Biblio VT
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
CONTINUA
1931
Homens jogavam damas sem pressa no restaurante do Hôtel de la Paix, em Lausanne. A depressão tornara-se explícita nos jornais americanos e queríamos voltar para casa.
No entanto, fomos a Annecy por duas semanas no verão, e no final decidimos que nunca mais voltaríamos lá porque aquelas semanas tinham sido tão perfeitas que nenhum outro período poderia se comparar a elas. Primeiro ficamos no Beau-Rivage, um hotel coberto de roseiras escandentes com uma plataforma de mergulho encravada debaixo de nossa janela, entre o céu e o lago, mas havia moscas enormes ali, então nos mudamos para Menthon, do outro lado do lago. Ali a água era mais verde, as sombras grandes e frias e os jardins irregulares subiam, oscilantes, os degraus do precipício até o Hôtel Palace. Jogamos tênis nas quadras de saibro e tentamos pescar de cima de uma mureta de tijolos. O calor do verão fazia ferver a resina nas termas de pinho branco. À noite caminhávamos até um café decorado com lanternas japonesas, os sapatos brancos brilhando como se fossem radioativos na escuridão úmida. Era como nos bons tempos, quando ainda acreditávamos em hotéis de veraneio e na filosofia das canções populares. Numa outra noite dançamos uma valsa vienense, rodopiando sem parar.
No Caux Palace, mil metros suspensos no ar, dançamos à hora do chá sobre o piso de tábuas irregular de um pavilhão e encharcamos nossas torradas com o mel da montanha.
Quando passamos por Munique, o Regina-Palast estava vazio. Deram-nos uma suíte onde se alojavam os príncipes no tempo em que a realeza viajava. Os jovens alemães que espreitavam as ruas mal iluminadas tinham um ar sinistro — as conversas ao som das valsas nas cervejarias ao ar livre versavam sobre guerra e tempos difíceis. Thornton Wilder nos levou a um famoso restaurante em que a cerveja fazia jus aos canecos de prata em que era servida. Fomos ver as apreciadas testemunhas de uma causa perdida; nossas vozes ecoaram pelo planetário e ficamos desorientados na apresentação cósmica azul-escura sobre como são as coisas.
Em Viena, o Bristol era o melhor hotel, e ficaram contentes com a nossa presença, porque ele também estava vazio. Nossa janela dava para o barroco embolorado da Ópera, sobre a copa de olmos desolados. Jantamos no hotel da viúva Sacher — do painel de carvalho pendia uma gravura de Franz Joseph indo para algum lugar mais alegre, muitos anos atrás, numa carruagem; um dos Rothschild jantava atrás de um biombo de couro. A cidade já era pobre, ou ainda era pobre, e os rostos se mostravam a nós importunados e na defensiva.
Ficamos alguns dias no Vevey Palace, no lago de Genebra. As árvores do jardim eram as mais altas que já tínhamos visto, e aves enormes e solitárias esvoaçavam sobre a superfície do lago. Ao longe havia uma prainha alegre com um bar moderno onde nos sentávamos na areia e discutíamos o que comer.
Voltamos a Paris de carro, ou seja, instalados, nervosos, em nosso Renault de seis cavalos. No famoso Hôtel de la Cloche, em Dijon, conseguimos um bom quarto com um banheiro de uma complicação mecânica infernal, à qual o camareiro se referia com orgulho como encanamento americano.
Em Paris pela última vez, nos instalamos na pompa decadente do Hôtel Majestic. Fomos à Exposição e nossa imaginação foi subjugada por fac-símiles dourados de Bali. Arrozais inundados solitários em ilhas remotas solitárias nos contaram uma história repetitiva de trabalho e morte. A justaposição de tantas réplicas de tantas civilizações era confusa e deprimente.
De volta aos Estados Unidos, ficamos no New Yorker porque os anúncios diziam que era barato. Por toda parte, a calma tinha sido sacrificada à correria e, por um momento, aquele mundo pareceu impossível, embora reluzente quando visto do telhado ao azul do crepúsculo.
No Alabama, as ruas estavam sonolentas e distantes, e um realejo emitia numa sonoridade entrecortada as músicas de nossa juventude. Como havia doentes na família e a casa estava cheia de enfermeiras, ficamos no novo e refinado Jefferson Davis. As velhas casas perto do centro comercial estavam caindo aos pedaços. Novos chalés se alinhavam nas avenidas ladeadas de cedros na periferia; maravilhas floresciam sob o velho cervo de ferro, e tuias emolduravam o afetado caminho de tijolos, enquanto um mato robusto estufava o calçamento. Nada acontecia ali desde a Guerra Civil. Todos tinham esquecido por que o hotel fora construído, e o recepcionista nos deu três quartos e quatro banheiros por nove dólares a diária. Usamos um deles como sala de estar, pois assim os carregadores teriam um lugar para dormir quando os chamássemos.
1932
No maior hotel de Biloxi, lemos o Gênesis e observamos o mar cobrir a praia deserta com um mosaico de galhos pretos.
Fomos à Flórida. Os pântanos desolados eram pontilhados por advertências bíblicas em prol de uma vida melhor; barcos de pesca abandonados se desintegravam ao sol. O Don Cesar Hotel, em Pass-a-Grille, se espichava lânguido sobre a imensidão pontilhada de tocos, subordinando sua forma ao brilho cegante do golfo. Conchas opalescentes faziam o pôr do sol convergir para a praia, e as pegadas de um cachorro abandonado na areia molhada proclamavam sua reivindicação de um caminho livre em torno do oceano. À noite, caminhávamos discutindo a teoria pitagórica dos números, e de dia pescávamos. Lamentamos pelos chernes e olhetes — era uma brincadeira tão fácil que nada tinha de esporte, afinal. Lendo Sete contra Tebas, nos bronzeamos numa praia deserta. O hotel estava quase vazio, e havia tantos garçons querendo ir embora que mal conseguíamos fazer nossas refeições.
1933
O quarto do Algonquin se elevava entre as cúpulas douradas de Nova York. Sinos davam as horas que ainda tinham de penetrar nas ruas sombreadas do cânion. Fazia muito calor no quarto, mas os carpetes eram macios e o aposento estava isolado por corredores escuros do outro lado da porta e por fachadas reluzentes do outro lado da janela. Levamos muito tempo nos arrumando para ir a teatros. Vimos quadros de Georgia O’Keefe, e foi uma experiência profundamente emocionante abandonar-nos àquela aspiração sublime tão bem traduzida em eloquentes formas abstratas.
Durante anos tínhamos desejado ir às Bermudas. Fomos. O Elbow Beach Hotel estava cheio de casais em lua de mel que se olhavam nos olhos, radiantes, com tanta insistência que nós, cinicamente, nos mudamos de lá. O Hotel St. George era bom. Buganvílias caíam em cascata pelos troncos das árvores, e escadarias longas passavam por mistérios profundos que aconteciam atrás das janelas dos nativos. Gatos dormiam ao longo da balaustrada e crianças adoráveis cresciam. Andamos de bicicleta em pistas castigadas pelo vento e fitamos com assombro onírico o fenômeno dos galos ciscando entre flores-de-mel. Bebemos xerez montados nos lombos ossudos dos cavalos amarrados na praça pública. Tínhamos viajado bastante, pensamos. Talvez essa seria nossa última viagem por um longo tempo. Achamos que as Bermudas seriam um bom lugar para pôr fim a muitos anos de andanças.
Quando, há alguns anos, li um conto de Ernest Hemingway intitulado “Now I Lay Me” [Agora me deito], achei que não havia mais nada a ser dito sobre a insônia. Agora vejo que foi porque eu nunca tinha tido muita falta de sono; é como se a insônia de cada homem fosse diferente da insônia de seu vizinho, assim como suas esperanças e aspirações diurnas.
Mas se a insônia vai ser um dos predicados de uma pessoa, ela começa a aparecer lá pelos trinta e tantos. Aquelas sete preciosas horas de sono de repente se dividem em duas partes. Se a pessoa tiver sorte, há o “primeiro doce sono da noite” e o último sono profundo da manhã, mas entre os dois aparece um intervalo sinistro e cada vez maior. Esse é o tempo sobre o qual o salmista escreveu: Scuto circumdabit te veritas eius: non timebis a timore nocturno, a sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris.1
Com um conhecido meu o problema começou com um rato; no meu caso, costumo atribuí-lo a um simples mosquito.
Meu amigo estava abrindo sua casa de campo sozinho e, depois de um dia exaustivo, descobriu que a única cama usável era de criança — normal no comprimento, mas pouco mais larga que um berço. Prostrou-se nela e imergiu profundamente no repouso, mas com um braço incontrolavelmente caído ao lado do berço. Horas mais tarde ele acordou com o que parecia ser uma espetadela de alfinete no dedo. Sonolento, mudou a posição do braço e pegou no sono outra vez — e mais uma vez foi acordado com a mesma sensação.
Dessa vez ele acendeu a luz de cabeceira — e lá estava, atracado com a ponta de um dedo que sangrava, um pequeno e ávido camundongo. Em suas próprias palavras, meu amigo “soltou uma exclamação”, mas é mais provável que tenha dado um urro selvagem.
O camundongo soltou a presa. Estivera empenhado na tarefa de devorar o homem todo, como se o sono dele fosse permanente.
A partir de então, surgiu o risco de o sono de meu amigo não ser sequer temporário. A vítima sentou-se tremendo, e muito, muito cansada. Pensou em mandar fazer uma gaiola que se encaixasse na cama e dormir dentro dela pelo resto da vida. Mas era muito tarde para conseguir uma gaiola naquela mesma noite, e ele finalmente adormeceu, para acordar apavorado de quando em quando por causa de sonhos em que era o flautista de Hamelin e os ratos se voltavam contra ele.
Desde então, nunca mais conseguiu dormir sem um cachorro ou um gato no quarto.
Minha experiência pessoal com pragas noturnas ocorreu num período de profunda exaustão — trabalho demais a fazer, agravado por contingências que tornavam o trabalho duplamente cansativo, doenças próprias e em pessoas próximas —, a velha história da desgraça que nunca vem sozinha. E como planejei aquele sono que coroaria o fim da batalha! Como ansiei por relaxar numa cama macia como uma nuvem e estável como uma sepultura! Um convite para um jantar a dois com Greta Garbo teria me deixado indiferente.
Mas se tal convite tivesse sido feito, eu faria bem em aceitá-lo, já que em vez disso jantei sozinho, ou melhor, fui jantado por um mosquito solitário.
É espantoso como um único mosquito pode ser muito pior que um enxame. O enxame pode ser combatido, mas um mosquito sozinho assume uma personalidade — uma hostilidade, uma sinistra característica de luta até a morte. Essa personalidade apresentou-se sozinha, em setembro, no vigésimo andar de um hotel de Nova York, tão fora de propósito quanto um tatu. Com o corte das verbas destinadas à drenagem dos pântanos de Nova Jersey, ele e outros jovens mosquitos migraram para estados vizinhos em busca de alimento.
A noite estava quente — mas depois do primeiro embate, marcado por tapas erráticos no ar, por buscas infrutíferas, por castigar minhas próprias orelhas uma fração de segundo tarde demais, recorri à antiga fórmula e cobri a cabeça com o lençol.
E assim continuou a velha história, com picadas através do lençol, ataques a partes expostas da mão que mantinha o lençol no lugar, o recurso ao cobertor com a consequente asfixia — tudo seguido da mudança psicológica de atitude, cada vez mais desperto, furioso e impotente —, finalmente, uma segunda caçada.
Esta inaugurou a fase maníaca: rastejar para debaixo da cama usando a luminária como lanterna, percorrer o quarto todo para concluir que o inseto tinha se refugiado no teto e atacar com toalhas amarradas, os ferimentos autoinfligidos... Meu Deus!
Depois disso, houve uma breve convalescença da qual meu adversário parecia ter consciência, porque encarapitou-se insolente num dos lados da minha cabeça, mas eu o perdi mais uma vez.
Afinal, depois de mais meia hora que castigou meus nervos a ponto de levá-los a um frenético estado de alerta, deu-se a vitória pírrica, com a pequena mancha disforme de sangue — meu sangue — na cabeceira da cama.
Como já disse, penso naquela noite de dois anos atrás como o começo da minha insônia, porque me deu a noção de quanto o sono pode ser estragado por um elemento infinitesimal incalculável. Tornou-me, para usar uma fraseologia agora arcaica, “consciente do sono”. Eu não sabia se um dia me seria permitido dormir. Eu bebia, de modo intermitente mas generoso, e nas noites em que não tomava nada a dúvida se eu dormiria ou não começava a me assombrar bem antes da hora de ir para a cama.
Uma noite normal (e gostaria de dizer que essas noites ficaram no passado) se segue a um dia particularmente sedentário de trabalho e cigarros. Termina, digamos, sem nenhum intervalo para relaxar, à hora de ir para a cama. Tudo está pronto: os livros, o copo d’água, o pijama extra para o caso de acordar banhado em suor, o tubinho de pílulas de luminol, caderno de anotações e lápis para o caso de um pensamento noturno digno de registro. (Têm sido poucos e, em geral, de manhã me parecem superficiais, o que não reduz sua força e sua urgência à noite.) Deito-me, talvez com um gorro — estou fazendo umas leituras relativamente eruditas para um trabalho, por isso escolho um livro mais leve sobre o tema e leio até cabecear com um último cigarro. Quando começo a bocejar, ponho um marcador no livro, jogo o cigarro na lareira, aperto o botão da luminária. Deito-me virado para o lado esquerdo, porque isso, segundo me disseram, aquieta o coração, e aí... o coma.
Tudo bem até agora. Da meia-noite às duas e meia, paz no quarto. E então de repente acordo, importunado por uma das dores ou funções do corpo, um sonho demasiado realista, uma mudança de temperatura.
O ajuste se faz prontamente, na vã esperança de preservar a continuidade do sono, mas não... Então, com um suspiro, acendo a luz, tomo uma minúscula pílula de luminol e reabro o livro. A noite real, a hora mais negra, começou. Estou cansado demais para ler, a não ser que tome uma bebida, o que me fará sentir mal no dia seguinte — então me levanto e ando. Saio do quarto, atravesso o corredor até o escritório, volto e, se é verão, saio para o alpendre dos fundos. Há uma névoa sobre Baltimore; não consigo ver uma só torre. De novo para o escritório, onde meu olhar cai sobre uma pilha de trabalhos inconclusos: cartas, provas de paquês, anotações etc. Começo a me encaminhar para ela, mas não! Isso seria fatal. O luminol começa a fazer um leve efeito, então experimento a cama outra vez, formando um semicírculo com a ponta do travesseiro embaixo do pescoço.
“Um dia” (digo a mim mesmo) “precisavam de um zagueiro em Princeton, e como não tinham ninguém, estavam desesperados. O treinador me viu treinando chutes e passes à beira do campo, e gritou: ‘Quem é aquele homem? Como foi que não o vimos antes?’. Seu auxiliar respondeu: ‘Ele não tinha aparecido’, e a resposta foi: ‘Tragam-no aqui’.”
“... vamos para o dia do jogo contra Yale. Peso só sessenta quilos, então eles me poupam até o terceiro tempo, com o placar de...”
Mas não teve jeito — durante quase vinte anos, usei o sonho de um sonho derrotado para induzir o sono, mas ele acabou se esgotando. Já não posso contar com ele — embora até agora, em noites mais fáceis, ele me traga certa calma...
Então vamos passar para o sonho de guerra: os japoneses estão ganhando por toda parte — minha divisão está em frangalhos e na defensiva, numa parte de Minnesota em que conheço cada palmo do terreno. Os oficiais superiores e os comandantes de batalhão que se reuniam no quartel tinham sido mortos por uma bomba. O comando recaiu sobre o capitão Fitzgerald. Com sua soberba presença...
Já chega — isso também se esgotou depois de anos de uso. O personagem que leva meu nome tornou-se indiscernível. No fim da noite, sou apenas um dentre os obscuros milhões que avançam em ônibus pretos rumo ao desconhecido.
De volta ao alpendre dos fundos, condicionado por um cansaço mental intenso e um alerta perverso do sistema nervoso — como um arco com fios partidos sobre um violino soluçante —, vejo o verdadeiro horror se desenvolvendo sobre as cumeeiras, e nas buzinas barulhentas dos táxis noturnos e na cantilena estridente da chegada dos boêmios pela rua. Horror e desperdício...
Desperdício e horror... o que eu poderia ter sido e feito que está perdido, gasto, passado, dissipado, irrecuperável. Eu poderia ter agido assim, me abstido daquilo, sido arrojado onde fui tímido, cauteloso onde fui precipitado.
Não deveria tê-la magoado daquela forma.
Nem ter dito aquilo a ele.
Nem me quebrado todo tentando quebrar o inquebrável.
O horror chegou agora como uma tempestade — e se esta noite prefigurasse a noite após a morte — e se tudo o que houvesse depois disso fosse um eterno balanço à beira de um abismo, com tudo o que há em nós de vil e depravado nos empurrando adiante, e a vileza e a depravação do mundo logo à frente. Nenhuma escolha, nenhum caminho, nenhuma esperança — só a repetição sem fim do sórdido e do semitrágico. Ou permanecer para sempre, talvez, no limiar da vida, incapaz de ir em frente ou de voltar. Agora, quando o relógio dá quatro horas, sou um fantasma.
Ao lado da cama, ponho a cabeça entre as mãos. E então o silêncio, o silêncio — e de repente — ou assim me parece em retrospecto — de repente estou dormindo.
Sono — o sono real, o querido, o estimado, o acalanto. A cama e o travesseiro me envolvem, profundos e cálidos, deixando-me mergulhar na paz, no nada — meus sonhos agora, depois da catarse das horas negras, estão cheios de gente jovem e adorável fazendo coisas jovens e adoráveis, as garotas que conheci um dia, com grandes olhos castanhos, cabelos louros autênticos.
No outono de 16, no frio da tarde de garua
Conheci Caroline sob uma branca lua
Uma orquestra — Bingo-Bango!
Tocava para dançarmos tango
E todos aplaudiram, ao irmos para a pista,
Seu meigo rosto e meus modos de artista...
A vida era assim, afinal; meu espírito alça voo no momento de seu esquecimento; depois desce, e mergulha profundamente no travesseiro...
“... Sim, Essie, sim. Oh, meu Deus, está bem, eu atendo o telefone.”
Irresistível, iridescente — eis a Aurora — eis um novo dia.
1 Salmo 91,4-6: “Sua fidelidade é escudo e couraça. Não temerás o terror da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha na treva”. (N. T.)
O melhor da literatura para todos os gostos e idades