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(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
CONTINUA
(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
CONTINUA
(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
CONTINUA
(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
CONTINUA
(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
CONTINUA
(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
CONTINUA
(Tenho agora a sensação de estar dando uma aula, olhando para um relógio sobre a mesa diante de mim e vendo quantos minutos...) Bem, ao chegar a esse período de silêncio, fui obrigado a tomar uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como era difícil! Movimentar grandes baús secretos. Na primeira parada para descanso, exausto, fiquei a me perguntar se algum dia eu já tinha pensado. Passado muito tempo, cheguei às seguintes conclusões, exatamente como as transcrevo aqui: 1) Que eu tinha pensado muito pouco, a não ser sobre os problemas de minha profissão. Durante vinte anos, um homem fora minha consciência intelectual. Esse homem era Edmund Wilson.
2) Que outro homem representava a ideia que eu fazia da “boa vida”, embora eu não o visse havia uma década, e desde então ele podia até ter sido enforcado. Ele trabalha com peles no noroeste do país e não gostaria de ver seu nome aqui. No entanto, em situações difíceis, eu tentava imaginar o que ele teria pensado, em como ele teria agido.
3) Que um terceiro contemporâneo tinha sido uma consciência artística para mim — eu não havia imitado seu estilo contagiante, pois meu próprio estilo, seja ele o que for, formou-se antes que ele publicasse seu primeiro texto, mas não havia como negar uma terrível inclinação para seu modo de escrever quando eu estava em dificuldades.
4) Que um quarto homem tinha passado a ditar minhas relações com outras pessoas quando essas relações eram bem-sucedidas: como fazer alguma coisa, o que dizer. Como fazer as pessoas se sentirem felizes ao menos por um instante (em oposição às teorias da sra. Post2 sobre como fazer todas as pessoas se sentirem radicalmente desconfortáveis com uma espécie de vulgaridade sistematizada). Isso sempre me confundia e me dava vontade de sair e me embebedar, mas esse homem tinha visto o jogo, o analisara e o vencera, e sua palavra me bastava.
5) Que minha consciência política praticamente não existira durante dez anos, a não ser como elemento de ironia no que eu escrevia. Quando voltei a me interessar pelo sistema no qual eu deveria atuar, ele me foi trazido por um homem muito mais jovem que eu, com uma mistura de paixão e frescor.
Ou seja, já não havia um “eu” — uma base sobre a qual eu pudesse organizar minha autoestima —, a não ser minha ilimitada capacidade de trabalho que, pelo visto, eu não tinha mais. Era estranho não ter um eu, ser como um menininho largado numa casa grande, que sabia que agora podia fazer tudo quanto desejasse, mas descobrisse que não havia coisa alguma que quisesse fazer...
(O relógio já passou da hora e eu mal cheguei à minha tese. Tenho algumas dúvidas se isso é de interesse geral, mas se alguém quer mais, ainda há muita coisa a dizer e o editor da revista me avisará. Se você já leu o suficiente, diga-o — mas não alto demais, porque tenho a sensação de que alguém, não sei ao certo quem, está num sono pesado — alguém que poderia ter me ajudado a manter minha loja aberta. Não foi Lênin. Nem Deus.)
1 Henry Seidel Canby (1878-1961) foi professor da Universidade Yale, editor da Literary Review do New York Evening Post (1920-4), fundador e editor da Saturday Review of Literature (1924-36) e fundador do Book of the Month Club (1926). (N. T.)
2 Emily Post (1872-1960), autora de Etiquette in Society, in Business, in Politics, and at Home (1922), ainda hoje editado, com revisões e atualizações. (N. T.)
Manuseie com cuidado
Abril de 1936
Contei nestas páginas como um rapaz de excepcional otimismo experimentou um colapso de todos os valores, um colapso de que só veio a tomar conhecimento muito tempo depois de sua ocorrência. Falei do posterior período de desolação e da necessidade de seguir em frente, mas sem a ajuda da conhecida frase grandiloquente de Henley: “minha cabeça sangra, mas não se curva”.1 Isto porque um exame de meu passivo espiritual mostrou que eu não tinha cabeça alguma que pudesse curvar ou manter ereta. Antes eu tivera um coração, mas essa era praticamente minha única certeza.
Esse era, ao menos, um ponto de partida para eu sair do atoleiro em que me debatia. “Sentia, logo existia.” Numa época ou outra, muitas pessoas tinham se apoiado em mim, me procurado devido a dificuldades ou me escrito de longe, acreditando implicitamente em meu conselho e em minha atitude diante da vida. Já que o mais obtuso apreciador de banalidades ou o mais inescrupuloso Rasputin, capaz de influenciar o destino de grande número de pessoas, deve ter certa individualidade, a questão reduzia-se a descobrir por que e onde eu tinha mudado, onde estava o vazamento pelo qual, sem que eu soubesse, meu entusiasmo e minha vitalidade haviam se escoado contínua e prematuramente.
Numa noite atormentada e desesperadora, arrumei uma maleta e viajei mil e quinhentos quilômetros para pensar no assunto. Aluguei um quarto barato numa cidadezinha sem graça, onde eu não conhecia ninguém, e gastei todo o dinheiro que levava comigo num estoque de carne enlatada, biscoitos e maçãs. Entretanto, não pretendo dar a entender que a mudança de um mundo meio atulhado demais de coisas para um relativo ascetismo fosse alguma Pesquisa Magnífica.2 Eu só queria sossego absoluto para descobrir por que eu havia desenvolvido uma atitude triste em relação à tristeza, uma atitude melancólica em relação à melancolia e uma atitude trágica em relação à tragédia — por que eu tinha me identificado com os objetos de meu horror ou de minha compaixão.
Isso parece uma distinção sutil? Não é. Uma identificação como essa representa a morte da realização. Uma coisa assim impede que pessoas saudáveis trabalhem. Lênin não suportou de bom grado os sofrimentos de seu proletariado, nem Washington os de seus soldados, nem Dickens os dos pobres de Londres. E quando Tolstói tentou uma fusão desse tipo com os objetos de sua atenção, tudo o que conseguiu foi uma farsa e um fracasso. Cito esses homens porque são conhecidos de todos nós.
Era uma névoa perigosa. Quando Wordsworth decidiu que “o encanto da terra foi embora”, não sentiu nenhuma compulsão de ir embora junto com ele, e Keats, o Partícula Faiscante,3 nunca deixou de lutar contra a tuberculose, nem renunciou, em seus últimos momentos, à esperança de estar entre os poetas ingleses.
Minha autoimolação foi uma coisa encharcada de escuridão. Muito claramente, não era moderna — no entanto, já a vi em outras pessoas, vi-a em uma dúzia de homens honrados e laboriosos desde a guerra. (Ouvi o que você disse, mas isso é fácil demais — havia marxistas entre esses homens.) Eu tinha acompanhado o caso de um famoso contemporâneo meu que brincou com a ideia de suicídio durante meio ano; observei outro, igualmente eminente, que passou meses num hospício, incapaz de suportar qualquer contato com o próximo. E se fosse o caso de listar aqueles que desistiram e passaram desta para a melhor, eu poderia relacionar umas duas dezenas.
Isso me levou a concluir que os sobreviventes tinham executado alguma espécie de fuga limpa. Essa é uma expressão altissonante e não tem nenhum paralelo com uma fuga da prisão, quando a pessoa acaba indo para outra prisão ou é obrigada a voltar para a antiga. A famosa “evasão” ou “fugir disso tudo” é uma excursão rumo a uma armadilha, mesmo que essa armadilha inclua os mares do sul, que são apenas para quem quer pintá-los ou singrá-los. Uma fuga limpa é uma coisa da qual não se volta. Voltar é impossível porque essa fuga faz com que o passado deixe de existir. Portanto, como eu não podia mais cumprir as obrigações que a vida criara para mim ou que eu estipulara para mim mesmo, por que não dar cabo da concha vazia que estivera se passando por mim durante quatro anos? Eu teria de continuar a ser escritor, porque esse era meu único meio de vida, mas poria de lado quaisquer tentativas de ser uma pessoa — ser amável, justo ou generoso. Eram muitas as moedas falsas que circulavam e que fariam as vezes dessas qualidades, e eu sabia onde consegui-las por uma pechincha. Ao longo de trinta e nove anos, meu olho observador aprendeu a detectar onde o leite é batizado com água, onde se põe areia no açúcar, onde o diamante é falso e o estuque passa por pedra. Não haveria mais doação de mim mesmo — daí em diante, toda doação deveria ser proibida e ganhar um novo nome, e esse nome era Desperdício.
A decisão deixou-me meio exuberante, como tudo o que é, ao mesmo tempo, verdadeiro e novo. Como uma espécie de começo, havia um monte de cartas a serem jogadas na cesta de lixo quando eu voltasse para casa, cartas em que me pediam alguma coisa em troca de nada — ler os originais de um homem, encaminhar o poema de outro a uma editora, falar de graça no rádio, escrever um prefácio, dar uma entrevista, ajudar no enredo de uma peça, ajudar numa situação doméstica, fazer uma ação solidária ou de caridade.
A cartola do mágico estava vazia. Tirar coisas de dentro dela havia sido durante muito tempo uma espécie de prestidigitação, e agora, variando a metáfora, eu estava pulando fora, para sempre, da função de assistente social.
A sensação de euforia e indignidade continuou.
Eu me sentia como os homens de olhos maliciosos que viajavam no trem que eu pegava todo dia em Great Neck quinze anos antes, homens que não se importavam que no dia seguinte o mundo afundasse no caos, desde que suas casas fossem poupadas. Eu me sentia como um deles agora, como um daqueles que pronunciavam frases educadas: “Sinto muito, mas negócios são negócios.” Ou: “Você devia ter pensado nisso antes de arranjar essa encrenca.” Ou: “Não sou a pessoa mais indicada para cuidar disso.”
E um sorriso. Ah, eu arranjaria um sorriso para mim. Ainda estou trabalhando nesse sorriso. Ele deve combinar os melhores atributos de um gerente de hotel, de um assistente social experiente, de um diretor de escola em dia de visita, de um ascensorista negro, de uma bichinha se mostrando, de um produtor regateando o preço das coisas e pagando a metade de seu valor de mercado, de uma enfermeira treinada começando no novo emprego, de uma modelo em sua primeira rotogravura, de um figurante esperançoso que se vê perto da câmera, de uma bailarina clássica com um dedo do pé infeccionado e, claro, o grande sorriso de gentileza carinhosa comum a todos aqueles que, de Washington a Beverly Hills, têm de viver em função do plano panorâmico.
A voz também... Estou trabalhando a voz com um professor. Quando ela se tornar perfeita, a laringe não mostrará nenhum indício de convicção, a não ser a convicção de meu interlocutor. Como ela será usada principalmente para evocar um “sim”, meu professor (um advogado) e eu estamos nos concentrando nessa palavra, mas em horas extras. Estou aprendendo a incutir nela aquela rispidez polida que faz com que as pessoas sintam que, longe de serem bem-vindas, não são sequer toleradas e estão sendo submetidas, a todo o momento, a uma análise contínua e impiedosa. Essas ocasiões naturalmente não coincidirão com o sorriso, que estará reservado exclusivamente para aqueles que não tenham nenhuma serventia para mim, como velhos decrépitos ou jovens batalhadores. Eles não ligarão — que diabos, eles já são tratados assim quase sempre.
Mas basta. Não é uma questão de leviandade. Se você for jovem e me escrever, pedindo para se encontrar comigo a fim de aprender a ser um literato soturno que escreve ensaios a respeito do estado de exaustão emocional que com frequência acomete escritores no auge de seu vigor — se você for jovem e néscio o bastante para fazer isso, eu nem sequer acusarei o recebimento de sua carta, a não ser que você seja parente de alguém muito rico e importante. E se você estivesse morrendo de fome diante de minha porta, eu sairia de imediato e lhe dirigiria o sorriso e a voz (mas não lhe daria mais a mão) e ficaria por ali até alguém arranjar uma moeda para telefonar e chamar uma ambulância, isto é, se eu achasse que ganharia alguma coisa com isso.
Agora eu me tornei, afinal, apenas um escritor. O homem que, com persistência, procurei ser tornou-se um fardo tão pesado que soltei os cachorros em cima dele com o mesmo remorso que uma negra solta os cachorros em cima de uma rival numa noite de sábado. Que as pessoas bondosas sejam boas — que os médicos sobrecarregados se matem de trabalhar, com “férias” anuais de uma semana que dedicam a resolver seus problemas familiares, e que os médicos que quase nada fazem corram atrás de casos a um dólar cada, que os soldados sejam mortos e entrem imediatamente no Valhala de sua profissão. Esse é o contrato deles com os deuses. Um escritor não precisa ter nenhum desses ideais, a não ser que os crie para si mesmo, e este aqui deu o fora. O velho sonho de ser um homem por inteiro, na tradição de Goethe, Byron e Shaw, com um opulento toque americano, uma espécie de combinação de J. P. Morgan, Topham Beauclerk e são Francisco de Assis, foi relegado à lixeira onde vão parar as ombreiras usadas por um dia pelos calouros no campo de futebol americano de Princeton e o quepe da Força Expedicionária Americana que nunca chegou a ser usado.
E daí? Eis o que penso hoje: o estado natural de um adulto senciente é uma infelicidade com reservas. Creio também que, num adulto, o desejo de ser melhor do que se é, de fazer “um esforço constante” (como dizem as pessoas que ganham a vida usando essa expressão), só aumenta essa infelicidade no final — o final a que chegam nossa juventude e nossa esperança. Minha própria felicidade, no passado, com frequência aproximava-se de tal êxtase que eu não conseguia dividi-la nem com a pessoa que mais amava, mas tinha de dissipá-la caminhando por ruas e vielas sossegadas até me restarem apenas fragmentos dela, que eu destilava em breves linhas nos livros — e acho que minha felicidade, meu talento para me iludir ou o que quer que fosse, era uma exceção. Não era o natural, e sim o inatural — tão inatural como o boom. E minha experiência recente equipara-se à onda de desespero que varreu a nação quando o boom acabou.
Darei um jeito de viver com a nova dispensa, embora eu tenha levado meses para ter certeza disso. E da mesma forma que o estoicismo sorridente, que possibilitou ao negro americano suportar as condições intoleráveis de sua existência, custou-lhe o senso da verdade, também em meu caso há um preço a ser pago. Deixei de gostar do carteiro, do merceeiro, do editor, do marido de minha prima, e eles, por sua vez, não vão gostar de mim, de modo que a vida nunca mais será muito agradável, e o letreiro Cave canem4 está afixado para sempre em minha porta. No entanto, vou tentar ser um animal correto, e se você me atirar um osso com um pouco de carne, talvez eu até lamba sua mão.
1 Verso do poema “Invictus”, do inglês William Ernest Henley (1849-1903). (N. T.)
2 Referência ao romance The Research Magnificent (1915), de H. G. Wells. (N. T.)
3 Referência a versos de Byron na 60a estrofe do canto XI de Don Juan. Aludindo ao boato de que a morte de Keats teria sido causada por uma acerba crítica na Quarterly Review, Byron escreveu: “’Tis strange the mind, that very fiery particle,/ Should let itself be snuffed out by an Article” [Surpreende a mente, que essa partícula faiscante,/ Se deixasse ser apagada por um artigo]. (N. T.)
4 Em latim, “Cuidado com o cão”. (N. T.)
Estamos casados. Papagaios proféticos protestam contra o balanço dos primeiros cabelos curtos no luxo das paredes apaineladas do Biltmore. O hotel está tentando parecer mais antigo.
Os corredores rosa-desbotados do Commodore terminam em metrôs e metrópoles subterrâneas — um homem nos vendeu um Marmon quebrado e um bando bárbaro de amigos passou meia hora girando na porta giratória.
Lilases se abriam ao amanhecer perto da pensão em Westport, onde passamos a noite toda em claro para terminar um conto. No orvalho cinzento da manhã, discutimos sobre moral e fizemos as pazes por causa de um maiô vermelho.
O Manhattan nos recebeu tarde da noite, apesar de nossa aparência muito jovem e alegre. Ingratos, enchemos a mala vazia de colheres, mais um catálogo telefônico e uma grande alfineteira quadrada.
O quarto do Traymore era cinzento, com uma poltrona grande o bastante para uma cortesã. O barulho do mar nos manteve acordados.
Ventiladores elétricos dissipavam o perfume de pêssegos e biscoitos assados, além do cheiro de cinzas dos caixeiros-viajantes, pelos corredores do New Willard, em Washington.
Mas o Hotel Richmond tinha escadaria de mármore, salões que havia muito não se abriam e estátuas de deuses em mármore, perdidas em algum ponto de seus nichos cheios de ecos.
No O. Henry, em Greensville, acharam que em 1920 um homem e sua mulher não deveriam usar as mesmas bermudas brancas, e nós achamos que a água da banheira não deveria sair lamacenta.
No dia seguinte, os lamentos de verão dos fonógrafos faziam ondular as saias das garotas sulistas no Athens. Eram tantos os cheiros nas farmácias, tanto organdi, tanta gente indo para algum lugar... Fomos embora ao amanhecer.
1921
Eram respeitosos no Cecil, em Londres; disciplinados pelos longos e majestosos pores do sol sobre o rio; e éramos jovens, mas ainda assim ficamos impressionados com os hindus e os cortejos reais.
No St. James & Albany, em Paris, empestamos o quarto com uma pele de cabra armênia sem curtir e pusemos o “sorvete” duro na janela, e havia cartões-postais sujos, mas estávamos grávidos.
No Royal Danieli, em Veneza, havia uma máquina caça-níqueis e uma oleosidade de séculos no peitoril da janela; e oficiais gentis de um contratorpedeiro americano. Nós nos divertimos numa gôndola, sentindo-nos como uma terna canção italiana.
Cortinas de bambu, um asmático reclamando da pelúcia verde e um piano de ébano estavam todos igualmente mumificados nos salões formais do Hôtel d’Italie, em Florença.
Mas havia pulgas na filigrana dourada do Grand Hôtel em Roma; homens da Embaixada britânica se coçavam atrás das palmeiras; os funcionários disseram que era tempo de pulgas.
O Claridge de Londres serviu morangos num prato dourado, mas o quarto era interno e ficava o dia todo cinzento; o garçom não se importava que fôssemos embora, e ele era nosso único contato.
No outono, fomos ao Commodore, em St. Paul, e enquanto o vento soprava as folhas pela rua nós esperávamos o nascimento de nossa filha.
1922-1923
O Plaza era um hotel memorável, agradável e quieto, com um maître tão simpático que nunca se importou em emprestar cinco dólares ou tomar emprestado um Rolls-Royce. Não viajamos muito naqueles anos.
1924
O Deux Mondes em Paris acabava num profundo pátio azul diante de nossa janela. Demos banho em nossa filha no bidê por engano, ela bebeu gim fizz achando que era limonada e estragou a mesa do almoço no dia seguinte.
Comia-se carne de cabrito no Grimm’s Park Hotel em Hyères, e a buganvília era tão delicada quanto sua cor na poeira quente e branca. Muitos soldados vagavam pelos jardins e bordéis, ouvindo música nas vitrolas automáticas. À noite, recendendo a madressilva e couro do Exército, subiam a encosta cambaleando e se instalavam no jardim da sra. Edith Wharton.
No Ruhl, em Nice, concluímos que era melhor ficar num quarto que não desse para o mar, que todos os homens escuros eram príncipes e que não poderíamos pagar pelo hotel nem mesmo fora da alta temporada. Durante o jantar no terraço, as estrelas caíam em nossos pratos e tentamos nos identificar com o lugar reconhecendo rostos vistos no barco. Mas não passava ninguém, e ficamos sozinhos com a grandiosidade azul-escura, o filé de linguado à Ruhl e a segunda garrafa de champanhe.
O Hôtel de Paris, em Monte Carlo, parecia um palácio de história de detetive. Os funcionários nos traziam coisas: ingressos e autorizações, mapas e novas identidades pomposas. Esperamos um bom tempo ao sol enquanto eles nos equipavam com tudo de que precisávamos para entrar no cassino arrumados adequadamente. Por fim, assumindo o controle da situação, mandamos de forma autoritária o mensageiro nos conseguir uma escova de dentes.
Glicínias pendiam no pátio do Hôtel d’Europe em Avignon, e a aurora retumbava em carroças de feira. Uma senhora sozinha, com roupa de lã, tomava martínis no bar soturno. Encontramos amigos na Taverne Riche e ouvimos os sinos do fim de tarde reverberando nas muralhas da cidade. O Palácio dos Papas se erguia quimericamente no entardecer dourado sobre o Rhône, largo e sereno, enquanto não fazíamos nada, com assiduidade, debaixo dos plátanos na margem oposta.
A exemplo de Henrique IV, um patriota francês dava vinho tinto a seus bebês no Continental de St. Raphaël, e como não havia tapetes, por ser verão, o eco dos protestos das crianças soava agradável em meio ao entrechocar de pratos e porcelanas. Nessa altura, conseguíamos identificar algumas palavras de francês e nos sentíamos parte do país.
O Hôtel du Cap, em Antibes, estava quase deserto. O calor do dia se prolongava nos blocos azuis e brancos da varanda, na qual aquecíamos nossas costas bronzeadas em grandes espreguiçadeiras de lona que nossos amigos haviam espalhado por ali, enquanto inventávamos novos coquetéis.
O Miramare, em Gênova, adornava a curva escura da praia com guirlandas de luzes, e a forma das colinas era resgatada da escuridão pelo clarão vindo das janelas dos hotéis mais altos. Pensamos nos homens que desfilavam entre os arcos alegres como Carusos desconhecidos, mas todos eles nos garantiam que Gênova era uma cidade de negócios e muito parecida com os Estados Unidos e Milão.
Chegamos a Pisa no escuro e não conseguimos encontrar a torre inclinada até passarmos por ela por acaso, ao deixar o Royal Victoria já na saída. Ela se elevava absoluta e por si mesma. O Arno estava barrento e nem de longe tão insistente quanto nas palavras cruzadas.
A mãe de Marion Crawford morreu no Hotel Quirinal, em Roma. Todas as camareiras se lembram disso e contam aos visitantes que depois forraram o quarto com jornais. As salas de estar são hermeticamente fechadas, e palmeiras obstruem o caminho que leva até as janelas abertas. Ingleses de meia-idade cochilam no ar viciado e mordiscam amendoins salgados e rançosos com o famoso café do hotel, que jorra de um instrumento semelhante a um realejo e é servido cheio de resíduos, como as bolas de vidro que, sacudidas, provocam tempestades de neve.
No Hôtel des Princes, em Roma, onde passamos a queijo Bel Paese e vinho Corvo, fizemos amizade com uma agradável solteirona que pretendia ficar hospedada ali até terminar uma história dos Bórgia em três volumes. Os lençóis eram úmidos, e as noites trespassadas pelo ronco das pessoas do quarto ao lado, mas não ligávamos porque podíamos voltar para casa descendo as escadarias até a via Sistina, e havia junquilhos e pedintes pelo caminho. Na época, éramos arrogantes demais para recorrer a guias de turismo e pretendíamos descobrir as ruínas por nós mesmos, o que fizemos depois de esgotar a vida noturna, os mercados e o campo. Gostávamos do Castello Sant’Angelo por causa de sua forma redonda misteriosa, do rio e dos escombros sobre sua base. Foi emocionante nos perder nos séculos ao anoitecer romano e nos orientar pelo Coliseu.
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