, que eliminei envolvendo-lhe o pescoço com os braços. Mergulhei os dedos em seus cabelos escuros e murmurei com voz embargada:

— Eu queria lhe dar um lindo Cadillac novo como presente de aniversário, mas não tive dinheiro suficiente. Portanto, resolvi dar-lhe o segundo melhor presente: eu.

Paul gemeu baixinho.

— Não posso deixar que faça isso: você nada me deve!

Ri e beijei-o. Sem a menor vergonha, beijei-o demorada e profundamente na boca.

— Paul, quem me deve é você! Lançou-me muitos olhares compridos, cheios de desejo, para dizer-me agora que não me quer. Se disser tal coisa, estará mentindo. Pensa em mim como se eu fosse uma criança, mas faz muito tempo que cresci. Não precisa amar-me, eu não me importo, pois eu o amo e isto me basta. Sei que você me amará como desejo ser amada, porque, mesmo que se recuse a confessar, você me ama e me deseja.

O luar iluminou-lhe os olhos, fazendo-os brilhar. E enquanto ele me dizia que eu era uma tola por pensar que aquilo daria certo, sua expressão desmentia-lhe as palavras.

No meu modo de pensar, o próprio fato de controlar-se mostrava exatamente o quanto ele realmente me amava. Se me amasse menos, não teria hesitado em aproveitar-se ansiosamente, há muito tempo, daquilo que eu certamente não lhe negaria. Portanto, quando Paul fez menção de levantar-se para sair dali e acabar com a tentação, peguei-lhe a mão e coloquei-a onde ela me causaria maior prazer. Ele gemeu. E eu gemi ainda mais alto quando coloquei minha mão onde causaria maior prazer a ele. Eu sabia que estava agindo sem o mínimo sinal de recato ou vergonha. Afastei do pensamento o que pensaria Chris, o fato de que minha avó me julgaria uma prostituta desavergonhada. Oh! Seria uma felicidade, ou justamente o contrário, o livro que Mamãe guardava na mesinha de cabeceira haver-me ensinado o que fazer para dar prazer a um homem e satisfazer meus apetites?

Cheguei a pensar que Paul me possuiria ali mesmo no gramado, sob as estrelas, mas ele me ergueu no colo e carregou-me de volta à casa. Subiu cuidadosamente a escada. Nenhum de nós falava, embora meus lábios lhe cobrissem de beijos o pescoço e o rosto. À distância, no quarto ao lado da cozinha, a televisão de Henny ainda estava sintonizada num programa de entrevistas. Paul colocou-me sobre sua cama e, apenas com o olhar, começou a fazer-me amor. E eu mergulhei em seus olhos, afogando-me neles. As coisas perderam a nitidez à medida que minhas emoções cresciam cada vez mais, engolfando-nos como uma onda de maremoto. Juntamos nossas peles; a princípio, apenas nos tocávamos, abraçados, sentindo a exaltação de compartilhar o que o outro tinha a oferecer. A cada toque dos lábios e das mãos de Paul eu era percorrida por sensações eletrizantes, até que, afinal, fiquei desesperada para senti-lo penetrar-me, já sem ternura, mas dominada pelo feroz ardor da necessidade que exigia dele atingir os mesmos píncaros que eu buscava.

— Catherine! Agora! Depressa! Venha!

De que falava ele? Ali estava eu, sob seu corpo, fazendo o que me era possível. Vir para onde? Paul estava escorregadio de suor. Minhas pernas erguidas envolviam-lhe a cintura e pude sentir o terrível esforço que ele fazia para conter-se enquanto me pedia para vir, vir, vir! Então gemeu e não resistiu mais. Jorros de líquido morno aqueceram-me as entranhas por cinco ou seis vezes, provocando uma sensação agradável. Então tudo acabou e Paul saiu de dentro de mim. E eu não alcançara o cume de nenhuma montanha, ou ouvira sinos tocarem, ou sentira-me explodir, como ele sentira. Estava tudo estampado em seu rosto, agora relaxado e pacífico, vagamente marcado pela satisfação. Como era fácil para os homens, refleti enquanto desejava mais. Chegara à beira do foguetório e tudo acabara. Tudo exceto as mãos sonolentas de Paul que me percorriam o corpo, explorando todas as colinas e vales antes que ele adormecesse. Então, sua perna pesada se apoiou na minha. Fiquei acordada, fitando o teto com lágrimas nos olhos. Adeus, Christopher Doll, agora, você foi libertado!

A luz do sol entrando pela janela acordou-me cedo. Paul, apoiado num cotovelo, observava-me com ar sonhador.

— Você é tão bela, tão jovem, tão desejável. Não está arrependida, está? Espero que não deseje, agora, ter agido de forma diferente.

Aninhei-me de encontro à sua pele nua.

— Explique-me uma coisa, por favor. Por que me pediu tanto que viesse?

Ele explodiu numa gargalhada.

— Catherine, meu amor — conseguiu dizer, afinal. — Eu quase morri tentando conter-me até que você pudesse chegar ao orgasmo. E agora, você fica aí deitada, com esses inocentes olhos azuis, a perguntar o que eu queria dizer! Pensei que seus colegas bailarinos já lhe tivessem explicado tudo. Não me diga que existe um assunto a respeito do qual você ainda não leu nos livros!

— Bem, havia um livro, que encontrei na mesinha de cabeceira de Mamãe... mas limitei-me a ver as fotografias. Nunca cheguei a ler o texto, embora Chris o lesse, Por outro lado, Chris ia àquele quarto com muito mais freqüência que eu.

Paul pigarreou.

— Eu poderia explicar o que quis dizer com aquilo, mas demonstrar na prática seria bem melhor. Falando sério: você não faz a mínima idéia?

— Faço — respondi, na defensiva. — Claro que faço! Creio que devo ser estonteada por raios, ficar rígida e perder os sentidos; depois serei pulverizada em átomos que flutuam no espaço e tornam a reunir-se, provocando-me arrepios e trazendo-me vagarosamente de volta à realidade, com os olhos sonhadores vendo estrelas, como os seus.

— Por favor, Catherine, não me faça amá-la demais — disse Paul muito sério, como se tivesse medo de que isso acontecesse.

— Tentarei amá-lo da maneira que você desejar.

— Em primeiro lugar, vou fazer a barba — disse ele, afastando as cobertas e começando a levantar-se da cama.

Estendi os braços para puxá-lo de volta.

— Gosto de você como está agora, tão moreno e perigoso.

Entreguei-me entusiasticamente a todos os desejos de Paul. Inventamos modos delicados de ocultar nossos encontros à percepção de Henny. Nos dias de folga de Henny eu lavava as roupas de cama, que eram duplicatas dos lençóis sujos, que eu escondia até que pudessem ser lavados. Carrie era tão pouco observadora que bem poderia estar num mundo diferente do nosso. Todavia, quando Chris estava em casa tínhamos que ser mais discretos e nem mesmo nos olhávamos, para não nos trairmos.

Agora, eu me sentia esquisita em relação a Chris, como se o houvesse traído. Eu não tinha idéia de quanto tempo perduraria o encantamento existente entre Paul e eu. Ansiava por paixão perene, por êxtase imorredouro. Não obstante, o meu eu desconfiado não imaginava que algo tão belo e glorioso quanto o que havia entre Paul e eu pudesse durar indefinidamente. Paul logo se cansaria de mim, uma criança cuja capacidade mental jamais poderia igualar-se à sua, e voltaria aos velhos costumes, talvez com Thelma Murkel.

Talvez Thelma Murkel o tivesse acompanhado àquela convenção médica, embora eu tivesse sabedoria suficiente para jamais perguntar a Paul o que ele fazia quando não estava a meu lado. Desejava dar-lhe tudo o que Júlia lhe negara, dar de bom grado, sem recriminações quando chegasse o momento de nos separarmos. Mas, no momento de nossa flamejante obsessão mútua eu me sentia tão grande, tão generosa, que exultava em nosso desprendido abandono. E creio que a avó, com suas arengas a respeito de malícia e pecado, tornava tudo dez vezes mais excitante, justamente por ser tão pecaminoso.

Então, eu voltava a vacilar, desorientada, por não querer que Chris me considerasse pecaminosa. Oh! Importava-me tanto o que Chris pensava de mim! Por favor, meu Deus! Faça Chris compreender por que motivo estou agindo assim. E eu amo Paul, de verdade!

Após o Dia de Ação de Graças, Chris ainda teve mais alguns dias de férias. Estávamos à mesa, com Henny por perto, quando Paul nos perguntou o que desejávamos no Natal. Seria o nosso terceiro Natal na casa de Paul. No final de janeiro, eu terminaria o ginásio. Não me restava muito tempo, pois minha próxima etapa seria, assim esperava eu, Nova York. Tomei a palavra para dizer a Paul o que desejava como presente de Natal: queria ir a Foxworth Hall. Chris esbugalhou os olhos e Carrie começou a chorar.

— Não! — exclamou Chris, peremptório. — Não tornaremos a abrir feridas cicatrizadas!

— Minhas feridas não cicatrizaram! — repliquei com igual veemência. – Jamais cicatrizarão até que seja feita justiça!

 

Foxworth Hall, vista de fora

Mal as palavras me saíram dos lábios e Chris gritou:

— Não! Por que não trata de esquecer o passado?

— Porque não sou como você, Christopher! Você prefere fazer de conta que Cory não morreu por envenenamento com arsênico, mas de pneumonia, porque isso lhe é mais cômodo e conveniente! Não obstante, foi você quem me convenceu de que ela envenenou Cory! Portanto, por que não podemos ir até lá e verificar se algum hospital tem o registro da morte de Cory?

— Cory pode ter morrido de pneumonia. Apresentava todos os sintomas.

Com que falta de convicção ele disse aquilo, sabendo muito bem que procurava protegê-la.

— Agora, esperem um momento — interpôs Paul, que se mantivera calado e só falou quando percebeu o fogo que me brilhava nos olhos. — Se Cathy acha que deve agir assim, por que não a contentamos, Chris? Todavia, se sua mãe registrou Cory no hospital sob um nome falso, não será fácil verificar a verdade.

— Ela também mandou colocar um nome falso no túmulo de Cory — disse Chris, lançando-me um demorado olhar carregado de raiva.

Paul refletiu sobre o assunto, pensando em voz alta num meio de podermos encontrar um túmulo sem saber o nome que fora gravado na lápide. Eu julgava que tinha todas as respostas. Se ela registrara Cory num hospital sob um determinado nome, naturalmente usaria o mesmo nome para sepultá-lo.

— E você, Paul, sendo médico, tem acesso a todos os registros dos hospitais, não é mesmo?

— Você quer mesmo fazer isso? — indagou-me Paul. — Não há dúvida de que trará de volta muitas lembranças dolorosas e, como Chris acaba de dizer, abrirá feridas cicatrizadas.

— Minhas feridas não cicatrizaram e jamais cicatrizarão! Quero levar flores ao túmulo de Cory. Creio que Carrie se sentirá reconfortada por saber onde ele está enterrado e depois poderemos visitá-lo periodicamente. Chris, já que se mostra tão contrário à idéia, não é obrigado a ir!

Apesar da oposição de Chris, Paul tentou dar-me o que eu desejava. Chris viajou conosco até Charlottesville, fazendo companhia a Carrie no banco traseiro. Paul entrou em vários hospitais e usou seu encanto pessoal para convencer as enfermeiras a lhe mostrarem os registros que ele queria examinar. Investigou durante muito tempo, enquanto eu o acompanhava e Chris esperava no carro com Carrie. Nenhum menino de oito anos morrera de pneumonia no final de outubro dois anos atrás! Não apenas isso, mas os cemitérios não tinham qualquer registro do sepultamento de uma criança daquela idade na ocasião! Ainda teimosamente decidida, percorri a pé todos os cemitérios, pensando que Mamãe poderia ter mentido e, afinal, mandado gravar o nome Dollanganger na lápide. Carrie chorava, pois Cory devia estar no céu e não sob a terra ligeiramente congelada por uma nevada recente.

Um trabalho infrutífero, um dispêndio inútil de tempo! No que dizia respeito ao resto do mundo, nenhuma criança do sexo masculino, com oito anos de idade, morrera naquela região nos meses de outubro e novembro de 1960! Chris insistiu para que voltássemos à casa de Paul, tentando convencer-me de que eu não queria realmente rever Foxworth Hall. Girei nos calcanhares, furiosa, para encarar Chris.

— Quero ir lá! E temos tempo para isso! Por que chegarmos até aqui e regressarmos sem ver a casa? Pelo menos uma vez à luz do dia, por fora; por que não?

Foi Paul quem argumentou com Chris, dizendo-lhe que eu precisava ver a casa.

— E para falar com franqueza, Chris, eu também gostaria de vê-la.

Pensativo e amuado junto a Carrie no banco traseiro, Chris cedeu. Carrie chorou quando Paul arrancou com o carro em direção às íngremes estradas nas montanhas que Mamãe e seu marido deviam ter percorrido milhares de vezes. Paul parou num posto de gasolina para pedir informações quanto ao caminho até Foxworth Hall. Nós poderíamos orientá-lo com a maior facilidade, se soubéssemos por onde passava a ferrovia e conseguíssemos encontrar a parada do correio.

— Linda região — comentou Paul enquanto dirigia o carro.

Eventualmente chegamos à grandiosa mansão isolada numa encosta.

— É aquela! — exclamei, terrivelmente excitada.

Era enorme como um hotel, com alas duplas que pareciam brotar a cada lado do corpo principal construído de tijolos rosados, com postigos pretos em todas as janelas. O telhado de ardósia escura era tão íngreme que chegava a assustar; como ousáramos andar lá em cima? Contei as oito chaminés, as quatro séries de janelas de água-furtada no sótão.

— Veja lá, Paul — disse eu, apontando as duas janelas no último andar da ala norte, onde havíamos sido prisioneiros por tanto tempo, esperando interminavelmente pela morte de nosso avô.

Enquanto Paul olhava para as duas janelas, voltei a atenção para as janelas de água-furtada do sótão e vi que um postigo avariado fora consertado. Não encontrei marcas de fuligem ou sinais de fogo. A mansão não se incendiara! Deus não enviara uma brisa errante que soprasse a chama da vela até atear fogo a uma das flores de papel. Deus não ia punir nossa mãe ou a avó!

De repente, Carrie soltou um berro.

— Quero Mamãe! — gritou ela. — Cathy, Chris, era ali que eu morava com Cory! Deixem-me entrar! Quero Mamãe! Por favor, deixem-me ver minha mãe de verdade!

Foi assustador o modo como ela chorou e implorou. Como podia lembrar-se da casa? Estava escuro na noite de nossa chegada, com os gêmeos tão sonolentos que não poderiam ter visto nada. Na manhã de nossa fuga, tínhamos saído sorrateiramente antes do amanhecer, pela porta dos fundos. Algo dizia a Carrie que aquela mansão nos servira de prisão anos atrás! Então, percebi. Eram as outras casas, situadas mais abaixo na mesma rua. Estávamos no final de um cul-de-sac, numa posição bem mais elevada. Espiávamos freqüentemente pelas janelas de nosso quarto trancado e víamos as belas casas abaixo de nós. Era-nos proibido olhar pelas janelas, não obstante, ousávamos fazê-lo ocasionalmente.

Em que resultara nossa longa jornada? Nada. Absolutamente nada, exceto termos mais provas de que nossa mãe era uma mentirosa além de toda e qualquer imaginação. Ruminei o assunto, dia após dia, até mesmo quando me sentava num dos bancos embutidos no box do chuveiro e Paul me ensaboava os cabelos, lavando-os com esmero. Se eu os penteasse para cima ou os enrolasse na cabeça, eram tão compridos que jamais conseguiria desembaraçá-los. Paul lavava-os da maneira que eu lhe ensinara, passando a espuma da raiz até as pontas; quando terminava a lavagem, secava-os e escovava-os, fazendo que caíssem como um xale de seda para cobrir minha nudez, como Eva deveria ter feito há milênios.

— Paul — indaguei com os olhos baixos — o que estamos fazendo não é pecado, é? Lembro-me sempre da avó e de suas arengas sobre o mal e o pecado. Diga-me que o amor faz que tudo seja certo.

— Abra os olhos, Catherine — disse ele baixinho, usando um pano para limpar as bolhas de sabonete em minhas pálpebras. — Veja o que tem diante de si: um homem nu, como Deus o fez.

Quando olhei, Paul virou meu rosto para cima e, em seguida ergueu-me para poder abraçar-me. Estreitando-me contra si, começou a falar e cada uma de suas palavras dizia-me que nosso amor era lindo e certo. Não consegui falar. Chorei silenciosamente por dentro, pois seria tão fácil terminar a vida como a ferrenha pudica que minha avó desejava que eu fosse.

Como uma criança pequena, permiti que Paul me enxugasse o corpo e escovasse o cabelo, fazendo o que queria com seus lábios e carícias, até que as brasas sempre acesas entre nós produzissem fogo. Então ele me pegou no colo e levou para a cama. Após saciarmos nossa paixão, fiquei deitada nos braços dele e pensei em tudo que fora capaz de fazer. Coisas que me chocariam quando criança. Coisas que antes eu consideraria grosseiras, obscenas, pois então só levava em conta os atos e não os sentimentos de dar e receber. Como era estranho que as pessoas nascessem tão sensuais e vivessem reprimidas por tantos anos. Lembrei-me da primeira vez que a língua de Paul me tocara lá e do choque eletrizante que senti.

Oh! Eu podia beijar Paul todinho e não sentir vergonha, pois amá-lo era melhor que sentir o aroma de rosas num dia ensolarado de verão, melhor que dançar ao som da música mais linda, com o mais sensacional bailarino. Assim era para mim amar Paul, quando eu tinha dezessete anos e ele quarenta e dois. Paul me restaurara, fazendo-me sentir completa. Eu enterrava mais fundo o remorso que sentia por Cory. Havia esperança para Chris, pois estava vivo. Havia esperança para Carrie, que ainda poderia crescer e encontrar o amor. E, talvez, se tudo corresse bem, havia esperança para mim, também.

 

A caminho do topo

Julian não vinha de Nova York com a mesma freqüência de antes e seus pais se queixavam disso. Quando ele aparecia, dançava melhor que nunca, mas nem uma só vez eu o vi olhar na minha direção. Desconfiava porém, que ele me olhava muito quando sabia que eu não poderia vê-lo. Eu dançava melhor, com mais técnica, disciplina e controle; e estudava. Oh! Quanto eu estudava! Desde o princípio, eu fora colocada no grupo profissional da Companhia de Baile Rosencoff, mas apenas como membro do corps de ballet. Naquele Natal, deveríamos alternar a apresentação do Quebra-nozes e de Cinderela.

Numa tarde de sexta-feira, muito depois que todos os outros se retiraram, fiquei sozinha no salão de dança e me perdi no mundo encantado da Fada Madrinha, tentando dar ao papel uma interpretação algo diferente e nova. De repente, Julian estava dançando comigo. Era como minha sombra, fazendo tudo que eu fazia, até mesmo as piruetas, zombando de meu desempenho. Então, franziu a testa e pegou uma toalha para enxugar o rosto e os cabelos. Tirei as sapatilhas, mexi os artelhos e me encaminhei ao camarim. Ia sair para jantar com Paul naquela noite.

— Cathy, espere! — chamou Julian. — Sei que não gosta de mim...

— É verdade.

Julian sorriu maliciosamente. Roçou os lábios no meu rosto quando tentei me afastar dele; então prendeu-me com os braços, espalmando as mãos na parede a fim de evitar que eu fugisse.

— Sabe de uma coisa? Acho que você deveria dançar o papel de Clara ou de Cinderela — declarou, fazendo-me cócegas no queixo e depois beijando-me a orelha. — Se for boazinha para mim, poderei providenciar para que lhe dêem os dois papéis.

Esquivei-me e corri.

— Deixe disso, Julian! — esbravejei. — Exige pagamento em troca de seus favores... e não me interesso por você!

Dez minutos mais tarde, após tomar banho e vestir-me, eu estava pronta para sair do prédio quando Julian surgiu em trajes de passeio.

— Falando sério, Cathy, acho que você deveria ser escolhida para dançar Clara ou Cinderela. Julgo que já está preparada para ir a Nova York. Marisha também acha — acrescentou com um sorriso irônico, como se a opinião de sua mãe não valesse tanto quanto a sua. — Sem imposições de minha parte. A menos, é claro, que você um dia venha a desejá-las.

Agora fiquei sem saber o que dizer e, portanto, permaneci calada. Fui escolhida para dançar ambos os papéis naquelas apresentações de final de ano. Imaginei que as outras moças ficassem invejosas e ressentidas, mas aplaudiram quando a escolha foi anunciada. Trabalhávamos bem, todas juntas, e tivemos um período alegre, quase frenético. Então, chegou minha estréia como Cinderela! Julian nem mesmo bateu antes de entrar no camarim das moças para apreciar minha fantasia de trapos rasgados.

— Pare de ficar tão nervosa. O público é composto de pessoas como nós. Você não acha que eu me daria ao trabalho de vir até aqui para dançar com uma garota que não fosse sensacional, não é mesmo?

Nos bastidores, Julian pousou o braço em meus ombros, transmitindo-me confiança, enquanto aguardávamos minha deixa para entrar no palco. Ele só entraria muito depois. Não consegui avistar Paul, Chris, Carrie ou Henny na platéia escura. Tremi ainda mais quando as gambiarras diminuíram de intensidade e a orquestra tocou a abertura. Então a cortina se abriu. Minha crescente ansiedade desapareceu de um momento para outro, levando consigo toda a minha insegurança, quando uma espantosa lembrança sinestésica assumiu o comando e permiti que a música me controlasse e guiasse.

Eu não era Cathy ou Catherine, não era ninguém senão Cinderela! Varri as cinzas da lareira e observei invejosamente minhas duas detestáveis meias-irmãs se prepararem para o baile, convencida de que o amor e o romance jamais surgiriam em minha vida. Se cometi erros, se minha técnica não foi perfeita, eu não sei dizer. Estava apaixonada pela dança, por apresentar-me perante um grande público, por ser jovem e bela e, acima de tudo, apaixonada pela vida e por tudo que esta podia oferecer fora de Foxworth Hall.

Rosas vermelhas, amarelas e brancas vieram-me encher os braços. Fiquei eletrizada quando o público se ergueu para aplaudir-nos de pé, numa grande ovação. Três vezes eu entreguei a Julian uma rosa de cor diferente; a cada vez, nossos olhares se encontraram e cruzaram-se prolongadamente. “Veja”, diziam-me mudamente os olhos dele, “juntos criamos magia! Somos um par perfeito!” Julian tornou a encurralar-me na recepção após o espetáculo.

— Agora, já provou o sabor do palco — disse em tom suave e persuasivo, implorando-me com os olhos negros. — Conseguirá desistir dos aplausos? Conseguirá permanecer aqui, numa cidadezinha caipira, quando Nova York está à sua espera? Cathy, se formarmos um par seremos sensacionais! Fomos feitos sob medida um para o outro. Danço melhor com você que com qualquer outra bailarina. Oh, Cathy! Juntos poderíamos chegar ao topo muito mais depressa. Juro cuidar bem de você. Cuidarei de você e jamais permitirei que se sinta solitária.

— Não sei — repliquei miseravelmente, embora estivesse acesa por dentro. — Primeiro, tenho que terminar o ginásio. Você acha realmente que sou suficientemente boa? Em Nova York, o público exige o máximo.

— Você é o máximo! Confie em mim, acredite em mim. A companhia de balé de Madame Zolta não é a maior ou melhor, mas tem o necessário para ombrear-se com as maiores e mais antigas, desde que consiga um par de bailarinos fantásticos como nós!

Indaguei-lhe como era a tal Madame Zolta. De algum modo, a pergunta levou Julian a acreditar que eu já aceitara a sua proposta e, depois de rir, ele conseguiu beijar-me os lábios.

— Você vai adorar Madame Zolta! É russa; a velhinha mais suave, bondosa e delicada que você já conheceu. Será como sua mãe. (Deus me livre!) Ela conhece tudo a respeito de dança. É nossa médica e, às vezes, nossa psicóloga; na verdade, ela é tudo de que precisamos. Comparada com isto aqui, a vida em Nova York é como a de Marte: um outro mundo, muito melhor. Você logo se apaixonará pela cidade. Vou levá-la a restaurantes famosos, onde você comerá pratos que nunca provou antes. Vou apresentá-la a astros e estrelas do cinema, celebridades da TV, atores e atrizes, escritores.

Tentei resistir à tentação, pregando os olhos em Chris, Carrie e Paul, mas Julian manobrou de modo a bloquear-me o campo de visão. A única pessoa que eu conseguia ver era ele.

— É o tipo de vida para o qual você nasceu, Cathy — prosseguiu parecendo ansioso e sincero desta vez. — Por que estudou tanto e se submeteu a tantos sacrifícios senão para alcançar o sucesso? Poderá alcançar a fama que deseja se permanecer aqui?

Não; eu não poderia. Contudo, Paul estava aqui. Chris e Carrie estavam aqui. Como poderia eu abandoná-los?

— Cathy, venha comigo para o mundo a que você pertence, às luzes da ribalta, no palco, recebendo rosas. Venha comigo, Cathy, e realize também o meu sonho.

Oh! Julian estava vencendo naquela noite. Embriagada com o sucesso da estréia, mesmo querendo dizer não, meneei afirmativamente a cabeça e respondi:

— Sim... irei, mas só se você vier buscar-me. Nunca andei de avião e, além disso, não saberia para onde ir quando pousasse em Nova York.

Julian tomou-me nos braços, abraçando-me com ternura e beijando-me os cabelos. Por cima de seu ombro, avistei Chris e Paul olhando em nossa direção, ambos parecendo espantados e bastante magoados.

Terminei o ginásio em janeiro de 1963. Não fui uma aluna particularmente brilhante, como Chris, mas consegui terminar o curso. Chris era tão inteligente que provavelmente terminaria a fase preparatória em três anos, em vez de quatro. Já conseguira várias bolsas de estudo para aliviar Paul de parte dos encargos financeiros de sua educação, muito embora Paul jamais dissesse uma só palavra quanto a reembolsarmos suas despesas de qualquer tipo. Estava entendido, porém, que Chris se associaria a Paul depois de formar-se.

Maravilhava-me o fato de Paul continuar a gastar dinheiro conosco sem fazer o menor comentário. Quando abordei o assunto, ele explicou:

— Gosto de saber que estou contribuindo para dar ao mundo um grande médico, que Chris certamente será, e a super bailarina em que você se transformará um dia. Quanto a Carrie, espero que resolva ficar em casa comigo e casar-se com um rapaz da região, a fim de que eu possa vê-la com freqüência.

Parecia muito triste ao dizer isso, terrivelmente triste.

— Quando eu me for, você voltará para Thelma Murkel, não é? — perguntei com alguma amargura, pois queria que ele se mantivesse fiel a mim, não importando quantos quilômetros nos separassem fisicamente.

— Talvez — disse ele.

— Você nunca amará outra pessoa quanto me ama. Diga que não amará.

Paul sorriu.

— Claro! Como poderia eu amar alguém tanto quanto a amo? Nenhuma outra poderia entrar dançando no meu coração, como você entrou, não é?

— Não zombe de mim, Paul. Basta você dizer uma só palavra e eu não irei embora. Ficarei com você.

— Como posso dizer-lhe que fique quando você tem um destino a cumprir? Nasceu para dançar, não para ser esposa de um insípido médico do interior.

Casamento! Ele dissera “esposa”! Nunca antes mencionara casamento.

Foi mais que horrível comunicar a Carrie minha partida. Seus berros foram ensurdecedores e de cortar o coração.

— Você não pode ir! — gritou, com as lágrimas rolando pelo rosto. – Prometeu que todos nós ficaríamos sempre juntos! Agora, você e Chris vão embora e me abandonam! Leve-me também! Leve-me!

Esmurrou-me com os punhos minúsculos, deu-me caneladas, decidida a causar-me dor pelo sofrimento que Chris e eu lhe infligíamos, como se eu já não estivesse sofrendo muito por ter que deixá-la.

— Entenda, por favor, Carrie: eu voltarei. E Chris também voltará. Você não será esquecida.

— Eu a odeio! — berrou ela. — Detesto você e Chris, também! Espero que você morra em Nova York! Espero que ambos caiam mortos!

Foi Paul quem veio salvar-me.

— Você ainda terá a mim todos os dias. E Henny — disse ele, erguendo o corpinho leve de Carrie no colo. — Não iremos a parte nenhuma. E você será a única filha que nos restará quando Cathy se for. Vamos, enxugue as lágrimas, sorria e sinta-se feliz por sua irmã. Lembre-se de que isso foi o que ela tanto desejou durante todos aqueles anos em que vocês viveram trancados num quarto.

Senti dor no coração ao tentar saber se realmente desejava tanto fazer carreira como bailarina ou se fora apenas imaginação de minha parte. Chris lançou-me um olhar prolongado e tristonho. Depois abaixou-se para pegar minhas novas malas azuis. Caminhou depressa para a porta da frente, procurando evitar que eu percebesse as lágrimas em seus olhos. Quando saímos todos da casa, Chris estava postado junto ao carro branco de Paul, os ombros empertigados, o rosto rígido, decidido a não revelar qualquer emoção. Henny fez questão de embarcar no carro conosco, pois não queria ser deixada em casa para chorar sozinha. Seus eloqüentes olhos castanhos me falavam, desejando-me boa sorte, enquanto suas mãos se ocupavam com enxugar as lágrimas do rosto de Carrie.

No aeroporto, Julian andava de um lado para outro, consultando freqüentemente o relógio. Temia que eu desistisse e não aparecesse para o embarque. Parecia muito bonito em seu terno novo e seus olhos brilharam ao avistar-me.

— Graças a Deus! Já estava pensando que vim aqui à-toa. E não faria isso duas vezes.

Na noite anterior, eu me despedira de Paul em particular. Suas palavras ainda me ecoavam aos ouvidos, perseguindo-me mesmo quando subi a escada do avião.

— Sabíamos ambos que não duraria muito, Catherine. Preveni-a desde o início: a primavera não pode casar com o outono.

Chris e Paul acompanharam-nos até a rampa, ajudando a carregar as muitas peças de bagagem de mão que eu não quis confiar ao bagageiro do avião. Mais uma vez, tive que abraçar Paul com força.

— Obrigado, Catherine — sussurrou ele, de modo que Chris e Julian não pudessem escutar. — Obrigado por tudo. Não olhe para trás com arrependimento. Esqueça-me. Esqueça todo o passado. Concentre-se na dança e espere até apaixonar-se por alguém e deixe que seja uma pessoa de sua idade.

Engasgada, repliquei:

— E você?

Ele forçou um sorriso e, em seguida, uma risadinha.

— Não se preocupe comigo. Tenho recordações de uma linda bailarina e elas me bastam.

Rompi em prantos! Lembranças! O que eram elas? Apenas algo com que nos torturarmos, nada mais! Virei-me cegamente e vi-me envolvida pelos braços de Chris. O meu Christopher Doll, que agora tinha um metro e oitenta de estatura, o meu cavaleiro tão galante, cavalheiresco e sensível. Afinal, consegui apartar-me e ele me tomou ambas as mãos; fitamo-nos nos olhos. Nós também compartilhamos de muita coisa; mais ainda que Paul e eu. Adeus, minha enciclopédia ambulante, alegre e também severo, meu companheiro de prisão e de esperanças... Não precisa chorar por mim. Chore por você mesmo... ou simplesmente não chore. Terminou. Aceite, Chris, como eu aceitei, como é preciso aceitar. Você é apenas meu irmão. Sou apenas sua irmã e o mundo está cheio de mulheres belas que o amariam mais do que eu posso, ou poderia amá-lo.

Eu sabia que ele escutava cada palavra que eu não dizia em voz alta; continuou a fitar-me com o coração nos olhos, fazendo-me doer da cabeça aos pés.

— Cathy — disse Chris em voz rouca, bastante alto para que Julian escutasse. — Não é que eu tema que você não consiga vencer; tenho certeza de que conseguirá se não for tão malditamente impulsiva! Por favor, não cometa imprudências de que venha a arrepender-se mais tarde. Prometa pensar antes em todas as conseqüências, sem pular de olhos fechados numa situação qualquer. Vá com calma em questões de amor e sexo. Espere até ter idade suficiente para saber o que deseja de um homem antes de escolher um.

Tenho certeza de que meu sorriso foi amarelo e forçado, pois eu já escolhera Paul. Lancei um rápido olhar, de Paul, que parecia muito sério, a Julian, que tinha a testa franzida e olhava para Chris com ar zangado. Depois olhei mais uma vez para Paul.

— Você também tenha cautela em questões de sexo — repliquei para Chris em tom brincalhão, certificando-me de que todos perceberam tratar-se de um comentário despreocupado.

Abracei-o mais uma vez. Doía-me ter que deixá-lo.

— Escreva-me sempre. E venha a Nova York com Paul, Carrie e Henny sempre que puder. Ou venha sozinho. Mas venha... promete?

Chris prometeu solenemente. Nossos lábios se tocaram rapidamente e, em seguida, embarquei para tomar meu lugar junto à janela. Desde que era a minha primeira viagem de avião, Julian cedera-me cortesmente o privilégio de sentar-me à janela. Acenei como louca para minha família, que eu nem mesmo enxergava pela janela do avião.

Julian, tão controlado e elegante no palco, ficou sem saber o que fazer quando precisou lidar com uma garota que lhe chorava no ombro, trêmula, já sentindo saudades de casa, desejando não partir antes mesmo que o avião subisse quinhentos metros do solo.

— Você me tem — disse em tom suave. — Não prometi que cuidaria de você? E o farei, juro por Deus. Farei todo o possível para torná-la feliz.

Sorriu para mim, beijando-me de leve.

— E, meu amor, creio que exagerei um pouco ao lhe falar sobre os encantos de Madame Zolta, como você logo terá ocasião de verificar.

Esbugalhei os olhos.

— Que quer dizer com isso?

Julian pigarreou e, sem o menor sinal de embaraço, relatou-me seu primeiro encontro com a outrora famosa bailarina russa.

— Não desejo estragar a surpresa que lhe está reservada para quando conhecer a grande beleza russa; portanto deixarei o assunto de lado, a fim de que você verifique por si mesma. Todavia, previno-a de que Madame Zolta é uma apalpadora. Uma bolinadora. Gosta de tocar as pessoas, apalpando os músculos para ver como são duros e firmes. Acredita que colocou a mão diretamente sobre a abertura de minhas calças, a fim de descobrir o tamanho do que havia em baixo da roupa?

— Não! Não acredito!

Ele riu alegremente e passou o braço pelos meus ombros.

— Oh! Catherine! Que vida levaremos, você e eu! Que paraíso teremos nas mãos quando você descobrir que tem direitos exclusivos de propriedade neste mundo! — exclamou, puxando-me para mais perto de si e sussurrando-me ao ouvido: — E eu ainda não lhe disse uma palavra a respeito de meus talentos de amante...

Eu também ri e o empurrei para longe de mim.

— Certamente é a pessoa mais arrogante e convencida que já conheci. E desconfio de que também seja bastante impiedoso quando se trata de conseguir o que quer.

— Acertou na mosca! — disse ele, rindo. — ou isso tudo e mais ainda, como você logo descobrirá. Afinal, não me mostrei implacavelmente decidido em trazer você para onde a quero?

 

Nova York, Nova York

Nevava muito quando nosso avião pousou em Nova York. O frio em minhas narinas atordoou-me. Eu já me esquecera de invernos rigorosos como aquele. O vento uivava ao longo das estreitas ravinas formadas pelos edifícios, parecendo querer arrancar-me a pele do rosto. O gelo dava a impressão de penetrar-me os pulmões, murchando-os com um aperto doloroso. Engasguei-me, ri, olhei para Julian que pagava o motorista do táxi e tirei do bolso do casaco o cachecol de tricô vermelho que Henny fizera para mim. Julian pegou-o e ajudou-me a enrolá-lo na cabeça e pescoço, de modo a abrigar parte do rosto. Então, surpreendi-o ao tirar do outro bolso um cachecol vermelho que eu tricotara para ele.

— Ora, muito obrigado. Nunca imaginei que se incomodasse.

Pareceu-me muito satisfeito ao proteger as orelhas e o pescoço. Naquele dia, o frio tornava-lhe o rosto tão corado quanto os lábios; com o cabelo negro-azulado que se encrespava logo acima do colarinho e os brilhantes olhos negros, sua beleza física era o bastante para tirar o fôlego de qualquer mulher.

— Muito bem — disse ele. — Componha-se e prepare-se para conhecer a personificação do balé: minha doce, delicada, deliciosa professora de dança, que você positivamente adorará.

O simples fato de estar ali deixava-me nervosa, de modo que me mantive o mais perto possível de Julian, olhando espantada para todas as pessoas que se atreviam a enfrentar um inverno tão feroz. A bagagem que trouxéramos foi deixada numa sala de espera do enorme prédio e a preocupação de não me afastar de Julian não me deu tempo para reparar em coisa alguma até estarmos no gabinete de nossa professora de balé, Madame Zolta Korovenskov. Sua postura e arrogância lembraram-me imediatamente Madame Marisha. Entretanto, esta mulher era muito mais velha, se todas aquelas rugas pudessem ser contadas como anéis de um tronco de árvore para computar-lhe a idade.

Com uma rigidez majestosa, levantou-se de trás de uma mesa de trabalho impressionante pela largura. Friamente, com ar inteiramente profissional, veio até nós e estudou-nos com olhos negros e pequenos como os de um rato. O pouco cabelo que tinha estava puxado para trás rente ao couro cabeludo; era branco e deixava totalmente à mostra o rosto seco e enrugado. Embora sua estatura não ultrapassasse um metro e meio, ela irradiava um metro e oitenta de autoridade. Os óculos com lentes em meia-lua equilibravam-se precariamente na extremidade de um nariz fino e espantosamente comprido. Espiou-nos por cima das meias lentes, com as pálpebras apertadas, de modo que os olhos minúsculos quase desapareciam entre os pés-de-galinha. Julian teve a pouca sorte de merecer sua atenção inicial. Os lábios da velha, murchos como uma passa de uva, franziram-se como uma sacola com o cordão puxado. Observei e aguardei que um sorriso surgisse para quebrar aquela pele semelhante a um pergaminho antigo. Imaginei que sua voz seria áspera e rouca como a de uma feiticeira.

— Então! — disse ela a Julian com ar de quem cuspia. — Você some quando bem entende, volta quando quer e espera que eu lhe diga que tenho prazer em revê-lo! Bah! Faça isso mais uma vez e pode sumir daqui! Quem é essa pequena?

Julian exibiu um sorriso encantador à velha megera e abraçou-a depressa.

— Madame Zolta Korovenskov, permita-me apresentar-lhe a Srta. Catherine Doll, a maravilhosa bailarina de quem tanto lhe tenho falado há muitos meses; e ela é o motivo pelo qual me ausentei sem a sua permissão.

Os olhos de verruma de velha me observaram com grande interesse.

— Também veio do nada? — indagou em tom áspero. — Aparenta vir de outra região, como este demônio de cabelos pretos. Ele é muito bom bailarino, mas não tanto quanto se julga. Posso acreditar no que diz a seu respeito?

— Creio, Madame, que precisará ver-me dançar e julgar por si mesma.

— Sabe dançar?

— Como disse antes, Madame, espere o julgue por si mesma.

— Está vendo, Madame? — indagou Julian, entusiasmado. — Cathy tem espírito fogoso! Devia vê-la jogando as pernas ao fazer fouettés. É tão rápida que a gente nem vê direito!

— Ha! — fungou a velha.

Em seguida, rodeou-me e observou meu rosto tão detidamente que me senti corar. Apalpou-me os braços, o peito, até mesmo os seios. Depois, colocou as mãos ossudas no meu pescoço e sentiu os tendões. Aquelas mãos audaciosas exploraram-me o corpo enquanto eu tinha vontade de gritar que não era uma escrava exposta à venda no mercado da cidade. Fiquei aliviada por ela não me tocar a virilha, como fizera a Julian. Permaneci imóvel e suportei a inspeção, sentindo-me o tempo todo quente e ruborizada. Ela ergueu os olhos para examinar-me o rosto e exibiu um sorriso sarcástico.

Quando terminou de examinar-me e avaliar-me fisicamente, fitou-me o fundo dos olhos, a fim de absorver minha essência. Senti que ela tentava beber-me a juventude com os olhos, drenando-a de mim. Então, tocou-me os cabelos.

— Quando pretende casar-se? — indagou bruscamente.

— Talvez por volta dos trinta anos, talvez nunca — respondi, nervosa. — Mas certamente esperarei até ficar rica e famosa, depois de tornar-me a maior prima ballerina do mundo.

— Ah! Tem muitas ilusões a seu próprio respeito. Geralmente, caras bonitas não pertencem a grandes bailarinas. A beleza julga não precisar de talento e alimenta-se de si própria, de modo que morre cedo. Olhe para mim. Houve uma época em que fui jovem e muito bela. O que vê agora?

Era hedionda! E jamais poderia ter sido bela, ou restaria algum vestígio. Como se pressentisse minha dúvida a respeito de sua afirmação, ela apontou com arrogância para todas as fotografias que havia nas paredes, em cima das mesas e nas prateleiras das estantes. Todas mostravam a mesma jovem bailarina.

— Eu — anunciou com evidente orgulho.

Não pude acreditar. Eram fotos antigas, amareladas, em tons pardos, as roupas fora de moda e, não obstante, a bailarina era bonita. A velha me lançou um largo sorriso divertido, deu-me uma palmadinha no ombro e disse:

— Muito bem. A idade chega para todos e iguala as pessoas.

De repente, mudou de assunto:

— Com quem estudou antes de Marisha Rosencoff?

— Com a Srta. Denise Danielle.

Hesitei, temendo dizer-lhe a verdade sobre todos os anos em que eu dançara sozinha, sendo minha própria professora.

— Ah! — suspirou ela, parecendo muito triste. — Vi Denise Danielle dançar muitas vezes: uma bailarina brilhante, mas cometeu o velho erro e se apaixonou. Final de uma carreira promissora. Agora, ela só ensina.

Sua voz aumentava e diminuía de volume, vibrando, ganhando força e depois perdendo-a. Tinha um sotaque estranho, dando às palavras um som tolo, estrangeiro.

— O convencido Julian afirma que você é uma grande bailarina, mas preciso vê-la dançar antes de acreditar nele. Só então decidirei se a sua beleza é a própria desculpa para existir.

Suspirou outra vez e perguntou:

— Você bebe?

— Não.

— Por que tem a pele tão pálida? Nunca toma sol?

— Sol em demasia me queima.

— Ah!... você e seu amante têm medo do sol.

— Julian não é meu amante! — declarei com os dentes trincados, lançando a Julian um olhar furioso, pois ele deveria ter dito à velha que éramos amantes.

Nem o menor elemento de nossas expressões faciais escapou à aguda percepção daqueles olhinhos negros.

— Julian, você me disse ou não que estava apaixonado por esta garota?

Julian corou, baixou os olhos e teve a decência de parecer encabulado, para variar.

— Madame, o amor é todo de minha parte, envergonho-me de confessar. Cathy nada sente por mim... mas sentirá, mais cedo ou mais tarde.

— Ótimo! — disse a velha bruxa, meneando a cabeça como um passarinho. — Você tem uma enorme paixão por ela e ela nada sente por você — isso fará com que dancem maravilhosamente, de modo sensacional. Nossa receita de bilheteria vai estourar. Já posso até ver!

Naturalmente, foi esse o motivo pelo qual ela me aceitou, sabendo que Julian tinha um desejo insatisfeito por mim e eu era dominada por um ardente anseio de encontrar alguém fora do palco. No palco, ele era tudo o que existia de belo, romântico e sensual: o amante dos meus sonhos. Se pudéssemos passar todos os nossos dias e noites dançando, teríamos ateado fogo ao mundo. Na realidade, porém, quando Julian era apenas ele mesmo, com sua língua solta e por vezes pornográfica, eu fugia dele. Deitava-me todas as noites pensando em Paul a andar sozinho pelos jardins e recusava-me a sonhar com Chris.

Em breve me abriguei num pequeno apartamento a doze quarteirões da escola de balé. Duas outras bailarinas compartilhavam comigo dos três pequenos cômodos e minúsculo banheiro. Dois andares acima, Julian dividia com dois bailarinos um apartamento do mesmo tamanho que o nosso. Os companheiros de Julian eram Alexis Tarrel e Michael Michelle, ambos com vinte e poucos anos e tão decididos quanto Julian a se tornarem, cada um deles, o melhor bailarino de sua geração. Espantei-me ao descobrir que Madame Zolta considerava Alexis o melhor dos três, Michael o segundo e Julian o terceiro. E logo fiquei sabendo do motivo pelo qual ela fazia restrições a Julian: ele não lhe respeitava a autoridade. Queria fazer tudo a seu próprio modo e por isso ela o punia.

Minhas colegas de apartamento eram tão diferentes quanto o dia da noite. Yolanda Lange era meio inglesa, meio árabe; a estranha combinação de raças fazia dela uma das belezas mais exóticas que eu já vira, com cabelos escuros e olhos de gazela. Era alta para uma bailarina: tinha um metro e setenta, a mesma altura de minha mãe. Quando lhe vi os seios, percebi que eram pequenas protuberâncias rijas, com grandes bicos, mas ela não se envergonhava do tamanho deles. Deliciava-se com andar despida pelo apartamento, exibindo a nudez, e logo descobri que seus seios espelhavam-lhe a personalidade: pequena, dura, mesquinha. Yolanda queria o que queria quando queria e era capaz de fazer tudo para consegui-lo. Fez-me mil e uma perguntas em menos de uma hora e nesse mesmo espaço de tempo contou-me a história de sua vida. Seu pai era um diplomata inglês que se casara com uma bailarina especializada na dança do ventre. Vivera em toda parte e fizera de tudo. Antipatizei imediatamente com Yolanda Lange.

April Summers era de Kansas City, no Missouri. Tinha macios cabelos castanhos e olhos azuis esverdeados; tínhamos ambas a mesma altura, um metro e sessenta e um centímetros e meio, era tímida e raramente erguia a voz acima de um sussurro. Quando a loquaz e barulhenta Yolanda estava por perto, April parecia não ter voz alguma. Yolanda gostava de barulho: o toca-discos ou a televisão tinham que permanecer ligados o tempo todo. April falava da família com amor, respeito e orgulho, ao passo que Yolanda professava ódio aos pais, que a colocavam em internatos e deixavam-na sozinha nos feriados. April e eu nos tornamos amigas íntimas antes do final de nosso primeiro dia juntas. Tinha dezoito anos e era bastante bonita para contentar qualquer homem, mas, por algum estranho motivo, os rapazes da academia de balé não lhe davam uma migalha de atenção. Era Yolanda quem os tornava ardorosos e ofegantes. Logo fiquei conhecendo a razão: Yolanda ia para a cama com eles.

Quanto a mim, os rapazes me viam, pediam para marcar encontros, mas Julian deixou bem claro que eu não estava disponível: pertencia a ele. Embora eu negasse o fato com a maior persistência, Julian falava com os rapazes em caráter particular, explicando-lhes que eu era antiquada e me envergonhava de admitir que “vivíamos em pecado”. Costumava dizer na minha presença:

— É aquela antiga tradição das boas moças do Sul. As garotas sulinas gostam que os rapazes as considerem meigas, tímidas e recatadas, mas por baixo dessa aparência externa de frias magnólias, são taradas sexuais todas elas!

Claro que os rapazes acreditavam nele e não em mim. Por que haviam de acreditar na verdade, quando a mentira era muito mais excitante? Mesmo assim, eu estava bastante satisfeita. Adaptei-me em Nova York como se lá tivesse nascido e crescido, andando sempre às pressas como qualquer nova-iorquino: é preciso chegar lá depressa, sem desperdiçar um minuto, pois há muito que provar antes que outra pequena com um rosto bonito e mais talento apareça para assumir o lugar. Todavia, enquanto eu estava levando vantagem no jogo, foi uma vida selvagem e embriagadora, exaustiva e exigente. O quanto eu me sentia agradecida a Paul pelo cheque semanal que me enviava, pois o que ganhava na companhia de balé mal daria para pagar os cosméticos.

Nós três, moradoras no apartamento 416, precisávamos de pelo menos dez horas de sono diárias. Levantávamo-nos de madrugada a fim de nos exercitarmos na barra, em casa, antes do café da manhã. O desjejum, bem como o almoço, tinham que ser bem leves. Só durante a última refeição do dia, após um espetáculo, podíamos realmente satisfazer nossos apetites devoradores. Eu tinha a impressão de estar sempre com fome, de nunca ter comido o suficiente. Em uma única apresentação do corps de ballet perdia de dois e meio a três quilos.

Julian fazia-me constante companhia, parecendo uma sombra a seguir-me cada movimento, evitando que eu saísse com outros rapazes. Dependendo de minha disposição de espírito ou estado de exaustão, eu me irritava com tal procedimento ou, em algumas ocasiões, sentia-me grata por ter a companhia de alguém que não me fosse totalmente desconhecido.

Certo dia, em junho, Madame Zolta declarou:

— Seu nome é ridículo! Mude-o! Catherine Doll, isso é nome para uma bailarina? Um nome insípido, sem graça não se aplica a você!

— Ora, espere um minuto, Madame! — protestei raivosa, abandonando minha posição de balé. — Escolhi esse nome quando tinha sete anos e meu pai gostou dele. Papai julgava que o nome se aplicava muito bem a mim de modo que pretendo continuar a usá-lo, seja ele insípido ou não!

Tive ímpetos de lhe dizer que Madame Naverena Zolta Korovenskov também não era o que eu considerava um nome lírico!

— Não discuta comigo, moça: mude o nome! — disse ela, batendo com a bengala de marfim no assoalho.

Entretanto, se eu mudasse de nome, como poderia minha mãe saber quando eu chegasse ao topo da carreira? E ela precisava saber! Não obstante, aquela bruxa velha e mirrada, com suas roupas antiquadas, fitava-me com os ferozes olhinhos negros e brandia a bengala de marfim, indicando que eu seria obrigada aceitar ou...!

Julian observava-me com ar displicente, sorrindo. Concordei em mudar a grafia de meu sobrenome de Doll para Dahl.

— Assim fica melhor — disse a velha em tom azedo. — Um pouco melhor.

Madame Zolta vivia em cima de mim. Ralhava. Criticava. Reclamava quando eu inovava e se queixava quando eu não o fazia. Declarou não gostar da maneira como eu usava o cabelo e achou que eu tinha cabelo demais.

— Corte-o! — ordenou.

Contudo, recusei-me a cortar um só milímetro de cabelo, pois julgava que mantê-lo comprido dar-me-ia a aparência ideal para o papel da Bela Adormecida. Madame Zolta fungou quando eu disse isso. (Fungar era um de seus meios prediletos de expressão). Se ela não fosse uma professora tão eficiente e talentosa, todos nós a odiaríamos. Sua própria natureza azeda forçava-nos a dar o melhor de nós, pois desejávamos muito vê-la sorrir. Madame também era coreógrafa, mas tínhamos um outro coreógrafo que vinha supervisionar os trabalhos quando não estava em Hollywood, na Europa ou isolado em algum canto remoto a imaginar novos balés.

Uma tarde, depois da aula, quando nós todos aproveitávamos a folga para fazermos brincadeiras tolas, levantei-me de um salto e comecei a dançar uma melodia popular. Madame apanhou-me em flagrante e explodiu:

— Aqui, dançamos clássico! Não quero danças modernas aqui dentro!

Seu rosto seco e enrugado assumiu a aparência de uma cabeça mumificada quando ela acrescentou:

— Você, Dahl, explique a diferença entre clássico e moderno.

Julian piscou para mim e recostou-se, apoiando-se nos cotovelos e cruzando elegantemente os tornozelos, deleitado com o meu desconforto. Procurei imitar a pose de minha mãe e comecei:

— Sucintamente, Madame, a forma moderna de balé consiste principalmente em rastejar pelo chão e assumir determinadas posturas, enquanto o bailarino clássico dança nas pontas dos pés, gira, faz piruetas e jamais se mostra demasiado sedutor ou desajeitado. E a dança conta uma estória.

— Quanta razão você tem — disse a velha num tom gelado. — Agora, volte para sua cama, em casa, e lá rasteje e assuma as posturas que quiser, caso sinta necessidade de expressar-se de tal maneira. Nunca mais permita que eu a pegue fazendo isso diante de meus olhos!

O moderno e o clássico podiam ser mesclados e tornados lindos. A intransigência da enrugada megera enraiveceu-me e eu gritei em resposta:

— Eu a detesto, Madame! Desprezo seus costumes cinzentos como ratos, que já deveriam ter sido atirados no lixo há trinta anos! Detesto seu rosto, seu andar, sua voz, seu sotaque! Trate de procurar outra bailarina. Vou voltar para casa!

Corri para o camarim, deixando todos os outros alunos boquiabertos no salão. Arranquei minhas malhas de ensaio e as roupas de baixo. Pela porta do camarim entrou raivosamente a velha bruxa de cara sinistra, os olhos malvados, os lábios comprimidos.

— Se for para casa, nunca mais volte aqui!

— Não pretendo voltar!

— Você vai murchar e morrer!

— É idiota por pensar assim! — repliquei sem ligar para sua idade ou respeitar-lhe o talento. — Posso viver minha vida sem dançar e ser muito feliz. Portanto, vá para o inferno, Madame Zolta!

Como se o encanto se quebrasse, a velha megera sorriu suavemente para mim.

— Ah!... você tem espírito! Eu já começava a duvidar. Mande-me para o inferno; é gostoso ouvir isso. De qualquer forma, o inferno é melhor que o céu. Agora, Catherine, falemos sério — acrescentou num tom bondoso que eu jamais a ouvira usar. — Você é uma bailarina maravilhosamente talentosa, a melhor que possuo, mas é tão impulsiva que abandona o clássico e mistura o que lhe vem à cabeça. Eu apenas tento ensiná-la. Invente o quanto quiser, mas seja sempre clássica, elegante, bela.

Lágrimas lhe brilharam nos olhos.

— Você é meu deleite, sabia? Acho que é a filha que nunca tive; faz-me recuar até a época em que era jovem e pensava que a vida não passava de uma grande aventura romântica. Tenho tanto medo que a vida lhe roube seu olhar de encanto, o seu espanto infantil. Agarre-se com unhas e dentes a essa expressão e logo terá o mundo a seus pés.

Referia-se ao meu rosto do sótão, aquela expressão de encantamento que tanto enfeitiçava Chris.

— Desculpe-me, Madame — disse eu com humildade. — Fui grosseira. Errei em gritar, mas a senhora exige tanto de mim e eu estou cansada. E também sinto saudades de casa.

— Eu sei, eu sei — disse ela num tom carinhoso, aproximando-se para abraçar-me e embalar-me. — Ser jovem numa metrópole desconhecida é duro para os nervos e para a confiança em si mesma. Mas lembre-se de uma coisa: eu tinha necessidade de saber o que você tem por dentro. Uma bailarina sem espírito, sem fogo interior, não é bailarina.

Eu já morava em Nova York há sete meses, trabalhando, mesmo nos fins de semana até cair na cama morta de cansaço, quando Madame Zolta decidiu que eu deveria ter uma oportunidade de dançar um papel principal com Julian como par. Madame tinha por norma alternar os bailarinos que dançavam os papéis principais, de modo a não haver estrelas ou astros na companhia; embora ela tivesse insinuado muitas vezes que me queria para dançar o papel de Clara no Quebra-Nozes, eu julgava que se tratava apenas de um engodo, que ela me exibia diante do nariz uma bela fruta que eu jamais teria oportunidade de provar. Então, tornou-se realidade. Nossa companhia de balé competia com outras muito maiores e mais famosas; portanto, foi um absoluto rasgo de gênio por parte de Madame Zolta convencer um produtor de televisão de que as pessoas que não tinham recursos para comprar entradas de balé poderiam ser alcançadas através da TV.

Fiz uma chamada interurbana para Paul a fim de contar-lhe a sensacional novidade.

— Paul, vou aparecer na TV dançando o Quebra-nozes. Serei Clara!

Ele riu, congratulando-me.

— Creio que isso significa que não virá para casa neste verão — comentou, um pouco tristonho. — Carrie sente muita falta de você, Cathy. Só nos fez uma rápida visita desde que partiu.

— Sinto muito. Quero ir, mas preciso aproveitar esta oportunidade de dançar como estrela da companhia, Paul. Faça o favor de explicar a Carrie, a fim de que não se sinta magoada. Ela está em casa?

— Não; afinal, arranjou uma amiga e foi “dormir fora”. Mas telefone outra vez amanhã à noite, a cobrar, e conte-lhe pessoalmente a novidade.

— E Chris como vai? — indaguei.

— Ótimo, ótimo. Só tira notas máximas e se conseguir manter-se assim será admitido num programa acelerado e poderá terminar o quarto ano preparatório cursando simultaneamente o primeiro ano da faculdade de medicina.

— Ao mesmo tempo? — perguntei, maravilhada de que alguém, mesmo que fosse Chris, pudesse mostrar tanta inteligência e progredir tão depressa.

— Claro, é possível.

— E você, Paul? Está bem? Tem trabalhado muito, por tempo demasiado?

— Estou bem de saúde e sim, tenho trabalhado tempo demais, como qualquer médico. E já que você não pode vir para visitar-nos, creio que seria ótimo para Carrie irmos visitar você.

Oh! Era a melhor idéia de que eu tinha notícia havia muitos meses.

— Traga Chris — pedi. — Ele adorará conhecer todas as lindas bailarinas que lhe poderei apresentar. Quanto a você, Paul, acho melhor não olhar para ninguém exceto para mim.

Ele produziu um ruído estranho na garganta antes de dar uma risadinha.

— Não se preocupe, Catherine. Não se passa um único dia sem que eu veja seu rosto diante de mim.

A produção para televisão do Quebra-nozes foi gravada em tape no início de agosto, para exibição na época do Natal. Julian e eu sentamo-nos muito juntos para assistirmos as gravações antes da montagem final do programa. Quando terminou, Julian tomou-me nos braços e, pela primeira vez, disse-me com o tipo de sinceridade em que eu conseguia acreditar:

— Eu a amo, Cathy, Por favor, pare de me levar tão na brincadeira!

Mal descansáramos do Quebra-nozes, Yolly levou um tombo e torceu o tornozelo. April estava visitando os pais. Assim, tive a oportunidade de dançar também A Bela Adormecida! Uma vez que Julian dançara dois papéis principais no especial de TV, tanto Alexis como Michael julgavam que seria sua vez de dançar comigo. Madame Zolta franziu a testa, olhou para Julian e depois para mim.

— Alexis, Michael, prometo-lhes os próximos papéis principais, mas permitam que Julian dance este com Catherine. Os dois juntos possuem uma rara a magia que enfeitiça o público. Quero ver como se saem numa produção realmente luxuosa como A Bela Adormecida.

Oh! Os pensamentos que tive deitada imóvel no sofá de veludo vermelho, à espera de que meu amante chegasse para depositar em meus lábios o beijo que me despertaria, fazendo-me reviver. A música linda e gloriosa fazia-me sentir mais real naquele sofá do que quando era eu mesma, sem sangue azul. Senti-me encantada, envolta numa aura de beleza, plácida e graciosamente deitada com os braços cruzados sobre o peito, o coração pulsando ao ritmo da música. Na platéia escura, Paul, Chris, Carrie e Henny assistiam pela primeira vez a um espetáculo de balé em Nova York. Com efeito, eu sentia na medula dos ossos ser a mística princesa medieval. Avistei-o sonhadoramente por entre pálpebras quase cerradas: o meu príncipe. Dançou ao redor de mim e, então, pousou um joelho no chão para fitar-me o rosto com imensa ternura antes de se atrever a depositar um beijo hesitante em meus lábios cerrados. Acordei, tímida, desorientada, piscando, tão virginalmente virtuosa que ele foi obrigado a cortejar-me dançando a minha frente, convidando-me a dançar também. E, no mais apaixonado pas de deux, sucumbi-lhe aos encantos; conquistador vitorioso, ele me ergueu bem alto e, sobre a mão espalmada que tão bem conhecia o ponto exato para equilibrar perfeitamente o meu peso, fui carregada para fora do palco.

O último ato chegou ao fim: os aplausos trovejaram e ecoaram pelo teatro, enquanto a cortina subia e descia repetidamente. Julian e eu tivemos que receber sozinhos os aplausos, enquanto o público exigia que a cortina tornasse a abrir-se oito vezes! Montes de rosas vermelhas eram colocadas em meus braços e mais flores eram jogadas no palco. Baixei os olhos e vi uma flor que se destacava entre as outras: um único botão-de-ouro, preso a uma tira de papel dobrada. Abaixei-me para pegá-lo e adivinhei que era de Chris antes mesmo de ter oportunidade de ler o bilhete. Nós éramos os quatro “botões-de-ouro” de Papai e ali estava a flor, guardada numa geladeira para não perder o frescor até ser jogada para mim num tributo ao que tínhamos sido.

Olhei cegamente para os rostos indistintos do público, à procura das pessoas que eu amava; mas só consegui ver o sótão escuro e assustadoramente imenso com suas flores de papel e no canto, perto da escada, Chris se postara nas sombras, entre o sofá e o grande baú, o veemente desejo estampado no rosto enquanto me observava dançar interminavelmente. Chorei e o público adorou! Aplaudiram-me de pé. Virei-me para entregar uma rosa vermelha a Julian e, mais uma vez, a ovação estrondosa ecoou pelo teatro. Então, Julian beijou-me! Ousou beijar-me diante de milhares de pessoas e não foi um beijo respeitoso, mas possessivo!

— Maldito seja por isso! — sibilei furiosa, sentindo-me humilhada.

— Maldita seja você por não me querer! — sibilou ele em resposta.

— Não sou sua!

— Mas será!

Minha família veio aos bastidores para afogar-me em elogios. Chris ficara ainda mais alto, mas Carrie continuava praticamente a mesma, talvez um pouquinho mais alta, mas não muito. Beijei o rosto redondo e firme de Henny. Só então pude dar atenção a Paul. Nossos olhares se encontraram prolongadamente. Ainda me amava, desejava, precisava de mim? Paul não respondera minha última carta. Magoando-me com facilidade, eu escrevera apenas a Carrie, para falar dos próximos espetáculos e só então Paul telefonara informando que traria minha família a Nova York.

Após o espetáculo, houve a recepção que nos ofereciam os ricos patrocinadores cultivados por Madame Zolta.

— Usem as roupas de balé — instruíra Madame. — Os aficionados ficarão eletrizados ao verem os bailarinos de perto, com as roupas que usaram no palco. Não se esqueçam de retirar a maquilagem de palco e usar o que costumam aplicar todos os dias para ficarem sensacionais. Não deixem o público perceber por um só instante que vocês não são belos e encantadores!

Havia música e Chris me tomou nos braços para uma valsa, a dança que eu lhe ensinara havia tantos anos.

— Você continua a dançar assim? — reprovei.

Ele exibiu um sorriso modesto.

— Nada posso fazer se você ficou com todo o talento para dançar e eu fiquei com toda a inteligência da família.

— Comentários desse tipo talvez me levem a pensar que você não tem cérebro.

Ele tornou a rir e puxou-me para mais perto de si.

— Além disso, não preciso dançar e fazer pose para conquistar as garotas. Veja só a sua amiguinha Yolanda. É bem bonita e não tirou os olhos de mim a noite inteira.

— Ela olha para todos os rapazes bonitos. Portanto, não se sinta tão lisonjeado. Se você quiser, Yolanda lhe fará companhia na cama esta noite. E amanhã dormirá com outro.

— Você também é como ela? — retrucou ele, apertando as pálpebras.

Sorri maliciosamente para Chris, pensando com meus botões que eu não era igual a Yolanda, mas igual a Mamãe: suave, fria, sabendo lidar com os homens; pelo menos, eu estava aprendendo. A fim de provar isto, pisquei para Paul, desejando verificar se ele viria interromper nossa valsa. Paul ergueu-se de imediato, atravessando graciosamente a pista de danças para tirar-me dos braços de Chris. Os lábios de meu irmão se apertaram e ele foi direto de mim para Yolanda. Em poucos minutos, sumiram do salão.

— Depois de dançar com Julian, você deve achar que tenho pés de chumbo — disse Paul, que dançava melhor que Chris.

Mesmo quando a música mudou para um ritmo mais rápido, com uma marcação afro-cubana, Paul acompanhou-a com facilidade, surpreendendo-me ao mostrar-se capaz de abandonar sua dignidade e sacudir-se com o mesmo abandono de um rapaz de ginásio.

— Você é maravilhoso, Paul!

Ele riu, respondendo que eu o fazia sentir-se jovem outra vez. Era tão divertido vê-lo assim, relaxado, que exagerei um pouco em minha dança. Carrie e Henny pareciam cansadas e deslocadas.

— Estou com sono — queixou-se Carrie, esfregando os olhos. — Não podemos ir dormir agora?

Era meia-noite quando deixamos Carrie e Henny no hotel. Depois, Paul e eu sentamo-nos num tranqüilo café italiano e nos fitamos. Ele ainda usava bigode, não aparado, de almofadinha, mas um espesso escovão acima dos lábios sensuais. Ganhara alguns quilos, mas isso não lhe diminuía a boa aparência e atração pessoal. Estendeu as mãos sobre a mesa para pegar as minhas e levá-las ao rosto até poder roçá-las na pele. Enquanto o fazia, seus olhos interrogavam-me com veemência, levando-me a perguntar:

— Encontrou outra pessoa, Paul?

— E você?

— Perguntei primeiro.

— Não estou procurando ninguém.

Foi uma resposta que me acelerou o coração, pois estávamos separados há muito tempo e eu o amava muito. Ele pagou a conta, segurou meu casaco para mim e, depois, eu segurei o dele. Nossos olhares se encontraram e saímos quase correndo do restaurante para o hotel mais próximo, onde ele nos registrou como Sr. e Sra. Paul Sheffield. Num quarto pintado de vermelho escuro, Paul despiu-me com sedutora lentidão e fiquei pronta antes mesmo que ele se ajoelhasse para beijar-me o corpo todo. Então, ele me abraçou com força, acariciando-me, adorando-me, beijando-me, causando-me prazer, até que voltamos a unir-nos num só corpo e alma. Quando nos exaurimos, Paul traçou com o dedo o contorno de meus lábios, olhando-me com grande ternura.

— Catherine, agi com seriedade quando escrevi aquilo no registro do hotel — declarou, beijando-me suavemente.

Esbugalhei os olhos, incrédula.

— Não zombe de mim, Paul.

— Não estou zombando, Catherine. Quase morri de saudades desde que você partiu. Compreendi que fui um tolo ao negar a nós dois a oportunidade de encontrarmos a felicidade. A vida é curta demais para admitir tantas dúvidas. Agora você está encontrando o sucesso em Nova York; desejo compartilhar tudo com você. Não quero agir às escondidas de Chris, não quero ser obrigado a preocupar-me com as mexeriqueiras do interior. Quero estar com você, desejo-a para sempre, quero que seja minha esposa.

— Oh! Paul! — exclamei, abraçando-lhe o pescoço. — Eu o amarei para sempre, juro!

Meus olhos se encheram de lágrimas com o alívio de ele, afinal, ter-me pedido em casamento.

— Serei para você a melhor esposa que um homem já teve!

Falava com sinceridade.

Não dormimos naquela noite. Permanecemos acordados, planejando como viveríamos depois de casados. Eu permaneceria na companhia de balé e daríamos um jeito de conciliar tudo. A única sombra que toldava nossa alegria era Chris. Como contaríamos a ele? Resolvemos esperar até o Natal, quando eu iria a Clairmont. Até então, eu manteria minha felicidade em segredo, ocultando-a do mundo, de modo que ninguém desconfiasse de que eu iria tornar-me em breve a Sra. Paul Scott Sheffield.

 

Uma oportunidade para lutar

Aquele foi o outono de minha felicidade, de meu estrondoso sucesso, de meu amor por Paul. Eu julgava ter o destino inteiramente sob controle; desafiava-o a deter-me, pois estava livre e seguindo firme o meu rumo. Agora, quase no topo. Nada mais tinha a temer, absolutamente nada. Mal podia esperar para berrar aos quatro ventos a notícia de meu noivado com Paul.

Entretanto, protegia furtivamente meu segredo. Nada revelei a ninguém, nem mesmo a Julian ou a Madame Zolta, pois havia muito em jogo e eu precisava aguardar a hora exata, certificando-me de que tudo continuaria a correr como eu desejava. No momento, eu ainda precisava de Julian para meu par, tanto quanto ele precisava de mim. Por outro lado, precisava contar com a total confiança de Madame Zolta. Se descobrisse que eu tencionava casar-me, algo que ela certamente não aprovava, Madame talvez não me desse todos os papéis principais, talvez considerando-me um caso perdido com o qual não valia a pena gastar seu tempo. Além disso, eu ainda precisava ficar famosa, precisava mostrar a Mamãe o quanto eu era melhor que ela.

Agora que Julian e eu já íamos ficando conhecidos da crítica e do público, Madame Zolta passou a pagar-nos melhores salários. Um sábado de manhã, Julian correu para agarrar-me, terrivelmente excitado, girando-me até meus pés descreverem um círculo no ar.

— Adivinhe uma coisa, Cathy! A velha bruxa me disse que eu poderia comprar seu Cadillac a prestação! O carro só tem dois anos e meio de uso, Cathy! — Julian assumiu um ar sonhador. — Naturalmente, sempre esperei que meu primeiro Cadillac fosse zero quilômetro, mas quando uma determinada professora de balé morre de medo de que um de seus bailarinos possa ingressar noutra companhia de danças e levar consigo a melhor bailarina do grupo, como pode negar-se a ceder seu próprio Cadillac?

— Chantagem! — exclamei.

Julian riu, tomou-me a mão e corremos para ver o carro estacionado em frente ao prédio de apartamentos onde morávamos. Prendi a respiração: o carro parecia tão novo!

— Oh! Julian, adorei! Seria impossível chantageá-la se ela não quisesse entregar a você uma de suas mascotes prediletas. Ela sabe que você mimará o carro e nunca o venderá.

— Oh! Cathy! — os olhos de Julian brilhavam com lágrimas que eu nunca vira neles. — Será que não entende por que eu a amo tanto? Somos iguais; por que não consegue me amar só um pouquinho?

Num gesto orgulhoso, abriu a porta para conceder-me o raro privilégio de ser a primeira garota a andar em seu Cadillac novo.

Dali em diante, tivemos um dia selvagem e louco. Atravessamos o Central Park e percorremos todo o trajeto através do Harlem até a Ponte George Washington, de onde voltamos. Chovia, mas não me importei. O interior do carro era aquecido e acolhedor.

Então, Julian recomeçou:

— Cathy... você nunca vai me amar, vai?

Era uma pergunta que ele me fazia ao menos uma ou duas vezes por dia sob uma ou outra forma. Tive vontade de contar-lhe a respeito de meu noivado com Paul, a fim de terminar de uma vez por todas com aquelas perguntas. Mas guardei fielmente meu segredo.

— É por ser virgem, não é? Prometo ser muito cuidadoso e delicado, Cathy... dê-me uma oportunidade, por favor!

— Por Deus, Julian! Só consegue ter isso na cabeça?

— Sim! — rosnou ele. — Pode ter certeza de que sim! E já estou cansado desse joguinho que você vem fazendo comigo! — disse ele, entrando com o carro num intenso fluxo de tráfego. — Você é uma tentadora; flerta comigo enquanto dançamos e depois chuta-me o saco!

— Leve-me para casa, Julian! Este tipo de conversa me causa nojo!

— Está bem! Pode apostar que vou levá-la para casa! — esbravejou, enquanto eu me encolhia contra a porta direita, que Julian trancara.

Lançando-me um olhar feroz e contrariado, pisou fundo no acelerador! Percorremos velozmente as ruas estreitas e escorregadias de chuva e, a freqüentes intervalos, Julian olhava para mim a fim de dar-me a perceber o prazer que lhe causava a aterradora viagem! Riu alto, violento, e freou tão depressa que fui atirada para diante, batendo com a testa no pára-brisas! Em seguida, Julian arrancou-me a bolsa do colo, debruçou-se para destrancar a minha porta e empurrou-me para a chuva torrencial!

— Vá para o inferno, Catherine Dahl! — berrou enquanto permaneci imóvel sob a chuva, negando-me a implorar. Os bolsos do meu casaco estavam vazios. Eu não tinha dinheiro. — Deu o seu primeiro e último passeio em meu carro! Espero que conheça o caminho de volta para casa!

Fez-me continência, com um sorriso maldoso.

— Vá para casa como puder, santa puritana, se conseguir!

Partiu com o carro, deixando-me sob a chuva numa esquina do Brooklin, onde eu nunca estivera antes. Eu não tinha um centavo. Nem mesmo poderia telefonar, ou tomar o metrô. A chuva caía com força. Meu casaco leve estava ensopado. Eu sabia estar num bairro perigoso, onde tudo poderia acontecer... e Julian me deixara ali; ele, que prometera cuidar bem de mim! Comecei a andar, sem ter idéia de onde ficavam norte ou sul, leste ou oeste. Quando avistei um táxi que passava vazio, fiz-lhe sinal. Debrucei-me nervosamente no banco para observar o taxímetro marcar os quilômetros e os dólares. Maldito seja, Julian, por me deixar tão longe! Finalmente, chegamos ao prédio de apartamentos, ao preço de quinze dólares!

— Quer dizer que não tem dinheiro? — explodiu o motorista. — Vou levar você direto para a delegacia!

Discutimos por longo tempo, enquanto eu tentava explicar que ele não poderia receber o dinheiro se não me deixasse saltar para pegá-lo em casa. Enquanto isso, o taxímetro continuava a funcionar. Afinal, o motorista concordou:

— Está certo, garota. Mas é melhor você voltar em cinco minutos, do contrário...!

Uma raposa perseguida por uma matilha de cem cães não teria corrido mais que eu. O elevador demorou-se uma eternidade, rangendo durante todo o trajeto. Sempre que entrava naquela peça de museu, eu tinha medo de ficar presa entre dois andares. Por fim, a porta do elevador se abriu e saí correndo pelo corredor para esmurrar nossa porta, rezando para que April ou Yolanda lá estivessem para abrir. O louco Julian tomara-me a bolsa com a chave dentro!

— Calma! — berrou Yolanda. — Já vou abrir. Quem é?

— Cathy! Deixe-me entrar depressa! O motorista está esperando com o taxímetro ligado!

— Se pensa que vai me dar uma facada, pode esquecer! — replicou ela, abrindo a porta. Usava apenas calcinhas de nylon e trazia o cabelo recém-lavado enrolado numa toalha vermelha. — Você parece algo devolvido pelo mar — comentou animadoramente.

Eu nunca dava muita importância a Yolanda. Empurrei-a para o lado e corri ao local onde escondia o dinheiro que economizava. Então, desanimei. A chavinha de minha pequena arca do tesouro estava na bolsa que ficara em poder de Julian, caso este não a tivesse jogado fora.

— Por favor, Yolly, empreste-me quinze dólares para a corrida e um para gorjeta.

Yolanda fitou-me astuciosamente enquanto retirava a toalha vermelha e começava a escovar os cabelos.

— O que tem você para dar em troca de pequenos favores como este?

— Dar-lhe-ei o que você quiser. Empreste-me o dinheiro.

— Está bem... mas não se esqueça de cumprir a promessa — disse ela, retirando lentamente uma nota de vinte dólares de uma carteira bem recheada. — Dê cinco pratas de gorjeta ao motorista; isso servirá para acalmá-lo. E fica me devendo o que eu quiser... certo?

Concordei e tornei a sair correndo.

Tão logo segurou os vinte dólares, o motorista começou a sorrir, levando os dedos à pala do boné num gesto amistoso.

— Até à vista, garota.

Desejei que ele caísse morto! Sentia tanto frio, que a primeira coisa que fiz ao voltar para casa foi encher a banheira de água quente, tendo antes o cuidado de lavar a orla de espuma suja deixada pelo banho de Yolly.

Meus cabelos ainda estavam úmidos quando me vesti com a intenção de procurar Julian e exigir a devolução de minha bolsa. Mas Yolly barrou-me a passagem.

— Vamos, Cathy... quero que cumpra sua parte do trato. Fará o que eu quiser, não é mesmo?

— Certo — respondi, repugnada. — O que deseja?

Ela sorriu, recostando-se provocadoramente numa parede.

— Seu irmão... quero que você o convide para passar conosco o próximo fim-de-semana.

— Não seja ridícula! Chris está na universidade. Não pode vir aqui quando lhe der na cabeça.

— Trate de trazê-lo aqui de qualquer maneira. Diga que está doente, que necessita desesperadamente dele, mas traga-o aqui! Então, poderá ficar com os vinte dólares!

Parei para encará-la com hostilidade.

— Não! Tenho dinheiro para pagar-lhe o empréstimo... Não permitirei que Chris se envolva com garotas da sua espécie!

Ainda usando apenas as calcinhas de nylon, ela aplicou batom nos lábios sem usar um espelho.

— Cathy, meu amor, seu querido e precioso irmão já está envolvido com garotas da minha espécie.

— Não acredito! Você não é o tipo dele!

— Nãããooo — ronronou ela como uma gata, apertando as pálpebras para observar-me terminar de vestir-me. — Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, carinha de boneca: não existe um sujeito neste mundo que não caia pelo meu tipo. Incluindo o seu querido irmão e o seu amante Julian!

— É mentira! — gritei. — Chris não tocaria em você com uma vara de três metros! Quanto a Julian, pouco me importa que durma com dez prostitutas como você!

De repente, o rosto de Yolly ficou muito rubro; ela ficou rígida e, em seguida, avançou contra mim com as mãos erguidas e os dedos transformados em garras com longas unhas vermelhas!

— Puta! — rosnou. — Não se atreva a me chamar de prostituta! Não recebo pagamento em troca do que dou porque quero, e seu irmão gosta do que eu dou! Pergunte a ele quantas vezes...

— Cale-se! — berrei, impedindo que ela terminasse. — Não acredito numa só palavra do que você diz! Chris é esperto demais para fazer outra coisa exceto usar você para satisfazer-lhe as necessidades físicas... Tirando isso, você não passaria de lixo para ele!

Yolly me agarrou e eu a esmurrei com força suficiente para atirá-la ao chão.

— Você não passa de uma vagabunda mesquinha e barata. Yolanda Lange! — gritei furiosa. — Não serve nem como capacho para meu irmão limpar os sapatos! Vai para a cama com todos os bailarinos da companhia! Não me importa o que você faça... trate apenas de deixar-me em paz! E deixe meu irmão em paz!

O nariz de Yolly sangrava... Oh! eu não sabia que batera com tanta força... seu nariz já começava a inchar, também. Levantou-se rapidamente, mas, por algum motivo, recuou para longe de mim.

— Ninguém fala assim comigo sem receber troco... Vai arrepender-se, vai lamentar este dia, Catherine Dahl! Pegarei seu irmão! E ainda mais: tomarei Julian de você, também! E quando ele for meu, você descobrirá que sem ele não é nada! Não passa de uma bailarina caipira que Madame Zolta poria no olho da rua se Julian não insistisse em conservá-la porque é tarado por virgens!

Tudo que ela gritou bem poderia ser verdade. Talvez tivesse razão e sem Julian eu nada fosse de especial. Senti-me enjoada e a odiei, odiei-a por macular Chris e a imagem que eu fazia dele. Comecei a guardar minhas roupas nas malas, resolvida a regressar a Clairmont antes de viver mais uma hora perto de Yolanda!

— Vá em frente! — sibilou ela com os dentes trincados. — Fuja, garotinha pudica!... Como é idiota! Não sou uma prostituta! Simplesmente, não sou uma provocadora como você e, entre as duas, eu escolheria a minha espécie!

Sem dar importância ao que ela dizia, terminei de arrumar minhas coisas e fechei as correias de minhas três malas, passando um cinto pelas alças a fim de poder arrastá-las para o corredor. Levei sob o braço uma sacola de couro macio, cheia até a boca. Parei junto à porta a fim de olhar para Yolanda, que se estendera na cama como uma grande gata.

— Você me causa realmente muito medo, Yolanda. Estou tão amedrontada que chego a ter vontade de rir. Já encarei gente maior e melhor que você e continuo viva... portanto, não se atreva a chegar novamente perto de mim, ou será você quem se arrependerá deste dia!

Pouco depois de fechar a porta com força, cheguei ao andar onde morava Julian. Arrastando minhas malas atadas umas às outras, esmurrei a porta do apartamento de Julian com ambos os punhos!

— Julian! — chamei. — Se estiver aí, abra a porta e devolva minha bolsa! Abra essa porta ou nunca mais dançará comigo!

Ele abriu bem depressa, usando apenas uma toalha de banho enrolada nos quadris estreitos. Antes que eu me desse conta do que acontecia, puxou-me para dentro do quarto e atirou-me sobre a cama. Olhei freneticamente em volta, esperando ver Alexis ou Michael, mas, para minha infelicidade, Julian estava sozinho no apartamento.

— Claro! — bradou ele. — Pode levar de volta sua maldita bolsa depois que responder a algumas perguntas!

Dei um salto, levantando-me da cama, mas Julian tornou a empurrar-me para trás e, desta feita, ajoelhou-se sobre mim, cavalgando meu corpo e impedindo-me de escapar!

— Solte-me, animal! — berrei. — Andei seis quarteirões na chuva e quase morri gelada... Agora, quer me deixar levantar e devolver minha bolsa?

— Por que não consegue me amar? — redargüiu ele, segurando-me com ambas as mãos quando tentei libertar-me. — Por estar apaixonada por outro? Quem é ele? Aquele médico grandalhão que acolheu vocês, não é?

Sacudi a cabeça, com um medo terrível de Julian. Não podia contar a verdade. E Julian parecia quase enlouquecido de ciúmes. O cabelo ainda molhado do banho que ele acabara de tomar respingava água sobre mim.

— Cathy, já aturei de você tudo o que é possível! Conhecemo-nos há quase três anos e não consegui qualquer progresso com você. Não posso estar errado, portanto, tem que ser você! Quem é o outro?

— Ninguém! — menti. — E você não serve para mim! A única coisa de que gosto em você, Julian Marquet, é sua maneira de dançar!

O sangue lhe subiu ao rosto.

— Julga que sou cego e estúpido, não é? — perguntou, tão furioso que parecia prestes a explodir. — Mas não sou cego, nem estúpido, e percebi o modo como você olha para aquele médico e Deus me perdoe se não a vi olhar da mesma forma para seu irmão! Portanto, não me venha bancar a moralista imaculada, Catherine Dahl, pois nunca em minha vida vi um irmão e uma irmã tão fascinados um pelo outro!

Esbofeteei-o! Ele revidou com o dobro da força! Tentei lutar contra ele, mas Julian parecia uma enguia ao arrastar-me para o chão, onde eu temia que ele em breve me rasgasse as roupas e me estuprasse, mas não o fez. Limitou-se a prender-me sob seu corpo e respirar com força até recobrar parte do controle sobre suas emoções tumultuadas. Só então ele falou.

— Você é minha, Catherine, quer saiba ou não... pertence a mim! E se algum homem se interpuser entre nós, eu o matarei e matarei você também! Portanto, trate de lembrar-se bem disto antes de olhar para qualquer outro homem que não seja eu!

Em seguida, entregou-me a bolsa e mandou-me contar o dinheiro para verificar que ele não me roubara um centavo. Eu tinha quarenta e dois dólares e sessenta e oito centavos e tudo estava na bolsa. Levantei-me com as pernas trêmulas, quando Julian me permitiu, e, tremendo da cabeça aos pés, recuei para a porta, abri-a e saí para o corredor, agarrando a bolsa. Só então atrevi-me a dizer o que pensava:

— Existem instituições especiais para loucos como você, Julian! Não pode dizer a quem devo amar, nem obrigar-me a amá-lo. Se você tivesse a intenção definida de tornar-se repugnante para mim, não poderia ter imaginado um meio melhor que este. Agora, não consigo nem mesmo gostar de você: e quanto a dançarmos juntos novamente, trate de esquecer!

Bati-lhe a porta na cara e afastei-me depressa. Todavia, quando cheguei ao elevador, ele tornou a abrir a porta, pronunciando pragas tão terríveis que não posso repeti-las aqui. Concluiu dizendo:

— Maldita seja, Catherine!... eu já disse isto antes e vou dizer novamente... e você pedirá a Deus para estar no inferno antes de ver-se livre de mim!

Depois daquela cena terrível com Yolanda e, em seguida, com Julian, procurei Madame Zolta e lhe disse que simplesmente não poderia continuar morando no mesmo apartamento que uma garota decidida a destruir-me a carreira.

— Ela tem medo de você, Catherine; nada mais que isso. Yolanda era a superstar de minha pequena companhia de balé antes de você chegar. Agora sente-se ameaçada. Faça as pazes com ela... Seja boazinha; vá procurá-la e dizer-lhe que se arrepende do que houve.

— Não, Madame. Não gosto dela e recuso-me a morar no mesmo apartamento. Portanto, se a senhora não me der mais dinheiro, terei que procurar outra companhia e ver se consigo um salário melhor; se não conseguir terei que voltar para Clairmont.

Ela gemeu, ocultou a cabeça mumificada nas mãos esqueléticas e gemeu ainda mais. Oh! Como os russos expressam grandiosamente as emoções!

— Está certo. Você faz chantagem comigo e eu aceito. Dar-lhe-ei um pequeno aumento de salário e lhe indicarei onde encontrar um apartamento barato, mas não será tão bom quanto o que você ocupava.

Ah! Aquilo era bom? Mas Madame tinha razão. O único apartamento que consegui encontrar caberia, inteiro, no menor quarto da casa de Paul. Mas era só meu... o primeiro lugar que eu tinha exclusivamente para mim, e passei alguns dias dominada pelo entusiasmo de arrumá-lo da melhor maneira possível. Então, comecei realmente a dormir mal, acordando a freqüentes intervalos para escutar os sons produzidos pelo velho prédio. Tinha saudades de Paul. Sentia falta de Chris. Escutava o vento soprar e não dispunha de alguém numa cama ao lado da minha para reconfortar-me com palavras carinhosas e faiscantes olhos azuis.

Tinha diante de mim os olhos azuis de Chris quando me levantei da cama e me sentei à mesa da pequena cozinha para escrever um bilhete à “Sra. Winslow”. Eu lhe enviara a primeira crítica entusiástica publicada pelos jornais de Nova York, com uma foto sensacional de Julian e eu dançando A Bela Adormecida. No fim da carta, acrescentara:

“Agora, não tardará, Sra. Winslow. Lembre-se todas as noites, antes de adormecer. Lembre-se de que ainda estou viva em algum lugar, pensando em você e fazendo planos.”

Colocara a carta na caixa do correio em plena noite, antes de ter uma oportunidade para reconsiderar e rasgá-la. Voltei para casa correndo, joguei-me na cama e solucei. Oh! Deus! Eu jamais me libertaria! Nunca! E a despeito de todas as minhas lágrimas, tornei a acordar durante a noite, imaginando um modo de magoá-la de tal modo que ela nunca mais voltasse a ser a mesma. Aproveite enquanto pode, Mamãe, pois não tardará!

Comprei seis exemplares de cada jornal que fazia referência a mim. Infelizmente, na maioria das vezes meu nome estava ligado ao de Julian. Enviei cópias das críticas a Paul e Chris. As outras, eu guardava para mim, ou para Mamãe. Imaginei sua expressão ao abrir a carta, embora temesse que ela apenas jogasse tudo no lixo, depois de rasgar o envelope fechado, sem ler o conteúdo. Em ocasião nenhuma chamei-a de Mãe ou de Mamãe, mantendo sempre as saudações frias e formais. Chegaria o dia em que nos encontraríamos cara a cara; então, eu a chamaria de Mamãe, vendo-a empalidecer e, depois, estremecer.

Certa manhã, fui acordada por alguém batendo à porta.

— Cathy! Deixe-me entrar! Tenho novidades sensacionais!

Era a voz de Julian.

— Vá embora! — repliquei, sonolenta, levantando-me e vestindo um roupão antes de tropeçar na direção da porta para fazê-lo parar de bater. — Pare com isso! — gritei. — Não o perdoei! Nunca perdoarei! Trate de se afastar da minha vida!

— Deixe-me entrar, ou arrombo a porta! — berrou ele.

Abri os trincos e entreabri a porta. Julian entrou como um furacão, erguendo-me nos braços e plantando-me na boca um beijo prolongado e quente enquanto eu ainda bocejava.

— Madame Zolta... ontem, depois que você saiu, ela anunciou a novidade! Vamos fazer uma tournée em Londres! Duas semanas em Londres! Nunca estive lá, Cathy. E Madame está encantada por terem tomado conhecimento de nossa existência em Londres!

— É mesmo? — perguntei, contaminando-me com seu entusiasmo.

Então cambaleei para a cozinha... Café... precisava tomar café antes de poder raciocinar direito.

— Meu Deus! Fica sempre tão desorientada de manhã cedo? — indagou ele, acompanhando-me à cozinha, onde montou às avessas numa cadeira, apoiando os cotovelos no encosto para observar-me todos os movimentos.

— Acorde, Cathy! Perdoe-me, beije-me, volte a ser minha amiga! Odeie-me o quanto quiser amanhã, mas, hoje, trate de me amar, pois nasci hoje. Você também. Cathy, vamos chegar ao topo! Sei que vamos! A companhia de balé de Madame Zolta nunca foi notada antes de formarmos um par! O sucesso não é dela, é nosso!

Julian merecia ser condecorado por tanta modéstia.

— Já tomou café da manhã? — indaguei, esperando que sim.

Restavam-me apenas duas fatias de toucinho e eu queria ambas para mim.

— Claro que sim; mastiguei algo antes de vir para cá. Mas posso comer de novo.

Naturalmente ele podia comer de novo! Sempre era capaz de comer mais alguma coisa. Então, dei-me conta: Londres! Nossa companhia ia a Londres! Girei nos calcanhares, chorando.

— Julian, você disse... estava falando sério? Vamos para lá todos nós?

Ele se ergueu de um salto.

— Sim, todos nós! É uma grande chance, nossa oportunidade de chegar ao topo! Faremos o mundo tomar conhecimento de nós! E você e eu seremos os astros! Juntos, somos os melhores, você sabe tão bem quanto eu!

Dividi com Julian minha refeição matinal e escutei-o recitar uma rapsódia sobre a longa e fantástica carreira que tínhamos pela frente. Ficaríamos ricos e, quando fôssemos mais velhos, lançaríamos raízes, teríamos filhos e abriríamos uma academia de balé; eu gostaria disso, não? Detestei estragar-lhe os planos, mas fui obrigada a dizer:

— Julian, eu não o amo; portanto, jamais poderemos casar-nos. Iremos a Londres, dançaremos juntos e darei o melhor de mim mesma, mas tenciono casar-me com outro. Já estou noiva. Há muito tempo.

Seu prolongado e violento olhar de descrença e puro ódio desferiu-me uma série de bofetadas imaginárias no rosto.

— É mentira! — gritou ele.

Sacudi a cabeça, negando.

— Maldita seja por me enganar! — esbravejou Julian, girando nos calcanhares e saindo do meu apartamento.

Eu jamais o enganara, exceto quando dançávamos juntos e cabia-me fingir um papel... Isto era tudo o que existia entre nós.

 

Sonhos de inverno

Eu passaria o Natal em casa. Os desagradáveis incidentes com Julian ficariam esquecidos na alegre expectativa de encontrar-me com Paul e dar-lhe as boas novas. Graças a Deus, eu tinha Paul para me proteger e ouvir-me as confidências. E não permitiria que Julian estragasse o prazer daquele Natal, pois, desta vez, Paul e eu tínhamos concordado em anunciar publicamente nosso noivado e, agora, a única pessoa que poderia arruinar-me a felicidade era Chris. Às duas da manhã, Paul e Chris foram buscar-me no aeroporto. Fazia um frio de doer, mesmo na Carolina do Sul. Chris alcançou-me primeiro para me abraçar com força e tentar beijar-me nos lábios, mas virei o rosto e o beijo me acertou a bochecha.

— Salve a bailarina conquistadora! — exclamou meu irmão, abraçando-me com força e olhando-me com grande orgulho. — Oh! Cathy, você está tão linda! Cada vez que a vejo, meu coração chega a doer!

O meu coração também doía por vê-lo ainda mais bonitão que Papai. Virei-me depressa noutra direção. Livrei-me dos braços de meu irmão e corri para Paul, que nos observava a alguma distância. Estendeu a mão para pegar as minhas. Muito cuidado, advertiu-me seu demorado olhar, não devemos permitir que a novidade escape antes da hora.

Foi o melhor Natal que passamos, do princípio ao fim, ou quase até o fim. Carrie crescera um centímetro e meio e deu-me gosto vê-la sentada no chão da sala na manhã de Natal, os grandes olhos azuis brilhando de felicidade enquanto ela não parava de exclamar a respeito do vestido de veludo vermelho que eu lhe comprara, encontrando-o finalmente, após horas a fio percorrendo quase todas as lojas de Nova York. Quando experimentou o vestido, Carrie ficou parecendo uma pequena e radiante princesa. Tentei imaginar Cory, também sentado de pernas cruzadas no chão, examinando seus presentes. Era-me impossível afastar a lembrança dele em qualquer ocasião feliz. Oh! Quantas vezes eu avistava nas ruas de Nova York um menino de cachos louros e olhos azuis e saía correndo no seu encalço, esperando que, por algum milagre, fosse Cory, mas nunca era! Nunca!

Chris colocou-me nas mãos uma pequena caixa, dentro da qual estava um pequeno relicário de ouro com formato de coração, tendo no centro da tampa um brilhante verdadeiro, pequeno, mas genuíno.

— Comprado com o dinheiro ganho com o meu suor — anunciou ele, prendendo-me o cordão de ouro ao pescoço. — Servir mesas rende boas gorjetas quando a gente trabalha bem e sempre sorrindo.

Então, num gesto furtivo, escorregou-me na mão um bilhete dobrado. Uma hora depois, na primeira oportunidade, li o bilhete que me fez chorar:

 

À minha Lady Catherine,

Dou-lhe ouro com um brilhante que você quase não vê,

Mas seria grande como um castelo se expressasse o que sinto por você.

Dou-lhe ouro porque é perene

E também dou-lhe amor eterno como o mar.

Apenas seu irmão,

Chris.

 

Eu ainda não lera aquele bilhete quando Paul me entregara seu presente, embrulhado em papel metálico dourado e amarrado com um enorme laço de cetim vermelho. Minhas mãos trêmulas lutaram para abrir as várias camadas de tecido, enquanto Paul observava em grande expectativa. Um casaco de raposa prateada!

— O tipo de agasalho que você realmente necessita para os invernos de Nova York — disse Paul, os olhos brilhando com todo o carinho e amor que ele sentia por mim.

— É demais! — protestei, engasgada. — Mas adorei, simplesmente adorei!

Ele sorriu; era tão fácil fazê-lo feliz.

— É essencial que se recorde de mim toda vez que o usar, pois também ficará agasalhada naquele clima frio e úmido de Londres.

Repliquei que se tratava do casaco mais bonito que eu já vira, embora me sentisse nervosa. A pele me trazia a lembrança de Mamãe e de seu armário abarrotado de agasalhos de pele, que ela ganhara apenas porque tivera a inominável crueldade de manter-nos trancados para poder herdar uma grande fortuna, agasalhos de pele, jóias e tudo o mais que o dinheiro podia comprar.

Chris virou vivamente a cabeça, a fim de captar-me no rosto algo que deve ter revelado meu amor por Paul. A testa de meu irmão se franziu tempestuosamente antes que ele lançasse um rápido olhar a Paul. Então levantou-se e saiu da sala. Em algum lugar lá em cima uma porta bateu com violência. Paul simulou não perceber.

— Veja ali no canto, Catherine: um presente para todos nós aproveitarmos.

Olhei para o enorme aparelho de TV. Carrie ergueu-se de um salto e foi ligá-lo.

— Ele o comprou só para podermos ver você dançar o Quebra-nozes em cores, Cathy. Agora, nem permite que eu chegue perto do aparelho.

— Só porque é difícil ligá-lo corretamente — desculpou-se Paul.

Durante o resto do Dia de Natal, mal avistei Chris, exceto às refeições. Ele usava o suéter azul-brilhante que eu lhe tricotara (e servira como uma luva) trazendo por baixo a camisa e a gravata que eu também lhe dera. Contudo, nenhum dos presentes dados a ele por mim podia comparar-se ao pequeno relicário ouro e brilhante, com o pequeno poema que me fizera sangrar o coração. Detestei o fato de Chris continuar gostando tanto de mim e, não obstante, quando pensei melhor, detestaria ainda mais se ele não gostasse.

Naquela noite, acomodamo-nos confortavelmente diante da nova televisão em cores. Enrosquei-me no chão, junto à perna de Paul, que ocupava uma poltrona. Carrie sentou-se perto de mim. Chris escolheu um lugar afastado, mergulhando num sombrio estado de espírito que o levava ainda mais longe que os poucos passos que nos separavam fisicamente. Portanto, eu não me sentia tão feliz quanto desejava ao ver os créditos do programa aparecerem na tela colorida. Um tape gravado em agosto, só agora seria visto em centenas de cidades através do país. Como ficavam bonitos os cenários na TV em cores; na realidade, não me tinham parecido tão etéreos. Olhei para mim mesma no papel de Clara. Tinha realmente aquela aparência? Esquecendo-me de tudo, recostei-me na perna de Paul e senti-lhe os dedos acariciarem-me os cabelos. A partir de então, perdi a noção de onde estava, vi-me no palco, com Julian transformado de um feio quebra-nozes num lindo príncipe.

Quando o programa terminou, voltei à realidade e meu primeiro pensamento foi minha mãe. Deus permita que ela esteja em casa esta noite e tenha visto. Permita que ela saiba o que tentou matar! Permita que sofra, chore, tenha remorsos... por favor! por favor!

— O que posso dizer, Cathy? — comentou Paul, espantado. — Nenhuma bailarina poderia dançar essa peça melhor que você. E Julian também esteve soberbo.

— Sim — disse Chris friamente, levantando-se para vir pegar Carrie no colo. — Foram ambos sensacionais — mas, certamente, não foi o espetáculo infantil que me lembro de ter visto quando era criança. Vocês dois apresentaram um romance. Francamente, Cathy, acho melhor você desligar aquele cara, depressa!

Com essas palavras, meu irmão saiu da sala e subiu para colocar Carrie na cama.

— Creio que seu irmão está desconfiado — comentou Paul tranqüilamente. – Não apenas a respeito de Julian, mas de mim também. Tratou-me o dia inteiro como a um rival, Não ficará satisfeito ao escutar nossa novidade.

Como tanta gente, preferi adiar o que era desagradável e sugeri que só contássemos a Chris no dia seguinte. Então, quando me aninhei no colo de Paul, abraçamo-nos e trocamos todos os beijos apaixonados que vínhamos guardando até aquele momento. Eu chegava a doer de saudades dele. Após apagarmos todas as luzes da casa, subimos furtivamente ao segundo andar e, com o zelo gerado pela privação, fizemos amor na cama dele. Depois dormimos e tornamos a acordar mais tarde, para repetirmos a dose. Ao amanhecer, dei um último beijo em Paul e vesti um roupão a fim de esgueirar-me até meu quarto. Para minha total surpresa, mal saí do quarto de Paul, Chris abriu a porta do seu e veio para o corredor! Estacou bruscamente, olhando-me com espanto e mágoa, enquanto eu recuava, encolhida, tão envergonhada que tinha vontade de chorar! Nenhum de nós dois disse uma só palavra. Chris foi o primeiro a desviar os olhos e quebrar aquele choque de olhares gelados que nos imobilizava também os membros. Correu na direção da escada, mas, a meio caminho, parou para voltar-se e dirigir-me um olhar carregado de ultraje e repulsa. Eu quis morrer!

Fui espiar Carrie, que dormia profundamente, abraçada ao seu novo vestido de veludo vermelho. Depois estendi-me em minha cama tentando imaginar o que deveria dizer a Chris para consertar novamente as coisas entre nós. Por que sentia, em meu coração, que o estava traindo? Por quê?

O dia seguinte ao Natal foi dedicado a trocar os presentes de que não havíamos gostado, as roupas que não nos serviam. Temi aproximar-me de Chris, que estava no jardim aparando ferozmente as roseiras com um alicate de podar. Mesmo assim obriguei-me a procurá-lo.

— Chris, preciso conversar com você e explicar certas coisas.

Ele explodiu:

— Paul não tinha o direito de dar-lhe um casaco de pele! Um presente assim faz você parecer uma amante sustentada por ele! Cathy, devolva-lhe o casaco! E, acima de tudo, pare de fazer o que anda fazendo com Paul!

Em primeiro lugar, tomei-lhe das mãos o alicate de podar, antes que ele estragasse as lindas rosas de Paul.

— Chris, não é tão errado como você imagina. Compreenda... Paul e eu... bem, pretendemos casar-nos na primavera. Nós nos amamos; portanto, nada existe de errado no que fazemos. Não é um namoro que será esquecido amanhã; necessitamos mutuamente um do outro.

Aproximei-me mais quando ele me deu as costas para esconder a expressão do rosto.

— Assim também é melhor para você e eu — acrescentei baixinho.

Passei-lhe os braços pela cintura, girando-o a fim de ver-lhe o rosto. Chris parecia atordoado, como um homem saudável que é informado repentinamente de ser portador de uma doença incurável e perde bruscamente toda a esperança.

— Ele é velho demais para você!

— Eu o amo.

— Então, você o ama. E quanto à sua carreira? Pretende jogar fora todos aqueles anos de sonhos e de trabalho? Vai quebrar sua promessa? Lembre-se de que juramos um ao outro perseguirmos nossos objetivos e não permitirmos que aqueles anos perdidos interferissem.

— Paul e eu discutimos o assunto. Ele compreende. Julga que pode conciliar tudo...

— Ele julga? O que sabe um médico a respeito da vida de uma bailarina? Você jamais estará com ele. Ele permanecerá aqui, enquanto você andará só Deus sabe por onde, com homens da sua própria idade. Você nada deve a Paul, Cathy! Nada! Nós lhe pagaremos de volta cada centavo que ele gastou conosco. Dar-lhe-emos o respeito que ele merece, e todo o amor, mas você não lhe deve sua vida!

— Não devo? — indaguei num sussurro, doendo por dentro por causa de Chris. — Pois acho que devo a ele minha vida. Você sabe como eu me sentia quando aqui cheguei: julgava que ninguém merecia afeição ou confiança. Esperava que o mundo nos reservasse o pior e isso teria ocorrido se não fosse Paul. E eu não o amo apenas pelo que ele fez por nós. Amo-o por causa de quem e o que ele é. Chris, você não o vê da mesma maneira que eu.

Chris virou-se bruscamente, arrancando-me o alicate das mãos.

— E quanto a Julian? Vai casar-se com Paul e dançar com Julian? Sabe que Julian é louco por você. Está escrito nele, em cada um de seus gestos, em sua maneira de olhá-la, no modo dele tocá-la.

Recuei, chocada. Chris não falava apenas de Julian.

— Sinto muito se isto lhe estragou o feriado, mas você também arranjará outra — repliquei. — Gosta de Paul; sei que gosta. Depois de refletir melhor sobre o assunto, compreenderá que ele e eu servimos um para o outro, a despeito da diferença de idades, a despeito de tudo.

Afastei-me deixando Chris no jardim com o alicate de podar.

Paul levou-me de carro a Greenglenna enquanto Carrie ficava em casa divertindo-se com o novo aparelho de TV em cores e todos os seus novos brinquedos e roupas. Paul tagarelou alegremente a respeito da festa que planejara oferecer a todos nós naquela noite, em seu restaurante predileto.

— Gostaria de ser egoísta e deixar Chris e Carrie em casa, mas quero que estejam presentes quando eu lhe colocar no dedo o anel de noivado.

Fixei os olhos no panorama de inverno que passava lá fora, as árvores desfolhadas, o capim escurecido, as casas bonitas com decorações natalinas e luzes acesas após o escurecer. Agora eu fazia parte do espetáculo; deixara de ser uma espectadora trancada a distância. Não obstante, sentia-me tão dilacerada e infeliz.

— Cathy, está sentada ao lado do homem mais feliz do mundo!

E eu deixara no jardim da casa dele um homem que se sentia tão infeliz quanto eu.

Eu tinha na bolsa um anel que comprara para Carrie em Nova York: um pequeno rubi para um dedo muito minúsculo e, apesar disso, largo demais para todos os dedos dela com exceção dos polegares. Quando eu me encontrava no melhor departamento de joalheria da melhor loja da cidade, discutindo com o vendedor um meio de diminuir o tamanho do anel sem estragar a cravação do rubi, escutei repentinamente uma voz conhecida! Uma voz doce, grave, cultivada. Como em câmera lenta, virei cautelosamente a cabeça.

Mamãe! Em pé bem junto a mim! Se ela estivesse sozinha, talvez percebesse minha presença, mas encontrava-se tão distraída em conversar com uma acompanhante vestida de maneira tão elegante quanto ela. Eu mudara consideravelmente desde que minha mãe me vira pela última vez; mesmo assim, se ela me olhasse certamente teria que saber quem eu era. As duas falavam da festa à qual tinham comparecido na noite anterior.

— Francamente, Corrine, Elsa leva o tema festivo a um extremo ultrajante, todo aquele vermelho!

Festas! Era tudo que ela fazia: ir a festas! Meu coração começou a bater em ritmo de galope. Minha animação se desfez, esvaziada pela decepção. Uma festa, eu deveria ter previsto! Ela jamais ficava em casa para assistir à televisão! Não me vira! Oh! Como fiquei furiosa! Virei-me para obrigá-la a ver-me!

Um pequeno espelho vertical no mostruário de vidro refletia-lhe o perfil, mostrando-me o quanto ela ainda era bela. Parecia um pouco mais velha, mas, não obstante, linda. Os cabelos louros penteados para trás davam ênfase à perfeição do nariz pequeno e bem delineado, os carnudos lábios vermelhos, os cílios longos e naturalmente escuros, realçados pela maquilagem. Os olhos faiscavam como ouro e brilhantes verdadeiros... e ela falava:

— Será que poderia mostrar-me algo exatamente apropriado para uma jovem bonita? — indagou à vendedora. — Algo de bom-gosto, sem muita fantasia nem grande demais, que uma jovem possa guardar com orgulho pelo resto da vida?

Quem? A que jovem ela precisava dar presentes? Cheia de ciúmes vi-a escolher um lindo relicário de ouro muito semelhante ao que Chris me dera! Trezentos dólares! Agora, nossa querida mãe esbanjava dinheiro com presentes para uma jovem que não era sua filha, esquecendo-se de nós! Pensaria em nós, tentando adivinhar como conseguíamos viver? Como conseguiria dormir à noite, quando o mundo era tão frio, feio e cruel para crianças abandonadas à própria sorte?

Ao que pude perceber, minha mãe era completamente desprovida de remorsos ou sentimentos de culpa. Talvez milhões de dólares pudessem ter tal resultado, pregando um sorriso de satisfação em seu rosto, a despeito do que havia por baixo da máscara. Tive ímpetos de falar e ver a pose desmoronar! Queria que aqueles sorrisos caíssem como casca velha de um tronco, revelando-a à amiga como ela realmente era: um monstro desalmado! Uma assassina! Uma fraude! Mas fiquei calada.

— Cathy — disse Paul, aproximando-se por detrás de mim e pousando as mãos nos meus ombros. — Já devolvi tudo. E você, Está pronta para irmos, agora?

Desejei desesperadamente que minha mãe me visse em companhia de Paul, um homem que nada ficava a dever, em beleza, ao seu querido “Bart”. Tive vontade de gritar: Está vendo? Também sou capaz de atrair homens inteligentes, bondosos, educados e bonitos! Olhei depressa para mamãe, a fim de verificar se ela escutara Paul dizer-me o nome, na esperança de deleitar-me com sua atordoada surpresa, seu remorso e vergonha. Entretanto, ela se afastara ao longo do balcão e, se ouviu o nome Cathy, nem virou a cabeça. Por um motivo com o qual não atinei, solucei.

— Você está bem, querida? — indagou Paul, vendo-me no rosto algo que lhe causou espanto e preocupação. — Não está mudando de idéia a nosso respeito, está?

— Não! Claro que não! — neguei de imediato.

Contudo, estava mudando de idéia a respeito de mim. Por que não fizera alguma coisa? Por que, desta feita, não esticara o pé para fazê-la tropeçar? Então, poderia vê-la esparramar-se no chão, perdendo a pose talvez. Mamãe era bem capaz de cair graciosamente e fazer que todos os homens na loja corressem para ajudá-la, até mesmo Paul.

Estava me vestindo para a grande festa no The Plantation House quando Chris entrou no meu quarto e mandou Carrie retirar-se.

— Vá assistir à TV — ordenou ele em tom mais áspero do que eu jamais o ouvira usar com ela. — Quero conversar com sua irmã.

Carrie lançou-nos um olhar esquisito antes de sair depressa do quarto. Tão logo Carrie fechou a porta atrás de si, Chris avançou para mim, segurando-me os ombros. Sacudiu-me com violência.

— Vai continuar esta farsa? Você não o ama! Você ainda me ama! Tenho certeza! Cathy, por favor, não faça isso comigo! Sei que tenta libertar-me casando-se com Paul, mas isso não é motivo suficiente para casar-se com um homem.

Baixou a cabeça, largou-me os ombros e pareceu terrivelmente envergonhado. Falou tão baixo que fui obrigada a aguçar os ouvidos para escutar-lhe as palavras.

— Sei que é errado o que sinto por você. Sei que deveria tentar encontrar outra pessoa, como você vem fazendo... mas não consigo deixar de amá-la e desejá-la. Vivo pensando nisso, dia e noite. Sonho com você durante a noite; quero acordar e vê-la no quarto comigo. Quero ir para a cama e saber que você lá estará, bem perto, onde poderei vê-la, tocá-la.

Não pôde conter um soluço antes de continuar:

— Não consigo pensar em você com outro homem! Que diabo, Cathy, eu a quero para mim! De qualquer modo, você não pretende ter filhos, portanto, por que não pode ser eu?

Eu me afastara quando ele me largou os ombros. Quando parou de falar, corri para abraçá-lo e ele se agarrou a mim como se eu fosse a única mulher capaz de impedir que se afogasse. E se eu fizesse o que ele queria, afogar-nos-íamos ambos!

— Oh! Chris, o que posso dizer? Mamãe e Papai cometeram um erro ao se casarem e nós tivemos que pagar por esse erro. Não podemos correr o risco de repeti-lo!

— Podemos, sim! — exclamou ele com fervor. — Não precisamos manter um relacionamento sexual! Podemos apenas viver juntos, estarmos juntos, sermos apenas irmão e irmã, com Carrie, também. Por favor, por favor, eu lhe suplico: não se case com Paul!

— Cale a boca! — berrei. — Deixe-me em paz!

Agredi-o, então, desejando magoá-lo da mesma forma como cada uma de suas palavras me magoara.

— Chris, você me faz sentir tão culpada, tão envergonhada! Fiz o possível por você quando éramos prisioneiros. Talvez nos voltássemos um para o outro, mas só porque não existia mais ninguém! Se existisse, você nunca teria me desejado e eu nunca lhe teria lançado um segundo olhar! Você é apenas um irmão para mim, Chris, e faço questão de mantê-lo em seu devido lugar... que não é na minha cama!

Então ele me tomou nos braços e não pude deixar de agarrar-me a ele, apertando o rosto contra seu coração latejante. Chris tinha dificuldade para conter as lágrimas. Eu queria que ele esquecesse... mas cada segundo que ele me apertava contra si fazia crescer-lhe as esperanças, e ele ficou excitado! Ele, que julgava podermos viver juntos platonicamente!

— Largue-me, Chris. Mesmo que me ame pelo resto da vida, nunca mais me fale no assunto, pois nunca mais quero ouvir falar dele! Amo Paul e nada que você disser me impedirá de casar-me com ele!

— Está mentindo para si mesma — disse ele, engasgado, segurando-me ainda com mais força. — Percebo que você me observa antes de desviar os olhos. Você me deseja e deseja Paul. Quer tudo e todos! Não estrague a vida de Paul, pois ele já sofreu bastante! É velho demais para você e a idade faz diferença! Ele estará velho e sexualmente esgotado quando você atingir o auge! Ora, até mesmo Julian seria melhor que ele!

— Você é um grande imbecil, se acredita nisso!

— Então, sou imbecil! Sempre fui, não é mesmo? Quando lhe dei meu amor e depositei em você minha confiança, cometi o maior erro de minha vida, não foi? A seu modo, é tão desalmada quanto nossa mãe! Deseja todo homem que a atrai, sem ligar para as conseqüências... mas eu permitiria que você tivesse quem bem entendesse, desde que sempre voltasse para mim!

— Christopher, sente ciúmes porque encontrei antes de você outra pessoa para amar! E não fique aí me fitando com esses gelados olhos azuis, pois já teve seus casos de amor! Sei que dormiu com Yolanda Lange e só Deus sabe com quantas outras. O que disse a elas? Disse-lhes também que as amava? Bem, eu não o amo agora! Amo Paul e você nada pode fazer para impedir nosso casamento!

Chris ficou imóvel, pálido e trêmulo. Então, disse num sussurro rouco:

— Posso, sim. Posso contar a ele o que fizemos... Então, ele não desejaria você.

— Você não lhe contaria. É honrado demais para isso. Ademais, ele já sabe.

Encaramo-nos por longo tempo... então, ele saiu correndo do quarto, batendo a porta com tanta força que abriu uma fenda no reboco do teto.

Apenas Carrie fez companhia a Paul e a mim no The Plantation House.

— É uma pena que Chris não esteja passando bem. Espero que não esteja gripado... Há uma epidemia na cidade.

Não respondi coisa alguma, limitando-me a ficar sentada escutando Carrie tagarelar incessantemente sobre o quanto gostava do Natal e a maneira que este fazia as coisas comuns ficarem tão bonitas.

Paul enfiou-me no dedo um anel com um brilhante de dois quilates, enquanto o fogo crepitava na lareira e a música suave enchia o ambiente. Fiz o possível para tornar a situação agradável, rindo, sorrindo, trocando prolongados olhares românticos quando tomávamos champanhe, brindando a nós mesmos e ao nosso longo e feliz futuro juntos. Dancei com Paul sob os gigantescos lustres de cristal, mantendo-me de olhos fechados e imaginando Chris sozinho em casa, enfurnado em seu quarto e odiando-me.

— Seremos tão felizes, Paul — murmurei, nas pontas dos pés em minhas sandálias prateadas de salto alto.

Sim, aquela seria a nossa vida juntos. Calma. Doce. Fácil. Exatamente como a gostosa valsa antiga que dançávamos. Porque quando se ama de verdade não existem problemas que o amor não seja capaz de sobrepujar. Eu... e minhas idéias.

 

                                                                                  CONTINUA  

 

                      

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