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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PLANÍCIE DE PASSAGEM / J. M. Auel
PLANÍCIE DE PASSAGEM / J. M. Auel

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A mulher percebeu de relance que havia movimento à frente, embora não pudesse ver muito bem através da poeira. Ficou pensando se não seria o lobo que vira correndo adiante deles, cedo.

Lançou um olhar ao companheiro, com uma ruga de preocupação na testa. Depois, se esforçou para divisar de novo o lobo, firmando a vista além da poeira.

Jondalar! Veja! — disse, apontando.

Para a esquerda, o contorno impreciso de várias tendas cónicas podia ser agora entrevisto, apesar do vento que levantava muita poeira.

O lobo tocaiava algumas criaturas de duas pernas que tinham começado a materializar-se no ar, portando lanças que apontavam diretamente para eles.

Acho que alcançamos o rio, Ayla, mas temo que não sejamos os únicos com a intenção de acampar à margem dele — disse o homem, segurando o cavalo.

A mulher parou a montaria com uma leve pressão da coxa. O gesto era automático, como um reflexo. Sequer precisava pensar para controlar o animal.

Logo ouviu um rosnado de ameaça no fundo da garganta do lobo e sentiu que sua postura já não era de defesa. Ele estava pronto para o ataque! Ayla assoviou, um assovio agudo, característico, semelhante a um pio de ave, mas de uma ave que ninguém jamais escutara. O lobo deixou sua postura de combate e veio aos saltos em direção à mulher, escarranchada em cima da égua.

 

 

 

 

Lobo, rente! — disse Ayla, mostrando com a mão. E o lobo se pôs a trotar, obediente, ao lado da égua, de um pardo baço, tirante a amarelo. Mulher e homem, então, emparelhados, avançaram devagarinho para os desconhecidos, postados entre eles e as barracas.

Um vento forte e intermitente, cheio de fino loess em suspensão, rodopiava em torno deles, impedindo que vissem direito os homens das lanças. Ayla ergueu a perna e deixou-se escorregar por trás, pela anca da égua. No chão, ajoelhou-se junto do lobo, passou um braço por cima das costas dele e outro no peito, para acalmá-lo, e detê-lo, se preciso fosse. Podia sentir o rosnido surdo do animal e a tensão dos músculos prontos Para o salto. Olhou depois para Jondalar. Uma fina camada de pó cobria os ombros do homem e seus cabelos da cor de linho e clareava o pelame castanho do cavalo, que ficava quase do tom mais comum na sua raça cor de canela. Ele e Huiin se pareciam. Embora estivessem ainda no começo do verão, os fortes ventos do maciço glaciar do norte já começavam a ressecar a estepe numa larga faixa ao sul do gelo.

Ela viu que o lobo se retesava contra o seu braço. Outra pessoa surgira por trás dos lanceiros, vestida como Mamute o faria para uma cerimônia importante, com máscara, chifres de auroque, e roupas pintada e decoradas com símbolos enigmáticos.

O Mamutói sacudiu um bastão na cara deles e gritou:

Vão embora, espíritos maus! Deixem este lugar!

Ayla achou que a voz era de mulher, falando através da máscara mas não podia ter certeza disso. As palavras, no entanto, haviam sido ditas em Mamutói. A figura adiantou-se de novo, brandindo o bastão e Ayla segurou o lobo. Mas então a criatura fantasiada se pôs a salmodiar uma cantilena e a dançar, sacudindo no ar o bastão, correndo par; eles e retrocedendo rapidamente, como se quisesse assustá-los ou expulsa los, e conseguindo, pelo menos, espantar os cavalos.

Ela se surpreendia, vendo Lobo disposto a atacar. Os lobos não costumam atacar gente. Lembrando-se, porém, do comportamento observado antes, achou que entendia. Ayla muitas vezes estudara os lobos quando aprendia sozinha a caçar. Sabia o quanto eles se afeiçoavam! o quanto eram leais com a sua própria alcateia. Mas também sabia que ram rápidos quando se tratava de expulsar estranhos, e que até matavam outros lobos para proteger aqueles que consideravam como seus.

Para o pequenino filhote que ela encontrara e levara consigo par; a caverna dos Mamutói, o Acampamento do Leão era a sua alcateia. Ou trás pessoas seriam como lobos estranhos para ele. Já havia rosnado para gente que não conhecia e que viera de visita, ainda em pequeno. Agora, em território desconhecido, pertencente, talvez, a outra malta, era natural para ele uma atitude de defesa, sobretudo em face de estranhos armados de lanças. Por que a gente daquele acampamento usara lanças?

Ayla notou algo de familiar na cantilena e logo descobriu o que era As palavras pertenciam à língua sagrada e arcaica dos Mamutói, que só eles compreendiam. Ayla sabia pouco, Mamute apenas começara a ensinar-lhe a língua quando ela partira. Mas era capaz de perceber o sentido geral é canto, que era o mesmo do que fora dito antes, apenas vazado em termos mais persuasivos. Tratava-se, em suma, de uma exortação ao lobo estranho e aos espíritos montados para que se fossem e os deixassem em paz. Para que regressassem ao reino dos espíritos ao qual, a rigor, pertenciam.

Falando em Zelandonii, para que os do Acampamento não entendessem, Ayla contou a Jondalar o que o Mamutói estava dizendo.

Eles pensam que somos espíritos? Naturalmente! Eu devia saber disso. Têm medo de nós. É por esse motivo que nos ameaçam com lanças. Vamos ter esse problema, Ayla, sempre que encontrarmos alguém no caminho. Estamos acostumados com animais agora, mas as pessoas só pensam em cavalos e lobos como comida ou peles.

Os Mamutói da Reunião de Verão também se perturbaram no começo. Levaram algum tempo para acostumar-se à ideia de ter cavalos e Lobo por perto, mas por fim conseguiram — disse Ayla.

Quando abri os olhos pela primeira vez na caverna, em seu vale, e vi você ajudando Huiin a parir Racer, pensei que o leão me havia matado e que acordara no mundo dos espíritos — disse Jondalar. — Talvez eu deva apear também, e mostrar-lhes que sou um homem e não estou ligado a Racer como alguma espécie de espírito, metade homem metade cavalo.

Jondalar desmontou, mas continuou segurando a corda que atara ao cabresto que tinha feito. Racer batia com a cabeça, tentando recuar. O Mamutói avançava mais uma vez, acenando com o bastão, e resmungando cantos. Huiin estava atrás da mulher ajoelhada, de cabeça baixa, tocando-a. Ayla não usava rédeas nem brida para guiar sua égua. Fazia-o apenas com a pressão das pernas e os movimentos do corpo.

Ouvindo alguns sons da língua que os espíritos falavam e vendo que um deles pulava em terra, o Xamã cantou mais alto, rogando que se fossem, prometendo cerimónias, procurando aplacá-los com ofertas de presentes.

        —Você deveria explicar-lhes quem somos — disse Ayla. — Aquele Mamutói está ficando muito transtornado.

Jondalar segurou a rédea bem junto da cabeça do garanhão. Racer estava alarmado e irritado, e o Mamutói, com o bastão e gritos, não ajudava em nada. Mesmo Huiin parecia a ponto de espantar, e ela era muito mais tranquila que seu excitável descendente.

Nós não somos espíritos — disse Jondalar em voz bem alta quando o Mamutói parou para respirar. — Sou um viajor, numa Jornada, e ela — apontou para Ayla — é Mamutói, de Lareira do Mamute.

Os estranhos se entreolharam, e o Mamutói parou de cantar e dançar, mas ainda brandiu o bastão algumas vezes enquanto os estudava. Talvez fossem de fato espíritos, que lhe pregavam uma peça, mas pelo menos haviam sido obrigados a expressar-se numa língua que todo mundo entendia. Finalmente, o Mamutói falou:

Por que acreditaria em vocês? Como vou saber que não estão procurando enganar a gente? Você diz que ela pertence à Lareira do Mamute, mas onde está o sinal? Ela não tem a tatuagem no rosto.

Eu não disse que era Mamutói — interveio Ayla. E o que ele disse foi que sou da Lareira do Mamute. O velho Mamute do Acampamento do Leão estava me dando aulas quando parti, de modo que não tenho um aprendizado completo.

O Mamutói conferenciou com uma mulher e um homem, depois voltou.

Este aqui — disse — afirma que é um visitante. Embora fale bem, tem um sotaque estrangeiro. Você diz que é Mamutói, mas alguma coisa na sua maneira de falar a desmente.

        Jondalar prendeu a respiração e esperou. Ayla tinha, de fato, alguma coisa especial na voz. Havia certos sons que ela era quase incapaz de pronunciar, e a maneira como o fazia era, curiosamente, única. Ficava perfeitamente claro o que ela queria dizer e nem um pouco desagradável — ele, pelo menos, gostava —, mas era perceptível. Não se parecia ao sotaque de nenhuma outra língua, mas de uma língua que a maior parti das pessoas nunca ouvira, ou sequer reconheceria como linguagem. Ayla falava com a pronúncia da linguagem travada, gutural, vocalmente limitada do povo que a agasalhara como menina órfã e a criara.

        —Eu não nasci Mamutói — disse Ayla, segurando ainda Lobo pelo toutiço, embora ele tivesse deixado de rosnar. — Fui adotada no Lar de Mamute pelo próprio Mamute.

        Seguiu-se uma certa comoção no grupo, e houve uma nova consulta particular entre o mamute, a mulher e o homem.

Se você não faz parte do mundo dos espíritos, como se explica que domine esse lobo e faça com que os cavalos a levem às costas? — perguntou a mamute, decidindo ser objetiva.

Não é difícil quando a gente os apanha ainda jovens — explica Ayla.

Você faz a coisa parecer por demais simples. Deve haver mais nessa história do que diz. — A mulher não iria enganar um Mamute que pertencia, ele também, ao Lar do Mamute.

Eu estava lá quando ela trouxe o filhote de lobo para a caverna — disse Jondalar. — Era tão pequeno que não estava ainda desmamado Na minha opinião, não vingava. Mas ela lhe deu carne cortada em pedacinhos e caldo de carne, acordando no meio da noite para cuidar dele como se fosse um bebê. Quando ele arribou, e começou a crescer, todo mundo ficou surpreso, mas aquilo ainda não era nada. Ela o treinou para fazer o que mandasse — a não mijar dentro de casa, a não morde as crianças mesmo se lhe faziam maldades. Se eu não estivesse presente não acreditaria que se pudesse ensinar tanta coisa a um lobo ou que um lobo fosse capaz de aprender tudo aquilo. Ela diz a verdade, mas não basta pegá-los quando filhotes, há que fazer muito mais. Ela cuidou desse bicho como se fosse uma criança. Foi mãe para o animal, e é por isso que ele faz tudo o que ela quer.

E os cavalos? — perguntou o homem, que estava de pé ao lado do Xamã. Ele tinha os olhos pregados no fogoso garanhão e no homem alto que o tinha pela brida.

É a mesma coisa com cavalos. É possível treiná-los se a gente começa cedo e cuidar bem deles. Leva tempo e é preciso ter paciência, mas eles aprendem.

Os homens tinham abaixado as lanças e escutavam com grande interesse. Era sabido que espíritos podem falar língua de vivente, embora toda aquela conversa de criar filhotes de bicho não fosse o que se teria esperado da boca de fantasmas — que falam, de regra, uma coisa para dizer outra.

—    De criação de animais eu não entendo — falou a mulher do Campo — Mas sei que o Lar do Mamute não adota estranhos e os converte em Mamutói. Aquele não é um lar comum. É consagrado Àqueles que Servem à Mãe. Ou as pessoas escolhem o Lar do Mamute ou são escolhidas por ele. Tenho parentes no Acampamento do Leão. Mamute é um homem muito velho, talvez o mais velho de todos os homens. Por que adotaria alguém? Também não creio que Lutie o tivesse permitido. O que você está contando é difícil de acreditar, e não sei por que lhe daríamos fé.

Ayla sentiu uma ponta de ambiguidade no que a mulher dizia, ou talvez fossem só os sutis maneirismos com que acompanhava as palavras: o peito estufado para a frente, a tensão nos ombros, o cenho franzido. Ela parecia esperar alguma coisa desagradável. Então Ayla percebeu que aquilo não fora um lapso da língua. A mulher misturara uma mentira no que dissera, armara uma cilada com a sua pergunta. Mas por causa do seu singular conhecimento, o truque ficava transparente.

O povo que criara Ayla, conhecido como cabeças-chatas, mas que se diziam o Clã, comunicava-se com clareza e precisão, se bem que não primordialmente com palavras. Poucas pessoas percebiam que eles tivessem uma língua. Sua faculdade de articular era limitada, e muitas vezes se viam insultados como infra-humanos, animais que não sabiam falar. Usavam uma linguagem de gestos e sinais, mas não menos complexa que uma língua vocal.

As palavras, relativamente escassas, que o Clã empregava — e que Jondalar não sabia reproduzir, assim como não era capaz de pronunciar certos sons em Zelandonii ou Mamutói — eram proferidas com uma espécie particular de vocalização, e serviam, de regra, para dar ênfase ou para nomear pessoas ou coisas. Qualquer matizada ou nuança mais delicada de sentido eram indicados por expressões fisionómicas, mudanças de porte e postura, que acrescentavam profundidade e variedade à linguagem da mesma forma como o tom e a inflexão alteram a linguagem verbal. Mas com um meio de comunicação assim tão aberto, era quase impossível dizer uma inverdade sem que isso fosse percebido. Os cabeças-chatas não podiam mentir.

Ayla aprendera a perceber e entender esses sinais sutis de movimentos do corpo e expressões faciais ao mesmo tempo em que lhe ensinavam a falar por signos. Eram necessários à compreensão total. Quando ela reaprendeu a falar verbalmente com Jondalar e ficou fluente em Mamutói, Ayla descobriu que era capaz de perceber os sinais do mesmo tipo em pequenas modificações da expressão ou da postura das pessoas que falavam com palavras mas faziam isso por inadvertência, uma vez que esse sistema de signos não fazia parte intencional da sua linguagem.

Descobriu que entendia mais do que palavras, embora isso lhe causasse confusão e mágoa no princípio, pois as palavras ditas nem sempre correspondiam aos sinais feitos, e ela nunca ouvira falar da mentira. Morder a língua e fechar a boca era o máximo que ela conhecia nesse terreno.

Acabou por aprender que certas mentiras pequenas justificavam-se muitas vezes por considerações de cortesia. Mas foi quando tomou conhecimento do humor — que, em geral, consistia em dizer uma coisa com outro sentido — que ela entendeu, de um golpe, a natureza da linguagem verbal, e as pessoas que se utilizavam dela. Então, sua capacidade de interpretar signos inconscientes acrescentou uma dimensão inesperada aos progressos que vinha fazendo em matéria de linguagem. Uma vantagem rara. Embora não soubesse mentir, exceto por omissão, sabia perfeitamente quando alguém não estava dizendo a verdade.

—    Não havia ninguém de nome Lutie no Acampamento do Leão quando eu vivia lá. — Ayla decidira ser direta. — Tulie é a chefe das mulheres, e seu irmão Talut o dos homens.

A mulher fez um aceno quase imperceptível com a cabeça. Ayla continuou.

— Sei que uma pessoa é habitualmente consagrada ao Lar do Mamute e não adotada. Talut e Nezzie foram os que me levaram para lá. Talut até alargou a caverna para fazer um abrigo especial de inverno para os cavalos, mas o velho Mamute surpreendeu a todos. No curso da cerimónia, ele me adotou. Disse que eu pertencia ao Lar do Mamute, que nascera lá.

— Se você levou esses cavalos para o Acampamento do Leão, posso entender que o velho Mamute disse isso — retrucou o homem.

A mulher o encarou aborrecida, e resmungou alguma coisa entre dentes. O homem se convencera de que os estranhos eram, provavelmente, gente, e não espíritos pregando peças — ou se eram espíritos, não seriam maus —, mas não acreditava ainda que fossem exatamente o que pretendiam ser A explicação do homem alto para o estranho comportamento dos animais era simples demais, mas ele ficara interessado assim mesmo. Os cavalos e o lobo o intrigavam. A mulher sentia que eles falavam com demasiada volubilidade, contavam espontaneamente muita coisa, eram mais acessíveis do que seria de esperar. Havia mais ali, estava certa disso, do que eles diziam. Não confiava naqueles dois, e não queria nada com eles.

A aceitação deles pelo Mamutói como seres humanos só veio depois de registrado outro pensamento capaz de explicar, se a pessoa entendia de tais coisas, o extraordinário comportamento dos animais ou dar-lhe maior plausibilidade. Ela estava certa de que a loura era uma Visitante poderosa, e o velho Mamute teria percebido logo que ela nascera con aquele controle prodigioso sobre os animais. Talvez o homem tivesse a mesma origem e os mesmos atributos. Mais tarde, quando o Acampamento deles comparecesse à Reunião de Verão, seria interessante conversar com os do Leão, e os Mamutói certamente teriam algo a dizer sobre aqueles dois. Era mais fácil acreditar em magia que na grotesca noção que animais podiam ser domesticados.

Durante a consulta lá entre eles, houve um desacordo. A mulher não estava à vontade, os estrangeiros a inquietavam. Se ela se demorasse cogitando a respeito, talvez admitisse que tinha medo. Não gostava de estar nas cercanias de uma demonstração tão aberta de poder oculto. Mas foi voto vencido. O homem falou.

— Esse lugar onde os rios se juntam é um terreno perfeito para acampar. Tivemos uma boa caçada, e uma numerosa manada de veados gigantes está vindo nesta direção. Poderão estar aqui dentro de poucos dias. Não nos importaremos se vocês quiserem acampar nas vizinhanças e caçarem conosco.

— Apreciamos a sua oferta — disse Jondalar. — Podemos acampar junto de vocês e passar a noite, mas temos de prosseguir viagem pela manhã.

A amabilidade fora medida, não era como a acolhida de que ele tantas vezes fora alvo, com o irmão, quando viajavam a pé. A saudação formal, dada em nome da Mãe Terra, oferecia maior hospitalidade. Era considerada como um convite de união de forças: que ficassem e vivessem com os demais por algum tempo. O convite do homem, mais cauteloso, mostrava a dúvida em que estavam, mas pelo menos já não os ameaçavam com lanças em riste.

— Pelo menos então, em nome da Grande Mãe Terra, façam conosco a refeição da noite e a da manhã também. — Essa amabilidade o velho podia fazer, e Jondalar sentiu que ele ofereceria mais se pudesse.

— Em nome da Grande Mãe Terra, teremos grande prazer em comer com vocês esta noite, depois de instalarmos o nosso acampamento — assentiu Jondalar —, mas temos de partir cedo.

—    Por que tanta pressa?

Aquela franqueza, tão típica dos Mamutói, pegou Jondalar de surpresa, mesmo depois de tanto tempo de convivência com eles, sobretudo vinda assim, de um estranho. A pergunta do chefe teria sido considerada impolida pelo povo de Jondalar. Não como uma grosseria, mas como um sinal de imaturidade ou de falta de gosto pela maneira mais sutil e indireta de falar dos adultos que sabem das coisas.

Mas, como Jondalar sabia, a franqueza era considerada correta entre os Mamutói, e a discrição, suspeita, embora suas maneiras não fossem tão abertas assim. Havia sutilezas. Tudo era uma questão da maneira de dizer, da maneira de ouvir, e do que ficou nas entrelinhas. Mas entre os Mamutói a curiosidade do líder do Acampamento era perfeitamente aceitável.

—    Estou voltando para casa — disse Jondalar —, e estou levando esta mulher comigo.

—    Um dia ou dois farão muita diferença?

—    Minha casa fica longe, para o ocidente. E eu estive fora... — Jondalar fez uma pausa para calcular — quatro anos. Esta viagem levará mais um, se tivermos sorte. Há uns cruzamentos perigosos... rios, gelo... pelo caminho, e não quero enfrentá-los na estação errada.

—    Ocidente? Mas vocês, ao que me parece, estão indo para o sul.

Sim. Estamos indo para o Mar de Beran e para o Rio da Grande Mãe. Subiremos o rio.

— Meu primo foi para oeste numa viagem de negócios faz alguns anos. Contou que tem gente vivendo por lá junto de um rio a que chamam também Rio da Grande Mãe — disse o homem. — Ele pensou que fosse o mesmo. Eles viajaram para o ocidente a partir daqui. Depende por quanto tempo você queira subir a corrente, mas há uma passagem ao sul da Grande Geleira, mais ao norte das montanhas, para oeste. Você pode encurtar a viagem se for por ali.

— Talut me falou nessa rota do norte, mas ninguém tem certeza se o rio é o mesmo. Se não for, pode levar mais tempo para achar o verdadeiro. Eu vim pelo sul, por um caminho que conheço. Além disso, tenha parentes entre o Povo do Rio. Meu irmão casou com uma Xaramudói e eu morei com eles. Gostaria de revê-los. Talvez não os encontre nunca mais.

— Temos comércio com o Povo do Rio... parece-me ter ouvido falar de estrangeiros, há um ano ou dois, que viviam com esse grupo a quem se juntou a mulher Mamutói. Eram de fato dois irmãos, agora que penso nisso. Os Xaramudói têm costumes matrimoniais diferentes dos nossos mas se bem me lembro ela e seu homem ficariam ligados a outro casa numa espécie de adoção, suponho. Eles mandaram convidar quaisquer conhecidos Mamutói que quisessem ir. Alguns foram e, até, um ou dois já estiveram lá de novo.

— Trata-se de meu irmão, Thonolan — disse Jondalar, satisfeito po ver que a história confirmava a sua, embora não pudesse ainda pronunciar o nome do irmão sem sofrer. — Aquelas eram suas núpcias. Ele casou com Jetamio, e os dois se tornaram parentes de Markeno e Tholie que foi a primeira pessoa que me ensinou a falar mamutói.

— Tholie é minha prima, distante. E você é o irmão de um dos seu homens? — O homem se voltou para a irmã. — Thurie, este homem é nosso parente. Acho que temos de recebê-los. — E sem esperar resposta foi logo se apresentando. — Eu sou Rutan, chefe do Acampamento do Falcão. Em nome de Mut, a Grande Mãe, seja bem-vindo.

A mulher não tinha escolha. Não podia constranger o irmão recusando dar com ele as boas-vindas aos visitantes, embora pensasse em algumas coisas para dizer-lhe em particular.

—    Eu sou Thurie, mulher chefe do Acampamento do Falcão. Em nome da Grande Mãe, vocês são bem-vindos aqui. No verão nós nos chamamos Acampamento do Capim Estipa.

Não era também a mais calorosa recepção que ele recebera. Jondalar sentia uma nítida reserva e restrição. Ela lhe dava as boas-vindas "ali" especificamente, mas aquela era uma localização temporária. Ele sabia que a denominação Acampamento do Capim Estipa se aplicava a qualquer acampamento de caça no verão. Os Mamutói eram sedentários no inverno, e aquele grupo, como os demais, vivia num acampamento ou comunidade permanente de uma ou duas cavernas grandes comunicantes ou vária pequenas, todas subterrâneas. Essa região era conhecida por Acampamento do Falcão. A mulher não dissera que eles seriam bem-vindos lá.

—    Sou Jondalar, dos Zelandonii. Saúdo-os em nome da Grande Mãe Terra, a quem denominamos Doni.

— Temos peles de dormir na tenda do mamute — continuou Thurie —, mas não sei o que fazer... com os animais.

— Se não se importarem — disse Jondalar por cortesia —, será mais fácil para nós estabelecer nosso próprio acampamento perto, em vez de ficar no seu Acampamento. Agradecemos a hospitalidade, mas os cavalos precisam pastar, eles conhecem a nossa tenda, e saberão voltar para ela. Podem ficar agitados no acampamento de vocês.

— Naturalmente — disse Thurie, aliviada. Ela ficaria tão nervosa quanto os bichos.

        Ayla sentiu que lhe cabia também apresentar-se. Lobo parecia menos assustado agora, e Ayla soltou-o devagar. "Não posso ficar o tempo todo segurando Lobo", pensou. Quando se pôs de pé, o lobo começou a saltar contra seu corpo mas ela o mandou sentar-se.

Sem estender-lhe as mãos ou fazendo menção de aproximar-se, Rutan saudou-a. Ela retribuiu a saudação na mesma moeda.

— Sou Ayla, dos Mamutói — disse. E acrescentou: — Do Lar do Mamute. Saúdo-os em nome de Mut.

Thurie fez a sua saudação, restringindo-a também, como no caso de Jondalar, àquele sítio. Ayla respondeu formalmente. Ela gostaria de ver mais amabilidade do que lhe mostravam, mas achava que não podia culpá-los. O conceito de animais viajando em companhia de pessoas era de assustar, nem todo mundo teria sido tão compreensivo como Talut com uma inovação daquelas. Ayla percebeu, com um aperto no coração, que já sentia a perda daqueles que amava no Acampamento do Leão.

Voltou-se para Jondalar.

— Lobo não está tão cônscio agora de que precisa proteger-nos. Mas eu preciso de alguma coisa com que possa deixá-lo preso agora, enquanto estiver neste Acampamento, e, depois, para segurá-lo se encontrarmos outras pessoas — disse em Zelandonii, sentindo dificuldade em falar livremente naquele Acampamento de Mamutói desejando que não fosse assim. — Talvez como aquela rédea de corda que você fez para Racer, Jondalar. Há corda de sobra e correias de couro também em uma das minhas cestas, na bagagem. Temos de ensiná-lo a não atacar estranhos dessa maneira. Ele tem de aprender a ficar quieto onde eu mandar.

Lobo devia ter compreendido que pôr as lanças em riste fora um gesto de ameaça. Ela não podia censurá-lo por saltar em defesa das pessoas e dos cavalos que constituíam aquela sua estranha alcateia. Do ponto de vista dele, era perfeitamente compreensível, mas isso não queria dizer que tosse aceitável. Ele não deveria tratar todas as pessoas que ainda encontrassem na viagem como lobos hostis. Ela teria de ensiná-lo a modificar seu comportamento e a encontrar pessoas com maior discrição. Refletiu se haveria pessoas capazes de entender que um lobo obedecesse aos comandos de uma mulher ou que um cavalo carregasse um homem às costas.

— Fique com ele. Vou buscar a corda — disse Jondalar. Ainda com mão na brida de Racer, embora o cavalo estivesse tranquilo, ele procurou a corda nas cestas que Huiin levava. A hostilidade do acampamento amainara, as pessoas não pareciam mais em guarda do que estariam normalmente diante de qualquer estranho. A julgar pelo modo como olhavam, o medo parecia haver cedido lugar à curiosidade.

Huiin também se acalmara. Jondalar coçou-lhe o pescoço, deu-lhe umas palmadas afetuosas, enquanto mexia nas cestas. Gostava muito daquela égua forte. E embora estimasse o ardor de Racer, admirava a serenidade e a paciência de Huiin. Ela parecia exercer um efeito calmante sobre o jovem garanhão. Amarrou a ponta da rédea de Racer na correia que prendia as cestas da bagagem que Huiin levava. Jondalar desejaria muito ter sobre o cavalo o mesmo controle de Ayla sobre Huiin, com ou sem rédeas. Mas agora que cavalgava o animal, ia descobrindo a espantosa sensibilidade da sua pele, aprendia a montar confortavelmente, e começava a guiar Racer com pressão dos joelhos e simples postura.

Ayla foi para o outro lado da égua com Lobo. Quando Jondalar lhe deu a corda, ele lhe disse ao ouvido:

— Não temos de pernoitar aqui, Ayla. Ainda é cedo. Podemos encontrar outro lugar, neste rio, ou em outro.

— É bom para Lobo acostumar-se às pessoas, principalmente pessoas estranhas, mesmo se não forem muito amáveis. Não me importaria até, de fazer visitas. Eles são Mamutói, Jondalar, meu povo. Esses podem ser os últimos Mamutói que verei. Será que estarão na Reunião de Verão? Talvez possamos enviar uma carta para o Acampamento do Lei por eles.

Ayla e Jondalar instalaram seu próprio acampamento perto do Acampamento do Capim Estipa, rio acima, ao longo do grande tributário. Tiraram as cestas e as selas dos cavalos e soltaram-nos para que pastassem. Ventava. E Ayla sentiu uma pontada de pânico vendo-os afastar-se e desaparecer na poeira.

Mulher e homem tinham viajado ao longo da margem de um rio caudaloso, mas a alguma distância dele. Embora corresse, em geral, para o sul, o rio, jovem, tinha meandros, e serpenteava pela paisagem, cavando uma funda trincheira na planura baixa. Ficando nas estepes, a cavaleiro do vale do rio, os viajantes podiam tomar uma estrada mais direta, mas ficavam expostos ao vento implacável e aos efeitos do sol e da chuva no descampado.

—    É esse o rio de que Talut estava falando? — perguntou Ayla, desenrolando suas peles de dormir.

O homem enfiou a mão num par de cestas de palha e apanhou um pedaço de dente de mamute todo marcado de incisões. Jondalar olhou a nesga do céu encardido que brilhava com uma luz insuportavelmente crua mas difusa, depois para a paisagem que escurecia. A tarde caía. Mais do que isso ele não saberia dizer.

—    Não há como saber, Ayla — disse, guardando o mapa. — Não posso distinguir nenhum ponto de referência, e estou acostumado a medir a distância percorrida pelos meus passos. Racer se move em outro ritmo.

— Vamos levar mesmo um ano inteiro para chegar à sua casa? — perguntou a mulher.

— É difícil dizer ao certo. Depende do que encontrarmos pelo caminho dos problemas que tivermos, de quantas vezes pararmos. Se estivermos com os Zelandonii ano que vem por esta época, poderemos dizer que tivemos sorte. Ainda não alcançamos sequer o Mar de Beran, onde desemboca o Rio da Grande Mãe, e temos de subir o rio até a nascente, na geleira, e além — disse Jondalar. Seus olhos, de um azul intenso, invulgarmente vívido, pareciam preocupados, e sua fronte se enrugava como quando estava, de fato, ansioso.

—    Teremos de atravessar grandes rios, mas é a geleira que me assusta Ayla. Temos de passar quando o gelo estiver sólido, o que significa que precisamos estar lá antes da primavera, e isso é sempre imprevisível. Naquela região sopra sempre um forte vento do sul, capaz de aquecer o gelo mais frio a ponto de fundi-lo num dia só. Então, a neve e o gelo da superfície derretem e se partem como madeira podre. Abrem-se grandes fendas, e as pontes de neve que cruzam por cima delas se desmancham e afundam. Torrentes e, até, rios cuja água é gelo derretido sulcam a geleira e muitas vezes se precipitam por ela adentro através de grandes buracos. É muito perigoso, e não, e pode acontecer de súbito. É verão agora, e o inverno pode parecer ainda remoto, mas temos de viajar muito mais do que você pensa.

A mulher concordou com um gesto de cabeça. Não adiantava pensar quanto tempo a viagem levaria, ou o que aconteceria quando chegassem ao destino. Era melhor pensar em cada dia à medida que ele viesse, e planejar apenas para dois ou três dias. Não devia apoquentar-se pensando no clã de Jondalar, e se ela seria aceita por eles como os Mamutói a tinham aceitado.

—    Queria que o vento cessasse — comentou ela.

—    Eu também estou cansado de comer saibro — disse Jondalar. — Por que não vamos visitar os vizinhos e comer alguma coisa melhor?

Levaram Lobo quando foram ao Acampamento do Capim Estipa, mas Ayla cuidou que ele ficasse junto dela. Reuniram-se a um grupo que rodeava uma fogueira sobre a qual uma anca inteira de veado assava no espeto. A princípio, ninguém se manifestou, mas não demorou muito para que a curiosidade se transformasse em vivo interesse, e a reserva temerosa do primeiro momento deu lugar a um animado falatório. Os habitantes daquelas estepes periglaciais tinham poucas oportunidades de conhecer gente nova, e a excitação do encontro fortuito alimentaria durante muito tempo as discussões e histórias do Acampamento do Falcão. Ayla fez amizade com várias pessoas, principalmente com uma moça que tinha uma menina pequena. A criança estava na idade de sentar-se sem ajuda e dar risadas, o que encantava a todos, sobretudo o Lobo.

A mãe mostrou-se temerosa a princípio, quando viu que o animal dava uma atenção especial à sua filha. Mas quando as lambidas dele a fizeram rir de prazer, e o animal se mostrou comedido, mesmo quando a menina lhe puxava o pêlo, todo mundo ficou surpreso.

As outras crianças queriam, naturalmente, tocá-lo, e Lobo se pôs a brincar com elas. Ayla explicou que ele fora criado com as crianças do Acampamento do Leão e, com certeza, sentia sua falta. Lobo fora sempre delicado com as crianças ou os fracos, e parecia saber a diferença entre as demasias de carinho de um bebê e a travessura de uma criança mais velha que lhe puxava o rabo ou a orelha. Deixava os menores fazerem o que quisessem com perfeita paciência, mas reagia aos outros com um rosnado de advertência ou uma leve mordida, que não rasgava a pele mas deixava claro que isso podia acontecer.

Jondalar mencionou que tinham deixado havia pouco a Reunião de Verão, e Rutan lhes contou que os reparos na caverna lhes tinham atrasado a partida, senão teriam estado lá. Fez perguntas a Jondalar sobre as suas viagens e sobre Racer, com um círculo atento de ouvintes. Pareciam relutantes em interrogar Ayla, e ela não falava muito espontaneamente embora a Mamutói desse mostras de que gostaria de conversar com ela em particular sobre assuntos mais esotéricos, mas Ayla preferiu ficar na roda. Até a mulher chefe já estava mais à vontade e amável quando eles se despediram, e Ayla lhe pediu que desse lembranças suas ao Acampamento do Leão quando fossem, finalmente, à Reunião.

Naquela noite, Ayla ficou muito tempo acordada, matutando Alegrava-se de não ter cedido a sua natural hesitação em ir ao Acampamento, de não ter deixado que a fria acolhida a intimidasse. Dada a oportunidade de vencer seu instintivo receio inicial do desconhecido ou do incomum, eles se tinham mostrado interessados e ávidos por aprender Ela aprendera também que o fato de viajar com tão estranhos companheiros poderia provocar reações violentas por parte de quem quer que encontrassem pela frente. Não sabia muito bem o que esperar, mas sentia que aquela viagem ia ser muito mais aventurosa do que havia imaginado

 

Jondalar estava ansioso para ir embora bem cedo no dia seguinte, mas Ayla quis voltar para ver os conhecidos que havia feito no Acampamento do Capim Estipa antes de partirem. Jondalar se mostrou impaciente, mas Ayla se demorou com as despedidas. Quando finalmente se foram, era quase meio-dia.

A vasta pradaria, com pequenas colinas suaves e vastos horizontes abertos por onde viajavam desde que tinham deixado a Reunião de Verão, começava a mudar. Havia agora elevações. A corrente veloz do afluente nascida em terrenos mais altos, descia com mais vigor que o rio principal, sinuoso, e cortava um canal profundo, com barrancas a pique, no solo sedimentar amarelo do loess. Embora Jondalar quisesse ir para o sul, tinham de andar para oeste à espera de um ponto conveniente para atravessar.

Quanto mais se afastavam do seu rumo, mais irritado ia ficando Jondalar. Já questionava a sua decisão de tomar a estrada mais longa, do meridião, que a outra, do norte, como lhe fora sugerido, mais de uma vez e para onde o rio parecia determinado a levá-los. Sem dúvida ele não estava familiarizado com o caminho, mas se era tão mais curto talvez devessem tomá-lo para estarem certos de alcançar o platô da geleira mais para oeste, na própria nascente do Rio da Grande Mãe antes da primavera.

Isso significaria que se perderia aquela última oportunidade de rever os Xaramudói. Mas teria isso tanta importância? Ele tinha de admitir que queria vê-los. Sonhara com isso. Nem mesmo estava certo de ter tomado a decisão de ir pelo sul por causa do seu desejo de viajar por caminho conhecido e, portanto, mais seguro, ou por causa dessa vontade de estar outra vez com pessoas que eram como uma família para ele. Afligia-se com as consequências de escolher errado.

Ayla interferiu na sua introspecção.

—    Jondalar, acho que podemos atravessar aqui. A outra margem me parece fácil de atingir.

Estavam numa curva do rio, e pararam para estudar a situação. A corrente, turbulenta e rápida, cortava fundo o solo na margem mais aberta da curva, onde eles estavam, e onde o declive era pronunciado. Mas do lado de dentro da curva, na outra margem, havia uma espécie de praia estreita de solo bem compactado e escuro, logo seguido de vegetação rasteira.

—    Acha que os cavalos conseguem descer este barranco?

—    Sim. A parte mais profunda do rio deve estar deste lado, onde a água cavou mais fundo. É difícil dizer quão fundo será ou se os animais terão de nadar. Talvez fosse melhor desmontar e nadar também — disse Ayla, e percebeu que Jondalar estava contrariado. — Mas se não for muito profundo, podemos atravessar a cavalo. Detesto molhar as roupas mas não gostaria de tirá-las para nadar.

Levaram os cavalos para o declive íngreme. Os cascos escorregavam no solo fino, e eles entraram na água com um forte ruído. Logo foram apanhados pela correnteza e arrastados rio abaixo. Era mais fundo do que Ayla pensara. Os cavalos tiveram um momento de pânico antes de se acostumarem com a água e começarem a nadar contra a corrente para chegar à margem oposta. Quando começaram a subir, do outro lado, Ayla olhou para trás, procurando Lobo. Ele estava ainda no alto do barranco, ganindo e correndo para lá e para cá.

—    Ele tem medo de saltar — disse Jondalar.

— Vamos, Lobo! — gritou Ayla. — Você sabe nadar. — Mas o filhote chorava, com o rabo entre as pernas.

— O que há com ele? — indagou Jondalar. — Lobo já atravessou rios antes. Aborrecia-o mais esse atraso. Tinha esperado cobrir uma grande distância naquele dia, mas tudo parecia conspirar em contrário.

Tinham saído tarde, depois tinham sido forçados a ir para o norte e para oeste, direções que ele não queria tomar. E agora Lobo não atravessava o rio. Sabia também, àquela altura, que teriam de fazer uma parada para conferir o conteúdo das cestas de bagagem, depois do banho que elas tinham tomado, mesmo sendo bem-feitas e, praticamente, estanques. Para aumentar sua irritação, estava ensopado, e começava a entardecer. Sentia que o vento esfriava, e precisavam trocar de roupa e pôr as que vestiam para secar. Os dias de verão eram quentes, mas os ventos da noite traziam o sopro frio do gelo. Os efeitos da maciça geleira que esmagava as terras do norte debaixo de camadas de gelo tão altas quanto montanhas podiam ser sentidos por toda parte, mas em nenhum outro lugar tão intensamente quanto nas estepes próximas da sua orla.

Se fosse mais cedo, poderiam viajar com a roupa molhada. O vento e o sol logo as secariam no corpo. Estava tentado a prosseguir para o sul de qualquer maneira, apenas para poder adiantar-se um pouco... se pudessem ir andando!

—    A correnteza deste rio está muito forte, e Lobo não pode aproximar-se dele e entrar na água. Tem é de saltar, e ele nunca fez isso antes — disse Ayla.

— O que vai fazer?

— Se não consigo animá-lo a saltar, tenho de ir buscá-lo.

—    Ayla, acho que se seguirmos em frente ele saltará e virá atrás de você. Mas se queremos fazer algum progresso hoje, temos de prosseguir O olhar de incredulidade e fúria que se estampou no rosto de Ayla fez com que Jondalar desejasse não ter dito nada.

—    Você gostaria de ser deixado para trás só por ter medo? Ele não quer pular no rio porque nunca fez coisa igual antes. O que se poderia esperar?

—    O que eu quis dizer é que ele é apenas um lobo, Ayla. Lobos atravessam rios todo o tempo. Ele só precisa de motivação. Se, depois, não nos alcançar, voltaremos para buscá-lo. Não quis dizer que deveríamos deixá-lo aqui.

—    Não precisa preocupar-se com isso de vir buscá-lo. Vou pegá-lo agora — disse Ayla, virando-lhe as costas e conduzindo Huiin para a água O lobo ainda chorava e cheirava o chão por onde os cascos dos cavalos tinham marcado, e olhava cavalos e gente do outro lado da margem do rio. Ayla chamou-o de novo e entrou com a égua na correnteza. A meio caminho, Huiin sentiu que o chão lhe faltava debaixo das patas e demonstrou alarme.

—    Lobo! Venha! É só água. Vamos, salte! — dizia Ayla, procurando encorajar o animal. Depois desceu da montaria decidida a nadar até a margem. Lobo, finalmente, criou coragem e saltou. Logo se pôs a nadar vigorosamente para ela. — Isso! Muito bem, Lobo! — disse Ayla.

Huiin estava recuando, na tentativa de firmar-se, e Ayla, com um braço em torno do lobo, procurava alcançá-la. Jondalar já estava lá também com água ate o peito, ajudando a égua a aproximar-se de Ayla. Todos chegaram juntos ao outro lado.

— Mas agora temos de andar depressa — disse Ayla, com os olhos ainda fuzilando de raiva, enquanto montava.

— Não — disse Jondalar, segurando-a. — Não vamos partir enquanto você não mudar essas roupas molhadas. Acho também que devemos esfregar bem os cavalos para secá-los e, talvez, também o lobo. Já viajamos muito por hoje. Acho que vamos acampar aqui mesmo. Levei quatro anos para chegar até aqui. Não me importo se vou levar outros quatro para regressar. O importante é levá-la com segurança.

Ela o olhou, e a expressão de preocupação e amor nos belos olhos azuis dele desmancharam seus últimos vestígios de raiva. Ela ergueu o rosto, ele baixou a cabeça, e Ayla sentiu de novo a mesma inacreditável felicidade que sentira quando pela primeira vez ele pusera seus lábios nos dela e lhe ensinara como beijar. Sentiu também uma alegria inexprimível por saber que estava viajando com ele, indo para casa com ele. Amava-o mais do que sabia expressar, mais agora ainda, depois do longo inverno, quando pensava que ele não gostava dela e que partiria só.

Ele temera pela sua vida quando ela voltara ao rio atrás de Lobo, e agora a apertava contra o peito. Amava-a mais do que jamais imaginara que lhe fosse possível amar alguém. Até o advento de Ayla, ele não sabia ser capaz de gostar tanto de alguém. Estivera a ponto de perdê-la, uma vez. Estivera certo de que ela ficaria com o homem de pele morena e olhos sorridentes, e não podia suportar a ideia de perdê-la outra vez.

Com dois cavalos e um lobo por companheiros, num mundo que jamais imaginara que tais bichos podiam ser domesticados, um homem se via sozinho com a mulher que amava em meio à vasta e fria campina, repleta dos mais diversos animais, mas com poucos seres humanos, e tinha pela frente uma Jornada que se estenderia de ponta a ponta de um continente. Havia momentos em que o simples pensamento de que algum mal podia acontecer a ela lhe dava tanto medo que quase perdia o fôlego. Nesses momentos, desejava poder retê-la para sempre.

Jondalar sentiu o calor do corpo dela, do beijo, e sentiu crescer o desejo que tinha dela. Mas isso podia esperar. Ayla estava fria e molhada. Precisava de roupas secas e de um bom fogo. A margem do rio era um lugar tão bom quanto qualquer outro para acampar, e se era um tanto cedo demais para parar, isso tinha compensações: dava-lhes tempo de secar as roupas que vestiam, e podiam partir mais cedo, logo que amanhecesse.

— Lobo! Larga disso! — gritou Ayla, correndo para tomar dele o fardo empacotado em couro. — Pensei que você já tivesse aprendido a guardar distância de couro! — Mas quando tentou tirar-lhe o embrulho ele se recusou. brincalhão, batendo com a cabeça e rosnando. Ela soltou, interrompendo o jogo. — Larga! — disse, imperiosamente. E desceu a mão no ar como se fosse bater-lhe no focinho. Era uma simples ameaça. Mas à vista disso e da ordem de comando, Lobo pôs o rabo entre as pernas avançou rastejando submisso para ela, soltou o embrulho a seus pés, ganindo para fazer as pazes.

—    É a segunda vez que ele mexe nessas coisas — disse Ayla, apanhando o embrulho e alguns outros em que ele havia também metido os dentes. — Ele sabe que não pode fazer isso, mas é como se não conseguisse deixar couro em paz.

Jondalar veio em auxílio dela.

—    Não sei o que dizer. Ele obedece, quando você lhe pede que solte o pacote, mas você não pode dizer isso quando não está presente, pois é impossível vigiá-lo todo o tempo... E o que é isso? Não me lembro de ter visto isso antes — disse, olhando com ar zombeteiro um pequeno volume cuidadosamente enrolado em pele macia e atado com toda a segurança.

Corando um pouco, Ayla se apressou em tomar-lhe o volume. — É„ é só uma coisa que trouxe comigo... uma coisa... do Acampamento do Leão — disse, e guardou-o com as suas bagagens.

Aquilo intrigou Jondalar. Eles tinham reduzido seus pertences e coisas de viagem ao mínimo, levando muito pouco que não fosse essencial Aquele embrulho não era grande, mas também não era pequeno. Ela teria podido levar outra coisa no espaço que ele ocupava. O que seria?

—    Lobo, pare com isso!

Jondalar viu Ayla sair atrás do lobo outra vez e teve de sorrir. Não estava certo disso, mas achava que o animal estava fazendo deliberadamente uma travessura para fazer com que Ayla brincasse com ele. Tinha encontrado um pé de sapato dela, do tipo mocassim, macio e confortável, que ela usava ocasionalmente depois de acamparem, sobretudo se solo estava gelado, ou úmido e frio, e se ela desejava pôr para secar arejar seus calçados comuns, mais resistentes.

—    Não sei o que vou fazer com ele! — disse, exasperada, voltando para o homem. Segurava o mocassim e olhava severamente para o culpa do. Lobo rastejava, sorrateiro, para ela, aparentemente contrito, ganindo em abjeta miséria diante da sua desaprovação, mas com uma ponta de malícia debaixo da tristeza. Sabia que ela o amava e, no momento em que Ayla se enternecesse, ele estaria abanando o rabo, latindo de alegria pronto para brincar outra vez.

Embora já tivesse tamanho de adulto, só lhe faltava ganhar peso Lobo era pouco mais que um filhote. Nascera no inverno, fora de estação, de uma loba solitária cujo macho morrera. Sua pelagem era cinza pardo, a comum... resultado de faixas brancas, vermelhas, marrons e pretas que coloriam cada pêlo externo, criando esse padrão indistinto que permitia aos lobos desaparecerem, invisíveis, na paisagem agreste de vegetação raquítica, pedra, terra, e neve... mas sua mãe fora preta.

Essa coloração incomum fez com que a loba principal da alcatéia e outras fêmeas a perseguissem sem trégua, rebaixando-a ao status mais inferior e banindo-a, por fim. Ela andou errante e sozinha, aprendendo '"sobreviver entre os territórios de um bando e outro durante uma estação, até que encontrou outro pária, um velho macho que deixara sua alcatéia por não ser mais capaz de acompanhá-la. Viveram juntos muito bem por algum tempo. Ela era mais forte como caçadora, mas ele tinha mais experiência, e tinham começado a definir e defender como seu um pequeno trecho de terra. Talvez tivesse sido a melhor dieta que os dois conseguiram, por caçarem juntos. Talvez a companhia e proximidade de um macho amigo; talvez a sua própria predisposição genética. Mas o fato é que ela entrou no cio extemporaneamente. O companheiro, embora velho, gostou disso, e, sem competição e de bom grado, correspondeu.

Infelizmente, seus velhos ossos não resistiram às agruras de mais um inverno nas estepes periglaciais. Ele não chegou a atravessar a estação. Foi uma perda atroz para a fêmea, deixada para parir sozinha... no inverno. O meio ambiente não aceita muito bem animais que se desviam muito da norma, e os ciclos sazonais se impõem. Uma caçadora negra numa paisagem de erva seca, terra parda e neve varridas de vento ou levada de arrastão é facilmente vista por presas espertas, escassas, aliás, no inverno. Sem companheiro ou parentas — tias, tios, primos e outros parentes que ajudassem, a loba fêmea perdeu, um por um, os filhotes que amamentava até ficar só com um.

Ayla conhecia lobos. Ela os observava e estudava desde o tempo em que começara a caçar, mas não tinha elementos para saber que a loba negra que tentara furtar o arminho que ela caçara com sua funda era uma fêmea faminta que dava de mamar a um filhote. Aquela não era estação para lactentes. Quando ela tentou recuperar a presa e a loba atacou — o que escapava à regra, matou-a em legítima defesa. Então viu a condição em que o animal se encontrava e compreendeu que era uma loba solitária. Sentindo uma estranha afinidade por uma loba expulsa da alcateia, Ayla decidiu encontrar os filhotes agora órfãos, sem família para adotá-los. Seguindo as pegadas da loba até a toca, entrou e encontrou o último filhote, ainda não desmamado, e de olhos mal abertos. Levou-o consigo para o Acampamento do Leão.

Foi uma surpresa para todo mundo quando Ayla lhes mostrou aquele minúsculo filhote de lobo, mas ela havia chegado com cavalos que lhe obedeciam. As pessoas se acostumaram com os cavalos e com a mulher que tinha afinidade por animais, e ficaram curiosos com o lobo e com o que ela pretendia fazer com ele. Que fosse capaz de criá-lo e treiná-lo era, para muitos, um portento. Jondalar ainda se surpreendia com a inteligência que o animal demonstrava; inteligência que parecia quase humana.

— Acho que ele está brincando com você, Ayla — disse.

Ela olhou para Lobo e não pôde conter um sorriso, o que fez com que ele levantasse a cabeça e começasse a martelar o chão com o rabo, de prazer.

 
   


Você tem razão, mas isso não me vai impedir de proibi-lo de ficar mastigando tudo o que encontra — olhou para o sapato feito em tiras. — Talvez seja melhor dar-lhe o mocassim. Já está destruído, e isso ocupará por algum tempo. As outras coisas estarão a salvo. — Atirou-lhe o sapato, que o lobo apanhou no ar. Segundo Jondalar, com um sorriso de astúcia recompensada.

— Devemos fazer as bagagens, disse ele, lembrando-se de que não tinham progredido muito na véspera rumo ao sul.

— Ayla correu os olhos em volta, fazendo uma viseira com a mão para defender-se do sol que já subia, brilhante, no céu para o lado do nascente. Vendo Huiin e Racer no prado relvoso de vegetação rasteira que o rio contornava, ela deu um assovio, parecido com o que dera para chamar Lobo. A égua baia levantou a cabeça, relinchou uma vez, e galopou pai ela. O jovem garanhão a seguiu.

Levantaram acampamento, carregaram os cavalos e estavam quase prontos para partir quando Jondalar decidiu reunir todos os mastros da barraca numa cesta e suas lanças em outra para equilibrar melhor a carga. Ayla recostou-se contra Huiin e esperou. Era uma postura confortável e familiar para as duas, um modo de se tocarem que tinham inventado quando a égua era ainda nova e sua única companhia naquele vale rico mas solitário.

Ela havia matado a mãe de Huiin também. Ela caçava fazia anos mas só com a funda. Ayla aprendera a usar armas fáceis de escamotear e quebrava os tabus do Clã de maneira inteligente caçando principalmente predadores, que competiam pelos mesmos alimentos e às vezes furtavam carne. Mas a égua era o primeiro animal fornecedor de carne de grande porte que ela matara e a primeira vez em que usara a lança como arma.

No Clã aquela teria sido contada como a sua primeira morte de verdade, se ela fosse um menino, e se tivesse permissão de caçar com lança Como mulher, se usasse uma lança não lhe permitiriam viver. Matar a égua, no entanto, fora necessário para a sua sobrevivência. Se logo uma mãe e nutriz caíra na sua armadilha, que culpa tinha? Ao ver a cria teve pena dela, sabendo que morreria, privada de sua mãe, mas a ideia de criar o animal não lhe ocorreu. Nem havia razão para isso. Ninguém jamais agira assim.

Mas quando as hienas saíram no encalço da cria assustada, ela se lembrou da hiena que tentara levar o bebê de Oga. Ayla tinha ódio de hienas, talvez por causa do que sofrera quando matou aquela e viu seu segredo exposto aos olhos de todos. Não que hienas fossem piores que outros predadores naturais e carniceiros, mas para Ayla representavam tudo o que era errado, vicioso, e cruel. Sua reação foi tão espontânea como a daquele tempo, e as pedras que lançou com a funda foram tão eficazes quanto as outras, antigas. Matou uma, espantou as outras, e salvou o jovem animalzinho inerte. Mas agora, em vez de uma ordália, encontrou uma companhia para aliviar a sua solidão, e alegria no extraordinário relacionamento que se formou.

Ayla gostava do lobinho como de uma criança inteligente e buliçosa, mas seu sentimento pela égua era de outra natureza. Huiin partilhava o seu isolamento, ficaram tão unidas quanto duas criaturas tão diversas podem ser. Elas se conheciam, se entendiam, confiavam uma na outra. A égua parda não era apenas uma companhia animal útil, ou um bicho de estimação, ou uma filha bem amada. Huiin fora sua única companheira durante vários anos. Era sua amiga.

Fora um ato espontâneo, irracional até, montá-la da primeira vez e e galopar com ela com a velocidade do vento. No começo, ela não tentou conduzir o animal. Mas eram tão unidas que o entendimento entre as duas cresceu a cada corrida.

Agora, enquanto esperava que Jondalar terminasse, Ayla se distraía vendo Lobo brincar com o sapato. Quisera encontrar um meio de acabar comesses hábitos destrutivos que ele tinha. Seu olhar registrava sem esforço a vegetação naquela ponta de terra em que tinham acampado. Mais baixa que as terras do outro lado do rio, com suas barrancas a pique, a terra ali alagava todo ano, deixando um fértil húmus para alimentar uma rica variedade de ervas, plantas rasteiras, arbustos e o rico pasto da margem. Ayla sempre notava a vegetação de onde estava. Era uma segunda natureza para ela tomar consciência de tudo o que crescia em torno e, com conhecimento tão arraigado que era quase instintivo, catalogar e interpretar o que via.

Viu, por exemplo, um pé de uva-ursina, sempre verde e anã, com folhas pequenas, verde-escuro, coriáceas, e uma abundância de flores miúdas, redondas, de um branco tocado de rosa, que prometia uma rica messe de bagas vermelhas. Embora azedas e adstringentes, eram gostosas guando cozinhadas com outras coisas. Mas Ayla sabia que o suco da fruta aliviava o ardor da urina, principalmente se a urina vinha com sangue.

Perto dela, via-se um rábano-bastardo, com flores brancas, numerosas, grupadas em racemos, na ponta de longas hastes, e, muito mais embaixo, folhas compridas, pontudas, brilhantes, verde-escuro, brotando quase do chão. A raiz seria rombuda e longa, com aroma pungente gosto ardido. Em pequena quantidade, dava um sabor interessante à carne, mas a Ayla interessava mais seu uso medicinal como estimulante para o estômago e para a micção ou como alívio para juntas inchadas doloridas. Ficou tentada a colher alguma coisa, mas achou que não teria tempo.

Apanhou sem hesitação sua bengala pontuda, de cavar, quando deu com a salva. A raiz era um dos ingredientes do chá especial que tomava de manhã, quando ficava menstruada. Em outras ocasiões, usava diferentes plantas para sua tisana, principalmente uma trepadeira amarela que sempre crescia agarrada a outras plantas e muitas vezes as matava. Iza lhe falara muito tempo atrás das plantas mágicas que fariam o espírito do seu totem suficientemente forte para derrotar o espírito do totem de qualquer homem, de modo que nenhum bebê começasse a crescer dentro dela. Iza sempre lhe dissera que não contasse essas coisas a ninguém, muito menos a um homem.

Ayla não estava muito segura se eram mesmo espíritos que causavam bebês. Pensava que o homem tinha mais a ver com isso, mas as plantas secretas funcionavam, de qualquer maneira. Nenhuma vida nova começara a pulsar nela quando tomava suas infusões especiais, quer tivesse estado com um homem, quer não. Não que se importasse, mas era preciso que estivessem num lugar só. Mas Jondalar deixara muito claro que na Jornada tão longa que tinham pela frente seria um risco engravidar pelo caminho.

Quando puxou a raiz da salva e sacudiu a terra, viu as folhas em forma de coração e as compridas flores tubulares amarelas da serpentária ou dracúnculo, boa para evitar os insucessos. Com um aperto no coração, lembrou-se de quando Iza fora apanhar aquela planta para ela. Quando se pôs de pé e guardou as raízes que tinha colhido numa cesta especial amarrada no alto de uma das cestas de bagagem, viu Huiin comendo seletivamente as pontas das aveia bravas. Ela gostava das sementes também, pensou, quando cozidas, e sua mente, prosseguindo na catalogação automática da flora medicinal, acrescentou a informação de que as flores e os talos ajudavam a digestão.

A égua tinha soltado seus excrementos e observou que já havia moscas zumbindo em volta. Em certas estações do ano, os insetos podiam ficar insuportáveis, pensou, e decidiu procurar plantas capazes de espanta-los. Quem sabe por que terras passariam?

Nessa revista sumária da vegetação local observou um arbusto espinhento que sabia ser uma variedade de losna, de gosto amargo e cheiro de cânfora. Não era um repelente, pensou, mas tinha lá suas utilidades. Nas imediações cresciam malvas, gerânios silvestres com folhas dentadas e flores de cor-de-rosa vivo e cinco pétalas, que davam frutas alongadas, parecidas com bicos de grou. As folhas secas e reduzidas a pó ajudavam a estancar o sangue e cicatrizar feridas. Tomada como chá, curavam feridas na boca e coceiras; e as raízes eram excelentes para diarreias e problemas do estômago. O gosto era amargo e forte, mas o remédio podia ser tomado impunemente por crianças e pessoas idosas.

Olhando para onde estava Jondalar, viu Lobo também, de relance Ele ainda roía o sapato. Interrompeu suas cogitações e se concentrou de novo nas últimas plantas que havia observado. Por que elas lhe tinham chamado a atenção? Alguma coisa nelas lhe parecera importante. Subitamente, lembrou-se. Logo pegou outra vez a vara de furar e começou a cavar em torno da losna de gosto amargo e odor de cânfora e do adstringente, mas relativamente inofensivo, gerânio.

Jondalar, que havia montado e estava pronto para partir, voltou-se para ela e a interpelou:

— Ayla, por que está recolhendo plantas? Devemos partir. Precisa mesmo dessas coisas?

— Preciso, e não vai demorar — respondeu, apanhando a raiz do rábano-bastardo de gosto ardido. — Acho que sei como manter Lobo longe das nossas coisas. — Apontou para o animal, que ainda brincava com o resto do mocassim. — Vou fabricar um "repelente de Lobo".

Dirigiram-se para o sudeste, a fim de voltar ao rio que vinham seguindo. A poeira assentara durante a noite, e no ar, agora claro e nítido, via-se agora a distante linha do horizonte, debaixo daquele véu sem fim. Cavalgando através do campo, tudo o que viam, de um extremo da terra ao outro, de norte a sul, de leste a oeste, ondulado, encapelado em vagalhões, sempre em movimento, era aquele imenso mar de relva: uma vasta abrangente, pastagem. As poucas árvores que existiam junto dos rios apenas serviam para acentuar a vegetação dominante, mas a magnitude daquelas planícies relvosas era muito maior do que imaginavam.

Camadas maciças de gelo, de dois, três, oito quilómetros de espessura esmagavam os pólos da terra e se espalhavam pelas terras do norte, comprimindo a crosta rochosa do continente e deprimindo o próprio fundamento rochoso debaixo do seu peso inconcebível. Para o sul do gelo ficavam as estepes, planícies cobertas de gramíneas, frias, secas, da largura do continente. Iam do oceano ocidental ao mar oriental. Toda a terra que bordejava o gelo era uma imensa planície relvosa. E por toda parte, cobrindo a terra, do vale profundo à colina fustigada pelo vento, tudo era relva. Montanhas, rios, lagos e mares, que davam umidade maior e propiciavam o aparecimento de árvores, eram as únicas intrusões no caráter essencialmente herbáceo das terras setentrionais durante a Época Glacial.

Ayla e Jondalar sentiam que o solo começava a descer para o vale do rio maior, embora estivessem ainda a alguma distância da água. Antes de muito tempo viram-se cercados de capim alto. Erguendo-se para ver acima dessa vegetação de 25 centímetros de altura, mesmo de cima de Huiin, Ayla pouco mais via que a cabeça e os ombros de Jondalar entre os topos plumosos e talos balouçantes azul-turquesa das plantas, coroadas por minúsculos flotetes de um ouro avermelhado. Vislumbrava, de tempos em tempos, a montaria castanho-escuro, mas reconhecia Racer apenas por saber que era ele que estava lá. Alegrava-se com a vantagem da altura que os cavalos lhes davam. Se estivessem a pé, só com dificuldade poderiam passar por tão densa floresta de capins gigantes agitados pelo vento.

Não que constituíssem barreira, abriam-se com facilidade para dar-lhes passagem, mas podiam ver poucos passos adiante: e, atrás, os capins se fechavam como uma cortina, deixando poucos sinais do caminho por onde tinham vindo. Sua visão se limitava à área imediatamente em torno eles, como se levassem consigo um bolsão de seu próprio espaço enquanto e deslocavam. Apenas com a brilhante incandescência traçando sua rota familiar através do claro céu azul profundo, e os talos altos das plantas mostrando com sua inclinação para que lado o vento soprava, teria sido to mais difícil para eles encontrarem seu caminho e muito fácil se perderem um do outro.

Cavalgando, ela ouvia o murmúrio do vento e o alto zumbido dos mosquitos, junto da sua orelha. Era quente e abafado no meio daquela vegetação tão densa. Embora fosse visível que as altas ervas se agitavam, não sentia no rosto nenhum vestígio do vento. O zunzum das moscas e um rastro fugaz de fedor lhe disseram que Racer tinha soltado seus excrementos havia pouco tempo. Mesmo que não soubesse que ele estava logo à frente, o odor do cavalo era para ela tão distintivo quanto o do animal que estava montando ou o seu próprio. Em volta, tudo era o odor rico do solo, com seu húmus, os cheiros verdes da vegetação. Ela não classificava os cheiros como bons e maus. Usava o nariz como usava os olhos e ouvidos, com criteriosa discriminação, como instrumentos para investigar e analisar o mundo sensível.

Depois de algum tempo, a mesmice do cenário, os talos de alto porte, um junto do outro, um depois do outro, o passo ritmado da montaria, e o sol, quente, quase a pino, tornavam Ayla letárgica. Estava acordada, mas não de todo alerta. As hastes repetitivas, altas, finas, reticuladas, faziam como que um borrão, que ela já não via distintamente Em vez disso, começou a notar o resto da vegetação. Muito mais que aquele capim gigante crescia por lá e, como de hábito, ela tomou nota mentalmente de tudo, sem muita consciência disso. Essa era apenas sua maneira de ver o que a cercava.

Ali, pensava Ayla, naquele espaço aberto... algum animal deve tê-lo feito, rolando na erva... há uns pés daquilo a que Nezzie chamava pé-de-ganso, que era como a erva-fedegosa da porta da caverna do Clã. Deveria apanhar umas duas mudas, refletiu, mas sem fazer qualquer esforço para ir pegá-las. Era de fato o quenopódio, com suas pequeninas folhas rígidas. E, mais adiante: aquela planta, de flores amarelas, e folhas enroladas em torno do talo, aquela é a couve-do-mato. Seria boa de come no jantar. Mas passou por ela também. E aquelas flores azul-púrpura as folhas miúdas, aquilo é astrágalo, e tem um monte de esporos. Estarão prontos? Duvido muito. À frente, a flor larga, branca, arredondada com rosa no meio, é a cenoura. Parece que Racer pisou em algumas das suas folhas. Preciso apanhar minha bengala de cavar. Mas há outras lá adiante. Parece abundante por aqui. Posso esperar, depois, faz tanto calor! Ela tentou espantar duas moscas que zumbiam junto dos seus cabelos suados. Não vejo Lobo há bastante tempo. Por onde andará?

Voltou-se, procurando por ele com os olhos, e viu que estava logo atrás de Huiin, cheirando o chão. Ele parou, levantou a cabeça para localizar outro cheiro, depois desapareceu nas ervas, para a esquerda. Ayla viu uma grande libélula azul com asas pintalgadas, que a passagem do lobo por aquela faixa densamente povoada perturbara, voejar baixo por cima de onde ele estivera como se quisesse marcar o terreno. Pouco depois, um grito curto e agudo seguido de um rumor farfalhante de asas precederam o súbito aparecimento de uma grande abetarda que levantava vôo. Ayla pegou a funda, que trazia enrolada na cabeça como uma fita. Era prática: ficava à mão e ajudava a segurar o cabelo.

Mas a gorda abetarda — com onze quilos, é a ave mais pesada das estepes — voava rápido para o seu tamanho e estava fora do alcance antes que ela pudesse tirar uma pedra da bolsa. Viu o pássaro, asas brancas molhadas de escuro nas pontas, ganhar velocidade, pescoço esticado para frente, pernas esticadas para trás, e lamentou não haver percebido em tempo o que Lobo tinha farejado. A abetarda teria sido um belo almoço para os três e ainda sobraria muita carne.

— Pena que não fomos mais vivos — disse Jondalar.

Ayla notou que estava guardando uma lança pequena e o atirador de lanças de volta na bagagem. Ela concordou enrolando a correia da funda outra vez em torno da testa.

— Quisera ter aprendido a lançar a vara de Brecie. É muito mais rápido. Quando paramos junto do charco onde havia todos aqueles pássaros, na caça aos mamutes, lembra-se, era inacreditável a presteza com que ela agia. E pegava mais de uma ave de cada vez.

— Sim, Brecie era fantástica — concordou Jondalar. — Mas talvez ela tivesse praticado tanto com aquela vara quanto você com a sua funda. Não acredito que uma habilidade assim se consiga numa única estação.

— Se esta vegetação não fosse tão alta, eu poderia ter visto o que Lobo perseguia a tempo de preparar a funda e atirar algumas pedras. Pensei que talvez se tratasse de um rato-calunga.

— Temos de ficar de olhos atentos a tudo o que Lobo desentocar — disse Jondalar.

— Eu estava de olhos abertos. Mas não consigo ver nada! — disse Ayla. Ela mirou o céu para conferir a posição do sol e ergueu o corpo para ver por cima da erva crescida.

— Mas você está certo. Não faria mal irmos pensando em carne fresca para hoje à noite. Tenho visto pelo caminho toda espécie de plantas boas de comer. Ia, até, parar para colher algumas, mas parecem tão abundantes por toda parte que é melhor deixar isso para o fim, ou ficarão murchas com o calor que está fazendo. Ainda temos um pouco do assado de bisonte que trouxemos do Acampamento do Capim Estipa, mas só dá para mais uma refeição, e não há motivo para usarmos a carne-seca nesta época do ano, com tanto alimento fresco a nossa volta. Quanto tempo falta Para acamparmos?

— Não creio que estejamos longe do rio... está ficando mais fresco, e a erva alta em geral nasce em terras baixas, perto de água. Uma vez alcançado o rio, começaremos a descê-lo e procuraremos um bom lugar — disse Jondalar, retomando a marcha.

A alta vegetação ia até a borda do rio, embora já se misturasse a árvores junto da margem encharcada. Pararam para que os cavalos bebessem água, e apearam para matar também a sede, usando uma pequena cesta de trançado bem apertado como caneca. Lobo logo apareceu, saído do mato, bebeu com ruído, depois se deixou cair de língua de fora, respirando com esforço.

Ayla sorriu.

— Lobo também está sentindo calor. Acho que ele andou explorando. Gostaria de saber o que descobriu. Ele vê muito mais do que nós através dessa alta vegetação.

— Preferia deixá-las para trás antes de acamparmos. Estou acostumado a ver a distância e me sinto tolhido. Não sei o que vamos encontra pela frente, e gosto sempre de saber por onde ando — disse Jondalar.

Acercando-se do cavalo e apoiando a mão justamente na raiz da sua crina dura, espetada, ele lançou uma perna por cima do animal, firmou-se nos braços e montou. Pouco depois conduzia o animal para um terreno mais firme antes de começar a descer o rio.

As grandes estepes não eram, de maneira nenhuma, uma paisagem só, desmesurada e indiferenciada, de altos colmos balouçando graciosamente ao vento. Essa vegetação crescia em áreas selecionadas de grande umidade, que continham também uma grande diversidade de outras plantas. Dominadas por capins gigantes, de mais de um metro e meio de altura, que chegavam, às vezes, a três metros e meio — gramíneas bulbosa de caule azul, estipas eretas, festucas grupadas em macegas —, as campinas ricas em cor apresentavam uma diversidade de ervas floridas e de largas folhas: ásteres e unhas-de-cavalo, por exemplo; êmulas-campanas amarelas, de muitas pétalas; daturas de grandes chifres brancos; tubérculos comestíveis, cenouras bravas, nabos e couves; rábanos-bastardos, mostardas, cebolas pequenas, íris, lírios e botões-de-ouro; groselhas e morangos; e framboesas — das pretas e das vermelhas.

Nas regiões semi-áridas de pouca precipitação, vicejavam ervas rasteiras, não mais altas que meio metro. Ficavam rente ao solo, cobrindo a maior parte da vegetação rasteira, e brotavam vigorosamente, principalmente na época da seca. Dividiam a terra com a macega baixa de arte-misas como a losna e a salva.

Entre esses dois extremos viviam os capins de porte médio, ocupando espaços frios demais para os capins rasteiros ou, secos demais para as altas vegetações. Esses prados de umidade moderada podiam ser também variegados, com muitas plantas floridas misturadas ao capim-aveia, aos capins-rabo-de-raposa e, sobretudo, nos aclives e terrenos mais elevados, ao capim-azul. O capim-d'água crescia onde o solo era mais molhado o capim-agulha onde era mais frio e a terra mais arenosa. Havia também uma abundância de ciperáceas, como o carriço — os talos eram lisos no carriço mas segmentados com folhas brotando das junções, como no erióforo, que parece algodão, nos solos de tundra, mais úmidos. Eram muitos os charcos, eriçados de caniços, capins-rabo-de-gato, e juncos de várias espécies.

Era mais fresco na orla do rio, e quando a tarde se fez noite Ayla se sentia dividida. Queria avançar rápido, sair daquela vegetação gigante que a sufocava, mas queria também deter-se e apanhar algumas das plantas que encontrava pelo caminho para a refeição da noite. Mas não iria parar, não iria, repetia consigo mesma, num refrão.

Mas logo as palavras perderam o sentido, e só ficou o ritmo daquela espécie de bordão no fundo da sua mente, surdo, quando deveria ser mais alto. Era perturbador aquilo, aquele sentido de um som alto e profundo que ela não conseguia ouvir. O desconforto era agravado pela vegetação que a envolvia por todos os lados e que deixava perceber apenas o que estava perto. Ayla estava mais acostumada às vistas abertas, a enxergar pelo menos um pouco além da vegetação circundante. Avançaram, e a estranha sensação ficou mais aguda, como se estivesse mais próxima, como se eles se acercassem da fonte daquele som que não se ouvia.

Ayla percebeu que o solo parecia mexido recentemente em diversos lugares. Respirou fundo e sentiu um forte cheiro pungente almiscarado e procurou localizá-lo, aguçando o nariz. Então ouviu um rosnado na garganta de Lobo.

— Jondalar! — chamou, e viu que ele parara e lhe fazia sinal com a mão para que parasse também. Havia por certo algo à frente. De súbito o ar se fendeu num grande e penetrante berro.

 

— Lobo! Parado! — ordenou Ayla ao filhote, que já avançava bem devagar, movido pela curiosidade. Deixou-se, depois, escorregar para o chão e também avançou com cautela em meio da vegetação que se tornava agora mais rala, aproximando-se dos gritos e estrondos que ouviam. Ayla se ajoelhou para conter Lobo, mas não podia despregar os olhos da cena que via na clareira.

Uma agitada manada de mamutes lanosos pisoteava tudo em volta. Haviam sido eles que, comendo, tinham aberto aquele vazio no limite da região da alta vegetação. Um mamute adulto precisava de mais de trezentos quilos de alimento todo dia, e um rebanho como aquele podia limpar uma área considerável rapidamente. Havia ali animais de todas as idades e de todos os tamanhos, inclusive alguns que não podiam ter mais que algumas semanas de existência. O que significava que a manada se compunha, primariamente, de fêmeas aparentadas umas com as outras. Eram mães, filhas, irmãs, tias, com sua progênie. Uma vasta família dirigida por uma velha matriarca, sábia e astuta, e também muito maior em tamanho que o resto do grupo.

À Primeira vista, a cor dos mamutes era castanho-avermelhado, mas a um olhar mais atento se percebiam infinitas variações do tom fundamental. Alguns dos animais eram mais vermelhos, outros mais castanhos, alguns tendiam para o amarelo e o ouro, e poucos eram quase negros a distância. O pêlo grosso, em duas camadas, cobria-os inteiramente, das trombas fortes e grossas e orelhas excepcionalmente pequenas, às caudas curtas terminadas num tufo de lã escura, e até as pernas curtas e grossos e os largos pés. As duas camadas de pêlos contribuíam para as diferenças de cor.

Embora a maior parte da lã que têm por baixo, densa, quente, surpreendentemente sedosa e macia já tivesse caído no verão, a lã do ano seguinte já começava a aparecer e era mais clara na coloração que a camada externa, fofa embora mais grosseira, de proteção contra o vento e lhe dava mais espessura e realce. Os pêlos externos, mais escuros, e de diferentes tamanhos — alguns, até, com um metro —, caíam como uma saia ao longo dos flancos dos animais, e com grande abundância do abdome e da barbela, que é a pele solta e pendente do pescoço e do peito formando uma almofada debaixo deles quando ficavam deitados em chão congelado.

Ayla ficou encantada com um casal de jovens gémeos de belo pêlo entre o ouro e o vermelho realçado por uma moldura de pêlos pretos, espetados, que espiavam por entre as fortes pernas e a saia cor de ocre da sua mãe extremosa. Os pêlos marrons, escuros, da velha matriarca tinham muitos fios brancos. Ayla notou também os pássaros brancos que eram companheiros inseparáveis dos mamutes, tolerados ou ignorados por eles, quer se encarapitassem no alto de uma cabeça lanosa quer se esquivassem habilmente de uma pata pesada, enquanto se banqueteavam com os insetos que os grandes animais deixavam alvoroçados.

Lobo manifestava ganindo sua vontade de investigar mais de perto aqueles interessantes animais, mas Ayla o continha, enquanto Jondalar tirava da cesta das bagagens, que Huiin levava, a corda com laço. A matriarca, grisalha, voltou-se uma vez para observá-los longamente — viram, então, que uma de suas presas estava partida — depois voltou a atenção para coisas mais importantes.

Só os machos ainda muito jovens ficavam com as fêmeas. Costumavam deixar o rebanho natal quando atingiam a puberdade, por volta de doze anos, mas vários jovens solteiros e até alguns um pouco mais velhos faziam parte daquele grupo. Haviam sido atraídos por uma fêmea de pelagem castanha. Ela estava no cio, e aquilo era a causa da comoção que Ayla e Jondalar tinham ouvido. Uma fêmea no cio ou estro, o período em que as fêmeas são capazes de conceber, era atraente para todos os machos, às vezes em número maior do que ela mesma teria desejado.

Essa fêmea castanha acabava de reunir-se a sua família, depois de deixar para trás três machos jovens, de seus vinte anos, que a vinham perseguindo. Os machos, que tinham desistido, mas só temporariamente, estavam agora um tanto distanciados da manada, descansando, enquanto a fêmea se refazia em meio às outras fêmeas excitadas. Uma vitela de dois anos correu para o objeto da atenção dos machos, foi saudada por um toque afetuoso da tromba, encontrou um dos dois peitos entre as pernas dianteiras e começou a mamar, enquanto a fêmea apanhava um chumaço de capim. Ela se vira perseguida por machos o dia todo e não tivera oportunidade de alimentar sua cria ou de comer e beber ela mesma. Pois não teria muita chance agora.

Um macho de porte médio acercou-se da manada e começou a tocar as outras fêmeas com a tromba, muito abaixo da cauda, entre as pernas traseiras delas, fungando e provando, a ver seu estado de prontidão. Como mamutes crescem a vida inteira, o tamanho daquele animal indicava que ele era mais velho que os três que haviam perseguido a fêmea antes. Teria uns trinta anos, talvez. Quando se aproximou da fêmea de pêlo avermelhado, ela se afastou num trote rápido. Ele imediatamente abandonou as demais e saiu atrás dela. Ayla ficou boquiaberta quando ele tirou seu gigantesco órgão da bainha e ele começou a inchar numa forma alongada e curva de S.

Jondalar viu que ela respirara fundo e lançou-lhe um olhar. Ayla se virou para olhar para ele, e os olhos dos dois, igualmente maravilhados e cheios de assombro, ficaram presos um ao outro por um momento. Embora ambos costumassem caçar mamutes, nenhum dos dois tinha jamais observado grandes animais muitas vezes de tão perto, e nenhum dos dois os vira jamais acasalar-se. Jondalar sentiu um aperto nos rins observando Ayla. Ela estava excitada, rubra, de boca entreaberta, respirando em haustos curtos, e tinha, nos olhos arregalados, uma fagulha de curiosidade. Fascinados pelo espetáculo daquelas duas criaturas maciças prestes a honrar a Grande Mãe Terra, de acordo com as exigências d'Ela, eles se afastaram.

Mas a fêmea se pusera a correr, descrevendo um grande arco à frente do grande macho até encontrar-se de novo com a sua família e nela se integrando. Como se aquilo fosse fazer grande diferença. Logo era de novo objeto de perseguição. Um macho a alcançou e conseguiu montá-la, mas ela não se mostrou cooperativa e conseguiu escapar-lhe, embora ele lhe borrifasse as pernas de trás. De vez em quando, sua filha procurava segui-la nas suas galopadas de fuga até se deixar ficar com as outras fêmeas. Jondalar se perguntava por que ela evitava os machos interessados com tanta insistência. Será que a Mãe não esperava que os mamutes fêmeas A honrassem também?

Como se os animais tivessem combinado parar e comer, tudo se aquietou por algum tempo, com todos os mamutes rumando devagar para o sul e consumindo a erva alta em grandes lotes num ritmo constante. Num raro instante de pausa, a fêmea de pelagem vermelha ficou parada e de cabeça baixa, parecendo muito cansada, e tentando comer.

Os mamutes passaram a maior parte do dia e da noite pastando. Fossem fibras de tão má qualidade quanto aquelas — eles são capazes de comer até casca de árvore arrancada com as presas, embora isso fosse mais comum no inverno —, os mamutes precisam de enormes quantidades de massa para alimentar-se todo dia. Esse lastro não digerível lhes atravessava o corpo a cada doze horas, com a adição de uma pequena quantidade de plantas mais nutritivas e suculentas, de folhas largas, ou ocasionalmente, de espécies escolhidas de salgueiro, bétula, ou amieiro muito mais ricas em nutrientes que a erva alta, mas tóxica para mamutes quando ingeridas em grandes quantidades.

Quando os grandes brutos lanosos se afastaram um pouco, Ayla atou a corda no pescoço do lobo, que estava ainda mais interessado do que eles nos mamutes. Ficava insistindo por chegar mais perto, mas ela não queria que ele aborrecesse a manada. Sentia que a velha matriarca lhes, dera uma permissão tácita de ficar, mas só se guardassem distância. puxando os cavalos, que demonstravam também algum nervosismo e excitação, Ayla e Jondalar andaram em círculo por entre a erva alta e acompanharam o rebanho. Embora já os tivessem observado longamente, nenhum dos dois estava inclinado a partir. Havia ainda um clima de expectativa em torno dos mamutes. Alguma coisa devia acontecer. Talvez fosse apenas o fato de que o acasalamento que haviam visto, tinham sido quase convidados a ver, não se completara ainda. Mas era mais que isso.

Enquanto iam, devagar, na esteira da manada, ambos estudavam os gigantescos animais detidamente, mas cada um de uma perspectiva independente. Ayla caçara desde os seus verdes anos e observara animais com grande frequência, mas suas presas eram, de costume, muito menores Mamutes não eram caçados por indivíduos e sim por grupos numerosos, organizados e coordenados. Ela já conhecia aqueles animais de perto, quando caçara com os Mamutói. Mas na caça não há tempo para estudar e aprender, e Ayla não sabia quando teria outra oportunidade assim de vê-los bem, machos e fêmeas, outra vez.

Embora já soubesse da diferença que apresentavam de perfil, percebeu bem isso agora. A cabeça de um mamute era maciça e arredondada como uma cúpula — com grandes cavidades na altura dos sinos, que ajudavam a aquecer o ar frio do inverno no curso da respiração — e acentuada por uma bola de unto e por um farto chumaço de pêlo escuro e armado. Logo abaixo da cabeça, havia um sulco profundo na nuca, seguido de nova protuberância de gordura no cangote. A partir daí, o lombo descaía a pique para o pélvis estreito e ancas quase graciosas. Ela sabia muito bem, por ter carneado e devorado mamutes, que o segundo cupim de gordura era diferente, em qualidade, dos dez centímetros de toucinho que ficava logo debaixo da pele rija, de um bom centímetro de espessura A gordura era mais delicada e saborosa.

Mamutes lanudos tinham pernas relativamente curtas para o seu tamanho, o que de certo modo lhes facilitava a coleta de alimento, pois comiam principalmente capim e não folhas verdes de árvores como seus parentes de outras regiões. Havia poucas árvores na estepe. Mas como as cabeças dos mamutes de lugares mais quentes, as desses estavam longe do solo e eram grandes e pesadas demais — sobretudo em virtude das enormes presas, para serem sustentadas por um pescoço comprido. Assim, não podiam alcançar o alimento ou a água de maneira direta como fazem os cavalos ou os cervídeos. A evolução da tromba resolveu esse problema de levar comida e bebida até a boca.

As trombas sinuosas e peludas do mamute eram robustas o bastante para arrancar uma árvore pela raiz ou levantar um grande bloco de gelo e quebrá-lo em blocos menores, que serviam para matar a sede no inverno. Eram também suficientemente destras para apanhar uma folha só de cada vez. Eram, sobretudo, maravilhosamente adaptadas para arrancar capim do chão. Tinham duas projeções desiguais na extremidade. Uma superior, que era como um dedo, que o animal podia controlar com toda a delicadeza; e outra, inferior, uma estrutura mais larga, achatada, e flexível que parecia uma mão, mas sem ossos ou dedos separados.

Jondalar ficou assombrado com a habilidade e força da tromba ao ver como um mamute enrolava essa mão em torno de talos da vegetação alta enquanto o dedo superior puxava outras mais para engrossar o feixe. Fechando, então, o dedo em torno do feixe como um polegar humano, a tromba extraía as plantas do chão, com raízes e tudo. Depois de sacudir aquilo no ar, para livrar-se da maior parte da terra, o mamute enfiava as ervas na boca e já colhia mais enquanto mastigava.

A devastação que uma manada como aquela ia deixando para trás na estepe era considerável, ou assim parecia. Mas apesar das plantas arrancadas e das árvores sem casca, sua progressão era benéfica — para a estepe e para os outros animais. Removendo a vegetação alta, de talos duros como madeira, e os arbustos, abria-se espaço para o crescimento de espécimes mais ricos e a renovação do capim, alimentos essenciais a outros diversos habitantes da estepe.

Ayla de súbito estremeceu e sentiu um frio até os ossos. Notou, então, que os mamutes tinham parado de comer. Muitos deles haviam erguido a cabeça e olhavam para o sul com as orelhas felpudas estendidas e as cabeças balançando para a frente e para trás. Jondalar observou uma alteração na atitude da fêmea avermelhada que todos os machos perseguiam. Seu aspecto de fadiga desaparecera, e ela parecia antecipar alguma coisa iminente. De súbito, ela soltou um ronco profundo e vibrante. Uma surda ressonância encheu a cabeça de Ayla e ela se arrepiou toda. Um som como o de uma trovoada a distância cresceu, vindo do sudoeste.

— Jondalar! — gritou ela, apontando. — Olhe!

Ele olhou. Vindo na direção deles, a grande velocidade, levantando nuvens de poeira como se um redemoinho o acompanhasse, vinha um imenso mamute cor de ferrugem, do qual só se viam o lombo acima da crista da vegetação alta e as fantásticas presas curvadas para cima. Começavam grossas, junto da mandíbula superior. Abriam-se um pouco ao um descer, curvavam-se para cima, espiraladas, e afinavam até as pontas já um tanto gastas. Se não quebrassem, acabariam por formar um grande circulo, com as extremidades se cruzando no alto.

Os elefantes peludos da Época Glacial eram compactos, poucas vezes excedendo três metros medidos do lombo ao solo, mas suas presas tinham, por vezes, enormes dimensões, as mais espetaculares jamais vistas para a sua espécie. Quando um desses mamutes chegava ao término dos seus setenta anos, essas grandes peças de marfim podiam ter cinco metros de comprimento, pesando 130 quilos cada uma.

Um odor opressivo, almiscarado o precedeu, provocando uma onda de excitação entre as fêmeas. Quando o macho alcançou a clareira, elas correram para ele, oferecendo-lhe o seu cheiro com grandes jorros de urina, soltando guinchos, barrindo, trombeteando suas saudações. Cercaram no em tumulto, aproximando-se dele fasto, ou procurando tocá-lo com as trombas. Sentiam-se atraídas, mas também esmagadas. Os machos, por sua vez, se retiraram para a beira do grupo.

Quando o animal ficou suficientemente próximo para que Ayla e Jondalar pudessem vê-lo bem, eles também ficaram tomados de estupor. O mamute carregava a cabeça erguida e exibia suas espirais de marfim com o máximo de efeito. Muito mais compridas que as das fêmeas, não só de menores proporções como também mais retas, suas presas impressionantes superavam até os marfins mais respeitáveis dos machos da horda. Suas orelhas pequenas e peludas, esticadas, seu tope escuro, ereto, sua pelagem castanho-avermelhada com os pêlos muito longos adejando, soltos, ao vento, acrescentavam volume ao seu tamanho já maciço. Bem mais alto do que os machos maiores do bando, pesando duas vezes mais que as fêmeas, era sem dúvida nenhuma o animal mais gigantesco que Ayla e Jondalar jamais tinham visto. Tendo sobrevivido a duras peripécias seguramente, com mais de 45 anos, o animal estava no auge da sua forma, um magnífico mamute, em pleno apogeu.

Mas não era apenas a predominância natural do tamanho que fazia os outros machos recuarem. Ayla notou que ele tinha as têmporas bastante inchadas e que, entre os olhos e as orelhas, o pêlo ruivo parecia manchado em listas verticais por riscos de um fluido viscoso e escuro que corria sem parar. Ele pingava e, de vez em quando, esguichava uma urina de odor forte, que cobria o pêlo das pernas e do sexo de uma espuma esverdeada. Ayla se perguntou se ele estaria doente.

Mas as glândulas temporais inchadas e os outros sintomas não eram uma doença. Entre os mamutes peludos, não só as fêmeas ficavam no cio. Os mamutes machos, adultos, também passavam todo ano por um período de frenesi sexual. Embora um mamute macho atingisse a puberdade por volta dos doze anos, não tinha esse frenesi antes dos trinta e então só por cerca de uma semana. Mas quando chegava aos quarenta e muitos anos, no auge da sua força, esse frenesi podia durar de três quatro meses. Embora qualquer macho, uma vez passada a puberdade fosse capaz de cruzar com qualquer fêmea no cio, eram mais bem sucedidos quando estavam nesse período.

O mamute cor de ferrugem não era apenas supremo ali, mas também um animal tomado de frenesi sexual, e tinha vindo em resposta ao chamado da fêmea no cio, para cruzar com ela.

De perto, os mamutes machos sabem quando as fêmeas estão prontas para conceber pelo cheiro que exalam, como acontece com muitos quadrúpedes. Mas os mamutes ocupavam territórios tão vastos que tinham criado um meio adicional de fazerem saber estarem prontos para o acasalamento Quando uma fêmea estava no cio e o macho no frenesi, o ruído que emitiam se tornava mais baixo. Sons muito graves não morrem a longas distâncias como sons muito agudos, e os chamados feitos então alcançavam muitos quilómetros.

Jondalar e Ayla podiam ouvir com clareza os barridos surdos da fêmea no cio, mas os do macho eram tão discretos que eles mal os percebiam. Mesmo em circunstâncias ordinárias, os mamutes se comunicavam a distância através de roncos e apelos de que pouca gente tomava conhecimento. Já o grito do mamute macho no cio era, de regra, extremamente alto como um bramido profundo; e o da fêmea, ainda mais estridente. Embora poucas pessoas fossem capazes de detectar as vibrações sônicas dos tons mais baixos, muitos dos seus elementos eram tão graves que ficavam abaixo do registro da audição humana.

A fêmea avermelhada vinha mantendo a distância o bando de jovens mamutes pretendentes, atraídos pelos seus convidativos odores e pelo retumbante som dos seus chamados de baixo diapasão, que podiam ser ouvidos de longe por outros mamutes, se não por pessoas. Mas ela desejava um macho mais velho e dominador para gerar seus filhos, um macho cujos anos de vida já tivessem provado sua saúde e seus instintos de sobrevivência, alguém que a seu ver fosse suficientemente viril para procriar. Em outras palavras, algum mamute em estado de frenesi. Ela não pensava nisso exatamente desse modo, mas seu corpo o sabia.

Agora que ele chegara, a fêmea estava pronta. Sua longa franja de pêlos dançando a cada passo, ela correu para o grande animal trombeteando seus sonoros bramidos e mexendo com as pequenas orelhas peludas. Urinou, então, estrepitosamente num grande jorro e, depois, estendendo a tromba para o comprido órgão do macho, sinuoso como um S, cheirou e provou a urina dele. Gemendo alto, ela fez uma pirueta, aproximou-se do macho de costas e se enfiou nele, de cabeça erguida.

O imenso mamute distendeu a tromba ao longo do dorso da fêmea, acariciando-a e acalmando-a ao mesmo tempo. Em seguida empinou-se e montou-a, pondo as duas patas dianteiras bem para a frente no lombo dela. Era duas vezes maior que ela, tão grande que parecia capaz de esmagá-la, mas muito do seu peso descansava nas patas traseiras. Com a extremidade em gancho do seu órgão, duas vezes curvo e admiravelmente móvel, ele encontrou a abertura dela, que era como uma cutilada baixa, endireitou o órgão e penetrou-a fundo. Depois abriu a boca para soltar um berro.

Esse berro que Jondalar ouviu parecia abafado e remoto, embora ele, sentisse um latejo forte. Ayla ouviu um pouco mais que ele, mas estremeceu violentamente, e uma sensação esquisita, de calafrio, percorreu seu corpo. A fêmea avermelhada e o mamute cor de ferrugem se mantiveram na mesma Posição por muito tempo. Os compridos fios vermelhos da pelagem dele luziam com a intensidade do esforço, com a tensão, mas o movimento era quase imperceptível. E quando ele desmontou, afinal, esguichava abundantemente. Ela avançou alguns passos e soltou um berro grave e prolongado que deu um frio na espinha de Ayla e lhe arrepiou a pele toda.

A manada toda acorreu, trombeteando e barrindo, tocando-lhe a boca e o órgão sexual ainda molhado com as trombas, defecando e urinando ruidosamente de excitação. O mamute cor de ferrugem parecia indiferente ou cego a esse pandemônio de júbilo. Descansava de cabeça baixa, finalmente todos se acalmaram e se afastaram para recomeçar a comer. Só a filha da fêmea se deixou ficar. A fêmea barriu de novo, baixinho, esfregou a cabeça contra um flanco cor de ferrugem.

Nenhum dos machos se acercou do bando de fêmeas com o grande mamute por perto, embora a fêmea castanha não tivesse ficado menos tentadora. Além de parecer irresistível aos machos, o cio dava às fêmeas domínio sobre os machos, tornando-as agressivas mesmo com os animais maiores, a não ser que eles também estivessem no mesmo estado de excitação. Os outros machos se afastavam, sabendo que o mamute cor de ferrugem se irritaria facilmente. Só outro macho no cio teria ousado enfrentá-lo e, assim mesmo, apenas se fosse do mesmo tamanho dele. Então, se estivessem ambos desejando a mesma fêmea, e estivessem perto um do outro, invariavelmente lutariam, com graves ferimentos ou a morte como possível resultado.

Quase como se soubessem as consequências, faziam o possível para não se aproximar um do outro e, assim, evitar confrontações. Os chamados graves dos machos e seus pungentes rastros de urina faziam mais do que anunciar sua presença a fêmeas no cio: anunciavam sua localização aos outros machos. Só três ou quatro mamutes estavam no cio ao mesmo tempo no período de seis ou sete meses em que as fêmeas podiam corresponder-lhes, mas era bastante improvável que qualquer um deles desafiasse o gigantesco mamute cor de ferrugem pela posse da fêmea castanha. Ele era o macho mais dominador de todos, estivesse ou não no cio, e os demais sabiam muito bem onde ele se encontrava.

Ayla e Jondalar, que continuavam a observar a manada, viram que mesmo quando a fêmea castanha e o macho mais claro começaram a comer permaneceram juntos. Em certo momento, a fêmea se afastou um pouco em busca de plantas especialmente suculentas. Um jovem mamute, ainda quase adolescente, procurou aproximar-se dela, mas ela correu logo para o consorte, que avançou rosnando para o imprudente. Seu penetrante e diferente barrido impressionou o jovem macho, que logo fugiu, baixando a cabeça com deferência, e ficando longe do casal. Finalmente, ao lado do seu macho, a fêmea castanha podia descansai alimentar-se em paz.

Mulher e homem não se animaram a partir imediatamente, embora soubessem que o espetáculo terminara, e Jondalar começasse de novo a sentir a necessidade de prosseguirem viagem. Sentiam-se honrados, se bem que assustados, por aquela oportunidade de assistir ao acasalamento dos mamutes. Não tinham sido simples espectadores, mas participantes de uma comovente e importante cerimónia. Ayla teria gostado de correr para os animais e tocá-los, expressando sua apreciação e partilhando da sua alegria.

Antes de seguirem caminho, Ayla notou que muitas das plantas que vinha admirando cresciam também nas proximidades e decidiu colher algumas usando seu podão. Jondalar se ajoelhou para ajudá-la, embora tivesse de perguntar-lhe a cada passo o que queria.

Aquilo ainda a surpreendia. No tempo em que vivera no Acampamento do Leão, aprendera os costumes e padrões de comportamento dos Mamutói, que eram muito diferentes do que conhecera no Clã. Mesmo lá no entanto, ela muitas vezes trabalhava com Deggie ou Nezzie, ou muitas pessoas trabalhavam juntas, e ela esquecera a disposição que ele tinha de fazer serviços que o Clã teria considerado serviços de mulher. Mas, desde seus primeiros dias no vale, Jondalar jamais hesitara em fazer alguma coisa que ela fazia, e se espantava que ela se surpreendesse com isso uma vez que o trabalho tinha de ser feito. Agora que estavam a sós, ela tomava de novo consciência, e mais agudamente, dessa característica dele.

Quando, finalmente, partiram, cavalgaram em silêncio por algum tempo. Ayla continuava com o pensamento nos mamutes. Não conseguia tirá-los da cabeça. Pensava, também, nos Mamutói, que lhe tinham dado um lar quando não tinha nenhum. Eles se denominavam Caçadores de Mamutes, embora caçassem muitas outras espécies de animais, e davam àqueles animais gigantescos um lugar de honra mesmo quando os dizimavam. Além de fornecer-lhes muito do que lhes era necessário à vida — carne, gordura, couro, lã para fibras e cordas, marfim para ferramentas e esculturas, ossos para moradia e, até, combustível —, a caça ao mamute tinha para eles um profundo sentido espiritual.

Ela se sentia mais Mamutói do que nunca naquele momento, embora estivesse de partida. Não era por acidente que tinham encontrado aquele bando. Estava convencida de que havia motivo para isso, e se perguntava se Mut, a Mãe Terra, ou talvez seu próprio totem, queria dizer-lhe alguma coisa. Muitas vezes se apanhava, nos últimos tempos, pensando no espírito do Grande Leão da Caverna, que Creb lhe dera como totem. Imaginava se ele ainda a protegia, embora ela já não estivesse no Clã, e se algum espírito ou totem do Clã se encaixaria na sua nova vida com Jondalar.

A vegetação alta começava a ficar mais rala, e eles se aproximaram do rio procurando um bom lugar para acampar. Jondalar conferiu a posição do sol, que já descia para o poente, e decidiu que era tarde demais para caçar naquele dia. Ele não lamentava que tivessem ficado tanto tempo perdidos na contemplação dos mamutes, mas tinha contado conseguir alguma carne, não só para a refeição daquela noite mas para as dos próximos dias. Não queria usar a comida seca que traziam, a não ser que isso fosse indispensável. Agora, tinham de arranjar tempo para caçar de manhã.

O vale, com sua luxuriante terra de aluvião, mudara, e a vegetação também. À medida que as margens do rio se alteavam, a vegetação mudava e, para alívio de Jondalar, era agora muito mais baixa. Mal alcançava a barriga dos cavalos. Ele preferia ver aonde iam. Quando o terreno começou a ficar plano depois de uma subida, a paisagem assumiu um aspecto familiar. Não era como se já tivessem estado lá, mas o sítio lembrava a região em torno do Acampamento do Leão, com altas barrancas e sulcos erodidos levando ao rio.

Subiram por um aclive suave, e Jondalar observou que o rio infletia para a esquerda, isto é, para o oriente. Era tempo de deixar aquele curso d'água e seus meandros e cortar o campo rumo oeste. Parou para consultar o mapa que Talut havia entalhado numa placa de marfim para ele Quando ergueu os olhos, Ayla já desmontara e estava de pé à beira do barranco, olhando o rio. Algo na sua atitude lhe deu a impressão de que ela estava preocupada ou infeliz.

Desmontou e foi ter com Ayla. Viu, então, do outro lado do rio, o que a tinha atraído até aquela margem. Encaixado no talude de um terraço, a meia altura, na margem oposta, havia um grande e largo cômoro com tufos de vegetação de um lado e de outro. Parecia parte da barranca do rio, mas a entrada em arco fechada por uma cortina pesada de couro de mamute revelava sua verdadeira natureza. Era um abrigo como aquele que o Acampamento do Leão chamava lar, e onde tinham morado durante o último inverno.

Enquanto contemplava a estrutura, de aspecto tão familiar, Ayla tinha presente, vividamente, o interior do abrigo do Acampamento do Leão Aquela morada semi-subterrânea era espaçosa e fora construída para durar muitos anos. O piso fora escavado no fino loess da margem do rio e ficava abaixo do nível do solo. Suas paredes e seu teto abobadado de placas de relva consolidadas com argila do rio estavam firmemente sustentados por uma estrutura de mais de uma tonelada de grandes ossos de mamute, com galhadas de cervos entrançadas e amarradas no teto e uma grossa camada de caniços e capim entre os ossos e o entulho. Bancos de terra ao longo do muro se convertiam em camas quentes, e áreas de depósito eram cavadas abaixo do nível do subsolo frio. O arco da porta era feito com duas grandes presas de mamute, com as bases no solo e as pontas frente a frente e presas. Aquilo não era, de maneira nenhuma, uma construção temporária, mas uma habitação permanente, grande o bastante para abrigar diversas famílias numerosas debaixo de um só teto. Ayla estava segura de que os responsáveis pela instalação tinham toda intenção de retornar a ela, assim como os do Acampamento do Leão faziam, todo inverno.

—    Devem estar na Reunião de Verão — disse. — Imagino que acampamento será esse.

—    Talvez seja o Acampamento do Capim Estipa — disse Jondalar.

—    Talvez — disse Ayla. E ficou a observar a caverna do outro lado do rio. — Parece tão abandonada — acrescentou depois de algum tempo. — Não imaginei, quando partimos, que eu nunca mais veria o Acampamento do Leão. Lembro-me de que quando separei coisas para levar para a reunião deixei algumas para trás. Se eu soubesse que não voltaria, teria trazido tudo comigo.

— Você se arrepende de ter vindo, Ayla? — A ansiedade de Jondalar se traduzia, como sempre, em rugas na testa. — Eu lhe disse que poderia ficar com você e tornar-me um mamutói, se fosse esse o seu desejo. Sei que eles lhe deram um lar e que estava feliz. Não é tarde demais, podemos ainda voltar sobre os nossos passos.

— Não. Fico triste por estar partindo, mas não infeliz. Quero ficar com você. É o que sempre quis. Desde o princípio. Mas sei que você quer ir para casa desde que o conheço. Você poderia acostumar-se a viver aqui, mas não estaria jamais contente. Sentiria falta da sua gente, da sua família daqueles para os quais nasceu. Coisas que para mim não têm a mesma importância. Jamais saberei para quem nasci. O Clã era meu povo.

Os pensamentos de Ayla se voltaram para dentro, e Jondalar viu que um sorriso lhe adoçava a fisionomia.

— Iza teria ficado feliz por mim sabendo que eu ia embora com você. Ela teria gostado de você. Ela me disse muito antes disso tudo que eu não fazia parte do Clã, embora não pudesse lembrar-me de qualquer pessoa ou qualquer coisa anterior a eles. Iza temia por mim. Pouco antes de morrer, me disse: "Encontre sua própria gente, seu próprio homem." Não um homem do Clã, um homem como eu. Alguém que eu pudesse amar, que tomasse conta de mim. Mas vivi por tanto tempo sozinha no vale que não achei que fosse encontrar ninguém. E então você surgiu. Iza tinha razão. Por difícil que tenha sido partir, eu tinha de encontrar minha gente. Não fosse por Durc, e eu até poderia agradecer a Broud por me ter forçado a sair. Eu jamais encontraria um homem para me amar se tivesse ficado no Clã. Ou alguém de quem gostasse tanto.

— Nós não somos muito diferentes um do outro, Ayla. Eu também não achava que encontraria alguém para amar, embora tivesse conhecido muitas mulheres entre os Zelandonii e tenhamos conhecido muitas mais na nossa Jornada. Thonolan fazia amigos com facilidade, mesmo entre estranhos, e isso me facilitava as coisas. — Jondalar fechou os olhos, angustiado, por um momento, como se quisesse escapar à memória, e uma grande tristeza se estampou no seu semblante. A dor era ainda muito viva. Ayla podia ver isso sempre que ele falava do irmão.

Ela olhou Jondalar, seu corpo musculoso, excepcionalmente alto, os longos cabelos louros e lisos amarrados com uma correia na nuca, os traços finos e bem-feitos. Depois de tê-lo visto em ação na Reunião de Verão duvidava que ele precisasse do irmão para fazer amigos, principalmente entre as mulheres, e ela sabia por quê. Mais ainda que o seu porte ou a beleza do seu rosto, eram os olhos, seus olhos incrivelmente vibrantes expressivos, que pareciam revelar o íntimo desse homem tão fechado, que lhe davam um apelo magnético e uma presença que era quase irresistível.

Da mesma forma como ele a encarava agora, os olhos cheios de ardor e desejo. Podia sentir seu corpo responder ao simples contato do olhar dele. Pensou na fêmea castanha, que recusava todos os machos, à espera do grande macho cor de ferrugem que viria e, depois, não querendo esperar mais. Havia prazer também em prolongar a antecipação.

Ayla gostava de contemplá-lo, de encher seus olhos com ele. Julgara-o belo desde que o vira, embora não tivesse termos de comparação. Depois percebera que outras mulheres também gostavam de vê-lo, consideravam no atraente, de maneira especial, avassaladora. Essa beleza dele dava a Jondalar pelo menos tanto sofrimento quanto prazer. Representar uma qualidade com a qual ele não tinha nada a ver não lhe dava a satisfação de sentir-se realizado. Aqueles eram dons gratuitos da Mãe, não o resultado de seus próprios esforços.

Mas a Grande Mãe Terra não se detivera nas simples aparências externas. Ela o dotara de uma inteligência muito viva, que tendia mais para a sensibilidade e a compreensão dos aspectos físicos do seu mundo, e de uma natural destreza. Treinado pelo homem com quem sua mãe vivia quando ele nasceu, e que era, reconhecidamente, o melhor no seu campo, Jondalar era um hábil fabricante de ferramentas de pedra, que aperfeiçoara seu ofício na Jornada, aprendendo as técnicas de outros britadores.

Para Ayla, porém, ele era belo não só por ser atraente segundo os padrões do seu povo, mas por ter sido a primeira pessoa que vira que se parecia com ela mesma. Era um homem dos Outros, não do Clã. Quando aparecera no vale, ela estudara seu rosto minuciosamente, se não de maneira óbvia, inclusive quando ele dormia. Era tão maravilhoso ver uma face com o aspecto familiar da sua própria face depois de tantos anos de ser a única diferente, sem os pesados sobrolhos e a fronte fugidia dos demais; sem aquele nariz grande, de cavalete alto, numa face pontuada, em que a mandíbula não tinha queixo.

Como a fronte dela, a de Jondalar se erguia lisa e reta sem protuberância acima dos olhos. O nariz e, até, os dentes eram pequenos em comparação, e ele tinha debaixo da boca um volume ossudo, um queixo, como seu. Depois de vê-lo, ela compreendeu por que o Clã estranhava o seu rosto achatado, a testa vertical. Ayla vira seu próprio reflexo na água e sabia que eles tinham razão quando lhe diziam isso. A despeito do fato de que Jondalar era mais alto do que ela, como os outros a achavam mais alta que eles; a despeito de ter ouvido de outros homens que era bonita no fundo Ayla ainda se achava alta demais, e feia.

Mas por ser Jondalar um macho, com traços fortes e ângulos mais pronunciados, ele se parecia com os do Clã mais do que ela. Aquele era o povo com que ela crescera, eram o padrão de que dispunha, e ela os achava bonitos. Jondalar, com um rosto parecido com o seu, porém, assim mesmo, mais parecido com os rostos do Clã que o seu, era belo.

A fronte alta de Jondalar alisou-se e ele sorriu.

— Fico feliz se você acha que Iza teria gostado de mim. Quisera ter conhecido essa sua Iza, e o resto do seu Clã. Mas tinha de conhecer você primeiro ou não entenderia que eles fossem gente e que eu pudesse tratar com eles. Ouvindo-a, vejo que são boa gente e gostaria de conhecê-los, algum dia.

— Muita gente é boa. O Clã me acolheu depois do terremoto, quando eu era pequena. E quando Broud me expulsou do Clã, fiquei sem ninguém. Era Ayla Sem-Família até que o Acampamento do Leão me aceitou, me deu o sentimento de pertencer a algum lugar, e fez de mim Ayla dos Mamutói.

— Os Mamutói e os Zelandonii não são muito diferentes. Acho que você vai gostar do meu povo e que eles vão gostar de você.

— Nem sempre você esteve certo disso — disse Ayla. — Lembro-me de que você achava que eles não me iam querer, por ter crescido com o Clã, e por causa de Durc.

Jondalar ficou constrangido.

— Eles vão dizer que meu filho é uma abominação, uma criança nascida de uma mistura de espíritos, em parte animal... você mesmo disse isso dele, uma vez. E porque fui eu que o pari, vão pensar ainda pior de mim.

—    Ayla, antes de sairmos da Reunião de Verão você me fez prometer que eu lhe diria sempre a verdade e não guardaria nada para mim. A verdade é que eu me preocupava no começo. Queria que viesse comigo, mas não queria que você ficasse falando de si própria com as pessoas. Queria que escondesse a sua infância, que mentisse, embora eu odeie a mentira... e você não saiba mentir. Tive medo de que eles a rejeitassem. Sei como é doloroso e não queria que você sofresse com isso. Mas estava com medo por mim também. Temia que me repudiassem por ter trazido você, não queria passar por todas essas coisas outra vez. Mas, por outro lado, não podia imaginar viver sem você. Não sabia o que fazer.

Ayla se lembrava muito bem da confusão e desespero que sentira vendo a indecisão dele. Por feliz que tivesse sido com os Mamutói, foi também terrivelmente infeliz por causa de Jondalar.

— Agora eu sei, embora quase tivesse perdido você para descobri-lo. Ninguém é mais importante para mim do que você, Ayla. Quero que seja você mesma, que diga ou faça o que achar melhor, porque é isso que amo em você, e acredito agora que a maior parte das pessoas irá recebê- la bem. Já vi isso. Aprendi algo da maior relevância com o Acampamento do Leão e os Mamutói. Nem todos pensam da mesma maneira, e as opiniões podem ser mudadas. Algumas pessoas tomarão o seu partido, as vezes as que a gente menos esperaria que o fizessem, e algumas terão compaixão necessária, e o amor, para criar uma criança que outros chamariam uma abominação.

— Não gostei da maneira como trataram Rydag na Reunião de Verão — Alguns nem queriam dar-lhe um enterro decente.

Jondalar sentiu a cólera na voz dela, mas podia ver lágrimas por trás da cólera.

— Também não gostei. Tem gente que não muda nunca. Não querem abrir os olhos e ver o que está patente. Para mim mesmo, levou tempo. Posso prometer-lhe que os Zelandonii a aceitarão, Ayla, mas se não aceitarem, procuraremos outro lugar para viver. Quero voltar sim, quero voltar para meu povo, rever minha família, meus amigos. Quero contar para minha mãe sobre Thonolan, pedir aos Zelandonii que procurem seu espírito, caso ele não tenha encontrado ainda seu caminho no outro mundo. Espero que nos ajustemos lá. Mas já não importa para mim se isso não acontecer. Essa foi outra coisa que aprendi. Foi por isso que lhe disse que estava disposto a ficar aqui com você, se o desejasse. Fui sincero.

Ele a segurava, tinha as mãos nos ombros dela, e olhava dentro dos olhos de Ayla com uma feroz determinação. Queria ter certeza de que a companheira compreendia. Sentia essa convicção, sentia o amor dele. Mas agora não estava segura se devia mesmo ter saído.

—    Se o seu povo não nos aceitar, para onde iremos?

Ele sorriu.

—    Encontraremos outro lugar, Ayla, se for preciso. Mas não acredito que isso aconteça. Eu já lhe disse, os Zelandonii não são muito diferentes dos Mamutói. Eles vão amar você como eu a amo. Já não me preocupo com isso. Nem sei bem se estive mesmo preocupado com isso algum dia.

Ayla sorriu para ele, contente com aquela certeza. Queria poder sentir a mesma coisa. Talvez ele tivesse esquecido ou talvez não tivesse percebido que forte impressão causara nela, forte e duradoura, sua primeira reação ao saber do filho dela e dos seus antecedentes. Ele havia recuado e olhado para ela com tal repulsa que ela não podia deixar de lembrar-se Era como se ela fora alguma hiena suja e repelente.

Quando recomeçaram a viagem, Ayla ainda pensava no que estaria a sua espera no fim da Jornada. Era verdade que as pessoas mudavam. Jondalar mudara completamente. Sabia que já não havia nele nem um pouco daquela aversão inicial, mas e as pessoas que haviam incutido nele essa espécie de sentimento? Se sua reação fora tão forte e imediata, o povo que o criara era responsável por isso. Por que reagiriam de maneira diferente ao vê-la? Por mais que quisesse ficar com Jondalar, por feliz que estivesse por ele querer levá-la, não estava ansiosa para encontrar os Zelandonii.

 

Permaneceram junto do rio. Jondalar estava quase certo de que o curso da corrente virava agora para leste, mas temia que aquilo fosse apenas um meandro dos muitos do seu longo curso. Mas se o rio mudava mesmo de direção, aquele seria o momento de abandoná-lo — e a segurança de acompanhar uma rota definida — para seguir em campo aberto e ele queria estar seguro de que iam no caminho certo.

Havia muitos lugares em que podiam pernoitar, mas, sempre consultando mapa, Jondalar procurava um sítio indicado por Talut. Era o ponto de referência de que precisava para verificar se estavam no rumo certo O lugar era usado com alguma regularidade, e ele esperava que estivesse, como pensava, nas imediações, mas o mapa mostrava apenas direções gerais e era impreciso, na melhor das hipóteses. Fora gravado às carreias numa placa de marfim como um suplemento às indicações que lhe tinham fornecido, e não pretendia ser, de modo algum, uma representação acurada do itinerário.

Quando a barranca continuou a subir e a empurrá-los para trás, os dois continuaram nela, pelo maior descortino que tinham, embora estivessem agora se afastando do rio. Lá embaixo, junto da água, um lago formado na curva do rio com a destruição do meandro e sua retificação já secava e se tornava em charco. Havia começado como uma laçada, pois que O rio, jovem, ia e vinha, serpenteante, como toda água que corre faz, que corta campo aberto. A laçada acabou por fechar sobre si mesma e formou um lago de pequenas dimensões, que ficou isolado quando o rio seguiu seu curso. Sem fonte de água que o alimentasse, começou a secar. A terra baixa e abrigada era agora um prado úmido em que vicejavam caniços e taboas, com plantas aquáticas nas áreas mais fundas. Com o tempo, o terreno pantanoso se converteria numa campina verdejante, com o solo enriquecido por esse estádio lacustre.

Jondalar por pouco não apanhava uma lança ao ver que um grande alce saía da cobertura vegetal mais espessa do fim do lago e patinhava no alagadiço, mas o animal estava fora do seu alcance, mesmo se lhe lançasse a lança, e seria difícil recuperá-lo depois de engolido pelo lodaçal. Ayla ficou olhando o desajeitado animal, com seu focinho dependurado e grandes chifres achatados imaturos. Ele erguia as largas patas, que o impediam de afundar no pântano, enfiando as pernas na vasa até a água lhe chegar aos flancos. Então enfiou a cabeça e retirou-a com lentilhas-d’água e bistorta-d'água. As aves aquáticas que viviam entre caniços ignoraram a sua presença.

Para além do charco, encostas com boa drenagem, sulcos e ribanceiras a pique ofereciam reentrâncias protegidas para plantas como o quenopódio, com seus pés de ganso, a urtiga, e verdadeiras almofadas de alsina, cabeludas, com pequenas flores brancas. Ayla preparou a sua funda e atirou algumas pedras redondas de uma bolsa. No fim do seu vale de outrora havia um sítio como aquele em que muitas vezes vira — e caçara — os esquilos excepcionalmente grandes da estepe. Um ou dois bastavam para uma boa refeição.

Aquele terreno acidentado, abrindo para campos abertos de relva, era para eles um habitat ideal. As ricas sementes das pastagens vizinhas, armazenadas com toda a segurança em esconderijos onde os esquilos hibernavam, sustentavam-nos na primavera quando era tempo de procriar de modo que quando as novas plantas começavam a surgir eles davam cria. Os alimentos ricos em proteínas eram essenciais ao desenvolvimento dos filhotes — para que alcançassem a maturidade antes do inverno. Mas nenhum desses animaizinhos apareceu enquanto os dois passavam, e Lobo não se mostrou disposto a desentocá-lo, ou não soube fazê-lo.

Quando continuaram para o sul, a grande plataforma de granito abaixo da planície que se estendia sem qualquer limite visível para leste começou a ceder lugar a colinas onduladas. Um dia, havia muito tempo, a terra por onde andavam fora toda coberta de montanhas, hoje erodidas. Seus testemunhos eram um renitente escudo rochoso que resistira às tremendas pressões que enrugavam a crosta e criavam montanhas e às forças ígneas capazes de sacudir a superfície e torná-la instável. Rochas novas haviam-se formado por cima do maciço fundamental, mas, aqui e ali, afloramentos do relevo original perfuravam as camadas sedimentares.

No tempo em que os mamutes pastavam na estepe, os capins e a vegetação, como os animais daquela terra antiga, floresciam não só em grande abundância, mas com uma surpreendente variedade e em associações inesperadas. Ao contrário de prados mais recentes, aquelas estepes não estavam organizadas em largas faixas de limitadas espécies de vegetação, determinadas pela temperatura e pelo clima. Formavam, em vez disso um complexo mosaico, com uma rica diversidade de plantas, que incluíam muitos tipos de capins e prolíficas ervas e arbustos.

Um vale bem irrigado, um planalto, uma pequena elevação ou uma depressão ligeira, cada uma dessas formas convidava sua vegetação específica, que crescia ao lado de vegetação completamente diversa. Um talude voltado para o sul podia abrigar plantas de clima quente, em contraste com a cobertura vegetal adaptada ao frio boreal da face norte da mesma elevação.

O solo do platô que Ayla e Jondalar atravessavam era pobre, e o mato que o cobria, fino e curto. O vento cavara sulcos profundos, e no vale elevado de uma velha torrente afluente do rio, o leito estava agora seco e, por falta de vegetação, apresentava até dunas de areia.

Embora mais tarde isso só se encontrasse em altas montanhas, naquele terreno áspero, não longe dos rios de planície, embaixo, ratos - calungas e lagômios cortavam capim com grande diligência para seca – lo e armazená-lo em seguida. Em vez de hibernarem no inverno, eles construíam túneis e ninhos debaixo da neve acumulada nas cavidades e sulcos e na face das rochas voltada para sotavento, e viviam da forragem que tinham guardado. Lobo viu os roedores e saiu atrás deles. Mas Ayla não se importou em caçá-los com a funda. Eram pequenos demais para servir como refeição, exceto em grande número.

Ervas árticas, que prosperavam nas terras setentrionais alagadas, terras de charcos e pântanos, beneficiavam-se na primavera da umidade adicional da neve que derretia e cresciam, em associação incomum, ao lado de alpinos resistentes mas robustos em elevações descobertas e colunas varridas pela ventania. O cinco-em-rama, com pequenas flores amarelas, encontrava proteção nas mesmas dobras protegidas do terreno e nas mesma covas preferidas pelos lagômios. Já nas superfícies expostas, camadas de candelárias com flores rosa ou púrpura formavam suas próprias redes de proteção de talos folgudos contra os ventos frios que tudo secavam. Ao lado deles, ervas-bentas da montanha agarravam-se às saliências rochosas ou às rugosidades das terras mais baixas, exatamente como faziam os flancos das montanhas. Sua ramagem baixa, sempre verde, de folhas pequenas e solitárias flores amarelas, havia formado, no curso dos anos, densas alfombras espalhadas.

Ayla notou o perfume do pega-mosca, começando a abrir seus botões cor-de-rosa. Percebeu então que já estava ficando tarde, e conferiu o sol que de fato baixava para oeste. As flores grudentas do pega-mosca abrem à noite, oferecendo refúgio aos insetos — mariposas e moscas — em trocada difusão do pólen. Tinham pouco valor alimentício ou medicinal mas as flores cheirosas a deliciavam e, por um momento fugaz, pensou em colher algumas. Mas já anoitecia, e Ayla não queria parar. Tinham de acampar logo, pensava, principalmente se fosse preparar a refeição que tinha em mente antes de escurecer.

Viu pulsatilas azul-púrpura, eretas e belas, saindo, cada uma, de uma roseta de folhas cobertas de finos cabelos e, espontâneas, as associações médicas lhe vieram à mente — a planta, seca, era boa para dor de cabeça e cólicas menstruais —, mas gostava das pulsatilas tanto pela formosura quanto pela utilidade. Quando avistou ásteres alpinas, de longas, finas pétalas amarelas e violeta saindo de rostas de folhas sedosas e peludas, sua vaga noção se tornou tentação consciente de colher algumas e também outras flores, sem outro motivo que o prazer de tê-las consigo. Mas onde botá-las? Iriam logo murchar, pensou.

Jondalar começava a pensar se haviam passado inadvertidamente pelo sítio de acampamento marcado no mapa ou se estavam mais longe dele do que imaginara. Chegava, relutantemente, à conclusão que teriam de acampar logo, ali mesmo, e procurar pelo outro lugar no dia seguinte. Com isso, e a necessidade de caçar, perderia, com toda a probabilidade, outro dia inteiro, e não podiam perder tantos dias. Estava ainda imerso nesses pensamentos, refletindo se teria tomado a decisão correta continuando para o sul, e imaginando as sérias consequências que adviriam de um erro de cálculo, que não deu atenção a um tumulto numa colina que que ficava à direita deles. Notou, apenas, que pareciam ser hienas que tivessem apanhado alguma presa.

Embora fossem, as mais das vezes, carniceiras, e se satisfizessem, sabidamente, quando famintas, com as mais imundas carcaças, as grandes hienas, com suas mandíbulas capazes de moer qualquer osso, eram também temíveis caçadoras. Tinham derrubado um bisonte jovem, e ainda não desenvolvido. Sua falta de experiência com a maneira de ser dos predadores fora a sua desgraça. Outros poucos bisontes permaneciam por perto, aparentemente a salvo, agora que um deles havia sucumbido, e um deles berrava, aflito com o cheiro do sangue fresco.

Ao contrário dos mamutes e dos cavalos da estepe, que não eram excepcionalmente grandes para a sua espécie, os bisontes eram gigantescos. O mais próximo tinha cerca de dois metros de altura, medido a partir da espádua, e peito e ombros muito fortes, embora seus flancos fossem quase graciosos. Os cascos eram pequenos, apropriados para correr velozmente em solo duro e seco, e o bisonte evitava alagadiços em que, pudesse atolar. A cabeça maciça era protegida por longos chifres pretos de dois metros de envergadura, que se curvavam para fora e, depois, para cima. A pelagem era marrom-escura e pesada, sobretudo no peito e nos ombros. Os bisontes costumavam fazer face a ventos frios e eram bem protegidos na frente, onde os pêlos caíam numa franja cerrada de cerca de um metro de comprimento e até a cauda curta era bem guarnecida de pêlo.

Embora fossem herbívoros, nem todos comiam exatamente as mesmas coisas. Tinham diferentes aparelhos digestivos ou hábitos alimentares diversos e faziam sutis adaptações na dieta. Os talos altamente fibrosos que alimentavam cavalos e mamutes não bastavam para bisontes e outros ruminantes. Precisavam de capins e folhas ricas em proteínas. E ou bisontes preferiam a vegetação rasteira, mais nutritiva, das regiões secas Só se aventuravam entre as vegetações médias e altas da estepe na primavera, principalmente, quando por toda parte havia pasto novo. Nessa época do ano ocorre o crescimento dos ossos e chifres dos bisontes. A primavera prolongada, chuvosa e verde dos pastos periglaciais dá aos bisontes, e a diversos outros animais, uma longa estação de desenvolvimento que explica suas grandes proporções.

Sombrio e introspectivo como estava, Jondalar levou algum tempo para tirar conclusões da cena na colina. Quando o fez e apanhou o seu arremessador de lança e uma lança, para tentar derrubar um bisonte como as hienas tinham feito, Ayla já avaliara a situação mas se decidira por outro curso de ação.

—    Vão embora! Vão embora daqui, bichos nojentos! Fora! — gritava, galopando, com Huiin, para as hienas e arremessando-lhes pedras com a funda. Lobo corria emparelhado com ela, satisfeito, rosnando e soltando latidos de filhote na direção do bando que batia em retirada.

Uivos de dor mostravam que as pedras de Ayla tinham alcançado o alvo, embora ela tivesse atirado com cuidado evitando as partes vitais. Se pretendesse, suas pedras poderiam ser fatais. Não seria a primeira vez que mataria uma hiena, mas sua intenção não era essa.

—    O que está fazendo, Ayla? — perguntou Jondalar, indo ao seu encontro.

Ayla estava junto do bisonte que as hienas haviam matado.

—    Estou expulsando essas hienas nojentas — disse, embora aquilo fosse óbvio.

— Por quê?

— Para que elas dividam conosco esta presa — respondeu ela.

— Pois eu já me preparava para ir no encalço de um dos que estavam por.

— Não precisamos de um bisonte inteiro, a não ser que pretendamos defumar a carne. Este bisão aqui é jovem e tenro. Os que estavam por perto eram, todos, velhos e duros — disse ela, apeando para afastar Lobo do animal derrubado.

Jondalar olhou na direção dos bisontes gigantes que tinham fugido diante de Ayla e depois observou o bisonte jovem, caído.

— Você está certa. Era uma manada de machos, e esse aí provavelmente deixou a manada da mãe recentemente para juntar-se a esta. Tinha ainda muito que aprender.

— Foi morto há pouco — disse Ayla, depois de examiná-lo. — As hienas abriram-Ihe a garganta, o ventre, e também os flancos. Vamos tirar o Que nos interessa e deixar o resto para elas. Não precisamos perder tempo caçando. Eles são velozes, e já devem estar longe. Acho que perto do rio tem um lugar que serve para acamparmos. Se for o sítio que estamos procurando, ainda temos tempo de preparar alguma coisa saborosa com o que colhemos pelo caminho mais esta carne.

Ela já estava abrindo a pele, cortando para cima a partir da barriga, e Jondalar ainda digeria o que ela dissera. Tudo acontecera depressa, mas de súbito toda a sua preocupação com a possibilidade de perderem um dia por terem de caçar e em busca do lugar para acampar desaparecera.

— Você é maravilhosa, Ayla! — disse, sorrindo e desmontando. Tirou, em seguida, uma faca afiada de sílex que fora adaptada a um cabo de marfim da bainha de couro presa ao seu cinto e foi ajudar a cortar os pedaços de carne que queriam.

— É disso que gosto em você. Está sempre cheia de surpresas, que acabam sendo ideias brilhantes. Vamos levar a língua também. É pena que as hienas já tenham comido o fígado, mas, afinal, foram elas que o abateram.

— Não me importo se foram elas — disse Ayla. — Vamos aproveitar que a carne está fresca. Hienas já me tiraram o bastante. São animais horríveis. Por que não tirar alguma coisa deles? Odeio hienas!

— Odeia mesmo, não é? Nunca a ouvi falar assim de outros animais, nem mesmo de carcajus, que também gostam de carniça, são mais cruéis, as vezes, que hienas, e chegam a feder mais.

A matilha não se fora, vinha rosnando na direção do bisonte com que pretendia banquetear-se. Ayla lançou-lhes algumas pedras. Uma das hienas gritou e as demais deram risadas que lhe arrepiaram a pele. Quando resolveram enfrentar a funda outra vez, Ayla e Jondalar já haviam tirado o suficiente.

Foram em frente, descendo por um sulco até o rio. Ayla ia à frente, depois de ter deixado o que restara da carcaça entregue às feras e seus rosnados. Elas haviam, de fato, retornado e recomeçado a dilacerar o bisonte.


Os sinais que eles tinham avistado não eram do próprio campo, mas de um marco — um monte de pedras — que mostrava o caminho. No interior da pilha de pedras havia rações secas, de emergência, algumas ferramentas, material para fazer fogo, como isca seca, e um agasalho de pele, muito duro, e do qual escapavam mechas de pêlo. Podia ainda oferecer abrigo contra o frio, mas devia ser substituído. No alto do marco, firmemente ancorado por grandes pedras, estava uma presa quebrada de mamute com a ponta voltada para um grande matacão parcialmente submerso no rio. Nela via-se pintada em vermelho uma forma de losango com um ângulo em V à direita, repetido duas vezes de modo a formar um chevron que apontava rio abaixo.

Depois de porem tudo de volta, exatamente como o tinham encontrado, acompanharam o curso do rio até chegarem a um segundo marco com uma pequena presa de marfim que apontava para uma agradável clareira, recuada do rio, e cardada de bétulas, amieiros e pinheiros. De la podiam avistar um terceiro marco: junto dele havia uma nascente de água pura e cristalina. Lá havia, de novo, rações de emergência e ferramentas escondidas nas pedras e um grande couro, também rijo, mas ainda utilizável como barraca alpendre de meia-água. Atrás do marco, perto de um círculo de pedras que marca os contornos de um fosso raso, preto de carvão, havia uma pilha de lenha — galhos caídos e gravetos — que alguém reunira ali.

— É bom saber da existência de um lugar como este — disse Jondalar. — Alegra-me que não tenhamos de usar nada disso, mas se eu vivesse na região e precisasse dessas coisas seria um alívio saber que elas estão ai.

— É uma boa ideia — disse Ayla, admirada com a previdência daqueles que haviam planejado e instalado o acampamento.

Logo retiraram as cestas e as cordas dos cavalos, enrolando-as e as pesadas correias, para que os animais ficassem livres para descansar e pastar. Sorrindo, viram que Racer imediatamente correu para a relva e se espojou nela, como se tivesse uma coceira nas costas que não pudesse esperar.

—    Também estou com muito calor e meu corpo comicha — disse Ayla, tirando as sandálias e chutando-as para longe. Afrouxou, depois o cinto que tinha uma bainha com faca e pequenos bolsos, tirou do pescoço um colar de contas de marfim de que pendia uma bolsinha decorada, tirou a túnica e as perneiras, e correu para a água. Lobo acompanhou-a aos saltos.

—    Você vem?

—    Daqui a pouco — disse Jondalar. — Vou apanhar lenha primeiro para não me sujar depois do banho.

Ayla voltou logo, vestiu a túnica que usava à noite, mas pôs o colar e o cinto de volta. Jondalar desempacotara a bagagem, e ela o ajudou a arrumar o acampamento. Já haviam criado uma rotina de trabalho em comum que dispensava maiores confabulações. Armaram juntos a barraca, estendendo o pano oval para forrar o solo, fincando em seguida os tarugos de madeira na terra para esticarem a coberta de couro, feita de várias peles de animais costuradas umas às outras. Essa tenda cónica era arredondada e tinha uma abertura no topo para deixar sair a fumaça se precisassem acender fogo, coisa que raramente faziam, e um tapume com o qual fechar a abertura, se fizesse frio.

Ataram cordas em torno da tenda e junto do solo. No caso de fortes ventanias, podiam usar ainda outras cordas, e o tapume da entrada também podia ser fixado com toda segurança. Traziam com eles outra cobertura com a qual fazer uma tenda dupla, mais bem insulada, mas raras vezes precisaram usá-la. Estenderam no chão as peles em que dormiam, de comprido no oval, o que deixava de um lado e de outro um espaço exíguo, apenas suficientes para as cestas da bagagem e outros pertences. Lobo se acomodava aos pés deles se o tempo era inclemente. No início dormiam separados, mas logo juntaram as peles para que pudessem dormir juntos. Uma vez armada a tenda, Jondalar foi catar mais lenha, para substituir a que usassem, e Ayla começou a preparar a comida.

Embora Ayla soubesse como acender fogo com o material encontrado, esfregando a longa vara entre as palmas das mãos contra a plataforma chata, de madeira, até conseguir uma brasa que pudesse soprar, ela tinha sua própria caixinha de ferramentas, que era diferente de todas. Quando vivia sozinha no vale, fizera uma descoberta acidental. Apanhara uma pedra de pirita de ferro entre as pedras da borda do riacho para substituir a pedra que usava como martelo para fazer novas ferramentas de sílex. Já havia feito fogo muitas vezes, e logo percebeu as implicações da fricção da pirita e do sílex quando uma fagulha mais prolongada lhe queimou a perna.

Teve de fazer diversas experiências antes de saber como usar a pederneira. Agora era capaz de acender fogo mais depressa do que se poderia imaginar fosse possível com aquele material. Jondalar mal acreditou nos próprios olhos ao ver o prodígio pela primeira vez. Aquela maravilha contribuíra para sua aceitação pelo Acampamento do Leão quando Talut a adotara. Todos haviam pensado que ela fizera fogo por artes mágicas.

Ayla também acreditava na magia da coisa, mas achava que era devida à pedra refrataria e não a ela. Antes de deixarem seu vale, ela e Jondalar tinham recolhido o maior número possível daquelas pedras de um amarelo acinzentado, por não saberem se encontrariam coisa igual em outros lugares. Deram algumas ao pessoal do Acampamento do Leão e a outros Mamutói, mas ainda tinham muitas. Jondalar queria partilhar a descoberta com seu povo. A possibilidade de fazer fogo rapidamente podia ser bastante útil em diversas circunstâncias.

Dentro do círculo de pedras, a moça reuniu uma pequena pilha de cascas de árvore e colocou junto dela outra pilha de gravetos para avivar o fogo. Perto havia galhos secos da pilha do acampamento. Trabalhando bem junto das cascas de árvore, Ayla segurou uma pedra de pirita num ângulo que sabia por experiência ser o melhor, depois bateu a pedra mágica, amarela, no meio de um sulco que se estava formando com a sua manipulação, contra uma lasca de sílex. Logo uma fagulha grande, brilhante pulou da pedra para a casca, mandando um fio de fumaça para o ar. Ayla pôs a mão, depressa, em torno dela, e soprou de leve, um pequeno carvão brilhou com uma luz vermelha e soltou minúsculas fagulhas, brilhante, e douradas como o sol. Um segundo sopro resultou numa pequenina chama. Ayla reuniu gravetos e, quando o fogo pegou, um galho seco.

Quando Jondalar regressou, Ayla já havia colocado diversas pedra chatas e arredondadas recolhidas da beira do rio aquecendo no fogo e um bom pedaço de bisonte no espeto. A camada externa de gordura já chiava. Ela havia lavado e agora cortava raízes de taboas e outro tubérculo amiláceo e branco, de casca marrom-escuro, chamado noz-da-terra preparando-se para botá-los numa cesta bem trançada com água pela metade, e na qual estava de molho e à espera a gorda e saborosa língua. Ao lado dela empilhavam-se cenouras silvestres, inteiras.

Jondalar colocou a lenha perto do fogo.

—    Já está com um cheiro ótimo. O que você está fazendo, Ayla

—    Estou assando o bisonte, mais para a viagem. É fácil comer fatias de carne fria durante a viagem. Para esta noite e para amanhã cedo estou fazendo uma sopa com a língua e verduras. Temos também um pouco do que trouxemos do Acampamento do Capim Estipa.

Com um pauzinho, ela tirou uma pedra quente do fogo e varreu as cinzas com um galho folhudo. Depois, apanhando outro pau e usando os dois como uma tenaz, ela ergueu a pedra e deixou-a cair na cesta onde a língua estava de molho. A pedra ferveu, soltou fumaça e comunicou seu calor à água. Logo ela pôs mais pedras na cesta, acrescentou alguma folhas que havia colhido, e tampou o recipiente.

—    O que você pôs na sopa?

Ayla sorriu consigo mesma. Ele estava sempre querendo saber por menores da sua comida, inclusive os nomes das ervas que usava para fazer chás. Aquele era mais um dos traços que lhe causavam surpresa em Jondalar: não passaria pela cabeça de nenhum outro homem do Clã mostrar tanto interesse, mesmo que estivesse tão curioso, por coisas que eram exclusivas das mulheres.

—    Além dessas raízes, vou acrescentar as pontas verdes das tábuas os bulbos, folhas, e flores dessas cebolas verdes, rodelas dos talos de cardos descascados, ervilhas de aspargos, e um pouco de sálvia e tomilho como tempero. Talvez ponha também um pouco de unha-de-cavalo, pelo seu gosto salgado. Se vamos passar pelo Mar de Beran, talvez possamos conseguir mais sal.

"Nunca faltou, quando eu vivia com o Clã. Acho que vou esmagar um pouco do rábano picante que encontrei esta manhã, para comermos com o assado. Aprendi isso na Reunião de Verão. Arde, e a gente usa só um pouco, mas dá um sabor interessante à comida. Quem sabe você gosta?

—    E as folhas, para que servem? — perguntou Jondalar, indicando um amarrado, que ela colhera mas não mencionara. Gostava de saber que usava e o que pensava sobre comida. Gostava do que Ayla preparava mas reconhecia que o tempero dela era incomum. Havia fragrâncias e sabores verdadeiramente únicos, diferentes dos que conhecia desde meninos.

— Aquilo ali é quenopódio, para enrolar o assado quando eu for guardá-lo. Vão muito bem juntos, quando frios. — Ayla fez uma pausa e careceu pensativa. — Talvez eu polvilhe um pouco de cinza de madeira no assado. A cinza é um pouquinho salgada também. E posso pôr um pedaço do assado na sopa depois que ele pegar cor, para melhorar o gosto Com a língua e a carne assada, teremos um bom caldo. Para amanhã de manhã, podemos cozinhar alguns dos grãos que trouxemos conosco. Haverá sobra da língua, naturalmente, mas posso envolvê-la em capim seco e guardar na minha cesta de carne para depois. Tenho lugar, até, para o resto da nossa carne crua, inclusive o pedaço que separamos para Lobo. Enquanto fizer frio de noite, ela conserva bem.

—    Parece apetitoso. Mal posso esperar — disse Jondalar, sorrindo com antecipação, e mais alguma coisa, pensou Ayla. — Você tem alguma cesta extra que eu possa utilizar?

— Sim, mas para quê?

— Eu lhe digo na volta — disse ele, sorrindo com o segredo.

Ayla virou o assado, mexeu nas pedras, e pôs mais algumas, quentes, na sopa. Enquanto a comida cozinhava, ela separou entre as ervas que tinha colhido as que se destinavam a Lobo, como repelentes, e a que colhera para seu próprio uso. Esmagou um pouco da raiz-forte, como dissera a Jondalar que ia fazer, para o jantar. Depois, começou a esmagar o resto junto com as folhas pisadas de muitas plantas de cheiro forte que havia encontrado naquela manhã, procurando conseguir a mais mefítica combinação possível. O rábano picante seria muito eficaz, mas o forte cheiro de cânfora da artemísia ajudaria.

Mas era a planta que pusera de lado que ocupava os seus pensamentos. É bom que eu a tenha encontrado, pensava. Sei que não tenho estoque suficiente dela, talvez só dê para o meu chá de amanhã, mas hei de encontrar outros pés pelo caminho. O que não posso é ter um filho durante a viagem, e o risco é grande, estando tanto tempo junto com Jondalar. E, pensando isso, sorriu.

 
   


Não há dúvida de que é assim que os bebês são concebidos, não importa o que diga o povo sobre espíritos. Acho que é por isso que os homens põem os órgãos deles naquele lugar de onde saem os bebês. E que e por isso que as mulheres querem que eles façam dessa forma. E que a mãe nos deu Seu Dom do Prazer. O Dom da Vida vem dela também, e Ela quer que os Seus filhos gostem de fazer novas vidas. Dar à luz não é nada fácil. As mulheres talvez não quisessem parir se a Mãe não tivesse Posto no começo do processo o Seu Dom do Prazer. bebês são uma coisa maravilhosa, mas a gente não sabe disso até ter um. Ayla tinha cultivado essas noções pouco ortodoxas sobre a concepção durante o inverno, quando soube da existência de Mut, a Grande Mãe Terra, por Mamute, o velho mestre do Acampamento do Leão, embora a ideia já lhe tivesse ocorrido havia muito tempo.

Mas Broud não me dava prazer, lembrou-se. Eu detestava quando ele me forçava, mas tenho certeza de que foi assim que Durc foi feito. Ninguém achava que eu poderia ter um filho. Pensavam que meu totem do Acampamento do Leão era poderoso demais para que o espírito de um totem de homem o pudesse sobrepujar. Surpreendi a todos. Mas isso só aconteceu depois que Broud me obrigou a ficar com ele, e vi depois os traços dele na cara do meu bebê. Fora ele, então, tinha de ser, que fizera Dure crescer dentro de mim. Meu totem sabia o quanto eu desejava um filho — talvez a Mãe também soubesse disso. Talvez essa fosse a única maneira. Mamut disse que sabemos que os Prazeres são um Dom da Mãe por serem eles tão fortes. É muito difícil resistir-lhes. Ele disse que » ainda mais difícil para os homens que para as mulheres.

Fora assim com aquela fêmea mamute ruiva. Todos os machos a desejavam, mas ela não quis nenhum deles. Quis esperar pelo seu grande mamute. Seria por isso que Broud não me podia deixar em paz? Ele me detestava. Mas seria o Dom do Prazer da Grande Mãe mais poderoso que seu ódio?

Talvez. Mas não creio que ele fizesse aquilo só pelos Prazeres. Ele podia gozá-los com sua mulher ou com outra mulher qualquer que quisesse. Creio que ele sabia o quanto eu odiava fazer amor com ele, e isso aumentava o seu Prazer. Broud pôde ter começado um bebê em mim - ou talvez meu Leão da Caverna se tivesse deixado derrotar por saber o quanto eu desejava um filho —, mas Broud só me podia dar seu órgão Ele não me podia dar o Dom dos Prazeres da Mãe. Só Jondalar fez isso.

Devia haver mais no tal Dom d'Ela que só os Prazeres. Se Ela tivesse querido apenas dar aos Seus Filhos um Dom de Prazer, por que Ela o localizaria logo ali naquele lugar de onde os bebês saem? Um sítio de Prazeres podia estar em qualquer parte. Os meus não são exatamente onde estão os de Jondalar. O Prazer dele vem quando ele está dentro de mim mas o meu está naquele outro lugar. Quando ele me dá Prazer lá, tudo fica maravilhoso, dentro e por toda parte. Então, eu desejo sentir ele dentro de mim. Não gostaria de ter minha sede do Prazer dentro de mim. Quando estou muito sensível, Jondalar tem de ter muito cuidado, ou pode doer e dar à luz dói. Se o sítio de Prazer da mulher estivesse dentro dela, dar à luz seria ainda mais penoso, e já é difícil assim, como é hoje.

Como é que Jondalar sabe sempre tão bem o que fazer? Ele sabia como me dar Prazeres antes mesmo que eu soubesse que eles existiam Penso que aquele mamute gigante também sabia como dar Prazeres àquela fêmea ruiva, tão bonita. Acho que ela emitiu aquele som alto e profundo justamente porque ele a fez sentir os Prazeres, e foi por isso que toda a família dela ficou tão feliz. Os pensamentos de Ayla lhe davam uns formigamentos esquisitos e uma espécie de calor. Ela olhou para a área arborizada por onde Jondalar se metera e ficou pensando quando voltaria.

Mas um bebê não começa toda vez que duas pessoas partilham dos Prazeres. Talvez sejam necessários espíritos também. Sejam eles espíritos totêmicos dos homens do Clã ou a essência de um espírito de homem que a Mãe retira e dá a uma mulher, o fato é que a criança começa quando o homem põe seu órgão dentro da mulher e despeja sua essência lá. A coisa é essa. A Mãe dá a criança a uma mulher não com espíritos, mas com Seu Dom do Prazer. Mas Ela decide que essência de que homem vai iniciar uma nova vida e quando essa nova vida começará.

Se a Mãe decide, então como é que a medicina de Iza impede uma mulher de engravidar? Talvez impeça que a essência do homem ou seu espírito se misturem com os da mulher. Iza não sabia por que o remédio funcionava, mas isso acontecia a maior parte das vezes.

Eu gostaria de deixar que um bebê começasse quando Jondalar partilhasse Prazeres comigo. Quero tanto ter um filho, e que seja parte dele! Sua essência ou seu espírito. Mas ele está certo. Devemos esperar. Foi tão difícil para mim ter Dure. Se Iza não tivesse estado lá, que teria sido de mim? Preciso ter certeza de que haja pessoas em volta que saibam o que fazer para ajudar.

Vou continuar a tomar o chá de Iza toda manhã sem dizer nada. Ela tinha razão. Não devo falar tanto sobre bebês tendo origem no órgão do homem. Jondalar ficou tão nervoso quando mencionei isso que até achou que devíamos parar de ter Prazeres. Se não posso ter um bebê por enquanto, quero pelo menos ter Prazeres com ele.

Como aqueles mamutes estavam tendo. Era isso que o mamute gigante estava fazendo? Começando um bebê naquela fêmea ruiva. Aquilo foi tão maravilhoso, partilhar os Prazeres deles com o rebanho. Alegro-me que tenhamos ficado lá. O fato de que ela fugisse de todos os outros machos me havia intrigado. Não estava interessada neles. Queria escolher seu próprio parceiro e não ir com qualquer um que a desejasse. Esperava pelo grande macho cor de mel. E logo que ele surgiu, ela sabia que era o que lhe convinha. O certo. E não pôde esperar: correu ao encontro dele. Já esperara bastante. Sei como se sentia.

Lobo saltou na clareira, exibindo, todo orgulhoso, um velho osso podre. Colocou-o aos pés de Ayla e olhou para ela, expectante.

— Que horror! Isso está podre e fede! Onde achou esse osso, Lobo? Provavelmente onde alguém enterrou restos de acampamento. Talvez seja esta uma boa oportunidade para ver o que você acha de alguma coisa mais forte e ardida.

Dizendo isso, ela apanhou o osso e passou nele um pouco da mistura que vinha preparando. Depois, lançou-o de volta na clareira.

O animal correu para ele, mas o cheirou antes de apanhá-lo na boca. Tinha ainda o mesmo adorável odor de carniça, mas havia outro cheiro também, duvidoso. Por fim, Lobo o pegou. Mas logo o soltou no chão e começou a bufar e sacudir a cabeça. Ayla não se conteve. A cena era tão cômica que teve de rir alto. Lobo fungou mais uma vez, depois recuou, resfolegando, com ar muito contrariado, e correu para a nascente.

— Ah! Você não gostou, hein, Lobo? Tanto melhor. Não era para gostar mesmo — disse ela, rindo de novo. A água não ajudou muito. Lobo levantou uma pata e limpou o focinho, como se pudesse desse modo livrar-se do gosto. Estava ainda bufando e sacudindo a cabeça quando entrou no mato.

Jondalar cruzou com ele e quando chegou à clareira encontrou Ayla rindo tanto que tinha lágrimas nos olhos.

—    Por que ri tanto?

— Você precisava ver o Lobo — disse ela, ainda meio sufocada. — Pobre Lobo, estava tão orgulhoso do osso podre que achou em algum lugar. Não sabia o que acontecera e tentou de tudo para tirar o gosto ruim da boca. Se você acha que é capaz de aguentar o cheiro de raiz-forte e cânfora, Jondalar, creio ter encontrado um jeito de manter Lobo longe das nossas coisas. — Mostrou-lhe o recipiente em que tinha misturado os ingredientes: — Aqui está: um repelente para Lobo!

— Que bom que funciona — disse Jondalar. Ele também sorria, mas o brilho nos seus olhos nada tinha a ver com Lobo. Ayla notou que ele tinha as mãos atrás das costas.

— O que está escondendo de mim atrás das costas? — perguntou subitamente curiosa.

— Bem, quando procurava lenha encontrei outra coisa. E se você prometer ser boazinha, talvez eu divida meu achado com você.

—    O que é?

Jondalar apresentou-lhe uma cesta cheia.

— Framboesas. Vermelhas, grandes, docinhas!

Os olhos de Ayla brilharam.

— Adoro framboesas!

—    E você acha que não sei disso? E o que vai me dar de prémio? — disse ele, com uma centelha de malícia no olhar.

Ayla o encarou e aproximou-se dele, sorrindo. Era um largo sorriso, cheio do amor que tinha por ele, do ardor que vinha sentindo, do prazer que lhe dava aquele gesto dele: de fazer-lhe uma surpresa.

—    Acho que descobri — disse ele, soltando o fôlego que só então percebeu que tinha prendido. — Oh, Mãe, como você é bonita quando sorri! É bonita sempre, mas principalmente quando sorri.

De súbito, ele tomava consciência de cada um dos seus traços, em detalhe. Os cabelos compridos, fartos, louros, com brilhos de ouro onde o sol os tocara e clareara, e presos por uma correia. Uma onda natural e alguns fios desgarrados lhe emolduravam o rosto bronzeado. Uma pequena madeixa caía na frente, e ele teve de conter-se para não tirá-la da frente dos olhos de Ayla.

Ayla tinha uma boa altura para a estrutura dele, de um metro e noventa centímetros. Os músculos flexíveis, lisos, rijos apesar de magro eram visíveis nos braços dela, nas suas pernas compridas. Ayla era uma das mulheres mais fortes que ele jamais conhecera. Tão forte fisicamente quanto muitos homens. O povo que a criara era muito mais robusto que aquele em que ela havia nascido. Embora Ayla não fosse considerada mais robusta que o normal das mulheres do Clã em que vivia, desenvolvera-se muito mais do que normalmente teria de desenvolver-se, só para não ficar para trás. Com isso, e com anos de observação, rastreamento, tocaia como caçadora, ela sabia usar seu corpo com facilidade e mover-se com uma graça incomum.

A túnica frouxa sem mangas que usava, apertada na cintura com um cinto, com perneiras de couro, era confortável, mas não escondia os seios firmes, cheios, que poderiam parecer pesados, o que não ocorria, ou seus quadris muito femininos ou as nádegas arredondadas e sólidas. Os cordões, na parte inferior das perneiras, eram soltos, e ela andava de pés descalços. Em torno do pescoço usava uma pequenina bolsa de couro, muito bem bordada e decorada, com penas de grou na parte de baixo, que mostrava os ressaltos dos misteriosos objetos que continha.

Do cinto pendia uma bainha de faca feita de couro cru e rijo, feito com uma pele de animal que fora limpa e raspada, mas não processada de nenhuma maneira, de modo que secara, dura, na forma que lhe fora imposta, embora uma boa imersão em água pudesse amolecê-la outra vez. Ayla enfiava sua funda do lado direito do cinto, junto de uma bolsa em que guardava algumas pedras. Do lado esquerdo, tinha um objeto dos mais estranhos. Era outra bolsa. Embora velha e usada, fora feita de uma pele inteira de lontra, curada com os pés, o rabo e a cabeça. A garganta do animal fora cortada, as entranhas removidas pelo pescoço. Uma corda, passada por pequenos cortes, podia ser puxada para fechar a bolsa. A cabeça, achatada, funcionava como aba. Era a bolsa de remédio, a que ela trouxera do Clã, que Iza lhe dera.

Ela não tem as feições de um Zelandonii, pensava Jondalar. Eles vão notar um ar estrangeiro, mas sua beleza era inconfundível. Os olhos, grandes, tinham uma cor cinza-azulada — a cor de uma boa pederneira, pensou ele —, eram espaçados e delineados por cílios um pouco mais escuros que o cabelo. As sobrancelhas já eram mais claras, entre um tom e outro. O rosto tinha a forma de um coração. Largo em cima, com ossos malares salientes, mandíbulas bem definidas, e queixo fino. O nariz era reto e bem-feito, e os lábios cheios, curvados para cima nas comissuras, abriam-se mostrando os dentes num sorriso que lhe acendia os olhos e anunciava o prazer que sentia com o simples ato de sorrir.

Embora sorrisos e risadas a tivessem assinalado, um dia, como diferente, e ela os contivesse por causa disso, Jondalar adorava quando ela sorria. E o prazer que Ayla tinha com o riso dele, seus gracejos, seu jeito brincalhão, transformava de maneira mágica o arranjo já tão satisfatório dos seus traços. Ela ficava, de fato, mais bela ainda sorrindo. Ele se viu de súbito dominado pela visão dela, por seu amor por ela, e mentalmente rendeu outra vez graças à Mãe pela mercê de ter-lhe restituído Ayla.

— O que você me pede pelas framboesas? É só dizer que eu dou.

— Quero você mesma, Ayla — disse Jondalar, com a voz agora embargada. Ele pôs a cesta no chão e , num instante, tinha tomado Ayla nos braços, e a beijava com forte emoção. — Eu a amo. Não quero jamais perdê-la — disse, num murmúrio rouco, beijando-a de novo.

Um calor a tomou e ela reagiu com um sentimento tão forte quanto o dele.

—    Eu o amo também, e desejo, mas posso tirar a carne do fogo primeiro? Não quero que ela queime enquanto estamos... ocupados.

Jondalar ficou olhando para ela como se não tivesse entendido as suas palavras, depois se descontraiu, deu-lhe um abraço, e recuou um passo, com um sorriso maroto.

—    Eu não quis ser insistente. É que gostando tanto de você, às vezes não sei conter-me. Mas podemos esperar até mais tarde.

Ela sentia ainda a reação ao ardor de Jondalar e não estava certa se queria parar agora. Lamentava um pouco que seu comentário tivesse interrompido o momento.

—    Não tenho de tirar a carne do fogo.

Jondalar riu.

—    Ayla, você é uma mulher inacreditável — disse, sacudindo a cabeça e sorrindo. — Será que sabe disso? De como é notável? Você está sempre disponível para mim, sempre que eu a desejo. E sempre esteve Não apenas disposta a me acompanhar, independente do seu desejo, mas está sempre pronta para interromper qualquer coisa se for isso que eu quiser.

—    Mas é que eu o quero também, sempre que você me quer.

— Pois isso não é nada comum. Muitas mulheres precisam ser persuadidas. E se estão fazendo alguma coisa, não gostam de ser interrompidas.

— As mulheres entre as quais me criei estavam sempre dispostas quando um homem lhes fazia sinal. Você me deu o seu sinal, me beijou e com isso me fez ver.

— Talvez eu me arrependa de dizer isso, mas você me pode recusar sabia? — A fronte dele se enrugara no esforço de explicar-se. — Espero que não pense que tem de estar pronta sempre que eu estiver. Não esta mais vivendo no seio do Clã.

— Você não entende — disse Ayla, abanando a cabeça, e tentando tanto quanto ele fazer-se compreender. — Não pense que tenho de estar pronta. Mas quando você me dá o seu sinal, eu estou pronta. Talvez seja porque era assim que as mulheres do Clã faziam. Talvez seja porque você quem me ensinou como é maravilhoso partilhar Prazeres. Talvez seja porque o amo tanto. Mas quando você me dá o seu sinal, não pensou nisso, sinto-o lá dentro de mim. Seu sinal, seu beijo, que dizem que você me quer, me fazem querer também.

Ele sorria agora, com alívio e prazer.

—    Você também me deixa preparado. Basta olhar para você. — Ele curvou a cabeça, ela elevou a sua, moldando-se contra o corpo dele quando Jondalar a estreitou nos braços.

Ele conteve a sofreguidão que sentia, e um pensamento lhe passou pela cabeça. Como era estranho que sentisse tanto desejo por ela ainda. De muitas mulheres se cansara depois de uma única experiência, mas com Ayla tudo parecia sempre novo. Podia sentir o corpo dela, firme, forte, contra o seu, os braços dela em torno do pescoço. Avançou com as mãos para segurar-lhe os seios e se debruçou mais fundo para beijar-lhe a curva do pescoço.

Ayla soltou os braços do pescoço dele e começou a tirar o cinto, que deixou cair no chão com toda a parafernália que continha. Jondalar enfiou a mão debaixo da sua túnica, levantando-a ao encontrar as duas formas arredondadas com seus bicos firmes, empinados. Ergueu a túnica um pouco mais, expondo uma escura aréola rosada em torno do nódulo alteado e sensível. Sentindo o volume todo, quente, na mão, ele tocou o mamilo com a língua, depois tomou-o na boca e sugou.

Correntes de fogo, finas, formigantes, irradiaram dali para o mais íntimo do seu corpo e um gemido de prazer lhe escapou dos lábios. Não imaginara estar tão pronta assim. Como a fêmea mamute de pêlo ruivo, sentia como se tivesse esperado o dia inteiro por aquilo e não pudesse mais esperar nem um momento. Uma visão fugaz do grande macho ruço, com seu órgão comprido e curvado, lhe passou pela mente. Jondalar a soltou, e ela tirou a túnica pela cabeça num movimento só, macio.

Ele prendeu a respiração ao vê-la, acariciou-lhe a pele e estendeu as mãos para tomar-lhe os dois seios túmidos. Afagou um deles, apertando-o e esfregando, enquanto chupava e mordiscava o outro. Ayla, que sentia choques sucessivos de excitação, fechou os olhos e se entregou de todo a eles. Mesmo quando ele interrompeu aquelas deliciosas carícias com a mão e com a boca nos seus seios, ela se conservou de olhos fechados, e logo sentiu que estava sendo beijada. Abriu então os lábios para dar passagem a uma língua, que sondava, hesitante e gentil. Quando pôs os braços em volta do pescoço dele, sentiu as dobras da sua túnica de couro contra os bicos dos seios ainda machucados e sensíveis.

Ele lhe passou as mãos pela pele lisa das costas e sentiu o movimento dos músculos. A resposta imediata que recebia acrescentava ao seu próprio ardor, e seu membro ereto já forçava a roupa.

— Oh, mulher! — disse, num sopro. — Como eu a desejo.

— Estou pronta para você.

—    Espere apenas que eu me livre destas coisas. — Desapertou o cinto, depois puxou a túnica pela cabeça.

Ayla sentiu o volume que pulsava, acariciou-o, e se pôs a desatar-lhe os atilhos das perneiras enquanto ele desatava os dela. Então, livres, se abraçaram e ficaram, assim, enlaçados num beijo sensual, vagaroso, interminável. Jondalar logo correu os olhos pela clareira. Mas Ayla se deixou cair ali mesmo de quatro, depois olhou para ele por cima do ombro com um sorriso matreiro.

— Sua pele pode ser amarela e não acobreada, mas é você que eu prefiro — disse Ayla.

Ele correspondeu ao sorriso e se deixou cair também, atrás dela.

— Seus pêlos também não são ruivos e sim da cor do feno maduro, mas guardam alguma coisa rubra, uma espécie de flor com muitas pétalas. Mas como não tenho uma tromba peluda para alcançá-la, tenho de usar outra coisa — disse Jondalar.

Empurrou-a um pouco para a frente, abriu-lhe as pernas um pouco para expor sua molhada abertura feminina, depois curvou-se para provar o sal quente. Estendeu a língua para a frente e encontrou o nódulo duro escondido no fundo das suas dobras. Ela prendeu a respiração mexeu para dar-lhe melhor acesso, enquanto ele sondava com a cabeça e com o nariz, depois mergulhava fundo na abertura convidativa para explorar e saborear. Ele sempre gostara do sabor de Ayla.

Ela se movia agora numa onda de sensações, cega a tudo que não fossem as pulsações que corriam, queimando, dentro dela. Estava mais sensível que de hábito, e todo lugar que ele tocava ou beijava reverberava até aquele ponto no mais fundo do seu corpo, que palpitava com fogo e desejo ardente. Não ouvia sua própria respiração, cada vez mais acelerada, ou os gritos de prazer que dava, mas Jondalar ouvia.

Ele se acomodou por trás dela, acercou-se mais, e achou o poço profundo de Ayla com seu membro ansioso e teso. Quando começou a penetrá-la, ela empurrou o corpo para trás, enfiando-se nele até toma-lo todo. Ele gritou também, com aquela incrível acolhida que ela lhe dava e então, segurando-a pelos quadris, puxou-a com força. Depois, achou o pequeno nódulo de prazer da frente e esfregou-o enquanto ela se enfiava mais nele. A sensação de Jondalar chegava quase ao alvo. Estreito-a de novo e, percebendo que também estava próxima do orgasmo, movimentou-se mais depressa e com mais força, penetrando nela até o fundo. Ela gritou ao gozar, e a voz dele fez eco.

Ayla estava agora de bruços, com o rosto enfiado na relva. O peso querido de Jondalar a esmagava, e sentia o hálito do amante no lado esquerdo das costas. Abriu os olhos e, sem o menor desejo de mudar de posição, ficou observando uma formiga que passava pelo chão em torno de um único talo de erva. Jondalar se mexeu e rolou para o chão, conservando o braço em volta da sua cintura.

— Jondalar, você é um homem incrível. Será que tem alguma idéia do quanto é excepcional? — perguntou Ayla.

— Não terei ouvido essas palavras antes? Parece-me que lhe disse a mesma coisa.

— Mas em relação a você elas são a pura expressão da verdade. Como é que me conhece tão bem? Eu me perco dentro de mim mesma vendo o que você faz comigo.

—    Pensava que estava preparada.

— Estava. E é sempre maravilhoso. Mas desta vez... Não sei. Teriam sido os mamutes? Estive pensando naquela bela fêmea ruiva, no seu maravilhoso e gigantesco macho... E em você... o dia inteiro.

— Bom, talvez tenhamos de brincar outra vez de mamutes, disse ele, rindo e rolando para ficar de costas no capim.

Ayla se sentou.

— Muito bem. Mas agora vou brincar um pouco no rio antes que escureça — Ela se curvou, beijou-o, sentindo o próprio gosto nele. — E, depois, vou ver a comida — avisou.

Ela correu até o fogo, virou o assado de bisontes, pôs mais duas pedras quentes na sopa, lançou uns galhos no fogo, e correu para o rio. Estava frio, quando entrou na água, mas não fazia mal. Estava acostumada. Jondalar logo se reuniu a ela. Tinha trazido uma grande pele macia de veado. Deixou-a na margem e entrou na água com cuidado, inspirando bem devagar, depois, com força, antes de mergulhar. Logo saiu, afastando o cabelo do olhos.

— Que frio, Ayla!

Ela se achegou e, com malícia, jogou-lhe água. Ele lhe molhou as costa em represália, e houve uma luta ruidosa. Com um último chape na água, Ayla pulou fora do rio, apanhou a pele e começou a enxugar-se. Passou-a a Jondalar quando ele emergiu, depois correu para o acampamento e se vestiu rapidamente. Já estava servindo a sopa nas tigelas individuais quando ele veio do rio.

 

Os últimos raios do sol de verão luziram através da galhada, e ele mergulhou no horizonte por trás das elevações que marcavam ali o poente. Sor­rindo para Jondalar com grande contentamento, Ayla meteu a mão na tigela em busca da ultima framboesa e meteu-a na boca. Depois se ergueu para arrumar as coisa a fim de que pudessem partir sem problemas pela manhã.

Deu a Lobo os restos das suas vasilhas e pôs grãos rachados e secos — o triga-bravo, a cevada, as sementes de quenopódio que Nezzie lhe dera quando partiram — na sopa quente e deixou-a à beira do fogo. O assado de bisonte e a lingua para a sua refeição foram guardados numa bolsa de couro cru em que ela armazenava comida. Dobrou o grande envelope duro de couro, atou-o firmemente com uma corda e suspendeu-o alto, no centro de uma trípode de longos mastros, para que ficasse a salvo de ladrões noturnos.

Os mastro, que afinavam para a ponta, eram feitos de arvorezinhas inteiras, altas, finas, retas, sem galhos, de que ela retirava a casca e que costumava levar enfiados num dos balaios de bagagem que Huiin carregava no lombo. O cavalo de Jondalar levava os mastro, mais curtos, da tenda. Os mastros compridos podiam ser usados também ocasionalmente para armar um trenó que era arrastado pelos cavalos para transportar cargas pesadas ou volumosas. Eles levavam essas varas porque árvores apropriadas eram difíceis de encontrar na estepe aberta. Mesmo à margem dos rios, pouco mais havia, as mais das vezes, que macega emaranhada.

Quando ficou mais escuro, Jondalar pôs mais lenha no fogo, depois apanhou a placa de marfim do mapa e se pôs a estudá-lo à luz das chamas. Quando Ayla acabou o que tinha a fazer e se sentou a seu lado, ele parecia perturbado e tinha aquele olhar ansioso que ela vinha notando nos últimos dias. Ficou a observá-lo por algum tempo, pôs algumas pedras no fogo para ferver água para o chá que costumavam tomar à noitinha, mas em vez das ervas aromáticas, mas inocentes, que geralmente usava, tirou alguns pacotes da sua bolsa de remédios. Talvez encontrasse alguma erva calmante. Matricária ou aquilégia, numa infusão de aspérula, pensou, embora não soubesse que problema havia. Queria interroga-lo, mas não tinha certeza se convinha. Por fim, decidiu-se.

—    Jondalar, você se lembra do último inverno, quando você não estava muito seguro de como eu me sentia e eu não estava também muito certa de você?

Ele estava tão absorto nos seus próprios pensamentos que alguns momentos se passaram antes que entendesse a pergunta.

— Claro que me lembro. Você não tem dúvidas quanto ao meu amor por você, tem? Eu não duvido do seu amor por mim.

— Não, não se trata disso. Mas pode haver mal-entendidos por muitos outros motivos, e não quero que alguma coisa como o inverno passado aconteça outra vez. Não suportaria ter de novo problemas só por não havermos discutido qualquer dificuldade. Antes de deixarmos a Reunião de Verão você prometeu abrir-se comigo se algo o estivesse aborrecendo. Vejo que está preocupado, Jondalar, e gostaria de saber o que é.

— Não é nada, Ayla. Pelo menos nada com que você deva preocupar-se.

— Mas se você está preocupado com alguma coisa, não acha que eu deveria saber o motivo? — disse ela. Depois, tomando dois coadores de chá feitos de caniços finos, rachados ao meio, e tecidos numa apertada malha... que tirou de uma cesta de vime em que guardava diversas tigelas e utensílios... ficou por um momento calada, pensando. Separou, depois, folhas secas de matricária e aspérula para acrescentar ao chá de camomila de Jondalar (ela mesma tomaria só camomila) e serviu.

"Se o problema diz respeito a você, diz respeito a mim também. Não viajamos juntos?

—    Sim, mas cabe a mim tomar as decisões, e não quero que fique inquieta desnecessariamente — disse Jondalar, levantando-se para apanhar a bolsa d'água, que estava dependurada a um mastro perto da entrada da tenda e perto do fogo. Pôs um pouco d'água numa vasilha e acrescentou-lhe as pedras quentes.

—    Não sei se há necessidade ou não, mas o fato é que você já deixou inquieta. Por que não diz o motivo? — Ayla pôs os coadores dentro das tigelas individuais, despejou água fervendo por cima deles e pôs tudo de lado para descansar.

Jondalar pegou a placa de marfim e ficou a contemplá-la, querendo que o mapa ali gravado lhe dissesse o que vinha pela frente, e se ele estava tomando a decisão correta. Quando eram só ele e o irmão, não importava muito. Eles estavam numa Jornada, numa aventura, e tudo o que acontecesse era parte dela. Não estava seguro, então, de voltar; nem mesmo sabia se queria voltar. A mulher que ele estava impedido de amar escolhera um caminho que levava ainda mais longe, e a que se esperava que ele tomasse... não era a que ele queria. Mas esta Jornada agora era diferente. Desta vez ele estava com uma mulher que amava mais que a vida. Não só queria voltar para casa, mas queria levá-la junto, e em segurança. Quanto mais pensava sobre os possíveis perigos que poderiam encontrar pelo caminho, tanto mais imaginava riscos ainda maiores. Mas suas vagas apreensões não eram coisa que ele pudesse facilmente explicar.

— Preocupa-me o tempo que esta Jornada vai levar. Precisamos alcançar aquela geleira antes do fim do inverno.

— Você já me falou nisso. Mas por quê? O que acontecerá se não chegarmos lá em tempo?

— O gelo começa a derreter na primavera, e fica muito perigoso tentar uma travessia.

— Bem, se é perigoso, não tentamos. Mas se não pudermos passar, o que faremos? — perguntou ela, para obrigá-lo a pensar sobre as alternativas de que vinha fugindo. — Há outro caminho?

— Não tenho certeza. O gelo que temos de atravessar é apenas um pequeno platô ao norte das grandes montanhas. Há terras do outro lado, mas ninguém vai por lá. Ficaríamos ainda mais fora do nosso caminho, e faz muito frio. Dizem que as geleiras do norte são mais próximas, avançam para o sul naquele ponto. A terra entre as altas montanhas do sul e o grande gelo do norte são as mais frias que existem. Nunca faz calor ali, nem no verão — disse Jondalar.

— Mas não é frio também naquele platô que você pretende atravessar?

— Naturalmente que sim, mas é o caminho mais curto, e uma vez do outro lado só precisamos de poucos dias até a Caverna de Dalanar.

Jondalar largou o mapa para pegar a tigela de chá quente que Ayla lhe estendia e ficou contemplando o líquido fumegante por algum tempo.

— Suponho que podemos tentar a rota do norte, que contorna a geleira maior, mas eu não gostaria de tentar. É terra de cabeças-chatas, além de tudo — acrescentou Jondalar.

— Você quer dizer que gente do Clã mora ao norte dessa geleira que devemos atravessar? — perguntou Ayla, detendo-se justamente quando ia tirar o coador da tigela. Sentia uma estranha mistura de temor e de excitação.

—    Desculpe. Talvez eu devesse chamá-los gente do Clã, mas não são como os que você conhece. Vivem muito longe daqui, você nem pode imaginar quão longe. Não são, absolutamente, como os daqui.

— Mas têm de ser, Jondalar! — disse Ayla, que em seguida sorveu um pouco do seu chá quente e perfumado. — Talvez sua maneira habitual de falar e de ser pareça diferente, mas todos os membros do Clã têm a mesma memória, pelo menos os mais antigos. Mesmo na Reunião do Clã todo mundo conhecia a antiga linguagem de sinais usada para falar com os espíritos. Muita gente conversou nessa língua — disse Ayla.

— Mas eles não nos querem em seu território — disse Jondalar. — Já nos fizeram ver isso, quando Thonolan e eu nos vimos inadvertidamente do lado errado do rio.

— Você tem razão, estou certa disso. Os do Clã não gostam da vizinhança dos Outros. Assim, se não pudermos atravessar a geleira quando a alcançarmos e não pudermos dar-lhe a volta, o que vamos fazer? — perguntou Ayla, voltando ao problema original. — Não podemos esperar até que a geleira fique segura de novo e possamos cruzar para o outro lado?

— Sim, talvez tenhamos de fazer isso, mas a espera será de um ai até o outro inverno.

— E, se esperarmos um ano, poderemos passar? Há um lugar ou possamos esperar?

— Sim, há gente com quem possamos ficar. Os Losadunai têm sido sempre cordiais. Mas quero ir para casa, Ayla — disse, com tal angústia na voz que ela viu o quanto aquilo lhe importava. — Quero que a gente se instale.

— Eu também desejo isso, Jondalar, e acho que devemos fazer o possível para atingir a geleira enquanto é seguro passar para o outro lado. Mas, se for tarde demais, isso não significa que não vamos mais para casa. Mas apenas que a espera será mais longa. De qualquer maneira, estaremos ainda juntos.

— É verdade — disse Jondalar, aquiescente mas infeliz. — Não importa tanto assim se chegarmos lá com atraso, mas vai ser duro esperar um ano inteiro. — Ao dizer isso, sua fronte de novo se fechou. — Talvez se dermos a volta, cheguemos em tempo. Não é tarde demais para isso.

—    Há então outro caminho?

—    Há. Talut me disse que eu podia contornar a ponta norte da cadeia de montanhas que estamos prestes a atingir. E Rutan, do Acampamento do Capim Estipa, me disse que a rota fica a noroeste daqui. Talvez devêssemos tomar esse caminho, mas eu esperara ver os Xaramudói uma vez mais. Se não os encontrar agora, nunca mais os encontrarei, provavelmente, e eles vivem para o sul das montanhas, ao longo do Rio da Grande Mãe — explicou Jondalar.

Ayla concordou com a cabeça. Agora compreendo, pensava.

—    Os Xaramudói são o povo com o qual você viveu por algum tempo. Seu irmão casou com uma das mulheres deles, não foi?

—    Sim. Eles são como uma família para mim.

— Então, naturalmente, temos de rumar para o sul. Eles são o povo que você ama. E se isso significa que não estaremos na geleira em tempo, então teremos de esperar até a próxima estação para atravessar. Será mais um ano, mas não vale a pena ver sua outra família outra vez? Se em parte você quer ir para casa para contar a sua mãe sobre seu irmão, não acha que os Xaramudói também gostarão de saber o que aconteceu com ele? Afinal, eles são família dele também.

Jondalar franziu a testa, depois se animou.

— Você tem razão, Ayla. Eles vão querer saber de Thonolan. Andei tão preocupado avaliando se tomara a decisão correta que não levei o raciocínio até o fim. — Sorriu, aliviado. Depois ficou a ver as chamas que dançavam sobre a lenha enegrecida, brincando buliçosas na sua alegria tão curta, e empurrando a treva para trás. Ele bebericou o chá bem devagar, pensando ainda na longa jornada que tinham pela frente. Mas já não se sentia tão ansioso quanto antes.

Ayla estava ao seu lado, em silêncio.

— Foi uma boa ideia discutir o assunto — disse, olhando para Ayla. — Acho que não estou ainda acostumado a ter alguém do lado com quem posso discutir... coisas. E acho que podemos estar lá em tempo. Ou não teria vindo por este caminho, para começo de conversa. Será uma viagem mais longa mas, pelo menos, conheço o caminho.

— Você tomou a decisão acertada, Jondalar. Se eu pudesse, se não estivesse ameaçada de morte, iria visitar o Clã de Brun — disse Ayla. E acrescentou, tão baixo que sua voz era quase inaudível: — Se eu pudesse, ah, se pudesse, ia ver Dure uma última vez.

O som da voz de Ayla, desamparado, vazio, mostrou-lhe o quanto ela sentia a sua perda.

—    Você quer procurá-lo, Ayla?

—    Sim, quero. Mas não posso. Apenas causaria aflição para todos. Eu fui amaldiçoada. Se me vissem agora, pensariam que eu era um espírito mau. Morri para eles, e não há nada que eu faça ou diga que possa convencê-los de que estou viva.

Os olhos de Ayla pareciam perdidos no horizonte, mas, na verdade, estavam voltados para dentro, para uma visão interior, uma memória.

—    Além disso, Dure não será mais o bebê que deixei para trás. Ele já estará adolescente, embora eu mesma me tivesse atrasado um pouco, para uma mulher do meu Clã. Ele é meu filho, e talvez tenha ficado para trás dos outros meninos, ele também. Mas logo Ura virá viver com o Clã de Brun... não, é o Clã de Broud, agora — disse Ayla, franzindo a testa. — Este é o verão da Reunião do Clã, de modo que neste outono Ura deixará seu Clã e ira morar com Brun e Ebra, e quando ambos tiverem idade suficiente, ela será a mulher de Dure. — Ayla fez uma pausa, depois concluiu. — Quisera estar lá para recebê-la, mas talvez ela julgue Dure sem sorte se o espírito da sua estranha mãe não ficar quieto em seu lugar, que é no outro mundo.

— Tem certeza disso, Ayla? Eu falava sério: podemos ir procurar por eles, se você assim desejar — disse Jondalar.

—    Mesmo se eu quisesse encontrar meu filho, não saberia onde procurar por ele. Não sei onde fica a nova caverna deles, nem onde se realiza a Reunião do Clã. Não está escrito que eu veja Dure. Ele é filho de Uba, hoje. — Ayla encarou Jondalar.

Ele viu que havia lágrimas nos olhos dela, que ameaçavam rolar.

—    Eu sabia, quando Rydag morreu, que nunca mais veria Dure. Enterrei Rydag no grande manto em que carregara Dure, o manto que levei comigo ao deixar o Clã. E no meu coração enterrei Dure ao mesmo tempo. Sei que nunca mais o verei. Estou morta para ele, e é bom que esteja morto para mim. — As lágrimas lhe molhavam as faces, embora ela não parecesse notá-las. — Tenho de fato muita sorte, sabe? Pense em Nezzie. Rydag era como um filho para ela, que o criou mesmo sem tê-lo parido, e sabia que havia de perdê-lo. Sabia, até, que, independente de quanto tempo ele vivesse, jamais teria uma vida normal. Outras mães que perdem os filhos podem apenas imaginá-los em outro mundo, vivendo com espíritos. Mas eu posso imaginar Dure aqui, sempre seguro, sempre afortunado, quase feliz. Posso pensar nele vivendo com Ura, tendo filhos no seu lar, mesmo que eu nunca os conheça.

O soluço na voz dela abriu finalmente a porta para que a sua mágoa transbordasse. Jondalar tomou-a nos braços e a manteve assim. O pensamento de Rydag o entristecia também. Não havia nada que se pudesse fazer por ele, embora todo mundo soubesse que Ayla havia tentado. Era uma criança frágil. Nezzie disse que sempre fora. Mas Ayla lhe dera algo que ninguém mais podia ter-lhe dado. Depois que ela chegou e começou a ensinar-lhe, e ao resto do Acampamento do Leão, a falar como se falava no Clã, por sinais, ela ficara mais feliz do que nunca. Era a primeira vez em toda a sua vida que conseguia comunicar-se com as pessoas que amava. Podia agora expressar suas necessidades e desejos, e também mostrar às pessoas o que sentia, sobretudo Nezzie, que tomara conta dele desde que sua mãe morrera, de parto. Podia finalmente dizer a Nezzie que amava.

Fora uma surpresa para os membros do Acampamento do Leão, mas uma vez que eles ficaram sabendo que Rydag não era apenas um animal esperto, incapaz de falar, mas uma diferente espécie de pessoa, com uma diferente forma de linguagem, começaram a ver que ele era inteligente e aceitá-lo como gente. Não fora surpresa menor para Jondalar, se bem que ela tivesse procurado contar-lhe, depois que ele começou a lhe ensinar a falar outra vez. Ele aprendera os sinais ao mesmo tempo que os outros e começara a apreciar o suave humor daquele menino da raça antiga, e até onde ia sua compreensão.

Jondalar mantinha nos braços a mulher que amava, e ela soluçava para libertar sua tristeza. Ele sabia que Ayla guardava no peito sua tristeza com a morte da criança meio-Clã que Nezzie tinha adotado, que lhe lembrava tanto seu próprio filho, e entendia que se lamentava por aquele filho também.

Mas havia mais que Rydag ou Dure. Ayla chorava por todas as suas perdas: pelas pessoas do passado remoto, as pessoas que amava no Clã, e pela perda do próprio Clã. O Clã de Brun fora a sua família; Iza e Creb a tinham criado, cuidado dela. A despeito da sua diversidade, houve um tempo em que ela se considerava um membro do Clã. Embora tivesse decidido partir com Jondalar, porque o amava e queria estar com ele, aquela conversa a fizera agora compreender quão longe ele morava. Levariam um ano, talvez dois, para chegar lá. A compreensão disso lhe viera, por fim: ela não voltaria nunca.

Não estava apenas renunciando à sua vida com os Mamutói, que lhe tinham oferecido um lugar em seu meio. Abandonava, ao mesmo tempo, qualquer tênue esperança que ainda tivesse de rever o povo do seu Clã ou o filho que com eles deixara. Ela vivia havia tanto tempo com as suas tristezas que eram menos doloridas um pouco, mas Rydag não morrera muito tempo antes da partida deles para a Reunião de Verão, e essa morte era ainda por demais recente, a dor de uma ferida aberta. Com ela vieram de roldão todas as outras perdas, e a percepção da distância que ia agora pondo entre eles lhe dava a certeza de que só morrendo também receberia essa parte do seu passado.

Ayla já perdera sua primeira vida. Não sabia ao certo quem fora sua mãe ou sua gente, aqueles para os quais havia nascido. Afora recordações fragmentadas e vagas... sentimentos mais que qualquer outra coisa... não se lembrava de nada até o terremoto ou de ninguém antes do Clã. Mas o Clã a banira. Broud lançara a maldição sobre ela. Para eles Ayla estava morta, e agora ela compreendia que perdera também essa parte da sua vida quando fora mandada embora. Daquele momento em diante, ela nunca saberia de onde vinha, nunca encontraria uma amiga de infância, nunca encontraria ninguém, nem mesmo Jondalar, capaz de entender o histórico que a fizera a pessoa que era.

Ayla aceitava a perda do passado, exceto a daquele que vivia na sua mente e no coração, mas chorava por ele e ficava a imaginar o que estaria pela frente quando chegasse ao fim da Jornada. Independente do que fosse, e como fosse o povo dele, ela não teria mais nada: só as suas memórias... e o futuro.

Na clareira cercada de árvores era escuro agora. Nem o mais vago contorno de uma silhueta ou sombra mais escura podia ser percebido contra a uniformidade do fundo, à exceção do débil e impreciso clarão vermelho das brasas da fogueira e a epifania resplandecente das estrelas. Como so uma leve brisa penetrava a clareira protegida, os dois tinham puxado suas peles de dormir para fora da tenda. Ayla jazia acordada debaixo do céu estrelado, contemplando os variados desenhos das constelações e escutando os ruídos da noite: o vento esgueirando-se entre as árvores, a correnteza do rio passando, os ruídos dos grilos e dos sapos. Houve um mergulho no rio, depois um pio de coruja e, na distância, o rugido de um leão e o ruído da trombeta de um mamute.

No começo da noite, Lobo ficara excitado com as corujas e saíra atrás delas. Mais tarde, Ayla ouvira um uivo dele seguido de um lamento de coruja muito mais perto. Ficou esperando que o animal voltasse. Quando ouviu sua respiração ofegante... ele deve ter corrido, pensou... e sentiu que ele se acomodava para dormir aos seus pés, sossegou.

Tinha cochilado um pouco, mas, de repente, se viu acordada e alerta. Tensa, permaneceu imóvel, procurando descobrir o que a despertara. Primeiro, sentiu o rosnado, surdo, quase silencioso, vibrando através das suas cobertas a partir daquele ponto quente aos seus pés. Depois ouviu fungadas discretas. Havia alguma coisa com eles no acampamento.

—    Jondalar?— tentou, em voz baixa.

—    Acho que a carne atraiu alguma criatura. Pode ser um urso, mas é mais provável que seja um glutão ou uma hiena — respondeu Jondalar num sussurro apenas audível.

—    O que vamos fazer? Não quero que levem a nossa carne.

—    Seja o que for, talvez não alcance o assado. Vamos esperar.

Mas Lobo sabia exatamente o que estava farejando em volta e não tinha intenção de esperar. Sempre que eles montavam acampamento, Lobo definia o território como seu e assumia a responsabilidade de defendê-lo Ayla o viu sair e, um instante depois, ouviu-o rosnar de forma ameaçadora. O rosnado que recebeu como resposta era num tom muito diferente e parecia vir de um plano mais alto. Ela se sentou e estendeu a mão para a funda, mas Jondalar já estava de pé com o longo fuste de uma lança já no arco, de prontidão.

—    É um urso! — disse ele. Deve estar apoiado só nas patas traseiras, mas não consigo ver nada.

Ouviram movimento, arrastado de algum lugar entre a fogueira e os mastros onde a carne estava suspensa, depois os rosnados dos animais que se arrastavam. De súbito, do outro lado, Huiin relinchou, e em seguida, mais alto ainda, Racer manifestou seu nervosismo. Houve mais ruídos indistintos no escuro, e depois Ayla escutou o rosnado profundo e excitado que era sinal da intenção que Lobo tinha de atacar.

—    Lobo! — chamou, para impedir uma confrontação perigosa.

Por entre rosnados furiosos, ouviu-se um sonoro berro, depois um uivo de dor, e mil fagulhas voaram em torno de uma forma avantajada que tropeçara nas pedras da fogueira. Ayla ouviu o assovio de um objeto cortando o ar rapidamente. Seguiu-se o som do impacto, um novo uivo e o rumor de algo que se afastava batendo contra as árvores. Ayla assoviou, como costumava fazer para Lobo. Não queria que ele fosse atrás do urso.

Quando Lobo voltou, ela se ajoelhou, com alívio, junto dele. Jondalar, por seu lado, reavivava o fogo. Viram então a trilha de sangue deixada pelo animal ao retirar-se.

—    Acho que acertei esse urso, mas não pude ver onde a lança o pegou. Tenho de dar uma busca amanhã. Um urso ferido pode ser perigoso, e não sabemos quem vai usar este acampamento depois de nós.

Ayla foi examinar as pegadas.

— Parece que está perdendo muito sangue. Talvez não vá longe. Mas estava aflita com Lobo. Era um urso grande. Podia ter machucado Lobo.

— Não sei se Lobo devia ter atacado dessa maneira. Ele poderia ter levado o urso a voltar-se contra outro objetivo. Mas foi um ato corajoso, e gostei de ver que ele está sempre preparado para defendê-la. Imagino o que fará se alguém de fato atentar contra você.

— Eu também não sei. Mas Huiin e Racer ficaram agitados com o urso. Vou ver como estão.

Jondalar a acompanhou. Os cavalos estavam perto da fogueira. Huiin sabia havia muito tempo que fogo acendido por gente em geral significava segurança, e Racer ia aprendendo com a mãe e com a própria experiência. Pareceram aquietar-se com as palavras e os afagos de gente em que confiavam, mas Ayla estava ansiosa e sabia que teria dificuldade em dormir outra vez. Decidiu tomar alguma infusão calmante e entrou na tenda para pegar a bolsa dos remédios.

Enquanto as pedras esquentavam, ela ficou alisando a pele da velha bolsa, lembrando-se de quando Iza lhe dera aquilo, e rememorando sua vida com o Clã, principalmente o último dia. Por que Creb achou de voltar à caverna?, pensou. Poderia estar ainda vivo, embora já fosse velho e doente. Mas não parecera fraco na noite anterior, durante aquela última cerimónia, quando fez de Goov o novo Mog-ur. Parecia forte como antes, o Mog-ur. Goov nunca seria tão poderoso quanto Creb.

Jondalar notou que ela estava pensativa. Achou que era ainda devido à história da criança que morrera e do filho que não mais ia ver, e não sabia se era o caso de dizer alguma coisa. Queria ajudar, mas sem ser intruso. Estavam sentados lado a lado junto do fogo, tomando o chá, quando Ayla olhou para o céu e prendeu a respiração.

— Veja, Jondalar. No céu. É vermelho, como um incêndio, mas muito alto e muito longe. O que será?

— Fogo Polar! — disse ele. — É o que dizemos quando o céu fica assim, vermelho. Dizemos também, às vezes, Luzes do Norte.

Ficaram olhando o espetáculo luminoso por algum tempo. Grandes cortinas diáfanas, em arco, que subiam e desciam no céu como que levadas por um vento cósmico.

— Essa coisa tem faixas brancas, Jondalar, e é movediça como fumaça. Parece que tem água branca passando por ela. E outras cores também.

— Fumaça de Estrelas — disse Jondalar. — Tem gente que lhe dá esse nome. Ou Nuvens de Estrelas, quando é branca. Tem muitos nomes. E a maioria das pessoas sabe a que você se refere quando usa qualquer deles.

— Por que não vi essa luz no céu antes? — disse Ayla. Sentia uma especie de temor respeitoso.

— Talvez por viver muito para o sul. É por isso que essas luzes se chamam Luzes do Norte. Eu mesmo não as vi muitas vezes e nunca tão nítidas como esta noite, ou tão vermelhas, mas os que viajam para o norte dizem que quanto mais se caminha para o norte, mais frequentes elas são.

—    Mas não se pode ir além da geleira.

—    Pode-se sim, desde que por água. A oeste do lugar onde nasci, a diversos dias de distância, dependendo da estação do ano, a terra acaba e começam as Grandes Águas. Que são muito salgadas e não congelam nunca, embora se vejam, por vezes, grandes blocos flutuantes de gelo. Já ouvi que há quem vá além da geleira de barco, quando caçam animais que vivem na água — disse Jondalar.

—    Você fala de barcos como os que os Mamutói usam para atravessar rios?

—    Só maiores e mais resistentes. Nunca vi esses barcos e não acreditava muito nas histórias até que conheci os Xaramudói e vi os barcos que eles fazem. Há muitas árvores ao longo do Rio da Grande Mãe, perto do Acampamento deles. Árvores grandes. Eles fazem barcos com elas. Espere até conhecê-los. Você não vai acreditar nos próprios olhos, Ayla. Eles não se limitam a atravessar o rio, viajam nele, tanto a favor quanto contra a corrente, nesses barcos.

Ayla percebeu o entusiasmo dele. Jondalar de fato queria muito rever os barcos, agora que resolvera seu dilema. Mas ela não pensava nisso, no povo de Jondalar. Aquelas estranhas luzes boreais a perturbavam Não sabia bem por quê. Eram enervantes, e ela gostaria de saber o que significavam, mas não lhe davam medo como outras perturbações, terrestres. Sentia muito medo, por exemplo, de terremotos. E não apenas porque assusta ver sacudindo o que deve estar firme, mas porque o fenômeno sempre anunciava mudança drástica, violenta, na sua vida.

Um terremoto a arrancou do seu povo, dando-lhe uma infância alheia a tudo o que havia conhecido até então, e outro terremoto levara ao seu ostracismo do Clã — ou, pelo menos, dera a Broud a desculpa de que ele precisava para excluí-la. Mesmo a erupção vulcânica longe, a sudeste, que fez chover cinza fina sobre eles, pareceu um presságio da sua saída do meio dos Mamutói, embora nesse caso a escolha tivesse sido sua, e não imposta. Mas ela não sabia o que sinais no céu significavam, nem mesmo se aquilo era um sinal.

— Creb imaginaria que um céu assim teria algum significado. Estou segura disso — disse Ayla. — Ele era o mais poderoso Mog-ur de todos clãs, e uma coisa dessas o faria certamente meditar até que entendesse o seu sentido secreto. Penso que Mamute também veria nisso um aviso O que pensa você, Jondalar? É ou não sinal de algum portento? Talvez de algo... não muito bom?

— Eu... não sei, Ayla. — Ele hesitava em contar-lhe que para o seu povo se as Luzes do Norte fossem vermelhas isso era considerado um aviso, mas não sempre. Às vezes apenas pressagiava algum acontecimento importante. — Não sou Um que Serve à Mãe. Pode ser um presságio bom.

— Mas esse Fogo Polar é um sinal poderoso ou não?

— De regra, é. Pelo menos muita gente acredita que sim.

Ayla misturou um pouco de raiz de aquilégia e losna com o seu chá de camomila, fazendo um calmante muito leve para ela mesma, mas estava inquieta com o episódio do urso no acampamento e aquela estranha aurora no céu. Mesmo com o sedativo, sentiu que o sono custava a chegar. Tentou todas as posições, deitando-se primeiro de lado, depois de costas depois do outro lado, e, até, de bruços, e estava certa de que toda aquela movimentação incomodava Jondalar. Quando, finalmente, dormiu o sono foi perturbado por sonhos muito vívidos.

Um rugido feroz rompeu o silêncio, e as pessoas que observavam recuaram de pavor. O gigantesco urso da caverna forçou a porta da jaula, atirando-a para longe. O urso enlouquecido estava solto! Broud subiu para os ombros dele e dois outros homens o pegaram no pêlo. De repente, um deles se viu no poder do monstruoso animal, mas seu grito de agonia foi cortado, pois um poderoso abraço de urso partiu-lhe a espinha. Os Mogurs recolheram o corpo e, com uma dignidade solene, levaram-no para uma caverna. Creb, com seu manto de pele de urso, se foi, manquitolando, à frente deles.

Ayla contemplou um líquido branco numa tigela rachada de madeira. O líquido ficou vermelho como sangue, depois se tornou espesso, quando mãos, brancas e luminosas, mexeram nele fazendo ondas. Ela se afligiu. Fizera alguma coisa errada. Não devia haver líquido nenhum na cuia. Ela a levou aos lábios e bebeu tudo.

Sua perspectiva mudou, a luz branca estava agora dentro dela, e ela parecia crescer e olhar de muito alto para estrelas que abriam uma vereda. As estrelas transmudaram-se em pequeninas luzes que conduziam a uma caverna larga e sem fim. Então uma luz rubra cresceu, vinda do fundo da caverna, enchendo sua visão, e com um sentimento de profunda angústia, ela viu os Mogurs sentados em círculo, meio escondidos pelos pilares de estalagmites.

Ela se afundava mais e mais num abismo negro, petrificada de pavor. De súbito, Creb estava lá com a luz brilhante dentro dela, para ajudá-la, apoiá-la, aliviar seus temores. Ele a guiou numa estranha viagem de volta aos seus começos comuns, através de água salgada e doloridos haustos de ar, terra, grandes árvores. Pisaram, depois, terra firme, e caminharam de pé sobre duas pernas uma grande distância, no rumo do oeste e de um grande mar salgado. Atingiram um paredão vertical que fazia frente a um rio e a uma planície, e tinha uma caverna no centro. Era a caverna de um dos antigos ancestrais dele. Mas, à medida que se aproximam da caverna, Creb se dissolvia, deixando-a só.

O cenário ficou indistinto, Creb se esfumava rápido, já havia quase desaparecido, e ela sentiu um grande pânico.

— Creb! Não vá! Por favor, não vá!

Correu os olhos pela paisagem procurando vê-lo, desesperada. Creb estava no alto de um penhasco, por cima da caverna do antepassado, junto de uma grande pedra, um longo pilar achatado, que se debruçava sobre o abismo, como se tivesse congelado de repente e pudesse ruir a qualquer momento. Ela gritou por Creb mais uma vez, mas ele desaparecera dentro da rocha. Ayla se sentiu desolada. Creb se fora, e ela estava só, doeu. te de tristeza, desejando ter alguma coisa dele como recordação, alguma coisa que pudesse tocar, segurar. Mas tudo o que tinha era aquela tristeza esmagadora. E de súbito estava correndo, correndo o mais depressa possível. Tinha de ir embora, tinha absolutamente de ir embora.

— Ayla! Ayla! Acorde! — falou Jondalar, sacudindo-a.

— Jondalar — disse ela, sentando-se. Depois, sentindo ainda a de solação, agarrou-se a ele e se pôs a chorar. — Ele se foi... Oh, Jondalar.

— Tudo bem — disse ele, abraçando-a. — Deve ter sido um pesadelo. Você gritava e chorava. Ajudará se me contar?

— Era Creb. Sonhei com Creb e com aquele tempo da Reunião do Clã, quando entrei na caverna e aquelas coisas estranhas aconteceram. Por muito tempo ele ficou zangado comigo. Depois, quando estávamos voltando a ter um relacionamento normal, ele morreu. Não tivemos tempo de conversar grande coisa. Ele me disse, porém, que Dure era o filhe do Clã. Eu nunca soube o que quis dizer com isso. Havia tanta coisa que eu teria gostado de esclarecer com ele, tanta coisa que eu lhe poderia perguntar.

Muita gente o considerava um grande Mog-ur. A falta de um olho e de um braço o enfeavam e davam-lhe uma aparência ainda mais assustadora. Ele entendia o mundo dos espíritos, mas compreendia as pessoas também. Eu quis falar com ele no meu sonho, e acho que ele estava tentando comunicar-se comigo.

— Talvez estivesse — disse Jondalar. — Nunca fui muito bom para interpretar sonhos. Sente-se melhor, agora?

— Estou bem — respondeu Ayla. — Mas gostaria de saber mais sobre sonhos.

— Você não deve ir sozinho procurar por aquele urso — disse Ayla, depois da refeição da manhã. — Foi você mesmo quem disse que um urso ferido é um animal perigoso.

— Terei cuidado.

—    Se eu for com você, nós dois teremos cuidado. Ficar no acampamento pode ser tão arriscado quanto ir. E se o urso voltar quando você estiver ausente?

—    Tem razão. Vamos juntos.

Partiram para a mata, seguindo o rastro do animal. Lobo decidiu achar o urso e foi à frente, pela vegetação rasteira, rio acima. Apressando-se, eles o alcançaram. Lobo estava todo arrepiado, com um rosnado preso na garganta, mas de cabeça baixa e rabo entre as pernas, a uma distancia segura de uma pequena alcateia de lobos que montavam guarda entorno da carcaça marrom-escuro do urso.

— Pelo menos já não precisamos temer um perigoso urso ferido — disse Ayla, com a lança e arco em posição.

— Só uma alcateia de lobos perigosos. — Ele estava também de arco assestado. — Você quer um pouco da carne de urso?

— Não. Temos bastante carne. Não há mais lugar na bagagem. Vamos deixar o urso para eles.

— Não faço questão da carne, mas gostaria de levar as patas e os grandes dentes — disse Jondalar.

— E por que não leva? São seus de pleno direito. Você o matou. Posso espantar os lobos com a minha funda pelo menos até que você os recolha.

Aquilo não era coisa que ele tivesse tentado sozinho. A ideia de expulsar uma alcateia de lobos fazendo-os abandonar carne que já consideravam sua era algo arriscado, mas ele se lembrou do que Ayla fizera na véspera com as hienas.

—    Vá em frente — disse, sacando a faca afiada.

Lobo ficou muito excitado quando Ayla começou a lançar pedras contra as feras e montou guarda à carcaça enquanto Jondalar decepava rapidamente as patas. Os dentes eram difíceis de extrair das mandíbulas, mas logo ele tinha todos os seus troféus. Ayla observava. Lobo sorria. Logo que a sua alcateia se impusera à outra, selvagem, ele mudara de atitude. Estava de cabeça erguida, agora, cauda para trás, no ar, na postura heráldica do lobo parado. Mas seu rosnado era mais agressivo, de lobo rompante. O líder da alcateia observava-o, atento, e parecia prestes a desafiá-lo.

Quando, afinal, abandonaram a carcaça e se afastaram, o líder lançou a cabeça para trás e uivou. Era um uivo poderoso, do fundo da garganta. Lobo respondeu. Mas com pouca ressonância. Era ainda jovem, nem chegara a adulto, e isso ficava patente, no tom.

—    Vamos, Lobo. Aquele lá é maior que você, e também mais velho e mais sabido. Ele pode derrubá-lo num abrir e fechar de olhos.

Mas Lobo uivou de novo, não em desafio, mas por estar numa comunidade da sua espécie.

Os outros fizeram-lhe coro, e Jondalar se viu em meio a uma cacofonia de ganidos e uivos. Então, Ayla sentiu vontade de imitá-los e também ergueu a cabeça e uivou. Jondalar sentiu um frio percorrer-lhe a espinha, e ficou todo arrepiado. Aos ouvidos dele, a imitação fora perita. Até Lobo virou a cabeça para ela, depois respondeu, já num tom mais convincente. Os outros lobos uivaram em uníssono e logo a mata encheu outra vez da voz dos lobos, que dá calafrios, mas nem por isso deixou de ser bela.

Quando voltaram ao acampamento, Jondalar limpou as patas do urso e os caninos, enquanto Ayla carregava Huiin. Ele ainda empacotava suas coisas quando Ayla deu tudo o que tinha que fazer por terminado. Estava recostada na égua, coçando-a distraída, e sentindo o conforto da sua presença quando viu que Lobo tinha encontrado outro osso velho e podre. Dessa vez ele se deixara ficar do outro lado da clareira, todo orgulhoso do seu achado, mas de olho em Ayla. Não foi levá-lo para ela como fizera com o outro.

—    Lobo! Venha cá! — chamou. Ele deixou o osso e obedeceu, — Acho que é tempo de ensinar-lhe alguma coisa nova.

Queria que ele aprendesse a ficar num lugar quando ela mandasse mesmo que ela saísse de perto. Era importante que ele aprendesse, ao por mais tempo que levasse. A julgar pela recepção que tinham tido ate então e pela reação de Lobo, temia que ele atacasse estranhos, gente de outra "alcateia" humana.

Ayla prometera a Talut muito tempo atrás que ela mesma sacrificaria o lobo se ele algum dia molestasse alguém no Acampamento do Leão. Pois sentia ainda a responsabilidade de impedir que aquele carnívoro, que ela pusera em estreito contato com gente, fizesse mal a alguém. Era uma responsabilidade sua. Além disso, não queria que nada de mal acontecesse ao animal. Temia que algum caçador assustado tentasse matar aquele estranho lobo que parecia ameaçar seu acampamento antes que ela pudesse impedi-lo.

Começou por amarrá-lo a uma árvore, dizendo-lhe que ficasse la enquanto ela se afastava. Mas o laço era frouxo, e ele conseguiu soltar-se Apertou-o mais, da segunda vez, com medo que a corda o estrangulasse se ficasse muito justa. Como imaginara, Lobo protestou e uivou e se pôs a dar saltos, querendo segui-la. Quando estava distante dele, ordenou-lhe repetidamente que ficasse quieto, fazendo também com a mão um sinal de parar.

Quando ele, por fim, se aquietou, Ayla aproximou-se dele e elogiou seu comportamento. Depois de mais algumas tentativas, vendo que Jondalar estava pronto, ela soltou o animal. Já praticara bastante. Mas tendo lutado contra a corda, Lobo apertara demais os nós, Ayla não estava satisfeita com a corda. Devia ajustá-la exatamente, nem muito apertada nem muito frouxa. Era difícil afrouxar o laço. Tinha de pensar no assunto.

— Você acha que consegue ensinar Lobo a não atacar estranhos? — perguntou Jondalar, que assistira àquelas primeiras tentativas, aparentemente fracassadas. — Você mesma não me disse que é natural para os lobos desconfiar dos outros? Como acha que pode ensinar-lhe algo que é contrário à sua natureza?

— E é natural para o cavalo deixar que você o monte? — perguntou ela.

— Não é a mesma coisa, Ayla — disse Jondalar, ao deixarem o acampamento, cavalgando lado a lado. — Os cavalos comem capim, não comem carne, e é da sua natureza evitar problemas. Quando eles vêem estranhos ou alguma coisa que lhes pareça ameaçadora, sua reação é fugir. Um garanhão pode lutar com outro, às vezes, ou com algo que o ameace diretamente, mas Racer e Huiin preferem fugir de uma situação de perigo, enquanto que Lobo fica na defensiva. Ele prefere lutar.

— Ele fugiria também, Jondalar, se o acompanhássemos. Assume essa postura defensiva para proteger-nos. Ele come carne, sim, e é capaz de matar um homem, mas não faz isso. Não acho que o faria, só se um de nós lhe parecesse um perigo. Os animais aprendem, como as pessoas. Não é natural para ele considerar pessoas e cavalos como sua alcateia. Mesmo Huiin tem assimilado coisas que não aprenderia se vivesse com outros cavalos. É natural para um cavalo ver no lobo um amigo? Pois ela já teve até um leão como companheiro de caverna. Será isso uma inclinação natural?

— Talvez não — disse Jondalar, mas não me importo de dizer-lhe o quanto me assustei quando Neném apareceu na Reunião de Verão e você foi em direção a ele, montada em Huiin. Como podia ter certeza de que ele se lembraria de você? Ou de Huiin? Ou que Huiin se lembraria dele?

— Eles cresceram cresceram juntos. Neném... Quero dizer, Neném...

A palavra que usou queria dizer "bebê", mas tinha uma inflexão bi­zarra diferente da língua que ela e Jondalar costumavam falar, soava áspera, gutural, como se viesse diretamente da garganta. Jondalar não era capaz de reproduzi-la, só com dificuldade emitia um som parecido. Era uma das palavras relativamente pouco usadas da língua do Clã. Embora ela a pronunciasse tão frequentemente que ele a reconhecia, Ayla criara o hábito de traduzir de imediato qualquer palavra da língua do Clã que porventura dissesse para facilitar as coisas. Quando Jondalar se referira ao leão que Ayla criara desde pequena, ele usava a forma traduzida do nome que ela lhe dera, mas sempre lhe parecera impróprio que um gigantesco leão macho das cavernas tivesse o nome de "Neném".

— ...Neném era... um filhote quando o achei, um bebê. Não estava sequer desmamado. Levara uma pancada na cabeça, dada por um cervo a galope, penso eu, e estava quase morto. Por isso a mãe o abandonara. Foi como um bebê também para Huiin. Ela me ajudou a criá-lo... era tão engraçado quando começaram a brincar juntos, principalmente quando Neném saía disfarçadamente e tentava morder o rabo de Huiin. Havia ocasiões em que ela abanava o rabo de propósito. Ou quando disputavam um pedaço de couro, cada um puxando por um lado. Perdi muito couro assim, naquele ano, mas os dois me faziam rir.

Ayla ficou pensativa.

— Eu não sabia rir até então. O povo do Clã não ria alto. Não gostavam de sons desnecessário, e sons altos eram, em geral, de aviso. E aquela expressão de que você gosta,com os dentes à mostra, e que chamamos de sorriso? Para eles isso queria dizer que estavam nervosos, ou na defensiva. Combinando com um certo sinal da mãe, era um gesto de ameaça. Quando eu era pequena, eles não gostavam quando eu ria, de modo que aprendi a não fazer isso com frequência.

Cavalgaram ao longo do rio por algum tempo, em terreno plano, de saibro.

— Tem gente que sorri quando está nervosa ou quando fala com estranhos — disse Jondalar. — Mas não é que estejam na defensiva ou queiram ameaçar ninguém. Acho que um sorriso serve para mostrar que a pessoa não tem medo.

Ayla seguiu em frente, em fila indiana, e se inclinou para um lado, a fim de fazer com que sua montaria evitasse um arbusto que crescia junto de um riacho. Depois que Jondalar inventara a rédea, o que usava para guiar Racer, Ayla passara a usar uma igual para dar indicações ocasionais a Huiin, ou para prendê-la a alguma coisa quando paravam, mas mesmo quando a égua estava com a rédea, Ayla não apelava para esse recurso quando cavalgava. Nunca pretendera treinar o animal quando começara a montar, e o processo de aprendizado mútuo fora gradual e, a princípio, não deliberado. E se ao perceber o que acontecia ela tivesse propositadamente ensinado o animal a fazer certas coisas, isso se dera sempre no quadro da afinidade profunda que crescera entre eles.

— Mas se um sorriso serve para mostrar que você não está com medo, isso não quer dizer que você não tem nada a temer? Que você se sente forte e seguro? — disse Ayla quando ficaram outra vez lado a lado.

— Nunca pensei nisso antes. Thonolan sorria muito e parecia confiante quando encontrava desconhecidos, mas não se sentia sempre tão seguro quanto parecia. Procurava dar essa impressão, de modo que imagino se poderia dizer que o gesto era defensivo, um modo de dizer "estou tão forte que não tenho nada a recear de você".

— E mostrar a sua força não é, de certo modo, ameaçar? Quando Lobo arreganha os dentes para estranhos não está mostrando sua força? — insistiu Ayla.

— Deve haver alguma coisa neles que é a mesma, mas há, assim mesmo, uma enorme diferença entre um sorriso de boas-vindas e Lobo mostrando os dentes e rosnando.

— É verdade — concordou Ayla. — Um sorriso faz a gente feliz.

— Ou, pelo menos, aliviado. Se você encontra um estranho e ele lhe sorri, isso em geral significa que você foi bem-vinda, de modo que você sabe onde está. Nem todos os sorrisos pretendem necessariamente fazer o outro feliz.

— Talvez o sentir-se aliviado seja o começo de sentir-se feliz — disse Ayla.

Cavalgaram em silêncio por algum tempo. Depois, a mulher continuou.

—    Acho que há alguma semelhança entre uma pessoa que sorrir em saudação quando se sente nervosa diante de estranhos, e as pessoas do Clã fazendo um gesto na sua língua de mostrar os dentes, que significa que estão nervosas e tem uma conotação de ameaça. Quando Lobo mostra os dentes para estranhos, ele os ameaça por sentir-se nervoso e na defensiva.

—    Então quando ele mostra os dentes para nós, sua alcateia, aquilo é um sorriso — disse Jondalar. — Por vezes tenho a impressão de que ele está sorrindo, e sei que ele brinca com você. Estou convencia também de que ele a ama, acontece que é natural para ele mostrar os dentes e ameaçar os estranhos. Como poderá você ensiná-lo a não atacar gente se ele decidir contrário? — Jondalar parecia de fato preocupado. Não sabia se levar o animal com eles era mesmo uma boa ideia. Lobo poderia criar muitas dificuldades.

— Lembre-se, lobos atacam para conseguir comida. Foi assim que a Mãe os fez. Lobo é um caçador. Você pode ensinar-lhe muitas coisas, mas como ensinar um caçador a não caçar? A não atacar estranhos?

— Você era um estranho quando chegou ao meu vale, Jondalar. Lembra-se de quando Neném voltou para visitar-me e encontrou você lá? — perguntou Ayla, e os dois se separaram e seguiram em fila indiana para subir uma ravina que levava do rio para a terra mais alta.

Jondalar sentiu um calor no rosto. Não era exatamente enleio, mas emoção, com as fortes lembranças daquele encontro. Nunca passara tamanho susto na vida. Achou que ia morrer.

Eles levaram algum tempo para subir a estreita ravina, entre blocos de pedra que tinham descido com as cheias da primavera e moitas de artemísia, com seus caules negros, que rebentavam em flores quando as chuvas chegavam, e se viam reduzidas a talos secos que pareciam mortos Quando elas cessavam. Ele pensou naquela ocasião em que Neném tinha voltado para o lugar onde Ayla o criara e dera com um estranho na larga plataforma exterior da sua pequena caverna.

Nenhum leão é pequeno, mas Neném era o maior leão das cavernas que ele jamais tinha visto, quase tão alto quanto Huiin, e mais forte. Jondalar ainda se recuperava dos maus-tratos que sofrera nas garras daquele mesmo bicho ou de outro da sua espécie quando ele e o irmão tinham rondado estupidamente um covil. Foi a última coisa que Thonolan fez. Jondalar achou que vivia seus últimos momentos quando o leão rugiu e se preparou para saltar. De súbito, Ayla surgiu entre eles, levantando a mão num gesto que mandava parar. E o leão parou! Ele teria achado graça de como estacou e se torceu para evitá-la, se não estivesse tão petrificado. Pouco depois a mulher coçava aquele gigante e brincava com ele.

— Sim, eu me lembro — disse, quando chegaram ao topo e de novo emparelharam um com o outro. — Ainda não sei como você conseguiu fazer com que ele parasse em meio àquele ataque.

— Quando Neném era pequeno, ele brincava de me atacar, mas quando começou a crescer ficou grande demais para que eu continuasse a brincar daquela maneira com ele. Era bruto demais. Tive de ensiná-lo a parar — explicou Ayla. Agora tenho de ensinar Lobo a não atacar estranhos e a ficar trás quando eu desejar. Assim, ele não machuca ninguém e ninguém lhe faz mal.

Se alguem é capaz de ensinar-lhe isso, esse alguém é você, Ayla — disse Jondalar. Ela fora convincente e tivesse êxito, seria mais fácil viajar com Lobo. Mesmo assim, ele ainda imaginava os problemas que o lobo poderia causar. Ele já havia atrasado a travessia do rio e estragava as coisas deles, embora Ayla tivesse, aparentemente, resolvido esse problema. Não que ele não gostasse do animal. Gostava. Era fascinante observar um lobo assim tão de perto, e ficava surpreso vendo corno Lobo era afetuoso, mas o animal dava trabalho, exigia atenção, consumia provisões. Os cavalos também davam trabalho, mas Racer era tão seu amigo, e ele e Huiin ajudavam muito. A viagem de volta ia ser penosa. Podiam dispensar o peso extra de um animal que os ocupava quase tanto quanto uma criança.

Uma criança seria coisa muito séria, pensava Jondalar, enquanto cavalgava. Queira a Grande Mãe Terra que Ayla não tenho um filho antes de chegarmos! Uma vez instalados, será diferente. Então podemos pensar em filhos. Não que a gente faça algo para evitar um bebê, exceto rezar. Como seria ter um bebê por perto?

E se Ayla tiver razão? Se as crianças forem desencadeadas pelos prazeres? Mas temos estado juntos e nenhum sinal de filho. Tem de ser Doni quem põe um bebê no ventre de uma mulher. Mas e se a Mãe resolver dar uma criança a Ayla? Ela já teve uma, bem ou mal. Uma vez que Doni. Alguma dá um filho, a Mãe, em geral, dá outros. Será que Ayla pode ter um filho nascido do meu espírito? Alguma mulher poderá?

Já partilhei Prazeres com muitas mulheres e honrei Doni. Alguma delas terá tido um filho começado por mim? Como pode um homem saber se isso aconteceu? Ranec sabia. Suas feições eram tão incomuns, a tez tão escura, que a gente podia ver a essência dele estampada em algumas das crianças, na Reunião de Verão. Já eu não tenho traços tão marcantes nem cor diferente. Ou tenho?

E aquela ocasião em que caçadores Hadumai nos interceptaram no caminho para cá? Aquele velho Haduma queria que Noria tivesse um bebê de olhos azuis como os meus. E depois dos Primeiros Ritos Noria me disse que ia ter um filho do meu espírito com os meus olhos azuis. Haduma lhe comunicara isso. Será que ela teve mesmo esse filho?

Serenio achava que talvez ela estivesse grávida quando partimos. Será que deu à luz uma criança com olhos da cor dos meus? Serenio teve um filho e mais nenhum depois desse, e Darvo já era quase rapaz. Imagino o que ela vai pensar de Ayla, ou o que Ayla achará dela?

Talvez não estivesse de fato grávida. Talvez a Mãe ainda não tenha esquecido o que fiz e isso seja a Sua maneira de dizer que não mereço um filho junto do meu fogo. Mas Ela me devolveu Ayla. Zelandoni sempre me disse que Doni jamais recusaria o que eu pedisse a Ela, mas me avisou que tivesse cuidado com os meus pedidos: porque seriam atendidos. Foi por isso que me fez prometer não pedir por ela à Mãe quando era ainda Zolena.

Por que alguém pediria uma coisa que não deseja? Jamais entendi essa gente que fala com o mundo dos espíritos. Eles têm sempre uma restrição na língua. Costumavam dizer que Thonolan era um favorito de Doni, tal a sua facilidade em fazer amigos. Mas diziam também que ele tivesse cuidado com os favores de Doni. Quando são excessivos, Ela cobra: não permite que a gente se afaste dela por muito tempo. Foi por isso que Thonolan morreu? Que a Grande Mãe Terra o levou? O que querem dizer exatamente quando afirmam que alguém é um "favorito" de Doni?

Não sei se Ela gosta especialmente de mim ou não. Mas agora sei que Zolena escolheu certo quando se decidiu pela zelandonia. Foi bom para mim também. O que fiz foi errado, mas nunca teria empreendido a viagem com Thonolan se ela não se tivesse tornado Zelandoni. E não teria encontrado Ayla. Talvez eu seja favorito dela, um pouco só, talvez, mas não vou tirar vantagem da generosidade de Doni para comigo. Já pedi a Ela que nos leve em segurança para casa. Não posso pedir-lhe que dê a Ayla um filho do meu espírito. Agora então é que não posso mesmo. Mas fico pensando se Ayla jamais terá um.

 

Ayla e Jondalar deram as costas ao rio que vinham acompanhando, virando para oeste na sua direção geral sul, e se puseram a cortar campo aberto. Chegaram, assim, a um vale de outro grande curso d'água que corria para leste, a fim de encontrar, mais abaixo, o rio que tinham deixado para trás. Era um vale largo e relvoso, que subia suavemente para o rio, de forte correnteza, que dividia ao meio a planície aluvial juncada de pedras de vários tamanhos, desde matacões até cascalho miúdo. A não ser por alguns tufos e uma ocasional moita florida, o curso do rio, de fundo rochoso, tinha pouca vegetação. O dilúvio da primavera levara tudo.

Poucos troncos, árvores inteiras despidas de folhas ou de casca, atravancavam o terreno, com um entrançado de amieiras e arbustos de folhas cabeludas, cor de cinza, pelos cantos. Um pequeno rebanho de gamos gigantes, cuja galhada palmada e extravagante faria os grandes chifres o alce parecerem pequenos, pastava ao longo da beira de salgueiros amontoados no solo baixo e úmido que confinava com a água.

Lobo estava cheio de vida e vinha saltando por baixo e em torno dos cavalos, principalmente de Racer. Huiin parecia capaz de ignorar a exuberância dele, mas excitável. Ayla achava que o cavalo corresponderia, se pudesse, às brincadeiras de Lobo, mas com Jondalar aguiar-lhe os movimentos aquilo só servia para perturbá-lo. Jondalar se aborrecia, pois ficava obrigado a vigiar o cavalo com mais atenção. Sua irritação crescia, e esteve a ponto de pedir a Ayla para manter Lobo longe de Racer.

Mas logo, para alivio seu, Lobo saiu correndo. Ao farejar os gamos, fora investigar. A primeira visão das longas pernas de um gamo gigante foi irresistível. Lobo concluiu que aquele era um novo animal grande e de quatro pernas para brincar com ele. Mas quando o veado de que ele se aproximou baixou a cabeça para rechaçar o animal que investia em sua direção, o lobo parou. Os magníficos chifres do possante quadrúpede tinham cerca de três metros de comprimento cada um! O animal mordiscava a grama de folha larga aos seus pés, sem perder de vista o carnívoro, mas indiferente a ele, como se soubesse que pouco tinha a temer de um lobo solitário.

Ayla, vendo a cena, sorriu.

—    Olhe só, Jondalar. Lobo pensou que o megácero era outro cavalo para ele importunar.

Jondalar sorriu também.

—    Ele parece surpreso. Aqueles chifres são mais do que ele esperava.

Cavalgaram lentamente para a água como se, tacitamente, nenhum deles quisesse espantar os grandes veados. Ambos sentiam um certo respeito pelas enormes criaturas, eram mais altas que eles, mesmo a cavalo Com uma graça majestosa, o rebanho recuou, sem pressa, quando os dois e os cavalos se acercaram. Não deram mostras de susto. Pareciam apenas cautelosos, e se afastaram, mordiscando folhas de salgueiro.

—    São mais do que eu esperava também — disse Ayla. — Nunca tinha visto esses animais tão de perto.

Embora apenas um pouco maiores que o alce, os cervos gigante com seus chifres magníficos e elaborados, que se esgalham para cima e para os lados no alto da cabeça, parecem gigantescos. Todo ano esses chifres fantásticos são trocados. O novo par que nasce para substituir o antigo é maior e mais complexo que o outro, chegando a medir três metros ou mais em alguns machos velhos numa única estação. Mesmo quando sem chifre, no entanto, esses grandes exemplares da família dos cervídeos são maiores que os demais. O pêlo forte, os músculos desenvolvidos do lombo e do pescoço, capazes de suportar o peso da galhada monumental, contribuem para o seu aspecto temível. Os cervos gigantes habitam nas a planícies. Os prodigiosos chifres seriam um estorvo na floresta, e mesmo no campo eles evitam a vegetação mais alta que arbustiva. Alguns desses animais morrem de inanição quando seus chifres se engancham de maneira inextricável em galhos de árvores.

Quando alcançaram o rio, Ayla e Jondalar pararam para estudar a área e determinar o melhor sítio para atravessarem. O rio era profundo e com correnteza, e grandes pedras imersas criavam cachoeiras. Examinaram as condições rio acima e rio abaixo, mas concluíram que a natureza do curso d'água parecia consistente naquela extensão toda. Finalmente, decidiram passar por um lugar relativamente livre de pedras.

Desmontaram, os dois, amarraram as cestas que vinham na garupa, e guardaram as proteções dos pés e os agasalhos que tinham usado no frio da manhã. Jondalar tirou a camisa sem mangas que usava, e Ayla chegou a pensar em despir-se inteiramente para não ter, depois, de secar as roupas. Mas, ao experimentar a temperatura da água com o pé, desistiu. Estava acostumada à água fria, mas aquela correnteza era fria como a água na noite anterior que pela manhã ficara com uma fina camada de gelo na superfície. Mesmo molhados, a túnica macia de pele de gamo e as perneiras dariam alguma proteção.

Os dois cavalos se mostravam agitados, recuando da margem molhada com passo saltitante, relinchando e batendo com a cabeça. Ayla pôs o cabresto e rédea em Huiin para ajudá-la na travessia. Depois, vendo a crescente aflição da égua, abraçou-lhe o pescoço emaranhado e falou com ela na linguagem privada que inventara quando viviam juntas no vale.

Criara essa língua de ocasião inconscientemente, baseada nos sinais complexos, mas principalmente nas poucas palavras que eram parte da linguagem do Clã, a que acrescentara os sons arbitrários e repetitivos específicos que ela e o filho costumavam usar e a que ela dera sentido. Incluíra também sons de cavalo, que aprendera a conhecer e imitar, mais um ou outro rugido de leão e, até, alguns pios de pássaros.

Jondalar se voltou para ouvir. Embora estivesse acostumado com aquilo, não tinha ideia do que ela dizia. Ayla tinha uma inacreditável facilidade para a imitação dos sons emitidos pelos animais — aprendera a língua deles quando vivia sozinha, antes que ele a tivesse ensinado a falar outra vez —, e achava que aquela linguagem tinha um sabor estranho, parecia coisa de outro mundo.

Racer mexia com as patas e meneava a cabeça, protestando com sons inarticulados. Jondalar falou com ele em voz tranquila, alisando-o e coçando-o para acalmá-lo. Ayla observava, notando como as mãos maravilhosamente sensíveis do homem exerciam um efeito instantâneo no jovem cavalo agitado. Agradava-lhe ver a intimidade que se criara entre eles. Então seus pensamentos se voltaram por um momento para o efeito que aquelas mãos tinham sobre ela mesma e corou. A ela Jondalar não acalmava.

Os cavalos não eram os únicos animais agitados. Lobo sabia o que estava para acontecer e não via com prazer nadar na água fria. Ganindo e correndo para lá e para cá na barranca, sentou-se por fim, apontou o nariz para cima, e queixou-se num uivo lamentoso.

— Venha cá, Lobo — chamou Ayla, curvando-se para afagá-lo. — Você está com um pouco de medo, não é?

— Ele vai nos causar problemas de novo, atravessando o rio? — perguntou Jondalar, agastado ainda com o lobo por tê-lo perturbado e a Racer no caminho.

— Para mim ele não é problema. Está um pouco agitado, só isso. Como os cavalos — disse Ayla. Por que os temores perfeitamente compreensíveis de Lobo aborreciam Jondalar se ela era tão compreensiva com os do seu cavalo?

A água estava fria, mas os cavalos eram bons nadadores, e uma vez dirigidos, não teriam dificuldade para alcançar a margem oposta. Mesmo com Lobo não havia motivo de preocupação. Ele agitava-se e gania na margem, avançando para a água fria e recuando algumas vezes, para finalmente mergulhar. Com o nariz alto, entrou atrás dos cavalos, com sua carga de cestas e embrulhos.

Uma vez do outro lado, fizeram uma pausa para trocar de roupa e enxugar os animais. Depois prosseguiram. Ayla se lembrava de outras travessias que fizera sozinha, depois de deixar o Clã, e dava graças pelos fortes cavalos. Passar de uma margem a outra de um rio não era tarefa fácil. Pelo menos, atravessá-lo quando viajava a pé implicava sempre molhar-se. Com os cavalos, porém, eles podiam cruzar rios pequenos com pouco mais que um respingo ou outro, e mesmo rios caudalosos eram muito menos difíceis.

Continuaram para sudoeste, o terreno mudava. As colinas das terras altas, que se iam convertendo em morros à medida que se aproximavam das montanhas do lado do poente, eram cortadas pelos vales estreitos dos rios que tinham de atravessar. Jondalar achava que perdiam tanto tempo indo para cima e para baixo, pouco progrediam para a frente, mas os vales ofereciam bons terrenos para acampamento, ao abrigo dos ventos, e os rios forneciam água numa terra em que ela era escassa.

Detiveram-se no topo de uma elevação maior na área central do platô que corria paralelo aos rios. Dali comandavam uma ampla vista em todas as direções. A não ser pela vaga forma cinzenta de montanhas para oeste, tudo era plano e desimpedido.

A terra, árida, batida de vento, não podia ter sido mais diferente, as estepes, que se estendiam debaixo dos olhos dos dois cavaleiros numa monotonia de relva e campo ondulado, evocavam o mar, na sua regularidade sem feições. A analogia era até mais profunda. Por toda aquela uniformidade igual, a pradaria antiga, que o vento ondulava, era rica e variada e, como o mar, sustentava uma profusão de vida exótica e variada. Criaturas estranhas, exibindo exageros de ornatos sociais biologicamente suntuosos, sob a forma de exuberantes chifres, galhadas, guedelhas, rufos e corcovas, dividiam as grandes estepes com outros animais de proporções magníficas.

Os gigantes peludos, mamutes e rinocerontes, resplendentes em seus casacos duplos de pele — longos pêlos soltos por cima dos pêlos curtos e quentes —, com grossas camadas de gordura como sustentação, exibiam extravagantes trombas e exagerados chifres plantados no nariz. Cervos gigantes, enfeitados com chifres imensos, pastavam lado a lado com auroques, os esplêndidos antepassados selvagens dos rebanhos plácidos de gado doméstico, quase tão pesados quanto o bisonte, com tão grandes chifres. Mesmo os animais pequenos mostravam um tamanho que era resultado da riqueza das estepes. Havia gerbos e cricetos gigantescos, e; quilos terrestres dos maiores que se possam encontrar.

As vastas pastagens também alimentavam vários outros animais, muitos dos quais de proporções realmente notáveis. Cavalos, asnos, onagros dividiam espaço e forragem na planície; carneiros selvagens, camurças, e cabritos-monteses, no terreno mais elevado. Antílopes Saiga galopam pela pradaria. Florestas ciliares nos vales dos rios ou junto de lagos e as estepes e tundras ocasionalmente arborizadas hospedam cervos de todas as variedades, desde gamos cor de mel — que têm pintas brancas no verão — e cabritos-monteses até alces, cervos e renas — ditas alces e caribus quando migram para outras terras. Lebres e coelhos, camundongos e ratos-calungas, marmotas, esquilos terrestres e lemingues abundam. Há também sapos, rãs, serpentes e lagartos em grande número. Pássaros de todas as formas e tamanhos, de grandes garças a minúsculos caminheiros contribuem com suas vozes e cores para compor o quadro. Até insetos têm, aí, o seu papel.

Os grandes rebanhos, que pastam, mordiscam folhas ou comem sementes, são mantidos a distância e sob controle pelos que comem carne. Os carnívoros são mais adaptáveis a diferentes espécies de meio ambiente e podem viver onde quer que suas presas vivam, e alcançam na tundra e na estepe proporções surpreendentes, dada a qualidade e abundância de alimentos disponíveis. Gigantescos leões das cavernas, com o dobro do tamanho dos seus futuros descendentes do sul, caçavam os filhotes e adultos até dos herbívoros de grande porte, embora um mamute lanudo em pleno apogeu tivesse pouco a temer. A escolha habitual dos grandes felinos eram os grandes felinos eram os bisontes, auroques e veados. Já lobos e hienas imensas selecionavam suas vítimas entre animais menores. Dividiam essa população numerosa com linces, leopardos e pequenos gatos selvagens.

Monstruosos ursos das cavernas, essencialmente vegetarianos e caçadores de ambições limitadas, tinham o dobro do tamanho dos ursos menores, castanhos ou negros, que também preferiam uma dieta onívora, que muitas vezes incluía capim, embora o urso branco dos litorais gelados subsistisse de animais marinhos. Carcajus cruéis e furões bravos reivindicavam sua cota de animais pequenos, inclusive roedores, muito frequentes na estepe, e o mesmo faziam martas, fuinhas, lontras, doninhas e arminhos, de pêlo ruivo no verão e alvíssimo no inverno. Algumas raposas também ficavam brancas ou desse cinza opulento conhecido por azul, para condizerem com a paisagem hibernal e caçarem melhor. Águias fulvas e douradas, falcões, gaviões, corvos e corujas arrebatavam presas de pequeno porte, confiantes ou azaradas, enquanto que abutres e milhares pretos se alimentavam das sobras abandonadas por outros predadores no solo.

A grande diversidade de animais que habitavam as estepes antigas, com seu rico suprimento de recursos de toda ordem, só se poderia manter num um meio de qualidade assim excepcional. Mas se tratava de uma terra fria, agreste, exigente, cercada por barreiras de gelo altas como montanhas e de tristes oceanos de água congelada. Parecia contraditório que um habitat assim hostil fornecesse a abundância necessária à proliferação de tantos animais, mas, na verdade, aquele meio ambiente era o mais indicado. O clima frio e seco favorecia o crescimento de relva e inibia o aparecimento de árvores.

Árvores como o carvalho ou o espruce são essências luxuriantes, mas precisam de tempo e umidade para o seu desenvolvimento. Matas podem alimentar e sustentar plantas e animais em grande variedade, mas árvores têm de sustentar a si mesmas e não encorajam a aparição de animais grandes em maior número. Poucos animais alimentam-se de nozes ou fruto; outros, de folhas ou brotos, mas casca e madeira não são, em geral, comestíveis, e se recuperam lentamente uma vez destruídos. A mesma energia e os mesmos nutrientes de solo empregados num volume igual de pastagem podem alimentar um número muito maior de animais, e a relva sempre se renova por si mesma. Uma floresta pode ser o exemplo perfeito de vida vegetal abundante e produtiva, mas foi a forragem que deu origem à abundante vida animal, e foram os prados que a sustentaram.

Ayla não se sentia bem, mas não sabia por quê. Nada de específico, só um sentimento de inquietação difuso. Antes de começarem a descida de uma alta colina, tinham visto a concentração de grandes nuvens negras nas montanhas para o lado oeste, assim como relâmpagos, e ouvido distantes trovões. O céu acima de suas cabeças era de um azul límpido e claro, e o sol estava ainda alto, embora já tivesse passado o zénite. Era improvável que chovesse nas proximidades, mas Ayla não gostava de trovoadas. Lembravam-lhe terremotos.

Talvez seja porque minha lua vai começar num dia ou dois, pensou ela para espantar a ansiedade. Tenho de ficar com minhas tiras de couro à mão e a lã de muflão que Nezzie me deu. Ela me disse que era a melhor forração para usar em viagem, e tinha razão. O sangue sai fácil, depois, com água fria.

Ayla nunca tinha visto onagros e, absorta como estava com os próprios pensamentos, ia distraída morro abaixo. Os animais que via ao longe pareciam cavalos. Mas quando se aproximaram começou a notar as diferenças. Aqueles eram ligeiramente menores, tinham orelhas mais compridas, e as caudas não eram soltas, de muito pêlo, mas curtas e finas, feitas do mesmo pêlo do corpo, com um tufo mais escuro na ponta. Tanto cavalos quanto onagros tinham crinas eretas, mas as dos onagros eram mais irregulares. A pelagem dos animais daquele pequeno bando era castanho-claro, ligeiramente avermelhada, no dorso e nos flancos, e mais pálida, quase branca, no ventre, pernas e boca, mas tinham uma lista escura ao longo da espinha, e outra nas espáduas, e várias listas do mesmo tom escuro nas pernas.

Ayla comparou a cor deles com a dos cavalos. Embora o pardo de Huiin fosse mais claro que a usual, parecido com amarelo-ouro, muitos cavalos das estepes tinham cor neutra, castanho-acinzentado, e em geral se pareciam com a água. Já o castanho-escuro do potro era incomum para a sua raça. A crina farta de Huiin era cinza-escuro, e essa cor se estendia até o meio do lombo e a cauda, comprida e solta. As pernas eram escuras também, quase pretas, e acima do joelho via-se apenas uma vaga sugestão de listas. O potro era escuro demais para que se percebesse facilmente a faixa negra que lhe corria ao longo da espinha, mas crina, rabo e pernas acompanhavam o modelo típico.

Para alguém que entendesse de cavalos, a conformação geral do cor-dos animais que tinham diante dos olhos era um tanto diversa também Mesmo assim, pareciam cavalos. Ayla notou que até Huiin mostrava ais interesse do que de hábito, quando encontravam animais pelo caminho O rebanho deixara de pastar e parecia observá-los. Lobo também se interessara e assumira a sua postura de espera, pronto para lançar-se atrás deles, mas Ayla mandou que ficasse. Ela queria observar os onagros. Um deles emitiu um som, e ela percebeu outra diferença. Aquilo não era um relincho, mas uma espécie de bramido, estridente.

Racer levantou a cabeça e relinchou em resposta, depois, cuidadoso, esticou o pescoço para cheirar estrume fresco. Parecia com excremento de cavalo e cheirava igual, percebeu, cavalgando lado a lado com Jondalar. Huiin também cheirou os excrementos, e como o odor ainda a alcançasse, Ayla pensou detectar outro elemento nele, devido, possivelmente, à diversidade nas preferências alimentares.

—    São cavalos?

—    Não exatamente, Ayla. Os onagros estão para os cavalos como o alce para a rena ou o megácero. São onagros — explicou Jondalar.

—    Nunca encontrei bichos desse tipo.

—    Parece que gostam desse tipo de lugar — disse Jondalar, mostrando com a cabeça as colinas rochosas e a esparsa vegetação da planície árida, semidesértica e alta por onde passavam. Os onagros não vêm do cruzamento entre cavalos e burros, como pode parecer, mas são uma espécie distinta e viável, com algumas características das outras duas, e bastante robusta. Podem subsistir numa dieta ainda mais rígida que a dos cavalos, comendo inclusive casca de árvore, folhas e raízes.

Quando se acercaram do rebanho, Ayla percebeu dois onagros jovens e não pôde deixar de sorrir. Pareciam com Huiin quando pequena. Foi nesse momento que Lobo latiu para chamar-lhe a atenção.

—    Muito bem, Lobo. Pode correr atrás dos... onagros — disse. A palavra, com que não estava familiarizada, custou a sair. — Vá!

Alegrava-se com os progressos que a educação dele ia fazendo, mas Lobo ainda não gostava de ficar por muito tempo no mesmo lugar. Estava ainda muito cheio de entusiasmo e curiosidade, como todo filhote.

Lobo ladrou e saiu aos saltos na direção da manada. Assustados, os animais partiram num galope sustentado, que logo deixou o jovem aprendiz de caçador para trás. Logo Ayla e Jondalar, que vinham a trote, o alcançaram. Aproximavam-se de um amplo vale.

Embora os vales de rios que carreavam o aluvião de montanhas em lenta erosão ainda se atravessassem no caminho deles, o terreno descia gradualmente para o delta do Rio da Grande Mãe e para o Mar de Beran. Como viajavam para o sul, o verão era cada dia sensível, e ventos quentes causados pela passagem de depressões atmosférica pelo mar contribuíam para o aumento da temperatura da estação e para as pertubações meteorológicas.

Os dois viajantes já não usavam roupas, só as intimas. Nem mesmo quando se levantavam. Ayla achava o ar fresco da manhã bem estimulante o melhor período do dia. Mas as tardes eram quentes, mais do que de costume, pensava ela, sonhando com um riacho de águas frias, em que pudesse banhar-se. Olhou o homem que cavalgava alguns passos à sua frente. Estava nu da cintura para cima, usava apenas uma tanga. Também não tinha nada nas pernas. Os cabelos compridos, presos na nuca por uma correia, tinham fios mais claros, desbotados pelo sol, e eram escuros onde o suor os molhava.

Podia ver, de tempos em tempos, seu rosto sem barba, a mandíbula forte, o queixo bem definido. Ela ainda tinha um sentimento residual de que era bizarro ver um homem feito sem barba na cara. Ele lhe explicara uma vez que gostava de deixar a barba crescer no inverno, para esquentar o rosto, mas que sempre a tirava no verão, por ser mais fresco. Usava, para barbear-se toda manhã, uma lâmina especial bem fina, de sílex que ele mesmo fazia, e que substituía sempre que preciso.

Ayla também reduzira a indumentária a uma peça tão sumária quanto a tanga de Jondalar. Ambas eram basicamente pedaços de couro macio passados entre as pernas e presos por uma corda passada na cintura. Jondalar usava uma tanga com a ponta de trás virada para dentro e a da frente solta, numa aba curta. A dela, igualmente presa à cintura com uma corda, era mais comprida um pouco e as duas extremidades ficavam soltas e puxadas para os lados, de modo a caírem como uma espécie de avental, na frente e atrás. Parecia uma minissaia aberta dos lados. Montar sentada no couro mole e poroso era mais confortável. E a pele de gamo lançada sobre o cavalo suado também ajudava.

Jondalar se aproveitara da colina elevada para verificar onde estavam. Sentia-se contente com os progressos feitos, e mais confiante na Jornada. Ayla viu que ele parecia mais despreocupado também. Em parte por ter aprendido como dominar o potro. Embora já o tivesse montado antes, e mais de uma vez viajar lhe dava uma compreensão melhor do caráter de Racer, suas preferências, e hábitos. Dava também ao cavalo a oportunidade de aprender os seus. Mesmo os músculos sabiam agora ajustar-se aos movimentos do animal, e ele se acomodava melhor, o que era bom para os dois.

Mas Ayla queria crer que a maior facilidade de montar não era a única explicação para a postura dele, mais calma e natural. Havia menos tensão nos movimentos dele, e ela sentia que a sua sinceridade diminuíra Sem poder ver-lhe a expressão, imaginava que as rugas da testa teriam desaparecido, e que talvez ele estivesse disposto a sorrir. Gostava muito quando ele sorria e se mostrava brincalhão. Via a maneira pela qual seus músculos se mexiam por baixo da pele bronzeada para responder à marcha de Racer com uma leve moção para cima e para baixo, e sentia nas faces um calor que também só a temperatura não explicava. E sorria consigo mesma. Era um grande prazer observá-lo.

Para o ocidente, podiam ver ainda as montanhas erguendo-se, purpúreas, no horizonte, com cumes de um branco cintilante que furavam as nuvens pesadas e escuras. Era raro verem picos nevados, e Jondalar estava encantado com o espetáculo. O mais das vezes os topos das montanhas ficavam escondidos por nuvens de neblina que pareciam abrigos de arminho escondendo um segredo cintilante de que só permitiam vislumbrar aqui e ali alguma coisa, o que tornava o mistério ainda mais desejável.

Ele também sentia calor e desejaria que estivessem mais perto daqueles picos nevados, pelo menos tão perto quanto as habitações dos Xaramudói. Mas quando viu o brilho de água no vale embaixo e olhou o céu para conferir a posição do sol, decidiu acampar, embora fosse mais cedo que de costume. Viajavam num bom ritmo, mais rápido do que ele tinha previsto, e não sabia quanto tempo levariam para chegar a outra fonte de água.

A encosta exibia uma rica vegetação rasteira, com gramíneas como o capim estipa, festucas e ervas misturadas a variedades de capins anuais de crescimento rápido. O subsolo fértil, de loess, servia de suporte a uma fértil terra preta, rica em restos de vegetais em decomposição, o que ensejava, até, o aparecimento de árvores. Essas, a não ser um pinheiro mirrado e ocasional lutando pela água do subsolo, eram incomuns para a estepe naquela área. Uma floresta em que se misturavam bétulas e lariços, e coníferas que perdiam todas as folhas no inverno, marchava morro abaixo com os dois, com amieiros e chorões completando os claros, embaixo. No sopé da elevação, onde o solo se aplainava a alguma distância da corrente gorgolejante, Ayla ficou surpresa de ver um ou outro carvalho-anão, algumas faias, e poucas tílias nos lugares mais abertos. Não via tantas essências de folha larga desde que deixara a caverna do Clã de Brun, na ponta bem irrigada da península que se enfiava no Mar de Beran, ao sul.

O riacho abria caminho, serpenteando, no fundo do vale, mas uma das suas margens passava rente a alguns salgueiros altos e finos, que eram uma extensão da encosta mais densamente arborizada do outro lado. Ayla e Jondalar gostavam de atravessar os rios que encontravam pelo caminho antes de acampar. Assim, não ficavam molhados logo que encetavam a viagem, de manhã. Decidiram acampar junto dos salgueiros-chorões. Cavalgaram por algum tempo ao longo do rio e a favor da corrente, à procura de um lugar favorável à travessia. Encontraram um sítio largo, pedregoso, vadeável, e voltaram.

Enquanto armavam a barraca, Jondalar se viu absorto na contemplação de Ayla, do seu corpo quente e moreno. Pensava na sorte que tinha. Não só ela era bonita — sua graça elástica, sua força, a segurança dos seus movimentos, tudo lhe agradava —, como era também uma boa companheira de viagem, contribuindo em pé de igualdade com ele para o bem-estar comum. Embora se sentisse responsável pela segurança da mulher e quisesse protegê-la, era reconfortante saber que podia também contar com Ayla. De certo modo, viajar com ela era como viajar com o irmão, Thonolan. Sentia-se responsável por ele, antes. Era da sua natureza preocupar-se com aqueles a quem queria bem.

Mas só até certo ponto. Quando Ayla levantou os braços para sacudir as cobertas, ele viu que a pele dela era mais clara na parte de baixo dos seios arredondados e quis comparar sua cor com a dos braços. Não se deu conta que tinha o olhar fixo, mas sentiu isso quando ela o encarou. E quando seus olhares cruzaram, Ayla sorriu para ele.

De súbito sentiu que tinha de fazer mais que comparar tons de pele Agradava-lhe saber que se quisesse partilhar Prazeres com ela naquele momento ela estaria de acordo. Havia conforto nisso também. O sentimento era forte, mas a urgência não tão premente, e às vezes esperar um pouco acrescenta alguma coisa à realização. Podia pensar apenas, antegozando momento que havia de vir. Jondalar correspondeu ao sorriso dela.

Após se instalarem, Ayla quis explorar o vale. Não era comum que encontrassem uma área assim tão densamente arborizada no meio da estepe, e ela estava curiosa. Não via vegetação igual fazia anos.

Jondalar queria explorar também. Depois da experiência deles com o urso no acampamento anterior, do bosque, gostaria de examinar o solo e ver se havia pegadas ou outros indícios da presença de animais indesejáveis por perto. Com Ayla armada de funda e cesta para recolher plan tas, com seu próprio arco e duas lanças, Jondalar se encaminhou para os chorões. Os cavalos ficaram na clareira, pastando, mas Lobo quis acompanhá-los. As florestas eram coisa nova para ele, cheias de odores fascinantes.

Longe da água, os chorões cederam lugar a amieiros. Em seguida, bétulas combinadas com lariços se amiudaram. Surgiram ainda pinheiros de bom tamanho. Ayla apanhou avidamente algumas pinhas, quando viu que se tratava da espécie que dá pinhões grandes e deliciosos, altamente comestíveis. Mais inusitadas para ela eram, porém, as árvores de folhas largas. Em uma área ao pé do aclive que levava ao vasto descampado acima havia uma fileira de faias.

Ayla as examinou atentamente, comparando-as com a memória que tinha de árvores do mesmo tipo que cresciam junto da caverna onde morara quando criança. A casca era lisa e acinzentada; e as folhas, de lâmina oval, estreitando em ponta no ápice. Os bordos eram fortemente serreados, e a face inferior, branca e sedosa. As nozes, pequenas e marrons, fechadas na sua casca seca, não estavam ainda maduras, mas as bolotas e cascas que juncavam o chão e datavam da última estação mostravam que a messe fora abundante. Ela se lembrava de que era difícil abrir os invólucros. As folhas não eram tão largas quanto as de que se lembrava, mas tinham, mesmo assim, tamanho respeitável. Notou, então, as estranhas plantas que cresciam debaixo das árvores e se ajoelho-se para vê-las de perto.

— Você vai apanhar essas aí? — perguntou Jondalar. — Parecem mortas. Nem têm mais folhas.

— Não estão mortas. É assim que elas crescem. Veja como estão frescas — disse Ayla, quebrando a ponta superior de um dos talos, lisos e despidos, com pequeninos galhos em toda a sua extensão. A planta era avermelhada e sem brilho, inclusive nos botões. Nada havia nela de verde.

— Elas nascem da raiz de outras plantas — disse Ayla —, como as que Iza costumava pôr nos meus olhos quando eu chorava, só que as outras eram brancas e um tanto lustrosas. Havia gente que tinha medo delas, pois tinham a cor da pele de defunto. Eram até chamadas... — refletiu por um momento... — de alguma coisa como planta de defunto ou plan­ta de cadáver.

Alguma coisa assim — disse ela.

Ficou fitando o espaço enquanto se lembrava.

—    Iza pensava que meus olhos eram fracos porque lacrimejavam, e isso a aborrecia. — Ayla sorriu com a memória do fato. — Ela apanhava uma dessas plantas brancas e espremia o suco do talo diretamente nos meus olhos. Se, por exemplo, eles ardiam por ter chorado muito, o remédio sempre os aliviava. — Ayla se calou por alguns minutos, depois acrescentou, abanando a cabeça de leve: — Não estou segura de que estas plantas sejam mesmo boas para os olhos. Iza as usava para pequenos cortes e machucados. Para alguns tumores, também.

— Como se chamam?

— Acho que se chamam... Qual é o nome desta árvore, Jondalar?

— Não sei com certeza. Não acredito que cresçam perto de onde nasci. Mas o nome dela em Xaramudói é "faia".

— Então, poderiam ser chamadas "gotas de faia" — disse ela, pondo-se de pé e esfregando as mãos uma na outra para livrá-las do pó.

Repentinamente, Lobo estacou, de focinho apontado para a mata espessa. Jondalar lembrou-se de que ele assumira essa mesma postura no episódio do urso, e estendeu a mão para pegar uma lança. Encaixou-a no sulco do seu arremessador, uma peça de madeira mais curta do que ela, que era mantida na horizontal com a mão direita. Ajustou o oco da extremidade mais grossa da lança no entalhe que havia na parte posterior do lançador. Depois, pôs os dedos nas duas alças da frente da arma, um pouco aquém do meio da lança, para mantê-la no lugar enquanto deitada na superfície do lançador. Tudo isso foi feito bem rápido e sem esforço, e ele ficou com os joelhos ligeiramente flexionados, pronto para o arremesso. Ayla também tinha suas pedras à mão e estava preparada para usar a funda. Lamentava agora não ter trazido também seu próprio atirador de lanças.

Abrindo caminho através da rala vegetação rasteira, Lobo correu para uma árvore. Houve uma comoção no pé da faia e um pequeno animal correu tronco acima. Apoiado nas patas traseiras, como se pretendesse subir atrás dele, Lobo latia com vigor.

Agora a comoção era na copa da árvore. Olhando para cima, viram a pelagem negra e brilhante e as longas formas sinuosas de uma marta das faias, que caçava o esquilo. O pobre, que julgava ter escapado subindo na árvore, protestava aos gritos. Lobo não era, então, o único a julgá-lo digno de interesse. O grande animal, parecido com a doninha, com meio metro de comprimento e uma cauda peluda que lhe acrescentava cerca de trinta centímetros às suas dimensões, tinha, porém, maiores chances de sucesso. Passando de galho em galho, na rama da árvore, era tão ágil e leve como a presa que caçava.

—    Acho que o esquilo não tem como se livrar dessa situação — disse Jondalar, vendo o desenrolar do drama.

— Talvez ainda escape — disse Ayla.

— Duvido muito. Não apostaria nada nele.

O esquilo fazia um barulho infernal. Os gritos roucos e excitados de um gaio aumentavam a confusão. E logo uma sombria estridente dos salgueiros lhe fez coro. Lobo não se continha, precisava entrar na refrega. Lançando a cabeça para trás, soltou um longo uivo. O pequeno esquilo içou-se até a extremidade de um galho. Então, para surpresa dos que o observavam, saltou no ar. Abrindo bem as pernas, esticou a larga aba de pele dos flancos do corpo, juntou as patinhas dianteiras e traseiras e desceu pairando no ar.

Ayla prendeu a respiração ao vê-lo desviar-se de galhos e árvores. A cauda felpuda funcionava como leme, e, mudando sua posição e a das pernas, o que alterava a tensão sobre a membrana com a qual planava, o esquilo conseguia manobrar de modo a não bater em nada e descia numa larga curva macia. Tinha por alvo uma árvore a alguma distância e ao chegar perto dela, deu uma cambalhota, aterrissou no tronco e grinpou por ele a grande velocidade. Quando alcançou uns galhos altos, deu meia-volta, e desceu, de cabeça para a frente, ancorando-se na casca com as unhas das patas traseiras. Parou, olhou em volta, depois enfiou-se num oco da árvore. O salto espetacular e a queda livre livraram-no da captura, embora nem sempre aquele processo surpreendente tivesse êxito.

Lobo permanecia apoiado com as patas dianteiras contra a árvore e procurava o esquilo que lhe escapara com tamanha habilidade. Deixou-se cair no chão, pôs-se a farejar a vegetação rasteira, e logo saiu em perseguição de outra coisa.

— Jondalar! Eu não sabia que os esquilos voavam — disse Ayla com um sorriso maravilhado.

— Eu poderia ter ganhado uma aposta com você, pois já ouvira falar disso. Mas nunca tinha visto o prodígio. Não acreditava que fosse possível. As pessoas sempre falam de esquilos voando à noite, mas para mim pensei que estivessem tomando morcegos por esquilos. Mas esse bicho ai não era, certamente, um morcego. — E com um sorriso enviesado. — Agora vou ser um dos contadores de histórias em que ninguém acredita.

— Ainda bem que foi só um esquilo — disse Ayla, com um calafrio percorrendo-lhe o corpo. Olhando para cima, viu que uma nuvem escondia o sol. Sentiu um arrepio nas costas a despeito de não estar fazendo realmente frio.

— Lobo saiu correndo atrás do quê?

Sentindo-se um tolo por reagir tão vivamente a uma ameaça apenas imaginária, Jondalar relaxou um pouco a pressão no arremessador de lanças que empunhava, mas não o soltou de todo.

— Podia ser um urso — disse ele. — Principalmente com toda essa mata aí.

— E comum haver arvores nas cercanias de nos, mas não via arvores assim tão grandes desde que deixei o Clã. Não lhe parece estranha tamanha concentração?

— Sim, não me parece comum. Este lugar me lembra a terra dos Xaramuidói, mas isso fica mais para o sul e para além daquelas montanhas que vemos no rumo oeste, e junto do Donau, o Rio da Grande Mãe.

De súbito Ayla estacou onde estava. Dando uma cotovelada em Jondalar, apontou em silêncio. Ele não viu logo o que chamara a atenção dela, mas percebeu, depois, o ligeiro movimento de uma pelagem vermelha como a da raposa, e viu as pontas em tridente dos chifres de um veado. A agitação que Lobo fizera, e seu cheiro, tinham-no paralisado. Ficou escondido no mato, e imóvel, a ver se havia motivo para temer um ataque do predador. Quando ele se fora, trotando, o veado avançara, com cautela. Jondalar tinha ainda a arma na mão. Ergueu-a bem devagar, mirou, e acertou a lança na garganta do animal. O perigo que ele temera surgiu de uma direção inesperada. A lança atingiu-o em cheio. Ele deu ainda alguns passos incertos, tentando fugir, mas tombou por terra.

A fuga do esquilo e a visão da desastrada marta foram logo esquecidas. Jondalar atravessou o pequeno espaço que o separava do veado, com Ayla o acompanhando. Ela virou o rosto quando ele cortou a garganta do animal para acabar com ele. Depois se pôs de pé.

— Que teu espírito, Veado-Mateiro, retorne à Grande Mãe Terra e Lhe dê graças por nos ter dado um da tua espécie a comer — disse, com simplicidade.

Ayla, a seu lado, aquiesceu de cabeça. Depois, foi ajudá-lo a esfolar e decepar a caça do jantar.

 

— E uma pena deixar a pele. Dá um couro tão macio — disse Ayla, depois de guardar o último pedaço de carne na sua bolsa de pele de búfalo. — E você viu que beleza a pele daquela marta?

— Mas não temos tempo para curtir couro nem podemos levar muito mais conosco do que já temos — disse Jondalar. Ele estava ocupado em armar a trípode na qual a bolsa com a carne ficaria suspensa.

— Eu sei. Mesmo assim, é uma pena.

A carne foi içada e ficou em segurança. Depois Ayla se dirigiu à fogueira, pensando na comida que estava preparando, embora não se visse nada. A peça do veado, temperada com ervas, assava num forno enterrado, com cogumelos, folhas novas de samambaia em forma de báculo, e raízes de tábuas que tinha colhido, tudo envolto em folhas de unha-de-cavalo. Ela pôs mais pedras aquecidas em cima da camada de terra com que cobrira o buraco. Levaria tempo para assar, e ela se alegrava de que, tivessem conseguido carne fresca tão cedo. Assim, podia prepará-la daquela forma, método de sua preferência, pois a comida ficava saborosa; e tenra.

—    Faz calor, e o ar está pesado e úmido. Acho que vou até o rio para me refrescar um pouco. Aproveitarei para lavar o cabelo. Vi umas raízes na mata que funcionam como sabão. Você vem nadar?

—    Sim, mas só se você me arranjar bastante dessas raízes de sabão —        disse Jondalar, com os olhos azuis apertados por um sorriso. Mostrava-lhe uns fios de cabelo louro sujo que lhe tinham caído na testa.

Caminharam lado a lado pela margem larga e arenosa do rio, seguidos de Lobo, que entrava e saía do mato, a explorar novos odores. Depois passou-lhes a frente e desapareceu numa curva.

Jondalar notou as marcas que os cascos dos cavalos e as patas de Lobo tinham deixado quando da primeira visita.

—    Fico pensando que conclusões tiraria uma pessoa dessas pegada —        disse, rindo.

—    O que pensaria você?

— Se as marcas de Lobo estivessem nítidas, eu diria que um lobo estava seguindo dois cavalos, mas em alguns lugares é óbvio que as pegadas dos cavalos se sobrepõem às do lobo, de modo que ele não podia vir-lhes no encalço. Ia emparelhado com eles. Isso confundiria um rastreador, Ayla.

— Mesmo se as pegadas de Lobo estivessem bem nítidas — disse Ayla —, eu me perguntaria por que um lobo estaria seguindo dois cavalos. As marcas indicam que são dois cavalos novos e fortes, mas veja como as impressões são fundas, veja a posição dos cascos. Vê-se que eles carregavam peso.

— Isso também confundiria um rastreador.

— Oh, lá estão elas — disse Ayla, apontando para as plantas, altas e um tanto desgrenhadas, que vinha procurando. Tinham flores rosa pálido e folhas mucronadas. Com a vara de cavar, logo soltou algumas raízes que tirou da terra.

A caminho da barraca, procurou uma pedra achatada e outra redonda para esmagar a raiz saponácea e libertar a saponina, que, na água, produziria uma espuma leve e abundante. Numa de suas curvas, o rio havia formado, não muito longe do acampamento, uma piscina natural com água fresca e agradável. Depois de se lavarem, exploraram um pouco o rio, de leito rochoso, nadando ou caminhando dentro d'água, rio acima, até serem obrigados a voltar. Uma pequena cachoeira espumejante e diversas corredeiras impediam o progresso rio acima. E nesse ponto paredes do vale se estreitavam e ficavam mais íngremes.

Avia se lembrou do riacho do seu próprio vale, com uma queda- d’água semelhante àquela. Já as elevações do resto da área traziam-lhe á memória os contrafortes da montanha junto da caverna em que fora criada. Por lá também havia uma cascatinha menor, tranquila e musgosa, que a conduzira a uma gruta pequena. Ela passara a considerá-la propriedade sua e, mais de uma vez, lhe oferecera refúgio.

Deixaram que a correnteza os levasse, jogando água um no outro, e rindo todo o tempo. Ayla adorava o som do riso de Jondalar. Ele sorria muito, mas procurava manter sempre uma postura séria e composta. Mas quando o fazia, sua risada era tão vigorosa, calorosa e exuberante que causava surpresa.

Quando saíram da água e se secaram ainda fazia calor. A nuvem escura que Ayla vira antes desaparecera do céu acima das cabeças deles, mas o sol baixava em direção a uma escura massa acumulada para oeste e cujo movimento laborioso e pesado era posto em relevo por outra camada esfiapada e leve, que corria celeremente debaixo dela na direção oposta. Assim que a bola de fogo se escondesse por trás das nuvens escuras em camadas por cima da cadeia de montanhas do horizonte, esfriaria depressa. Ayla procurou pelos cavalos e os viu numa campina aberta no alto do aclive, a alguma distância do acampamento, mas ao alcance de um assovio. Lobo não estava em lugar nenhum. Explorando ainda rio abaixo, pensou ela.

Ayla tirou o pente de marfim de dentes compridos e uma escova feita das cerdas duras do mamute, que Deegie lhe dera, depois retirou a pele de dormir da tenda e estendeu-a do lado de fora, para sentar-se nela enquanto se penteava. Jondalar sentou-se ao lado dela e começou a pentear os próprios cabelos embaraçados com um pente de três dentes, o que não era fácil.

— Deixe que eu faça isso, Jondalar — disse ela, ajoelhando-se por trás dele. Soltou os fios longos da sua cabeleira loura e lisa, um pouco mais clara que a sua, admirando-lhe a cor. Quando mais jovem, seu cabelo fora quase branco, mas ficara aos poucos mais escuro e parecido com o pêlo de Huiin, com seus brilhos de cinza e de ouro.

Jondalar fechou os olhos enquanto Ayla o penteava, mas ciente da quente presença dela junto do seu corpo. A pele nua de Ayla roçava contra a sua de vez em quando, e assim que ela deu o serviço por terminado, ele sentia um calor que não provinha apenas do sol.

— Agora é a minha vez de penteá-la — disse, pondo-se de pé para Postar-se atrás dela. Ayla pensou em recusar-se. Não era preciso. Ele não tinha de fazê-lo só porque ela o penteara. Mas quando Jondalar lhe ergueu do pescoço a pesada trança e a deixou correr entre seus dedos, Ayla aquiesceu.

Os cabelos dela tinham uma tendência a enrolar-se em caracóis e empacavam com facilidade, mas ele tinha cuidado, soltando cada nó sem puxar muito. Depois escovou-lhe os cabelos até ficarem macios e quase secos. Ela também fechou os olhos, sentindo um deleite estranho que lhe dava arrepios. Iza costumava penteá-la quando ela era pequena, desembaraçando o emaranhado com um bastãozinho comprido, liso, e pontudo, mas nenhum homem jamais o fizera. O fato de que Jondalar a penteasse fez com que se sentisse mimada e querida.

E ele descobriu que gostava de fazer aquilo, de pentear e escovar os cabelos de Ayla. Aquele tom de ouro velho era como trigo maduro, mas com realces quase brancos, que o sol desbotara. Era uma bela cabeleira, tão farta e macia que tocá-la lhe dava um prazer sensual. Queria mais. E quando, por fim, acabou, e pôs o pente no chão, tomou nas mãos as tranças, ainda ligeiramente úmidas, e afastando-as para os lados, começou a beijar os ombros de Ayla e a nuca.

Ela continuou de olhos fechados, sentindo o formigamento provocado pelo hálito quente de Jondalar e pelos seus lábios quando lhe tocaram o pescoço. Ele lhe mordeu a nuca de leve, acariciou-lhe os braços, depois deu a volta para segurar os dois seios, sopesando-os um pouco para sentir seu peso gostoso e substancial e os firmes bicos duros na palma da mão.

Quando se debruçou para beijar-lhe também a garganta, Ayla levantou a cabeça e se voltou um pouco. Sentiu então o membro de Jondalar rijo e quente contra as suas costas. Virou-se, então, de todo, e segurou-o nas mãos, gozando a maciez da pele que o cobria. Pondo então uma das mãos adiante da outra, ficou a movê-las firmemente para cima e para baixo. Jondalar se viu tomado por um mundo de sensações, que se intensificaram além de qualquer medida quando sentiu a quentura molhada da boca de Ayla, que o engolia.

Com um suspiro explosivo, ele cerrou os olhos, deixando que as sensações corressem pelo seu corpo. Depois os entreabriu para observar, e não pôde resistir à tentação de alisar os belos cabelos que lhe cobriam o regaço. Quando ela introduziu todo o pênis na boca, Jondalar achou que não conseguiria conter-se mais e teria de render-se num momento. Mas queria esperar, queria o requintado prazer que lhe dava dar Prazer a ela. Adorava fazê-lo, adorava saber que era capaz disso. Estava quase disposto a desistir do seu próprio Prazer para dar Prazer a ela. Quase.

Sem saber muito bem como aquilo acontecera, Ayla se viu deitada de costas sobre a pele em que dormiam, com Jondalar estirado ao seu lado. Ele a beijou. Ela abriu a boca um pouco, o bastante para permitir a penetração da língua dele, e lançou os braços em torno do pescoço dele. Gostava da sensação dos seus lábios colados firmes nos dela, com a língua a lhe explorar delicadamente a boca.

Então, Jondalar se afastou um pouco e a encarou.

—    Sabe o quanto a amo?

Ayla sabia que aquilo era verdade. Estava estampado nos olhos incrivelmente azuis do olhar acariciante dele, que, mesmo de longe, lhe davam arrepios. Eles exprimiam a emoção que com tanto afinco Jondalar procurava manter sob controle.

—    Sei o quanto eu o amo — respondeu.

— Ainda não acredito que você esteja aqui comigo e não na Reunião de Verão, como companheira de Ranec.

A esse pensamento... quase a perdera para o cativante escultor de le morena, que tão bem trabalhava o marfim... apertou-a contra o peito com arrebatamento.

Ayla também o apertou com força, contente que seu longo inverno de mal-entendidos chegara ao fim. Amara Ranec, sim — ele era um homem bom e teria sido um bom companheiro —, mas não era nenhum Jondalar. Seu amor por esse homem alto que a tinha nos braços agora era algo que seria incapaz de explicar.

Com o temor de perdê-la aliviado, e sentindo o corpo quente de Ayla a seu lado, foi invadido por um desejo tão forte quanto o sentimento anterior. E logo a devorava de beijos, no pescoço, nos braços, nos seios, como se nunca pudesse saciar-se dela.

Depois parou e respirou fundo. Queria que aquilo durasse, e queria usar toda a sua competência para dar-lhe o melhor possível — e era capaz disso. Aprendera com alguém que sabia, e com mais amor do que a mulher devera ter sentido. Jondalar desejara agradar, e mais do que aprender. Aprendera tão bem que no seio do seu povo corria uma pilhéria a seu respeito: dizia-se que era perito em dois ofícios: era também um excelente fabricante de ferramentas de sílex.

Jondalar contemplou Ayla, embevecido com o ritmo da sua respiração, adorando a visão dela, feliz com o simples fato da existência dela. Sua sombra a cobria, protegendo-a do calor do sol. Ayla abriu os olhos e viu o céu. O sol por trás dele brilhava através dos cabelos louros que lhe punham uma auréola em torno da cabeça. Ayla o desejava, estava pronta para ele, mas quando Jondalar sorriu e se curvou para beijar-lhe o umbigo, ela fechou os olhos outra vez e se entregou, sabendo o que ele desejava e os Prazeres que era capaz de fazê-la sentir.

Ele acariciou-lhe os seios, depois correu as mãos pelo seu corpo, até a cintura e a opulenta curva das cadeiras, descendo em seguida para a coxa. Ayla se arrepiou a esse toque. Ele foi com a mão à parte interna da coxa, apalpando a maciez especial ali plantada, e alisando os anéis de pelo dourado da sua testa. Acariciou-lhe, depois, o ventre e beijou-lhe o umbigo outra vez, antes de voltar aos seios e chupar-lhe os dois mamilos. As mãos dele pareciam um fogo brando, quente e maravilhoso, que a deixava arder de excitação. Ele a afagou toda de novo, e a sua pele se lembrava de todos os lugares que ele tocara.

Ele a beijou na boca e, então, bem devagar, beijou-a nas pálpebras e as maçãs do rosto, no queixo e na curva da mandíbula, depois beijou-lhe a orelha. Acariciou-lhe os seios de novo e depois segurou-os bem junto um do outro, deleitando-se com o suave volume deles, com o delicado sal da pele dela, com a sensação que essa pele lhe dava. E seu próprio desejo crescia. Lambeu um mamilo, depois o outro. Ayla sentia a pulsação crescer quando ele os sugava. Ele explorava cada bico de seio com a língua, empurrando-o para dentro, puxando-o, mordiscando de leve, depois pegava o outro com a mão e fazia a mesma coisa.

Ayla se apertava contra ele, entregando-se às sensações que lhe percorriam o corpo e concentravam-se naquela sede do prazer profunda que sentia. Com a língua quente, Jondalar encontrou mais uma vez o umbigo, e como se um vento leve soprasse na sua pele ele roçou a barriga em volta e desceu para a macia lã encaracolada do púbis, depois, por um rápido momento, tocou-lhe a fenda ardente e o ponto máximo do seu Prazer. Ayla ergueu os quadris e gritou.

Ele se aninhou entre as suas pernas e abriu-a com as mãos para ver sua quente rosa, com suas pétalas e refolhas. Mergulhou nela com a boca para prová-la — conhecia aquele sabor e gostava dele —, depois não esperou mais e cedeu ao desejo de explorá-la fundo. Com a língua encontrou as dobras que lhe eram familiares, enfiou-a na fonte, e alçaria por fim, o botão pequeno e firme.

Enquanto o mordia, lambia, e chupava, ela gritava várias vezes, respirando cada vez mais depressa, com a sensação num crescendo. Todo sentimento se voltara para dentro. E não havia sol, nem vento, só a intensidade cada vez mais aguda dos sentidos. Ele sabia que o clímax se aproximava, e embora só a custo se contivesse, afrouxou a pressão e recuou, esperando retirar-se em tempo. Mas Ayla o puxou, incapaz de suportar mais tempo aquela espera. Jondalar podia ouvir os gemidos de gozo que ela dava na antecipação da plenitude.

De súbito, chegou, as ondas poderosas invadiram-na e sacudiram e com um grito convulsivo a engolfaram. Ela rebentou num espasmo de supremo alívio e com ele veio o indescritível desejo de ter o membro; Jondalar dentro dela. Então estendeu as mãos para puxá-lo.

Ele sentiu o esguicho e a umidade, sentiu a urgência em que ela estava e, dirigindo o membro com a mão enterrou-a no poço profundo e acolhedor. Ela o sentiu enfiar-se no seu ventre e soergueu-se um pouco para recebê-lo melhor. As dobras quentes dela o envolveram, e Jondalar a penetrou até o fundo, sem temor de que as dimensões do seu membro fossem mais do que Ayla poderia receber.

Retraiu-se, sentindo o requintado prazer do movimento, e, com completo abandono, penetrou-a de novo, profundamente, ao mesmo tempo em que ela erguia a coxa contra o corpo dele. Por pouco não gozou. Mas a intensidade da sensação decresceu, ele pôde retirar-se uma vez mais, e enfiar-se outra vez, e outras mais. E a cada investida a sensação aumentava. Pulsando ao ritmo dos movimentos dele, Ayla o sentia inteiro, saindo, entrando. E estava cega para qualquer outra sensação.

Ouvia a respiração dele, e a sua, e os seus gritos misturados. Então, ele proferiu o nome dela, ela ergueu o corpo para encontrar o dele, numa grande ruptura extravasante sentiram um orgasmo comparável ao sol faiscante ao despejar seus últimos raios sobre o vale, e tombar exausto atrás das nuvens escuras, debruadas de ouro brunido.

Depois de mais algumas derradeiras investidas, ele se aquietou, sentindo as formas harmoniosas de Ayla debaixo do corpo. Ela gostava muito desse momento com ele, de sentir o peso dele. Que não achava nunca demasiado. Era apenas uma pressão agradável e uma proximidade que lhe aquecia o sangue enquanto descansavam.

De súbito, uma língua quente lambeu seu rosto e um nariz frio se pôs a explorar a intimidade deles.

— Vá embora, Lobo! — disse, expulsando o animal. — Saia já daqui!

— Saia, Lobo! — disse Jondalar com aspereza, juntando seu comando ao de Ayla, e empurrando o focinho gelado. Mas o encanto fora rompido Saindo de cima dela e rolando para um lado, ele se sentia um tanto contrariado. Mas se sentia tão bem que não podia zangar-se.

Erguendo-se em um dos cotovelos, Jondalar ficou olhando o animal, que recuara alguns passos e estava sentado a observá-los, arfando, de língua de fora. Podia jurar que Lobo sorria, e sorriu, por sua vez, para a mulher amada.

— Você tem deixado que ele fique. Acha que será capaz de ensiná-lo a ir embora quando você quiser?

— Vou tentar.

— Dá muito trabalho ter Lobo em volta da gente — disse Jondalar.

—    Sim, custa algum esforço, principalmente por ser ele tão jovem. Os cavalos também dão trabalho, mas vale a pena. Eu gosto da companhia deles. São amigos muito especiais.

Pelo menos, pensou o homem, os cavalos dão algo em troca. Huiin e Racer os levavam às costas, e também a bagagem. Por causa deles, a Jornada não levaria tanto tempo. Mas, a não ser levantando alguma caça ou fazendo voar alguma ave, Lobo não contribuía com grande coisa. Jondalar decidiu, porém, guardar esses pensamentos para si.

Com o sol escondido agora por trás das nuvens negras e agitadas, que desmaiavam a olhos vistos, tornando-se lívidas, com um ligeiro toque de púrpura, como se o movimento as tivesse contundido, esfriou rapidamente no vale umbroso. Ayla se ergueu e mergulhou no rio outra vez. Jondalar a acompanhou. Muito tempo atrás, quando menina, Iza, a curandeira do Clã, lhe ensinara os rituais de purificação da feminilidade, embora duvidasse que sua afilhada, estranha e... ela mesma o admitia... feia, viesse um dia a ter necessidade deles. No entanto, por obrigação, devia explicar-lhe, entre outras coisas, como fazer depois de ter estado com um homem. Salientou que, sempre que possível, a purificação pela água era muito importante para o totem da mulher. Lavar-se, por mais fria que fosse a água, era um ritual de que Ayla jamais se esquecia.

Os dois se enxugaram e se vestiram, puseram as peles de dormir de volta no interior da barraca, e reanimaram o fogo. Ayla removeu a terra e as pedras de cima do forno enterrado e, com pinças de madeira, tirou de lá a comida. Depois, e enquanto Jondalar arrumava de novo sua bagagem, ela fez preparativos para facilitar a partida, neles incluindo os que diziam respeito a sua refeição matinal de alguma coisa da véspera, comida fria, e o chá quente de ervas. Ela fazia chá com frequência, procurando variar os ingredientes, tendo em vista o gosto e a necessidade.

Os cavalos retornaram quando os últimos raios de sol coloriram o céu. Eles comiam durante parte da noite, uma vez que viajavam tanto de dia e precisavam de grandes quantidades do áspero capim da estepe para aguentar-se. Mas a relva do prado fora especialmente substanciosa e verde, e eles gostavam de ficar junto do fogo à noite.

Enquanto esperava que as pedras esquentassem, Ayla contemplava o vale à luz derradeira do crepúsculo, acrescentando às suas observações os conhecimentos adquiridos durante o dia: as encostas escarpadas que desciam abruptas para o vale aberto, com seu riacho serpenteando pelo meio. Era um vale fértil, que lhe lembrava sua infância com o Clã, mas não gostava do lugar. Alguma coisa a deixava inquieta, e essa impressão, se acentuou com a chegada da noite. Sentia-se um pouco indigesta, e tinha dores nas costas. Atribuía sua inquietação aos ligeiros desconfortos que sentia quando o seu período lunar se aproximava. Gostaria de andar um pouco, o que em geral ajudava, mas já estava muito escuro.

Ficou escutando o vento que suspirava e gemia e fazia oscilar os salgueiros esguios, recortados em silhueta contra as nuvens de prata. A lua cheia tinha um halo perfeitamente nítido e ora se escondia, ora iluminava brilhantemente o céu, de textura macia. Ayla resolveu que um pouco de chá de casca de salgueiro a aliviaria e logo se levantou para arranjar alguma. Enquanto se ocupava com isso, decidiu também que apanharia algumas varas flexíveis de salgueiro, que são como o junco.

Quando o chá ficou pronto e Jondalar se reuniu a ela, a noite esfriara. Estava úmido também, a ponto de precisarem de agasalhos. Sentaram-se junto da fogueira, contentes de terem chá quente. Lobo rondara Ayla a tarde inteira, acompanhando cada passo dela, mas pareceu contente por enrodilhar-se aos seus pés quando ela se acomodou finalmente perto do fogo, como se tivesse dado por encerradas as explorações do dia. Ayla apanhou as longas varas de salgueiro e começou a tecê-las.

—    O que está fazendo? — perguntou Jondalar.

— Uma cobertura para a cabeça. Proteção contra o sol. Tem feito muito calor ao meio-dia — explicou Ayla. E, depois de uma curta pausa. — Achei que você gostaria disso.

— Você está fazendo o chapéu para mim? Como descobriu que eu desejei o dia inteiro ter algo que me protegesse do sol?

— Uma mulher do Clã aprende a antecipar os desejos do seu homem. — Ayla sorriu. — Você é o meu homem, não?

— Sem nenhuma dúvida, minha mulher do Clã. E vamos anunciar isso a todos os Zelandonii na seção Matrimonial da primeira Reunião de Verão de que participarmos. Mas como é que você sabe antecipar desejos? E por que as mulheres do Clã têm de aprender a fazer isso?

— Não é difícil. Basta apenas pensar em alguém. Fez calor hoje, e tive a ideia de fazer uma cobertura para a cabeça... um chapéu de sol... para mim. Então pensei que devia estar quente para você também?—disse, apanhando outro junco para acrescentar ao chapéu cónico que começava a tomar forma.

— Os homens do Clã não gostam de pedir nada, principalmente se é alguma coisa para o conforto deles. Não é considerado másculo pensar em conforto, de modo que cabe à mulher adivinhar a necessidade do homem. Ele a protege dos perigos. Pois essa é a maneira que ela tem de protegê-lo, em retribuição. A mulher deve cuidar para que ele tenha roupa apropriada e que se alimente bem. Ela não deseja que qualquer mal lhe aconteça. Quem a protegeria e aos filhos?

— É isso que você está fazendo? Protegendo-me para que a proteja? __ perguntou ele, rindo. — E aos seus filhos? — À luz do fogo, os olhos azuis dele tinham uma tonalidade escura, violeta, e brilhavam de malícia.

— Bem, não exatamente — disse ela, baixando os olhos para as mãos. — Acho que é assim que a mulher do Clã faz ver ao homem o quanto ela se importa com ele, quer tenha filhos, ou não. — Ela ficou olhando as próprias mãos, no seu movimento rápido, embora Jondalar sentisse que poderia fazer aquilo de olhos vendados. Poderia fazer aquele chapéu no escuro. Ayla pegou outra vara comprida, depois o olhou nos olhos.

—    Mas eu quero ter outro filho antes de ficar velha demais.

— Pois tem ainda muito tempo pela frente — disse ele, pondo mais um pedaço de madeira no fogo. — Você é jovem.

— Não, já estou ficando velha. Já tenho... — Fechou os olhos para concentrar-se, apertando os dedos contra a perna, e recitando baixinho os números que ele lhe havia ensinado, a fim de verificar consigo mesma a palavra correta para o número de anos que já vivera — ...dezoito!

— Tão velha assim! — Jondalar deu uma risada. — Eu tenho vinte e dois. Eu é que sou velho, então.

— Se levarmos um ano viajando, já terei dezenove anos quando chegarmos a sua casa. No Clã, isso já seria quase velha demais para dar à luz um filho.

— Muitas mulheres Zelandonii têm filhos com essa idade. Talvez não o primeiro, mas o segundo ou terceiro. Você é ainda forte e saudável. Não acho que esteja velha demais para ter filhos, Ayla. Mas vou dizer-lhe uma coisa. Há momentos em que seus olhos parecem antigos, como se você tivesse vivido muitas vidas nos seus dezoito anos.

Era uma coisa tão inusitada Jondalar dizer aquilo que ela interrompeu o trabalho para encará-lo. O sentimento que provocava nele, olhando-o assim, era quase assustador. Era tão bela à luz do fogo, e ele a amava tanto, que não sabia o que haveria de fazer se alguma coisa lhe acontecesse algum dia. Aflito, ele desviou a vista. Depois, para aliviar a tensão do momento, tentou um assunto mais leve.

—Eu é que devo pensar em idade. Aposto que serei o mais velho dos homens no Matrimonial — disse. Depois riu. — Vinte e três anos é muita idade para um homem se casar pela primeira vez. Muitos da minha idade já têm vários filhos.


Ele a encarou, e ela pôde ver de novo aquele olhar de amor assoberbante e de temor também.

—    Ayla, também quero um filho, mas não enquanto estamos viajando. Não antes que estejamos de volta e seguros. Não por enquanto.

—    Não por enquanto — repetiu Ayla.

Ela trabalhou em silêncio por algum tempo, pensando no filho que deixara com Uba, e em Rydag, que fora como seu filho sob muitos aspectos. Ambos perdidos para ela. Mesmo Neném, que era, por estranho que isso parecesse, uma espécie de filho também. Pelo menos, o leãozinho fora o primeiro animal macho que ela encontrara e criara. Ele a deixará. Ela nunca mais o veria. Olhou com alarme para Lobo. Teve um medo repentino de vir a perdê-lo também. Fico pensando, disse consigo mesma, por que o meu totem tira todos os meus filhos de mim? Talvez eu não tenha sorte com filhos.

— Jondalar, seu povo tem costumes especiais relacionados com o fato de desejar filhos? As mulheres do Clã querem filhos homens.

— Não que eu saiba. Acho que as mulheres gostam de dar filhos à sua gente, mas parece que preferem ter filhas primeiro.

— E você, de que gostaria? Um dia, no futuro?

Ele se virou para estudá-la à luz do fogo. Ayla lhe parecia apreensiva;

—    Não tenho preferência. Será como você quiser, ou como a Grande Mãe determinar.

Agora foi a vez de ela estudá-lo. Queria ter certeza de que ele falava sério.

—    Se é assim, vou querer uma menina. Não desejo perder outro menino.

Jondalar não sabia o que ela queria dizer com isso, e não respondeu.

—    Também não quero que você perca nenhum filho.

Ficaram sentados, quietos, por algum tempo. Ela tecia os chapéus. De repente, Jondalar perguntou.

— E se você tiver razão? Se os filhos não forem dados por Doni? E se eles começarem, como você acredita, com os Prazeres compartilhados? Você poderia ter um bebê começado aí no ventre agora mesmo, sem saber disso.

— Não, Jondalar. Não posso. Meu período está começando, e você sabe que nessas circunstâncias os bebês não começam — explicou.

Não costumava falar de coisas assim tão íntimas com um homem mas Jondalar sempre fora natural com ela. Não era como os homens Clã. Lá, uma mulher precisava ter o cuidado de não olhar diretamente para um homem quando passava pelo seu período de maldição. Mas mesmo que ela o quisesse, não poderia isolar-se ou evitar Jondalar enquanto viajavam, e sentiu que precisava tranquilizá-lo. Ficou tentada, por um momento, a contar-lhe do remédio secreto que vinha tomando para combater quaisquer essências impregnadoras, mas se sentiu incapaz de fazê-lo. Ayla era incapaz de mentir — como Iza tinha sido —, mas. a não ser quando confrontada por uma pergunta direta, podia calar sobre o assunto. Se não provocasse o tema, era improvável que um homem o fizesse ou imaginasse que ela estaria fazendo alguma coisa para não engravidar. Muita gente nem imaginaria que mágica tão poderosa existisse.

— Está segura?

— Sim, estou. Não tenho nenhum bebê crescendo dentro de mim ou começado.

Ele pareceu aliviado. Ayla tinha os chapéus quase prontos quando sentiu alguns chuviscos. Apressou-se para concluí-los. Levaram tudo para dentro da barraca, exceto a bolsa de couro cru de búfalo dependurada dos mastros. Até Lobo, todo molhado, pareceu feliz de enrodilhar-se aos pés de Ayla. Ela deixou a parte de baixo da porta da barraca aberta para ele, se precisasse sair, mas fechou a abertura do teto por onde saía a fumaça porque chovia com maior intensidade. Eles se aconchegaram um ao outro no começo, mas depois cada um rolou para o seu lado. Ambos dormiram mal.

Ayla se sentia ansiosa e o corpo lhe doía. Procurou, assim mesmo, não se mexer muito para não incomodar Jondalar. Ouvia o tamborilar da chuva no couro da barraca, mas isso não a ajudou a conciliar o sono como em geral acontecia. Depois de muito tempo, começou a desejar ardentemente que amanhecesse para poder levantar-se e partir.

Jondalar, depois de saber com alívio que Ayla não fora abençoada por Doni com uma criança, começou a imaginar se havia alguma coisa errada com ele. Ficou acordado pensando se o seu espírito ou qualquer outra essência que Doni tirava dele não seria suficientemente forte, e se a Mãe lhe perdoara as indiscrições da mocidade e permitiria que fizesse filhos.

Talvez a culpa fosse dela. Ayla havia dito que queria uma filha. Mas depois de todo aquele tempo juntos não estava grávida. Talvez não pudesse conceber. Serenio nunca tivera outro... a não ser que estivesse esperando quando ele partiu... De olhos abertos, no escuro, ele ficou refletindo se alguma das mulheres que havia conhecido tinha dado à luz e se o bebê nascera de olhos azuis.

Ayla subia, subia, por um paredão de pedra, como o íngreme aclive que levava à sua caverna do vale. Só que este era muito mais comprido que o outro, e ela tinha de correr. Olhou para baixo, para o pequeno rio que fazia uma curva naquele lugar, mas não era um rio, e sim uma queda-d’água, que tombava em cascata, espadanando água para todos os lados por cima de rochas pontudas, cuja aspereza um rico limo verde amenizava.

Ela olhou para cima, e lá estava Creb! Ele acenava para ela, pedia que se apressasse. Depois voltou-lhe as costas e continuou a subir também apoiando-se pesadamente no seu cajado, conduzindo-a por um aclive quase vertical, mas praticável para uma pequenina gruta encravada em uma parede de pedra escondida por moitas de aveleiras. Acima da gruta, no topo do penhasco escarpado, havia um bloco chato de pedra debruçado sobre o abismo e pronto para cair.

De súbito, ela se viu no interior da caverna, andando por um corredor comprido e estreito. Havia uma luz! Um archote com sua chama convidativa, depois outras, e outras mais e, em seguida, o bramido terrificante de um terremoto. Um lobo uivou. Ela sentiu uma vertigem, caiu, e Creb entrou na sua cabeça.

—    Vá embora! — Depressa! Saia agora mesmo!

Ela se sentou na cama de um golpe, jogou as cobertas no chão e correu para a porta da barraca.

—    Ayla! O que aconteceu? — perguntou Jondalar, procurando agarrá-la.

De súbito, houve um relâmpago, tão brilhante que pôde ser visto através da pele da barraca, e não só no vão deixado aberto para Lobo ou no outro, destinado à saída de fumaça. Foi seguido, quase que de imediato, por um enorme estrondo. Ayla deu um grito, e Lobo uivou, do lado de fora.

— Ayla, Ayla! Tudo bem — disse Jondalar, abraçando-a. — Fe só um raio.

— Temos de ir embora! Ele disse que nos apressássemos. Ir embora já!

— Quem disse? Não podemos sair daqui. Está escuro. E chove.

— Creb. No meu sonho. Tive aquele sonho outra vez, com Creb! Foi ele quem disse. Vamos, Jondalar. Temos de andar depressa.

— Ayla, acalme-se. Foi apenas um sonho e, provavelmente, a tempestade. Escute. Chove muito, lá fora. Você não vai querer sair numa chuva dessas. Vamos esperar até o amanhecer.

— Não, Jondalar. Eu tenho de ir. Creb me disse isso, e não suporto este lugar. Por favor, Jondalar. Depressa.

As lágrimas escorriam pelo rosto dela, embora Ayla não se desse conta disso, enquanto metia as coisas nas cestas.

Ele decidiu fazer o mesmo. Por que não? Era óbvio que ela não ia esperar até o amanhecer, e ele jamais conseguiria dormir de novo. Pegou suas roupas, enquanto Ayla abria o couro que servia de porta da barraca. A chuva caía como se alguém a derramasse de uma bolsa d'água. Ayla saiu e deu um assobio, alto, longo. Ele foi seguido de um uivo de lobo. Depois de esperar um pouco, ela começou a arrancar do chão as estacas da barraca.

Podia ouvir as patas dos cavalos e sentiu um grande alívio ao vê-los. O sal das lágrimas era lavado pela forte chuva. Estendeu a mão para Huiin, sua amiga, que viera ter com ela, e abraçou o pescoço forte e encharcado da égua, e sentiu que o animal, assustado, tremia. Ela sacudia o rabo e fazia pequenas evoluções com passos curtos. Ao mesmo tempo, virava a cabeça e apurava os ouvidos, tentando localizar e identificar a causa da sua apreensão. O medo do cavalo ajudou Ayla a controlar-se. Huiin precisava dela. Falou ao animal com voz medida, alisando-a e tentando tranquilizá-la. Depois sentiu que Racer se apoiava nelas, mais apavorado que a mãe.

Procurou acalmá-lo, mas ele começou a recuar, com o mesmo passo curto e dançante de Huiin. Ela os deixou e correu à barraca, para apanhar os arreios e a carga. Jondalar já havia enrolado as peles de dormir e preparado sua própria bagagem quando ouviu o ruído dos cascos, e tinha os arreios e o cabresto de Racer consigo.

— Os cavalos estão apavorados, Jondalar — disse Ayla, entrando. — Acho que Racer está a ponto de escapar. Huiin se acalmou um pouco, mas também ela tem medo, e Racer a deixa ainda mais nervosa.

Jondalar apanhou o cabresto e saiu. O vento e a chuva torrencial envolveram-no e quase o derrubaram. Chovia tanto que era como se ele estivesse debaixo de uma cachoeira. Era ainda pior do que havia pensado. Não demoraria muito e a barraca teria ficado inundada, o chão encharcado e as peles em que dormiam também. Ainda bem que Ayla havia insistido em que se levantassem e partissem. À luz de um novo relâmpago, viu que ela lutava para colocar as cestas da bagagem no lombo de Huiin. O potro estava junto delas.

— Racer! Venha cá — chamou. Um grande trovão soou, ribombante, como se os céus se partissem. O cavalo empinou e soltou um relincho, depois começou a andar em círculos, erráticos, no mesmo lugar. Rolavam os olhos, de que só se viam as escleróticas. As narinas vibravam, a cauda vergastava o ar violentamente, e ele virava as orelhas em todas as direções, procurando localizar a fonte dos seus temores, mas eles eram inexplicáveis e estavam a toda volta, o que era terrível.

Embora alto, Jondalar teve dificuldade em pôr os braços em torno do pescoço de Racer para fazê-lo descer, falando todo o tempo a fim de acalmá-lo. Havia uma grande confiança mútua entre eles, e suas mãos e sua voz exerciam sobre o animal um efeito tranquilizante. Jondalar conseguiu pôr-lhe o cabresto e, segurando as correias do arnês, desejou que outro daqueles espantosos relâmpagos seguidos de trovão esperasse um pouco pelo menos para cair sobre eles.

Ayla foi apanhar o restante dos seus pertences na barraca. Lobo estava atrás dela, embora não o tivesse notado antes. Quando ela recuou para sair, Lobo ganiu, começou a correr para a mata de salgueiros, depois voltou, e latiu outra vez.

— Já vamos, Lobo — disse ela e, depois, para Jondalar. — Já tirei tudo. Apressemo-nos! — E, correndo para Huiin, pôs tudo o que carregava em uma das cestas.

A aflição de Ayla era contagiosa, e ele tinha medo que Racer não aguentasse mais tempo quieto. Não desmontou a barraca como costumava fazer. Arrancou simplesmente as estacas de madeira, puxando-as pela abertura de fumaça central, enfiou-as numa cesta, depois dobrou grosseiramente os couros ensopados e enfiou-os junto com as estacas. O cavalo continuava a rolar os olhos, assustado, e recuou quando Jondalar o pegou pela crina, a fim de montar. Isso dificultou a operação, mas Jondalar se instalou em cima dele e não se deixou derrubar quando o cavalo empinou. Agarrou-se com os dois braços em torno do pescoço de Racer e não caiu.

Ayla ouviu um longo uivo de lobo e um estranho rumor surdo ao montar Huiin e se voltou para ver que Jondalar estava firme na sela. Logo que Racer se acalmou, ela se debruçou para a frente, instando com Huiin para que partisse. A égua saiu logo, a galope, como se estivessem no seu encalço e como se, a exemplo de Ayla, quisesse sair o mais depressa possível daquele lugar. Lobo ia à frente, aos saltos, rompendo através da macega, com Jondalar e Racer logo atrás. O ronco ameaçador era agora mais forte.

Huiin rompeu a toda brida através do vale, desviando-se de árvores saltando obstáculos. De cabeça baixa, com os braços em volta do pescoço da égua, Ayla deixava que ela escolhesse o caminho. Não podia ver nada devido à escuridão e à chuva, mas sentia que iam no rumo da encosta que levava à estepe acima. De repente, um relâmpago clareou por um segundo o vale. Estavam nas florestas de faias, e o talude não ficava longe. Ela virou-se para ver Jondalar e ficou boquiaberta.

As árvores por trás dele se moviam! Antes que a luz morresse vários pinheiros altos se inclinaram precariamente, depois ficou escuro. Ela não percebera que o estrondo se fizera maior, mas agora via que o ruído da queda das árvores e, até, o dos trovões era engolido pelo ronco terrível, e nele se dissolvia.

Estavam na encosta. Ayla sabia, pela alteração no passo de Huiin que galgavam um aclive, embora ainda não pudesse ver nada. Confiava-se aos instintos da égua. O animal tropeçou uma vez, firmou-se. Depois saíram da mata e alcançaram uma clareira. Havia nuvens passando velozes, na chuva. Deviam estar no prado onde os cavalos tinham pastado, pensou. Jondalar a alcançou e se emparelhou com ela. Também estava debruçado sobre o pescoço do cavalo, embora fosse escuro demais para distinguir mais que a silhueta dos dois, negra contra um fundo escuro.

Huiin diminuiu o passo, e Ayla sentiu a respiração ofegante da égua A mata do outro lado da campina era rala, e Huiin já não galopava como antes, esquivando-se das árvores numa velocidade infernal. Ayla se endireitou melhor em cima dela, mas sem deixar de segurar-se ao pescoço da montaria. Racer passara à frente, mas também diminuiu o passo agora, e logo estavam lado a lado outra vez. A chuva amainava. As árvores cediam lugar a arbustos, depois à vegetação rasteira. Então a subida acabou, e a estepe se abriu à frente deles. A escuridão era a mesma, porém apenas amenizada um pouco por nuvens que uma lua invisível clareava por trás através das cortinas da chuva.

Pararam, e Ayla desmontou para que Huiin descansasse. Jondalar se juntou a ela, e ficaram os dois, lado a lado, tentando em vão enxergar alguma coisa embaixo, na treva. Havia relâmpagos, mas longínquos, e os trovões que lhes sucediam também eram remotos, agora.

Em estado de estupor, contemplavam o abismo negro do vale, sabendo que uma grande destruição estava em curso e que haviam escapado a um terrível desastre, se bem que não soubessem ainda as suas proporções.

Ayla sentia um formigamento no couro cabeludo e ouvia pequeninos estalos. Sentia um cheiro acre de ozônio. Era um odor peculiar de coisa queimada, mas não por fogo, não por coisa assim tão terra-a-terra. De súbito lhe ocorreu que aquilo devia ser o cheiro dos riscos de fogo no céu. Abriu, então, os olhos tomada de espanto e temor e, num momento de pânico, agarrou-se a Jondalar. Um pinheiro muito alto, com raízes na encosta, embaixo, mas protegido da ventania por uma projeção do penhasco rochoso, e cujo topo via acima do nível da estepe, brilhava com uma luz azul, fantasmagórica.

Jondalar prendeu-a nos braços, querendo protegê-la, mas sentia as mesmas coisas que ela, os mesmos terrores, e sabia que esses fogos do outro mundo escapavam ao seu controle. Podia apenas apertá-la contra o peito. E aí, num espetáculo aterrador, um raio dardejou pelas nuvens, dividiu-se numa rede de dardos flamejantes, desceu com um clarão cegante e atingiu o pinheiro, iluminando o vale e a estepe como se fosse meio-dia. Ayla estremeceu com o estampido, tão alto que lhe deixou os ouvidos tinindo. Encolheu-se toda quando o ronco do trovão reverberou no céu. Naquele momento de suprema claridade, viram a destruição de que tinham escapado por pouco.

O verde vale estava devastado. Todo o nível inferior era um turbilhão confuso. Do outro lado, um deslizamento da encosta empilhara rochas e árvores arrancadas pela raiz por sobre as águas revoltas, deixando no flanco da colina uma ferida exposta de solo vermelho.

A causa desse desastre torrencial era um conjunto de circunstâncias não de todo incomuns. Começara nas montanhas a oeste e com depressões atmosféricas sobre o mar interior. Um ar quente, carregado de umidade, subira e se condensara em grandes nuvens bojudas debruadas de branco pelo vento, que tinham ficado estacionárias por cima das colinas rochosas. O ar quente se vira, então, invadido por uma frente fria, e a turbulência da combinação resultante criara uma tempestade acompanhada de trovões e raios de intensidade excepcional.

As chuvas caíram dos céus intumescidos, derramando-se em declives e buracos que jorraram em riachos, saltaram por cima de rochas, e irromperam em torrentes de grande impetuosidade. Ganhando momentum, as aguas tumultuosas, alimentadas pelo dilúvio ininterrupto, precipitaram-se das colinas a pique, caíram por cima de barreiras, e tombaram sobre outras correntes, com elas formando verdadeiros muros de água de uma violência devastadora.

Quando a massa de água chegou à calha estreita e verdejante, cobriu a cachoeira e, com um rugido feroz, engolfou o vale inteiro. Mas a luxuriante depressão reservava uma surpresa para as águas escachoantes. Naquele período geológico, vastos movimentos sísmicos estavam levantando a superfície, elevando o nível do pequeno mar interior e abrindo caminhos para um mar ainda maior, que se formaria para o sul. Nas últimas décadas, o soerguimento fechara o vale, formando uma bacia rasa, que o rio enchera, criando um pequeno lago para além da represa natural.

Um escoadouro se abrira, porém, havia poucos anos, e drenara o pequeno reservatório, deixando húmus bastante para um vale luxuriante no meio da estepe seca.

Um segundo deslizamento de lama, rio abaixo, danificara outra vez o escoadouro, represando as águas da inundação e confinando-as no vale, o que provocou uma gigantesca marola. Para Jondalar aquele espetáculo mais parecia uma cena de pesadelo. Não conseguia acreditar nos próprios olhos. O vale inteiro se convertera num redemoinho turbulento e selvagem de barro e pedras, que jogavam para a frente e para trás, carregando consigo pequenos arbustos e até árvores inteiras, arrancadas do chão, e estilhaçadas pelo entrechoque.

Nada poderia ter sobrevivido naquele lugar, e ele se arrepiou ao pensar o que teria acontecido se Ayla não acordasse e insistisse em partir de imediato. Duvidava que tivessem conseguido escapar, mesmo assim, sem os cavalos. Olhou em volta. Estavam, os dois, de pé, cabeça baixa, pernas abertas, tão exaustos como imaginava que estariam. Lobo estava junto de Ayla. Quando sentiu que Jondalar o observava, levantou a cabeça e soltou um uivo. Lembrou-se de que um uivo de lobo o tinha despertado pouco antes de Ayla.

Houve um novo relâmpago, seguido de trovão, e ela estremeceu violentamente nos seus braços. Ainda não estavam fora de perigo. E estavam molhados, com frio, tudo o que tinham ficara encharcado, e em meio daquela planura, acossados pela tempestade, não sabia onde encontrar abrigo.

 

O pinheiro grande, abatido pelo raio, ardia, mas a resina quente, que alimentava o fogo, tinha de enfrentar a chuva, e as chamas crepitavam, mas davam pouca luz. Bastante, no entanto, para clarear os contornos gerais da paisagem em volta. Não havia muito onde se pudessem esconder, exceto no abrigo de poucos arbustos junto de uma vala transbordante que devia ficar seca a maior parte do ano.

Ayla olhava a escuridão do vale, embaixo, como que mesmerizada pela cena que tinham visto fugazmente. Mas a chuva recrudesceu encharcando-lhes as roupas já molhadas e levando a melhor, afinal, na luta contra o fogo da árvore.

— Vamos, Ayla — disse Jondalar. — Temos de encontrar algum refúgio e sair desta chuva. Você está com frio. Eu também. E estamos, os dois, molhados até os ossos.

Ela continuou a olhar o vale, depois estremeceu.

— Nós estávamos lá embaixo. — E, olhando para Jondalar. — Teríamos morrido se fôssemos apanhados no vale.

— Mas saímos em tempo. Agora, precisamos achar um refúgio. Se nos aquecermos logo, de nada adiantará termos escapado com vida—avisou ele.

Com a ponta da rédea de Racer na mão, marchou para o matagal. Avia chamou Huiin e o seguiu, com Lobo trotando a seu lado. Quando chegaram à vala, viram que os arbustos baixos levavam a outros, mais altos que pareciam pequenas árvores, mais longe do vale, já na estepe, e caminharam para lá.

Abriram caminho pelo meio da densa concentração de salgueiros. O solo em torno dos muitos troncos esguios das árvores, de um verde prateado, estava encharcado, e a chuva passava pelas folhas estreitas, mas não com tanta força. Limparam um recanto, depois retiraram a carga dos cavalos. Jondalar tirou da cesta o grande volume da barraca molhada para sacudi-lo. Ayla dispôs as estacas em torno da minúscula clareira e ajudou a esticar as peles que constituíam a barraca por cima deles. Estavam ainda ligadas ao couro que servia para forrar o chão. Era uma construção improvisada, mas só desejavam isso naquele momento: um abrigo contra a chuva.

Trouxeram a bagagem para o abrigo, forraram o chão com folhas e estenderam por cima das folhas as suas peles de dormir não muito secas. Tiraram então a roupa, torcendo-a nas mãos, e estendendo-a em galhos para secar. Por fim, deitaram-se agarrados um ao outro e aconchegaram as pelicas ao corpo. Lobo entrou, sacudiu-se vigorosamente, espirrando água por toda parte. Mas isso pouco importava, nas circunstâncias. Os cavalos da estepe, com sua pelagem farta e hirsuta, preferiam mais o inverno frio a uma tempestade de verão como aquela, mas estavam acostumados ao ar livre. Ficaram juntos um do outro, encostados às pequenas árvores, e deixaram que a água lhes caísse em cima.

No interior do abrigo úmido, molhados demais para pensar em acender um fogo, Ayla e Jondalar, embrulhados em pesadas peles, deixaram-se ficar, embolados. Lobo se enrodilhou em cima das pelicas, achegando-se o mais que pôde a eles. Assim, seu calor combinado acabou por aquecê-los. Ayla e Jondalar dormitaram um pouco, mas nenhum dos dois dormiu realmente. Pela madrugada a chuva diminuiu um pouco, e seu sono então ficou mais profundo.

Ayla ficou algum tempo à escuta, sorrindo consigo mesma, antes de abrir os olhos. Em meio à cacofonia de vozes de pássaros que a havia acordado, distinguira as notas agudas e elaboradas do canto de um sombrio. Ouviu em seguida um melodioso gorjeio que parecia ir ficando cada vez mais alto. Mas quando quis descobrir a fonte desse trinado, teve de pro­curar muito até dar com a pequenina cotovia discreta e castanha. Ayla virou-se na cama para observá-la.

A cotovia caminhava pelo chão com naturalidade e rapidez, equilibrando-se muito bem nas suas grandes garras, depois balançava a cabeça cristada e voltava com uma lagarta no bico. Com passos curtos, saltitantes, ela ia até uma parte nua do solo, junto de uma moita de salgueiros, e logo um grupo de recém-nascidos e filhotes camuflados aparecia, já de boca aberta para receber a delicada pitança. Logo outra ave, semelhante à primeira, porém mais sem-graça, e quase invisível contra terra pardacenta da estepe, apareceu com um inseto de asas. Enquanto ela enfiava a presa numa das bocas abertas, a outra ave levantou vôo em   círculos até quase se perder de vista. Mas sua presença não se perdeu. Ele subiu numa espiral esplêndida de canto.

Ayla assobiou baixinho a melodia, reproduzindo os sons com tal perfeição que a ave mãe parou de revolver o chão em busca de alimentos e se voltou na sua direção. Ayla assobiou de novo, aborrecida por não ter nada que oferecer ao pássaro, como costumava fazer quando vivia no vale e começara a imitar cantos de aves. Quando se tornou perita, as aves vinham se ela chamava, quer lhes desse algumas sementes quer não, e lhe faziam companhia naqueles dias de solidão. A mãe cotovia veio ver quem invadira seu território, mas como não encontrou nenhuma outra cotovia, voltou a dar comida aos filhotes.

Frases assobiadas, repetitivas, mais harmoniosas ainda, e mais suaves, terminando com um som, uma espécie de cacarejo exultante, acirraram o interesse de Ayla ainda mais. Um galo silvestre já era de proporções razoáveis, e faria uma excelente refeição. O mesmo se podia dizer das pombas-rolas, pensou, observando essas aves, que muito fazem lembrar os tetrazes. Nos ramos mais baixos deu com um simples ninho de gravetos em que havia três ovos brancos. Só depois viu a rolinha, rechonchuda, de pernas curtas, cabeça pequena, e bico curto. A densa plumagem macia, era marrom pálido, quase rosa, e as asas e o dorso, riscados como um casco de tartaruga, luziam com pontos iridescentes.

Jondalar rolou na cama, e Ayla se virou para admirá-lo estendido a seu lado, respirando no ritmo profundo do sono. Conscientizou-se então da necessidade que sentia de levantar-se para urinar. Tinha medo de acordá-lo, e detestava fazer isso, mas quanto mais procurava pensar em outra coisa, mais urgente ficava a necessidade. Movendo-se devagar, pensou, talvez ele não despertasse, e procurou sair com cuidado das peles quentes, se bem que ainda um pouco úmidas, em que se tinham enrolado. Ele fungou, bufou, e rolou sobre si mesmo. Mas só abriu os olhos quando procurou por ela com a mão e não a achou.

—    Ayla? Ah, você está aí.

—    Dorme, Jondalar. É cedo para levantar — disse, rastejando para fora, a fim de aliviar-se no mato.

A manhã era clara e fresca, e o céu, de um azul violeta, não tinha sinal de nuvem. Lobo se fora, em missão de caça ou de exploração. Os cavalos também se haviam afastado. Estavam na orla do vale, como observou. O sol estava ainda baixo, mas já subia vapor do chão molhado, e Avia sentiu a umidade quando se agachou para urinar. Só então notou as marcas vermelhas na parte interna das coxas. Era o período, pensou. Estava para acontecer. Teria de lavar-se e lavar as roupas de baixo, mas precisava antes de mais nada da lã de muflão.

O riacho estava cheio pela metade apenas, mas a água era limpa. Lavou as mãos, curvada, fez uma concha com elas para beber, mais de uma vez — a água estava fria —, e correu de volta para a barraca. Jondalar estava de pé e sorriu quando ela foi apanhar uma das cestas, no lugar protegido em que estavam debaixo da fronde das pequenas árvores. Ayla puxou-a para fora e começou a remexer nela. Jondalar tirou as suas, que eram duas, e foi apanhar o restante das coisas. Queria ver os estragos da chuva. Lobo reapareceu e foi direto até onde estava Ayla.

— Você me parece muito contente — disse ela, afagando-lhe a lã do pescoço, tão farta que parecia uma juba. Quando parou, ele saltou no seu peito com as patas enlameadas. Alcançava-lhe quase os ombros e por pouco não a derrubou. Mas Ayla conseguiu equilibrar-se.

— Lobo! Olhe só todo esse barro! — disse ela, enquanto ele lhe lambia a garganta e o rosto. Depois, com um rosnado surdo, abriu a boca, prendendo-lhe o queixo. Malgrado toda essa impressionante exibição de ferocidade canina, fez aquilo com a maior delicadeza e cuidado, como se lidasse com um filhote. Os dentes não feriram. Sequer deixaram marca. Ela enfiou de novo as mãos na sua coleira de pêlos, empurrou-lhe a cabeça para trás, e respondeu à devoção que via nos olhos dele com tanto afeto quanto o animal demonstrava. Em seguida, pegando-lhe o focinho, deu-lhe uma mordida de brincadeira, imitando um rosnado.

— Agora, sente-se, Lobo! Veja a sujeira que fez. Vou ter de lavar mais isso. — Escovou a blusa de couro, solta e sem mangas, que usava por cima das perneiras.

— Se eu não conhecesse a situação, ficaria muito assustado quando ele faz isso com você. Afinal, Lobo já está grande. E é um caçador. Pode matar alguém.

— Não se preocupe porque Lobo faz isso comigo. É assim que os lobos se cumprimentam uns aos outros, e demonstram sua afeição. Acho que ele também se rejubila por termos saído do vale em tempo.

—    Você já olhou lá para baixo?

—    Ainda não... Lobo, saia daí — disse, empurrando-o, quando ele começou a cheirar entre suas pernas. — É a lua. — E, desviando o rosto e corando: — Vim apanhar minha lã, e não tive ainda tempo de olhar o vale.

Enquanto Ayla se cuidava, lavando-se e às roupas no riacho, atando a lã com as correias de couro que usava para isso, e à procura de outras roupas para vestir, Jondalar caminhou até a beira do vale, para urinar, e contemplou. Não havia sinal do acampamento ou de qualquer lugar que pudesse servir para acampar. A bacia natural do vale estava parcialmente imunda. Arvores, troncos caídos, e outros débris boiavam e afundavam, enquanto o nível das águas agitadas continuava a subir. O pequeno rio continuava bloqueado no escoadouro e ainda originava marolas, agora não mais com a violência da noite anterior.

Ayla se postou em silêncio ao lado de Jondalar, que observava o vale e refletia. Levantou a vista quando sentiu a presença dela.

— Esse vale deve estreitar-se mais abaixo, e alguma coisa está bloqueando o rio, Ayla. Pedras provavelmente, ou um deslizamento de encosta. É isso que represa a água aqui. Talvez por isso seja tão verde o vale. Isso deve ter acontecido antes.

A simples inundação nos teria arrastado se continuássemos acampados — disse Ayla. — Meu vale costumava ficar inundado toda primavera, e era bem ruim, mas isto aqui... — Não pôde completar o pensamento por lhe faltarem palavras. De forma insensível, recorreu a linguagem de sinais do Clã para expressar com maior eloquência e exatidão seus sentimentos de consternação e de alívio.

Jondalar entendeu. Ele também não sabia o que dizer e partilhava dos sentimentos dela. Ambos quedaram, mudos, observando o movimento embaixo. Ayla percebeu que Jondalar parecia preocupado. Por fim, ele falou.

—    Se a avalanche de lama, ou o que seja, ceder muito depressa, essa água toda, descendo pelo rio, pode ser muito perigosa. Espero que não encontre gente pelo caminho.

—    Não pode ser mais perigosa do que na noite passada. Não é?

—    Chovia a noite passada, de modo que as pessoas podiam espera alguma coisa, como uma inundação, mas se esse dique se romper, sem o aviso prévio de uma tempestade, pode apanhar as pessoas de surpresa o que será catastrófico.

Ayla concordou, depois disse:

—    Mas se as pessoas usam este rio não perceberão que ele paro de correr? Não irão investigar por quê?

Jondalar se voltou para ela.

—    E nós, Ayla? Nós estamos viajando, não tínhamos como saber que um rio deixara de correr. Poderíamos estar rio abaixo em algum lugar como este e não teríamos nenhum aviso.

Ayla contemplou de novo a água no vale e não respondeu de imediato.

—    Tem razão, Jondalar — disse por fim. — Poderíamos ser apanhados em outra inundação sem aviso. Ou o raio poderia ter caído sobre nós em vez de atingir aquele pinheiro. Ou um terremoto poderia abrir uma fenda no solo, engolindo todo mundo, menos uma menininha, deixando-a sozinha no mundo. Ou alguém pode ficar doente, nascer com uma fraqueza ou deformidade. O Mamute disse que ninguém pode saber quando a Mãe vai chamar para junto de Si um dos seus filhos. De nada adianta ficar refletindo sobre essas coisas. Cabe a Ela decidir.

Jondalar ouvia, ainda de cenho cerrado. Depois, se descontraiu e pôs os braços em torno dela.

—    Eu me preocupo em excesso. Thonolan me dizia isso. Eu estava pensando no que aconteceria se estivéssemos rio abaixo, para além deste vale, e fiquei relembrando a noite passada. Então pensei na possibilidade perder você... — E, apertando os braços em volta de Ayla. — Não sei o que seria de mim se a perdesse — disse, com súbito fervor, apertando-a mais contra o peito. — Duvido que quisesse continuar vivo.

Ayla se afligiu com a reação dele.

— Não, Jondalar, espero que continuasse a viver, e que encontrasse outra pessoa que pudesse amar. Se alguma coisa lhe acontecer, uma parte de mim irá com você, porque o amo, mas continuarei a viver, e uma parte do seu espírito ficará comigo.

— Não será fácil encontrar outra pessoa para amar, Ayla. Nunca pensei que encontraria você. Não sei nem se iria procurar...

Os dois regressaram, então, caminhando lado a lado.

— Fico a imaginar se é isso que acontece quando duas pessoas se amam. Será que trocam partes do espírito um do outro? Talvez por isso a gente sofra tanto quando perde alguém que ama. — Ayla fez uma pausa e depois continuou. — É como os homens do Clã. São irmãos na caça, e trocam parte do seu espírito entre si. Isso acontece principalmente se um salva a vida de outro. Não é fácil viver quando falta uma parte do espírito. E todo caçador sabe que um pedaço do seu espírito irá para o outro mundo se o irmão se for, por isso o vigia e protege, e faz tudo o que pode para salvar-lhe a vida. — Ela se interrompeu para encará-lo. — Você crê que nós tenhamos trocado pedaços dos nossos espíritos, Jondalar? Afinal, somos parceiros de caça, não somos?

— E você uma vez me salvou a vida. Mas você representa muito mais para mim que um irmão na caça — disse ele, achando graça da ideia. — Eu a amo. Entendo agora por que Thonolan não queria continuar vivo quando Jetamio morreu. Às vezes penso que ele cortejava o perigo, procurava um meio de passar ao outro mundo, a fim de encontrar Jetamio e o bebê que jamais nasceu.

— Mas se alguma coisa um dia me acontecesse, eu não desejaria que você me acompanhasse a nenhum mundo dos espíritos. Gostaria que ficasse aqui mesmo e que encontrasse outra — disse Ayla, com convicção. Não gostava dessa conversa sobre outros mundos futuros. Não sabia como seria um mundo desses ou, até, no fundo do coração, se existiria. Sabia apenas que para entrar no outro mundo havia que morrer primeiro neste, e não queria ouvir falar na morte de Jondalar nem antes nem depois da sua.

Mas tratar de mundos futuros acarretou outros pensamentos.

— Talvez seja isso o que acontece quando a gente fica velho — disse ela. — se trocamos pedaços do espírito com aqueles que amamos, quando os perdemos, muitos deles têm já tantas peças no outro mundo que poucas restam neste para nos manter vivos. É como um buraco dentro de nós, que se faz cada vez maior. Por isso queremos ir para o outro mundo, onde estão a maior parte dos nossos espíritos e as pessoas que amamos.

— Como Você sabe tanto assim? — perguntou Jondalar, com um pequeno sorriso. Ela nada sabia do além, mas suas observações espontâneas e inventivas faziam sentido para ele, de certo modo, e revelavam uma inteligência genuína e profunda, embora ele não soubesse julgar se havia mérito naquelas ideias. Se Zelandoni estivesse lá, ele poderia perguntar-lhe. Então, de repente, conscientizou-se de que estava a caminho de casa, e que poderia consultá-la sobre tudo aquilo, e muito breve.

— Perdi pedaços do meu espírito quando era pequena, e meu povo fora engolido pelo terremoto. Iza levou outro pedaço quando morreu, depois Creb, depois Rydag. Embora ele não esteja morto, até Durc tem um pedaço de mim, do meu espírito, que jamais vou rever. Seu irmão levou um fragmento seu quando se foi, não levou?

Sim — disse Jondalar. — Vou sentir sempre a falta de Thonolan, vou sempre sofrer com isso. Às vezes penso que foi minha culpa. No entanto, eu faria o possível para salvá-lo.

— Não acho que tivesse podido fazer alguma coisa, Jondalar. A Mãe o queria, e cabe a Ela decidir, e não a qualquer de nós procurar um caminho para o outro mundo.

Quando regressaram à capoeira de altos salgueiros onde tinham pernoitado, começaram a conferir as bagagens. Quase tudo estava pelo menos úmido, e muita coisa permanecia decididamente molhada. Desataram os nós inchados que ainda prendiam o chão da barraca à sua parte superior e torceram as peças, segurando-as pelas pontas. Se forçassem muito, poderiam romper as costuras. Quando decidiram erigir a barraca para que ela secasse melhor, descobriram que haviam perdido algumas das estacas.

Estenderam a pele por cima das moitas, depois verificaram o estado das próprias roupas, ainda muito encharcadas. Os objetos guardados nas cestas tinham resistido um pouco mais. Muitas coisas estavam úmidas, mas secariam logo se tivessem um lugar quente e seco para arejar tudo. A estepe aberta seria ideal durante o dia, mas precisavam do dia para viajar, e o solo ficava úmido e frio à noite. De qualquer maneira, a ideia de dormir numa barraca molhada não lhes agradava.

— Acho que é hora de um bom chá quente — disse Ayla, que sentia deprimida. Já passava da hora da refeição matinal. Acendeu um fogo, pôs pedras para esquentar nele, e começou a pensar no desjejum. Foi quando verificou que não tinham os restos do jantar.

— Oh, Jondalar, não temos nada para comer agora de manhã. Ficou tudo naquele vale. Deixei os grãos na minha cesta boa de cozinhar junto das brasas da fogueira. A cesta também se foi. Tenho outras, mas aquela era a melhor. Pelo menos não perdemos os remédios — disse, com óbvio alívio, ao encontrá-los. — E a pele de lontra aguenta água, apesar de velha. Tudo o que guardei nela está seco. Pelo menos, posso fazer chá para nós. Tenho algumas boas ervas aqui. Preciso arranjar água. — olhando em volta — Onde está o meu coador? Será que também se perdeu? Pensei que o tivesse guardado dentro da barraca quando começou a chover. Deve ter caído na pressa.

— Pois você ainda vai ficar mais infeliz com outra coisa que deixamos lá — disse Jondalar.

— O quê? — indagou Ayla, já agoniada.

— A sua bolsa de couro cru e as varas compridas.

Ela fechou os olhos e sacudiu a cabeça, com desalento.

— Oh, não! Não só era um bom guarda-comidas, mas estava cheio de carne de cervo. E aquelas varas! Tinham o tamanho certo. Vão ser difíceis de substituir. Vamos verificar se mais alguma coisa se perdeu e ver se as rações de emergência estão intactas — falou Ayla.

Puxou a cesta em que guardava os poucos objetos pessoais que levava consigo mais roupa e equipamento para uso futuro. Embora todas as cestas estivessem molhadas, as cordas de reserva, postas no fundo, haviam preservado o seu conteúdo relativamente seco e em boas condições. comida que iam consumindo pelo caminho estava por cima de tudo. Logo debaixo dela, o pacote da comida de emergência continuava encapado e seco. Ayla achou que aquela era uma boa oportunidade para verificar o estado dos suprimentos e ver se algo se estragara e quanto tempo duraria o que estava em bom estado.

Tirou as diversas espécies de alimentos secos que tinham em reserva, dispondo-os em cima do rolo de dormir. Havia bagas — amoras-pretas, framboesas, uvas-do-monte, bagas de sabugueiro, vacínios, morangos, separadas ou combinadas umas com as outras — esmagadas e postas para secar ao sol em pasta. Outras variedades doces eram cozidas, em seguida secadas até adquirir uma consistência de couro, por vezes com pedaços de bagas ou maçãs duras, ácidas, mas ricas em pectina. Bagas inteiras, maçãs silvestres e outros frutos, como peras e ameixas fatiadas ou inteiras, eram adoçados ligeiramente e postos para secar ao sol. Podiam ser comidas como estavam ou deixadas de molho e cozidas. Muitas vezes eram usadas também para dar gosto em sopas e carnes. Havia ainda grãos e sementes, alguns dos quais parcialmente cozidos antes de secados; avelãs descascadas e assadas, e pinhões colhidos no vale pouco antes da enchente.

Levavam também legumes secos — talos, brotos, e, sobretudo, tubérculos ricos em amido, tais como tábua, cardo, alcaçuz e vários bulbos de liliáceas. Alguns eram cozidos no vapor em fornos subterrâneos antes de secados, mas outros eram desenterrados, descascados, e enfiados imediatamente em cordões feitos da casca de certas plantas ou tendões da medula ou das pernas de vários animais. Cogumelos também eram enfiados e, para melhor sabor, defumados. Certos liquens comestíveis eram cozidos no vapor e depois compactados em pães muito nutritivos. As provisões dos viajantes completavam-se com carne e peixe secos e defumados. Numa embalagem especial, posta à parte para emergências, era uma combinação de carne-de-sol moída, banha clarificada, e frutas secas, moldada em pequenos bolos.

A comida seca era compacta e se conservava bem. Parte dela tinha mais um ano e provinha dos suprimentos do último inverno, mas de certos itens havia quantidade limitada. Nezzie reunira essas provisões valendo-se dos estoques de amigos e parentes presentes à Reunião de Verão. Ayla lançava mão raramente dessas reservas. A maior parte do tempo comiam do que encontravam, e a estação era propícia. Se eles não conseguiam viver da munificência da Grande Mãe Terra quando Ela havia tanto a oferecer, jamais poderiam sobreviver viajando em campo aberto sem ter o que comer.

Ayla empacotou tudo de novo. Não pretendia valer-se dos suprimentos de viagem para a refeição da manhã, e a estepe tinha menos aves gordas para alimentar depois que eles comiam. Dois galos silvestres caíram vítima da funda de Ayla e foram assados no espeto. Alguns ovos de pomba, que nunca chocariam, foram rachados de leve e postos diretamente no fogo em suas cascas. O achado fortuito de um depósito secreto de bulbos da planta que é hoje conhecida como beldroega ou espinafre-de-cuba veio contribuir para a riqueza e variedade do café da manhã. A cova, no solo, ficava exatamente debaixo das suas peles de dormir e estava abarrotada desses tubérculos suculentos e adocicados, ricos em polissacarídeos, colhidos provavelmente por uma marmota quando estavam no ponto. Foram cozidos com os pinhões que Ayla recolhera na véspera, e que ela retirou das pinhas, pondo-as sobre as brasas e quebrando-as com uma pedra. Amoras silvestres maduras completaram a refeição.

Ayla e Jondalar deixaram a região do vale inundado, prosseguiram para o sul, mas viraram ligeiramente para oeste, e chegaram mais perto um pouco da cadeia de montanhas. Não era muito elevada. Mesmo assim tinha neves eternas nos picos, muitas vezes escondidos por nevoeiros e nuvens.

Estavam na região meridional do continente frio, e o caráter das pastagens se alterara de maneira sutil. Já era mais, agora, que uma simples profusão de capins e ervas, responsável pela diversidade de animais que se adaptavam às planícies frias. Os próprios animais mostravam diferenças de dieta, de hábitos migratórios, de separações espaciais e variações sazonais, e tudo isso contribuía para a grande riqueza de vida. Como aconteceria mais tarde nas grandes planícies equatoriais, muito para o sul daquelas latitudes — único lugar capaz de competir com a grande riqueza das estepes na Época Glacial —, a abundância e variedade de animais e a terra muito fértil interagiam de maneira complexa e mutuamente sustentável.

Alguns animais só comiam determinadas plantas; outros, alimentavam-se de partes especiais de plantas. Havia os que se alimentavam da mesma planta, mas em diferentes estágios de desenvolvimento. Uns comiam onde outros não iam, ou iam mais tarde, ou migravam de forma diferente. A diversidade era preservada porque os hábitos alimentares e de vida de uma espécie se ajustavam entre ou em torno dos hábitos de outra em nichos complementares.

Mamutes lanosos precisavam de grandes quantidades de matéria fibrosa, ervas duras, talos, carriços, e por tenderem a atolar na neve, quando abundante, em pântanos, e em turfeiras, deixavam-se ficar em terreno firme na planura varrida pelos ventos e próxima das geleiras. Faziam longas migrações horizontais, costeando o paredão de gelo, e só iam para o sul na primavera e no verão.

Os cavalos da estepe também precisavam de grandes quantidades de alimentos. Como os mamutes, eles digeriam rapidamente talos e capins, mas eram um pouco mais seletivos, preferindo os capins mais altos. Também sabiam cavar a neve para encontrar alimento, mas nisso gastariam mais energia do que ganhariam, e era penosa para eles a movimentação quando a neve era alta. Não podiam subsistir por muito tempo em neve profunda, e preferiam também a planura de solo duro e vento.

Ao contrário de mamutes e cavalos, os bisões precisavam de folhas e bainhas de ervas pelo seu alto teor proteico e tendiam a preferir a erva rasteira, indo para as áreas de erva mais alta apenas pelos brotos, na primavera. No verão, porém, surgia uma importante cooperação, se bem que inadvertida. Os cavalos usavam os dentes como tesouras de podar para abrir os talos duros. Depois de sua passagem, com os talos cortados, a relva de densas raízes ficava estimulada a brotar. A migração de cavalos era seguida muitas vezes, com um intervalo de alguns dias, pela dos bisões gigantes, que se regalavam com a grama brotada.

No verão, os bisontes iam para as montanhas do sul, de tempo variável e neve abundante, que deixavam a vegetação rasteira mais úmida e fresca que a das planícies secas do setentrião. Eram práticos em espalhar a neve com o nariz e a cara a fim de encontrar seu alimento favorito, rente ao solo. Mas as estepes nevadas do sul não deixavam de ter seus perigos.

Apesar de os pêlos fartos, desgrenhados, dos bisões e de outros animais tão bem agasalhados quanto eles os conservar quentes no frio relativamente seco do norte e, mesmo, no sul, onde a neve caía com maior abundância, essa proteção ficava perigosa e, até, fatal, quando o clima se fazia frio e úmido, com frequentes mudanças entre congelamento e degelo. Se ficassem encharcados durante um desses períodos de degelo, eles corriam o risco de morrer no primeiro congelamento que sobreviesse, principalmente se a onda fria os pegasse descansando no solo. Então, se seus longos pêlos congelassem, eles não podiam mais pôr-se de pé. Uma neve por demais densa ou crostas de gelo na superfície da neve também podiam ser fatais, bem como as nevascas do inverno, ou a fragilidade da superfície dos lagos congelados, através da qual era fácil cair — e afundar —, ou as inundações dos vales fluviais.

Antílopes muflões ou da espécie conhecida como saiga também prosperavam alimentando-se seletivamente de plantas adaptadas a condições de extrema aridez, ervas pequenas, capim rasteiro, folhudo, rente ao chão. Mas a saiga não se adaptava em terreno muito irregular e acidentado ou em neve muito espessa, e não eram bons de salto. Eram velozes, no entanto, e eram capazes de deixar para trás qualquer predador, desde que em terreno firme e plano, como o da estepe varrida de vento. Os muflões, os carneiros selvagens, por seu lado, eram exímios trepadores, e usavam terreno íngreme para escapar, mas não sabiam cavar em neve espessa. Preferiam também o terreno alto, rochoso, e varrido de vento.

As espécies caprinas aparentadas ao muflão, à camurça, ao cabrito-montês se distribuíam, de forma ordenada, segundo a altitude, as diferenças de terreno e de paisagem, com a cabra-antílope selvagem, o cabrito-montês, ocupando os terrenos mais elevados, de penhascos mais abruptos, seguidos, nos patamares ligeiramente inferiores, pela camurça, menor e muito ágil, com o muflão mais abaixo deles. Mas todos podiam ser encontrados em terreno acidentado, e até mesmo nos níveis mais baixos da estepe árida, uma vez que se adaptavam ao frio, desde que seco.

Os bois-almiscarados também eram animais monteses, só que maiores, e seus casacões de pele, duplos, pesadões, parecidos com os dos mamutes e os dos rinocerontes lanígeros, os faziam parecer mais volumoso e "bovídeos". Viviam mordiscando os arbustos mais baixos e as sebes, e eram feitos para temperaturas glaciais, preferindo as planícies mais próximas da geleira. Sua lã mais fina era descartada no verão, mas assim mesmo os bois-almiscarados tinham reações de estresse se a temperatura ambiente esquentava.

Veados gigantes e renas ficavam confinados às pradarias, em rebanhos, mas muitos outros cervos, mordiscadores de folhas, procuravam as poucas manchas arborizadas da estepe. O alce solitário, habitante das florestas, era aqui personagem raríssimo. Amante dos brotos estivais das árvores decíduas, mas também das suculentas algas e plantas aquáticas das piscinas naturais, eles se enfiavam com suas pernas compridas e cascos largos e achatados em tudo que era charco ou atoleiro. No inverno, os alces viviam dos capins menos digeríveis e de galhos finos de árvores que cresciam nos baixios dos vales fluviais. Suas longas pernas, as patas esparramadas, levavam-nos sem esforço através da neve trazida pelo vento e empilhada nesses lugares.

As renas adaptaram-se ao inverno, e subsistiam lambendo liquens nascidos em solo árido e fissuras de rocha. Podiam sentir o cheiro de suas plantas favoritas através da neve e a longa distância, e seus cascos eram próprios para cavar, se necessário. No verão comiam capim e também pequenos arbustos folhudos.

Alces e renas preferiam os prados alpinos ou as regiões montanhosas e relvosas na primavera e no verão, mas abaixo do nível onde reinavam os carneiros. Burros e onagros gostavam mais, invariavelmente, das colinas elevadas e áridas, enquanto que os bisões ficavam um patamar abaixo, apesar de serem melhores trepadores que os cavalos, que tinham maior escolha de terreno que mamutes ou rinocerontes.

Essas planícies primevas, com pastagens variadas e complexas, sustentavam, em grandes multidões, uma mistura fantástica de animais. Nenhum lugar da Terra, mais tarde, repetiria isso senão de maneira aproximada, seletiva e parcial. O meio frio e seco das altas montanhas não se podia comparar com o que então reinava, mas havia semelhanças. Carneiros, cabras e antílopes, habitantes das montanhas, estendiam seus domínios também às planícies naquela ocasião. Mas grandes hordas de animais da planície não podiam viver no terreno íngreme e pedregoso das altas montanhas quando o clima da baixada mudava.

Os pântanos encharcados e frágeis do norte não eram a mesma coisa. Eram úmidos demais para que os capins pudessem medrar em quantidade, e seus solos ácidos levavam as plantas a produzirem toxinas para não servirem de pasto aos herbívoros que destruiriam flora tão delicada e de crescimento tão lento. As variedades eram limitadas e ofereciam nutrientes pobres à diversidade de animais de grande parte das manadas. A forragem era insuficiente. Só animais de casco largo e chato, como a rena. poderiam viver em tal meio. Criaturas enormes, de grande peso, pernas curtas e grossas, ou grandes corredores com cascos estreitos e delicados, atolavam na terra fofa e encharcada. Precisavam de solo firme, seco, sólido.

Mais tarde, os campos herbosos de zonas temperadas se cobririam de faixas distintas de uma vegetação limitada, controlada pela temperatura e pelo clima. Ofereciam pouca escolha no verão e um excesso de neve no inverno. A neve também atolava os animais de solo firme, e era difícil para muitos deles livrar-se e conseguir alimento. Os veados podiam viver em florestas em que a neve era espessa, mas isso porque apenas consumiam folhas e brotos da extremidade de galhos de árvores que cresciam acima da neve. As renas podiam cavar a neve até alcançar o líquen de que se alimentavam no inverno. Bisontes e auroques sobreviveram, mas diminuíram de tamanho, sem alcançar mais a plenitude do seu potencial. Outros animais, como cavalos, ficaram reduzidos em número quando seu habitat preferido ficou reduzido.

Foi a combinação singular de todos os elementos das estepes da Época Glacial que deu origem a multidões de animais. Cada um desses elementos era essencial, inclusive o frio acerbo, os ventos devastadores, e o próprio gelo. E quando as vastas geleiras recuaram para as regiões polares e desapareceram das latitudes mais baixas, desapareceram com elas as grandes manadas, e os animais gigantescos diminuíram de tamanho ou deixaram de existir numa terra que mudara, uma terra que já não tinha como sustentá-los.

Enquanto cavalgavam, Ayla não tirava da cabeça a bolsa de couro cru desaparecida e as varas compridas. Eram mais do que úteis, talvez fossem necessárias durante a longa viagem que tinham pela frente. Ela desejava substituí-las, mais isso levaria mais tempo que um pernoite, e Jondalar, ansioso, queria prosseguir.

Por outro lado, ele não estava nada satisfeito com a barraca molhada, nem com a ideia de depender dela como abrigo. Além disso, não era bom para as peles molhadas ficarem dobradas e amarradas de maneira tão apertada. Podiam apodrecer. Tinham de ser estendidas para secar, e talvez fosse preciso tratar delas enquanto secavam, para conservá-las maleáveis, a despeito da defumação por que tinham passado quando o couro fora preparado. Isso lhes tomaria mais de um dia, achava ele.

À tarde chegaram às margens escarpadas de outro rio, que separava a planície das montanhas. Do seu ponto privilegiado de observação, no platô da estepe aberta, que dominava o amplo vale com seu rio largo de grande correnteza, podiam ver o terreno do outro lado. Os contrafortes da margem oposta eram fraturados por muitas ravinas e sulcos secos, resultado de enchentes, e também por muitos afluentes, pois aquele era um rio grande, que canalizava uma boa porção do escoamento, drenando a face oriental das montanhas no mar interior.

Quando contornaram o lado do planalto — e da estepe — e desceram a encosta, Ayla se lembrou do território em volta do Acampamento do Leão. Mas a paisagem do outro lado do rio, fraturada, era diversa da outra. Mas, do lado em que se encontravam, via a mesma espécie de desbarrancados e sulcos, escavados no loess do solo pela chuva e pela neve ao derreter-se, e viram capim alto secando e se transformando em feno, só que ainda de pé. Na planície lá embaixo, árvores isoladas — pinheiros, lariços — erguiam-se aqui e ali espalhadas por entre arbusto folhudos. Formações de tábuas, de varas altas, de juncos marcavam a orla do rio.

Quando chegaram à fímbria da água, os dois pararam. Tratava-se efetivamente de um largo curso d'água, largo e profundo, intumescido ainda pelas chuvas recentes. Não sabiam como atravessá-lo. Aquilo demandaria algum planejamento.

— É uma pena não termos um bote — disse Ayla, pensando nos braços redondos de pele que os membros do Acampamento do Leão usavam para cruzar o rio perto da sua sede.

— Tem razão. Vamos precisar de alguma espécie de barco para atravessar este rio sem molhar tudo o que temos outra vez. Não me lembro de qualquer dificuldade na travessia de rios com Thonolan quando viajei com ele. Empilhávamos nosso equipamento em cima de troncos de árvores e nadávamos até a margem oposta — disse Jondalar. — Mas imagino que não levássemos grande coisa, só uma mochila cada um. Era tudo o que podíamos levar. Com os cavalos podemos levar mais, em contrapartida, porém, temos mais em que pensar.

Cavalgando rio abaixo, examinando a situação, Ayla notou uma fieira de bétulas altas e esguias, que cresciam rente à água. O lugar lhe parecia tão familiar que não seria surpresa para ela se de súbito aparecesse à sua frente o comprido alojamento meio subterrâneo do Acampamento do Leão, enterrado no flanco da montanha, atrás de um terraço de rio, com grama crescendo dos lados, teto arredondado, e uma entrada em arco, perfeitamente simétrica, que tanto a impressionara quando vista pela primeira vez. Quando, em seguida, viu um arco daqueles, teve um choque de dar calafrios pela espinha.

— Jondalar! Veja!

Ele olhou para o alto da encosta, para onde ela apontava. Viu, então, não apenas um, mas diversos arcos, perfeitamente simétricos. Cada um dava entrada a uma estrutura circular abobadada. Ambos desmontaram e, encontrando o caminho, que começava no rio, subiram até o Acampamento.

Ayla estava surpresa com a intensidade do seu desejo de encontrar gente, e percebeu havia quanto tempo não viam outras pessoas ou falavam com alguém. Mas o lugar estava deserto. Plantada no chão, porém entre as duas gigantescas presas de mamute cujas pontas se juntavam no alto para formar a entrada de um dos pavilhões, havia a estatueta em marfim de uma fêmea, com generosos seios e nádegas.

— Eles devem ter partido — disse Jondalar. — Deixaram um dormi para guardar cada alojamento.

— Estarão caçando ou tomando parte em alguma Reunião de Verão. Ou fazendo uma visita — disse Ayla, desapontada por não haver qualquer pessoa no acampamento. — É uma pena. Eu estava ansiosa por ver gente — disse, e se virou para ir embora.

— Espere, Ayla. Aonde vai?

— De volta ao rio. — Parecia intrigada com a pergunta de Jondalar.

— Mas isto aqui é ótimo — disse ele. — Podemos ficar.

— Não podemos. Eles deixaram um mutói... um donii... para guardar as casas. O espírito da Mãe os protege. Não podemos ficar e perturbar o espírito Dela. Isso nos traria má sorte — disse ela, sabendo que ele tinha ciência de tudo aquilo.

— Podemos ficar, se necessário. Só não podemos tirar qualquer coisa de que não precisemos. É a regra. Ayla, precisamos de abrigo. Nossa barraca está encharcada. Precisamos de tempo para secá-la. Enquanto esperamos, podemos caçar. Se encontrarmos o animal certo, sua pele pode servir para fazer um barco a fim de atravessar o rio.

A expressão fechada de Ayla logo se abriu num sorriso, ao compreender o sentido do que ele dizia e suas implicações. Eles precisavam efetivamente de alguns dias para se recuperarem do temporal e repor um pouco do que fora perdido.

—    Talvez possamos conseguir pele suficiente para fazer também uma bolsa de couro cru nova — disse ela. — Uma vez limpo e pelado, um couro cru não leva tanto tempo para curtir. Não mais do que para secar uma carne. Temos só que esticá-lo e deixar que endureça. — E, com um olhar na direção do rio. — Veja aquelas bétulas lá embaixo. Podemos fazer umas boas estacas com elas. Você está certo, Jondalar. Devemos parar aqui por alguns dias. A Mãe compreenderá. E podemos deixar alguma carne-seca para os donos do lugar, como forma de agradecimento pelo uso do seu acampamento... se tivermos sorte na caça. Em que alojamento nos instalaremos?

— Na Lareira do Mamute. É onde ficam, em geral, os hóspedes.

— Mas você acha que existe uma Lareira do Mamute? Quero dizer, você acha que este seja um Acampamento Mamutói? — perguntou Ayla.

— Não sei. Não é como no Acampamento do Leão, em que todo mundo morava junto — disse Jondalar, contemplando o agrupamento de sete estruturas iguais, cobertas com uma camada de terra endurecida e argila do rio. Ao invés de uma vasta e única residência multifamiliar, como no Acampamento do Leão, onde morara no inverno, ali havia residências separadas, embora agrupadas num conjunto. O objetivo era o mesmo. Tratava-se de um só estabelecimento, uma comunidade de famílias mais ou menos aparentadas umas com as outras.

— Não. Mais parece com o Acampamento do Lobo, onde se realizou a Reunião de Verão — disse Ayla, detendo-se à porta de uma das construções. Estava ainda relutante em erguer a pesada cortina que vedava a entrada e invadir a casa de estranhos sem ser convidada, a despeito da necessidade comum de sobreviver em tempo de dificuldades.

— Alguns dos jovens presentes à Reunião de Verão disseram que os grandes alojamentos coletivos eram coisa antiquada — disse Jondalar. — Aprovavam a ideia de casas individuais, para uma ou duas famílias.

— Você acha que eles desejam viver por conta própria? Uma casa com apenas uma ou duas famílias? Como acampamento de inverno? — perguntou Ayla.

— Não. Ninguém queria viver sozinho o inverno todo. Você não vê nunca um alojamento desses isolado. Há sempre, pelo menos, cinco ou seis, às vezes mais. Essa a ideia. As pessoas com quem falei pensavam que era mais fácil construir uma habitação pequena, para uma família nova ou duas, em vez de ficarem todos apertados na casa comum, até construírem outra maior para todos. Mas queriam construir sua casa perto da família, ficarem no mesmo Acampamento, participar das atividades e comer da comida que juntos reunissem e estocassem para o inverno — explicou ele.

Jondalar empurrou para o lado a pele que tombava das duas presas de mamute da porta, curvou-se, e entrou. Ayla ficou atrás dele, segurando a pele para que houvesse alguma luz lá dentro.

—    O que acha, Ayla? Isso se parece com um alojamento Mamutói?

—    É difícil dizer, mas bem que poderia ser. Lembra-se do Acampamento Sungaea, em que nos detivemos a caminho da Reunião de Verão?. Não diferia muito de um Acampamento Mamutói. Seus costumes podem ter sido um pouco diferentes, mas eles eram, de maneira geral, como os Caçadores de Mamutes. Mamute disse que até as cerimónias funerárias eram muito semelhantes. Pensava que teriam sido, na origem, aparentados aos Mamutói. Eu observei que seus padrões de decoração não eram os mesmos. — Fez uma pausa, procurando lembrar-se de outras diferenças. — E algumas das roupas que usavam... como aquela bela manta de usar nos ombros feita de lã de mamute e de outras lãs, na garota que morreu. Mas o Acampamento Mamutói também tem mais de um padrão. Nezzie sempre sabia a que Acampamento alguém pertencia por ligeiras diferenças no estilo e forma de suas túnicas, embora eu mesma não visse grande diferença.

À luz que vinha da entrada, a construção parecia simples. O pavilhão tinha pouca madeira, embora houvesse poucas colunas de bétula estrategicamente colocadas. Fora construído, de maneira geral, com ossos de mamute. Os grandes, fortes ossos dos gigantes animais eram o material de construção mais abundante e acessível na estepe, onde quase não existia árvore.

Muitos dos ossos de mamute usados como material de construção não provinham de animais abatidos com esse propósito, mas de animais mortos de causas naturais, reunidos dos sítios em que tombaram, na estepe, ou, as mais das vezes, de pilhas levadas de roldão por ocasião de enchentes e depositadas ao longo do leito dos rios, em curvas ou barreiras como acontecia com as madeiras flutuantes. Abrigos permanentes de inverno eram muitas vezes levantados em terraços próximos a tais pilhas, porque presas e ossos de mamute eram pesados.

Um único osso exigia vários carregadores, e ninguém se dispunha a levá-lo muito longe. O peso total dos ossos de mamute usados para construir um abrigo pequeno era de uma tonelada ou tonelada e meia. A construção desses abrigos não era atividade para uma família, mas um esforço coletivo, dirigido por alguém com conhecimento e experiência, e orientado por um chefe com a capacidade de mobilizar a comunidade.

O lugar a que chamavam Acampamento era um aldeamento fixo, e os que lá viviam não eram caçadores nômades que acompanhassem animais itinerantes, mas essencialmente caçadores sedentários e coletores. O Acampamento podia ser abandonado por algum tempo no verão, quando seus habitantes caçavam e colhiam produtos da estepe (levados de volta e conservados em depósitos subterrâneos na vizinhança) ou visitavam parentes e amigos de outros aldeamentos, a fim de trocarem notícias e mercadorias, mas era um sítio de habitação, permanente.

—    Não creio que se trate de uma Lareira de Mamute ou que nome tenha lareira por aqui — disse Jondalar, deixando cair a cortina da entrada. Uma nuvem de poeira encheu o cômodo.

Ayla endireitou o ídolo, que tinha deliberadamente apenas uma simples sugestão de pés. As pernas ficavam, assim, reduzidas a uma forma de estaca que fora enterrada no chão para montar guarda à porta da casa. Depois, acompanhou Jondalar na inspeção do alojamento seguinte.

—    Este é, com toda a probabilidade, o do chefe ou o do mamute, ou dos dois.

Ayla notou que a casa era um pouco maior, e a figura feminina de guarda à porta um pouco mais elaborada. Assentiu com a cabeça.

—    De um mamute, acho eu, se forem, mesmo, Mamutói ou um povo parecido com eles. Tanto a chefe das mulheres quanto o chefe dos homens no Acampamento do Leão tinham alojamentos menores que o de Mamute, mas o dele era usado para hóspedes e para reuniões.

Ficaram, ambos, à entrada, segurando a cortina, e esperando que que seus olhos se ajustassem à penumbra lá dentro. Mas duas luzinhas continuaram a brilhar. Lobo rosnou, e o nariz de Ayla registrou um cheiro que a deixou nervosa.

— Não entre, Jondalar! E você, Lobo, quieto! — comandou, fazendo com a mão o sinal correspondente, como reforço.

— O que é, Ayla? — perguntou Jondalar.

— Não sente o cheiro? Há um animal aí dentro, um animal de odor muito ativo, como um texugo. Se o assustarmos, ele reagirá com um fedor que vai perdurar longamente. Não poderemos usar o alojamento, e seus donos terão dificuldade para livrar-se dele. Talvez, Jondalar, se você ficar segurando a cortina da porta, ele saia por si mesmo. Esses bichos cavam buracos e não gostam muito de luz, embora cacem durante o dia, às vezes.

Lobo recomeçou a toscar, surdo e prolongado dessa vez, e era óbvio que estava louco para sair atrás da fascinante criatura. Mas como muitos membros da família da doninha, o texugo era capaz de esguichar num atacante o conteúdo acre e fortíssimo das suas glândulas anais. A última coisa que Ayla queria era ter à sua volta um bicho repelente daquele odor almiscarado. Mas não sabia quanto tempo mais conseguiria deter Lobo Se o texugo não saísse logo, ela seria obrigada a usar meio mais drástico para livrar o acampamento do animal.

O texugo não via bem com seus olhinhos pequenos, quase imperceptíveis, mas eles vigiavam a abertura iluminada da porta com uma atenção fixa. Quando ficou óbvio que ele não saía, Ayla pegou a funda, que trazia enrolada na testa, e tirou uma pedra da bolsa que trazia presa à cintura. Depois, armando a atiradeira, mirou nos dois pontos de luz, e lançou o projétil. Ouviu o baque do impacto, e as luzes se apagaram.

—    Acho que você conseguiu acertá-lo! — disse Jondalar, mas esperaram mais um pouco para entrar. Queriam estar certos de que não havia mais qualquer movimento no pavilhão.

Quando entraram, ficaram consternados. O animal, bastante grande... um metro, da ponta do nariz à ponta da cauda... estava esparramado no chão com uma ferida sangrando na cabeça, mas era perfeitamente óbvio que estivera bastante tempo na casa, explorando, de maneira destrutiva, tudo o que encontrava. O lugar estava arrasado! O chão de terra batida fora todo arranhado e havia covas nele, algumas das quais com excrementos. As esteiras de palha que cobriam o chão tinham sido feitas em pedaços e o mesmo acontecera com todos os trançados. Couros e peles das plataformas usadas como camas estavam estraçalhados, a palha, as penas ou a lã dos colchões juncavam o piso. Mesmo uma porção da parede, de barro bem compactado, fora perfurada: o texugo abrira sua própria entrada.

— Veja só! — disse Ayla. — Eu detestaria encontrar minha casai sim, na volta.

— Há sempre o risco de uma coisa dessas quando a gente abandona assim um lugar. A Mãe não protege um acampamento de Suas próprias criaturas. Seus filhos têm de propiciar os espíritos dos animais e tratar com os animais vivos diretamente — disse Jondalar. — Talvez agente consiga limpar isso para os donos, mesmo que não possamos consertar ou substituir tudo o que foi destruído.

— Vou esfolar esse texugo e deixar a pele para eles. Assim saberão qual foi a causa de todo esse estrago. Além disso, a pele terá serventia — concluiu Ayla, pegando o animal pelo rabo para levá-lo embora.

Do lado de fora, com mais claridade, pôde ver o contraste entre o dorso, com seus pêlos duros, de cor cinza, com a parte do ventre mais escura, e o característico focinho listrado em branco e preto. Era, como haviam pensado, um texugo. Ela fez uma incisão na garganta com uma afiada faca de sílex e deixou a carcaça no lugar para que sangrasse até o fim. Depois retornou à casa, não sem lançar antes um olhar em torno, imaginando como seria aquilo quando habitado. Lamentou-se de novo por não haver ninguém. Podia ficar muito triste sozinha e deu graças por haver Jondalar. Por um momento, sentiu-se quase esmagada pelo amor que sentia por ele.

Apertou na mão o amuleto que levava preso ao pescoço, sentiu o contato reconfortante dos objetos que a bolsinha de couro decorado continha, e pensou no seu totem. Já não sentia tanto quanto antes o espírito do Leão da Caverna a protegê-la. Era um espírito do Clã, embora Mamute lhe tivesse dito que seu totem estaria sempre com ela. Jondalar toda vez se referia à Grande Mãe Terra quando mencionava o mundo dos espíritos, e ela pensava mais na Mãe agora, depois da doutrinação que recebera de Mamute. Achava, mesmo assim, que fora o seu Leão da Caverna que lhe trouxera Jondalar, e sentiu vontade de comunicar-se com o espírito do seu totem.

Usando a antiga linguagem sagrada de sinais das mãos, sem palavras, de comunicação com o mundo dos espíritos, ou com outros clãs cujas palavras de uso diário e gestos mais comuns eram diferentes, Ayla fechou os olhos e voltou os pensamentos para o totem.

— Grande Espírito do Leão da Caverna — disse, com gestos —, esta mulher é grata por ser considerada merecedora. Grata por haver sido escolhida pelo poderoso Leão da Caverna. O Mog-ur sempre disse a esta mulher que era difícil viver com um espírito poderoso, mas que valia a pena, sempre. O Mog-ur tinha razão. Embora as provações tenham sido muitas, as mercês recebidas compensaram as dificuldades. Esta mulher agradece pelos dons interiores, como a compreensão e o discernimento. Esta mulher agradece também ao grande Espírito do totem pelo homem Que Ele guiou até ela e que está a levá-la consigo para sua casa. O homem não conhece os Espíritos do Clã e não entende completamente que ele também foi escolhido pelo Espírito do Grande Leão da Caverna, mas esta mulher aqui presente é grata por ele ter sido julgado merecedor — disse ela.

Já ia abrir os olhos quando outro pensamento lhe ocorreu.

— Grande Espírito do Leão da Caverna — continuou, na sua oração mental, ajudada por signos —, o Mog-ur disse a esta mulher que os espíritos do totem desejam sempre um lar, um lugar para onde possam retornar, onde sejam bem recebidos, e onde queiram permanecer. Esta viagem terminará, mas o povo do homem não conhece os espíritos dos totens do Clã. A nova casa desta mulher não será a mesma, mas o homem honra o espírito do animal de cada um. E o povo do homem precisa conhecer e honrar o Espírito do Leão da Caverna. Esta mulher deseja dizer que o Grande Espírito do Leão da Caverna será sempre bem-vindo e terá sempre um lugar para Ele onde quer que esta mulher seja bem recebida.

Quando abriu os olhos, viu que Jondalar a observava.

— Você me pareceu... ocupada. Não quis incomodá-la.

— Eu estava pensando... no meu totem, no meu Leão da Caverna.— Na sua casa também. Espero que a gente fique... bem, lá.

—    Os espíritos dos animais estão sempre bem junto de Doni. A Grande Mãe Terra os criou. Foi Ela quem deu origem a todos eles. As lendas falam disso.

—    Lendas? Histórias sobre os tempos antigos?

— Imagino que possam ser chamadas histórias. Mas são contadas de uma certa forma.

— Nós também temos lendas, no Clã. Eu gostava quando Dorv as contava. O nome de meu filho foi tirado por Mog-ur de uma das minhas histórias favoritas, A Lenda de Dure — disse Ayla.

Jondalar ficou surpreso. Sentiu uma ponta de descrença. Então aquela gente do Clã, aqueles cabeças-chatas, tinha também lendas e histórias? Era ainda difícil para ele superar certas ideias feitas com as quais crescera, mas já começava a perceber que o mundo era muito mais complexo do que jamais imaginara. Por que não teriam histórias e lendas, eli também?

— Você conhece alguma lenda sobre a Grande Mãe? — pergunto Ayla.

— Bem, acho que me lembro de parte de uma. Elas são narradas de modo a poderem ser lembradas com facilidade, mas só uma zelandônia muito especial conhece todas. — Jondalar fez uma pausa para lembra-se, depois começou a salmodiar baixinho:

 

Quando Ela nasceu, águas jorraram, enchendo rios e mares,

Depois inundaram a terra e deram origem às árvores,

De cada gota que espirrou nasceram ervas e folhas,

Até que tudo se cobriu de plantas verdes.

 

—    Isso é maravilhoso, Jondalar! — disse Ayla, sorrindo. A história! ganha um aspecto novo e um som muito bonito, como o das canções dos Mamutói. Deve ser fácil lembrar tudo.

—    Essas histórias são cantadas com frequência. Pessoas diferentes fazem músicas diferentes, mas as palavras não mudam muito. Tem gente que canta a história toda, com todas as lendas.

—    Você conhece mais?

—    Um pouco. Já ouvi tudo, e em geral conheço a história, mas os versos são longos, e é coisa demais para lembrar. A primeira parte é sobre a solidão de Doni, que decide dar à luz o sol, Bali, "grande alegria da Mãe, um menino esperto, resplandecente". Depois se conta de como ela o perde e se sente solitária outra vez. A luz é seu amante, Lumi, mas Ela o criou também. Essa história é mais uma lenda de mulher. Sobre períodos, sobre ficar mulher. E há outras histórias, de como Ela pariu todos os espíritos animais e o espírito homem, o espírito mulher. Todos Filhos da Terra.

Lobo latiu, nesse momento, para chamar a atenção de Ayla e de Jon­dalar. Descobrira que aquilo funcionava, e continuava a usá-lo, embora já não fosse um filhote. Ambos olharam para ele e viram o motivo daquela excitação toda. Lá embaixo, à margem pouco arborizada do grande rio, uma manada de auroques irrompera. Era um gado selvagem e de porte avantajado, com chifres enormes e pêlo farto, todos de uma coloração igual, vermelha, mas tão escura que era quase negra. No entanto, em meio aos outros, dois animais se destacavam, com grandes manchas brancas, principalmente na face e nos quartos dianteiros, aberrações genéticas inofensivas que se viam, por vezes, sobretudo em auroques.

Ayla e Jondalar se entreolharam, fizeram o mesmo sinal de cabeça, quase simultaneamente, e chamaram os cavalos. Removendo rapidamente as cestas de carga, que levaram para dentro da habitação, e apanhando suas armas — lanças com os arremessadores —, montaram e cavalgaram rumo ao rio. Ao se aproximarem, Jondalar sofreou seu animal para estudar a situação e decidir sobre o melhor curso de ação a seguir. Ayla também se deteve. A liderança cabia a ele. Ela conhecia os carnívoros, sobretudo os pequenos, embora já tivesse derrubado animais tão grandes quanto o lince e a hiena das cavernas. Já vivera com um leão e tinha agora um lobo por companhia. Não tinha, porém, qualquer familiaridade com os grandes herbívoros, tanto os que pastavam quanto os que se alimentavam de folhas de árvores — e que se caçavam, habitualmente, para comer. Embora ela tivesse aprendido a pegá-los quando vivia sozinha, Jondalar se criara caçando esses animais, e tinha muita experiência.

Talvez por ter comungado tão recentemente com seu totem e o outro mundo, Ayla estava num curioso estado de espírito. Parecia-lhe uma extraordinária coincidência que, justamente quando haviam decidido que a Mãe não se importaria se ficassem ali alguns dias a fim de recuperar as suas perdas e caçar algum animal com bom couro e boa carne, e abundante, um rebanho de auroques lhes aparecesse. Ayla se perguntava se aquilo não seria um sinal da Grande Mãe ou, quem sabe, do seu totem, de que eles tinham sido guiados até aquele lugar.

Não era coisa incomum, porém. Durante todo o ano, mas em especial no calor, vários animais, em manadas ou individualmente, migravam, varando as florestas ciliares e as ricas pastagens dos vales dos grandes cursos d'água. Em qualquer lugar, nas imediações de um rio maior, era comum ver algum animal desses de passagem. Às vezes apareciam com intervalo de poucos dias. E, conforme a estação do ano, verdadeiras procissões se sucediam diariamente. Daquela vez tinham ali uma manada de gado selvagem, exatamente da espécie de que precisavam, embora diversas espécies tivessem servido igualmente bem.

— Ayla, está vendo aquela grande vaca? — perguntou Jondalar. — A que tem focinho branco e mancha branca no dorso esquerdo?

—    Estou, Jondalar.

—    Vamos pegá-la — disse Jondalar. — Já alcançou seu desenvolvimento completo, mas, a julgar pelo comprimento dos chifres, ainda não é velha. E está num canto, à parte.

Ayla sentiu um calafrio. Agora se convencia de que se tratava mesmo de um sinal! Jondalar havia escolhido o animal diferente dos outros O animal de pintas brancas. Sempre que ela se vira confrontada com uma escolha difícil na vida, sempre que tivera de tomar uma decisão, depois de muito pensar e racionalizar, seu totem se dignara confirmar que ela tomara a decisão acertada, mostrando-lhe um sinal, um objeto por algum motivo incomum. Quando criança, Creb lhe explicara esses sinais e lhe dissera que os conservasse como talismãs. Muitos dos pequenos objetos que levava no pescoço eram sinais do totem. A súbita aparição da manada de auroques depois de tomarem a decisão de ficar e a decisão de Jondalar, de caçar o exemplar diferente dos demais, lhe pareciam ter a mesma natureza mirífica de sinais de um totem.

Se bem que a decisão de se demorarem naquele acampamento não tivesse sido pessoal nem difícil, fora uma decisão importante e exigira madura consideração. Aquela era a residência permanente de uma comunidade de pessoas que invocara o poder da Mãe para guardá-la na sua ausência. As necessidades de sobrevivência permitiam a um estranho de passagem o uso do Acampamento, mas o motivo tinha de ser legítimo, e a necessidade, extrema. Não se incorre na ira da Mãe com leviandade.

A terra era ricamente povoada de seres vivos. Em suas viagens, eles tinham encontrado grande número de uma enorme variedade de animais. Mas pouca gente. Num mundo tão vazio de vida humana, havia consolação na ideia de um reino invisível de espíritos que sabiam da sua existência, que se importavam com os seus atos, e que talvez lhes conduzissem os passos. Até um espírito severo ou mesmo hostil, que era preciso aplacar com oferendas, era melhor que a cega indiferença de um mundo duro e frio, em que suas vidas estariam inteiramente em suas próprias mãos, sem ninguém para quem apelar numa necessidade maior, nem mesmo em pensamento.

Ayla chegara à conclusão que, se a caça deles tivesse êxito, isso significava que era justo que estivessem usando o Acampamento. Se fracassassem, teriam de ir embora. Tinham visto o sinal, o animal aberrante, para terem sorte, precisavam guardar uma parte dele. Se não o conseguissem, isso seria má sorte, um sinal de que a Mãe não aprovava a sua estada ali. E teriam de partir de imediato. Ayla ficou pensando qual ia ser o desfecho.

 

Jondalar estudou a disposição do rebanho dos auroques ao longo do rio. Eles se distribuíam entre o sopé da elevação e a fímbria da água e ocupavam diversas pastagens pequenas de viçoso capim verde, vegetação mais alta e árvores. A vaca malhada estava no centro de um prado, apartada de outros animais do rebanho por um denso conjunto de bétulas e amieiros jovens amontoados a um canto do espaço. Essa concentração de pequenas árvores continuava por toda a base do outeiro, cedendo lugar a capões de ciperáceas e caniços espetados e folhudos na parte baixa e alagada da outra extremidade do terreno, que conduzia a uma enseada pantanosa, atulhada de juncos altos e tábuas.

Ele se voltou para Ayla e apontou o charco.

—    Se você for costeando o rio para além daqueles juncos e tábuas, e eu for através daquela brecha do capão de bétulas, ela ficará encurralada entre nós, e poderemos pegá-la.

Ayla considerou a situação e assentiu com a cabeça. Depois, desmontou.

—    Quero amarrar bem a bainha da minha lança antes que a gente comece — disse, atando o longo tubo de couro cru às correias que prendiam a manta de montar. Era um cochinilho macio, feito de pele de gamo. No interior do tubo de couro duro havia diversas lanças, bem-feitas e graciosas, com pontas de osso, finas e bem torneadas, polidas até ficarem bem aceradas e depois fendidas na base, onde recebiam os cabos compridos, de madeira. Cada lança era guarnecida com duas penas retas e tinha um entalhe na base.

Enquanto Ayla fixava aquela espécie de aljava, Jondalar retirou uma lança do estojo que levava às costas, preso por uma correia que passava por um dos seus ombros. Sempre usava assim o seu estojo de lanças quando caçava a pé, e estava acostumado com ele, embora, quando viajava contando apenas com as próprias pernas, com uma mochila, as lanças fossem guardadas num compartimento especial do lado de fora dela. Pôs a lança no arremessador, para que ficasse de prontidão.

Jondalar mesmo inventara o arremessador de lanças no curso do verão que passara no vale de Ayla. Era uma inovação singular e surpreendente, uma inspirada criação de puro génio, brotada da sua aptidão natural e da sua intuição de princípios físicos que seriam definidos e codificados centenas de anos depois dele. A idéia era enganosa, mas o próprio objeto enganosamente singelo.

Feito de uma única peça de madeira, tinha meio metro de comprimento e quatro centímetros de largura, estreitando para a ponta. Era usado na posição horizontal e tinha uma ranhura longitudinal no meio onde a lança descansava. Um gancho simples, lavrado na extremidade posterior do arremessador, encaixava-se no entalhe da haste, funcionando como uma espera e ajudando a manter a lança no lugar por ocasião do arremesso, o que contribuía para a precisão da arma. Para a frente do lançador, havia duas alças de couro macio de veado.

Para usá-lo, a lança era posta com a extremidade da haste encostada ao gancho e sua espera. O primeiro e o segundo dedos eram enfiados nas alças de couro da frente, um pouco para trás do centro da lança, muito mais comprida, naturalmente, que o arremessador, num ponto bom de equilíbrio, e mantinham a lança no lugar sem prendê-la em demasia. Uma função mais importante entrava em ação quando a lança era atirada. Firmando-se a frente do arremessador, a parte de trás se erguia, o que, como uma extensão do braço, acrescentava ao comprimento. O maior comprimento acrescentava ao efeito de alavanca e ao impulso, isso, por sua vez, aumentava a potência e o alcance da arma.

Arremessar uma lança com o arremessador era o mesmo que atira-la com a mão. A diferença era o resultado. Com o arremessador, a longa lança pontiaguda atingia o dobro da distância que uma lança atirada com a mão e tinha muito maior potência.

A invenção de Jondalar punha a mecânica a serviço da força muscular, que ela transmitia e ampliava, mas não era o primeiro petrecho a utilizar esses princípios. Seu povo tinha uma tradição de invenção criativa e usara ideias semelhantes de outras maneiras variadas. Por exemplo, um pedaço afiado de sílex seguro na mão era uma boa ferramenta de cortar, mas preso a um cabo dava ao usuário grande aumento na força e no controle. A ideia aparentemente simples de pôr cabos nas coisas — facas, machados, enxós, e outros instrumentos de cortar, talhar, furar; um cabo maior em pás e ancinhos; e, até, uma forma de cabo destacável para arremessar uma lança — multiplicava sua eficácia várias vezes. Não era apenas uma ideia simples, mas uma invenção importante, que facilitou o trabalho e tornou a sobrevivência mais provável.

Embora os que vieram antes deles tivessem lentamente aperfeiçoado diversos utensílios e ferramentas, pessoas como Jondalar e Ayla foram as primeiras a imaginar e inovar em escala tão extravagante. Seus cérebros faziam abstrações com facilidade. Eram capazes de conceber uma ideia e planejarem como implementá-la. Começando com pequenos objetos que usavam princípios avançados, intuitivamente compreendidos eles tiravam conclusões e aplicavam-nas a outras circunstâncias. Fizeram mais do que inventar objetos e utilidades, inventaram a ciência. E da mesma fonte de criatividade, utilizando a mesma faculdade de abstração, foram os primeiros a ver o mundo em torno deles de forma simbólica, extrair sua essência, e reproduzi-la. Criaram a arte.

Quando Ayla acabou de prender o arremessador, montou de novo. Depois, vendo que Jondalar tinha uma lança em riste, pôs também uma no seu arremessador, e segurando a arma com naturalidade, mas também com cuidado, seguiu na direção que Jondalar lhe indicara. O gado selvagem se movia devagar ao longo do rio, pastando, e a vaca que haviam escolhido já estava em lugar diferente e não tão isolado quanto antes. Um novilho macho e outra vaca andavam por perto. Ayla seguiu o rio, guiando Huiin com joelhos, coxas, o movimento do corpo. Quando se viu diante da presa desejada, avistou também o homem alto, que se aproximava no seu cavalo pelo vão entre as árvores. Os três auroques estavam entre eles.

Jondalar ergueu o braço que segurava a lança, esperando que Ayla entendesse que aquilo era um sinal para esperar. Talvez devesse ter combinado a estratégia com ela antes de se separarem, mas era difícil planejar com precisão as táticas de uma caçada. Muita coisa dependia da situação e da reação da presa. Os dois animais que agora pastavam na vizinhança da vaca malhada de branco eram uma complicação adicional. Mas não havia pressa. Os animais não pareciam alarmados com a presença deles, e Jondalar queria ter um plano na cabeça antes de atacar.

Subitamente, as vacas levantaram as cabeças, e sua indiferença satisfeita se mudou em preocupação ansiosa. Jondalar olhou para além dos animais e ficou irado: Lobo chegara, e vinha em direção ao gado, com a língua de fora e uma expressão que conseguia ser ao mesmo tempo brincalhona e ameaçadora. Ayla não o vira ainda, e Jondalar teve de sufocar uma vontade de gritar para dizer-lhe que tirasse o bicho de lá. Um grito apenas serviria para assustar as vacas e, até, fazê-las sair a trote. Em vez disso, quando um grande gesto com o braço chamou a atenção de Ayla, ele apontou para o lobo com a lança.

Só então Ayla viu Lobo, mas não entendera bem o que Jondalar queria, e tentou responder, pedindo-lhe que se explicasse melhor, usando gestos do Clã. Mas Jondalar não estava pensando em gestos como linguagem no momento, embora tivesse um conhecimento rudimentar daquela forma de comunicação do Clã, e não reconheceu os sinais dela. Estava concentrado em salvar uma situação que se deteriorava. As vacas tinham começado a mugir, e o vitelo, percebendo o medo de que estavam tomadas, se pôs a berrar. Todos pareciam a ponto de sair em disparada. O que começara como uma caçada fácil, em condições quase perfeitas, parecia agora perdido.

Antes que as coisas piorassem, Jondalar impeliu Racer para a frente, no momento exato em que a vaca se pôs a fugir correndo para a proteção das árvores e da macega. O bezerro a seguiu, sempre berrando. Ayla esperou apenas o bastante para assegurar-se das intenções de Jondalar. Vendo que ele perseguia a vaca malhada, ela também saiu atrás do animal. Convergiam para os auroques, que permaneciam no prado, olhando para eles e mugindo nervosamente, quando a vaca malhada disparou na direção do alagado. Eles galoparam atrás dela, mas quando se aproximavam, a vaca se esquivou e galopou em sentido contrário, passando entre os cavalos, e correu para as árvores do lado oposto da campina.

Ayla jogou seu peso para o outro lado, e Huiin mudou rapidamente de direção. Estava acostumada a fazer isso. Ayla já caçara a cavalo antes, embora o fizesse de regra abatendo pequenos animais com a sua funda. Um puxão na rédea não era tão instantâneo como comando quanto, uma alteração no peso do corpo. Já Jondalar e seu jovem garanhão tinham muito menos experiência de caçadas juntos, mas, depois de uma, breve hesitação, logo se lançaram no encalço da vaca malhada.

Esta ia a toda velocidade para o denso capão de mato à frente. Se o alcançasse, seria difícil acompanhá-la através dele, e havia grande perigo de que ela lhes escapasse. Ayla e Huiin e, atrás, Jondalar e Racer ganhavam terreno, mas todo gado dependia da velocidade para escapar dos predadores, e gado selvagem como aquele era capaz de correr tão depressa quanto cavalos, em caso de necessidade.

Jondalar instigava Racer, e ele respondeu redobrando de velocidade. Procurando manter firme a lança, visando deter o animal, Jondalar emparelhou com Ayla, depois ultrapassou-a. Mas a um sinal sutil da mulher, a égua emparelhou outra vez com o filho. Ayla tinha também a lança em riste, mas mesmo a galope cavalgava com uma graça sem esforço não estudada e que era o resultado da prática. Seu treinamento inicial da égua não fora intencional. Sentia que muitos dos sinais que transmitia ao cavalo eram mais uma extensão do pensamento que atos de comando. Bastava pensar aonde queria ir, e Huiin já lhe obedecia. Tinham tão íntima compreensão uma da outra, ela e a égua, que Ayla já nem se dava conta de que em cada caso os movimentos do seu corpo, que acompanhavam o pensamento, davam direções ao animal, inteligente e sensível.

Enquanto Ayla fazia pontaria com a lança, Lobo se pôs, de repente a correr ao lado da vaca em fuga. O grande auroque se deixou distrair por aquele predador com que estava mais familiarizado e se desviou um pouco para o lado, diminuindo a velocidade. Lobo saltou sobre ele, e a vaca malhada se virou para atacá-lo com seus grandes chifres de pontas aceradas. Lobo saltou para trás, depois deu um novo bote e, procurando algum terreno vulnerável, enterrou os dentes no focinho macio e vulnerável às suas fortes mandíbulas. A vaca, enorme, berrou e, levantando a cabeça, ergueu Lobo do chão e o sacudiu, para livrar-se dele e da dor aguda que ele lhe causava. Suspenso no ar como uma bolsa murcha de pele, Lobo, embora aturdido, não caiu.

Jondalar percebera logo a mudança de ritmo na corrida da vaca e estava preparado para tirar vantagem dela. Investiu a galope e arremessou a lança de perto com toda força. A ponta de osso perfurou o lado palpitante da vaca, e penetrou fundo entre as costelas, atingindo órgãos vitais. Ayla vinha logo atrás dele, e sua lança acertou do outro lado, também profundamente, logo atrás da caixa torácica. Lobo ficou dependurado no focinho da vaca até que ela tombou por terra. O peso do grande carnívoro contribuiu para a queda. Caiu de lado, pesadamente, quebrando a haste da lança de Jondalar.

— Mas ele ajudou — disse Ayla. — Ele deteve a vaca antes que ela alceasse as árvores.

Os dois uniram suas forças para virar o animal, a fim de expor seu ventre patinhando na poça de sangue espesso que se formara debaixo do grande corte que Jondalar fizera no pescoço.

— Se Lobo não tivesse começado a persegui-la, a vaca, provavelmente, não teria corrido até que a gente já estivesse em cima dela. E teria sido fácil abatê-la — disse Jondalar. Pegou a haste da lança quebrada, lancando-se, depois, por terra outra vez e pensando que teria sido possível salvar a arma se Lobo não tivesse feito a vaca cair. Uma boa lança demandava muito trabalho.

— Você não pode ter certeza disso. A vaca se desviou de nós num abrir e fechar de olhos, e corria como o vento.

— Aquele gado não nos dava atenção até que Lobo apareceu. Eu queria dizer a você que o espantasse, mas não podia gritar, pois podia assustar os animais.

— Eu não sabia o que você desejava. Por que não usou os sinais do Clã? Eu lhe fiz perguntas, com gestos, mas você não estava prestando atenção — disse Ayla.

Gestos do Clã?, pensou Jondalar. Não lhe ocorrera que ela estivesse usando a linguagem gestual do Clã. Seria uma boa maneira de dar sinais. Mas acabou sacudindo a cabeça.

— Duvido que tivesse adiantado alguma coisa. Lobo não teria parado nem mesmo que você o chamasse, Ayla.

— Talvez não. Mas ainda acho que posso ensinar muita coisa a Lobo para nos ajudar. Ele já levanta caça pequena para mim. Neném aprendeu a caçar comigo. Era um bom companheiro de caçadas. Se um leão pode ser ensinado a caçar com gente, o mesmo ocorre com Lobo — disse Ayla, defendendo o animal. Afinal, eles tinham matado a vaca auroque, e Lobo tinha ajudado.

Jondalar achava que a confiança de Ayla na capacidade de aprender de um lobo era pouco realista, mas não valia a pena discutir aquilo com ela. Ayla tratava Lobo como uma criança, e discordar apenas serviria para fazer com que ela o defendesse ainda mais.

—    Bem, será melhor eviscerar esta vaca antes que ela comece a inchar. E temos de tirar-lhe o couro aqui mesmo e cortar a carne, para podermos levá-la aos poucos, para o acampamento — disse Jondalar. Então outro pensamento lhe ocorreu.

— Mas o que vamos fazer com Lobo?

— O que é agora?

— Se retalharmos a vaca auroque e levarmos parte dela para o acampamento. Lobo pode devorar a carne que deixarmos aqui — disse o homem, já mais irritado. — E se voltarmos para buscar mais, ele come o que levamos para o acampamento. Um de nós terá de ficar aqui, montando guarda, e o outro terá de ficar lá. Como levar toda a carne, então? Vamos ter de armar uma barraca aqui para secar a carne em vez de usar a cabana do acampamento só por causa de Lobo? — reclamou ele.

Estava exasperado com os problemas que Lobo causava e não pensava com clareza. Mas aquilo deixava Ayla irritada. Talvez Lobo pegasse a carne se ela não estivesse lá, mas certamente não a tocaria se ela estivesse. Não era problema nenhum. Por que Jondalar implicava tanto com ele? Começou a responder-lhe, depois mudou de ideia, e chamou Huiin com um assobio. Montou de um salto e se voltou para Jondalar.

— Não se preocupe. Eu levo essa vaca para o acampamento — disse, indo embora e levando Lobo.

Galopou até a cabana, saltou do cavalo, correu para dentro, e voltou com a machadinha de pedra de cabo curto que Jondalar fizera para ela. Depois montou outra vez e tocou Huiin na direção da mata de bétulas.

Jondalar a viu chegar e se meter logo na floresta, sem saber o que a mulher tinha em mente. Já começara a remover os intestinos e estômago da vaca, mas pensava em outra coisa enquanto trabalhava. Achava que tinha razões de sobra para preocupar-se com o filhote de lobo, mas lamentava ter falado disso com Ayla. Sabia o quanto ela gostava do bicho. Uma queixa sua não mudaria as coisas, e tinha de reconhecer que o aprendizado a que ela havia submetido Lobo conseguira muito maís resultado do que ele imaginara possível.

Quando ouviu que ela cortava árvores, entendeu o que Ayla planejava fazer, e foi ter com ela. Viu-a dando ferozes machadadas numa bétula alta e direita no centro da concentração de árvores pouco espaçadas umas das outras, la cozinhando sua raiva enquanto trabalhava.

Lobo não é tão mau quanto Jondalar pretende, dizia consigo mesma. Talvez quase tenha espantado os auroques, mas depois ajudou. Interrompeu o pensamento, descansou um pouco, franziu a testa. E se não tivessem obtido êxito, isso significaria que não eram bem-vindos? Que o espírito da Grande Mãe não os queria no acampamento? Se Lobo tivesse estragado a caçada, ela não estaria ocupada em pensar como transportar aquela vaca. Estariam de partida. Mas se pretendiam ficar, então ele não poderia estragar a caçada nem que quisesse, certo? Ayla recomeçou a dar golpes na madeira. A coisa estava ficando complicada. Eles tinham matado a vaca, apesar de Lobo... e graças a ele, também, de modo que era correto usar a cabana. Talvez tivessem sido guiados até aquele lugar, afinal, concluiu ela.

De súbito Jondalar apareceu. Tentou tomar-lhe a machadinha.

—    Por que você não procura outra árvore e me deixa acabar com esta? — disse ele.

Ayla resistiu-lhe, mas sem raiva.

—    Eu disse que levaria a vaca para o acampamento. Posso fazê-lo sem sua ajuda.

—    Sei que pode. Pois não me levou, sozinha, para a sua caverna no vale? Mas se trabalharmos juntos, você terá a sua madeira muito mais depressa — disse ele. Depois acrescentou: — Ah, tenho de admitir que você estava certa. Lobo ajudou.

Ayla parou no meio de um golpe e olhou para ele. Sua fronte mostrava preocupação, mas os expressivos olhos azuis tinham uma expressão ambígua. Apesar de não entender muito bem as reservas dele com relação a Lobo, o ardente amor que tinha por ela era visível nos seus olhos, também. Sentiu-se atraída pelos olhos, pelo másculo magnetismo de sua simples presença, pelo fascínio que Jondalar emanava, de que ele não se dava conta direito, e cuja força ele nem imaginava. E sentiu que a resistência dela evaporava.

— Você também está certo — respondeu, contrita. — Ele os espantou antes que estivéssemos prontos, e poderia ter arruinado a caçada.

As rugas desapareceram da testa de Jondalar, e ele sorriu, aliviado.

— Nós dois temos razão, portanto — disse Jondalar.

Ela sorriu de volta, e no momento seguinte eles estavam nos braços um do outro, e Jondalar beijou-a com desejo. Deixaram-se ficar assim, abraçados, satisfeitos com o fim da discussão, querendo anular a distância espiritual que se criara entre eles com aquela proximidade física.

Quando cessaram de demonstrar seu férvido alívio, continuaram enlaçados por mais algum tempo. Então Ayla disse:

— Estou convencida de que Lobo pode aprender a caçar conosco. Temos só de ensiná-lo.

— Não sei. É possível. Mas como ele vai viajar conosco, acho que você deveria ensinar-lhe tudo o que ele for capaz de assimilar. Só assim ele passará a não mais interferir quando estivermos caçando.

— Você poderia fazer a mesma coisa. Assim, ele obedecerá a nós dois.

— Duvido que ele me dê atenção — disse ele. E vendo que ia discordar, acrescentou logo que, se ela assim o desejasse, ele tentaria. Depois tomou-lhe a machadinha de pedra das mãos e decidiu arriscar um comentário sobre a outra ideia que ela mencionara.

— Você disse qualquer coisa sobre usar sinais do Clã quando não quisermos gritar. Isso pode ser muito útil.

Ayla olhou em volta, procurando outra árvore de forma e tamanho apropriados. Mas agora sorria.

Jondalar examinou a árvore que ela estava procurando derrubar para avaliar se ainda demoraria muito tempo para acabar o serviço. Era difícil cortar madeira dura com machadinha de pedra. O sílex quebradiço a cabeça da machadinha tinha de ser deixado grosso ou poderia partir-se facilmente com a força do impacto, e um golpe com ele não cortava fundo, apenas tirava lascas, e a árvore parecia mais roída e mordida do que cortada. Ayla ouvia o ritmado som de pedra contra madeira enquanto estudava com cuidado as árvores do capão. Ao encontrar uma que lhe pareceu boa, marcou-lhe a casca e saiu em busca de uma terceira.

Quando as três árvores necessárias estavam no chão, Ayla e Jondalar arrastaram-nas para a clareira. Com a machadinha e facas pelaram os galhos, cortaram-nos e deixaram-nos alinhados no chão. Ayla comparou-os, marcou-os, depois cortou os que escolhera de igual tamanho. Enquanto Jondalar removia os órgãos internos do auroque, ela foi até o acampamento apanhar cordas e um dispositivo que fizera de correias de couro e tiras trançadas. Levou também consigo um dos tapetes rasgados do chão quando voltou à clareira, depois chamou Huiin e ajustou nela aqueles arreios especiais.

Usando duas das longas varas — a terceira só era necessária para a trípode que ela usava para pôr suas reservas de alimento fora do alcance de animais famintos —, atou as extremidades mais estreitas ao arnês que pusera na égua, cruzando-as por cima das cestas de comida seca e defumada. As pontas pesadas ficaram arrastando no chão, uma de cada lado do animal. Prenderam com cordas o tapete de palha nos varais mais espaçados do trenó, junto ao solo, e prenderam nele cordas sobressalentes para amarrar o auroque.

Considerando o tamanho da gigantesca vaca, Ayla temeu que fosse pesada demais mesmo para sua égua robusta das estepes. Ela e Jondalar tiveram de fazer grande esforço para içar a carga. O tapete era frágil e oferecia base mínima de apoio, mas amarrando a carcaça diretamente às varas ela não arrastaria no chão. Depois de fazer tanta força, Ayla se convenceu ainda mais de que o peso seria excessivo para Huiin, e quase mudou de ideia. Jondalar já removera as entranhas. Talvez pudessem tirar também o couro ali mesmo e retalhar o auroque em peças mais fáceis de transportar. A mulher já não sentia a necessidade de provar ao homem que era capaz de levar a presa sozinha para o acampamento, mas, com estava no trenó, Huiin poderia pelo menos tentar puxá-la.

Ficou surpresa quando a égua começou a fazer isso, apesar do terreno acidentado, e Jondalar ainda mais que ela. O auroque era maior e mais pesado que Huiin, e arrastá-lo era um esforço, mas o peso recaía na maior parte nos varais que arrastavam no solo, e por isso era suportável. O aclive foi o mais difícil, mas a égua conseguiu vencê-lo. No terreno desigual de qualquer superfície natural, o trenó era, de longe, o mais eficiente veículo para o transporte de cargas.

Fora uma invenção de Ayla, resultado da necessidade e da oportunidade, era um rasgo de intuição. Vivendo só, sem quem a ajudasse, muitas vezes tinha de mover coisas pesadas, que não podia nem carregar nem arrastar sozinha — como um animal adulto, inteiro —, e se via obrigada a dividi-lo em pesos menores, tendo sempre de pensar como proteger o que ficava para trás dos animais à procura de comida. Só a égua que criara poderia ser de algum auxílio. E ela possuía a vantagem de um cérebro capaz de reconhecer essa possibilidade e de inventar os meios de torná-la realidade.

Uma vez alcançado o acampamento, ela e Jondalar desataram o auroque e depois de palavras de afeto e agradecimento a Huiin, levaram a égua de volta para apanhar as entranhas. Elas também lhes seriam úteis. Na clareira, Jondalar apanhou sua lança quebrada. A ponta continuava enterrada na carcaça. A parte da frente estalara. Mas a parte de trás, mais longa, permanecia inteira. Talvez pudesse servir ainda para alguma coisa, pensou ele, levando-a consigo.

De volta ao acampamento, removeram o arnês de Huiin. Lobo rondava as vísceras. Era louco por fressura. Ayla hesitou um momento. Poderia usar as entranhas para fazer uma reserva de gordura ou para deixar coisas à prova d'água. Mas não era possível transportar com eles muito mais do que já levavam.

Por que seria que pelo simples fato de terem cavalos e poderem carregar mais achavam que precisavam mais? Lembrava-se de que quando deixou o Clã, a pé, tudo aquilo de que precisava ia numa cesta às suas costas. É verdade que a barraca deles era muito mais confortável que o pequeno abrigo de couro que ela usava então. Tinham mudas de roupas, roupas de inverno que não estavam usando, mais comida, utensílios, e... Ela jamais seria capaz de levar tudo às costas, agora.

Deu, por isso, os intestinos, úteis mas no momento desnecessários, a Lobo, e ela e Jondalar se puseram a retalhar a carne de vaca. Depois de várias incisões cirúrgicas, começaram a puxar o couro, processo muito mais eficiente que esfolar com uma faca. Empregaram só um instrumento afiado para cortar alguns pontos de junção. Com pouco esforço, a membrana entre pele e músculo se soltava, e acabaram com um belo couro em que só havia os dois orifícios das pontas de lança. Um couro perfeito. Enrolaram-no para que não secasse depressa demais, e puseram a cabeça de lado. A língua e os miolos eram saborosos, e planejavam prepará-los naquela mesma noite. Quanto à caveira, com seus enormes chifres, deixariam para o Acampamento. Poderia ter um significado especial para alguém. Se não, continha muitas partes úteis.

Em seguida, Ayla levou o estômago e a bexiga até o riacho perto do Acampamento para lavá-los, e Jondalar desceu até o rio em busca de galhos e árvores finas que ele pudesse vergar para fazer uma armação arredondada para o pequeno barco. Também procuraram galhos caídos e madeira flutuante. Precisavam acender do lado de fora diversas fogueiras para manter afastados animais e insetos atraídos pela carne, bem como uma fogueira do lado de dentro, para combater o frio da noite.

Trabalharam até o escurecer, dividindo a vaca em diversos segmentos, depois cortando a carne em pequenos pedaços alongados como a língua e botando-os a secar em grades improvisadas com a galharia cortada. Mas o serviço não estava ainda acabado. Levaram as grades para dentro de casa. A barraca estava ainda úmida, mas foi também guardada. No dia seguinte, ela seria estendida de novo quando levassem a carne para acabar de secar, exposta ao vento e ao sol.

De manhã, quando acabaram de cortar a carne, Jondalar começou a fazer o barco. Empregando ao mesmo tempo vapor e pedras aquecidas no fogo, ele vergou a madeira para a armação da embarcação. Ayla se interessou pelo processo e quis saber onde ele aprendera a fazer aquilo.

— Meu irmão Thonolan era armeiro: fazia lanças — explicou Jondalar, forçando para baixo a ponta de um galho reto que envergara para amarrá-la a uma seção circular com um fio feito do tendão das pernas traseiras do auroque.

—    Mas o que tem a ver a fabricação de lanças com a de barcos?

—    Thonolan sabia fazer uma haste de lança perfeitamente reta e exata. Mas para saber como tirar a curvatura de um pedaço de pau você tem de saber primeiro como envergar a madeira, e ele sabia fazer isso também à perfeição. Era muito melhor nisso do que eu. Tinha jeito. Seu oficio não era só fazer lanças, mas trabalhar a madeira. Thonolan fazia os melhores sapatos de neve, e isso significa pegar um galho reto ou qualquer árvore delgada e encurvar a madeira completamente. Talvez por isso ele se sentisse tão à vontade entre os Xaramudói. Esses eram verdadeiros especialistas. Usavam água quente e vapor d'água para moldar seus dugouts da forma que queriam.

—    E o que é um dugoutl — perguntou Ayla.

—    É um barco escavado de um lenho só. A proa e a popa são afinadas em ponta. Ele desliza tão macio na água que é como se estivesse cortando com uma faca afiada. São belos barcos os dugouts. Este que estamos fazendo é grosseiro em comparação, mas não temos árvores de maior porte por aqui. Bonitos dugouts você verá quando chegarmos às terras dos Xaramudói.

—    E quanto tempo falta para isso?

— Muito tempo ainda. Eles estão além daquelas montanhas — disse ele, olhando no rumo do ocidente para os altos picos indistintos na neblina do verão.

— Oh — fez ela, desapontada. — Esperava que não fosse tão longe. Seria agradável encontrar gente. Gostaria que houvesse alguém aqui, neste acampamento. Talvez os habitantes voltem, antes de partirmos.

Jondalar percebeu uma nota de desejo na voz dela.

— Você está com saudades de ver gente? Viveu tanto tempo só no seu vale. Pensei que estivesse acostumada.

— Talvez seja por isso mesmo. Vivi muito tempo sozinha. Não me importo hoje com a solidão por algum tempo, mas não encontramos ninguém nunca — disse ela, encarando-o. — Fico tão feliz de ter você comigo, Jondalar! Seria muito triste sem você.

— Também estou feliz, Ayla. Feliz por não ter de fazer esta viagem sozinho, mais feliz ainda do que seria capaz de dizer por ter a sua companhia. Eu também conto os dias de ver gente. Quando alcançarmos o Rio da Grande Mãe encontraremos alguém por perto. As pessoas gostam de viver perto da água, junto de rios e lagos, e não em campo aberto.

Ayla concordou, depois segurou a ponta de outra árvore pequena que estivera aquecendo por cima de pedra e vapor. Jondalar a encurvou, com cuidado, e Ayla o ajudou a amarrá-la às outras. A julgar pelo tamanho da embarcação que ele armava, precisariam do couro inteiro do auroque para cobri-lo. Não sobrariam mais que umas aparas, que não dariam para confeccionar um novo guardador de comidas de couro cru como o que ela perdera na inundação. Precisavam de uma canoa, porém, para atravessar o rio, e tinha de pensar em outro material que pudesse usar. Talvez uma cesta servisse, pensou, desde que de trançado bem miúdo, alongado e chata, com tampa. Havia nas vizinhanças muita tábua e caniços, que serviam para cestaria, mas uma cesta daria certo?

O problema com carne fresca era que o sangue continuava a pingar por algum tempo. E por mais bem trançada que fosse a cesta, acabaria por vazar. Era por isso que couro cru e grosso funcionava tão bem. Absorvia o sangue, mas bem devagar, e não vazava nunca, e depois de um certo período de uso, podia ser lavado e posto de novo para secar. Precisava de algo que fizesse a mesma coisa. Cumpria dar tratos à bola.

Esse problema de substituir a bolsa de couro cru perdida ficou martelando na cabeça de Ayla, e quando a armação de canoa ficou pronta e foi deixada ao sol para que a fibra animal secasse até ficar dura e firme, Avia desceu até o rio a fim de colher material para a sua cesta. Jondalar a acompanhou, mas só até as bétulas. Uma vez que estava trabalhando com madeira, resolveu fazer também algumas lanças para substituir as que estavam perdidas ou quebradas.

Wymez lhe dera algumas boas peças de sílex quando ele se despedira, alisadas sumariamente e pré-formadas, de modo a poderem ser acabadas como Jondalar quisesse. Ele havia feito as antigas, de ponta de osso, antes que deixassem a Reunião de Verão, para demonstrar como se fabricavam. Eram típicos exemplares das que seu povo usava, mas ele aprendera como fazer lanças como os Mamutói, de ponta de sílex. E como era muito hábil no trabalho da pedra, essas eram mais fáceis de fazer para ele do que as outras, para as quais precisava conformar e polir pontas de osso.

À tarde, Ayla começou a tecer a cesta destinada a guardar carne. Quando tinha vivido no vale passara muitas longas noites de inverno tecendo cestos e esteiras, entre outras coisas, e sabia fazê-lo com rapidez e destreza. Era capaz de tecer no escuro, e a cesta para a carne ficou pronta antes da hora de ir para a cama. Estava muito bem-feita, a forma e as dimensões tinham sido cuidadosamente calculadas, bem como o material e tipo de trançado. Mesmo assim, ela não estava de todo satisfeita com o resultado obtido.

Saiu. Já escurecia, mas precisava trocar sua lã absorvente e lavar no regato a peça que estava usando entre as pernas. Depois, botou-a para secar junto do fogo e longe dos olhos de Jondalar. Em seguida, sem olhar para ele, deitou-se ao lado dele nas peles que usavam como leito. As mulheres do Clã aprendiam que deviam evitar homens tanto quanto possível quando estavam com as regras, e jamais olharem para eles diretamente. Os homens do Clã ficavam muito nervosos quando tinham de conviver com mulheres menstruadas, e ela se surpreendia ao ver que Jondalar não dava importância àquilo. Mesmo assim, sentia-se pouco à vontade com ele, e fazia o possível para cuidar-se sem chamar a atenção.

Jondalar sempre tivera a maior consideração com ela quando de lua, percebendo o desconforto em que ela estava. Mas uma vez na cama, inclinou-se para beijá-la. Ayla conservou os olhos fechados, mas correspondeu-lhe com ardor. E quando ele rolou de volta para o seu lugar, e ficaram os dois, lado a lado, contemplando o jogo das sombras nas paredes e teto da confortável estrutura que os abrigava, conversaram, embora ela tivesse o cuidado de não olhar para ele.

— Eu gostaria de impermeabilizar aquele couro depois de montado na armação — disse ele. — Se eu ferver os cascos e as aparas do próprio couro, e mais alguns ossos por muito tempo, obtenho uma espécie de caldo grosso pegajoso que endurece ao secar. Temos alguma coisa que eu possa usar para isso?

— Estou certa que podemos arranjar algo. Tem de cozinhar muito tempo?

— Tem. Senão não engrossa.

— Então, seria melhor diretamente no fogo, como uma sopa...talvez em cima de um pedaço de couro. Temos de vigiar o processo, juntando água quando necessário. Enquanto estiver molhado, o couro não queima. Espere... Que tal o estômago maior deste auroque? Eu o tenho mantido com água dentro para não secar, e poder usá-lo para cozinhar e lavar roupa, mas dá uma excelente bolsa para cozinhar — disse Ayla.

— Acho que não, Ayla. Não podemos ficar pondo água, precisamos da sopa bem grossa.

— Nesse caso, uma cesta estanque e pedras quentes seriam o ideal. Posso fazer uma, de manhã — disse Ayla. E embora ficasse quieta, e imóvel, sua mente não a deixou dormir. Ficou pensando que havia um modo melhor de ferver a mistura que Jondalar desejava, mas não conseguia lembrar-se bem como era. Estava quase adormecendo quando se lembrou.

— Jondalar! Agora me lembro.

Ele, que já cochilava, despertou e inquiriu:

—    Como? O que foi?

— Nada de errado. Só que me lembrei de como Nezzie clarificava gordura. Acho que é a melhor maneira de derreter esse troço que você quer bem espesso. Você faz um buraco no chão, na forma de uma tigela, e forra-o de couro. Devemos ter um pedaço de couro deste auroque que dê para isso. Quebra alguns ossos, põe os pedaços no fundo, e o mais que lhes deseje acrescentar. Pode fervê-lo pelo tempo necessário se ficarmos esquentando pedras. Os pedaços de osso impedirão que as pedras quentes encostem no couro e venham a perfurá-lo.

— Muito bem, Ayla. Pois é o que faremos — disse Jondalar, ainda sonolento. E rolou para o outro lado. Logo estava roncando.

Mas havia ainda alguma coisa na mente de Ayla que a impedia de conciliar o sono. Havia planejado reservar o rume do auroque para que os moradores do Acampamento o usassem como bolsa d'água quando se fossem, mas era necessário conservá-lo molhado. Uma vez seco, endureceria e não voltaria mais à sua condição original, elástica, e quase impermeável. Mesmo se o enchesse, a água acabaria por ressudar, e ela não sabia quando aquela gente voltaria.

De repente a solução lhe ocorreu. Esteve a ponto de gritar outra vez, mas se conteve a tempo. Jondalar estava dormindo, e não queria acordá-lo Deixaria que o estômago da vaca secasse e o empregaria como forro para o seu novo guarda-comida, modelando-o enquanto estava ainda fresco de modo a ajustar-se perfeitamente à cesta. Quando, afinal, adormeceu, na cabana escurecida, estava contente por haver encontrado solução para aquele problema que a afligia tanto.

Nos dias seguintes, enquanto a carne secava, os dois estavam muito ocupados. Acabaram de fazer a canoa e a revestiram com a cola que Jondalar fizera cozinhando cascos, osso e pedaços de couro. Enquanto secava, Avia fez cestas para a carne que iam deixar de presente para os donos do Acampamento, para cozinhar, em substituição à que se perdera; e para recolher plantas. Algumas dessas ela deixaria para trás. Recolheu também verduras e plantas medicinais, secando algumas para a viagem.

Jondalar a acompanhou um dia à procura de alguma coisa a fim de fazer remos para o barco. Logo encontrou a caveira de um veado gigante que morrera antes de trocar as grandes aspas palmadas, o que lhe deu duas de tamanho igual. Embora fosse ainda cedo, ficou com Ayla pelo resto da manhã. Estava aprendendo a identificar alimentos com ela, e, fazendo-o, começava a entender o quanto Ayla sabia. Seu conhecimento de plantas e sua memória quanto ao uso delas eram incríveis. Quando regressaram ao Acampamento, Jondalar aparou os galhos dos grandes chifres largos e fixou-os em pedaços de madeira fortes e curtos, obtendo remos muito satisfatórios.

No dia seguinte, decidiu usar a parafernália que construíra para curvar a madeira para a armação do barco e endireitar com ela hastes para as novas lanças. Levou tempo para formá-las e alisá-las: a maior parte de dois dias, mesmo com as ferramentas especiais que ele levava, num rolo de couro atado com tiras também de couro. Mas enquanto se ocupava com essas tarefas, Jondalar via, cada vez que passava pelo lado da cabana, onde a havia jogado, a haste quebrada que ele trouxera do vale e se enraivecia. Era uma vergonha que não pudesse aproveitar aquela haste reta, a não ser fazendo um chuço retaco e desproporcionado com ela. Qualquer das lanças que estava fazendo com tanto trabalho podia partir-se tão facilmente quanto aquela.

Quando se deu por satisfeito — as novas lanças cortariam o ar tão bem quanto as antigas —, ele usou mais um dos seus instrumentos, uma lâmina estreita de sílex com uma ponta semelhante a um formão e cabo de chifre para fazer um entalhe profundo na base das hastes. Então, com os nódulos de sílex, preparou novas lâminas e fixou-as às hastes com a cola grossa que fizera para o barco e tendões frescos da vaca. Esses tendões encolhiam quando secavam, fazendo uma ligação sólida e confiável. Completou a obra afixando em cada lança um par de penas compridas, achadas à beira do rio. Eram das muitas aves da região — águias de rabo branco, facões, milhafres negros —, que se alimentavam de esquilos e outros pequenos roedores.

Tinham erguido um alvo, usando uma espécie de colchão de capim, grosso, mas sem utilidade — um texugo o rasgara. Reforçando o recheio com aparas do couro da vaca, o alvo ficou capaz de absorver o impacto de uma lança sem danificá-la. Tanto Jondalar quanto Ayla praticavam diariamente. Ayla o fazia para conservar a pontaria, mas Jondalar experimentava com diferentes tipos de ponta e tamanhos de haste, para ver quais as que funcionavam melhor com o arremessador.

Quando as novas lanças ficaram secas e puderam ser consideradas prontas, ele e Ayla foram para o seu estande improvisado, a fim de testa-las e escolher, cada um, as que preferisse. Embora fossem peritos com aquele tipo de arma, várias das lanças erravam o alvo e caíam por terra, inofensivamente. Mas quando Jondalar lançou uma das novas com toda a força, e ela não só errou o alvo mas atingiu um grande osso de mamute que era usado como banco ao ar livre, ele levou um susto. A lança estalou, infletiu, caiu para trás. Ela se partira num ponto fraco, bem perto da ponta.

Quando ele a examinou detidamente, viu que a ponta de sílex, frágil afinal de contas, lascara de um lado, de alto a baixo, ficando assimétrica e imprestável. Jondalar ficou furioso consigo mesmo, por estragar uma lança que lhe custara tanto tempo e esforço, antes mesmo que tivesse servido para alguma coisa. Tomado de raiva, ele pôs a haste contra o joelho e quebrou-a em duas.

Quando ergueu os olhos, viu que Ayla o observava, e voltou-lhe as costas, envergonhado por haver perdido a cabeça. Depois se abaixou, pegou as duas partes da lança, desejando dar-lhes sumiço discretamente. Quando olhou de novo, Ayla se preparava para um novo arremesso, como se não tivesse visto nada. Jondalar foi para a cabana e deixou cair a lança quebrada junto da haste que se partira na caçada. Depois ficou a contemplar as três peças perdidas. Sentia-se como um tolo. Era ridículo ficar tão irritado por motivo tão insignificante.

Mas fazer uma lança nova demandava trabalho, pensou. Era uma lástima que aquelas peças não pudessem ser juntadas para fazer uma lança inteira.

E se pudessem? Apanhou os dois pedaços da lança que ele mesmo tinha quebrado e examinou em cada um a extremidade partida. Depois as juntou. As duas seções ajustaram-se perfeitamente, mas logo se soltaram de novo. Olhando então a outra haste, inteira, mas sem ponta, notou a endentação que fizera na base para acomodar o gancho do arremessador, depois a inverteu para ver a extremidade quebrada.

Se eu escavasse mais fundo deste lado da haste e afinasse a outra extremidade da peça que tem a ponta de sílex lascada e juntasse uma à outra, elas se manteriam unidas? Excitado com a ideia, Jondalar foi buscar na cabana o seu rolo de couro. Sentado no chão, abriu-o, deixando à mostra a variedade de ferramentas de sílex, feitas com tanto cuidado. Escolheu formão. Depositando-o no solo, a seu lado, tirou a faca de sílex da bainha, no seu cinto, e começou a cortar fora as lascas para fazer extremidade lisa.

Ayla cessara de praticar arremessos e pusera suas lanças no carcás que adaptara para usar às costas, puxando para um ombro, como Jondalar fazia. Ela vinha para a cabana trazendo algumas plantas que arrancara com raiz e tudo, e Jondalar foi ao seu encontro com um grande sorriso na face.

Veja, Ayla! — disse, mostrando-lhe a lança. A peça que tinha a ponta lascada estava encaixada agora na extremidade da outra haste, inteira. — Consertei a lança! Agora só falta ver se funciona.

Ela o acompanhou até o alvo e ficou a observá-lo. Jondalar pôs a lança no arremessador, fez mira, depois atirou-a com força. A longa lança acertou o alvo e caiu para trás. Mas quando Jondalar foi conferir, viu que a ponta estava enterrada firmemente no alvo. Com o impacto, a haste se soltara e caíra. Mas quando ele foi verificar, estava intacta. A lança em duas peças funcionava.

— Ayla! Percebe o que isso significa? — Jondalar falava alto, de tanta excitação.

—    Não tenho certeza — disse ela.

—    Veja, a ponta encontrou o alvo, depois se separou da haste sem quebrar. Isso significa que tudo o que tenho de fazer da próxima vez é uma nova ponta e prendê-la a uma haste curta, como esta aqui. Não tenho de fazer um cabo comprido, uma nova haste inteira. Posso fazer duas pontas como esta, várias pontas, a rigor, e só precisarei de poucas hastes. Podemos levar conosco maior número de hastes curtas, com ponta, e menor número de hastes longas. Se perdermos uma, não será tão difícil substituí-la. Aqui, experimente — disse, desprendendo a ponta do alvo.

Ayla a examinou.

—    Não sou bastante hábil para fazer uma haste comprida e reta, e minhas pontas não ficam tão bonitas quanto as suas. Mas uma destas até eu sou capaz de fazer, acho.

Estava tão excitada agora quanto Jondalar.

Na véspera da partida, verificaram se haviam consertado bem os estragos do texugo, puseram a pele do animal à vista, para que ficasse óbvio ter sido ele o autor da destruição, e ofereceram seus presentes: a cesta de carne-seca foi dependurada de um caibro do telhado, de osso de mamute, para dificultar a ação de possíveis predadores. Ayla dispôs em torno as demais cestas, e deixou suspensas também nos caibros vários molhos de ervas medicinais secas e plantas alimentícias, principalmente as de uso corrente entre os Mamutói. Jondalar deixou para o dono da cabana uma lança nova e especialmente bem-feita.

Montaram ainda a caveira parcialmente seca do auroque, com seus chifres imensos, num poste na frente da casa, bem alto para que animais carniceiros não a viessem atacar. Os chifres e outras partes ósseas da cabeça podiam ter diferentes usos, e a caveira servia também para explicar que espécie de carne havia na cesta.

Lobo e os cavalos pareciam sentir no ar a mudança iminente. Lobo saltava à volta deles, cheio de animação, e os cavalos pareciam desassossega dos. Racer, principalmente, pois dava corridas curtas. Já Huiin ficava mais perto do Acampamento, vigiando Ayla e relinchando quando ela aparecia.

Antes de dormir, os dois arrumaram as coisas para a viagem, empacotando tudo, exceto os rolos de dormir e o necessário para uma refeição frugal ao amanhecer. Incluíram na cesta a barraca já seca, embora difícil de dobrar e muito volumosa. O couro fora defumado antes de ser convertido em tenda, de modo que, depois de bem molhado, permaneceria razoavelmente flexível. Mas a barraca estava ainda tesa. Ficaria mis flexível com o uso.

Na sua última noite no conforto da cabana, vendo a luz bruxuleante do fogo que morria dançando nas paredes, Ayla sentia as emoções passarem rapidamente pela sua mente, num jogo semelhante de brilho e sombra. Estava aflita por continuar a viagem, mas triste também por deixar um lugar que se tornara para eles como um lar — só que deserto de pessoas. Nos últimos dias, ela se dava conta de que muitas vezes espreitara do alto da colina a ver se os habitantes do lugar voltavam antes que os dois se fossem.

Desejando ainda que isso acontecesse inesperadamente, ela já perdera de todo a esperança de encontrar gente. Talvez na altura do Rio da Grande Mãe. Talvez no caminho para lá. Ayla adorava Jondalar, mas queria encontrar mulheres, crianças, velhos, para rir, conversar, conviver com pessoas da sua espécie. Não queria, porém, pensar à frente, só no dia seguinte, ou no Acampamento seguinte. Não queria pensar no povo de Jondalar ou na distância que tinham ainda de cobrir para chega lá, e não queria também encarar a necessidade de atravessar aquele rio tão veloz e caudaloso num frágil bote redondo.

Jondalar também não dormia. Preocupado com a Viagem deles, aflito para pôr-se a caminho, mas contente com os resultados daquela estada ali. Tinham reposto o equipamento perdido ou danificado, sua barraca estava seca, e ele se rejubilava com a invenção da lança em duas seções. Estava satisfeito com a construção da canoa, mas temia, mesmo assim, a travessia do rio. Era largo e veloz. Não estariam muito longe do mar, e era improvável que o rio diminuísse de porte. Tudo podia acontece. Só estaria tranquilo quando se vissem na outra margem.

 

Ayla acordou muitas vezes durante a noite, e já estava de olhos abertos quando a primeira claridade da manhã se insinuou através do orifício do teto por onde saía a fumaça e estendeu os dedos finos nos cantos escuros para dissipar a treva e retirar as formas escondidas da sombra em que se dissimulavam. Quando a escuridão ficou reduzida a um vago crepúsculo, ela acordara de todo e não seria mais capaz de dormir.

Afastando-se com jeito do calor de Jondalar, saiu. O frio da noite envolveu sua pele nua e, com a sugestão das maciças camadas de gelo do norte, deixou-a toda arrepiada. Olhando para além do vale do rio, que a cerração velava, pôde entrever as vagas formações da terra ainda escura da margem oposta, projetada em silhueta contra o céu incandescente. Quisera estar lá.

Um pêlo quente e áspero se esfregou na sua perna. Distraída, ela afagou e coçou a cabeça do lobo que surgira a seu lado. Ele cheirou o ar e tendo encontrado alguma coisa interessante, precipitou-se declive abaixo. Ela procurou ver os cavalos e conseguiu distinguir a pelagem amarelada da égua que pastava junto da água. O cavalo, castanho-escuro, não era visível, mas Ayla tinha certeza que ele andava por perto.

Tiritando, caminhou pelo capim molhado até o pequeno riacho e percebeu o dia nascendo no oriente. Ficou olhando o céu do outro lado, vendo-o passar de gris a azul, um azul pastel, contra o qual passavam nuvens cor-de-rosa, refletindo a glória do sol da manhã, oculto ainda pela corcova da colina.

Ayla se sentiu tentada a andar mais um pouco para vê-lo, mas se deteve, contida por um brilho ofuscante da direção oposta. Embora os taludes rasgados de sulcos profundos da outra margem do rio estivessem ainda envoltos num cinza uniforme e sombrio, as montanhas mais afastadas, para aquele lado, do poente, banhadas na luz clara do sol do novo dia, apareciam em nítido relevo como que gravadas em água-forte e com tal detalhe que pareciam curiosamente próximas. Para Ayla, era como se lhe bastasse avançar a mão para tocá-las. Coroando a cadeia de montanhas mais baixa, para o sul, os picos cobertos de gelo formavam uma tiara resplandescente. Ela ficou a contemplar, encantada, aquelas mudanças de feição e de cor, assombrada com a magnificência do outro lado da aurora.

Quando chegou à pequenina corrente de água cristalina que se lançava, aos saltos, colina abaixo, já não mais sentia o frio da manhã. Colocou na margem a bolsa de água que trouxera e, verificando o estado da sua lã, viu que o período parecia terminado. Isso a alegrou. Desatou as tiras, retirou pela cabeça o amuleto, e entrou naquela rasa piscina natural para lavar-se. Quando acabou, encheu a bolsa de água na cascata que caía na pequena pressão da piscina natural, e saiu, tirando a água do corpo primeiro com uma das mãos depois com a outra. Pôs de volta o amuleto em torno do pescoço, apanhou a lã que lavara e as tiras, e foi correndo para casa.

Jondalar acabava de atar as peles de dormir em rolo quando ela entrou no abrigo onde tinham vivido todos aqueles dias. Ele ergueu os olhos do que fazia e sorriu-lhe. Notando que ela já não usava suas tiras de couro, o sorriso se fez sugestivo.

—    Talvez eu não devesse ter guardado nossas peles de dormir tão depressa esta manhã — disse.

Ayla ficou ruborizada vendo que ele havia percebido que suas regras tinham acabado. Depois olhou diretamente os olhos dele, cheios de riso bem-humorado, amor, e uma semente de desejo, e sorriu de volta.

—    Você pode sempre desenrolar tudo de novo.

—    Lá se vão meus planos de partir bem cedo — disse, puxando uma ponta da correia, a fim de desmanchar o nó das peles de dormir. Ele, as estendeu por terra e permaneceu de pé. Ayla foi ao seu encontro.

Depois da refeição da manhã, levaram algum tempo com os últimos preparativos. Reunindo tudo o que tinham, e a canoa, caminharam declive abaixo para o rio, com seus três companheiros de viagem — Racer, Huiin e Lobo. Difícil era decidir qual a melhor maneira de fazer a travessia. Ficaram olhando o volume de água que passava com força, tão larga que os pormenores da barranca do outro lado eram difíceis de ver. Com uma correnteza veloz, que se enroscava sobre si mesma, com redemoinhos e corredeiras, e pequenas ondulações transitórias, que se formavam e desmanchavam todo o tempo, o ronco do rio profundo era quase mais revelador que seu aspecto. Falava de poder com um bramido surdo e gorgolejante de arrepiar os cabelos.

Enquanto fabricava o bote, Jondalar muitas vezes refletira sobre o rio e de como passar ao outro lado. Jamais fizera um barco ante, e estivera em uns poucos. Aprendera a conduzir, quando vivia com os Xaramudói, as canoas escavadas em troncos que eles usavam, mas quando tentara remar os botes redondos dos Mamutói, achou-os muito desajeitados. Flutuavam bem e dificilmente emborcavam, mas eram difíceis de controlar.

Não só os dois povos tinham materiais diversos à disposição para construir embarcações, mas tinham também diferentes destinações para elas. Os Mamutói eram, sobretudo, caçadores da estepe, do campo aberto. Pescar para eles era uma atividade secundária, ocasional. Seus barcos eram usados principalmente para cruzar rios, desde os pequenos afluentes até os grandes cursos d'água que vinham, continente abaixo, das geleiras do norte para os mares interiores do sul.

Os Ramudói, Povo do Rio, meeiros dos Xaramudói, pescavam no Rio da Grande Mãe — embora se referissem a essa atividade como caça quando o que pescavam era o grande esturjão de nove metros. Quanto aos Xaramudói, caçavam sem maior convicção a camurça e outros animais monteses, que tinham por habitat os altos penhascos e picos debruçados sobre o rio e, perto de casa, davam-se por satisfeitos com o grande desfiladeiro onde moravam. Os Ramudói viviam praticamente no rio durante as estações calmas, aproveitando-se de todos os recursos ribeirinhos, inclusive os frondosos carvalhos sessilifloros que se enfileiravam às suas margens e cuja madeira usavam para fazer barcos, de bela construção e grande maneabilidade.

— Bem, acho que devemos botar tudo dentro — disse Jondalar, apanhando uma das cestas. Mas a deixou de novo no chão e pegou outra. — Talvez seja uma boa ideia pôr as coisas mais pesadas primeiro. Esta aqui tem todo o meu sílex e as minhas ferramentas.

Ayla assentiu com a cabeça. Ela também vinha pensando em como passariam para o outro lado da margem com tudo o que levavam intacto, e procurara antecipar os possíveis problemas da travessia, lembrando as poucas excursões que fizera nos barcos redondos do Acampamento do Leão.

— Devemos ficar, os dois, em lados opostos, para não desequilibrar o bote. Lobo viaja comigo.

Jondalar se perguntava como o animal se portaria numa frágil tigela flutuante como aquela, mas não disse nada. Ayla viu, porém, que ele franzira a testa. Mas também ela se absteve de dizer qualquer coisa.

— Devemos ter um remo cada um — disse Jondalar, dando-lhe um.

— Com toda essa carga, espero que sobre lugar para nós — comentou ela, pondo a barraca no barco e pensando que poderia talvez usá-la como assento.

Ficaram apertados, mas embarcaram tudo, exceto as estacas.

—    Temos de abandoná-las — disse Jondalar. — Não há espaço para elas. É uma pena, pois tinham acabado de substituir as antigas, perdidas.

Ayla sorriu e lhe passou uma corda que tinha deixado de fora.

—    Não temos. Elas flutuarão. Nós as amarraremos ao bote com isto, de modo a não desgarrarem.

Jondalar não estava muito certo de que aquela fosse uma boa ideia, e já preparava uma objeção, quando uma pergunta de Ayla o distraiu.

— O que vamos fazer com os cavalos?

— Os cavalos? Eles podem nadar, não podem?

—    Sim, mas você sabe o quanto eles podem ficar nervosos, principalmente em face de alguma coisa que nunca fizeram antes. E se alguma coisa na água os assustar e eles resolverem voltar? Se fizerem isso, não vão tentar cruzar o rio depois, sozinhos. Sequer saberão que estamos na outra margem. Teríamos de retornar para puxá-los. Então, por que não os puxamos agora? — explicou Ayla.

Ela estava certa. Os cavalos ficariam apreensivos, provavelmente, e tanto poderiam ir para a frente como para trás — pensou Jondalar.

— Mas como poderemos guiá-los de dentro do bote?

Os cavalos complicavam a coisa. Dirigir o barco já era difícil. Como controlar cavalos em pânico ao mesmo tempo? Suas preocupações com a travessia aumentavam.

— Vamos puxá-los pelo cabresto com cordas. Eles virão amarrados ao barco — disse Ayla.

— Não sei... Talvez essa não seja a melhor maneira. Talvez devamos pensar um pouco mais.

— Pensar sobre o quê? — indagou ela, enquanto prendia as três estacas num feixe, que atou na ponta de uma corda presa ao barco. Assim, elas seriam rebocadas. — Não era você que queria partir cedo? — acrescentou, enquanto punha o cabresto em Huiin, passava outra corda por ela, e amarrava a corda ao barco, do lado oposto ao das estacas. Então, de pé ao lado do barco, ela encarou Jondalar. — Estou pronta.

Ele hesitou, depois fez que sim com ar decidido.

—    Muito bem — disse, apanhando o cabresto de Racer e chamado o cavalo. O jovem garanhão levantou a cabeça e protestou com um relincho quando Jondalar tentou passar-lhe as correias por cima da cabeça, mas depois que Jondalar lhe falou e afagou o pescoço, Racer se acalmou. Jondalar prendeu a corda ao barco e olhou para Ayla.

—    Vamos — disse.

Ayla fez sinal a Lobo para que embarcasse. Depois, segurando a cordas para manter o controle dos cavalos, empurraram o bote para a água e pularam dentro.

Desde o começo, tiveram problemas. A forte corrente logo se apoderou do barquinho e o arrastou com ela. Mas os cavalos não estavam preparados para enfrentar o rio. Recuaram juntos, enquanto o barcos seguia, sacudindo-o tão violentamente que ele quase virou. Lobo teve dificuldade em manter-se de pé e ficou olhando a situação, nervoso. Mas a carga era pesada, e isso endireitou o barco. Em contrapartida, fazia-o navegar muito baixo na água. As estacas já boiavam, saltando para acompanhar a corrente.

A força do rio e os gritos de encorajamento de Ayla e Jondalar acabaram por fazer com que os cavalos entrassem na água. Primeiro, Huiin arriscou uma pata. Depois foi a vez de Racer. Como o rio continuasse a puxar, entraram nele e logo estavam nadando. Ayla e Jondalar não tiveram opção senão deixar que o rio os levasse em frente, até que o improvável conjunto de três longas estacas, um barco redondo com um homem, uma mulher, e um lobo assustado, com dois cavalos a reboque, se estabilizou. Ayla e Jondalar pegaram os remos e tentaram mudar de direção, e ir em diagonal para a margem oposta.

Ayla, que se sentava desse lado, não estava habituada a remar. Teve de recomeçar várias vezes até acertar, procurando acompanhar as instruções de Jondalar, que remava vigorosamente, a fim de afastar o bote da margem. Mesmo depois que ela se acostumou e pôde usar o remo em cooperação com ele para dirigir o barco, progrediram muito devagar, com as estacas boiando à frente e os cavalos na esteira, nos olhos estampado o terror de serem arrastados.

Começaram a cruzar o rio, mas lentamente. Os dois viajavam muito mais rápido rio abaixo. Mas à frente, o largo curso d'água, indo rumo do mar pelo terreno em declive, fazia uma acentuada curva para leste. Uma corrente que refluiu de uma ponta arenosa, que se projetava da margem para onde queriam ir, apanhou de lado as estacas, que vogavam à frente deles.

Os compridos troncos de bétula, que iam livres à tona, salvo pelas cordas que os prendiam, giraram e bateram no barco coberto de couro com tanta força que Jondalar temeu tivessem feito um buraco. Eles foram sacudidos, e o barco girou sobre si mesmo, retesando perigosamente as cordas dos cavalos, que relincharam tomados de pânico, engoliram muita água, e tentaram desesperadamente fugir, nadando, mas a corrente inexorável, que puxava o barco a que estavam presos, os levou consigo.

Seus esforços, porém, fizeram com que o barco girasse de novo, o que, por sua vez, deu um puxão nas estacas, que bateram mais uma vez na embarcação. Tudo isso junto — a corrente turbulenta, os safanões no barco sobrecarregado, as colisões abruptas das estacas — fazia com que o barco jogasse e se enchesse de água, o que acrescentava ao peso. Podiam afundar.

Lobo, apavorado, se encolhia, o rabo entre as pernas, junto de Ayla na barraca dobrada. Ela procurava freneticamente firmar o barco com o remo, sem saber como controlá-lo. Jondalar continuava a dar-lhe instruções, mas ela não sabia como obedecer-lhe. O relincho dos cavalos chamou-lhe a atenção. Vendo o medo de que estavam possuídos, compreendeu que tinha de soltá-los. Deixando então o remo no fundo do barco, pegou a faca que tinha à cinta e sabendo que Racer era o mais excitado dos dois cortou sua corda primeiro, sem maior esforço, porque a lâmina de sílex era afiada.

A libertação do cavalo produziu mais solavancos e rodopios. Lobo não aguentou: pulou na água. Ayla o viu nadar com força. Cortou, então, depressa, a corda de Huiin, e saltou atrás dele.

— Ayla! — gritou Jondalar, mas logo se viu a girar outra vez. O barquinho, leve e agora mais livre, começou a rodopiar sobre si mesmo e a bater com estrépito nas estacas. Quando ele conseguiu olhar, Ayla procurava abrir caminho de volta ao barco, encorajando o lobo, que nadava em sua direção, a segui-la. Huiin e, à frente dela, Racer, já iam para a margem remota, e a correnteza o puxava cada vez mais veloz rio abaixo, para longe de Ayla.

Ela olhou para trás e teve uma última visão de Jondalar e do barco quando os dois viraram a curva do rio, e sentiu um segundo de pavor como se o coração parasse: o medo de nunca mais o ver. O pensamento de que não devia ter deixado o barco lhe passou pela cabeça, mas isso não adiantava agora, nem tinha tempo de se demorar nisso no momento. O lobo vinha chegando, lutando contra a corrente. Ayla avançou para ele com algumas braçadas. Mas quando o alcançou, o animal tentou pôr-lhe as patas no ombro e lamber-lhe o rosto. Mas na sua ansiedade fez com que ela afundasse. Ayla veio à tona cuspindo, engasgada, prendeu-o com um braço, e procurou ver os cavalos.

A égua nadava no rumo da margem, afastando-se de onde ela mesma estava. Ayla respirou fundo e soltou um assobio, alto e demorado. A égua endireitou as orelhas e se voltou para a direção de onde vinha o som. Ayla assobiou de novo, e a égua mudou de direção, procurando alcançá-la. Ayla ao mesmo tempo, nadou para o animal com fortes braçadas. Nadava muito bem. Indo, agora em geral, com a corrente, se bem que em diagonal, só com esforço conseguiu chegar até Huiin. Quando a alcançou, quase chorou de alívio. O lobo se aproximou, mas continuou em frente.

Ayla descansou um momento, agarrada à crina de Huiin, e só então se deu conta de como a água estava fria. Viu, então, a corda, ainda presa ao cabresto, e lhe ocorreu como seria perigoso para o animal se ela se prendesse a algum entulho flutuante. Levou algum tempo desatando o nó, que inchara, e ela tinha os dedos duros de frio. Procurou, então, nadar de novo, para não sacrificar ainda mais o animal, e na esperança de que o exercício a aquecesse.

Quando, por fim, alcançaram a margem, ela saiu da água exausta, tiritante, e se deixou cair por terra. O lobo e a égua pareciam em melhor estado. Os dois se sacudiram, jogando água em torno, depois Lobo se deitou, arfando. Os pêlos compridos de Huiin já eram densos no verão, embora ficassem ainda mais espessos no inverno, quando a lã protetora crescia. Ela ficara de pé, com as pernas bem afastadas e o corpo tremendo, cabeça baixa e orelhas caídas.

Mas o sol do verão ia alto no céu, o dia esquentara, e uma vez descansada, Ayla parou de tremer. Levantou-se, e procurou por Racer, certa de que, se haviam conseguido atravessar o rio, ele também fora bem-sucedido. Assobiou. Primeiro, seu assobio especial para Huiin...Racer viria também se o ouvisse. Depois, chamou Jondalar com o assobio que usava para ele. Sentia um aperto no coração. Teria ele alcançado a margem no seu frágil barco? Em caso afirmativo, onde estava? Assobiou mais uma vez, esperando que ele a ouvisse e respondesse, mas não ficou infeliz quando foi o garanhão que apareceu, marrom-escuro, a galope, ainda de cabresto, arrastando a corda.

— Racer! Viva, você conseguiu. Eu sabia que era capaz disso.

Huiin também o saudou com relincho festivo, e Lobo com entusiásticos latidos de filhote coroados por um uivo cheio e prolongado. Racer respondeu com diversos relinchos altos. Ayla os interpretou como de alívio pelo reencontro dos amigos. Quando chegou perto, Racer esfregou o focinho no nariz de Lobo, depois se postou junto de Huiin com a cabeça no pescoço dela, consolando-se da terrível travessia.

Ayla se juntou a eles, depois abraçou o pescoço de Racer e afagou-o por algum tempo antes de libertá-lo do cabresto. Ele estava tão acostumado a usar aquilo que as correias não pareciam incomodar muito nem impedir que pastasse, mas Ayla achou que a corda comprida e solta poderia criar problemas. Ela mesma não gostaria de ter uma coisa daquelas pendurada no pescoço todo o tempo. Tirou também o cabresto de Huiin e enfiou tudo na cinta de couro que usava por baixo da túnica. Pensara em trocar de roupa, mas estava com pressa, e a roupa secaria no corpo.

— Bem, já encontramos Racer. Agora temos de achar Jondalar — disse em voz alta. Lobo a encarava como se esperasse ordens. Ayla então se dirigiu diretamente a ele.

— Lobo, vamos encontrar Jondalar!

Então, montando Huiin, seguiu rio abaixo.

Depois de muitas voltas e rodopios e saltos, o pequenino bote redondo, coberto de couro, acompanhava agora, tranquilamente, a correnteza sob o comando de Jondalar. As estacas na parte de trás, dessa vez. Então, com um único remo, e considerável esforço, ele começou a impelir a embarcação de través, contra a força do largo rio. Descobriu que as três estacas ajudavam a estabilizar o barco, impedindo que ele rodasse e facilitando o controle.

Todo o tempo se acusava por não ter pulado atrás de Ayla. Mas tudo acontecera tão depressa! Mal se dera conta do que acontecia, e ela já estava longe, arrastada pela correnteza. Teria sido inútil pular na água depois de perdê-la de vista. Não poderia nadar de volta, contra a corrente perderia o barco com tudo o que ele continha.

Procurou consolar-se pensando que ela nadava bem. Mas sua preocupação o incentivava a persistir nos esforços para atravessar o rio. Quando por fim, alcançou a margem, muito longe do ponto de onde haviam partido; quando sentiu que o fundo do barco tocava a praia rochosa que tinha visto, projetando-se para dentro do rio numa curva, soltou um grande suspiro de alívio. Em seguida, desceu e puxou o pequeno barco com a carga pesada pelo aclive da praia. Descansou um pouco, de tão exausto que estava, mas logo se ergueu e saiu, rio acima, a procurar Ayla.

Manteve-se perto da água e quando encontrou um pequenino afluente, vadeou-o sem maiores dificuldades. Mas algum tempo depois deu com um segundo afluente, de grandes proporções. Aí, hesitou. Aquele não era rio que se pudesse vadear, e se tentasse passá-lo a nado, tão perto do rio principal, corria o risco de ser arrastado para ele. Teria de caminhar ao longo da margem até encontrar um lugar mais favorável a uma travessia.

Ayla, montada em Huiin, chegou ao mesmo rio não muito depois dele. E também acompanhou seu curso na direção das cabeceiras por algum tempo. Mas atravessar a cavalo ou a pé são coisas muito diferentes, e a escolha do melhor ponto para fazê-Io depende de outras considerações. Não andou tanto quanto Jondalar. Logo entrou no rio. Racer e Lobo vieram atrás dela e logo estavam todos do outro lado. Ayla avançou, então, para o rio principal, mas, olhando para trás, viu que Lobo enveredava na direção oposta.

— Venha, Lobo. — Por aqui! Depois assoviou, e disse a Huiin que seguissem em frente.

Lobo hesitou, começou a obedecer-Ihe, depois parou no meio do caminho, mas acabou por vir. Na margem, Ayla resolveu ir na direção da corrente e pôs a égua a galope.

Seu coração bateu forte quando julgou divisar, numa praia pedregosa a frente, um objeto arredondado e convexo.

— Jondalar, Jondalar! — gritou, cavalgando a toda brida. Apeou mesmo antes que a égua parasse e correu para o barco. Olhou dentro dele, olhou em volta. Tudo estava lá, ao que parecia, inclusive as estacas. Só faltava Jondalar.


—    Eis o bote, mas onde está Jondalar? — perguntou alto. Lobo latiu, como que em resposta. — Por que não consigo achar Jondalar? Onde estará ele? Será que o barco veio parar aqui sozinho? Será que ele não conseguiu atravessar?

Depois o pensamento lhe ocorreu. Talvez ele esteja procurando por mim, pensou. Mas se foi rio acima e eu vim rio abaixo, como nos desencontramos?

—    O rio! — exclamou. Lobo latiu de novo. E ela se lembrou da hesitação do animal logo depois de cruzarem o grande afluente.

—    Lobo!

O animal veio correndo e saltou, pondo as patas dianteiras nos ombros de Ayla. Ela o pegou pelos pêlos do pescoço com as mãos, olhando aquele focinho comprido, aqueles olhos inteligentes, e lembrando-se do filhote que ele havia sido, pequenino e frágil, a recordar-lhe tanto o filho. Rydag mandara que Lobo a fosse procurar um dia, e ele percorrera uma longa distância para encontrá-la. Sabia que ele era capaz de encontrar Jondalar se ela pudesse fazê-lo entender o que queria.

—    Lobo, encontre Jondalar!

O animal se deixou cair, farejou em torno do barco, depois seguiu por onde tinham vindo, rio acima.

Jondalar estava metido na água até a cintura, e avançava com cuidado através do rio menor, quando ouviu um fraco pio de ave, que lhe pareceu, de certo modo, familiar... e impaciente. Parou, fechou os olhos, procurou localizar a origem do som. Depois, sacudiu a cabeça. Não podia estar certo, sequer, de ter mesmo ouvido alguma coisa. E prosseguiu. Quando alcançou a margem oposta e começou a andar na direção do rio. principal, continuou com aquilo na cabeça. Finalmente, sua obsessão de encontrar Ayla o fez esquecer um pouco o incidente, se bem que, de tempos em tempos, a lembrança voltasse.

Caminhara bastante, com as roupas molhadas, sabendo que Ayla também estaria encharcada, quando lhe ocorreu que talvez devesse ter levado a barraca ou alguma outra coisa que lhe servisse de abrigo. Começava ficar tarde, e tudo poderia ter acontecido com ela. O pensamento fez com que esquadrinhasse o rio, as margens, a vegetação em torno mais detidamente.

De repente, ouviu de novo o assobio, dessa vez muito mais alto e mais perto, seguido de uma espécie de latido, e, por fim, de um uivo perfeitamente caracterizado de lobo, e o som de cascos de cavalo. Virando-se, seu rosto se abriu num largo sorriso de boas-vindas quando viu Lobo, que vinha como uma flecha em sua direção, com Racer logo atrás e melhor do que tudo isso, Ayla montada em Huiin.

Lobo saltou-lhe no peito e se pôs a lamber-lhe o queixo. Jondalar o pegou carinhosamente pelo pêlo do pescoço, como tinha visto Ayla fazer, e acabou dando um abraço no animal. Depois afastou-o, pois já vinha perto, saltava, e corria ao seu encontro.

— Jondalar! Jondalar — disse, quando ele a tomou nos braços

—Ayla! Oh, minha Ayla! — disse ele, estreitando-a contra o coração.

O lobo saltou de novo e se pôs a lamber o rosto dos dois, e nenhum deles pensou em expulsá-lo.

O grande rio, que tinham atravessado com os cavalos e o lobo, lançava-se se no mar interior de águas escuras que os Mamutói chamavam Mar de Beran, pouco ao norte do largo delta do Rio da Grande Mãe. Quando os dois viajantes se aproximaram da foz daquele imenso curso d'água, que serpenteava por mais de três mil quilómetros através do continente, terreno descendente se nivelou.

As magníficas pastagens dessa região meridional, plana, foram uma surpresa para Ayla e Jondalar. Uma rica vegetação, nova e fresca, era incomum para aquela época tardia do ano, mas cobria toda a paisagem de campo aberto. A violenta tempestade, com suas chuvas torrenciais, excepcional, também, para a estação, e generalizada, era responsável por todo aquele verde. Era como se a primavera renascesse na estepe, pois não havia apenas capim, mas flores de várias cores: íris anãs, cor de púrpura e amarelas, peônias de muitas pétalas, de um vermelho intenso, lírios cor-de-rosa, maculados, ervilhacas multicores, que iam do amarelo e do laranja até o vermelho vivo e o grená.

Um grande alarido de pios e gritos chamou a atenção de Ayla para os vociferantes pássaros preto e rosa que voltejavam no alto e mergulhavam em seguida, separando-se uns dos outros ou juntando-se em grandes bandos, numa confusão de incessante atividade. Essa pesada concentração de estorninhos, barulhentos, gregários, rosados nas vizinhanças, deixava Ayla inquieta. Embora eles sempre vivessem em colónias, voassem em bandos, e dormissem amontoados à noite, ela não se lembrava de ter visto tantos deles ao mesmo tempo.

Notou que francelhos e outros pássaros também começavam a congregar-se ali. O ruído era cada vez mais estridente, e havia no ar um zumbido surdo contínuo, de expectação como fundo musical. Foi então que ela divisou uma grande nuvem escura no céu — límpido, curiosamente, a não ser por ela. Parecia mover-se com o vento e vinha na direção deles. De súbito, a imensa horda de pássaros pareceu ainda mais agitada.

— Jondalar — disse ela para o homem, que cavalgava à frente dela. — Olhe aquela estranha nuvem.

O homem ergueu os olhos e, em seguida, parou o cavalo. Ayla emparelhou com ele. Enquanto observavam, a nuvem ficou perceptivelmente maior ou, talvez, mais próxima.

— Não creio que se trate de uma nuvem de chuva — disse Jondalar.

— Eu também não. Mas que outra coisa pode ser? — Sentia de súbito e inexplicavelmente uma grande vontade de procurar abrigo em qualquer lugar. — Você acha que deveríamos armar a tenda e esperar que ela passasse?

—    Prefiro ir em frente. Talvez possamos deixá-la para trás, se nos apressarmos.

Incitaram os cavalos a andar mais depressa pelo prado verdejante Mas tanto as aves quanto a estranha nuvem os ultrapassaram. O som, estridente, cresceu de intensidade, superando mesmo o grasnar frenético dos estorninhos.

—    O que foi isso? — disse ela. Mas antes que as palavras lhe saíssem da boca, ela foi atingida de novo, e outra vez mais. Algo aterrissou também em Huiin, depois pulou fora. Mas a coisa se repetiu. Quando Ayla olhou para Jondalar, que cavalgava à sua dianteira, viu mais daqueles insetos voadores e saltadores. Um pousou bem à sua frente, e antes que pudesse escapar ela o prendeu com a mão em concha.

Examinou-o, em seguida, com todo o cuidado. Era, de fato, um inseto, do tamanho do seu dedo médio, com as pernas traseiras compridas. Parecia um gafanhoto dos grandes, mas não era desse verde de folha seca que se confunde tão bem com o terreno, como os que tinha visto saltando no chão. Aquele era notável justamente por ter listas muito vivas, pretas, amarelas e cor de laranja.

A diferença era produto da chuva. Na estação normalmente seca eles eram gafanhotos comuns, pequenos animais solitários, tímidos, que só se reuniam a outros da mesma espécie para cruzar. Mas uma grande alteração se produzira depois da grande tempestade. As fêmeas se aproveitaram do surgimento de nova relva fresca e da abundância de alimentos para botarem muito mais ovos do que de hábito, e um número muito maior de larvas sobreviveu. Com esse aumento da população, algumas extraordinárias mudanças ocorreram. Os pequenos gafanhotos ganharam cores novas, vivas, e começaram a procurar a companhia uns dos outros. Não eram mais gafanhotos, e sim locustídeos.

Em pouco tempo, grandes bandos de locustídeos multicores se juntavam a outros bandos e, uma vez exauridas as reservas locais de aliamento, empreendiam grandes voos de invasão a outras zonas, viajando em grandes massas. Uma nuvem de cinco bilhões de indivíduos não era incomum, podendo cobrir 150 quilómetros quadrados, e devorar oitenta toneladas de vegetação numa só noite.

Assim que a vanguarda da nuvem de locustas começou a descer para cevar na relva fresca, Ayla e Jondalar se viram engolfados pelos insetos, que voejavam em torno, chocando-se contra eles e suas montarias. Não foi difícil, nessas circunstâncias, pôr Huiin e Racer a galope. Impossível teria sido contê-los. Enquanto fugiam, atingidos ainda, a todo momento, por aquele dilúvio de insetos, em vão Ayla procurava Lobo com os olhos. O ar estava denso de insetos voando, saltando, ricocheteando uns contra os outros. Ela assobiou tão alto quanto pôde, à espera que ele conseguisse ouvi-la, apesar do zumbido ensurdecedor.

Ela quase bateu contra um estorninho cor-de-rosa, que mergulhou logo em frente do seu rosto e pegou uma locusta no ar. Compreendeu então por que os pássaros se haviam congregado ali em tão grande número. Tinham sido atraídos pelo imenso suprimento de comida, fácil de ver graças às cores vivas. Mas os nítidos contrastes que atraíam as aves também serviam aos insetos para localizar uns aos outros quando tinham de levantar vôo para outra região, quando não havia ali mais comida. Nem mesmo a presença de tantas aves reduzia o número de insetos enquanto vegetação fosse suficiente para alimentá-los e às novas gerações. Só quanto as chuvas cessavam, e os prados retornavam à sua condição anterior, normal, seca, capaz de alimentar apenas um pequeno número de insetos, os locustídeos se tornavam outra vez inócuos gafanhotos, com sua habitual camuflagem pardacenta.

Lobo foi achá-los logo depois que deixaram a nuvem para trás. Àquela hora já os vorazes insetos se haviam acomodado no solo para passar a noite. Ayla e Jondalar acamparam a uma boa distância deles. Quando partiram, na manhã seguinte, seguiram rumo ao nordeste, para uma colina elevada, de onde poderiam ver toda a planície e, talvez, ter uma ideia da distância que os separava ainda do Rio da Grande Mãe. Para além da crista da colina, e a uma distância relativamente pequena, viram a região da área que fora visitada pela praga de gafanhotos predadores. A nuvem, revoluteante, já fora, àquela altura, varrida para o mar pelos ventos fortes. Ficaram assombrados com a destruição.

No campo, tão belo antes, tão cheio de flores coloridas e viço, a relva estava destruída até onde a vista alcançava. Nem uma folha, nem qualquer mancha de verdura. Tudo fora devorado pela horda faminta. Os únicos sinais de vida eram os estorninhos, caçando insetos caídos ou retardatários. O solo fora raspado, violentado, e jazia exposto. Sem dúvida, ficaria recuperado daquela devastação provocada por criaturas por ele mesmo criadas, no seu ciclo natural de vida, e das raízes escondidas e das sementes trazidas pelo vento, ele se vestiria de verde outra vez.

Quando Ayla e Jondalar olharam para outra direção, uma nova paisagem os saudou, e seu pulso bateu forte. Para leste, um vasto lençol d'água luzia ao sol: era o Mar de Beran.

Enquanto olhava, Ayla percebeu que era o mesmo mar que tinha conhecido na infância. Na ponta mais meridional de uma península que entrava na água, do lado norte, ficava a caverna em que vivera com o Clã de Brun em criança. Morar ali, com o povo do Clã, fora muitas vezes difícil. Mas ela guardava ainda muitas memórias felizes desse tempo. Só a lembrança do filho que tivera de abandonar a entristecia inevitavelmente. Sabia que estava agora mais próxima dele do que jamais estaria — desse filho que nunca mais veria.

Era melhor para ele viver com o Clã. Na companhia de Uba, sua mãe adotiva, com o velho Brun para ensinar-lhe o uso da lança, das bolas, da funda, das normas do Clã, Dure seria amado e aceito, e não se tornaria objeto de chalaças como Rydag o fora. Mas ela não podia deixar de pensar nele. Viveria ainda o Clã naquela mesma península? Ou se teria mudado para mais perto de outros Clãs, no interior do continente ou nas altas montanhas orientais?

—    Ayla! Veja. Lá está o delta, e você pode ver Donau, ou, pelo menos, parte dele. Do outro lado daquela grande ilha, aquela água barrenta, marrom? Se não me engano, aquele é o braço principal do rio, o braço norte. Lá está ela: a foz do Rio da Grande Mãe! — disse Jondalar, com uma grande excitação na voz.

Ele também estava esmagado de memórias, em que se mesclava uma certa tristeza. Da última vez que vira aquele rio estava com o irmão. E agora Thonolan se fora para o mundo dos espíritos. De súbito ele se lembrou da pedra de superfície opalescente que levara do sítio onde Ayla havia sepultado, seu irmão. Ela dissera que a pedra continha a essência do espírito de Thonolan, ele tinha a intenção de presentear com ela sua mãe e Zelandonii quando voltasse. Estava na sua cesta. Talvez devesse tirá-la de lá, carregá-la consigo.

—    Oh, Jondalar! Lá, junto do rio, vê? Aquilo não é fumaça? Não haverá gente vivendo junto daquele rio? — disse Ayla, animada com essa perspectiva.

—    Pode ser — disse Jondalar.

— Vamos andar depressa, então — disse ela. E começou a descer a colina, com Jondalar cavalgando ao lado. — Quem poderá ser? —perguntou. — Alguém que você conheça?

— Pode ser. Os Xaramudói vêm às vezes, até esta distância, nos seus barcos, para comerciar. Foi assim que Markeno ficou conhecendo Tholie. Ela estava com um Acampamento Mamutói que viera em busca de sal e de conchas. — Ele se calou, olhou em volta, perscrutando com maior atenção o delta e a ilha do outro lado de um estreito canal. Depois estudou o terreno rio abaixo.

—    Na verdade, acho que não estamos muito longe do lugar onde Brecie instalou o Acampamento do Salgueiro... no verão passado. Foi mesmo no verão passado? Ela nos levou para lá, depois que o Acampamento salvou a mim e a Thonolan da areia movediça...

Jondalar fechou os olhos, mas Ayla tinha visto a dor que havia neles.

—    Eles foram as últimas pessoas que meu irmão viu... além de mim. Viajamos juntos um pouco mais. Eu tinha esperança que ele superasse aquilo, mas Thonolan não quis viver sem Jetamio. Quis que a Grande Mãe o levasse — disse Jondalar. E, então, baixando os olhos, acrescentou. — E foi então que encontramos Neném.

Jondalar encarou Ayla, e ela viu sua expressão mudar. A dor ainda estava presente, mas ela reconheceu aquele olhar especial que mostrava quando o seu amor por ela era tanto que ficava quase impossível suportar para ele. Para ela também, pensou. Mas havia também outra coisa nele, algo que a deixava assustada.

—    Nunca pude entender por que Thonolan quis morrer... naquela hora — disse ele.

Depois, virando o rosto, fez com que Racer andasse mais depressa e disse por cima do ombro:

— Vamos. Você não queria correr?

Ayla fincou os calcanhares em Huiin, decidida a ser mais cuidadosa, e acompanhando o homem que galopava agora, em cima do garanhão, rumo ao rio, embaixo. Mas o galope era excitante e serviu para espantar o clima estranho e triste que aquele terreno evocara para os dois. O lobo, excitado com o ritmo acelerado da marcha, corria com eles. E quando, finalmente, chegaram à fímbria da água e pararam, Lobo levantou a cabeça entoou uma melodiosa canção canina, feita de longos uivos tirados do fundo da garganta. Ayla e Jondalar se entreolharam e sorriram, imaginando qual seria a maneira mais apropriada de anunciarem que tinham alcançado o rio que ia ser seu companheiro pela maior parte do que lhes restava a fazer como Jornada.

— É este mesmo? Alcançamos o Rio da Grande Mãe? — disse Ayla os olhos brilhando.

— Sim. É este — disse Jondalar, e depois olhou para o acidente, rio acima. Não queria desanimar Ayla, mas sabia o quanto tinham de viajar ainda.

Tinham de cobrir de volta os passos dele através do continente até a geleira que cobria as montanhas nas cabeceiras desse longo rio, depois seguir mais além, quase que até a Grande Água do fim do mundo, bem para oeste. Ao longo do seu curso sinuoso de três mil quilómetros, o Donau — o rio de Doni, a Grande Mãe Terra dos Zelandonii — engrossava com a água de mais de trezentos afluentes, com a drenagem de duas cadeias geladas de montanha, e arrastava consigo uma enorme carga de sedimentos.

Dividindo-se, muitas vezes, em canais, quando serpenteava pelas planícies que encontrava no caminho, o grande curso d'água transportava um prodigioso acúmulo de solo arenoso em suspensão. Mas antes de chegar ao fim do curso, todo esse saibro, todos esses detritos se acamavam num imenso depósito em leque, uma profusão de ilhotas rasas e baixios, sufocados a meio de lodo e areia, e rodeados de lagos pouco profundos e tortuosos canais, como se a Grande Mãe dos rios estivesse tão exausta da sua longa viagem que resolvia despejar aquela pesada carga de sedimento antes da sua destinação, para depois se arrastar, devagarinho, para o mar.

O vasto delta que eles alcançaram, duas vezes mais longo do que largo, começava a muitos quilómetros do mar. O rio, cheio demais para ser contido por um só canal na planície achatada, que ficava entre o antigo maciço de rocha fundamental que alguma convulsão erguera a prumo do lado do oriente e o terreno suavemente ondulado em colinas que descia das montanhas para o lado do ocidente, dividia-se em quatro braços principais e cada um deles tomava uma direção diferente. Diversos canais comunicavam esses braços uns com os outros, criando um labirinto de meandros que por sua vez formavam pequenos lagos e lagunas. Grandes formação de juncos rodeavam terra firme que iam desde simples bancos de areias até ilhas de verdade, completas com florestas e estepes, povoadas por auroques, veados e seus predadores.

— De onde vem aquela fumaça? — perguntou Ayla. — Deve haver um Acampamento por aqui.

— Creio que veio daquela ilha grande que vimos na foz, para alem do canal — disse Jondalar, apontando.

Quando Ayla olhou, tudo o que viu de começo foi uma cortina de altos juncos fragmáticos, com seus pendões plumosos, cor púrpura, balançando na brisa, mais de cinco metros acima do chão alagado de onde brotavam. Depois notou as belas folhas verde-prata dos salgueiros, por trás deles. Levou mais um momento para que ela fizesse outra observação que a deixou intrigada. O salgueiro, tanto quanto sabia, era um arbusto que crescia tão junto da água que suas raízes ficavam muitas vezes cobertas na estação chuvosa. Jamais atingiam a altura de árvores. Ou poderia estar enganada? Seriam aquelas árvores salgueiros? Ela não costumava cometer erros dessa natureza.

Começaram a descer o rio, e quando estavam já defronte da ilha entraram pelo canal. Ayla olhou para trás a fim de certificar-se de que as traves do trenó, com o barco amarrado, não se haviam enredado. De pois verificou se as pontas dianteiras, cruzadas à frente, se moviam, livremente como os mastros, que vinham agora arrastados pela égua. Quando arrumaram de novo a bagagem e deixaram o rio principal para trás, tinham pensado em abandonar o barco. Ele já cumprira sua missão, que era a de levá-los até ali, mas dera muito trabalho para fazer. E apesar de não ter servido tão bem quanto haviam imaginado, tinham pena de abandonar o pequeno bote redondo.

Foi Ayla quem teve a ideia de fixar o barco ao trenó, mesmo que isso obrigasse Huiin a usar o arnês de forma ininterrupta e arrastar o trenó todo o tempo. Mas foi Jondalar quem pensou que ele facilitaria a passagem de rios. Poderiam carregar o barco com a bagagem, que assim não ficaria molhada. Huiin nadaria à vontade, puxando uma tralha leve que flutuasse. Quando experimentaram o processo no primeiro rio que tiveram de atravessar, verificaram que era até desnecessário tirar o arnês da égua.

A correnteza tinha uma tendência de puxar barco e mastros, o que preocupava Ayla sobremaneira, principalmente depois que vira como Huiin e Racer tinham entrado em pânico quando se viram, no outro rio numa situação que escapava ao seu controle. Decidiu refazer o arnês de modo a poder cortar fora as correias se parecessem pôr a égua em perigo. Já o cavalo compensava a força da correnteza e aceitava a carga sem dificuldade. Ayla ocupara-se, pacientemente, em familiarizar Racer com a nova ideia. Huiin estava habituada ao trenó e confiava em Ayla.

A larga tigela aberta do barco pedia enchimento. Começaram a levar madeira, excrementos secos e outros materiais úteis para acender fogo que iam apanhando pelo caminho, com vista à fogueira da noite. As vezes deixavam também suas cestas de bagagem no barco depois de atravessarem um rio. Tinham passado diversos cursos d'água de diferentes tamanhos que demandavam, todos, o mar interior. E Jondalar sabia que teriam muitos outros ainda pela frente na sua Jornada ao longo do Rio da Grande Mãe.

Quando entraram na água limpa do canal mais exterior do delta, o garanhão assustou-se e relinchou nervosamente. Racer não gostava de rios desde a sua desagradável aventura, mas Jondalar vinha guiando o cavalo em todos os riachos e ele aos poucos vencia o medo. Isso era bom, pois haveria outros a cruzar antes de chegarem em casa.

A água movia-se vagarosa. E era tão transparente que podiam ver peixes nadando entre as plantas aquáticas. Depois de passarem os caniços da margem, ganharam a ilha, comprida e estreita. Lobo foi o primeiro a alcançar aquela língua de terra firme. Sacudiu-se vigorosamente, depois subiu correndo pela praia de areia molhada e compactada de mistura com argila que subia para uma pequena mata de salgueiros crescidos, de folhagem verde-prateada, tão grandes quanto árvores.

— Eu sabia — disse Ayla.

— O que você sabia? — indagou Jondalar, sorrindo diante da expressão de auto-suficiência que ela arvorava.

— Estas árvores são idênticas aos arbustos entre os quais dormimos naquela noite em que choveu tanto. Pensei que fossem salgueiros, mas nunca vira nenhum tão grande assim. Salgueiros são em geral arbustos, mas estas árvores podem muito bem ser salgueiros.

Desmontaram e conduziram os cavalos para a floresta, fresca e pouco cerrada. Marchando em silêncio, observaram as sombras das folhas dançando na brisa leve e mosqueando a alfombra do chão, relvoso, batido de sol. Pelos claros das árvores, viram auroques pastando, ao longe. Estavam a favor do vento, porém, e logo que o gado sentiu seu cheiro fugiu bem rápido. Aqueles animais já haviam passado pela experiência da caça, pensou Jondalar.

Os cavalos começaram a cortar forragem com os dentes, avançando livremente por aquele delicioso terreno arborizado. Ayla parou e começou a tirar os arreios de Huiin.

—    Por que está parando aqui? — perguntou Jondalar.

—    Os animais querem pastar. Pensei que podíamos parar um instante.

Jondalar pareceu preocupado.

—    Acho que devemos andar mais um pouco. Estou seguro de que há gente nesta ilha, e gostaria de saber quem são antes de acamparmos.

Ayla sorriu.

— Tem toda razão! Você disse que a fumaça vinha daqui. Este lugar é tão bonito que quase me esqueci disso.

O terreno subia gradualmente, e mais para dentro começaram a aparecer amieiros, choupos e salgueiros brancos, o que variava a folhagem, em geral verde-acinzentada. Viram, depois, uns poucos pinheiros já antigos. Deviam estar naquela região havia tanto tempo quanto as próprias montanhas. Isso acrescentava um fundo mais escuro ao mosaico de verdes. Já o lariço contribuía com uma tonalidade mais clara, tudo valorizado pelos tufos de verde e ouro dos capins da estepe que acenavam ao vento. Eles subiam pelos troncos das árvores e havia cipós pendentes dos ramos do dossel mais denso da floresta. Nas valas, iluminadas pelo sol, formações de carvalho pubescente e aveleiras, um pouco mais altas, punham

A ilha não elevava cerca de um metro acima do nível da água e em seguida se aplainava num extenso campo, que era como que uma estepe em miniatura, com festucas e estipas alourando ao sol. Ayla e Jondalar atravessaram a ilha pelo meio e se viram diante de um talude mais abrupto de dunas arenosas, firmadas com couve-marinha, capim-da-praia, azevinho-do-mar. O declive levava a uma enseada curva, quase uma lagoa, bordada de altos caniços de penacho purpúreo, misturados a rabos-de-gato e juncos, além de grande variedade de plantas aquáticas menores. Na angra, as formações de ninféias eram tão densas que mal se via a água. E empoleiradas nelas havia garças, em número incontável.

Para além da ilha, ficava outro canal, largo, barrento, que era o braço mais setentrional do grande rio. Próximo da ponta da ilha depararam com um fio de água cristalina que entrava no canal principal, e Ayla ficou pasma de ver as duas correntes, uma límpida e a outra escura, de lodo correndo lado a lado com uma nítida divisão de cor. Por fim, no entanto, a água suja dominava a limpa, pois o canal principal enlameava tudo.

— Veja só aquilo, Jondalar — disse Ayla, mostrando-lhe a clara definição das duas águas correndo paralelas.

— É assim que a gente sabe que está no Rio da Grande Mãe. Aquele braço conduz diretamente ao mar. Mas olhe para o outro lado, Ayla.

Para além de um maciço de árvores, fora da ilha, uma fumaça fina e retilínea subia para o céu. Ayla sorriu, antegozando o que estava para acontecer. Mas Jondalar tinha ainda suas dúvidas. Se aquele fumo saía de uma lareira, por que não tinham visto ninguém? Eles mesmos, com certeza, teriam sido vistos. E por que ninguém viera encontrá-los? Jondalar encurtou a rédea que lhe servia para comandar Racer e afagou-lhe o pescoço.

Quando avistaram os contornos de uma tenda cónica, Ayla soube que haviam chegado a um Acampamento, e pensou, consigo mesma, de que povo seria. Podiam ser, até, Mamutói. Pôs Huiin a passo e, vendo que Lobo assumira uma postura defensiva, assobiou o sinal que lhe ensinara. Assim, quando entraram no pequeno acampamento, ele estava a seu lado.

 

Huiin vinha logo atrás de Ayla quando ela adentrou o Acampamento e marchou para o fogo de onde saía ainda o penacho de fumo. Eram cinco os abrigos, arranjados em semicírculo, e o fogo, meio enterrado no chão, ficava defronte ao abrigo central. Ardia alegremente, de modo que o Acampamento fora usado recentemente, mas ninguém assumiu sua posse vindo para saudá-los. Ayla correu os olhos em torno. Alguns dos abrigos estavam abertos. Mas não viu ninguém. Intrigada, estudou o conjunto mais detidamente, a ver se descobria alguma coisa sobre os habitantes — quem eram, e por que se tinham ido.

A maior parte de cada uma das estruturas era semelhante à tenda cónica usada pelos Mamutói no verão. Mas havia algumas conspícuas diferenças. Os Caçadores de Mamutes muitas vezes ampliavam seus alojamentos acrescentando tendas semicirculares feitas de peles à unidade principal de moradia, utilizando, até, um segundo mastro capaz de sustentar esses suplementos. Já os abrigos daquele Acampamento tinham acréscimos feitos de caniços e capim. Alguns não passavam de simples tetos inclinados montados sobre mastros finos. Outros eram adições arredondadas, completamente fechadas, feitas de esteiras ou colmo, e coladas à edificação principal.

Do lado de fora da tenda mais próxima de onde ela estava, Ayla viu uma pilha de raízes de tábuas, marrons, sobre uma esteira de juncos trançados. Perto da esteira estavam duas cestas. Uma delas era de trançado fino, e continha água ligeiramente turva; a outra estava cheia pelo meio de raízes novas, brancas, brilhantes, visivelmente peladas de fresco. Ayla avançou e pegou uma. Estava ainda molhada. Devia ter sido posta ali havia poucos instantes.

Quando a devolveu ao cesto, notou um estranho objeto no chão. Era feito de folhas de tábua à imitação de uma pessoa, com braços saindo para os lados, duas pernas, e um pedaço de couro macio enrolado para trazer de túnica. Na cabeça, duas linhas curtas tinham sido desenhadas com carvão para representar os olhos, e outra linha marcara a boca, puxada para cima nas extremidades, como se sorrisse. Tufos de estipa serviam de cabelo.

O povo com quem ela fora criada não fazia imagens, a não ser sinais totêmicos muito sumários, como as marcas que tinha na perna. Ela fora arranhada quando menina por um leão da caverna e ficava para sempre com quatro estrias retas na coxa esquerda. A mesma marca era de uso no Clã, para representar um totem do leão. Por isso, Creb tivera tanta certeza de que o Leão da Caverna era o seu totem, a despeito de ser ele considerado um totem masculino. O Espirito do Leão da Caverna escolhera-a e marcara pessoalmente. E assumira, assim, a sua proteção.

Outros totens do Clã eram indicados do mesmo modo, com simples sinais, muitas vezes derivados de movimentos ou gestos da sua linguagem não-verbal. A primeira imagem verdadeiramente representativa que ela vira fora o desenho esquemático de um animal que Jondalar fez num pedaço de couro a ser usado como alvo. E ela ficara perplexa no primeiro momento olhando aquele objeto no chão. Então, num átimo, o identificara. Jamais tivera uma boneca quando pequena mas lembrava que as crianças Mamutói brincavam com coisas como aquela — e compreendeu o que era.

Ficou, então, óbvio que uma mulher estivera sentada naquele lugar com uma criança momentos antes. E fora embora, ao que parece com grande pressa, pois abandonara a comida e nem mesmo levara a boneca da menina. Por que teria feito isso?

Ayla se voltou e viu que Jondalar, ainda segurando a ponta da rédea de Racer, se ajoelhara em meio a estilhas de sílex e examinava uma pedra arredondada.

—    Alguém estragou uma ponta bem-feita com um último golpe desastrado. Talvez apenas um retoque, mas foi forte demais e errou o alvo... como se o escultor tivesse sido interrompido de repente. E aqui está o martelo de pedra! Ele o deixou caído no chão.

As marcas na pedra oval e dura eram prova de longo uso, e ele, experimentado artesão, não podia imaginar que alguém deixasse cair e abandonasse uma ferramenta de estimação.

Ayla viu também peixe já limpo e posto para secar e outros, inteiros, no chão. Um deles já tivera o ventre aberto, mas fora deixado ali, com os demais. Havia outros indícios de atividade interrompida, mas nenhum sinal de gente.

— Jondalar, havia pessoas aqui e não faz muito tempo. Partiram às pressas. Mesmo o fogo foi deixado aceso. Onde estarão?

— Não sei, mas você está certa. Foram embora às carreiras. Deixaram tudo e fugiram. Como se estivessem... assustados.

Mas, por quê? — disse Ayla. — Não vejo nada que possa infundir temor.

Jondalar começou a sacudir a cabeça, mas viu que Lobo farejava em roda do campo abandonado, metendo o focinho na entrada das tendas e em torno das coisas que os moradores tinham abandonado. Depois, sua atenção foi atraída para a égua cor de feno que pastava nas proximidades, arrastando ainda todo o arranjo de mastros e barco, mas curiosamente despreocupada tanto com seus donos quanto com o lobo. Ele se virou também para ver o jovem garanhão castanho-escuro, que o seguia com tanta boa vontade. O animal, carregado de cestas e com o cochonilho no lombo, esperava, paciente, a seu lado, preso por uma simples corda presa à cabeça com um laço de couro.

Esse deve ser o problema, Ayla: nós não vemos nada — disse Jondalar. Lobo interrompeu a sua barulhenta exploração e ergueu os olhos para o homem, abanando o rabo.

Ayla, é melhor chamá-lo, ou ele encontrará os habitantes Acampamento, e os assustará ainda mais.

Ayla assobiou, e o lobo correu para ela. Ela o afagou, mas voltou-se intrigada, para Jondalar.

— Você quer dizer que fomos nós que os assustamos? Que eles fugiram com medo de nós?

— Lembra-se do Acampamento do Capim Estipa? De como eles se portaram quando nos viram? Pense que aspecto temos para quem nos encontra pela primeira vez. Viajamos com dois cavalos e um lobo. Animais não viajam com as pessoas, em geral as evitam. Mesmo os Mamutói do Acampamento de Verão levaram algum tempo para se acostumar conosco, e nós chegamos com a turma do Acampamento do Leão. Na verdade, Talut teve coragem quando nos convidou, de imediato, com os cavalos e tudo — disse Jondalar.

— O que devemos fazer?

—    Acho que devemos ir embora. O povo deste Acampamento estará provavelmente escondido na mata e de lá nos observa, pensando que devemos ter vindo de algum lugar como o mundo dos espíritos. É o que eu pensaria nas mesmas circunstâncias.

— Oh, Jondalar — gemeu Ayla, desapontada. Sentia uma grande solidão, ali, de pé, no meio do Acampamento abandonado. — Eu gostaria tanto de visitar outras pessoas. — Em seguida, correu os olhos pelo lugar, mais uma vez, antes de concordar de cabeça. — Você têm razão. Se eles se foram, se não nos quiseram receber, é melhor partir. Mas eu bem quisera conhecer a mãe da criança que deixou a boneca para trás e conversar com ela.

Depois, indo pegar Huiin, que se afastara, acrescentou:

— Não quero que as pessoas tenham medo de mim. Mas será que conseguiremos falar com alguém nesta Jornada?

Não sei dizer quanto a estranhos. Mas tenho certeza de que vamos cruzar com os Xaramudói. E eles podem ficar um tanto ariscos, de começo, mas me conhecem. E você sabe como é. Passado o susto inicial, eles ficarão interessados nos animais.

Lamento que tenhamos assustado essa gente daqui. Talvez devêssemos deixar-lhes algum presente, mesmo que não tenhamos gozado da hospitalidade deles — disse Ayla, e se pôs a procurar nas cestas. — Alguma coisa de comer seria apropriado. Carne, talvez.

—    Sim, é uma boa ideia. Tenho também algumas pontas de lança. Posso deixar uma para substituir a que o fabricante daquela arruinou por nossa causa. Nada me deixa tão desapontado quanto estragar um bom instrumento Quando falta tão pouco para concluí-lo.

Enquanto metia a mão na bagagem para tirar a bolsa de ferramentas, que era um rolo de couro, Jondalar se lembrou de que quando ele e Thonolan viajavam juntos encontravam muita gente pelo caminho e eram bem recebidos, e muitas vezes ajudados. Aconteceu, até, em duas ocasiões, que suas vidas foram salvas por estranhos. Mas se o fato de andarem com os animais espantava as pessoas, o que aconteceria se ele e Ayla viessem a precisar de ajuda?

Deixaram o Acampamento e galgaram outra vez as dunas em direção ao campo do topo da ilha, estreita e alongada, detendo-se quando a areia cedeu lugar à relva. Do alto contemplaram a fumaça do Acampamento e a fita pardacenta do rio assoreado a corre para o vasto desaguadouro do mar de Beran. Em mudo assentimento, montaram e seguiram para leste, a fim de terem uma visão melhor — a última — do grande mar interior.

Quando chegaram à extremidade mais oriental da ilha, e embora estivessem ainda dentro das barrancas do rio, ficaram tão perto das águas encapeladas do mar que podiam ver-lhe as ondas lavando bancos de areia com espuma salobra.

Ayla olhou para além da água e pensou que quase podia ver os contornos de uma península. A caverna do Clã de Brun, o lugar onde fora criada, ficava na sua ponta mais meridional. Lá ela dera à luz seu filho, e lá mesmo tivera de deixá-lo quando foi expulsa.

Estará muito crescido?, perguntou a si mesma. Mais alto, certamente, que todos os rapazes da sua idade. Forte? Saudável? Feliz? Lembrar-se-á de mim? Duvido muito. Ah, se eu o pudesse ver pelo menos uma vez mais, pensou. E então compreendeu que se fosse algum dia procurá-lo, aquela era sua última oportunidade. Pois daquele ponto Jondalar pretendia virar para oeste. E ela nunca mais estaria tão perto do seu Clã — ou de Dure — na vida. Por que não podiam ir para leste? Só uma curta digressão. Se acompanhassem a costa norte do mar poderiam provavelmente atingir a península em poucos dias. Jondalar já dissera que estava disposto a ir com Ayla se ela quisesse tentar achar Durc.

— Veja, Ayla! Eu não sabia que havia focas no Mar de Beran! Não via esses animais desde que era menino, numa excursão com Willomar — disse Jondalar, com a voz cheia de excitação e saudade. — Ele nos levou, a mim e a Thonolan, para ver as Grandes Águas, e depois o povo que vive no fim do mundo nos levou mais longe ainda, para o norte, de barco. Você já tinha visto focas?

Ayla olhou de novo para o mar, para mais perto agora, para onde ele mostrava. Uns poucos animais escuros, lustrosos, afuselados, de ventre cor de pérola, se arrastavam, corcoveando, desajeitados, ao longo de um banco de areia que se formara por trás de algumas rochas parcialmente submersas. Enquanto as observavam, muitas das focas pularam na água. Caçavam um cardume de peixes. Viram as cabeças apontando da superfície, viram quando o último dos animais, menor e mais jovem que os outros, mergulhou por sua vez. E logo se foram, todos, desaparecendo tão depressa quanto tinham surgido.

— Só a distância — disse Ayla —, durante a estação fria. Elas gostavam do gelo que passava flutuando ao largo. O Clã de Brun não caçava esses animais. Ninguém era capaz de pegá-los, embora Brun me tivesse contado ter visto alguns deles numas pedras perto de uma caverna do mar. Havia gente que os tinha na conta de espíritos da água e não animais, mas eu vi filhotes no gelo uma vez, e espíritos não têm filhotes. Nunca soube para onde iam no verão. Talvez viessem para cá.

Quando estivermos em casa, eu a levarei até as grandes Águas, Ayla. É uma coisa inacreditável. Este aqui é um mar de grandes proporções, maior que qualquer lago que eu conheça, mas não é nada comparado as Grandes Águas. Elas são como o céu. Ninguém jamais chegou ao outro lado.

Ayla sentiu a impaciência e a animação na voz de Jondalar, sentiu a sua ânsia por estar em casa. Sabia que não hesitaria em ir com ela procurar o Clã de Brun e Durc se ela expressasse esse desejo. Porque a amava. Mas ela o amava também, e sabia que ele iria ficar infeliz com o atraso. Limitou-se, então, a olhar o grande lençol de água, depois fechou os olhos, procurando conter as lágrimas.

Não saberia onde procurar pelo Clã, afinal de contas, pensou. E não era mais o Clã de Brun. Era o Clã de Broud, e ela não seria bem-vinda. Broud a excomungara e ela estava morta para todos eles, era um espírito. Se ela e Jondalar tinham assustado o Acampamento daquela ilha por causa dos animais, e sua capacidade de dominá-los era tida como sobrenatural, não assustaria com muito mais razão o Clã? Inclusive Uba e Dure? Para eles ela estaria retornando do mundo dos espíritos, e os animais adestrados eram prova disso. Acreditavam que um espírito que regressava do além vinha para fazer-lhes mal.

Uma vez, porém, que virassem de rumo, para oeste, estava tudo acabado. Dali por diante, e até o fim da vida, Dure seria só uma memória. Não haveria esperança de revê-lo. Aquela era uma escolha que tinha de fazer. Pensara que estava feita havia muito tempo. Não imaginara que a dor fosse ainda tão viva. Voltando a cabeça para o outro lado, para que Jondalar não visse seus olhos marejados, e fitando o mar azul profundo, Ayla deu um adeus sem palavras ao filho pela última vez. Uma pontada de dor a feriu, e ela soube que levaria aquela dor no coração para sempre.

Deram às costas ao Mar de Beran e se puseram a caminhar por entre o alto capim-da-estepe, que revestia a grande ilha, deixando que os cavalos descansassem e pastassem um pouco. O sol já ia alto no céu, e o dia estava brilhante e quente. O ar dançava com ondas de mormaço que subiam do solo, trazendo odor de terra e de coisas em germinação. No platô alongado e sem árvores que constituía a cobertura da ilha, eles se protegiam com os chapéus de palha que tinham feito, mas a intensa evaporação dos canais do rio que os circundavam gerava umidade, e o suor escorria pela pele coberta de pó dos viajantes. Agradeciam ao mar a brisa fresca que dele vinha, ocasionalmente, uma brisa caprichosa mas cheia do cheiro de vida que subia das profundezas.

Ayla parou para retirar a tira de couro que levava enrolada em torno da testa. Guardou-a no cinto. Não queria que ficasse muito molhada. Substituiu-a por uma faixa de couro mais macio, que trazia num rolo, em tudo semelhante à que Jondalar usava na resta e prendia atrás da cabeça para absorver a transpiração.

Quando se pôs de novo a caminho, viu um gafanhoto esverdeado dar um salto e esconder-se na sua camuflagem. Depois viu outro. Outros ainda guinchavam esporadicamente, recordando a nuvem de locustídeos. Mas aqui eles eram apenas mais uma de uma variedade de insetos, como as borboletas, que mostravam, de relance, suas cores vivas numa dança saltitante por cima das festucas ou os inofensivos moscões, que se parecem com abelhas melíferas, adejando sobre um botão-de-ouro.

Embora aquele campo elevado fosse diminuto em comparação com a estepe seca, a ela se assemelhava; mas quando chegaram à outra extremidade da ilha e olharam para além dela, ficaram assombrados com o estranho mundo úmido do vasto leque do delta. Para o norte, à direita deles, ficava o continente, para além de uma fina mata ciliar, e pastagens de um verde-ouro atenuado. Para o sul e para oeste, porém, estendendo-se ininterruptamente até o horizonte, e parecendo, na distância, tão sólida e substancial quanto a terra, havia a orla pantanosa do grande rio. Era um extenso estrato de caniços de um verde vistoso balançando ao vento num ritmo tão constante quanto o do mar. Só de longe em longe uma árvore lançava sombra sobre o verde ondulante e os caminhos sinuosos dos rios.

Descendo através da mata, Ayla ia prestando atenção às aves. Jamais vira tantas variedades juntas num local só, e algumas lhe eram desconhecidas. Gralhas, cucos, estorninhos, pombas-rolas soltavam seus pios próprios. Uma andorinha, perseguida por um falcão, desviou-se dele para um lado, para o outro, depois deu um mergulho para esconder-se entre os caniços. Milhafres negros, pairando muito alto, e gaviões-do-mangue, de vôo rasante, procuravam peixes mortos ou em vias de morre. Papa-moscas e pequenos pássaros canoros ocupavam todos os espaços, do matagal às árvores de certo porte, enquanto que maçaricos-das-rochas, rabos-ruivos, pica-paus-verdes pulavam de galho em galho. Andorinhas-do-mar planavam nas correntes de ar sem mover uma pena, enquanto que pelicanos, de aspecto grave e vôo majestoso, passavam no alto batendo as asas largas e potentes.

Ayla e Jondalar emergiram da floresta num trecho diferente do rio quando alcançaram de novo o rio. Estavam agora junto de um capão de salgueiros-chorões, em que se abrigava toda uma colónia de aves do pântano: garças-do-mar, de hábitos noturnos, pequeninas egretas, grous de plumagem purpúrea, cormorões, íbis, todos nidificando juntos. Na mesma árvore, o poleiro de uma espécie ficava às vezes à distância de um galho do ninho de outra espécie completamente diversa, e vários ninhos de pernaltas continham ovos ou filhotes de pássaros. Todas essas aves pareceram tão indiferentes à passagem do homem, da mulher, dos cavalos e quanto à presença de aves de outras variedades. Mas lugar assim tão fervilhante de vida e em tão tremenda atividade era uma tentação irresistível para o curioso filhote.

Ele se aproximou sorrateiro, visando tocaiar uma presa, excesso de oferta o desnorteou. Por fim, investiu contra uma determinada arvorezinha. Com grande ruído de gritos e bater de asas, os pássaros ali pousados levantaram vôo, seguidos de imediato por outros que tomaram aquilo como um aviso. O exemplo foi seguido nas árvores vizinhas. E logo o ar se encheu de aves do pântano, a espécie dominante no delta, até que mais de dez mil animais de variadas espécies daquela colónia ecumênica voltejavam em círculos frenéticos numa fuga dramática e precipitada.

Lobo, de rabo entre as pernas, se escondeu na floresta, latindo e uivando de medo em face da comoção que causara. Para acrescentar ao tumulo, os cavalos nervosos e assustados começaram a empinar e soltar relinchos. Depois, partiram a galope para a água.

O trenó funcionou como um freio para a égua, que tinha, aliás, temperamento mais calmo. Logo se acalmou. Mas Jondalar teve grande trabalho para conter o jovem garanhão. Entrou na água atrás do cavalo, teve de nadar quando ficou fundo e logo sumiu de vista. Ayla conseguiu pegar Huiin no canal e trazê-la de volta para a terra firme. Depois de tranquilizar e afagar o animal, desatou os mastros que ela vinha arrastando havia tanto tempo e removeu os arreios, para que a égua ficasse livre para descansar a seu modo. Depois assobiou chamando Lobo. Teve de repetir o assovio mais de uma vez para que ele voltasse, e viu que vinha de uma direção muito mais abaixo no rio, bem longe da área dos pássaros.

Ayla tirou as roupas molhadas, vestiu outras secas, que tirou da cesta da bagagem, depois apanhou madeira para fazer um fogo enquanto esperava Jondalar. Ele, também, teria de mudar de roupa. Por sorte, as cestas estavam no barco, e isso as conservara secas. Mas Jondalar levou algum tempo para achar o caminho de volta, vindo do oeste, guiado pela fogueira de Ayla. Racer galopara rio acima e cobrira uma boa distância antes que ele o alcançasse.

Jondalar estava ainda furioso com o lobo, o que ficou logo claro tanto para Ayla quanto para o próprio animal. Lobo esperou até que Jondalar se sentasse à beira do fogo, já de roupa seca, e com uma xícara de chá quente, para aproximar-se, curvado sobre as patas dianteiras, abanando o rabo e ganindo como um filhote que deseja brincar. Quando ficou bem perto, tentou lamber o rosto do homem, mas ele se furtou ao afago. Quando, por fim, permitiu que o animal se aproximasse, Lobo demonstrou tal alegria, que Jondalar cedeu.

— É como se ele estivesse pedindo desculpas, mas isso é coisa difícil acreditar. Como poderia? Não passa de um simples animal. Ayla, você acha que Lobo é capaz de saber que andou errado e está aborrecido por causa disso?

Ayla não se surpreendeu. Ela já vira o animal agir assim quando o ensinava a caçar ou observando outros carnívoros que ela escolhera como presa. A atitude de Lobo diante do homem era semelhante à do filhote de lobo para com o líder de uma alcateia.

— Não sei o que ele sabe ou o que sente, Jondalar. Posso apenas adivinhar pelo que faz. Mas não é assim também com as pessoas? A gente não sabe o que uma pessoa realmente sente ou pensa. Tem de guiar-se pelos atos dela, não é mesmo?

Jondalar concordou. Ainda não estava seguro de si. Em que deveria acreditar? Para Ayla, Lobo estava arrependido e achava que aquilo não tinha muita importância. Lobo costumava proceder do mesmo modo quando ela procurava ensiná-lo a deixar em paz os sapatos de couro dos habitantes do Acampamento do Leão. Isso lhe dera muito trabalho, e ela achava que era ainda muito cedo para fazê-lo desistir de apanhar pássaros.

O sol tocava de leve o cimo serrilhado das montanhas na ponta sul da longa cadeia que ficava a oeste de onde estavam e fazia brilhar as facetas do gelo. A serra, muito alta ao sul, descia gradativamente para o norte, e os ângulos abruptos se transformavam em cristas arredondadas de um branco tremeluzente. Para o lado noroeste, os cumes das montanhas desapareciam por trás de uma cortina de nuvens.

Ayla entrou numa abertura convidativa na fímbria arborizada do delta do rio e sofreou o animal. Jondalar fez o mesmo. A pequena aléia relvada era pouco maior no meio de um trecho aprazível de mata que conduzia diretamente a uma lagoa tranquila.

Se os braços principais do grande rio eram cheios de sedimentos, a complexa rede de canais e regatos secundários que serpenteavam por entre juncos do grande delta eram limpos; e sua água, potável. Ocasionalmente, os canais se alargavam em lagos ou plácidas lagoas, rodeados por uma profusão de canas, juncas, carriços e outras plantas aquáticas, e muitas vezes cobertos de nenúfares. Esses camalotes floridos eram resistente e ofereciam um lugar de repouso para os pernaltas menores e as inumeráveis rãs.

—    Este lugar parece excelente — disse Jondalar, passando uma perna pela garupa de Racer e apeando sem esforço. Removeu, em seguida, as cestas da bagagem, a manta, o cabresto, e soltou o animal. O jovem cavalo foi direto para o rio e, logo, Huiin o seguiu.

A égua entrou primeiro na corrente e começou a beber. Depois de algum tempo, se pôs a patear, espadanando água para molhar-se e ao filhote, que bebia a seu lado. Mais algum tempo, e a égua baixou a cabeça, fungou, de orelhas para a frente. Então, dobrando as pernas dianteiras, abaixou-se e rolou, primeiro de lado, em seguida de costas. Com a cabeça para cima e as pernas para o alto, espojou-se com delícias no leito raso da lagoa, depois deixou-se cair para o lado oposto e repetiu a operação. Racer, que a via rolar na água fresca, não se conteve mais. Imitando-a, abaixou-se também para rolar nos baixios, rente à margem.

—    Pensei que eles já estivessem fartos de água por hoje — disse Ayla, aproximando-se de Jondalar.

Ele se virou, tendo ainda no rosto o sorriso que a visão dos cavalos provocara.

—    E eles adoram rolar na água, para não falar em lama ou poeira. Eu não sabia disso antes.

— Mas sabe o quanto eles gostam de ser coçados. Penso que espojar-se é maneira que têm de se coçarem sozinhos — comentou a mulher. — E dizem um ao outro onde querem ser coçados.

— Como podem fazer tal coisa, Ayla! Às vezes penso que você acha que cavalos são gente.

— Não, cavalos não são gente. São animais, mas observe-os algum dia, quando estão de pé, cada um com a cabeça virada para o rabo do outro. Um coça o outro com os dentes e espera para ser coçado no mesmo lugar — disse Ayla. — Talvez eu dê uma boa coçadela em Huiin com o cardo-penteador. Ela deve mesmo ficar quente e cheia de comichões, usando, aqueles arreios de couro o dia todo. Às vezes acho que deveríamos abandonar o barco, mas ele tem sido útil.

— Estou com calor e cheio de comichões pelo corpo. Acho que vou tomar um banho também. E desta vez sem roupa — disse Jondalar.

— Eu vou, mas primeiro quero desempacotar. As roupas que ficaram molhadas ainda estão úmidas. Vou estendê-las para secar em cima daquelas plantas ali — disse Ayla, e tirando uma trouxa de dentro de uma das cestas, começou a distribuir as roupas pelos galhos de um grupo de amieiros baixos. — Não achei ruim que as roupas tivessem ficado úmidas. Encontrei um pedaço de raiz saponácea e ensaboei as minhas enquanto esperava por você.

Jondalar sacudiu uma das peças para ajudá-la a dependurá-la e viu que era a sua túnica. Segurou-a no ar para mostrá-la à mulher.

—    Entendi que você havia lavado as suas roupas — disse.

—    Lavei também as suas depois que se trocou — disse ela. — Muito suor seguido faz apodrecer o couro. Além disso, as roupas estão ficando muito cheias de nódoas — explicou ela.

Ele não se lembrava de ter-se importado muito com suor ou manchas quando viajara com o irmão, mas ficava satisfeito que Ayla se importasse.

Quando ficaram prontos para entrar no rio, Huiin vinha saindo. Ela se postou na margem, com a pernas separadas, depois começou a sacudir a cabeça. Essas sacudidelas violentas se propagavam por todo o corpo da égua até o rabo. Jondalar levantou os braços para não ficar molhado. Ayla, rindo, correu para o rio e, com as mãos, jogou rapidamente água no homem que vinha entrando. Logo que ele estava com água pelos joelhos, começou a retribuir-lhe o favor. Racer, que terminara seu banho e estava ainda por perto, recebeu uma parte da ducha e se afastou, indo depois para a margem. Gostava de água, mas em condições de sua própria escolha.

Depois que se cansaram de brincar e de nadar, Ayla começou a atentar para as possibilidades que o lugar oferecia para a refeição da noite. Saindo da água havia plantas com folhas lanceoladas e flores brancas, de três pétalas, que tendiam para um púrpura carregado no miolo, e ela sabia que os tubérculos dessa planta, ricos em amido, eram saborosos e bons para encher a barriga. Arrancou alguns do fundo lamacento com os dedos grandes dos pés. Os talos eram frágeis e se quebravam facilmente, de modo que não adiantava puxá-los. A caminho da margem, apanhou também algumas folhas espatuladas da erva chamada tanchagem para cozinhar e também do picante agrião, bom para comer cru. Uma formação de folhas flutuantes, pequenas e arredondadas, a irradiar de um centro comum, lhe chamou a atenção.

— Cuidado, Jondalar, para não pisar nessas castanhas-d'água — disse, apontando para os frutos, cheios de pontas, que juncavam a orla da praia arenosa.

Ele apanhou uma para vê-la mais de perto. Seus filamentos, em numero de quatro, eram dispostos de tal modo que enquanto um se fixava ao solo os outros apontavam invariavelmente para cima. Ele abanou a cabeça e lançou a castanha fora. Ayla se curvou para apanhá-la, junto com muitas outras.

—    Não são boas para pisar em cima delas — disse em resposta ao olhar interrogativo que ele lhe lançou —, mas excelentes para comer.

Na margem, na sombra junto da água, viu ainda uma planta que Ihe era familiar, espigada, com folhas azul-verde, e olhou em volta à procura de alguma folha larga e flexível com que pudesse proteger as mãos para colhê-las. Embora exigissem cuidado na manipulação por serem frescas, as folhas cheias de pontas eram deliciosas quanto fervidas. A labaça-aguada, que nascia no limite do rio, e era tão alta quando uma pessoa tinha folhas de 90 centímetros de comprimento e serviria muito bem para isso. Essas folhas também eram comestíveis. Perto delas havia também unhas-de-cavalo e diversas espécies de samambaias de raízes fragrantes. O delta era rico em alimento.

Ao longe, Ayla viu uma ilha de margens bordadas de caniços e tabuas. Parecia que as tábuas — partasanas ou paus-de-lagoa — fariam sempre parte da sua ração. Encontradiças por toda parte e prolíficas, com tantas partes comestíveis — os velhos rizomas, de amilo abundante, que se podiam moer para separar a parte feculenta das fibras, e esmagar para fazer um bolo doce, ou engrossar sopa; e as novas, que podiam ser comidas cruas ou cozidas, junto com a base dos pedúnculos das flores, para não falar da alta concentração de pólen, que podia ser amassado numa espécie de pão — tudo nelas era delicioso. Quando novas, as flores, reunidas na extremidade do alto caule como a ponta peluda de um rabo de gato, eram igualmente saborosas.

O festo da planta tinha outras utilidades: as folhas podiam ser tecidas para fazer esteiras e cestas. Os filamentos penugentos do invólucro das flores davam, depois das flores murchas, um bom estofamento absorvente e essa espécie de paina era ótima também para acender fogo. Ayla, com suas pederneiras de pirita, não precisava dela para esse mister, mas sabia que também os caules lenhosos e secos do ano anterior podiam ser girados entre as palmas da mão para produzir fagulhas. Podiam, ademais, servir de combustível.

—    Jondalar, vamos de bote até aquela ilha apanhar algumas tabuas.

Há muita coisa boa de comer nascendo da água, por lá, como os pericarpos daqueles nenúfares ou suas raízes. Os rizomas dos juncos também não são de desprezar. Estão debaixo d'água, mas como estamos molhados, isso não nos custa nada. Podemos pôr tudo dentro do barco, na volta.

— Você nunca esteve aqui. Como é que sabe que essas plantas todas são comestíveis? — perguntou Jondalar, enquanto retiravam o barco do trenó.

Ayla sorriu.

— São muitos os lugares pantanosos como este perto do mar, não longe da nossa caverna, na península. Não tão vastos quanto este, mas é tão quente por lá quanto aqui, no verão, e Iza conhecia as plantas e sabia onde encontrá-las. Nezzie me fez conhecer várias outras.

— Você conhece todas as que existem, na minha opinião!

— Muitas, mas não todas, principalmente aqui. Seria bom se tivesse a quem perguntar. A mulher na ilha grande, a que estava pelando raízes tuberosas, provavelmente saberia. Foi uma pena que não tivéssemos encontrado aquela gente.

Sua decepção era visível, e Jondalar sabia o quanto ela sentia falta de contato com outras pessoas. Ele sentia o mesmo, se bem que em menor escala, e também lamentava não terem falado com os locais.

Levaram o bote redondo para a beira da água e se enfiaram nele. A corrente era vagarosa, mas a sentiam mais de dentro do frágil bote saltitante, e tiveram de manejar os remos com presteza para não serem arrastados rio abaixo. Longe da margem e das alterações que eles tinham causado tomando banho, a água era tão limpa que se viam cardumes passando, velozes, por cima das plantas ou ao seu redor. Alguns peixes eram de bom tamanho e Ayla pensou em pegar alguns mais tarde.

Pararam numa concentração de bandejas de água, tão densa que não se podia ver, através delas, a superfície da lagoa. Quando Ayla saiu do barco, Jondalar teve dificuldade em dominá-lo sozinho. O barco mostrou uma tendência a girar sobre si mesmo quando ele tentou remar ao contrário, mas quando os pés de Ayla, que se segurava à borda, tocaram o fundo, ele se estabilizou. Usando os caules das flores como guia, ela encontrou as raízes e afrouxou-as com os dedos dos pés naquele solo mole, recolhendo-as quando flutuavam numa nuvem de detritos.

Quando ela se içou para o barco, ele se pôs a girar outra vez, mas os dois, remando juntos, conseguiram controlá-lo e se foram para a ilha coberta de caniços. Ao se aproximarem, Ayla notou que era a variedade menor de tábua que dava tão bem ali, junto com uma variedade arbustiva mas grande, de chorão-salgueiro. Alguns espécimes eram quase do tamanho de árvores.

Penetraram, remando, naquela densa vegetação, à procura de um banco de areia ou alguma pequena praia. Mas não encontraram terra firme nem mesmo banco de areia submerso. Quando passavam, o caminho que tinham aberto se fechava logo atrás deles. Ayla viu naquilo um agouro e Jondalar se sentiu como se tivesse sido capturado por alguma presença invisível quando a floresta de juncos os envolveu. Podiam ver, no alto, pelicanos em vôo, mas tinham uma impressão vertiginosa de que o vôo retilíneo deles se encurvava, entortado. Quando olhavam para trás, por entre os talos altos das plantas aquáticas, a margem oposta também parecia passar por onde estavam, girando.

—    Ayla, nós estamos em movimento! Regirando! — disse Jondalar, percebendo que não era a terra, mas o barco e toda a ilha que giravam, puxados pela corrente em espiral.

—    Vamos sair daqui — disse ela, pegando no remo.

As ilhas do delta não eram permanentes, mas sujeitas, sempre, aos caprichos da Grande Mãe dos rios. Mesmo aquelas que davam origem a uma rica vegetação aquática podiam ser solapadas de baixo para cima, ou a vegetação que começava numa ilha rasa acabava ficando tão espessa que lançava tentáculos por cima da água, parecendo coisa sólida.

Fosse qual fosse a causa inicial do fenómeno, as raízes dos juncos flutuantes se entrelaçavam e criavam uma plataforma de matéria em decomposição — formada tanto de organismo da água quanto de plantas — que contribuía, fertilizante que era, para a rápida proliferação da vida vegetal. Com o tempo, o conjunto transformava-se numa verdadeira ilha flutuante, capaz de servir de base a toda uma variedade de outras plantas: macis; diversas variedades de tábuas, de porte reduzido e folha estreita; juncos; fetos; e, até, salgueiros menores da espécie arbustiva, dita sedosa, que dá o vime. Todas essas plantas podiam ser encontradas na ourela dos canais, mas os capins juncosos, que chegavam a atingir três metros de altura, eram a vegetação primária. Alguns dos charcos transformavam-se, então, em grandes paisagens flutuantes, traiçoeiras na sua bem entrançada ilusão de solidez e de permanência.

Valendo-se dos pequenos remos, e não sem esforço, os dois conseguiram levar o barco de volta. Mas quando chegaram à periferia da sua instável ilha flutuante verificaram, com espanto, que não estavam do lado da terra. Faziam frente, ao contrário, a um lago e, do outro lado dele, a vista era tão espetacular que lhes tirou o fôlego. Recortada contra o fundo verde-escuro, havia uma imensa concentração de pelicanos brancos. Eram centenas e centenas de indivíduos, milhares mesmo, imprensados uns contra os outros, de pé, sentados, jacentes em grandes e arrepiados ninhos feitos de caniços flutuantes. Uma parte da vasta colónia voejava por cima dela, em diferentes níveis, como se a base onde era possível nidificar estivesse lotada e lhes fosse preciso esperar, voando em círculos, que houvesse vaga.

Primariamente alvos, com uma leve tintura rosa; de asas brancas mas debruadas de rêmiges e retrizes cinza-escuro, essas aves avantajadas, com seus longos bicos e suas bolsas guiares, dilatáveis, murchas no momento, cuidavam de várias ninhadas de filhotes penugentos ou esfiapados. Muito barulhentos, os filhotes de pelicano chiavam e grunhiam, e os adultos lhes respondiam com gritos roucos, tirados do fundo da garganta, e eram em tão grande número, adultos e filhotes, que o ruído ficava ensurdecedor.

Parcialmente ocultos pelas canas da margem, Ayla e Jondalar observam a colónia tomados de fascínio. Ouvindo um grito que vinha do alto, assistiram à aterrissagem de um pelicano que voava baixo e passou por cima deles sustentado por asas de três metros de envergadura. A ave alcançou uma área perto do meio do lago, dobrou as asas para trás, e caiu verticalmente como uma pedra, tocando a água com uma forte pancada. Foi uma aterrissagem deselegante. Não muito longe, outro pelicano, de asas abertas, corria pela vasta extensão da água, a fim de levantar vôo Ayla começou a entender por que eles gostavam de nidificar em lagos. Precisavam de muito espaço para erguer-se no ar. Se bem que, uma vez no alto, seu vôo fosse inteligente e gracioso.

Jondalar lhe deu um tapinha no braço e apontou a parte mais rasa da água, junto da ilha, onde vários dos pássaros maiores nadavam lado alado, avançando devagar. Ayla ficou a observá-los por algum tempo, depois sorriu para o homem. Com pequenos intervalos, os pelicanos enfileirados mergulhavam a cabeça na água simultaneamente e, em seguida, como que em obediência a um comando, erguiam a cabeça ao mesmo tempo, deixando que a água escorresse dos seus bicos compridos. Poucos tinham apanhado peixes. De outra feita, os infortunados teriam melhor sorte, mas todos continuavam a nadar em formação e a mergulhar, perfeitamente sincronizados uns com os outros.

Pares de outra espécie de pelicano, com diferenças na padronagem das penas, e ainda jovens, embora já não fossem propriamente filhotes, ocupavam a periferia da colónia. E no interior dela bem como em torno, outras espécies de aves aquáticas também viviam e procriavam: corvos-marinhos, por exemplo, mergulhões, e uma multiplicidade de patos — inclusive tarrantanas de crista vermelha e olho branco e patos selvagens do tipo mais comum. Todo aquele vasto charco fervia com uma profusão de aves, todas caçando e comendo peixes.

O gigantesco delta era, portanto, ele todo, uma ostentosa demonstração de abundância da natureza: uma pletora de vida que se mostrava sem o menor pudor. Intacta, indene, regida apenas pela lei natural e sujeita unicamente à sua própria vontade, e a do grande vazio de onde ela provinha — a grande Mãe Terra tinha prazer em criar e alimentar a vida em toda a sua prolífica diversidade. Uma vez saqueada, porém, privada dos seus recursos, violentada, despojada por uma poluição descontrolada, maculada pela corrupção e pelos excessos, sua fecunda capacidade de fazer e de conservar podia ser destruída.

Mas embora reduzida à esterilidade pela ocupação e exploração predatórias, com sua grande fertilidade exaurida, a última palavra, ironicamente, ainda seria dela. Pois embora nua e destituída, a mãe tinha ainda o poder de destruir o que ela mesma gerara. Nenhuma dominação lhe seria imposta nem suas suas riquezas podiam ser tiradas sem o seu consentimento, sua cooperação, ou atenção às suas necessidades. Seu desejo de viver não podia ser anulado impunemente. Sem ela, a vida que criara não poderia subsistir.

Embora Ayla pudesse ter ficado a observar os pelicanos indefinidamente, teve de começar a colher as tábuas e botá-las no barco, pois tinham ido lá com essa finalidade. Depois remaram de volta, contornando a massa dos camalotes. Quando se aproximaram da terra outra vez, estavam muito mais próximos do que antes do acampamento. Mal se aproximaram foram saudados por um longo uivo, cheio de notas de tristeza Depois de perambular um pouco, Lobo regressara, encontrando com facilidade o acampamento pelo cheiro dos donos. Mas não os encontrando, ficara aflito.

A mulher assobiou em resposta, para tranquilizar o animal. Ele correu, chegou à orla da água, uivou de novo. E depois de cheirar-lhe as pegadas, correndo para cima e para baixo, na margem, entrou no canal e nadou para o barco. Mas quando chegou perto, mudou de direção e rumou para o maciço de ervas flutuantes, que tomou, erradamente, por uma ilha.

Em vão, tentou subir para uma praia inexistente. Exatamente como Ayla e Jondalar tinham feito. Ficou a debater-se e a espirrar água para todo lado em meio das ciperáceas. Por fim, nadou outra vez para o barco. Com dificuldade, o homem e a mulher o puxaram para bordo pela pelagem molhada. Lobo estava tão excitado e ficou tão feliz que pulou em cima de Ayla, lambendo-lhe o rosto e, em seguida, o de Jondalar. Quando se deu por satisfeito, equilibrou-se no meio do barco, sacudiu-se todo e uivou.

Para surpresa deles, ouviram um uivo em resposta, depois uns poucos latidos, depois outro uivo. Viram-se cercados por uma série de uivos de lobo, cada vez mais próximos. Ayla e Jondalar se entreolharam com um arrepio de apreensão e ficaram onde estavam, nus, no interior do pequenino bote, escutando aquele coro de uma alcateia que não vinha, curiosamente, da terra, do outro lado da água, mas da ilha flutuante e, a rigor, inexistente!

—    Como pode haver lobos por lá? — disse Jondalar. — Aquilo não é ilha nenhuma, não há terra, sequer um instável banco de areia. Talvez não fossem lobos, pensou, com um frio na espinha. Talvez fossem...outra coisa...

Firmando a vista atentamente por entre os caniços eretos na direçâo do último uivo de lobo, Ayla pensou ver pêlo de lobo e dois olhos amarelos que a fitavam. Depois, um movimento mais acima a fez erguer a vista. Então viu, na forquilha de uma árvore, o que era indubitavelmente um lobo olhando para eles, de língua de fora.

Lobos não trepam em árvores! Pelo menos os lobos que ela conhecia. Cutucou Jondalar e apontou. Ele também viu o animal e prendeu a respiração. Parecia um lobo de verdade. Mas como teria subido naquele galho?

—    Jondalar — disse ela, falando baixinho —, vamos embora. Não gosto nada desse lugar, com lobos que sobem em árvores e andam em terra que não existe.

O homem estava tão inquieto quanto ela. Remaram de volta, através do canal. Quando estavam perto da margem, Lobo saltou fora. Eles desceram, arrastaram a pequena embarcação para botá-la a seco e logo se armaram com suas lanças e arremessadores. Os dois cavalos estavam de frente para a ilha flutuante, as orelhas para a frente, e uma tensão visível na postura. Os lobos são, normalmente, tímidos e não eram para eles motivo de preocupação. Sobretudo quando aquela mistura de cheiro de cavalos, seres humanos e outro lobo apresentava um quadro tão pouco costumeiro. Mas não sabiam o que pensar daqueles lobos. Seriam lobos comuns ou alguma coisa... sobrenatural?

Se o controle que tinham sobre animais não tivesse assustado os habitantes da grande ilha, teriam ouvido deles que os lobos não eram mais sobrenaturais que eles mesmos. A terra alagada do grande delta servia de lar a muitos animais, inclusive lobos de verdade. Habitavam, normalmente, as florestas das ilhas, mas se haviam adaptado tão bem ao meio inundado no curso de milhares de anos que eram capazes de correr por cima dos camalotes com facilidade. Tinham também aprendido a subir em árvores, o que, numa paisagem movediça como aquela, lhes dava uma grande vantagem quando ficavam isolados pela enchente.

Que lobos pudessem viver num habitat quase aquático era prova da sua grande adaptabilidade, que lhes permitia aprender a viver na companhia do homem. E tão bem que, com o tempo, embora capazes ainda de cruzar com os seus semelhantes da selva, ficariam tão completamente domesticados que quase pareciam outra espécie animal. Muitos deixaram, mesmo, de parecer com lobos.

Do outro lado do canal, na ilha flutuante, diversos lobos podiam ser vistos agora, dois dos quais em árvores. Lobo olhava, expectante, de Ayla para Jondalar, como que aguardando instruções dos dois líderes da sua própria alcateia. Um dos lobos da ilha soltou um novo uivo. E os outros responderam. Ayla sentiu mais uma vez o frio na espinha. O som era diferente do que ela estava acostumada a ouvir, se bem que não fosse capaz de precisar em quê. Talvez as reverberações da água alterassem o som... De qualquer maneira, a coisa acrescentou à inquietude que já sentia.

A expectação acabou de súbito quando os lobos desapareceram, tão silenciosamente como tinham vindo. Num momento, o homem e a mulher, com seus arremessadores e Lobo, enfrentavam um bando de lobos de que os separava um canal. No momento seguinte, os animais já não atavam lá. Ayla e Jondalar, ainda empunhando as armas, viram-se diante de inofensivas tábuas e caniços, sentindo-se vagamente como tolos e transtornados.

Uma brisa fresca, que lhes arrepiou a pele, lembrou-lhes que o sol já se deitava por trás das montanhas, a oeste, e que a noite vinha perto. Depuseram as armas, vestiram-se bem rápido, fizeram logo uma fogueira e acabararn de instalar o acampamento. Mas estavam um tanto esvaziados. Ayla foi ver os cavalos mais de uma vez e alegrou-se quando eles resolveram pastar no próprio campo em que estavam acampados.

Quando a noite se fechou em torno do clarão do fogo, ficaram sentados, e quietos, lado a lado, escutando os ruídos da noite no delta do rio, que aos poucos iam enchendo o ar. Garças noturnas ficavam ativas ao escurecer e soltavam guinchos. Depois vinham os grilos, cricrilando. Uma coruja piou várias vezes de forma lúgubre. Ayla ouviu fungadelas na mata vizinha e achou que fosse um urso. Perscrutando a distância, ficou estupefata ao ouvir o riso de uma hiena e, em seguida, mais perto, o grito de um grande felídeo que deixara fugir sua presa. Perguntou-se se poderia ser um lince, ou talvez um leopardo das neves. Ficou, depois, à espera dos uivos de lobos. Mas nenhum se ouviu.

Depois, com uma treva de veludo cobrindo e igualando toda silhueta e toda sombra, surgiu em crescendo o acompanhamento da orquestra, enchendo os intervalos dos instrumentos principais. Do leito do rio e de todos os canais vizinhos, do lago e da lagoa coberta de lírios-d'água, um coro de sapos se ergueu. As vozes profundas dos sapos do brejo e das rãs comestíveis dominaram a serenata anfíbia, a que outros sapos, maiores, marcavam compasso com tons graves de sinos. Em contraponto vieram, por fim, os trilados de flauta de outros muitos sapos e a canção murmurante dos sapos que cavucam com o pé, todos na base do velho refrão cré-cré-cré-coach-coach.

Quando Ayla e Jondalar se meteram na sua pele de dormir, o incessante canto dos sapos já se diluíra no conjunto de sons mais familiares. Mas os uivos de lobo, percebidos, finalmente, a distância, ainda deram a Ayla alguns arrepios. Lobo se acomodou nas patas traseiras e respondeu.

— Eu me pergunto se ele sente falta de uma alcateia — disse Jondalar, enlaçando Ayla com o braço. Ela se aconchegou a ele, contente com o calor do seu corpo e com a proximidade.

— Não sei, mas às vezes isso me faz pensar. Neném me deixou para encontrar uma companheira, mas leões machos sempre abandonam os seus territórios para procurar parceiras em outro bando.

—    Você acha que Racer irá deixar-nos? — perguntou o homem.

— Huiin fez isso, por algum tempo, e viveu com um bando de cavalos. Mas sei o que terão pensado as outras éguas a respeito dela, mas voltou quando seu garanhão morreu. Nem todos os cavalos vivem com hordas de fêmeas. Cada horda escolhe apenas um, e então esse tem de lutar com os demais e expulsá-los. Garanhões jovens e velhos vivem juntos, de regra, em suas próprias hordas, mas são todos atraídos pelas fêmeas quando chega a hora de partilhar Prazeres. Estou certa de que Racer vai fazer a mesma coisa, mas então ele terá de lutar com o garanhão líder.

— Talvez eu o possa manter quieto na rédea até que passe o cio — disse Jondalar.

— É cedo para pensar nisso, a meu ver. Em geral, os cavalos vão atrás de Prazeres na primavera. Preocupo-me é com as pessoas que possamos encontrar no curso da nossa Jornada. Elas não saberão que Huiin e Racer são casos especiais. Alguém pode tentar feri-los. Nós mesmos não seremos aceitos com tanta facilidade.

E o que achariam dela mesma?, pensou Ayla, nos braços de Jondalar. O que pensaria dela seu povo? Ele notou que ela estava calada e pensativa. Talvez fosse fadiga, pensou. Ele mesmo estava cansado. O coro dos sapos lhe dava sono. Acordou com a agitação e os gemidos da mulher que tinha enlaçada.

— Ayla! Ayla! Acorde! Está tudo bem.

— Jondalar! Oh, Jondalar! — exclamou ela, agarrando-o com força. — Eu estava sonhando... com o Clã. Creb estava tentando dizer-me alguma coisa importante, mas nós estávamos no fundo de uma caverna escura. Eu não podia vero que ele dizia.

— Você pensou neles durante o dia, provavelmente. Falou sobre eles quando estávamos na grande ilha, olhando para o mar. Achei que parecia triste. Pelo fato de deixá-los para trás?

Ela fechou os olhos e concordou. Não sabia se seria capaz de falar sobre aquilo sem chorar, e hesitava em mencionar a preocupação que tinha com o povo dele, se iriam aceitá-la, e aos cavalos e ao lobo. O Clã e seu filho estavam agora perdidos para sempre. Não queria perder também sua família de animais, se conseguissem chegar com eles. Sãos e salvos. Ah, se soubesse o que Creb tinha querido dizer-lhe!

Jondalar a apertou ao peito, confortando-a com seu calor e carinho, compreendendo o que ela sentia, mas sem saber o que dizer. Aquela proximidade lhe parecia bastante.

 

O braço setentrional do Rio da Grande Mãe, com seu conjunto labiríntico de canais, era o limite tortuoso e serpenteante do extenso delta. Vegetação baixa e árvores acompanhavam o limite do rio, mas para lá da margem estreita, para além da fonte imediata de umidade, a floresta ciliar cedia lugar rapidamente aos capins da estepe. Cavalgando para oeste pela pastagem seca, costeando a faixa arborizada, mas evitando reproduzir sinuosidades do rio, Ayla e Jondalar seguiram pela margem esquerda, rio no acima.

Aventuraram-se, frequentemente, nos banhados, acampando o mais das vezes perto do rio. Ficavam muitas vezes surpresos com a diversidade que encontravam. A foz maciça lhes parecera tão uniforme de longe, quando a viram da grande ilha, mas de perto ela revelava uma grande variedade na paisagem como na vegetação, que ia desde a areia nua à floresta cerrada.

Um dia passavam por campos e mais campos de tábuas, com as flores marrons agrupadas numa espiga cilíndrica como uma salsicha, eriçada de pontas cobertas por massas de pólen amarelo. No dia seguinte, viam enormes massas de juncos fragmáticos, duas vezes mais altos que Jondalar e que cresciam combinados com as variedades mais curtas e mais graciosas da mesma planta. Essas brotavam mais perto da água que as outras e cresciam em moitas mais densas.

As ilhas formadas pelo assoreamento da foz eram, em geral, alongadas como estreitas línguas de terra, ou mais exatamente, de areia e argilas, batidas pelas águas impetuosas do rio e pelas correntes opostas do mar. O resultado era um variegado mosaico de áreas cobertas de juncos, banhados, estepes e florestas, em diferentes estados de desenvolvimento, sujeitos, todos, a rápidas alterações e cheios de surpresas. A diversidade sempre em mutação estendia-se, até, para além da divisa. Os viajantes se viam, de súbito, diante de lagos formados em cotovelos do rio e completamente separados do delta, apertados entre margens que tinham começado como ilhas de sedimentação.

Essas ilhas haviam sido originariamente estabilizadas por plantas de praia e capins-elimo que alcançavam quase um metro e meio e que os cavalos adoravam — o alto teor de sal atraía muitos outros animais. Mas a paisagem podia mudar tão rápido que eles por vezes encontravam ilhas dentro dos limites da imensa foz do rio, com plantas de praia ainda viçosas em dunas ilhadas ao lado de floresas já consolidadas, em que havia até lianas.

Como o homem e a mulher viajavam costeando o grande rio, muitas vezes se viam obrigados a atravessar pequenos afluentes, mas os regatos tinham tão pouca importância que os cavalos chapinhavam por eles e os rios pequenos não apresentavam maior dificuldade: eram fáceis de vadear. Os baixios encharcados de canais que secavam em ritmo acelerado e tinham mudado de curso eram coisa muito diferente. Jondalar preferia contorná-los. Tinha plena consciência do perigo que um terreno assim pantanoso representava, com o solo movediço que em tais lugares se formava, e isso por causa de uma infortunada experiência por que haviam passado, ele e o rio, quando passaram por ali antes. Mas não sabia dos perigos escondidos, às vezes, na vegetação mais cerrada.

Aquele fora um dia longo e quente. Jondalar e Ayla, à procura de um terreno para pernoitar, acreditaram ver perto do rio um lugar que lhes pareceu apropriado. Desceram então para uma pequena ravina, fresca e convidativa, em que altos salgueiros sombreavam uma alameda especialmente verdejante. De súbito, uma grande lebre marrom cruzou a frente deles, do outro lado do campo, e Ayla mandou que Huiin avançasse, enquanto procurava a funda no cinto. Mas depois de alguns passos a égua hesitou quando o sólido terreno debaixo dos seus cascos se fez esponjoso.

A mulher sentiu a mudança do passo imediatamente, e foi uma sorte que sua primeira reação, instintiva, tivesse sido obedecer ao animal, embora tivesse a mente preocupada com o jantar. Ela puxou as rédeas justamente quando Jondalar e Racer apareceram. O cavalo também percebeu o chão mole, mas sua velocidade era maior, e ele chegou a dar alguns passos.

O homem quase foi derrubado quando as patas do cavalo afundaram na lama espessa e arenosa, mas ele se aprumou logo e saltou. Com um relincho e uma torção do corpo, o jovem garanhão, que tinha ainda as patas traseiras em terreno firme, conseguiu extrair uma perna do paul que a sugava. Recuando um passo e achando apoio, Racer fez força até que o outro pé de repente se soltou da areia movediça com um estalo.

0 cavalo ficou abalado, e Jondalar teve de acalmá-lo afagando-lhe o pescoço. Depois, com um galho, explorou o terreno à frente. Quando o galho foi engolido, ele apanhou o terceiro mastro, que não era usado para o trenó, e explorou com ele. Embora coberto de caniços, o pequeno campo era um sumidouro de argila e lodo. O recuo ágil da montaria conjurara um possível desastre, mas dali por diante eles se aproximavam do Rio da Grande Mãe com maior cautela do que antes. Sua caprichosa diversidade podia esconder surpresas indesejáveis.

As aves continuavam a ser a forma dominante de vida no delta. Principalmente garças, egretas e patos. Havia também um grande número de pelicanos, cisnes, gansos, grous, e, nas árvores, umas poucas cegonhas negras e íbis coloridas, de plumagem brilhante. A fase de nidificação variava com as espécies, mas todas tinham de reproduzir-se durante o calor. Os viajantes recolheram ovos de todos aqueles pássaros para refeições ligeiras e fáceis de preparar, e até Lobo aprendeu a quebrar as cascas e a gostar das variedades que tinham um leve sabor de peixe.

Depois de algum tempo, acostumaram-se às aves do delta. Sabiam agora o que esperar e tinham poucas surpresas. Uma tarde, porém, quando cavalgavam ao longo de uma floresta de salgueiros paralela ao rio, deram com uma cena impressionante. As árvores abriam para uma laguna, quase um lago, embora no primeiro momento julgassem que se tratava de terra firme, a tal ponto as ninféias cobriam tudo. O que lhes chamou a atenção foram as centenas de garças pequenas, encarapitadas — com os pescoços compridos curvados em S e os bicos pontudos prontos para fisgar peixes — em todos os camalotes floridos de ninféias.

Fascinados, eles quedaram em contemplação por algum tempo, depois decidiram partir, com medo que Lobo aparecesse aos saltos e espantasse as aves dos seus poleiros. Estavam a pequena distância do local, fiando seu acampamento, quando viram que centenas das aves haviam levantado vôo. Jondalar e Ayla interromperam o que estavam fazendo e ficaram vendo as cegonhas, com seus longos pescoços e suas grandes asas desfraldadas batendo, até que se tornaram silhuetas escuras contra as nuvens cor-de-rosa do lado do oriente. O lobo veio logo reunir-se a eles, todo lampeiro, e Ayla desconfiou que ele as tivesse posto em fuga. Mas como ele não fazia nenhuma tentativa séria de pegar uma ave, gostava tanto de persegui-las que ela ficou imaginando se não seria pelo prazer vê-las voar. Para ela, aquele era um grande espetáculo. Ayla acordou na manhã seguinte sentindo-se quente e suada. O calor aumentara, e ela teve preguiça de levantar. Gostaria muito se pudessem descansar um dia. Não que se sentisse tão fatigada. Estava farta de viajar. Até os cavalos precisavam de algum repouso, pensou. Jondalar vinha fazendo pressão para que continuassem, e ela sabia os motivos que o levam a isso, mas se um dia fizesse tanta diferença assim para a travessia da geleira de que ele ficava falando, então já estavam irremediavelmente atrasados. Precisariam de mais de um dia do tempo firme necessário à segurança da viagem. Mas quando ele se levantou e começou a arrumar suas coisas, ela fez o mesmo.

À medida que a manhã avançava, o calor e a umidade, mesmo em campo aberto, foram ficando opressivos. Quando Jondalar sugeriu que se detivessem para nadar um pouco, Ayla de imediato concordou. Levaram os cavalos para o rio e viram com prazer uma clareira abrindo para a água. Um leito seco de rio sazonal, ainda um tanto encharcado e sujo de folhas em decomposição, deixava apenas um pequeno espaço coberto de relva, mas criava uma espécie de bolsão aconchegante rodeado de pinheiros e chorões. A vala era barrenta, mas um pouco mais atrás, na curva do rio, havia uma praia estreita de seixos rolados e uma piscina natural, mosqueada de sol que as árvores filtravam.

—    Perfeito! — disse Ayla, com um grande sorriso.

E começou a desatar o trenó.

Você acha necessário fazer isso? — perguntou Jondalar. — Afinal, não nos vamos demorar.

— Os cavalos precisam descansar também, e nós podemos nada um pouco — disse ela, retirando as cestas e a manta de Huiin. — Precisamos também esperar por Lobo. Não o vi a manhã toda. Deve ter sentido algum cheiro irresistível e estará em plena caçada.

— Muito bem — disse Jondalar, que, por sua vez, desatou as correias que prendiam as cestas de Racer. Guardou-as no barco, ao lado de Ayla, e deu uma palmada afetuosa na garupa do cavalo, para indicar que ele podia acompanhar Huiin.

Ayla logo tirou a roupa e mergulhou no rio, enquanto Jondalar urinava. Ele a seguiu com os olhos e não pôde mais desviar a vista. Ayla estava com água tremeluzente até a altura dos joelhos, e um raio de sol que passava por um vão na copa das árvores punha-lhe um halo dourado nos cabelos e fazia luzir a pele nua do seu corpo elástico.

Contemplando-a, Jondalar comoveu-se de novo com a sua beleza. Por um momento, o amor que tinha por ela o sufocou. Ela se curvou, para apanhar água nas mãos em concha, acentuando as curvas das nádegas e expondo a pele mais clara do lado interno da coxa. Isso lhe fez subir um calor ao rosto e acendeu nele o desejo. Jondalar baixou os olhos para o membro que ainda segurava na mão e sorriu, pensando agora em fazer mais do que nadar simplesmente.

Ela o olhou também quando ele entrou na água, viu seu sorriso, e um olhar conhecido, imperioso, nos seus olhos azuis. Notou também que seu membro ia mudando de forma. A reação que teve foi imediata: uma instigação intensa. Depois, acalmou-se, e a tensão, que não havia detectado antes, se foi. Não iam mesmo viajar mais naquele dia, se dependesse dela. E ambos precisavam de uma mudança de ritmo, de uma diversão gostosa, excitante.

Ele percebera o olhar de relance que ela lhe dera e tomou nota da reação favorável e de uma ligeira mudança na atitude de Ayla. Sem na verdade trocar de posição, sua postura se fizera, de certo modo, mais convidativa A reação dele foi óbvia. Não poderia escondê-la nem que o quisesse.

— A água está maravilhosa — disse ela. — Foi uma boa ideia que você teve, nadar um pouco. Eu estava com muito calor.

— Sim, eu também estou quente — respondeu ele, sorrindo, e avançando devagar na água em direção à mulher. — Não sei como são as coisas com você, mas eu não tenho nenhum controle sobre mim quando estou a seu lado.

— E por que se controlaria? Eu não me controlo. Basta que você me olhe desse jeito para que eu esteja pronta — disse ela, e seu rosto se abriu num sorriso... Aquele belo sorriso de que ele tanto gostava.

—    Ah, mulher! — disse ele, num sopro, pegando-a nos braços. Ela ergueu os seus para enlaçá-lo, e ele se curvou para beijar-lhe os lábios macios. Jondalar passou-lhe as mãos pelas costas, sentindo-lhe a pele que o sol aquecera. Ela gostava quando ele a tocava dessa maneira e respondeu à carícia com uma antecipação instantânea e surpreendente.

Jondalar tateou mais embaixo, pegou-a pelos seios redondos e lisos, e puxou-a com força. Ela sentiu toda a extensão do seu membro quente contra o estômago, mas o movimento a fizera perder o equilíbrio. Procurou firmar-se, mas uma pedra cedeu debaixo de seu pé. Ela se apoiou nele mas isso o desequilibrou. Jondalar escorregou, e os dois caíram na água com um grande chape. Depois, sentaram-se, rindo.

—    Você se machucou? — perguntou Jondalar.

—    Não, mas a água está fria, e eu pretendia entrar na água bem devagar. Mas agora que estou molhada, vou nadar. Não foi isso que viemos fazer aqui?

— Sim, o que não quer dizer que não possamos fazer outras coisas também — disse ele. Via que a água chegava apenas até debaixo dos braços de Ayla. Seus seios túmidos flutuavam, e ele pensou nas proas abauladas de dois barcos, com pontas rosadas e duras. Debruçou-se, e lambeu um dos mamilos, sentindo seu calor na água fria.

Ela se arrepiou toda e jogou a cabeça para trás, a fim de deixar que a sensação se comunicasse ao corpo todo. Ele aninhou o outro seio na mão em concha, depois passou-lhe a mão pelo lado, puxando-a. Ela estava tão sensível que só a pressão da palma da mão dele no bico do seio, endurecido, desencadeava novas ondas de prazer. Ele sugou o outro seio, depois se deixou ir e beijou-a ao longo do seio e, para cima, no pescoço. Alcançando a orelha, soprou de leve, em seguida encontrou os lábios. Ela abriu a boca de leve e sentiu o toque da sua língua, depois o beijo.

—    Vamos — disse ele, quando se separaram, pondo-se de pé, e estendendo a mão para ajudá-la —, vamos nadar.

Conduziu-a, então, mais para dentro da água, até que lhe chegasse pela cintura, depois puxou-a para perto, a fim de beijá-la mais uma vez. Ela sentiu a mão dele entre as pernas, o frio da água quando ele lhe abriu as pregas, e uma sensação mais forte quando ele achou com os dedos o pequeno botão duro e o esfregou.

Ayla deixou que a sensação a dominasse toda. Em seguida, pensou, isto está acontecendo depressa demais. Estou quase gozando! Respirou fundo, soltou-se dos braços dele, e, com uma risada, jogou-lhe água.

—    Acho que devemos nadar, disse, e ensaiou algumas braçadas.

O espaço era exíguo, fechado, do outro lado, por uma ilha submersa coberta com uma densa concentração de caniços. Uma vez passado esse obstáculo, ela pisou o fundo e o encarou. Ele sorriu, e Ayla sentiu a força do magnetismo de Jondalar, do seu desejou-o do seu amor, e desejou-o também. Começou a nadar de volta para a margem e ele a seguiu.

Quando a água ficou de novo rasa, ele se aprumou e disse.

—    Muito bem, já nadamos. — Então tomou-a pela mão, tirando-a da água para a margem. Beijou-a, sentiu que ela o puxava, que parecia fundir-se nos seus braços. Os seios, o ventre e as coxas de Ayla se colaram ao seu corpo.

—    Agora é hora de outras coisas, Ayla.

Ela estava com a garganta presa e os olhos dilatados. Sua voz ficou trémula quando tentou responder.

— Que outras coisas? — disse, procurando brincar e sorrir.

Ele se deixou cair na relva, estendeu-lhe a mão, e disse:

— Venha cá que eu lhe mostro.

Ela se sentou a seu lado. Ele a forçou para trás, beijando-a, e sem outras preliminares, cobriu-a, depois desceu, abriu-lhe as pernas e fez correr sua língua quente nas pregas molhadas e frias. Os olhos de Ayla se abriram por um momento. Ela estremeceu com a força da pulsação que lhe percorria o corpo, sentindo-a intensamente. Logo ele se pôs a chupar na sua área dos Prazeres.

Queria prová-la, sorvê-la, e sabia que estava pronta. Sua própria excitação cresceu vendo que ela respondia, e seus rins lhe doeram, com a urgência da necessidade, e o seu membro, grande e levemente encurvado, inchou ao máximo. Ele lhe esfregou o nariz, mordiscou, sugou, e manipulou com a língua. Por fim, enfiou-a nela para saborear por dentro. Malgrado o desejo que sentia, queria que aquilo se pudesse prolongar para sempre. Adorava dar a Ayla os Prazeres.

Ayla sentia o frenesi crescendo dentro dela, e gemeu, depois gritou quando sentiu que o ponto culminante se aproximava.

Se ele não se policiasse, poderia gozar até sem penetrá-la, mas gostava da sensação de estar dentro dela também. Bom seria se pudesse fazer tudo ao mesmo tempo.

Ela se alçou para alcançá-lo. empinou-se, sentindo que a clamorosa tormenta crescia dentro dela e que de repente, quase sem aviso, explodia. Ele sentiu a umidade dela, o seu calor, e, subindo um pouco, achou a entrada e de um só golpe, encheu-a completamente. Seu membro estava a ponto de explodir também, e ele não sabia quanto tempo seria capaz de resistir ainda.

Ela gritou seu nome, agarrou-o, desejando-o, com o corpo em arco para encontrar o dele. Ele se enfiou de novo, sentindo-a de todo. E em seguida, tremendo e gemendo, recuou, com os rins apertados, pois seu orgão incitava poderosas sensações por toda parte. Então, de chofre, o auge estava às portas, não podia esperar mais, e ele se afundou de novo e sentiu que os Prazeres o tomavam. Ela gritou com Jondalar, e o terrível deleite a inundou.

Ele deu mais algumas estocadas. Depois, deixou-se tombar por cima da mulher, e ambos descansaram da excitação e do tempestuoso alívio. Depois de algum tempo, ele ergueu a cabeça, e ela o beijou, cônscia do seu gosto e cheiro nele, o que sempre lhe recordava os incríveis sentimentos que Jondalar era capaz de evocar nela.

— Eu bem que quis fazer que isto durasse, levasse muito tempo, mas não deu: eu estava pronta demais para você.

— O que não quer dizer que não possa durar — disse ele, e viu que ela sorria.

Jondalar rolou de lado e disse, sentando-se:

— Esta margem de seixos não é muito confortável. Por que não reclamou?

— Não percebi, mas agora que você o menciona, há uma pedra me machucando as cadeiras, outra aqui, debaixo do ombro. Acho que devíamos procurar um lugar mais macio... para você descansar — disse ela, com um risinho maroto e um brilho no olho. — Mas, primeiro, gostaria de nadar um pouco de verdade. Talvez haja um canal mais fundo aqui por perto.

Relaxaram um pouco, nadaram um pouco, depois continuaram, rio acima, rompendo o camalote raso e barrento dos caniços. Do outro lado a água era inesperadamente mais fria; depois ficou fundo, e eles se viram num canal aberto que corria entre os caniços. A mãe do rio.

Ayla tomou a dianteira, mas logo Jondalar fez um esforço e emparelhou com ela. Eram bons nadadores, os dois, e logo se acharam numa espécie de amigável competição, apostando corrida ao longo do canal que serpeava entre os caniços. Eram páreo um para o outro, de modo que qualquer vantagem pequena logo punha um à frente. Ayla estava mais adiantada quando alcançaram um ponto em que o canal se bifurcava, mas num ângulo tão acentuado que quando Jondalar ergueu os olhos Ayla estava mais à vista.

— Ayla! Ayla! Onde está você? — gritou.

Nenhuma resposta. Ele chamou de novo, e entrou nadando por um dos canais. Ele se torcia sobre si mesmo e tudo que se via eram caniços. Para onde quer que se virasse, havia paredes de caniços altos. Tomado de pânico, ele chamou de novo:

—    Ayla, em que parte do frio mundo subterrâneo da Mãe você se meteu?

Ouviu então, um assovio, dos que Ayla usava para chamar Lobo. Sentiu um grande alívio, mas o assovio vinha de longe, mais longe do que ele imaginava que deveria vir. Assoviou em resposta, e ela respondeu. Ele então nadou de volta, alcançou a forquilha e seguiu pelo outro canal.

Esse canal também era sinuoso e se abria num terceiro. Nesse ponto, Jondalar sentiu que uma forte corrente o arrastava, e logo se viu, com surpresa, levado rio abaixo. Mais adiante viu Ayla, que resistia à foça da água e nadou para encontrá-la. Ela continuou a nadar contra a corrente, mesmo quando ele chegou perto, com medo de ser arrastada outra vez para o canal errado se parasse de lutar. Ele fez meia-volta e nadou com ela, rio acima. Na bifurcação, descansaram um pouco, mexendo apenas com as pernas, para ficarem à tona.

—    Ayla! Onde tinha a cabeça? Por que não se certificou se eu sabia para onde estava indo? — reclamou.

Ela sorriu, ciente de que aquela fúria era o resultado da tensão causada pelo medo que ele tivera.

—    Eu estava querendo apenas ir em frente. Não podia saber que o canal mudava de direção tão depressa ou que a correnteza fosse tão forte. Fui arrastada antes de me dar conta do que se passava. Por que é tão forte assim?

Passada a aflição, feliz por vê-la a salvo, a raiva de Jondalar logo acabou.

— Não sei. É muito estranho. Talvez estejamos perto do canal principal, ou então a terra mole, no fundo, está sendo levada de roldão.

— Vamos voltar. Esta água está muito fria, e mal posso esperar por aquela praia ensolarada — disse Ayla.

Deixando que a corrente os ajudasse, os dois nadaram de volta, relaxados. Embora a água não puxasse com tanta força, levava-os. Ayla ia de costas, boiando. Contemplava as canas verdes que passavam e a límpida abóbada azul. O sol estava ainda a oriente, mas já ia alto no céu.

— Lembra-se do lugar onde pegamos este canal, Ayla? — Todos me parecem iguais.

— Havia três grandes pinheiros juntos, na margem. E o do meio era maior que os outros. Atrás deles havia chorões de compridas hastes pendentes — disse ela, virando-se para nadar outra vez.

— São tantos os pinheiros na margem. Talvez devêssemos sair. Talvez já tenhamos passado o lugar, Ayla.

— Não creio. O pinheiro à direita do pinheiro grande tinha uma forma engraçada, meio torta. Não o vi, até agora, espere... Lá está ele, veja... para cima um pouco — disse Ayla, rumando para a margem.

— Você está certa. Viemos por aqui. Os caniços estão pisados.

Passaram por eles e pela piscina natural, onde agora fazia calor. Pisaram a pequena área de seixos rolados com a sensação de ter voltado para casa.

— Vou fazer uma fogueira e preparar chá, disse Ayla, raspando os braços com a mão para livrar-se da água. Espremeu, em seguida, a água dos cabelos, depois foi até as cestas da bagagem, recolhendo gravetos pelo caminho.

—    Quer suas roupas? — perguntou Jondalar, despejando no chão mais uma braçada de lenha.

— Prefiro secar-me um pouco mais — disse ela, vendo que os cavalos pastavam tranquilamente na estepe vizinha, mas Lobo não estava por perto. Ficou um pouco apreensiva, mas não era a primeira vez que ele saía sozinho e se demorava metade do dia.

—    Por que não estende a manta de forrar o chão naquela parte da relva onde o sol está batendo? Pode descansar um pouco enquanto faço o nosso chá.

Ayla fez um bom fogo enquanto Jondalar apanhava água. Escolheu, depois, no seu estoque de ervas secas, estudando-as com cuidado. Uma tisana de alfafa seria ótima, pois era ao mesmo tempo refrescante e estimulante, mas com algumas flores e folhas de borragem, um bom tónico, e flores de goivo para adoçar a infusão e dar-lhe um leve gostinho picante. Para Jondalar, selecionou uns poucos amentilhos masculinos de amieiro, vermelho-escuro, que apanhara no começo da primavera. Lembrava-se da ocasião: fizera-o pensando na sua promessa de se unir a Ranec, mas todo o tempo desejando que fosse com Jondalar. Foi com um calor de felicidade que juntou os amieiros ao restante das ervas.

Quando o cozimento ficou pronto, levou duas xícaras para a grama em que Jondalar repousava. Parte da manta já estava na sombra, mas não fazia mal. O calor do dia já esquentara a friagem da natação. Ela deu uma xícara a Jondalar e sentou-se com a outra na mão. Ficaram juntos, ali, desfrutando da companhia um do outro, sorvendo a bebida, com poucas palavras, e contemplando os cavalos, de pé, lado a lado, mas voltados para direções opostas, espanando moscas da cara um do outro com os rabos.

Quando acabou de beber, Jondalar se deitou com as mãos atrás da cabeça. Ayla ficou contente vendo que estava mais tranquilo e não mais sôfrego para partir como de hábito. Colocou sua xícara também na grama e deitou-se de comprido junto dele. Fechou os olhos e ficou respirando o Cheiro bom do seu homem e sentindo que a mão dele alisava seu quadril, num gesto doce e inconsciente de carinho.

Virando a cabeça, ela beijou a pele quente de Jondalar, depois soprou em direção ao seu pescoço. Ele estremeceu e fechou os olhos. Ela o beijou de novo, depois soergueu um pouco o corpo e começou a dar-lhe pequeninas mordidas no pescoço e no ombro. Aquilo lhe dava cócegas quase insuportáveis, mas também uma tal excitação que ele resistiu idéia de mexer-se e aguentou firme.

Ayla beijou-lhe o pescoço, o queixo, a face, sentindo os pêlos duros no rosto. Depois procurou a boca e se pôs também a mordiscá-la de leve, de uma comissura à outra. Feito isso, olhou-o fixamente. Ele tinha os olhos fechados, mas uma expressão expectante. Finalmente, abriu-os e viu-a debruçada sobre seu corpo com um sorriso de completo deleite. Os cabelos, ainda molhados, caíam-lhe, pesados, sobre um ombro. Ele queria agarrá-la, esmagá-la contra o peito, mas limitou-se a corresponder ao sorriso da mulher.

Ela baixou mais um pouco, explorou-lhe a boca com a ponta da língua, tão de leve que ele mal o sentiu. Mas a brisa que então soprava riscando a água lhe causava inacreditáveis arrepios. Sentiu que a língua de Ayla procurava uma passagem e abriu a boca para recebê-la. Devagarinho, ela explorou o interior dos lábios dele, o soalho bucal e na orla do palato, testando, tocando, provocando. Depois, beijou-lhe os lábios com os seus pequenos beijos-mordidas, e isso foi mais do que pôde suportar. Jondalar estendeu o braço, agarrou-lhe a cabeça e trouxe-a para baixo, erguendo ao mesmo tempo a sua para um beijo firme, forte e satisfatório.

Quando a soltou, Ayla sorria com malícia. Obrigara-o a reagir, os dois sabiam disso. Enquanto a observava, tão contente consigo mesma, ele também se felicitava. Estava inovativa, brincalhona. Que outras delícias teria guardadas para ele? Uma onda de excitação o tomou a esse pensamento. Aquilo podia ficar interessante. Jondalar sorriu e esperou, fitando nela os olhos azuis, surpreendentemente belos.

Ayla se inclinou para ele e beijou-lhe a boca mais uma vez, e o pescoço, e os ombros, e o peito. E então, numa súbita mudança de posição, ela se ajoelhou ao lado dele, debruçou-se em direção contrária, abaixou-se e abocanhou seu órgão intumescido. Tomou tanto quanto podia, e ele sentiu aquele calor úmido envolver a ponta sensível do seu membro e ir ainda mais longe. Ela puxou para trás lentamente, criando uma sucção, que ele sentiu em todas as partes do corpo. Fechou os olhos e se deixou sentir o crescente deleite, porque a mulher agora movia as mãos e a boca para cima e para baixo da sua comprida vara.

Ayla explorou a cabeça com a língua, fez, depois, pequenos círculos em torno dela, e começou a desejá-la com uma urgência maior. Estendeu a mão para tomar a bolsa mole abaixo do membro e, delicadamente — ele lhe dissera que tivesse sempre cuidado ali —, sentiu os dois misteriosos calhaus que ela continha, macios e arredondados. Ficou imaginando para que, de fato, serviam, e sentiu que eram muito importantes, por algum motivo. Quando as mãos dela se fecharam em concha em torno do seu saco tenro, ele sentiu uma sensação diferente, agradável, porém mesclada de um grão de ansiedade com aquela parte tão frágil, que parecia estimulá-lo de outra maneira.

Ela o soltou e depois olhou para ele. O intenso prazer que Jondalar tinha nela e no que ela fazia estava estampado no seu rosto e refletido nos seus olhos. E ele lhe sorriu, encorajando-a. Ela se deleitava com o processo de dar-lhe os Prazeres. Aquilo a estimulava de um modo diverso mas profundo e excitante, e ela compreendeu um pouco por que ele gostava de causar-lhe Prazer também. Ela o beijou, longamente, depois passou uma perna por cima dele, cavalgando-o, de frente para os pés.

Sentada no seu peito, ela se dobrou, tomou o membro duro e palpitante nas mãos, postas uma acima da outra. Embora ele estivesse rijo, distendido, a pele era macia, e quando ela o guardava na boca, era liso e quente. Ayla o cobriu de beijos e leves, pequeninas mordidas. Quando alcançou a base, foi mais longe, até a bolsa, tomou-a, com cautela, para sentir sua firme redondeza dentro da boca.

Ele estremeceu com choques de um Prazer inesperado. Aquilo era quase demais. Não só as tumultuosas sensações que o dominavam, mas a vista de Ayla, que se erguera um pouco no ar para melhor alcançá-lo. Escarranchada como estava, deixava expostas suas pétalas e pregas de um rosa carregado e, até, a sua deliciosa abertura. Ela deixara de lado os testículos e voltara atrás, para pôr de novo na boca o seu excitante e latejante pênis para outra vez chupá-lo, quando percebeu que ele a puxava um pouco mais para trás e — com um choque imprevisto — que a língua dele encontrara as suas pregas, e a sede dos Prazeres.

Ele a explorou sôfrega, completamente, usando as mãos e a boca, sugando, manipulando, sentindo alegria de dar-lhe Prazer, e, ao mesmo tempo, a excitação que ela causava dentro dele esfregando-lhe o membro para a frente e para trás enquanto o chupava.

Ayla estava prestes a gozar e já não podia conter-se, mas Jondalar procurava ainda adiar o clímax, esforçando-se para não acabar. Podia facilmente deixar-se ir, porém queria mais, de modo que quando ela parou, arqueou o corpo para trás, e soltou um grito, ele ficou contente. Sentiu-lhe a umidade, depois rilhou os dentes para controlar-se. Sem os Prazeres que haviam gozado antes, não teria conseguido, mas se refreou, ficando num platô logo abaixo da crista.

— Ayla, vire-se para o outro lado. Quero possuí-la toda!

Ela fez que sim de cabeça. Podia compreendê-lo. E querendo também todo ele montou-o no outro sentido. Erguendo-se, ele se inseriu nela e deixou-se cair, outra vez, de costas, repetindo o nome dela, sentindo que o ventre de Ayla se abria, quente, para recebê-lo. Quanto a ela, sentia pressões em diferentes partes sensíveis ao mover-se para cima e para baixo, guiando a direção daquela rija plenitude que a enfiava.

No platô que ele alcançara a necessidade não era tão premente. Ele podia aguentar um pouco. Ela se curvou para a frente, em mais uma posição ligeiramente diversa da anterior. Ele a puxou de modo a poder roçar seus seios tentadores, pôs um na boca, e sugou-o com força. Depois fez o mesmo com o outro. Por fim, beijou e chupou os dois ao mesmo tempo. E como sempre, quando fazia aquilo, sentia a excitação em que ela ficava.

Ela via, por sua vez, crescer dentro dela o desejo, movendo-se para a frente e para trás, para cima e para baixo, em cima dele. Ele já se elevava acima do platô, sentindo recrudescer a urgência, e quando ela se sentou, exausta, ele agarrou-lhe as cadeiras e ajudou-a, dirigindo seus movimentos, empurrando-a para o alto e puxando-a outra vez. Sentiu que ia explodir quando a ergueu e, de súbito, o gozo chegou. Ele a apertou para baixo e gritou com o tremor convulso que vinha dos seus rins numa poderosa erupção. Ela gemeu e estremeceu com o surto que rebentava dentro dela.

Jondalar a fez mexer-se mais algumas vezes, para cima, para baixo, depois enlaçou-a para beijar-lhe os seios. Ayla teve uma derradeira estremeção, depois desabou por cima dele. E ficaram os dois imóveis, respirando laboriosamente, procurando recuperar o fôlego.

Ayla começava a respirar normalmente quando sentiu alguma coisa molhada na face. Pensou, por um momento, que fosse Jondalar, mas aqui-lo era frio além de molhado, e havia um cheiro diferente, mas não estranho, no ar. Abriu os olhos e deu com os dentes de um lobo que sorria Lobo esfregou-lhe o nariz outra vez, depois meteu o focinho entre os dois.

—    Lobo! Vai embora! — disse Ayla, livrando-se daquele nariz gelado, daquele bafo de lobo.

Depois rolou de cima de Jondalar e ficou estendida ao lado dele. Estendendo a mão, meteu os dedos no pêlo do pescoço do animal.

—    Mas estou contente em ver você. Por onde andou o dia inteiro? Já estava preocupada.

Sentou-se, pôs a cabeça de Lobo entre as mãos, encostou a testa na dele, depois se voltou para o homem:

—    Não posso imaginar é há quanto tempo ele terá voltado.

—    Bem. Alegro-me de que você o tenha ensinado a não aborrecer a gente. Se ele nos tivesse interrompido agora, não sei o que eu teria feito com ele — disse Jondalar.

Levantou-se, e ajudou-a com a mão a levantar-se também. Depois, tomando-a nos braços, ficou olhando para ela.

—    Ayla, isso foi... o que posso dizer? Não tenho as palavras...

Mas ela viu uma tal expressão de adoração e amor nos olhos dele que teve de conter as lágrimas.

— Jondalar, também eu quisera ter palavras, mas não sei nem mesmo na linguagem gestual do Clã dizer como me sinto. Talvez nem haja sinais para isso.

— Você me mostrou o que sente em muito mais que palavras. Você me mostra isso todos os dias, de muitas maneiras. — Puxou-a contra o peito, com um nó na garganta. — Minha mulher, minha Ayla. Se eu a perdesse um dia...

Ayla sentiu um arrepio a essas palavras, mas isso fez apenas com que ela o apertasse com mais força.

— Jondalar, como você sempre sabe o que eu realmente quero?

Estavam sentados no círculo dourado da fogueira, tomando chá. e contemplando as chamas da acha betuminosa de pinheiro, que estalava e lançava um chuveiro de faíscas no ar noturno.

Havia muito tempo que Jondalar não se sentia tão descansado, tão contente, e tão a vontade. Tinham pescado, à tarde — Ayla o ensinara como pegar um peixe com a mão —, depois ela achou um pé de erva-saboeira e os dois tomaram banho e lavaram o cabelo. Jondalar acabara de comer uma deliciosa refeição de peixe com ovos de pássaros do pântano, legumes variados, um biscoito de massa de tábua assado em cima de pedras quentes, e algumas bagas silvestres.

Ele sorriu.

— Apenas presto atenção ao que você me diz.

— Jondalar, da primeira vez, pensei que queria que aquilo durasse mas você sabia melhor do que eu, o que eu, na verdade, desejava. Depois você viu que queria dar-lhe os Prazeres, e me deixou fazer, até que estivesse de novo pronta para você. E sabia quando eu estava pronta. Não fui eu que lhe disse.

— Sim, disse. Não com palavras. Você me ensinou a falar como a gente do Clã, por sinais e movimentos. Agora procuro entender o sentido dos seus outros sinais.

— Mas eu não lhe ensinei nenhum sinal desse tipo. Não conheço nenhum. E você soube como me dar os Prazeres antes de aprender os sinais do Clã.

Ela estava de testa franzida. Procurava, com toda a seriedade, entender o que fez com que Jondalar sorrisse.

— É verdade. Mas há uma linguagem muda das pessoas que falam e que é muito mais visível e eloquente do que elas pensam.

— Sim, já notei isso — disse Ayla, pensando o quanto ela mesma era capaz de compreender sobre as pessoas que eles acabam de conhecer simplesmente prestando atenção aos sinais que faziam sem se darem conta disso.

— E, às vezes, você aprende a fazer... coisas só por desejar fazê-las, de modo que faz com atenção.

Ayla estivera todo o tempo olhando dentro dos olhos dele, vendo o amor que tinha por ela e o deleite que parecia sentir com as perguntas que ela lhe fazia. Notou também o olhar perdido de Jondalar quando se punha a falar. Ele fitava o espaço como se visse alguma coisa longe por um momento, e Ayla sabia que ele estava pensando em outra pessoa.

—    Principalmente quando a pessoa com quem você quer aprender esta disposta a servir de professora. Zolena o ensinou muito bem.

Ele corou, encarou-a com choque e surpresa, depois olhou para outra direção.

— Aprendi muito com você também — acrescentou, cônscio de que observação dela o perturbara.

Parecia incapaz de encará-la outra vez. Quando finalmente o fez, tinha o cenho franzido.

— Ayla, como sabia o que eu estava pensando? Sei que você tem um Dom especial. Foi por isso que o Mamute levou você para o Lar dos Mamutes quando foi adotada. Mas às vezes você parece ler meus pensamentos. Você tirou o que disse da minha cabeça?

Ela percebeu a preocupação dele e algo mais contristador: um quase temor dela. Já percebera em outros a mesma espécie de medo, como entre alguns dos Mamutói da Reunião de Verão, quando a julgaram possuidora de faculdades misteriosas, mas aquilo era, na maior parte, fruto de mal-entendidos. Como pensar que ela possuía algum domínio especial sobre os animais quando tudo o que ela fizera fora apanhá-los enquanto filhotes e criá-los maternalmente.

Mas, desde a Reunião dos Clãs, alguma coisa mudara. Ela não tivera a intenção de tomar da mistura especial de raízes que preparara para os mog-urs, mas não pudera evitar fazê-lo. Também não pretendera entrar naquela caverna e encontrar os mog-urs. A coisa simplesmente acontecera. Quando os viu, a todos, sentados em círculo naquela alcova, nas profundezas da caverna e... caiu no vazio negro que estava dentro dela pensou que estava perdida para sempre e que jamais encontraria o caminho de volta. Então, de algum modo, Creb conseguira alcançar dentro dela e lhe falar. Desde então, havia ocasiões em que sabia coisas que não podia explicar. Como quando o Mamute a levou consigo na sua Busca, e ela sentiu que se erguia no ar e o acompanhava através das estepes. Mas quando olhou para Jondalar, à luz da fogueira, e viu a maneira esquisita com que ele a olhava, sentiu medo: medo de que pudesse perdê-lo. Baixou, então, os olhos.

Não podia haver inverdades entre os dois. Nem mentira. Não que ela não pudesse dizer, deliberadamente, algo que não fosse exato, mas nem mesmo o habitual "abster-se de falar", que o Clã permitia no interesse da privacidade, poderia interpor-se entre os dois agora. Mesmo com o risco de perdê-lo se lhe contasse a verdade, tinha de dizer tudo e de descobrir o que o afligia. Encarou-o, então, diretamente, e procurou palavras para começar.

—    Não li seus pensamentos, Jondalar, mas não foi difícil adivinhá-los. Não estávamos discutindo os gestos mudos feitos por pessoas com o dom da palavra? Você os faz também. Sabia? Talvez por amá-lo tanto, e querer tanto conhecê-lo, presto atenção a você todo o tempo — disse, tirando os olhos dele. — As mulheres do Clã aprendem a fazer isso. São ensinadas — falou Ayla.

Só então o encarou de novo. Viu algum alívio na expressão dele, e também curiosidade, e continuou:

— Isso não acontece só com você. Fui criada com gente da minha espécie, estou acostumada a descobrir sentido nos gestos que as pessoas fazem. Isso já me tem ajudado a conhecer melhor as pessoas que encontro, e que dizem uma coisa da boca para fora e outra muito diferente com os gestos inconscientes que fazem. Comecei, assim, a entender mais do que o que se contém nas palavras. Foi por isso que Crozei deixou de jogar o jogo-do-osso comigo. Eu sempre sabia em que mão ela escondia o tento marcado pela maneira como o segurava.

— Sempre quis saber como você conseguia isso. Crozei era considerada muito boa nesse jogo.

— E era.

— Mas, agora, como você pôde saber que eu estava pensando em Zolena? Ela é uma Zelandonii hoje. E é assim que penso nela, não sob o nome que tinha quando jovem.

— Eu o observava, seus olhos diziam que você me amava, que estava feliz comigo, e eu me sentia feliz também. Mas quando começou a falar em aprender certas coisas, por um momento deixou de ver-me. Era como se estivesse olhando para muito longe. Você já me falou de Zolena, da mulher que o ensinou... esse dom... a maneira que tem de fazer a mulher sentir. Tínhamos conversado sobre isso antes, e foi assim que percebi que devia estar pensando nela.

—    Extraordinário, Ayla! — disse ele, com um sorriso aberto, aliviado. — Não terei segredos para você. Talvez não tire pensamentos de dentro da cabeça de uma pessoa, mas o que faz não fica longe disso.

—    Há outra coisa que precisa saber.

Jondalar enrugou de novo a testa.

— E o que é?

—    Às vezes penso que tenho... alguma espécie de Dom. Algo me aconteceu quando eu estava na Reunião dos Clãs, uma a que compareci com o Clã de Brun, quando Dure era um bebê. Fiz alguma coisa que não devia ter feito. Bebi da poção que tinha preparado para os mog-urs, e acabei dando com eles numa caverna. Não estava procurando por eles, nem sei como fui parar naquela caverna. Eles estavam... — Ela estremeceu e não pôde continuar.

"Algo aconteceu comigo. Fiquei perdida na escuridão. Não a da caverna, mas uma treva interior. Pensei que fosse morrer, mas Creb me ajudou. Ele pôs seus próprios pensamentos dentro da minha cabeça...

—    Ele o quê?

—    Não sei como explicar isso de outra maneira. Ele pôs seus pensamentos na minha cabeça e, desde então... às vezes... é como se ele tivesse mudado alguma coisa em mim. Às vezes imagino que tenho alguma espécie de... Dom. Acontecem coisas que não entendo nem posso explicar. Acho que Mamute sabia disso.

Jondalar permaneceu calado por algum tempo.

—    Ele terá, então, adotado você no Lar do Mamute por outros motivos além do conhecido de suas habilidades curativas.

— Pode ser. Acho que sim.

— Mas você não leu meus pensamentos, há pouco?

— Não. O Dom não funciona desse jeito. Não exatamente. É mais como aquela história de viajar com o Mamute, na Busca. Ou ir a profundezas. Ou a lugares longínquos.

— Mundos de espíritos?

— Não sei.

Jondalar olhou para o alto e considerou as implicações do que acabava de ouvir. Depois abanou a cabeça, olhando-a com um sorriso duro.

— Acho que é alguma pilhéria da Grande Mãe comigo. A primeira mulher que amei foi chamada para servi-La, e pensei que não amaria mais ninguém. E agora que encontrei outra mulher para amar, também esta parece destinada a servi-La. Será que vou perder você também?

Por que me perderia? Não sei se estou destinada a servir à Grande de Mãe. Não quero servir a ninguém. Quero apenas ficar com você, viver na sua casa, ter os seus filhos — objetou Ayla, energicamente.

— Ter meus filhos? — disse Jondalar, perplexo com as palavras que ela usara. — Como pode ter meus filhos? Não terei filhos, homens não têm filhos. A Grande Mãe só dá filhos às mulheres. Talvez ela use um espírito de homem para criá-los, mas os filhos não são dele. São responsabilidade dele apenas, no que diz respeito a provê-los, quando sua companheira os tem. Serão, no máximo, os filhos do seu lar.

Ayla já conversara sobre aquilo, sobre homens deslanchando a nova vida crescendo dentro da mulher, mas ele não percebera completamente então que ela era, deveras, uma filha do Lar do Mamute. Que tinha a faculdade de visitar mundos de espíritos e podia estar destinada ao serviço de Doni. Talvez ela soubesse de fato alguma coisa.

— Você pode chamar aos meus bebes filhos do seu lar. Quero que sejam mesmo filhos do seu lar. Quanto a mim, tudo o que desejo é ficar com você, sempre.

— É o que desejo também, Ayla. Desejei você e desejei seus filhos antes mesmo de encontrá-la. Só não sabia onde iria descobrir você. Apenas espero que a Mãe não ponha nada germinando dentro de você até voltarmos.

—    Eu sei, Jondalar. Eu também prefiro esperar — disse ela.

Ayla apanhou as xícaras que tinham usado e foi lavá-las. Depois, enquanto acabou seus preparativos para que pudessem partir bem cedo, enquanto Jondalar empacotava tudo, menos as peles de dormir. Deitaram-se aconchegados um ao outro, agradavelmente fatigados. O homem Zelandonii ficou contemplando a mulher deitada ao seu lado, respirando tranquilamente, mas ele mesmo não conseguiu dormir.

Meus filhos, pensava. Ayla disse que os bebês dela serão meus filhos. Será que estávamos dando início a uma vida quando partilhamos Prazeres hoje? Se alguma vida começou daquilo, então terá de ser muito especial, por que esses Prazeres foram... melhores... do que nunca...

E por que foram melhores? Não que eu não tivesse feito todas essas coisas antes, mas com Ayla é diferente... Não me canso dela. E mais... só de pensar nela, a desejo outra vez... e ela acha que sei como satisfazê-la...

Mas e se Ayla engravidar? Ela não engravidou até agora... talvez não seja capaz de engravidar. Há mulheres que não têm filhos. Mas ela já teve um. O problema serei eu, então?

Vivi com Serenio muito tempo. Ela não engravidou todo o tempo em que esteve comigo, e já tivera filho antes. Talvez eu tivesse ficado com os Xaramudói se ela tivesse tido filhos. Talvez. Pouco antes da minha partida, ela disse que talvez estivesse grávida. Por que não fiquei, então? Ela disse que não queria ficar comigo, embora me amasse, por que eu não a amava do mesmo modo. Ela disse que eu amava meu irmão mais do que a qualquer mulher. Mas eu me importava com ela, não, possivelmente como me importo hoje com Ayla, mas se eu tivesse de fato querido, penso que ela teria concordado em ser minha companheira. E eu sabia disso. Usei o que Serenio me disse como desculpa? Por que fui embora? Porque Thonolan nos ia deixar, e eu me preocupava com ele. Teria sido esse o único motivo?

Se Serenio estava mesmo grávida quando eu me fui, se ela teve mesmo um segundo filho, esse filho se teria originado da essência do meu membro? Seria... meu filho? É o que Ayla diria. Não, tal coisa não é possível. Homens não têm filhos, a não ser que a Grande Mãe use o espírito de um homem para fazer um. Filho do meu espírito, então?

Quando chegarmos lá, saberei finalmente se ela teve um bebê. E o que achará Ayla disso? Que Serenio tivera um filho que possa, de algum modo, ter algo a ver comigo? E o que achará Serenio quando se deparar com Ayla? E o que vai pensar Ayla de Serenio?

 

Na manhã seguinte, Ayla estava aflita para levantar-se e ir embora, se bem que o dia ainda estivesse tão abafado quanto na véspera. Ao tirar faíscas com a pederneira para acender fogo, ficou pensando como seria bom que não tivesse de ocupar-se daquilo. A comida que ela deixara de lado na noite anterior e um pouco d'água teriam sido o suficiente para a primeira refeição. Lembrando os Prazeres que havia partilhado com Jondalar, desejou poder não ter mais de pensar no remédio mágico de Iza. Se não tomasse o seu chá especial, talvez viessem a descobrir que tinham começado a fazer um bebê. Mas Jondalar ficava tão transtornado com a ideia de uma gravidez durante a Jornada que ela tinha de usar o chá.

A jovem mulher não sabia como aquilo operava. Sabia apenas que não ficaria grávida se tomasse todo dia, até o seu período, uns dois goles de um forte cozimento de brotos de acácia mais uma pequena tigela da infusão de raízes de sálvia, durante os dias em que sangrasse.

Não seria tão difícil assim cuidar de menino novo durante a viagem, mas não queria estar sozinha na hora do parto. Não sabia se teria sobrevivido ao nascimento de Dure se Iza não estivesse lá.

Ayla matou um mosquito que pousara no seu braço, depois conferiu o suprimento de ervas enquanto a água fervia. Tinha o bastante em matéria de ingredientes para o chá matinal, o que era bom, pois não vira nenhuma daquelas plantas nas imediações. Eram ervas que gostavam de lugares mais altos e mais secos. Verificando, em seguida, a sua bolsa de remédios, de pele de lontra, já bem usada, viu que tinha quantidades adequadas da maior parte das ervas medicinais de que precisaria numa emergência, embora tivesse preferido substituir algumas do ano anterior por outras, frescas. Felizmente, não tinham tido muita ocasião de usar plantas curativas até aquele momento.

Partiram, e logo alcançaram um rio bastante largo e de correnteza veloz. Jondalar desatou os cestos de carga que pendiam, baixos, dos dois flancos de Racer e os acomodou no bote, sobre o trenó. Enquanto fazia isso, estudava os rios. Aquele desaguava no Rio da Grande Mãe num ângulo agudo, vindo da direção das cabeceiras.

— Ayla, já viu como este afluente desagua no Rio da Grande Mãe? De uma vez só, sem qualquer leque. Isso talvez explique aquela corrente rápida com que tivemos de lutar ontem.

— Acho que você tem razão — disse ela, compreendendo o que ele queria dizer. E acrescentou sorrindo: — Você gosta de saber o porquê das coisas, não é?

— Bem, um rio não se põe a correr depressa, de repente, sem motivo. Deve haver uma explicação.

—    Pois encontrou-a.

Ayla achava que Jondalar estava com uma boa disposição aquela manhã, quando prosseguiram viagem, depois de cruzar o rio. Isso a alegrou Lobo ficara junto deles, sem dar suas habituais escapadelas, e isso também a deixava feliz. Até os cavalos pareciam mais animados. O descanso lhes fizera bem. Ela mesma se sentia mais alerta, com as forças recuperadas. Talvez pelo fato de ter verificado o suprimento de plantas medicinais, prestava maior atenção do que de costume à vida vegetal e animal da região que atravessavam. Eram sutis as diferenças entre a foz do rio e o prado por onde cavalgavam agora, mas ela notou algumas.

As aves eram ainda a forma de vida animal dominante. As ciconiformes eram as mais frequentes, mas as outras espécies não lhes ficavam muitos distanciadas. Bandos de pelicanos e belos cisnes brancos passavam voando, e muitas espécies de aves de rapina, inclusive milhafres-pretos, águias-do-mar, de rabo branco, búzios, pequenos falcões tagarotes. Viu grande número de pássaros, voando, pipilando, ostentando suas cores brilhantes: rouxinóis e outros pássaros canoros, toutinegras, papa-amoras, papa-moscas-de-peito-vermelho, papa-figos dourados, e muitas outras variedades.

Os pequenos abetoudos eram raros no delta, mas os esquivos e bem camuflados pássaros do pântano eram ouvidos mais frequentemente do que vistos. Cantavam suas notas características, um tanto cavernosas, resmungando notas o dia inteiro e mais intensamente com a aproximação da noite. Mas quando alguém se aproximava, eles apontavam os longos bicos verticalmente para cima e se confundiam tão perfeitamente com os colmos entre os quais faziam seus ninhos que era como se tivessem desaparecido. Viu muitos, no entanto, voando baixo sobre as águas, caçando peixes. O abetouro ou touro-paul era inconfundível em vôo: as tectrizes da parte frontal das asas e da base da cauda, que cobriam os cálamos das rêmiges primárias, eram tão pálidas que faziam grandes contrastes com as suas asas escuras e o dorso escuro.

Mas os alagados também alojavam um surpreendente número de animais, que exigiam uma grande diversidade de ambientes: veados e javalis, no mais espesso das florestas; lebres, hamsters gigantes e veados gigantes, na orla. Dos cavalos os dois iam vendo animais que havia muito não viam, como, por exemplo, saigas ariscos e auroques pesadões; um gato-do-mato pequeno de pelame chamalotado, tocaiando um pássaro e vigiado de cima de uma árvore por um leopardo; um casal de raposas com seus filhotinhos; um casal de gordos texugos; e alguns cangambás de aspecto incomum, marmoreando, com manchas amarelas, brancas e marrons. Viam lontras na água, e martas, juntamente com seu pitéu favorito: o rato-almiscarado.

E como havia insetos! Grandes libélulas amarelas, que passavam por eles à toute allure, e delicadas lavadeiras em cintilantes roupagens verdes e azuis que decoravam as inflorescências insípidas das bananeiras-do-mato eram as belas exceções aos irritantes enxames que apareciam de repente. Era como se eles nascessem todos naquela hora, num dia só, mas a umidade e o calor naqueles preguiçosos cursos d'água e fétidas lagoas eram os responsáveis, no tempo devido, pela maturação dos ovos. As primeiras nuvens de borrachudos e trombeteiros tinham surgido logo de manhã, pairando por cima da água, mas o campo seco das vizinhanças ainda estava livre deles, e foram logo esquecidos.

Mas à noite era impossível esquecê-los. Os mosquitos enfurnavam-se na pelagem pesada, encharcada de suor, dos cavalos, zumbiam em torno dos olhos deles, enfiavam-se nas suas narinas e bocas. Os pobres animais ficavam agoniados com aqueles milhões de mosquitos. O lobo tinha mais sorte. Mas até Ayla e Jondalar se viam obrigados a cuspir e esfregar os olhos para se livrar daquela praga. Os enxames eram mais densos no delta, e eles se perguntavam onde poderiam acampar com algum sossego.

Jondalar descobriu uma colina relvosa à direita de onde estavam, e achou que a elevação lhes daria uma visão melhor dos arredores. Subiram ao topo e se viram a cavaleiro da água reluzente de um lago em anfiteatro. Não tinha a luxuriante vegetação da foz — e as poças podres que facilitavam a criação das larvas —, mas poucas árvores e alguma vegetação arbustiva protegiam uma praia larga e tentadora.

Lobo correu morro abaixo, e os cavalos dispararam atrás dele sem qualquer comando. Tudo o que o homem e a mulher puderam fazer foi desatar às pressas o trenó de Huiin e tirar a carga do lombo dela e do lombo de Racer. Eles também pularam na água com uma pressa que só a resistência da água conteve. Mesmo o nervoso Lobo, que não gostava de atravessar rios, não hesitou em meter-se no lago.


—    Você acha que ele está começando a gostar da água? — perguntou Avia.

—    Espero que sim. Tenho muitos rios ainda para atravessar.

Os cavalos baixaram a cabeça para beber, fungaram, sopraram água pelas narinas e pela boca, depois saíram para a margem. Deitaram-se então, na margem enlameada para rolarem pelo chão e se coçarem. Ayla não pôde conter o riso diante das caras que eles faziam, rolando os olhos, de puro deleite. Quando se levantaram, estavam cobertos de barro, mas quando secaram, suor, células mortas da pele, ovos de insetos e outras causas de coceiras caíram com o pó.

Acamparam na orla do lago e partiram ao alvorecer. À noite, desejaram encontrar terreno tão bom quanto aquele para pernoitarem. Uma nuvem de mosquitos fez sua aparição logo que os ovos dos borrachudos chocaram. Suas picadas resultavam em marcas vermelhas que coçavam e inchavam. Ayla e Jondalar tiveram de pôr roupas mais grossas e mais fechadas, embora sentissem calor e estivessem mais acostumados ao mínimo de vestimentas. Nenhum dos dois seria capaz de dizer quando as moscas chegaram. Havia sempre algumas mutucas importunando os cavalos, mas agora eram as moscas pequenas, que picavam, que de súbito pareciam estar em toda parte. A noite era quente, mas eles tiveram de meter-se cedo na cama, protegidos pelas peles, para escapar daquelas hordas voadoras.

Não levantaram acampamento até bem tarde, no dia seguinte, e só depois que Ayla procurara ervas que pudessem aliviar a coceira das mordidas ou servir de base para repelentes. Ela achou, por sorte, a betônica-de-água, com sua inflorescência em capítulos de flores castanhas de forma estranha, num lugar sombreado e úmido junto do lago. Apanhou as plantas inteiras para fazer uma solução benéfica para a pele e antipruriginosa. Quando viu bananeiras, apanhou também algumas folhas largas para acrescentá-las ao cozimento. Eram excelentes para curar desde picadas até furúnculos, e mesmo feridas e úlceras de caráter mais sério. Da estepe, mais longe, e mais seca, trouxe flores de losna, boas como um antídoto de largo espectro contra venenos e reações tóxicas em geral.

Ficou muito feliz quando encontrou cravos-de-defunto, de um amarelo vivo, por suas qualidades anti-sépticas e curativas. A planta era ótima para aliviar a queimadura de picadas e para manter os insetos a distância quando preparada em solução e aplicada generosamente. Na orla ensolarada da mata ela achou manjerona, que não só era um bom repelente para insetos, quando cozida para uso externo, como era excelente para fazer chá. O suor da pessoa que o tomava ficava com um odor picante que borrachudos, moscas e pulgas abominavam. Ela tentou fazer com que Lobo e os cavalos também tomassem do preparado, mas não ficou segura de que lhe tivessem obedecido.

Jondalar assistia a essas atividades, fazendo perguntas e ouvindo as explicações dela com interesse. Quando suas mordidas melhoraram, felicitou-se pela sorte que tinha de viajar com alguém que sabia o que fazer com insetos. Sozinho, estaria perdido.

Lá pelo meio da manhã, já estavam os dois outra vez a caminho, e as modificações que Ayla observara na paisagem eram, agora, espetaculares. Viam menos pântano e mais água, com um número menor de ilhas. O braço mais setentrional do delta perdia sua rede de sinuosos canais, que, todos, se reuniam em um só. Então, sem aviso prévio, esse canal do norte e um dos canais do meio do grande delta do rio se juntaram num só curso d'água duplamente caudaloso. Um pouco mais adiante, o rio aumentou ainda mais: o braço meridional, que se unia também, pelo caminho, com o outro maior canal do sul, se reuniu ao resto — e os quatro grandes braços formaram um só rio profundo.

Esse gigantesco curso d'água já recebera centenas de afluentes e as águas de duas cadeias de montanhas cobertas de gelo no inverno. Varara o continente de oeste para leste, mas os restos graníticos de antigas montanhas lhe haviam bloqueado a passagem para o sul. Por fim, e incapaz de resistir às pressões do rio que avançava de forma inexorável, a montanha cedeu e uma brecha se abriu. Mas o leito de rocha firme relutou mais um pouco. O Rio da Grande Mãe, comprimido numa passagem por de mais estreita, espraiou-se primeiro e depois infletiu, para desembocar, por um delta maciço, no mar expectante.

Pela primeira vez Ayla via a verdadeira magnitude do enorme rio de Doni. E embora já tivesse estado lá antes, Jondalar tinha agora uma perspectiva diferente. Ficaram ambos tomados de espanto, imobilizados por aquela estupenda visão. A grande massa d'água parecia mais um mar em trânsito que um rio. A rebrilhante superfície, movediça, dava apenas uma fraca ideia do grande poder que escondia nas suas profundezas.

Ayla viu um galho arrancado e folhudo que vinha na direção deles, e que era como um leve bastão arrastado pela correnteza. Mas alguma coisa esquisita nele chamou-lhe a atenção. Levou mais tempo do que pensara para alcançá-los e ir adiante, mas quando estava perto ela prendeu a respiração de espanto. Não era um ramo de árvore, mas uma árvore inteira! Quando passou, serenamente, Ayla se deu conta de que era uma das maiores árvores que jamais tinha visto.

— Esse é o Rio da Grande Mãe — disse Jondalar.

Ele já havia viajado toda a extensão dele antes e sabia a distância que o rio cobrira, o terreno que atravessara, e a Jornada que tinham ainda, ele e Ayla, pela frente. Ela não compreendia inteiramente as implicações, mas sabia que, reunido em um único lugar pela última vez, ao fim do seu longo curso, o vasto profundo e poderoso Rio da Grande Mãe atingira sua plenitude: não seria maior do que ali, naquele momento.

Prosseguiram rio acima, acompanhando a margem e deixando para trás a foz fervilhante e escumosa e, com ela, a maior parte daquela miríade de insetos que os tinham infernizado. Descobriram que deixavam também a estepe à retaguarda. As extensas campinas e os planos encharcados cediam lugar a colinas ondulantes cobertas de mata, que alternavam com verdes prados.

Era mais fresco à sombra da mata. E fez uma grande diferença para eles chegar a um lago cercado de árvores ao lado de um belo campo relvoso e verdejante. Ficaram tentados a parar e acampar, mas o dia ia ainda pelo meio. Costearam um regato na direção de uma praia de areia mas ao se aproximarem, Lobo soltou um uivo prolongado e assumiu uma postura defensiva. Tanto Ayla quando Jondalar esquadrinharam a área à procura do que poderia estar perturbando o animal.

—    Não vejo nada de estranho, Jondalar. Mas há, sem dúvida, alguma coisa que desagrada a Lobo.

Jondalar contemplou o lago mais uma vez.

—    É cedo para acampar, de qualquer maneira. Vamos em frente — disse, virando a cabeça de Racer para o lado e rumando de volta para o rio. Lobo ficou para trás mais um pouco, depois os alcançou.

Viajando por aquelas regiões arborizadas e tão aprazíveis, Jondalar se sentia tão feliz que resolveram não parar cedo no lago. No curso da tarde passaram por diversos outros lagos, de vários tamanhos. A área estava cheia deles. Jondalar pensou que deveria ter sabido desse fato por causa da sua passagem anterior pelo rio, mas se lembrou de que ele e Thonolan tinham vindo rio abaixo em um barco Ramudói. Só ocasionalmente desciam para a margem.

Pensou, além disso, que devia haver gente morando num lugar tão ideal, e procurou lembrar-se se algum dos Ramudói teria falado de outro Povo do Rio vivendo mais abaixo. Não partilhou qualquer desses pensamentos com Ayla. Se não se manifestavam, não queriam ser vistos. Não podia esquecer, porém, que Lobo se mostrara defensivo. Poderia ter sido pelo cheiro do medo humano? Hostilidade?

Como o sol começava a cair para trás das montanhas, que cresciam aos olhos deles, detiveram-se num pequeno lago que servia de estuário a diversos regatos, que vinham de terrenos mais altos. Um escoadouro despejava diretamente no rio, e não só a truta de bom tamanho, mas também o salmão, tinha passado do rio para o lago.

Desde que começaram a acompanhar o rio, acrescentaram peixe à sua dieta. Ayla tecera uma rede como a que o Clã de Brun costumava usar para pescar peixes de grande porte no mar. Ela precisava fazer o cordame primeiro, e experimentou diversas espécies de plantas que tinham partes fibrosas. O cânhamo e o linho se revelaram melhores que as demais. O cânhamo era mais grosseiro, o linho, mais fino.

Quando teve pronto um pedaço suficientemente grande, decidiu experimentá-lo no lago. Pegou de uma ponta, Jondalar de outra, meteram se na água e caminharam de volta para a margem, puxando a rede entre eles. Quando pegaram duas trutas, Jondalar ficou ainda mais interessado no processo e imaginou se não haveria um jeito de pôr um cabo naquilo, de modo a que uma pessoa pudesse pescar sem ter de ficar dentro d'água. A ideia ficou na cabeça dele.

Pela manhã, dirigiram-se para a cadeia de montanhas que ficava à frente, como uma cortina, viajando através de um bosque rico em essências raras. As árvores — de variedades coníferas e decíduas — distribuíam-se, como plantas da estepe, num mosaico de matas distintas entremeadas de prados e lagos e, na parte mais baixa, de pântanos e turfeiras. As árvores cresciam isoladas, ou em associação com outras árvores e diferentes espécies de vegetação, segundo as variações menores de clima, altitude disponibilidade de água, de solo — que podia ser argiloso, rico em marga, ou arenoso, ou constituído de areia misturada com argilia, ou de diversas combinações mais.

Sempre-verdes preferiam encostas voltadas para o norte e solos mais arenosos. Onde a umidade era suficiente, cresciam até ficar bem altas. Uma floresta densa, de grandes espruces, de até cinquenta metros, ocupava um talude mais baixo e se misturava com pinheiros, que pareciam ter a mesma altura mas que, embora altos para a sua espécie, com quarenta metros, nasciam efetivamente no nível imediatamente acima. Fieiras de abetos verde-escuro abriam caminho para concentração de gordas bétulas de casca branca, apertadas umas contra as outras. Até os salgueiros daquela área teriam mais de vinte metros.

Quando as colinas davam para o sul, e o solo era úmido e fértil, essências de folhas largas atingiam também alturas extraordinárias. Carvalhos gigantes, de tronco perfeitamente reto e sem galhos, à exceção da coroa de folhas verdes do topo, alcançavam quarenta metros. Tílias imensas e freixos chegavam à mesma altura, e os magníficos bordos não lhes ficavam a dever nada.

Longe, à frente, os viajantes podiam divisar a folhagem prateada de choupos-brancos entremeados de carvalho. Quando chegaram lá, viram que a floresta de carvalhos estava fervilhante de pardais, que haviam feito ninhos em todos os lugares possíveis. Ayla encontrou mesmo ninhos de pardais, com ovos e filhotes, dentro de ninhos de pegas e busardos, esses também com filhotes e ovos ainda por chocar. Havia também uma profusão de tordos naquelas matas, mas os seus filhotes já estavam emplumados.

Nos flancos inclinados das colinas, onde brechas no dossel da mata permitiam a penetração do sol até o chão, a mata era luxuriante, com clematites em flor e outras lianas que desciam, por vezes, dos altos galhos pálios da floresta. Os viajantes alcançaram uma formação de olmos e salgueiros-brancos cobertos de trepadeiras, que lhes subiam pelos troncos ou ficavam penduradas da rama. Encontraram os ninhos de muitas águias-pintadas e cegonhas-negras. Passaram por álamos-tremedores e amoreiras silvestres e grossos chorões debruçados sobre uma torrente. Uma formação mista de majestosos olmos, elegantes bétulas e fragrantes faias, que subiam uma colina acima, sombreava moitas de bagas e frutas que eles se detiveram para colher: framboesas, urtigas-mansas, avelãs ainda por madurar inteiramente mas Ayla gostava delas assim —, pinhas, com seus suculentos pinhões dentro.

Mais à frente, betuláceas do género carpino comprimiam pela força do número um bosquete de faias, mas eram logo adiante dominadas por elas — em um tronco gigante, derrubado, e coberto de cogumelos comestíveis amarelo-laranja, que Ayla identificou e correu a apanhar. Jondalar ajudou-a a colher esses deliciosos fungos, mas foi ele quem descobriu a árvore das abelhas. Com a ajuda de uma tocha fumacenta e do seu machado, ele trepou por uma escada natural, composta de um abeto derribado, que tinha ainda as bases dos galhos presas ao tronco, levou algumas picadas, mas recolheu alguns favos. Devoraram a maior parte daquela rara guloseima ali mesmo, comendo alguma cera e algumas abelhas com o mel, e rindo como crianças quando se viram, ao fim, de dedos e cara lambuzados.

Aquelas regiões meridionais tinham sido, desde muito tempo, reservas naturais de árvores, plantas e animais, empurrados para lá pelas condições frias e secas do resto do continente. Algumas espécies de pinheiros eram tão antigas que tinham visto até as montanhas crescer. Preservadas em áreas pequenas, próprias para a sua cultura, as espécies relictas estavam prontas para se espalharem, rapidamente, quando o clima de novo mudasse, para terras abertas para elas pela primeira vez.

O homem e a mulher, com os dois cavalos e o lobo, continuaram na direção oeste, costeando o largo rio e dirigindo-se para as montanhas. Elas já lhes apareciam agora em maior detalhe, mas os cumes nevados eram uma presença contínua, e seu progresso em direção a eles tão gradual que quase não percebiam a aproximação. Faziam incursões esporádicas pelas colinas cobertas de bosques do lado norte, que podiam ser escarpadas e de difícil acesso, mas em geral se mantinham na planície, que tinha vegetação e árvores semelhantes às das montanhas.

Os viajantes sabiam haver chegado a uma alteração maior no carater do rio quando alcançaram um grande afluente que vinha do planalto. Atravessaram-no com a ajuda do pequeno barco redondo, mas logo depois se viram diante de outro rio rápido justamente quando faziam um desvio para o sul, de onde o Rio da Grande Mãe provinha, depois de haver costeado os contrafortes da cadeia. O rio, incapaz de subir ao platô norte, fizera uma curva abrupta e bordejava as elevações para chegar ao mar.

O barco provou sua utilidade mais uma vez para a travessia do segundo afluente, se bem que eles fossem obrigados a subir um pouco além da confluência e ao longo do afluente até encontrar um lugar menos turbulento para o cruzamento. Vários outros rios menores desaguavam no Rio da Grande Mãe logo abaixo da curva. Então, seguindo a curva da margem esquerda, eles fizeram uma ligeira mudança de direção para oeste e outra à roda, de modo que, se o Grande Rio estava ainda à sua esquerda, eles já não tinham as montanhas em frente. A cadeia ficava agora à direita deles, que olhavam agora para o sul, para a estepe, campo aberto. Ao longe, distantes proeminências purpúreas fechavam o horizonte.

Ayla vigiava o rio. Sabia que todos os afluentes despejavam suas aguas rio abaixo, e que o rio estava menos cheio do que de costume. Não havia mudança aparente no aspecto do rio, largo e caudaloso, mas ela sentia que essas águas eram, agora, de menor volume. Era uma certeza que escapava ao conhecimento, mas continuou atenta, procurando confirmar se o imenso rio estava de fato modificado de maneira significativa.

Não levou muito tempo e, com efeito, o aspecto do grande rio mudou. Soterrado fundo, debaixo do loess, o solo fértil que começara produto da decomposição da rocha, pó moído fino pelas imensas geleiras e espalhado pelo vento, e as argilas, as areias, os saibros depositados durante milênios pela água corrente, era o antigo maciço. As raízes permanentes das montanhas antiquíssimas haviam formado um escudo estável tão impenetrável que a intratável crosta granítica, empurrada contra ele pelos inexoráveis movimentos da terra, se encurvara para fora e constituía as montanhas cujas calotas de gelo brilhavam ao sol.

O maciço subterrâneo, invisível, se estendia por baixo do rio, mas um espinhaço exposto e desgastado pelo tempo ainda era elevado o suficiente para bloquear a passagem do rio para o mar, forçara o Rio da Grande Mãe a infletir para o norte, em busca de uma saída. Finalmente, a rocha irredutível cedeu a custo uma estreita passagem. Antes que isso tivesse acontecido, no entanto, o grande rio correra paralelo ao mar pela planura horizontal e languidamente se dividira em dois braços ligados por muitos e sinuosos canais.

A floresta relicta foi deixada para trás, e Ayla e Jondalar se dirigiram para o sul, por uma região de planície e suaves colinas ondulantes cobertas de forragem verde e ainda direita, no pé, junto de um vasto charco ribeirinho. O campo, ali, parecia-se com as estepes vizinhas do delta, mas era terra mais quente e mais seca, áreas de dunas arenosas, estabilizadas, na maior parte, por capins robustos, resistentes à seca. Havia poucas árvores, mesmo à beira d'água. Macega cerrada, em que as ervas mais comuns eram o absinto, a salva-do-mato, e o aromático estragão, que procuravam arrancar um magro sustento do solo agreste, empurrando às vezes para as barrancas do rio pinheiros ou chorões enfezados e contorcidos, que ficavam dependurados sobre a água.

O charco, a área muitas vezes inundada entre os braços do rio, só era menor que o próprio delta e tão rica quanto ele em caniços, plantas aquáticas e vida selvagem. Ilhas rasas, com árvores e pequenos prados verdes, surgiam aqui e ali, encerradas pelos canais mais importantes, amarelos e barrentos, ou canais secundários, de água limpa, povoados de peixes por vezes surpreendentemente grandes.

Atravessavam um campo aberto, perto do rio, quando Jondalar encurtou a rédea e fez com que Racer parasse. Ayla parou junto dele. O homem sorriu vendo a expressão de perplexidade no rosto da mulher, mas antes que ela falasse silenciou-a pondo um dedo nos lábios e apontou uma piscina de água cristalina, em que plantas submersas se mexiam com o movimento de correntes invisíveis. De começo ela não viu nada de extraordinário. Depois, saindo sem esforço das profundezas tingidas de verde, surgiu uma bela e enorme carpa dourada.

Outro dia tinham visto diversos esturjões numa laguna. Eram gigantescos, com nove metros de comprimento. Jondalar se lembrou de um incidente embaraçoso em que figurava um peixe de imensas dimensões. Pensou em contar a história a Ayla, mas depois mudou de ideia.

Juncais, lagos e lagoas ao longo do curso sinuoso do rio eram um permanente convite às aves, que neles nidificavam. Grandes bandos de pelicanos passavam planando, levados por correntes de ar quente, só de longe em longe batendo as largas asas. Rãs comestíveis e sapos cantavam em coro à noitinha e forneciam, ocasionalmente, uma refeição. pequenos lagartos dardejando pelas margens lodosas eram ignorados pelos viajantes; e as cobras, evitadas.

Parecia haver mais sanguessugas naquelas águas, o que os obrigava a escolherem com maior cuidado os lugares em que nadavam, se bem que a curiosidade de Ayla se sentisse atraída por essas estranhas criaturas que se grudavam às pessoas e lhes sugavam o sangue sem que elas o percebessem. Mas, de todos os bichos, os que mais os atormentavam eram os menores. Com o pântano tão perto, havia miríades de insetos, mais, ao que parecia, do que anteriormente, eles se viam forçados a entrar no rio com os animais para ter algum alívio.

As montanhas para o lado do poente recuaram quando eles alcançaram os primeiros contrafortes da cadeia, pondo assim uma larga sucessão de planícies entre o grande rio que vinham acompanhando e a linha alcantilada de cristas que marchavam para o sul com eles no seu flanco esquerdo. A serra, com seus capuchos de neve, terminava bruscamente depois de infletir um pouco. Outro ramo da mesma cadeia, indo de leste para oeste e definindo o horizonte para o sul, encontrava-se com o primeiro. E no canto mais remoto, para sudeste, dois altos picos dominavam todo o resto.

Continuando para o sul, ao longo do rio, e afastando-se cada vez mais da cadeia principal de montanhas, eles ganharam a perspectivada da distância. Olhando para trás, começaram a ver a verdadeira extensão da longa linha de picos elevados que iam para oeste. O gelo brilhava nas torres rochosas mais elevadas, e a neve vestia suas vertentes e cobria de branco os cumes adjacentes — permanente lembrete de que a curta estação de calor do verão nas planícies do sul era apenas um breve interlúdio numa terra governada pelo gelo.

Deixando as montanhas à retaguarda, a paisagem que tinham para oeste parecia devoluta: estepes áridas e ininterruptas e sem feições características, tanto quanto podiam ver. Sem colinas cobertas de árvores que servissem como pontos de referência, ou de morros escarpados que barrassem a vista, um dia se seguia ao outro com uma uniformidade sempre igual. Acompanhavam a margem esquerda, pantanosa, do braço sul do rio. Em certo ponto os diversos cursos se reuniram por algum tempo, e eles puderam ver a estepe e uma rica mata ciliar na outra margem. Havia ainda ilhas e formações de caniços dentro do rio.

Antes do fim do dia, porém, já ele se espraiava de novo. Os viajantes continuaram para o sul, com uma ligeira inclinação para oeste. Mais próximas agora, as montanhas cor de púrpura, antes tão remotas, ganhavam altitude e começavam a revelar seu verdadeiro caráter. Em contraste com os picos agudos do norte, as montanhas do sul, embora alcançando altura suficiente para terem também suas coroas de neve e gelo até boa parte do verão, eram achatadas no topo, o que lhes dava uma aparência de planaltos.

Mas elas também afetavam o curso do rio. Quando os viajantes ficaram ainda mais perto delas, viram que o grande curso d'água mudava, apresentando um aspecto que eles tinham visto. Canais sinuosos confluíam e endireitavam, juntavam-se a outros, e, finalmente, com os braços principais. Desapareceram as ilhas e as grandes concentrações de juncos e os diversos canais formaram um só canal largo e profundo que veio, depois de uma larga curva, na direção deles.

Jondalar e Ayla acompanharam o movimento pelo lado interior da curva até ficarem outra vez de frente para oeste, isto é, para o sol que se punha num céu vermelho, um tanto indistinto. Não havia nuvens, tanto quanto Jondalar era capaz de ver, e ele se perguntou o que poderia estar causando aquela cor uniforme e vibrante, que se refletia nos pináculos ásperos do norte, nas penhas da outra banda do rio, e tingia a água de sangue.

Continuaram cavalgando rio acima, sempre pela margem esquerda, à procura de um local para acampar. Ayla se deu conta de que estudava outra vez o rio, que muito a intrigava. Vários afluentes, de importância desigual, alguns de grande porte, haviam contribuído, vindos de um lado e de outro, para o seu prodigioso volume de água. Ayla compreendeu que o Rio da Grande Mãe era menor agora, se comparado em volume a todos os rios que tinham encontrado pelo caminho, mas era tão vasto assim mesmo que se tornava difícil perceber qualquer diminuição da sua imensa capacidade. E, no entanto, num nível mais profundo, a mulher sentia isso.

Ayla acordou antes da aurora. Ela adorava as madrugadas, quando ainda era fresco. Preparou sua amarga poção anticoncepcional, depois aprontou uma xícara de chá de estragão e salva para Jondalar, que ainda estava dormindo, e outra para si própria. Bebeu-a devagar, vendo o sol nascente clarear aos poucos as montanhas do norte. Começou com o primeiro rosa da aurora definindo os dois picos cobertos de gelo, depois se espalhando, lentamente a princípio, e em seguida esbraseado, no oriente. Por fim, de súbito, mesmo antes que o círculo da bola incandescente lançasse raio experimental acima do horizonte, os cimos das montanhas, flamejantes, já anunciavam a sua vinda.

Quando a mulher e o homem prosseguiram viagem, esperavam que o rio voltasse a se dividir em braços. Mas não, permaneceu com um só, e largo, um grande canal. Viram poucas ilhas formadas no seu seio e cobertas de vegetação, mas nem por isso o rio de Doni se cindiu. Os dois estavam tão acostumados a ver aquelas divisões através das planícies infindáveis que lhes parecia estranho contemplar o enorme fluxo contido assim tanto tempo. Mas o Rio da Grande Mãe escolhia invariavelmente a rota mais baixa ao serpentear por entre as altas montanhas através do continente. De modo que o rio corria através das planícies mais meridionais da sua longa trajetória. A terra baixa ficava ao sopé das montanhas erodidas, que confinavam e definiam sua margem direita.

Na margem esquerda, entre o rio e as cintilantes escarpas de granito e ardósia, dobradas sobre si mesmas, para o norte, jazia uma plataforma, um promontório — calcário, coberto por uma camada de loess Era uma terra acidentada e áspera, sujeita a violentos extremos. No verão, fortes ventos do sul a deixavam dessecada; no inverno, altas pressões da geleira do norte lançavam rajadas de ar glacial por sobre aqueles descampados indefesos; ferozes tempestades originadas no mar muitas vezes vinham do leste. As chuvas torrenciais, e os fortes ventos, que tudo crestavam, bem como as temperaturas extremas, fraturavam a base calcária do solo poroso de loess, o que fazia aparecer faces talhadas a pique nos platôs expostos.

Capins resistentes sobreviviam na paisagem seca, batida de vento, mas não se viam quase árvores. A única vegetação maior eram certas espécies arbustivas capazes de suportar tanto o calor árido quanto o frio cortante. Um pé ocasional de cedro-mimoso, com seus ramos delgados, folhagem leve e pequeninas flores cor de rosa; ou um espinheiro-cerval, com bagas pretas, esféricas, e acúleos acerados, pontilhavam a paisagem, e até groselheiras-negras podiam ser vistas, mas em pequena quantidade. Encontradiças eram as variedades de artemísia, inclusive uma que Ayla nunca tinha visto.

Seus galhos pretos pareciam nus e secos, mas quando ela apanhou alguns como gravetos, para fazer fogo, descobriu que não estavam secos nem quebradiços, mas verdes, com vida. Depois de uma boa rega, por breve que fosse, folhas denteadas, com uma lanugem prateada na face inferior, dorsal, se desfraldaram e brotaram dos talos, e numerosas pequenas flores amareladas, apertadas umas contra as outras como miolos de margaridas, surgiram nos galhos espetados. Exceto por esses gaite mais escuros, eram parecidas com as espécies mais conhecidas, e mais claras, que nascem geralmente associadas a festucas e à relva cristada até que o vento e o sol secassem os campos. Então, uma vez mais, tinham a aparência de secas e fanadas.

Com essa variedade de capins e arbustos, as planícies meridionais proviam o sustento de muitos animais. Nenhum que eles não tivessem visto nas estepes mais ao norte, mas em proporções diferentes, e algumas das espécies mais amigas do frio, como o boi-almiscarado, jamais se aventuravam tão ao sul. Por outro lado, Ayla jamais avistara tantos antílopes num lugar só. Eram muito difundidos nas estepes, estavam praticamente por toda parte, se bem que não em grupos numerosos.

Ayla parou e se entregou à contemplação desses animais, de aspecto tão estranho e deselegante. Jondalar fora investigar uma ilhota no rio, em que havia alguns troncos de árvores enfiados na margem e que lhe pareciam deslocados. Não havia árvores daquele lado do rio, e o arranjo lhe parecia fora de propósito. Quando ele foi ter com ela, a mulher parecia ter os olhos perdidos na distância.

Eu não podia ter certeza, aqui de longe. Aqueles toros podiam ter sido postos lá por elementos do Povo do Rio. Alguém podia amarrar um barco neles. Mas eles podiam ser também madeira trazida pela correnteza das cabeceiras.

Ayla concordou de cabeça, depois apontou para a estepe.

Veja quantos saigas.

Jondalar não conseguiu vê-los imediatamente. Os animais tinham a cor do solo. Depois ele viu o contorno dos chifres retos, com as pontas encurvadas em lira e inclinadas ligeiramente para a frente.

Eles me lembram Iza. O espírito do Antílope era o seu totem — disse Ayla, sorrindo.

Os antílopes sempre provocavam risos na mulher, que achava graça nos seus focinhos inchados e projetados para a frente como uma aba de telhado, e no seu andar desajeitado, que em nada os atrapalhava em matéria de velocidade. Lobo gostava de correr atrás deles, mas eram tão velozes que poucas vezes chegou perto deles, e nunca por muito tempo.

Aqueles antílopes pareciam gostar da losna de talos pretos mais do que das outras plantas e se juntavam em número muito superior ao das hordas habituais. Uma pequena horda de dez ou quinze animais era comum, e se compunha, em geral, de fêmeas com um ou, às vezes, dois filhotes. Algumas das mães não tinham mais de um ano de idade. Mas naquela região as hordas tinham mais de cinquenta animais. Ayla ficou imaginando por onde andariam os machos. Só os vira, numerosos, uma vez, durante a estação do acasalamento, quando cada um procura dar os Prazeres a tantas fêmeas quantas possa satisfazer e tantas vezes quantas seja possível. Depois, há sempre carcaças de antílopes pela estepe. É como se eles se esgotassem com os Prazeres, e pelo resto do ano deixassem a magra ração que de hábito consumiam para as fêmeas e os filhotes.

Havia também, nas planícies, exemplares do cabrito-montês e do carneiro selvagem, que preferiam, no entanto, ficar junto das faces verticais dos penhascos, que podiam galgar com facilidade ao menor sinal de perigo. Grandes hordas de auroques corriam a planície, muitos deles de pelame de um vermelho escuro, quase negro, mas um número surpreendentemente grande deles tinha pintas brancas, por vezes grandes. Ayla e Jondalar viram gamos malhados, veados-vermelhos, bisontes e inúmeros onagros. Huiin e Racer observavam a maior parte desses quadrúpedes, mas os onagros, especialmente, lhes mereciam a maior atenção. Eles ficavam contemplando aquelas dezenas de traseiros de cavalo e cheiravam longamente aqueles excrementos parecidos com os seus.

Havia o complemento natural de pequenos animais herbívoros: susliks, marmotas, gerbos, cricetos, e uma espécie de porco-espinho cristado Ayla não conhecia. Mantendo seu número sob controle havia os animais predadores das outras espécies. Viram pequenos gatos-do-mato, linces um pouco maiores, grandes leões das cavernas. E ouviram a risada da hiena.

Nos dias que se seguiram, muitas vezes o rio mudou de curso e de direção. Enquanto que a paisagem na margem esquerda, por onde iam, permanecia aproximadamente a mesma — colinas arredondadas, cobertas de vegetação rasteira e planícies chatas com elevações escarçadas e montanhas recortadas e pontudas à retaguarda —, viram que a margem oposta ficava a cada passo mais enrugada e diversa. Os afluentes cortavam agora vales profundos, árvores subiam pelas montanhas erodidas, cobrindo, às vezes, um talude inteiro até a margem da água. Os recortados contra-fortes e o terreno acidentado que definiam a margem esquerda eram responsáveis em grande parte pelas curvas muito abertas que viravam para todo lado e até mesmo sobre si mesmas, mas o curso geral do rio era o mesmo: para leste, para o mar.

No interior das muitas voltas e desvios que ia fazendo, a grande massa d'água que fluía em direção a eles se multiplicava outra vez em canais separados, mas não degenerava em pântanos como no delta. Era, simplesmente, um rio imenso, ou, melhor, uma série de caudalosos cursos d'água paralelos e sinuosos, com vegetação mais rica e mais verde onde a terra confinava com eles.

Embora as rãs lhe tivessem parecido frequentemente insuportáveis, Ayla sentia saudades do seu coro noturno, se bem, é verdade, que o coaxar aflautado de uma infinidade de sapos fosse ainda um refrão na aleatória miscelânea de música noturna. Lagartos e víboras-da-estepe tomavam o lugar delas e, em sua companhia, as libélulas, de beleza singular, que se alimentavam de répteis e também de insetos e caracóis. Ayla gostou de ver um casal desses pernaltas, gris, de cabeça preta e tufos de penas brancas atrás dos olhos alimentando os filhotes.

Dos mosquitos não sentia falta. Sem os charcos para se reproduzir, esses incómodos insetos haviam desaparecido na maior parte. O mesmo não se podia dizer dos trombeteiros e borrachudos. Nuvens deles ainda atormentavam os viajantes, principalmente os peludos.

— Ayla! Veja! Aquilo é um desembarcadouro — disse, apontando uma construção singela, de toras e pranchas na margem. — Aquilo foi feito pelo Povo do Rio.

Ela não sabia o que era um desembarcadouro, mas o que Jondalar lhe mostrava não era, obviamente, um arranjo acidental de materiais de construção. Fora feito para ser usado por homens. Ayla ficou animada.

—    Isso significa que pode haver gente por aqui?

—    Não no momento, provavelmente. Não há barco à vista. Mas não andarão muito longe. Este deve ser um lugar usado com frequência. Eles não teriam tido o trabalho de construir uma plataforma dessas se não se servissem dela com frequência, e não usariam com frequência alguma coisa assim se morassem longe.

Jondalar estudou a construção por um momento, depois olhou rio acima.

Não posso ter certeza, mas quem pôs o desembarcadouro nesse lugar vive na margem oposta e atraca nele quando passam para este lado. Talvez venham caçar, colher raízes, ou fazer alguma outra coisa.

Continuando rio acima, ambos prestaram redobrada atenção no rio.

A não ser de maneira geral, não tinham atentado para as terras da outra margem até então. Ocorreu a Ayla que talvez elas fossem habitadas e isso lhe tivesse passado despercebido. Não haviam progredido muito quando   Jondalar notou um movimento na água, a alguma distância a montante. Parou para verificar.

—    Lá, Ayla. Olhe! — disse, quando ela o alcançou. — Aquilo pode ser um barco Ramudói.

Ela viu o que ele mostrava, mas ficou segura do que fosse. Acelerarmos cavalos. Quando chegaram mais perto, Ayla viu um barco de modelo desconhecido para ela. Só estava familiarizada com embarcações de estilo Mamutói, armações cobertas de couro e redondas, como a que eles mesmos traziam no trenó. A que descia o rio era feita de madeira, tinha várias pessoas dentro, e veio ter a um ponto bem diante deles. Quando se aproximaram da margem, Ayla viu que havia mais gente na outra margem.

—    Olá! — gritou Jondalar, acenando com o braço, em saudação. Gritou, depois, algumas palavras numa língua que ela não conhecia, embora tivesse alguma vaga semelhança com Mamutói.

O pessoal do barco não respondeu. Talvez não tivessem ouvido, embora ele achasse que fora visto. Gritou de novo e achou que o ouviram, mas não acenaram. Eles se puseram a remar com toda a força para a margem oposta.

Ayla observou que um dos que estavam lá também os tinha avistado. Ele correu para os outros, apontou-os, e ele e mais alguns fugiram. Alguns outros ficaram até que o barco chegasse, depois se foram também.

—    Foram os cavalos de novo, não foram? — disse Ayla.

Jondalar julgou ver uma lágrima.

Não seria boa ideia atravessar o rio, de qualquer maneira. A Caverna dos Xaramudói que conheço fica deste lado.

Acho que sim — disse ela, pondo Huiin em marcha. — Mas eles podiam ter vindo no barco. Podiam ter respondido à sua saudação.

Ayla, pense de como devemos parecer estranhos, em cima destes cavalos. Seremos para eles como espíritos, com duas cabeças e quatro pernas. Você não pode culpá-los por terem medo de algo que desconhecem.

Os dois avistaram, do outro lado, um vale espaçoso, que descia da montanha até o nível de um rio de grande porte e que cortava o vale pelo meio e se precipitava no Rio da Grande Mãe com um ímpeto que fazia a água espadanar para um lado e para o outro, dando a impressão de que o leito ficara mais largo. Acrescentando a esse embate de correntes opostas, logo abaixo da confluência a cadeia de montanhas que confinava com a margem direita do rio infletia para trás.

No vale, perto da confluência dos dois rios, mas no topo de urna elevação, viram diversas habitações de madeira. Diante das casas postaram se os seus moradores, olhando com espanto os viajantes, do outro lado.

— Jondalar — disse Avia —, vamos descer.

— Para quê?

—    Para que aquela gente veja, pelo menos, que somos como eles e que os cavalos não são monstros de duas cabeças — disse Ayla. Em seguida desmontou e ficou andando diante da égua.

Jondalar concordou e saltou do cavalo. Segurando-o pela rédea, acompanhou-a. Mas Ayla apenas começara a andar quando o lobo correu para ela e começou a brincar da maneira habitual, pondo as patas no seu ombro, lambendo-lhe o rosto, esfregando-lhe o focinho no queixo. Quando terminou, alguma coisa, talvez um cheiro vindo pelo ar através do rio, o fez tomar consciência das pessoas que assistiam àquilo. Ele foi para a margem, levantou a cabeça, começou uma série de ganidos, e terminou o concerto com um uivo prolongado de esfriar qualquer coração.

—    Por que ele está fazendo isso? — disse Jondalar.

—    Não sei. Ele também não vê gente há muito tempo. Talvez esteja contente e deseje cumprimentá-los — disse Ayla. — Eu também gostaria de fazer isso, mas não é fácil para nós cruzar o rio, e eles não virão para este lado.

Depois de ultrapassarem a profunda curva do rio, que mudara o rumo deles para oeste, os viajantes haviam-se desviado ligeiramente para o sul. Mas para além do vale, onde as montanhas recuavam um pouco, eles retomaram a direção oeste. Estavam tão ao sul agora como jamais estariam na sua Jornada, e aquela era a estação mais quente do ano.

No auge do verão, com um sol incandescente e uma planície desprovida de árvores, mesmo com gelo da espessura de montanhas cobrindo um quarto da terra, o calor podia ser opressivo na porção meridional do continente. Um vento forte, abrasador, e incessante, que os enervava, agravava ainda mais a situação. Cavalgando lado a lado, ou andando a pé pela estepe para descansar os cavalos, o homem e a mulher caíram numa rotina que fazia a viagem, senão mais fácil, pelo menos possível.

Acordavam ao primeiro clarão da madrugada nos altos picos do norte. Depois de uma primeira refeição de chá quente e alguma coisa sólida, mas fria, os dois se punham a caminho antes do dia clarear. Quando o sol subia no céu, castigava a estepe descampada com tal intensidade que ondas de calor subiam da terra. Uma patina de suor desidratante cobria a pele bronzeada do homem e da mulher e ensopava o pêlo do lobo e dos cavalos. A língua do lobo ficava dependurada para fora da boca, e ele arfava o tempo todo. Não tinha vontade de correr ou de explorar e caçar por conta própria, mas ficava marcando passo com Huiin e Racer, que iam em frente, de cabeça baixa. Ayla e Jondalar, caídos, descoroçoados, davam liberdade às montarias de fazerem o ritmo que bem quisessem, e conversavam pouco no calor sufocante do meio-dia.

Quando não podiam mais, procuravam uma praia tranquila em algum remanso ou algum canal de água mais calma do Rio da Grande Mãe. Até lobo não resistia à tentação de uma água quieta, por mais medo que tivesse de rios. Bastava Ayla e Jondalar dirigirem os cavalos para a margem, desmontarem e começarem a desatar as cestas para que ele entrasse na água, antecipando-se a eles. Se era um afluente, em geral mergulhavam na água fresca antes de tratar das bagagens ou do trenó.

Uma vez reanimados pelo banho, Ayla e Jondalar procuravam alguma coisa de comer, se não tinham restos do dia anterior nem tinham recolhido nada pelo caminho. A comida era abundante, mesmo na estepe poeirenta e castigada pelo sol, sobretudo na água — se o viajante soubesse onde e como procurar.

Os dois quase sempre conseguiam pegar o peixe que desejavam, usando o método de Ayla, o de Jondalar, ou uma combinação dos dois. Se a situação aconselhasse o primeiro, lançavam no rio a longa rede de Ayla e puxavam-na devagar entre eles. Jondalar inventara um cabo para algumas das redes de Ayla, o que a transformava numa espécie de saco de malha. Embora ele não estivesse de todo satisfeito com o resultado, a coisa funcionava conforme as circunstâncias. Jondalar também pescava com linha e anzol — um pedaço de osso em U que ele limara até fazer uma ponta fina em cada extremidade e que era preso no meio por uma corda forte. Pedaços de peixe, de carne, ou minhocas eram amarrados nele como isca. Uma vez engolida, bastava puxar a corda para que o anzol se alojasse de atravessado na garganta do peixe, com uma ponta saindo de cada lado.

Às vezes Jondalar apanhava peixes grandes, mas uma vez perdeu um depois de fisgado. Inventou, então, um arpão forcado para que isso não acontecesse outra vez. Começou com uma forquilha de árvore, cortada logo abaixo da bifurcação. O braço mais comprido do garfo era usado como cabo; o mais curto era desbastado em ponta virada para trás e usado como anzol para capturar o peixe. Havia algumas arvorezinhas e arbustos crescidos junto do rio, e os primeiros arpões que ele fez funcionaram, mas não conseguia madeira suficientemente forte, que durasse muito tempo. Os peixes grandes eram pesados e se debatiam, e isso acabava quebrando o instrumento. Jondalar continuou procurando material melhor.

Da primeira vez que viu o chifre no chão limitou-se a passar por ele, registrando-lhe a presença. Teria sido largado por um veado-vermelho de três anos de idade. Jondalar não prestou atenção à sua forma. Mas aquela galhada ficou na sua memória, e um dia lembrou o dente que apontava para trás e foi apanhá-lo. Chifres são duros e resistentes, difíceis de quebrar, e aquele tinha o tamanho e a forma apropriados. Uma vez afiado, daria um excelente arpão.

Ayla pescava às vezes com a mão, como Iza lhe ensinara. Jondalar ficava pasmo vendo aquilo. O processo era simples, pensava ele, mas não conseguia aprendê-lo. Exigia prática, habilidade e paciência — infinita paciência. Ayla procurava raízes, madeiras levadas pela corrente, ou rochas debruçadas sobre o rio — e peixes que gostassem de lugares assim. Eles ficavam sempre voltados para a nascente do rio, e moviam os músculos e as nadadeiras o suficiente para não serem arrastados pela correnteza.

Quando via uma truta ou um pequeno salmão, Ayla entrava na água um pouco mais abaixo, deixava cair a mão, depois caminhava devagar rio acima. Movia-se ainda mais lentamente quando chegava perto dele, procurando não agitar o lodo ou a água, o que faria com que o peixe, que descansava, fugisse. Com cautela, de trás para a frente, deslocava a mão para debaixo do peixe, tocando-o de leve ou fazendo cócegas, coisas que ele não parecia notar. Quando alcançava as guelras, ela as agarrava de um golpe e jogava o peixe na margem. Jondalar então ia buscá-lo, antes que ele pulasse de volta no rio.

Ayla também descobriu mexilhões de água doce, semelhantes aos que havia no mar perto da caverna do Clã de Brun. Ela procurava plantas como fedegosa, ou unha-de-cavalo, de alto conteúdo de sal natural para reabastecer suas reservas já reduzidas, juntamente com outras raízes, folhas, e grãos que começavam a amadurecer. As perdizes eram comuns no campo aberto e na vegetação enfezada, rente à água. Era comum que as ninhadas se reunissem, formando grandes bandos. Essas aves, pesadas e lerdas, eram boas de comer e fáceis de capturar.

Os viajantes faziam a sesta no pior do calor, ao meio-dia, enquanto seu almoço cozinhava. Como só havia árvores pequenas e raquíticas junto do rio, os dois faziam um toldo com o couro da tenda para terem alguma sombra. No fim da tarde, quando começava a refrescar, os dois prosseguiam viagem. Cavalgando contra o sol poente, usavam seus chapéus cónicos, de palha trançada, para defender os olhos. E começavam a procurar um sítio para o pernoite logo que a bola de fogo mergulhava no horizonte, armando o acampamento ao crepúsculo. Às vezes, quando havia lua cheia, e a estepe toda resplandecia com um clarão suave, eles não acampavam, seguiam viagem noite adentro.

Sua refeição da tarde era ligeira e consistia, em geral, em restos da refeição do meio-dia, a que acrescentavam sempre alguma coisa, verduras frescas, legumes, ou carne, se alguma fora encontrada pelo caminho. De manhã comiam coisas frias preparadas de véspera e que não tomassem muito tempo. Em geral davam também de comer a Lobo. Ele caçava por conta própria, à noite, mas já gostava de carne assada e, até, de legumes. Raramente agora erguiam a tenda. Mas as peles de dormir eram bem vindas. As noites esfriavam depressa e a manhã trazia com frequência alguma cerração.

As tempestades de verão, com grandes aguaceiros, eram encaradas como um inesperado mas agradável banho, se bem que a atmosfera ficasse mais opressiva depois e Ayla tivesse horror a trovoadas. Aquilo lhe lembrava terremotos. Os relâmpagos, que riscavam o céu e acendiam a noite, eram recebidos por eles com um temor respeitoso, mas os raios que caíam perto deixavam Jondalar nervoso. Ele detestava estar em campo aberto quando havia faíscas. Tinha vontade de meter-se entre as peles de dormir e puxar a tenda por cima, embora jamais fizesse isso ou admitisse que gostaria de fazê-lo.

Além do calor, o que mais os incomodava eram os insetos. Borboletas, abelhas, vespas, até moscas e algumas espécies de mosquitos não eram tão difíceis assim de suportar. Mas os mosquitinhos que vinham em nuvens, os menores de todos, esses eram insuportáveis. Se os dois se sentiam mal, os animais se sentiam pior. Os mosquitos entravam-lhes no nariz, na boca, nos olhos, ou se colavam à pele suada debaixo dos pêlos.

Os cavalos da estepe costumavam emigrar para o norte no verão. Sua pelagem grossa e seu corpo compacto eram adaptados ao frio. Embora houvesse lobos nas planícies meridionais — nenhum predador era mais difundido —, Lobo provinha de estirpes do norte. Com o tempo, os lobos que viviam no sul fizeram diversas adaptações às condições aí reinantes, aos verões quentes e secos, aos invernos quase tão rigorosos como os das regiões mais próximas das geleiras. Mas viam também muito mais neve. Perdiam, por exemplo, a lã em muito maior quantidade, quando o tempo esquentava, e suas línguas ofegantes resfriavam-nos com muito maior eficiência.

Ayla fazia o possível para aliviar o sofrimento dos animais, mas nem o mergulho diário no rio nem os diversos medicamentos que ela aplicava conseguiam livrá-los de todo de trombeteiros e borrachudos. Feridas abertas—e infectadas com os ovos, de rápida maturação — alargavam-se a despeito das ministrações da mulher. Os cavalos e Lobo também ficavam com a bela pelagem emaranhada e sem brilho e cheia de peladas.

Lavando uma ferida aberta e pegajosa na orelha de Huiin, Ayla disse:

—    Estou cansada desse calor e desses mosquitos. Será que vai resfriar de novo um dia?

—    Você ainda vai ter saudades do calor antes do fim da viagem.

Aos poucos, à medida que eles avançavam na direção das cabeceiras do grande rio, os severos platôs e os altos picos do norte ficavam mais próximos, e as cadeias do sul, que a erosão desgastara, ficavam mais elevadas. Em todas as voltas e desvios da sua direção, no rumo geral do ocidente, eles se viram agora um pouco voltados para o norte. Infletiram, então, para o sul, fazendo uma nítida virada que começou por levá-los para noroeste, depois para o norte outra vez, para leste por algum tempo antes de girar sobre um ponto e ir na direção noroeste de novo.

Embora ele não soubesse explicar exatamente por que — não havendo pontos de referência que pudesse identificar com precisão —, Jondalar sentia curiosa familiaridade com a paisagem. Acompanhar o rio os levaria para noroeste, mas ele estava certo de que havia outra curva a seguir e que corrigiriam a direção. Resolveu, pela primeira vez desde o grande delta, abandonar a segurança representada pelo Rio da Grande Mãe e rumar para o norte ao longo de um afluente, em direção aos contrafortes das altas montanhas, agora muito mais próximas da água. Essa rota, que costeava o afluente, se voltava aos poucos para noroeste.

À frente, as montanhas se juntavam. Uma cadeia ligada ao longo arco de cumes nevados da cordilheira setentrional avançava para os platôs desgastados do sul, agora mais agudos, mais altos, mais cobertos de gelo do que antes, até que só uma estreita garganta as separava. A cadeia encerrara, em tempos idos, um profundo mar interior, murado entre altíssimas serras. Mas, através dos milénios, o escoadouro por onde saia a acumulação anual de água começou a gastar o calcário, o arenito e a argila das montanhas. O nível da bacia interior baixou devagarinho para ficar à altura do corredor que vinha sendo escavado na rocha, até que, um dia, o mar secou, deixando a céu aberto o fundo plano que se tornaria um mar de relva.

A estreita garganta aprisionou o Rio da Grande Mãe entre paredões verticais de granito cristalino e escarpado. E a rocha vulcânica, que apontara em afloramentos e intrusões na pedra mais frágil das montanhas, elevou-se dos dois lados. Era um portão monumental que abria, através das montanhas, para as planícies do sul e, em última instância, para o Mar de Beran, e Jondalar sabia que não seria possível ir com o rio por dentro do desfiladeiro. Não havia outra escolha: tinha de contornar a montanha.

 

A não ser pela ausência do volumoso curso d'água, o terreno não mudara quando eles mudaram de direção e se puseram a seguir a pequena corrente — pastagens secas, descampadas, com vegetação arbustiva mas enfezada junto da água. Mas Ayla experimentava um sentimento de privação. O largo Rio da Grande Mãe fora, por tanto tempo, uma espécie de companheiro de viagem que era desconcertante não ter mais a sua confortadora presença lado a lado com eles, mostrando-lhes o caminho que deviam seguir. Ao infletirem para as colinas e ganharem altitude, a vegetação ficava mais encorpada e mais alta e avançava, até, planície adentro.

A ausência do grande rio afetava também Jondalar. Um dia se seguia a outro com animadora monotonia enquanto eles acompanhavam suas águas piscosas no calor natural do verão. A profecia de sua grande abundância os levara à complacência e embotara a ansiedade que ele sentia com relação a Ayla: tinha de levá-la sã e salva para casa. Mas uma vez abandonada aquela pródiga Mãe dos rios, suas preocupações de novo o assaltaram e a mudança de paisagem o fazia pensar no que viria à frente. Começou a considerar as reservas de comida que levavam e a indagar se teriam o bastante. Não tinha certeza se achariam peixe nos rios menores e estava menos certo ainda de encontrar provisões de boca nas montanhas cobertas de árvores.

Jondalar não tinha nenhuma familiaridade com a vida selvagem nas matas Os animais da planície congregavam-se em manadas e podiam ser visto a distância, mas a fauna que tinha a floresta por habitat era mais solitária, e havia árvores e arbustos que a escondiam. Quando tinha vivido com os Xaramudói, caçara sempre com algum conhecedor da região.

A metade Xaramudói da população gostava de caçar a camurça nos altos cimos e sabia como apanhar o urso, o javali, o bisão e outros animais mais ariscos da floresta. Jondalar se lembrava que Thonolan preferia caçar com eles nas montanhas. A porção Ramudói, por seu lado, conhecia melhor o rio e ia à caça dos animais que o habitavam, principalmente o esturjão gigante. Jondalar se interessara mais pelos barcos e se ocupara em aprender as artimanhas do rio. Embora subisse as montanhas, ocasionalmente, com os caçadores de camurça, não gostava muito das alturas.

Avistando, agora, um pequeno rebanho de veados, Jondalar decidiu que havia ali uma boa oportunidade de conseguir carne, um suprimento que atendesse às necessidades dos próximos dias, ou seja, até que encontrassem os Xaramudói. Talvez devessem, até, levar alguma carne para dividir com eles. Ayla se mostrou animada com a sugestão. Ela gostava de caçar e não tinha caçado muito, recentemente, a não ser algumas perdizes e outros animais pequenos, que abatia com a funda. O Rio da Grande Mãe fora tão dadivoso que eles não tinham tido necessidade de caçar.

Encontraram um bom lugar para acampar às margens do pequeno rio, deixaram lá as cestas e o trenó, e saíram em direção aos veados com seus lançadores e lanças. Lobo estava excitadíssimo. A rotina fora quebrada, e as lanças não deixavam dúvida quanto às intenções dos seus donos. Huiin e Racer pareciam também mais brincalhões agora, por se verem livres dos balaios da bagagem e do trenó.

Aquele grupo de veados era constituído exclusivamente de machos, e os cornos de seu líder, o alce velho, estavam cobertos de espesso veludo. No outono, época do cio, quando a galhada alcançara seu máximo crescimento para aquele ano, a cobertura de pele, rica em vasos sanguíneos, secaria e se desprenderia — um processo que os próprios animais aceleravam esfregando a galhada contra árvores ou rochedos.

A mulher e o homem se detiveram para avaliar a situação. Lobo mal se continha, na antecipação da caça. Gania e fazia saídas falsas. Ayla tinha de contê-lo ou ele se precipitaria e espantaria os animais. Jondalar, contente de vê-lo obedecer a Ayla, pensou, de passagem, com admiração, na maneira com que o bicho fora treinado por ela, mas logo se pôs a estudar o rebanho. Do alto do cavalo tinha uma visão geral e outras vantagens que não teria a pé. Vários dos veados tinham parado de pastar, cientes da presença deles, mas cavalos não representavam ameaça. Eram também herbívoros, ignorados o mais das vezes, ou tolerados, se não demonstravam medo. Mesmo o fato de verem também o homem, a mulher e o lobo não os alarmou o suficiente para que pensassem em fugir.

Correndo os olhos pelo grupo, a fim de escolher uma presa, Jondalar se viu tentado por um macho magnífico, de chifres imponentes, que parecia olhar diretamente para ele, como se também o avaliasse. Se estivesse com um bando de caçadores em busca de carne para toda uma Caverna, e desejoso de exibir sua perícia, talvez ele investisse contra o majestoso animal. Mas estava certo de que quando o outono chegasse, com a estação dos Prazeres, muitas fêmeas estariam ansiosas por juntar-se ao rebanho por causa dele. Não teve coragem de sacrificar um animal tão belo e altivo só por um pouco de carne. Escolheu então outro.

—    Ayla, está vendo aquele junto do arbusto mais alto, na orlado rebanho?

Ela fez que sim, de cabeça.

—    Pois ele me parece numa posição ideal para ficar separado dos outros. Vamos tentar esse.

Combinaram a estratégia que iriam adotar, depois se separaram. Lobo ficou de olho na mulher e em sua égua. Quando Ayla deu o sinal, ele saiu, veloz, na direção do veado que ela apontou. Ayla, montada em Huiin, foi atrás dele. Quanto a Jondalar, avançou pelo lado oposto, lança e lançador em riste.

O veado sentiu o perigo — como o resto do bando, que fugiu em todas as direções. O animal que eles tinham escolhido fugiu aos saltos do lobo e da mulher que investiam contra ele e avançou para o homem a cavalo. Chegou tão perto que Racer recuou, assustado.

Jondalar estava pronto com a lança, mas a reação do veado o distraiu e ele perdeu o alvo. O veado mudou bruscamente de rumo, procurando escapar do homem do cavalo, mas se viu confrontado por um grande lobo. Pulou de lado, então, para escapar ao predador que lhe mostrava os dentes e disparou entre Jondalar e Ayla.

Ayla jogou o corpo para o outro lado e mirou. Entendendo o sinal, Huiin galopou atrás do veado. Jondalar recuperou o equilíbrio e atirou a lança, justamente quando Ayla atirava a sua.

A orgulhosa galhada estremeceu uma vez, depois outra. As duas lanças acertaram o alvo com grande força e quase ao mesmo tempo. O veado tentou ainda saltar, mas era tarde. As lanças tinham-no pegado em cheio. Ele vacilou, depois caiu, em plena corrida.

O campo estava deserto. O rebanho desaparecera, mas os caçadores nem viram isso, ao apear das montarias, junto do veado. Jondalar empunhou sua faca de cabo de osso, agarrou o veado pelos chifres cobertos de veludo, empurrou a cabeça para trás e cortou a garganta do grande alce adulto. Ficaram de pé, silenciosos, ao lado dele enquanto o sangue jorrava em volta da cabeça do animal. A terra seca o absorveu todo.

—    Quando estiver de volta à Grande Mãe Terra agradeça–lhe por nós — disse Jondalar ao veado, que jazia morto no chão.

Ayla inclinou a cabeça, assentindo. O gesto era também um cumprimento Estava habituada àquele ritual de Jondalar. Ele dizia sempre as mesmas palavras quando matavam um animal, mesmo pequeno, e ela sentia que havia que rotina ali. Havia sentimento e reverência nas palavras dele. Seu agradecimento era sincero.

Ás planícies ondulantes sucederam colinas escarpadas, e começaram a aparecer árvores por entre a macega — bétulas, em geral —, depois bosques de faias e carvalhos misturados. Nas elevações mais discretas, a região lembrava as colinas arborizadas, que tinham costeado perto do delta o Rio da Grande Mãe. Subindo mais, começaram a encontrar abetos e espruces e poucos lariços e pinheiros em meio às grandes árvores de folhas caducas.

Chegaram a uma clareira, um outeiro arredondado, mais elevado um pouco que a floresta circundante. Jondalar sofreou o cavalo para se orientar, enquanto Ayla se extasiava com a vista. Estavam mais alto do que ela havia imaginado. Para oeste, olhando por cima do topo das árvores, ela podia ver o Rio da Grande Mãe a distância, com todos os seus canais reunidos outra vez, serpenteando por um desfiladeiro profundo de paredões rochosos. Entendia agora por que Jondalar mudara de direção, procurando um caminho que contornasse o obstáculo.

—    Já atravessei aquela passagem de barco. É chamada o Portão.

— O Portão? Você quer dizer um portão que a gente põe numa paliçada? Para fechar a abertura e prender animais dentro? — perguntou Ayla.

— Não sei. Nunca perguntei, mas talvez o nome venha daí. Embora o lugar se pareça mais com a cerca que a gente fez de um lado e de outro, conduzindo ao portão. E cobre uma grande distância. Gostaria de levá-la até lá. — E, sorrindo: — Talvez eu o faça algum dia.

Rumaram para o norte, descendo a colina e depois seguindo em terreno plano, em direção à montanha. À sua frente, como um imenso paredão, havia uma longa formação de árvores de grande porte, primeira linha de uma floresta densa e profunda, de árvores de madeira rija e sempre-verdes.

No momento em que entraram para a sombra do alto dossel de folhas os dois se viram num mundo diferente. Seus olhos levaram algum tempo até se ajustarem da claridade do sol a essa penumbra silente da floresta primeva, mas logo sentiram o ar úmido e o cheiro forte das plangem decomposição.

O chão era revestido de uma espessa camada de limo, que parecia um absurdo tapete, cobrindo matacões e se estendendo por cima das formas arredondadas de velhas árvores de há muito caídas, e rodeava imparcialmente árvores virentes e troncos ainda de pé mas já em desintegração. O grande lobo, que corria à frente, saltou sobre uma tora envolta em musgo. Seu peso rompeu o velho cerne podre, que se dissolvia lentamente para volta ao solo de onde provinha, e pôs à mostra uma chusma de vermes brancos que se retorciam lá dentro e que a luz do dia apanhara de surpresa. O homem e a mulher logo desmontaram para achar com maior facilidade o caminho numa floresta cujo chão estava juncado de restos e brotos de vida em regeneração.

Novas plantas apontavam de velhos troncos musgosos e apodrecidos, arvorezinhas adolescentes lutavam por um lugar ao sol num sítio em que uma árvore ferida pelo raio arrastara várias outras na sua queda. Moscas zumbiam em torno das inflorescências rosadas de uma pirola, que cabeceavam de leve, iluminadas pelos feixes de sol coado por aberturas na abóbada da floresta. O silêncio era incomum, raiava pelo sobrenatural. Os menores sons ali se amplificavam de forma misteriosa. Ayla e Jondalar se puseram a falar em voz baixa.

Os fungos eram viçosos. Havia cogumelos de toda variedade e em quase todos os lugares para onde olhavam; e, por toda parte, ervas sem folhas verdes, como a lavanda dentilária, e diversas espécies de orquídeas pequenas, de pequenas flores multicores. Nasciam das raízes expostas de plantas vivas ou de seus restos em decomposição. Quando Ayla notou vários talos pequenos, pálidos, sem folhas, e cerosos, com cabeças oscilantes, começou logo a colher alguns.

—    Estes vão ser bons para os olhos de Lobo e dos cavalos — explicou.

Jondalar viu que um sorriso triste, mas cheio de ternura, lhe passava pelo rosto.

—    Era o que Iza usava nos meus olhos quando eu chorava.

E já que estava apanhando plantas, recolheu também cogumelos que sabia com certeza tratar-se de comestíveis. Ayla não arriscava nunca. Tinha o máximo cuidado com cogumelos. Muitas variedades eram deliciosas; outras não tinham tanto sabor mas também não faziam mal; algumas podiam ser usadas como remédio; umas poucas levavam quem as ingerisse a ver os mundos dos espíritos. Mas havia também as que deixavam uma pessoa nauseada e doente, e as mais raras, que eram mortais. E era fácil confundi-las umas com as outras.

Tiveram grande dificuldade para passar com o trenó e seus mastros espaçados pela floresta. As árvores cresciam muito juntas e eles se enganchavam nos troncos. Quando Ayla inventara um método simples e eficiente de usar a força de Huiin para ajudá-la a transportar objetos pesados demais para ela mesma carregar, inventou também um modo de fazer com que a égua subisse o íngreme caminho para a sua caverna, amarrando os mastros bem apertados. Mas com o bote montado em cima deles era impossível movê-los, e difícil contornar obstáculos arrastando aqueles trambolhos. O trenó era muito eficaz em terreno acidentado, não se enfiava em buracos, valas ou lama, mas precisava de um lugar aberto.

Lutaram o resto da tarde. Jondalar acabou por desamarrar o barco e arrastá-lo ele mesmo. Começavam a pensar seriamente em deixá-lo para trás. Fora mais do que útil na travessia dos muitos rios e pequenos afluentes da Grande Mãe, mas não tinham certeza se valia a pena levá-lo através daquela floresta, tão espessa. Se houvesse outros rios no caminho, podiam muito bem passá-los sem o barco, que os atrasava sobremaneira, agora.

A escuridão apanhou-os ainda na mata. Acamparam para passar a noite, mas ambos se sentiram mais inseguros e mais expostos que no meio das vasta estepes. Em campo aberto, mesmo na treva, podiam ver alguma coisa: nuvens, estrelas, silhuetas, formas em movimento. Na floresta espessa, com os troncos maciços de árvores altíssimas, capazes de esconder até animais muito grandes, o escuro era absoluto. O silêncio amplificador, que já lhes parecera um tanto sinistro ao entrarem naquele mundo denso arvoredo, era terrificante na profundeza da floresta, à noite, embora os dois procurassem não demonstrar que sentiam isso.

Os cavalos estavam tensos também, e ficavam juntos do conforto conhecido do fogo. Lobo também não saiu do acampamento. Ayla ficou contente com isso, e quando lhe serviu um pouco da refeição que preparara para Jondalar, pensou que teria procurado guardá-lo junto deles de qualquer maneira, nas circunstâncias. Até Jondalar demonstrou satisfação: ter por perto um lobo grande e amigo era tranquilizador. Ele podia farejar perigos e sentir coisas que escapavam a um ser humano.

A noite era mais fria no interior da floresta úmida, de uma espécie pegajosa, grudenta, de umidade, tão pesada que parecia chuva. Eles se enfiaram muito cedo nas suas peles de dormir e, embora estivessem fatigados, conversaram até tarde, sem saber se podiam mesmo entregar-se, confiantes, ao sono.

— Será que devemos conservar mesmo esse barco? — perguntou Jondalar, em tom retórico. — Os cavalos podem vadear os rios pequenos sem molhar nossas coisas. Com rios mais profundos, podemos pôr os balaios em cima deles em vez de deixá-los dependurados, como costumam ficar.

— Uma vez atei minhas coisas num tronco de árvore. Depois de ter deixado o Clã, quando procurava gente como eu mesma, encontrei um rio largo. Atravessei-o a nado, empurrando o tronco — disse Ayla.

— Deve ter sido difícil. E perigoso também, com os braços assim presos.

— Difícil foi. Mas eu tinha de cruzar o rio e não imaginei nenhum outro meio — disse Ayla.

Ficou, em seguida, calada, refletindo. O homem, estirado a seu lado, pensou que ela tivesse adormecido. Até que revelou a direção que seus Pensamentos tinham tomado.

— Jondalar, estou certa de que viajamos muito mais do que eu viajei sozinha, àquela altura. Já cobrimos muito do caminho, não?

—    Sim — respondeu ele, um pouco receoso. Depois virou-se e se apoiou num cotovelo para poder vê-la melhor. — Mas estamos ainda muito longe de casa. Você já se cansou, Ayla?

— Um pouco. Seria bom fazer uma pausa. Então, estarei pronta para outra estirada. Ao seu lado, não me importa o tempo que a viagem leve. Apenas não sabia que o mundo fosse assim tão grande. Você acredita que ele tenha fim?

— Para oeste da minha terra, o que há são as Grandes Águas, ninguém sabe o que haverá depois delas. Conheço um homem que diz ter ido ainda mais longe e que fala em Grandes Águas para o lado do oriente. Muita gente, no entanto, não acredita nele. Muita gente viaja um pouco, mas pouca gente vai muito longe, daí a incredulidade em torno de longas Jornadas, a não ser que haja alguma coisa que os convença. Mas há sempre alguns que vão longe. — Jondalar fez um muxoxo. — Eu é que nunca pensei em ser um deles. Wymez andou pelos Mares do Sul e descobriu que havia ainda terras, do outro lado, para o sul.

—    Ele também encontrou a mãe de Ranec e trouxe a mulher de volta. É difícil duvidar de Wymez. Você já viu alguma vez uma pessoa com a pele tão escura quanto Ranec? Wymez tinha mesmo de ir muito longe para achar uma velha assim.

Jondalar olhou o rosto que a luz da fogueira iluminava e sentiu um grande amor pela mulher que tinha a seu lado, e também uma grande angústia. Aquela conversa sobre longas Jornadas fazia-o pensar no caminho que ainda lhes faltava percorrer.

— Para o norte, a terra esbarra no gelo — continuou ela. — ninguém pode ir além da geleira.

— A não ser de barco — disse Jondalar. — Mas já me contaram que tudo o que a gente encontra é uma terra de gelo e neve, onde vivem espíritos brancos de ursos. Dizem também que por lá existem peixes maiores que mamutes. Algumas pessoas, no oeste, dizem que eles têm Xamãs com força suficiente para atrair gente para lá. E uma vez desembarcados, não voltam mais...

Ouviram um repentino rumor de movimento entre as árvores. O homem e a mulher tiveram um sobressalto, depois ficaram imóveis e mudos. Mal respiravam. Lobo rosnou, mas Ayla tinha um braço em torno dele e não o deixou sair. Houve mais alguns ruídos confusos nas imediações, depois silêncio. Lobo deixou de roncar no peito. Jondalar não estava certo de poder dormir de novo naquela noite. Esperou um pouco, levantou, pôs uma acha de lenha na fogueira, contente de ter encontrado de tarde certo número de galhos quebrados de bom tamanho que ele partira em pedaços com seu pequeno machado de sílex e cabo de osso.

— A geleira que temos de atravessar não fica ao norte, certo? — perguntou Ayla quando ele voltou para a cama. Estava ainda pensando na Jornada.

— Bem, fica ao norte daqui, mas não tão ao norte quanto a muralha de gelo. Há outra cadeia de montanhas para oeste destas, e o gelo que temos de passar fica um pouco ao norte dela.

— É difícil atravessar o gelo?

—    É muito frio, e pode haver terríveis nevascas. Na primavera e no verão o gelo derrete um pouco e abrem-se grandes fissuras; se cairmos dentro de uma, ninguém consegue nos tirar. No inverno, muitas dessas brechas se enchem de neve e de gelo, mas assim mesmo podem ser perigosas.

Ayla sentiu um calafrio.

—    Você disse que há um caminho ao redor... Por que temos de passar pelo gelo?

— É a única maneira de evitar cabe... gente do Clã.

— Você ia dizer cabeças-chatas.

— Sempre os conheci por esse nome, Ayla — disse Jondalar, procurando explicar-se. — É assim que todo mundo diz. Você vai ter de acostumar-se com o termo, sabia? É assim que eles são chamados.

Ela ignorou o comentário e continuou.

— Mas por que temos de evitá-los?

— Têm havido problemas — disse ele, franzindo a testa. — Não sei mesmo se esses cabeças-chatas do norte são os mesmos do seu Clã. — Jondalar fez uma curta pausa, depois continuou. — Mas não foram eles que começaram. No caminho para cá ouvimos falar de jovens... provocadores. Jovens Losadunai, o povo que vive perto daquela geleira do platô.

— E por que os Losadunai querem brigar com o Clã? — perguntou Ayla.

—    Não se pode dizer que sejam os Losadunai. Mas alguns, apenas. Os Losadunai em geral não querem confusão, só esse bando de moços. Imagino que achem isso divertido. Pelo menos foi assim que tudo começou, de brincadeira.

Ayla pensou que a ideia que certas pessoas têm de brincadeira não combinava com a sua. Mas era a Jornada que não conseguia tirar da cabeça, quanto tempo ainda faltava para chegarem. Pela maneira como Jondalar falava não estavam nem perto ainda de casa. Resolveu que não seria bom ficar pensando nisso com tanta antecedência. Tentou esquecer o assunto.

Ficou olhando a noite. Quisera ver o céu através do dossel da mata.

—    Jondalar, acho que estou vendo estrelas, lá no alto. Você as vê também?

—    Onde? — disse ele, olhando para cima.

— Lá! Você tem apenas de olhar bem direito para cima e para trás, depois, um pouco. Vê?

— Sim, sim, acho que vejo. Não é como o caminho de leite da Grande Mãe, mas vejo algumas estrelas.

— O que é esse caminho de leite?

— E parte da história da Mãe com Seu filho — explicou ele.

— Conte.

— Não sei se me lembro. Vejamos. É alguma coisa assim... — E Jondalar se pôs a controlar a melodia sem palavras, depois com alguns versos.

O sangue Dela coalhou e secou numa terra cor de ocre avermelhado,

Mas o menino luminoso fazia o sacrifício valer a pena.

A grande alegria da Mãe, Um menino que brilhava como o sol.

As montanhas se ergueram cuspindo fogo das cristas, E Ela deu de mamar ao filho com Seus seios enormes.

Ele sugou tão forte, e as fagulhas voaram tão alto

Que o leite quente da Grande Mãe riscou uma trilha no céu.


— É isso, acho — concluiu Jondalar. Zelandoni ficaria feliz se soubesse que me lembrei.

—    Maravilha, Jondalar. Adorei o som e o sentimento por trás das palavras. — Ayla fechou os olhos e ficou repetindo os versos para si mesma, em voz alta.

Jondalar escutava e se admirava da facilidade que a mulher tinha para memorizar as coisas. Ela repetia tudo exatamente e lhe bastava ter ouvido uma vez. Quisera ele ter memória igual e a facilidade que Ayla tinha para línguas.

— Isso, no entanto, não é verdade. Ou é? — perguntou ela.

— O que não é verdade?

— Que as estrelas sejam o leite da Grande Mãe.

—    Não creio que sejam feitas de leite — disse Jondalar. — Mas acho que há muito de verdade no sentido geral da história. Da história inteira.

—    E como é a história?

—    Conta o começo das coisas, de como tudo surgiu. Que nós fomos feitos pela Grande Mãe terra, com a matéria do Seu próprio corpo. Que Ela vive no mesmo lugar onde vivem o sol e a lua, e que a Grande Mãe terra representa para eles o mesmo que para nós. E as estrelas são parte do mundo deles.

Ayla concordou.

— Sim, deve haver alguma parcela de verdade nisso tudo — disse Gostava do que ele dissera e pensou que, um dia, ela gostaria de conhecer essa tal de Zelandoni para saber dela a história toda direitinho. —Creb me disse que as estrelas são os fogos acesos das pessoas que moram no mundo dos espíritos. Todas as pessoas que para lá regressaram e todas as que ainda não nasceram. E também o lar dos espíritos dos totens.

— Pode haver muita verdade nisso também — disse Jondalar. E pensou: os cabeças-chatas realmente são quase humanos. Nenhum animal seria capaz de pensar essas coisas.

— Creb uma vez me mostrou onde era o lar do meu totem, o Grande Leão da Caverna — disse Ayla, com um bocejo, e se virou de lado.

Ayla tentou ver o caminho à frente, mas imensos troncos de árvores, vestidos de musgo, bloqueavam a vista. Ela continuou a subir, sem saber muito bem aonde ia, apenas desejando poder parar e descansar. Estava tão fatigada! Ah, se pudesse, pelo menos, sentar-se. O tronco caído que via à frente parecia convidativo. Se pudesse alcançá-lo, mas ele sempre parecia estar ainda um passo mais adiante. Afinal, conseguiu chegar, mas ele cedeu ao seu peso, desfazendo-se em madeira podre e vermes coleantes. E ela começou a cair através do tronco, segurando-se à terra, do voltar.

Depois, a densa floresta esfumou-se, e ela se viu galgando o flanco escarpado de uma montanha através de uma abertura na floresta, por um atalho que era familiar. No topo havia uma campina, onde pastava uma pequena família de veados. Contra a rocha de um talude cresciam aveleiras. Ela tinha medo, e estaria segura atrás dos arbustos, mas como passar? O caminho estava bloqueado pelas aveleiras, que cresciam, cresciam, ficavam do tamanho de árvores, e se cobriam de barba-de-pau. Procurou ver o caminho à frente, mas tudo o que via eram árvores, e estava ficando escuro. Ela estava assustada, mas então, ao longe, viu alguém que se movia na sombra profunda.

Era Creb. Ele estava de pé diante da entrada de uma pequena caverna, fechando essa entrada e dizendo, por sinais da mão, que ela não podia ficar. Ali não era o seu lugar. Tinha de ir embora, de procurar outro lugar, o seu lugar. Ele procurou ensinar-lhe o caminho, mas estava escuro e ela não podia ver direito o que ele dizia, só que tinha de continuar. E então ele estendeu o seu braço bom e apontou.

Quando ela olhou, as árvores haviam desaparecido. Recomeçou a subir, para a abertura de outra caverna. Embora soubesse que jamais a tinha visto, aquela era uma caverna estranhamente familiar, com um rochedo curiosamente mal posto projetado em silhueta contra o céu. Quando olhou para trás, Creb estava indo embora. Ela chamou, implorou:

—    Creb! Creb! Ajude-me! Não se vá!

Ayla! Acorde! Você está sonhando — disse Jondalar, sacudindo-a com delicadeza.

Ela abriu os olhos, mas o fogo se apagara, e estava escuro. Ela se agarrou a Jondalar.

—    Oh, Jondalar, era Creb. Ele fechava o caminho. Não me deixava entrar... não me deixava ficar. Procurava dizer-me alguma coisa, mas estava tão escuro que eu não podia ver. Ele apontava para uma determinada caverna, e alguma coisa nela me parecia familiar, mas ele não quis ficar.

Jondalar sentia que ela estava toda trémula nos seus braços, e apertou-a com força, procurando confortá-la com sua presença. De súbito Ayla se sentou.

—    A caverna! Aquela que ele bloqueava com o corpo era a minha caverna. Foi para lá que eu fui quando Dure nasceu, quando tive medo que não me deixassem conservá-lo.

— Sonhos são difíceis de entender. Às vezes um Zelandoni sabe decifrá-los para você. Talvez você se sinta ainda culpada por ter deixado seu filho.

— Talvez — disse ela.

Sentia-se culpada, sim, por ter abandonado Dure, mas se era esse o significado do sonho, por que o sonhava agora? Por que não quando estava na ilha, contemplando o Mar de Beran, procurando ver a península, e dando seu último e lacrimoso adeus a Dure. Havia algo que lhe dizia que o sentido do sonho era mais que isso. Finalmente, acalmou-se, e os dois cochilaram por algum tempo. Quando ela acordou de novo, era dia, se bem que estivessem ainda na obscuridade da floresta.

Ayla e Jondalar seguiram para o norte a pé, de manhã, com os mastros do trenó juntos num amarrado e presos ao barco redondo. Cada um deles pegou uma ponta. Assim podiam passar com a carga por cima e por entre obstáculos mais facilmente do que se ela viesse à retaguarda, arrastada pelo cavalo. Com isso, os cavalos podiam descansar um pouco, só com os balaios para carregar e tendo de cuidar apenas de onde pôr as patas. Mas depois de algum tempo verificaram que Racer, sem a mão do homem para guiá-lo, tendia a sair do caminho para beliscar folhas de árvores, pois não vinha pastando a contento desde algum tempo. Ele fazia desvios para os lados e para trás quando cheirava a relva de uma clareira ou quando via um claro na mata, onde algum vento forte derrubara arvorezinhas.

Cansado de ir atrás dele, Jondalar tentou segurar ao mesmo tempo as rédeas do cavalo e sua ponta dos mastros, mas teve dificuldade em ver aonde Ayla estava indo, para tirar os mastros do caminho, vigiar onde punha os pés, e cuidar de que o cavalo não metesse a pata num buraco ou coisa pior. Quisera que Racer o seguisse sem rédea nem arreios, como Huiin seguia Ayla. Finalmente, quando se distraiu e bateu acidentalmente com um dos postes nas costas de Ayla, ela fez uma sugestão.

—    Por que você não prende a rédea de Racer em Huiin? Você sabe que ela me acompanha, que sabe onde anda e não vai deixar que Racer se perca. Além disso, ele está acostumado a segui-la. Então você terá de preocupar-se apenas com os mastros.

Ele parou, franziu o cenho, depois deu uma risada.

—    Como foi que não pensei nisso? — disse.

Vinham ganhando altitude devagar. E quando o terreno começou a ficar visivelmente íngreme, a floresta mudou de caráter de forma abrupta. A mata ficou mais rala, e logo as grandes árvores de folhas decíduas rarearam. Abetos e espruces tornaram-se as essências mais frequentes, e todas as árvores, mesmo as dessas duas espécies, ficaram menores do que as que tinham encontrado até então.

Alcançaram a crista de uma serra e se viram diante de um largo platô quase plano, que se estendia à frente. Era dominado por outra floresta, em geral conífera, de abetos verde-escuro, espruces e pinheirinhos. Uns poucos lariços espaçados faziam o contraste de cor, com suas agulhas já douradas, ou quase. Outro contraste era o prado, verde-amarelo, semeado de pequenos lagos azuis e brancos, que refletiam o céu acima e as nuvens distantes. Um rio de correnteza rápida dividia o espaço, alimentado por uma cascata que caía do flanco da montanha, à frente. No fundo do chapadão, dominando a linha do horizonte, erguia-se um alto pico coberto de branco e parcialmente escondido por nuvens. Era uma vista empolgante.

A montanha parecia tão próxima que Ayla pensou que poderia tocá-la, se apenas estendesse a mão. O sol, que batia de frente no morro, valorizava as cores e formas da pedra: rochas amareladas projetando-se de paredões cinza pálido. Faces lisas, muito brancas, alternando com colunas escuras, estranhamente regulares, que tinham emergido como lava do centro da terra e esfriado nas formas angulosas da sua estrutura fundamental cristalina. Luzindo acima de tudo isso, via-se o gelo verde-azul de um glaciar verdadeiro que uma glace de neve, visível ainda nos pontos mais altos, enfeitava. E enquanto olhavam, como que por mágica, o sol e as nuvens de chuva criaram um deslumbrante arco-íris e estenderam no   num grande arco, acima da montanha.

O homem e a mulher ficaram a ver aquilo, extáticos, absorvendo a beleza e serenidade do espetáculo. Ayla se perguntou se não haveria uma mensagem no arco-íris nem que fosse apenas a de que eram bem-vindos ali. Observou que o ar que respirava era deliciosamente puro e fresco. Um alívio depois do calor aflitivo da planície. Percebeu também, de chofre, que os insuportáveis mosquitos haviam desaparecido. Para ela, não precisava dar mais nem um passo. Estaria feliz morando ali.

Voltou-se sorrindo para o homem. Jondalar ficou estupefato por um momento com a força da emoção refletida no rosto dela, do seu visível prazer com a beleza daquela região, da sua vontade de ficar no local para sempre. Mas sentiu tudo isso como alegria de ter aquela mulher e desejo dela. Queria-a naquele instante, e isso se refletiu nos seus olhos azuis, na sua expressão de amor e ternura. Ayla sentiu a força dele, projeção da sua, mas transmudada e amplificada através dele.

Do alto dos seus cavalos, eles olharam nos olhos um do outro, transfixos. O que sentiam era algo impossível de explicar. Suas emoções, embora distintas, individuais, se correspondiam e combinavam. Era o poder de um carisma que cada um deles tinha e dirigia para o outro. E a força da sua mútua devoção. Sem pensar, mexeram-na em direção um do outro — movimento que os cavalos interpretaram erradamente. Huiin começou a descer a colina e Racer a seguiu. Isso fez com que o homem e a mulher voltassem à realidade. Possuídos de um indizível ardor, de um inexplicável afeto, sentindo-se um pouco tolos por não saberem exatamente o que lhes acontecera, sorriram um para o outro com um olhar cheio de promessas e prosseguiram colina abaixo, virando para noroeste, rumo ao platô.

A manhã em que Jondalar achou que poderiam alcançar a colónia Xaramudói trouxe consigo um revigorante sopro de frio no ar, que anunciava mudança da estação, e Ayla o recebeu com júbilo. Cavalgando por entre os flancos arborizados daquelas colinas, ela se sentia como se já tivesse estado ali antes, embora soubesse que isso não era verdade. Por algum motivo obscuro, esperava a cada passo reconhecer algum marco. Tudo lhe parecia familiar: as árvores, as plantas, as encostas, a própria configuração do terreno. Quanto mais via, mais se sentia em casa.

Quando viu avelãs, ainda no pé, em seus invólucros verdes, espinhentos, mas quase maduras, exatamente como gostava, ela desceu do e colheu algumas. Ao quebrar duas ou três com os dentes, teve urna iluminação: a razão pela qual achava que conhecia a área, que se sentia em casa, era que o lugar se parecia com a região montanhosa da extremidade da península, perto da caverna do Clã de Brun. Ela fora criada numa região muito semelhante àquela.

A área ia ficando também familiar para o homem, e por bons motivos. Quando encontrou uma trilha bem marcada, que reconheceu perfeitamente, e que descia para um caminho que dava para a face externa de um paredão de rocha que ele conhecia muito bem, viu que não estavam longe. Sentia que ia ficando cada vez mais excitado. A tal ponto que quando Ayla deu com uma urze branca, espinhosa, bem na frente deles, no alto, com estolhos compridos e espinhosos e galhos vergados ao peso de amoras-pretas maduras, suculentas, e quis apanhar algumas, ele se irritou. Aquilo os atrasaria.

—    Alto, Jondalar! Veja: amoras-pretas! — exclamou Ayla, escorregando de Huiin e correndo para o capão das urzes.

—    Estamos chegando.

—    Podemos levar amoras para eles — disse Ayla, de boca cheia. — Não vejo amoras desde que saí do Clã. Prove-as, Jondalar! Já terá provado coisa tão doce e tão gostosa?

As mãos dela estavam tingidas de púrpura de tanto apanhar as frutinhas e enfiá-las na boca, muitas de uma só vez.

Vendo aquilo, Jondalar acabou rindo.

—    Você precisava ver-se num espelho de água! Parece uma meninazinha, cheia de nódas de fruta e toda excitada. — Abanou a cabeça e fez um muxoxo. Ela não respondeu. Não podia falar, de tantas amoras que tinha na boca.

Ele colheu algumas, viu que eram mesmo excelentes, e apanhou mais algumas. Depois parou.

—    Você pretende levar amoras para eles. Mas não temos nem onde botá-las.

Ayla parou, depois sorriu.

—    Temos sim — disse, tirando da cabeça o chapéu de palha, manchado de suor, e procurando algumas folhas largas para forrá-lo. — Use o seu também.

Tinham enchido dois terços de cada chapéu quando Lobo rosnou. Uma advertência.

Ergueram os olhos e viram um jovem alto, quase um homem, que viera pela trilha e agora os olhava boquiaberto e olhava o lobo, tão perto, com os olhos arregalados de medo.

Jondalar reparou no rapaz.

—    Darvo? É você mesmo, Darvo? Sou eu, Jondalar. Jondalar, dos Zelandonii — disse ele, caminhando para o outro a passos largos.

Jondalar falava numa língua que Ayla não entendia, se bem que houvesse palavras e sons reminiscentes de Mamutói. Ela viu a expressão do desconhecido passar do temor para a estupefação, para o reconhecimento.

— Jondalar? Jondalar! O que está fazendo aqui? Eu pensava que você tivesse ido embora para não mais voltar — disse Darvo.

Correram um para o outro e se abraçaram. Depois, o homem recuou e encarou o rapaz, segurando-o pelos ombros.

— Deixe-me vê-lo bem! É difícil acreditar que tenha crescido tanto!

Ayla tinha os olhos fixos nele, na reação dele diante de uma pessoa que não via fazia muito tempo.

Jondalar o abraçou de novo. Ayla podia ver a sincera afeição que eles tinham um pelo outro, mas depois da primeira efusão Darvo pareceu um tanto constrangido. Jondalar compreendeu aquela reticência repentina. Darvo era quase um homem agora, afinal de contas. Abraços formais de saudação eram uma coisa, mas exibições exuberantes de afeto, mesmo por alguém que pertencera à sua gente por algum tempo, era coisa muito diferente. Darvo olhou para Ayla. Depois para o lobo que ela continha, e seus olhos se arregalaram outra vez. Viu, em seguida, os cavalos, um pouco para trás, mas tranquilos, com cestas e mastros nas costas, e seus olhos se abriram ainda mais.

—    Acho que devo apresentá-lo aos meus... amigos — disse Jondalar. — Darvo dos Xaramudói, esta é Ayla, dos Mamutói.

Ayla reconheceu a cadência da apresentação formal e um pouco das palavras. Mandou que Lobo ficasse quieto e avançou, com as mãos estendidas, palmas para cima.

— Eu sou Darvalo, dos Xaramudói — disse o moço, tomando as mãos dela, e falando em Mamutói. — Seja bem-vinda, Ayla dos Mamutói.

Tholie o ensinou muito bem! Você fala Mamutói como se fosse sua língua nativa, Darvo. Ou devo dizer Darvalo, agora? — disse Jondalar.

— Todos me chamam Darvalo, agora. Darvo é nome de criança — disse o adolescente. Depois corou. — Mas você pode dizer Darvo, se assim o desejar. Afinal, é o nome que conhece.

— Acho Darvalo um bonito nome — disse Jondalar. — E alegro-me que não tenha abandonado as aulas de Tholie.

— Dolando julgou que seria uma boa ideia. Ele disse que eu iria precisar da língua para negociar com os Mamutói na próxima primavera.

—    Você gostaria de conhecer Lobo? — perguntou Ayla.

O rapaz franziu a testa com certa consternação. Jamais havia pensando que encontraria um lobo cara a cara, e jamais desejara que isso acontecesse. Mas Jondalar não tem medo dele, pensou, e a mulher também não... É mulher muito estranha... e fala muito esquisito também. Não que fale errado, mas não fala como Tholie.

— Se você puser a mão assim, mais perto, Lobo poderá cheirá-la e ficará conhecendo você — disse Ayla.

Darvalo não estava muito certo se queria que a mão ficasse ao alcance dos dentes do lobo, mas não havia meio de escapar àquela altura. Estendeu, então, braço. Lobo farejou-lhe a mão e, em seguida, inesperadamente, lambeu-a. Tinha uma língua quente e molhada, mas de modo nenhum o machucou. A sensação foi, na verdade, agradável. Darvalo olhou para a mulher e para o animal. Ela passara o braço com naturalidade pelo pescoço do bicho e lhe afagava a cabeça com a outra mão. Que sensação se poderia ter acariciando um lobo na cabeça? — pensou.

—    Você gostaria de sentir o pêlo dele? — perguntou Ayla.

Darvalo se mostrou surpreso. Depois avançou a mão, mas Lobo quis cheirá-lo, e ele recuou.

—    Aqui — disse Ayla, pegando a mão dele e pousando-a firmemente na cabeça do lobo. — Ele gosta de ser coçado. Assim.

Lobo sentiu a picada de uma pulga ou o agrado fizera-o lembrar-se de pulgas. Sentou-se e com movimentos rápidos se pôs a coçar atrás da orelha com uma das pernas traseiras. Darvalo sorriu. Nunca tinha visto um lobo em posição tão cómica, a se coçar com tanta disposição.

— Eu disse que ele gosta disso. Os cavalos também — disse Ayla, mandando que Huiin se aproximasse.

Darvalo olhou para Jondalar. Mas ele estava sorrindo apenas, como se não houvesse nada de estranho no fato de uma mulher coçar lobos e cavalos.

— Darvalo dos Xaramudói, esta aqui é Huiin — disse Ayla, pronunciando o nome da égua como quando o inventara, como a onomatopeia de um pequeno relincho. Fez tal qual um cavalo. — É esse o nome dela, mas Jondalar o pronuncia de maneira um pouco diferente. Acha mais fácil.

— Você sabe conversar com cavalos? — perguntou Darvalo, que já não sabia mais o que pensar.

— Todo mundo pode conversar com um cavalo, mas os cavalos não dão atenção a qualquer um. É preciso que os dois se conheçam. Racer obedece a Jondalar, que o conheceu pequeno.

Darvalo girou sobre os calcanhares para ver Jondalar e deu dois passos para trás.

—    Você está sentado no cavalo! — disse.

—    Sim, estou. É porque ele me conhece, Darvo. Quero dizer, Darvalo. Ele me deixa fazer isso mesmo quando galopa, e podemos ir, os dois, muito depressa.

Darvalo parecia estar prestes a correr também. Jondalar saltou do cavalo.

—    Com respeito a esses animais, Darvalo, você nos pode ajudar, Darvo. Se quiser, naturalmente.

O rapaz parecia petrificado e pronto para fugir.

—    Estamos viajando há muito tempo, e estou de fato ansioso para ver Dolando, Roshario, e todo mundo. Mas muitas pessoas ficam um pouco nervosas quando vêem os animais pela primeira vez. Não estão acostumadas com eles. Você nos acompanharia? Vendo que você não tem medo, talvez eles não se assustem.

O rapaz pareceu mais à vontade. Aquilo não era tão difícil. de contas, ele já estava junto dos animais. Todo mundo ficaria pasmo vendo-o chegar com Jondalar e aqueles bichos... Sobretudo Dolando e Roshario.

— Já me ia esquecendo — disse Darvalo. — Eu disse a Roshario que vinha apanhar amoras-pretas para ela, uma vez que não pode mais colhê-las.

— Nós temos amoras-pretas — disse Ayla.

Jondalar perguntou ao mesmo tempo.

— Por que ela não pode mais colher amoras?

Darvalo olhou de Ayla para Jondalar.

— Ela caiu do barranco no cais dos barcos e quebrou o braço. Acho que nunca vai sarar. Não foi encanado.

— E por que não? — perguntaram os dois.

— Não havia quem soubesse fazer isso.

—E Xamã? E sua mãe?

— Xamã morreu, no inverno passado.

—    Lamento ouvir isso — disse Jondalar.

— E minha mãe foi embora. Um homem Mamutói veio visitar Tholie não muito tempo depois da sua partida, Jondalar. Um primo nosso. Acho que ele gostou de minha mãe. Convidou-a para ser sua companheira. Ela deixou todo mundo surpreso aceitando e indo viver com os Mamutói. Ele me convidou para ir também, mas Dolando e Roshario me pediram que ficasse. Fiquei. Eu sou um Xaramudói, não sou Mamutói — explicou Darvalo. Depois corou e disse para Ayla: — Não que seja ruim ser Mamutói.

— Não, claro que não — disse Jondalar, com uma ruga de aborrecimento na testa. — Entendo como se sente, Darvalo. Eu sou ainda Jondalar dos Zelandonii. Quando foi que Roshario caiu?

—    Na Lua do Verão, mais ou menos agora.

Ayla interrogou o homem com o olhar.

—    Nesta mesma fase da lua, o mês passado — explicou ele. — Você acha que será tarde demais?

—    Não sei. Tenho de vê-la primeiro — disse Ayla.

— Ayla entende dessas coisas, Darvalo — disse Jondalar. É uma excelente curandeira. Talvez possa ajudar.

— Desconfiei que ela fosse Xamã. Com esses animais, e tudo. — Darvalo ficou pensativo por um momento, atentando para os cavalos e o lobo. — Deve ser muito boa. — O menino parecia mais alto que os seus treze anos. — Vou chegar com vocês e ninguém terá medo dos animais.

— Pode carregar as amoras-pretas para mim? Assim eu fico perto de Lobo e de Huiin. Às vezes eles têm medo de gente.

 

Darvalo foi na frente, para mostrar a direção. Desceram a colina por um caminho que cortava a paisagem de campo aberto, com árvores. No sopé da elevação eles chegaram a outro sendeiro e viraram à direita. A inclinação do terreno era agora mais gradual. Essa nova trilha servia de escoadouro ao excesso de água dos degelos da primavera e da estação chuvosa. Conquanto esse leito temporário de rio estivesse seco no fim do ardente verão, era pedregoso, o que dificultava a marcha.

Cavalos são animais das planícies. Mesmo assim, Huiin e Racer iam sem dificuldade pelo terreno montanhoso. Tinham aprendido, quando jovens, a andar na picada íngreme que levava à caverna de Ayla no vale. Ela ainda se preocupava com medo que se ferissem por causa da base insegura e ficou contente quando tomaram outro caminho que vinha de baixo e continuava. Esse era muito usado e permitia, em alguns lugares, que duas pessoas andassem lado a lado, se bem que não dois cavalos.

Depois de passarem por uma rampa muito íngreme e dobrarem à direita, alcançaram um paredão rochoso. Veio, em seguida, um talude, e Ayla se sentiu em casa. Ela já vira acumulações semelhantes de detritos rochosos na base de paredões verticais nas montanhas onde fora criada. Notou, até, a presença de grandes flores brancas em forma de chifre de uma planta robusta de folhas recortadas. Os membros da Lareira do Mamute que ela conhecera chamavam essa planta, de cheiro desagradável, de figueira-brava, por causa dos frutos espinhemos, mas ela lhe trazia de volta lembranças da infância. Tanto Creb quanto Iza usavam a planta para diversos fins.

O lugar era conhecido de Jondalar, que havia apanhado saibro ali de uma acumulação de seixos, para a margem de caminhos e de lareiras. Sabia, agora, que estavam perto, e sua excitação aumentou.

Uma vez passado o trecho mais acidentado, o caminho era plano e tinha um revestimento de lascas de pedra. Rodeava a base de uma encosta abrupta. À frente, podiam ver o céu por entre as árvores e a vegetação de menor porte, e Jondalar sabia que se aproximavam da borda do penhasco.

— Ayla, acho que devemos tirar as varas e as cestas dos cavalos aqui — disse Jondalar. — O caminho que contorna esse paredão não é tão largo assim. Podemos voltar para apanhá-los.

Depois que tudo foi descarregado, Ayla, seguindo o adolescente, caminhou um pouco ao longo do paredão de pedra em direção ao céu aberto. Jondalar, que ia atrás dela, sorriu quando ela chegou à bordo do precipício, olhou para baixo, depois deu um passo para trás, apoiando-se à parede. Sentira vertigem. Mas olhou de novo e ficou de boca aberta.

Lá embaixo, no sopé do paredão a prumo, estava o mesmo Rio da Grande Mãe cujo curso eles tinham acompanhado, mas Ayla nunca o tinha visto de tal perspectiva, Vira todos os braços do rio contidos num só canal, mas fora sempre da altura de uma ribanceira não muito mais alta que o nível da água. O desejo de olhar para o abismo e contemplar a paisagem daquela altura era incoercível.

O rio, que tantas vezes se alargava e serpenteava, era reunido e contido entre paredes de rocha que se elevam diretamente da água, e tinham alicerce no seio da terra. Enquanto a corrente mais profunda se movia lançando elementos seus contra a rocha, a força contida do Rio da Grande Mãe rolava com uma potência silenciosa, ondulando com oleosa fluência de ondas que se dobravam sobre si mesmas e seguiam em frente, crescidas, arfando. Muitos afluentes se somariam ainda ao magnífico rio antes que ele atingisse sua capacidade total, mas já àquela altura, tão longe do delta, ele alcançara proporções tão gigantescas que a diminuição não se notava, principalmente daquela altura, de onde se via toda a massa da água em movimento.

Um ocasional pináculo de pedra rompia a superfície de espaço em espaço, partindo as águas com espirais de espuma. Enquanto Avia olhava, um tronco, encontrando o caminho bloqueado, passou, contornando um desses obstáculos, aos solavancos. Diretamente abaixo dela, e apoiada ao penhasco, havia uma construção de madeira que não se via bem. Quando, finalmente, ergueu os olhos, Ayla estudou as montanhas da margem oposta. Embora ainda arredondadas, eram mais altas e mais abruptas que as que tinham encontrado rio abaixo. Quase se equiparavam aos picos pontiagudos da margem em que se encontravam. Separadas apenas pela largura do rio, as duas cadeias haviam sido unidas até que a faca do tempo e da corrente tinham aberto aquele caminho.

Darvalo esperava pacientemente que Ayla assimilasse aquela primeira visão da entrada teatral aos domínios do seu povo. Ele vivera ali toda a vida e não lhe dava mais um valor especial, mas conhecia a reação de estranhos. Sentia grande orgulho com a admiração dos forasteiros e era levado a atentar de novo para a paisagem, vendo-a através dos olhos deles. Quando a mulher finalmente se voltou, sorriu para ela e conduziu-a ao longo da face da montanha por uma passagem laboriosamente alargada. Fora apenas uma estreita saliência do rochedo. Dava passagem agora duas pessoas de cada vez, se caminhassem bem juntas uma da outra. Dava passagem a alguém que levasse lenha, um animal caçado, ou outros suprimentos com relativa facilidade, e dava passagem a cavalos.

Quando Jondalar se acercou da borda do precipício, sentiu aquele frio na barriga que era a sua reação habitual em face de espaços vazios. Sentira sempre isso quando morara ali. Não era coisa tão séria que ele não pudesse controlar, e sabia apreciar a vista espetacular e o trabalho dos que tinham de escavar o flanco da montanha com pedras grandes e pesados machados de sílex, mas isso não aliviava a sensação que tinha invariavelmente. Mesmo assim, aquela entrada era melhor que a outra, mais usadas.

Mantendo Lobo junto de si e puxando Huiin, Ayla acompanhou o adolescente, encostada ao paredão. À frente havia uma área plana, em anfiteatro, de proporções apreciáveis. Outrora, quando a grande bacia interior do lado oeste era um mar que começava a esvaziar-se pela garganta, que se ia abrindo na cadeia de montanhas, o nível da água era muito mais alto e uma espécie de angra protegida se formara. Era agora enseada seca, protegida, sobranceira ao rio.

O primeiro plano era um tapete de relva, que crescia até quase a borda do despenhadeiro. Mais além, havia vegetação arbustiva, agarrada à rocha, e, até, árvores pequenas que subiam pela escarpa. Jondalar sabia ser possível escalar a parede do fundo, embora pouca gente o fizesse. Era uma saída inconveniente, que só raramente se usava. Mais à frente, projetando-se da montanha, havia um rebordo de arenito, largo o suficiente para abrigar confortavelmente diversas habitações de madeira.

Do outro lado, numa parte verde de limo, ficava o tesouro principal daquele terreno privilegiado: uma nascente de água, que vinha do alto, escorria pelas rochas, caía de saliências e tombava de outro rebordo, menor, de arenito, numa cascata estreita, sobre uma piscina natural, embaixo. A água corria, depois, rente ao penhasco até a beira do abismo e caía no rio.

Diversas pessoas interromperam o que estavam fazendo quando a pequena procissão, com um lobo e um cavalo, surgiu na dobra da montanha. Quando Jondalar chegou viu apreensão e estupefaçào em todos os rostos.

— Darvo! O que é isso que você traz para cá? — disse uma voz.

—    Hola! — disse Jondalar, saudando o povo na língua deles. Depois, vendo Dolando, entregou a rédea de Racer a Ayla e, com um braço em torno dos ombros de Darvalo, dirigiu-se ao encontro do chefe da Caverna.

—    Dolando! Sou eu, Jondalar — disse quando chegou mais perto.

—    Jondalar? Será você mesmo? — disse Dolando, reconhecendo-o, mas ainda hesitante. — De onde vem?

— Do leste. Passei o inverno com os Mamutói.

— E quem é essa?

Jondalar percebeu que o homem devia estar muito perturbado por ter esquecido a forma normal de cortesia.

—    O nome dela é Ayla. Ayla dos Mamutói. Os animais viajam conosco. Eles obedecem a ela, a mim, e não farão mal a ninguém — disse Jondalar.

—    Inclusive o lobo? — perguntou Dolando.

—    Eu toquei na cabeça dele e apalpei seu pêlo — disse Darvalo. — E ele nem tentou morder-me.

Dolando olhou o rapaz.

—    Você o... tocou?

— Sim. Ela diz que a gente tem só de conhecê-los.

— Ele tem razão, Dolando. Eu não viria aqui com qualquer pessoa ou qualquer coisa que representasse algum perigo. Venha e trave conhecimento com Avia e com os animais. Você verá.

Jondalar conduziu o homem para o centro do campo. Diversas outras pessoas os acompanharam. Os cavalos tinham começado a pastar mas pararam à aproximação do grupo. Huiin se acercou da mulher postando-se ao lado de Racer, cuja rédea Ayla ainda segurava numa das mãos. A outra estava pousada na cabeça de Lobo. O grande lobo do norte se mantinha junto dela, atento, em postura defensiva, mas não abertamente ameaçadora.

— Como ela consegue fazer com que os cavalos não tenham medo do lobo? — perguntou Dolando.

—    Eles sabem que não têm nada a temer. Eles o conhecem desde lobinho — explicou Jondalar.

— E por que não fogem de nós? — perguntou em seguida o chefe.

—Estão acostumados às pessoas. Eu estava presente quando o garanhão nasceu — respondeu Jondalar. — Eu me feri gravemente, e Ayla salvou minha vida.

Dolando se formalizou e olhou firme nos olhos de Jondalar.

— Ela é uma Xamã?

— É um membro da Lareira do Mamute.

— Uma jovem gorda tomou a palavra.

— Se ela é Mamute, onde está sua tatuagem?

—    Nós partimos antes que ela completasse o aprendizado, Tholie — disse Jondalar. E depois sorriu para a mulher Mamutói. Ela não mudará nada. Era ainda tão franca e direta quanto antes.

Dolando fechou os olhos e abanou a cabeça.

—    Que pena! — disse, com desespero. — Roshario levou uma queda e se feriu.

—    Darvo me contou. Disse que Xamã está morto.

— Sim, ele morreu no inverno passado. Desejaria que essa mulher fosse uma curandeira competente. Nós enviamos mensageiro a uma Caverna, mas o Xamã de lá tinha viajado. Outro mensageiro foi a uma segunda caverna, rio acima, mas essa fica longe, e receio que já seja tarde para fazer alguma coisa.

— O aprendizado que ela não concluiu, Dolando, nada tem a ver com práticas de medicina. Ayla é uma curandeira. E das boas. Ela aprendeu com... — De súbito Jondalar lembrou-se de uma das poucas cegueiras de Dolando e emendou — ...a mulher que a criou. É uma longa história, mas pode crer em mim. Ela é competente.

Eles haviam alcançado Ayla e os animais. Ela ouviu e observou Jondalar atentamente enquanto ele falava. Havia semelhança entre a língua que ele usava e Mamutói. Mas ele já começava a falar na língua de Dolando.

— Ayla dos Mamutói, este é Dolando, líder dos Xamudói, o ramo dos Xaramudói que vive aqui — disse Jondalar, em Mamutói. E, na língua de Dolando: — Dolando dos Xaramudói, esta é Ayla, Filha da Lareira do Mamute, dos Mamutói.

Dolando hesitou um momento, de olho nos cavalos e no Lobo. Este era sem dúvida um belo animal, tranquilo, mas atento, e postado ao lado daquela mulher alta. Ficou intrigado. Nunca estivera tão próximo assim de um daqueles bichos, só de algumas peles. Não costumavam caçar lobos, e só os vira a distância, correndo para esconder-se. Lobo o olhava de um jeito que fez Dolando pensar que estava sendo, por sua vez, avaliado. Depois desviou os olhos dele. Os animais não representavam qualquer animais fosse mesmo perita em xamanismo, com ou sem treinamento. Ofereceu-lhe, então, as duas mãos, espalmadas, para cima.

— Em nome da Grande Mãe, Mudo, eu lhe dou as boas-vindas. Ayla dos Mamutói.

— Em nome de Mut, a Grande Mãe Terra, eu lhe agradeço, Dolando dos Xaramudói — disse Ayla, tomando as mãos dele.

A mulher tem um sotaque dos mais curiosos, pensou Dolando. Fala Mamutói, mas com uma nota diferente. Não fala como Tholie. Talvez seja de outra região. Dolando conhecia suficientemente a língua para entender o que os Mamutói diziam. Muitas vezes viajara até a foz do grande rio para negociar com eles. Ajudara a trazer de lá Tholie, a mulher Mamutói. Era o mínimo que podia fazer pelo líder Ramudói, contribuir para que o filho da sua lareira casasse com a mulher que estava decidido a ter. Tholie se esforçara para que muitos aprendessem a sua língua e isso fora útil em expedições subsequentes de comércio.

A aceitação de Ayla por Dolando foi o sinal para que todos dessem as boas-vindas a Jondalar e à mulher que ele trouxera. Tholie deu um passo à frente, e Jondalar sorriu. De um modo complexo, através do casamento com o irmão, eles eram afins, e ele gostava dela.

Tholie! — disse, com um largo sorriso, tomando as mãos dela nas suas. — Não tenho palavras para dizer-lhe o quanto fico contente de vê-la.

É maravilhoso ver você também. E não há dúvida de que aprendeu a falar Mamutói muito bem. Devo confessar que muitas vezes duvidei que você um dia ficasse tão fluente.

Ela soltou-lhe as mãos, pôs-se nas pontas dos pés, e deu-lhe um abraço. Ele se curvou e, impulsivamente, por sentir-se feliz de estar lá, levantou no ar a mulher para abraçá-la direito. Tholie corou, um tanto desconcertada, pensando que aquele homem alto, bonito, imprevisível, certamente mudara. Não se lembrava de que ele fosse tão espontâneo em demonstrar seus afetos no passado. Quando ele a colocou no chão, ela o estudou e também à mulher que viera com ele, e que devia ter alguma coisa a ver com aquilo.

— Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutói, apresento-lhe Tholie, dos Xaramudói e, antes, dos Mamutói.

— Em nome de Mut ou Mudo, ou que nome seja que você Lhe dê eu lhe dou as boas-vindas, Ayla dos Mamutói.

— Em nome da Mãe Comum, eu lhe agradeço, Tholie dos Xaramudói. Fico muito feliz em conhecê-la. Tinha ouvido falar muito de você. Não tem parentes no Acampamento do Leão? Penso que Talut disse que vocês eram aparentados quando Jondalar mencionou seu nome — disse Ayla. Sentia que aquela mulher tão perspicaz a estudava. Se ela ainda não soubesse disso, logo descobriria que Ayla não era Mamutói de nascença.

— Sim, somos parentes. Não parentes próximos. Eu provenho de um acampamento do sul. O Campo do Leão fica mais para o norte — disse Tholie. — Eu os conheço. Todo mundo conhece Talut. E a irmã dele, Tulie, é muito respeitada — disse Tholie.

Esse sotaque não é Mamutói, pensava, nem Ayla é um nome Mamutói. Talvez nem seja o sotaque, mas um modo estranho de pronunciar algumas palavras. Ela fala bem. Talut sempre foi bom nisso, de aceitar pessoas. Ele até adotou aquela velha resmungona, e a filha, que casou mal, muito abaixo do seu nível. Gostaria de saber mais sobre essa Ayla e sobre os animais, pensou, depois olhou para Jondalar.

— E Thonolan? Está com os Mamutói?

A dor nos olhos dele lhe disse o que acontecera antes que ele falasse.

—    Thonolan morreu.

—    Lamento ouvir isso. Markeno vai pelo mesmo caminho. Não posso dizer que isso seja, para mim. inesperado. Sua alegria de viver morreu com Jetamio. Algumas pessoas se recuperam de uma tragédia, outras não conseguem fazer isso — disse Tholie.

Ayla gostava da maneira como a mulher se expressava. Não sem sentimento, mas de modo aberto e direto. Ela era ainda muito Mamutói.

Os outros membros presentes da Caverna saudaram Ayla. Ela percebeu alguma reserva. Mas estavam todos curiosos. Com Jondalar eram muito mais naturais. Ele era da família. Não havia dúvida de que o consideravam como tal e que o recebiam de volta com os braços abertos.

Darvalo ainda tinha nas mãos o chapéu com as amoras-pretas e esperava que os cumprimentos terminassem. Entregou o presente a Dolando.

—    Aí tem algumas amoras para Roshario.

Dolando notou aquela estranha cesta. Não era feita como as cestas da Caverna.

—    Ayla me deu as amoras — continuou Darvalo. — Eles as colhiam quando nos encontramos. Essas já estavam catadas.

Vendo o rapaz, Jondalar pensou de repente na mãe de Darvo. Ele não pensara que Serenio poderia não estar lá e ficara desapontado. Ele a amara certo modo, de forma sincera, e agora se dava conta de que quisera muito revê-la. Estaria gravida Quando partiu? Grávida de um filho do seu espírito? Talvez pudesse perguntar isso a Roshario. Ela saberia de algo.

— Vamos entregar-Ihe as amoras — disse Dolando, com um mudo agradecimento de cabeça para Ayla. — Estou certo de Que ficará feliz. Se você quiser vir, Jondalar, acho que ela está acordada, e gostará de vê-lo. Chame Ayla, Roshario vai querer conhecê-la. É duro para ela. Você sabe como sempre foi, sempre atarefada, sempre a primeira a saudar visitantes.

Jondalar traduziu as palavras deles, e Ayla disse que entraria com eles. Deixaram os cavalos para pastar, mas ele disse a Lobo que não a deixasse. Percebia que a presença do carnívoro ainda assustava os outros. Cavalos domesticados eram coisa estranha, mas não perigosa. Um lobo era um predador e podia fazer-lhes mal.

—    Acho melhor, Jondalar, que Lobo fique comigo por enquanto. Pergunte a Dolando se ele concorda que ele me acompanhe. Diga que Lobo está acostumado a ficar dentro de casa — disse Ayla, em Mamutói.

Jondalar repetiu o pedido, embora Dolando tivesse entendido tudo. Vendo no rosto dele as suas reações, Ayla tinha certeza disso. Lembra se-ia disso, no futuro.

Caminharam de volta em direção a uma escultura de madeira, que parecia uma tenda oblíqua, localizada debaixo do ressalto protetor da rocha, depois de uma lareira central, que era, obviamente, um local de reunião.

Ayla distinguiu as características da construção quando se aproximaram. O pau de cumeeira fora fincado no chão atrás e outro se apoiava na frente. Tábuas de carvalho, afinadas numa ponta, tiradas radialmente de um grosso tronco de árvore, haviam sido encostadas à trave, mais curtas no fundo, mais longas na frente. Viu, quando chegou ainda mais perto, que essas tábuas estavam fixadas umas às outras com tiras de salgueiro-chorão, passadas por orifícios feitos de antemão.

Dolando ergueu uma cortina de couro macio, amarelo, e segurou-a até que todos entrassem. Prendeu-a, depois, para que houvesse mais claridade. Lá dentro, havia frestas entre algumas das pranchas, que permitiam a passagem da luz do dia, mas as paredes estavam recobertas de peles em certos lugares para impedir correntes de ar, se bem que não houvesse muito vento naquele nicho encravado na montanha. Perto da entrada via-se uma pequena lareira. A prancha que ficava imediatamente por cima dela, no teto, tinha uma saída circular para a fumaça, mas nenhuma defesa contra a chuva. A cortina da porta protegia a casa contra chuva e neve. Ao longo de uma das paredes havia uma cama, uma larga prateleira de madeira presa na parede por um dos lados e sustentada, do outro, por pernas. A tábua tinha almofadas de couro cheias de palha e algumas peles. Na luz precária, Ayla custou a distinguir a figura de uma pessoa reclinada.

Darvalo se ajoelhou junto do leito, com as frutas.

—    Trouxe-lhe as amoras que prometi, Roshario, mas não fui eu quem as apanhou. Foi Ayla.

A mulher abriu os olhos. Não tinha dormido, estava apenas repousando, e não sabia da chegada de visitas. Estranhou o nome mencionado por Darvalo.

— Quem apanhou as amoras?

Dolando se debruçou sobre a cama e pôs a mão na testa da mulher.

— Roshario! Veja quem está aqui! Jondalar voltou.

—    Jondalar? — disse ela, olhando o homem que se ajoelhava agora ao lado de Darvalo. Ele ficou impressionado com a dor que marcava o rosto da doente. — E mesmo você? Ás vezes sonho e penso que vejo meu filho, ou Jetamio, e depois verifico que não era verdade. Será você mesmo, Jondalar, ou não passa de outro sonho?

— Não é sonho, Rosh — disse Dolando, e Jondalar viu que ele tinha os olhos marejados. — Ele está mesmo aqui. Trouxe alguém junto. Uma mulher Mamutói. O nome dela é Ayla. — Ao dizer isso, fez um sinal a Ayla para que se aproximasse.

Ayla mandou que Lobo ficasse quieto e avançou sozinha para a mulher. Que tinha grandes dores, ficou logo aparente. Os olhos dela estavam como que vidrados e as olheiras escuras faziam com que parecessem fundos. O rosto estava avermelhado de febre. Mesmo a distância e debaixo da coberta leve, pôde ver que o braço, entre o ombro e o cotovelo, estava virado num ângulo grotesco.

— Ayla dos Mamutói, esta é Roshario dos Xaramudói — disse Jondalar.

Darvalo cedeu-lhe o lugar, e Ayla se postou junto do leito.

— Em nome da Mãe, você é bem-vinda, Ayla dos Mamutói — disse Roshario, tentando erguer-se, mas desistindo em seguida e se recostando outra vez nas almofadas. — Desculpe não poder saudá-la da forma correta.

— Em nome da Mãe, agradeço — disse Ayla. — Não precisa se levantar.

Jondalar traduziu, mas Tholie incluíra praticamente todo mundo nas suas aulas, e muitos tinham uma boa base para entender Mamutói. Roshario inclusive, que fez um sinal afirmativo de cabeça.

— Jondalar, ela está sofrendo muito. Temo que a fratura tenha sido muito séria. Quero examinar-lhe o braço — disse Ayla, falando em Zelandonii para que a doente não entendesse a gravidade do ferimento. Mas isso não escondeu o tom de urgência na sua voz.

— Roshario, Ayla é uma curandeira, uma filha da Lareira do Mamute. Ela gostaria de ver o seu braço — disse Jondalar, e olhou para Dolando, a fim de certificar-se de que ele não se opunha. O chefe estava disposto a tentar tudo o que pudesse ajudar, desde que Roshario concordasse.

— Uma curandeira? — disse a mulher. — Xamã?

— Sim, como uma Xamã. Ela pode examinar o braço?

—    Receio que seja tarde demais para fazer alguma coisa, mas pode examinar.

Ayla descobriu o braço. Alguma tentativa fora feita, evidentemente, para endireitá-lo, a ferida fora limpa, e começava a cicatrizar, mas o braço estava inchado e o osso saltado debaixo da pele num ângulo forçado. Ayla apalpou o braço, procurando ser tão delicada quanto possível. A mulher apenas estremeceu uma vez, quando ela levantou o braço para ver o lado de baixo, mas não gemeu. Ayla sabia que o exame era doloroso, mas precisava encontrar o osso debaixo da pele. Ayla examinou os olhos de Roshario, cheirou-lhe o hálito, tirou-lhe o pulso, no pescoço e no punho, depois ficou de cócoras.

— Está cicatrizando, mas não encanado como deveria. Ela pode sarar, mas não creio que venha a recobrar o uso do braço ou da mão, e vai sentir sempre alguma dor — disse Ayla, falando na língua que todos entendiam até certo ponto. Fez uma pausa, para que Jondalar traduzisse.

—    Você pode fazer alguma coisa? — perguntou Jondalar.

—    Acho que sim. Talvez já seja tarde, mas eu gostaria de quebrar o braço de novo onde a fratura está ficando consolidada erradamente e endireitá-lo. O problema é que onde um osso foi emendado ele fica muitas vezes mais forte do que antes. Pode quebrar errado. E aí ela terá duas fraturas, e mais dor, inutilmente.

Houve um silêncio depois que Jondalar traduziu. Finalmente, a própria Roshario falou.

—    Se ele quebrar errado, não ficará pior em nada do que está agora, não é mesmo? — Aquilo era mais uma declaração do que uma pergunta. — Quero dizer, não poderei usá-lo nas condições em que se encontra, de modo que outra fratura não vai agravar a situação.

Jondalar traduziu as palavras dela, mas Ayla já estava aprendendo os sons e entonações da língua Xaramudói e comparando-a com o Mamutói. O tom e a expressão da doente transmitiam-lhe ainda mais. Ayla compreendia o sentido do que Roshario dissera.

— Mas você poderia sofrer mais sem qualquer benefício em troca. — disse, sabendo qual seria a decisão de Roshario, mas querendo que ela ficasse ciente de todas as implicações.

— Não tenho nada no momento — disse a mulher, sem esperar pela tradução. — Se você conseguir encanar o braço direito, poderei usá-lo depois?

Ayla esperou que Jondalar desse a sua versão das palavras da mulher na língua que ela sabia para estar segura de ter o sentido bem claro.

—    Não creio que poderá movimentá-lo inteiramente, mas terá pelo menos alguns movimentos. Ninguém pode ter certeza disso.

Roshario não hesitou.

—    Se houver alguma chance de que possa usar meu braço outra vez, quero fazer a operação. Uma Xaramudói precisa de dois bons braços para descer pela trilha até o rio. De que serve uma Xamudói se sequer pode descer até a doca Ramudói?

Ayla ouviu a tradução dessas palavras. Depois, olhando diretamente para a mulher, disse:

—    Jondalar, diga-lhe que vou procurar ajudá-la, mas diga-lhe também que não é o fato de ter uma pessoa dois braços perfeitos a coisa mais importante. Conheci um homem que tinha só um braço e um olho, e levava uma vida útil, sendo amado e respeitado por todo o seu povo. Roshario não fará menos que ele. Não é mulher que se deixe abater. Qualquer que seja o resultado da minha intervenção, ela continuará a ter uma vida útil. Achará um jeito, e será sempre querida e respeitada.

Roshario ficou olhando para Ayla enquanto ouvia as palavras dela pela boca de Jondalar. Depois, apertou os lábios e assentiu de cabeça. Em seguida, respirou fundo e cerrou os olhos.

Ayla se pôs de pé, já pensando no que tinha a fazer.

— Jondalar, preciso da minha cesta, a da direita. E diga a Dolando que me arranje alguns pedaços finos de madeira para as talas. E lenha, e uma vasilha grande, que ele não se importe, depois, de jogar fora. Não deve ser usada outra vez para cozinhar. Pretendo fazer nela um remédio forte para a dor.

A mente dela continuou a trabalhar, antecipando coisas. Preciso fazê-la dormir quando o braço for quebrado, pensava. Iza usaria datura. É forte mas tira a dor e funciona como narcótico. Tenho ainda um pouco, mas fresca seria melhor. Espera... não vi alguma, recentemente? Concentrou-se, depois exclamou. Vi, sim!

— Jondalar, enquanto você apanha a minha cesta, vou colher um pouco daquela maçã-espinhosa que vi no caminho — disse, alcançando a entrada em duas passadas.

— Lobo, venha comigo! — comandou.

Já estava no meio do campo quando Jondalar a alcançou.

Dolando ficou na porta da casa, olhando-os e ao lobo. Embora não tivesse dito nada, pensava sempre no animal. Notara que ele permanecia o tempo todo ao lado da mulher, e que procurava andar no ritmo dos passos dela. Observara também os gestos sutis que Ayla fizera quando foi até a cama de Roshario; e de como o lobo se deitara no chão, embora continuasse de cabeça alta e orelhas em pé, atento a cada movimento da mulher. Quando Ayla saiu, ele se levantou obedecendo a um comando, pronto para segui-la.

Ficou de olhos neles até que Ayla e o lobo, que controlava com tamanha segurança, desapareceram no fim do paredão de pedra. Depois contemplou a mulher na cama. Pela primeira vez desde aquele horrível momento em que Roshario tinha escorregado e caído, Dolando ousava ter uma centelha de esperança.

Quando Ayla voltou, trazendo uma cesta e uma braçada da planta conhecida por datura ou maçã-espinhosa que ela havia lavado na piscina natural, já encontrou à sua espera um caixote quadrado, de cozinhar, que resolveu examinar mais detidamente depois, um outro cheio d'água, um fogo aceso na lareira, com diversas pedras arredondadas postas nele para esquentarem, e alguns pedaços chatos de madeira. Fez um sinal de aprovação dirigido a Dolando. Em seguida, remexeu na sua cesta e tirou dela várias tigelas e sua velha bolsa de remédios, feita de pele de lontra.

Mediu, usando uma tigela pequena, certa quantidade de água, que despejou na caixa de cozinhar, juntou-lhe diversas das plantas datura, inteiras, raízes inclusive, depois borrifou de água as pedras quentes. Deixando-as no fogo, para esquentarem ainda mais, esvaziou o conteúdo de sua bolsa de remédios e escolheu alguns artigos. Quando guardava o resto, Jondalar entrou.

— Os cavalos estão bem, Ayla, gostando do capim no campo, mas recomendei a todos que se mantenham longe deles por enquanto. — E, dirigindo-se a Dolando: — Eles podem ficar nervosos com estranhos, e quero evitar algum acidente.

O líder da comunidade concordou. Ele não tinha muito a dizer, pró ou contra, no momento.

— Lobo não parece muito feliz do lado de fora, Ayla, e tem gente com medo dele. Acho que você devia trazê-lo para cá.

— Eu também preferia tê-lo aqui dentro comigo, mas pensei que Dolando e Roshario talvez achassem que ele devia esperar lá fora.

— Deixe que eu consulte Roshario. Depois, acho que Ayla poderá trazê-lo — disse Dolando, sem esperar por tradução e falando numa salada de Mamutói e Xaramudói que Ayla teve dificuldade de entender. Jondalar olhou para ele com alguma surpresa, mas Ayla continuou a conversa com naturalidade.

—    Tenho de medir essas talas em Roshario — disse, com os pedaços chatos de madeira na mão. — Depois, Dolando, quero que você raspe cada um deles até ficarem sem farpas. — Em seguida, apanhou um pedaço de pedra friável que estava perto da lareira. — Esfregue-as com este fragmento de arenito até ficarem bem lisas. Você terá alguma pele macia que eu possa cortar?

Dolando sorriu, embora fosse um sorriso um tanto amargo.

—    Somos famosos justamente por isso, Ayla. Nós preparamos apele da camurça e ninguém faz couro mais macio que os Xamudói.

Jondalar via os dois conversando um com o outro e se entendendo, embora a linguagem que usavam a rigor não existisse, e abanava a cabeça, tomado de espanto. Ayla devia ter percebido que Dolando entendia um pouco de Mamutói, e ela mesma já estava usando expressões Xaramudói. Mas onde teria aprendido as palavras para "talas" e "arenito"?

—    Eu lhe trago camurça depois de falar com Roshario — disse Dolando.

Foram juntos ter com a mulher na cama. Dolando e Jondalar explicaram que Ayla viajava com um lobo como companhia — não falaram dos cavalos ainda —, e que gostaria de levá-lo para dentro de casa.

—    Ela tem um controle perfeito sobre o animal — disse Dolando.— Ele obedece as suas ordens e não representa ameaça para ninguém.

Jondalar olhou-o com surpresa. De algum modo, houvera maior troca de informações entre Ayla e Dolando do que ele podia explicar.

Roshario concordou rapidamente. Embora estivesse curiosa, não se admirava de que uma mulher pudesse ser capaz de controlar um lobo. Aquilo até a tranquilizava. Jondalar, obviamente, trouxera uma Xamã poderosa que sabia que ela precisava de ajuda, exatamente como o seu velho Xamã soubera um dia, muitos anos antes, que o irmão de Jondalar, que levara uma chifrada de rinoceronte, precisava dele. Ela não podia explicar como Aqueles que Serviam A Mãe sabiam de tais coisas. Mas sabiam — e isso lhe bastava.

Ayla foi até a porta e chamou Lobo. Depois levou-o para conhecer Roshario.

—O nome dele é Lobo — disse.

De algum modo, ao olhar nos olhos aquela bela criatura selvagem, ela se deu maior conta da sua própria angústia e vulnerabilidade. Lobo pôs uma pata na beirada da cama. Depois, baixando as orelhas, avançou com a cabeça, sem qualquer mostra de ameaça, e lambeu o rosto dela, ganindo de leve como se estivesse sentindo a dor que ela sentia. Ayla se lembrou de Rydag e do entendimento que nascera entre a criança doente e o lobinho que crescia. Teria essa experiência ensinado o animal a compreender a carência e o sofrimento dos humanos?

Ficaram todos surpresos com a atitude afetuosa do bicho, mas Roshario ficou emocionada. Sentiu que alguma coisa de verdadeiramente miraculoso acontecera, e que aquilo era um bom augúrio. Estendeu, então, sem medo, seu braço bom para afagá-lo.

—    Obrigada, Lobo — disse.

Ayla dispôs os pedaços de madeira junto do braço de Roshario, depois passou-os a Dolando, indicando as medidas que deviam ter. Quando Dolando saiu, ela conduziu Lobo para um canto da casa de madeira, depois verificou a temperatura das pedras quentes e viu que estavam prontas. Começou a retirar uma delas do fogo com a ajuda de dois gravetos, mas Jondalar apareceu com um engenho de madeira curva, feito especialmente para segurar pedras de cozinhar com perfeita segurança, e lhe ensinou como se usava. Quando Ayla pôs várias pedras quentes na caixa de cozinhar para ferver as daturas, examinou aquele estranho recipiente com maior atenção.

Nunca vira nada igual. A caixa, quadrada, fora feita de uma única peça de madeira, envergada em torno de sulcos entalhados — não até o fim — em três dos cantos. No quarto ela estava presa com tarugos. Ao ser encurvado, o fundo, quadrado, fora ajustado numa incisão cortada ao longo da prancha. O exterior fora ornamentado com incisões, e uma tampa com alça fechava o topo.

Aquele povo criava em madeira as coisas mais inesperadas. Ayla pensou que seria interessante ver como eram feitas.

Nesse momento Dolando regressou, com algumas peles amarelas, que lhe deu.

—    Bastam estas? — perguntou.

—    Estas são muito finas — disse Ayla. — Precisamos de peles macias, absorventes, mas não têm de ser da sua melhor qualidade.

Jondalar e Dolando sorriram.

— Essas não são as melhores — disse Dolando. — Nunca peles como essas seriam postas à venda por nós. Têm muitos defeitos. São para uso diário.

Ayla sabia alguma coisa sobre a arte de curtir couro e preparar peles, e aquele material era maleável e macio, com uma textura delicada, de grande requinte. Ficou impressionada e quis saber mais sobre o assunto, mas a hora não era propícia. Usando a faca que Jondalar fizera para ela, uma lamina fina de sílex montada num cabo de marfim tirado de um dente de mamute, ela cortou a camurça em largas tiras.

Depois abriu um dos seus pacotes e despejou em uma tigela pequena um pó grosso de raízes piladas e secas de nardo-indiano cujas folhas se parecem com as da dedaleira, mas com flores amarelas semelhantes às do dente-de-leão. Depois misturou ao pó um pouco de água quente da caixa de cozinhar. Uma vez que estava preparando um cataplasma para ajudar o osso a emendar, um pouco de datura não faria mal, e suas qualidades entorpecentes poderiam até contribuir para a cura. Mas também acrescentou milefólio pulverizado, por suas propriedades analgésicas e curativas. Retirou as pedras da vasilha e pôs em seu lugar outras mais quentes para que o decocto ficasse fervendo em fogo brando, cheirando-o para ver se estava suficientemente forte.

Quando achou que já estava bom, Ayla tirou uma porção da beberagem, deixou-a esfriar um pouco, e levou-a para Roshario. Dolando estava sentado com ela. Ayla pediu a Jondalar que traduzisse exatamente o que tinha a dizer para que não houvesse mal-entendidos.

—    Este remédio vai suavizar a dor e fazê-la dormir — disse Avia —, mas é muito forte e, por isso, perigoso. Algumas pessoas não suportam essa dosagem aí. Vai deixar seus músculos relaxados, de modo que poderei tocar os ossos. Mas você pode também urinar sem querer ou, até, evacuar, porque certos músculos estarão relaxados. Há até quem pare de respirar. Se isso acontecer, você morre, Roshario.

Ayla esperou calada que Jondalar repetisse a sua declaração, e mais um pouco para ter certeza de que a coisa estava entendida. Dolando ficou visivelmente perturbado.

— Você tem de empregar isso? Não pode quebrar o braço dela sem esse remédio?

— Não. Seria por demais doloroso, os músculos de Roshario estão excessivamente rijos. Resistirão, e ficará muito mais difícil quebrar o osso no lugar certo. Não tenho outro recurso tão bom quanto este para amortecer a dor. Não posso partir o osso e emendá-lo sem isto, mas o risco é esse, que você agora conhece. Se eu não fizer nada, ela provavelmente viverá, Dolando.

— Mas serei inútil e viverei em dores. O que não é viver — disse Roshario.

— Terá dores, sim, mas isso não quer dizer que ficará inutilizada. Existem remédios para aliviar a dor, embora eles possam subtrair alguma coisa de você. Talvez não consiga pensar com a mesma clareza, por exemplo — explicou Ayla.

— A escolha é, então, entre ficar inútil e idiota — disse Roshario — E se eu morrer, será morte indolor?

— Você adormece e não acorda mais, mas ninguém sabe o que pode acontecer nos seus sonhos. Sua dor pode até ir com você para o outro mundo.

— Você acredita que a dor possa acompanhar alguém no outro mundo? — perguntou Roshario.

— Não, não acredito — respondeu Ayla abanando a cabeça. — Mas não sei.

— Acha que vou morrer se tomar isso?

— Eu não lhe daria isso para beber se achasse. Poderá, no entanto, ter sonhos estranhíssimos. Alguns usam essa erva, preparada de outro modo, para viajar por mundos do espírito.

Jondalar traduzia tudo, mas havia entre as duas mulheres uma dose de compreensão que as palavras dele apenas esclareciam. Ayla e Roshario sentiam como se estivessem falando diretamente uma com a outra.

— Talvez você não deva correr o risco, Roshario — disse Dolando. — Não quero perdê-la.

Ela voltou os olhos para o homem com ternura.

— A Mãe vai chamar um de nós para o Seu seio quando chegar a hora, e não os dois ao mesmo tempo. Ou você chora a minha perda ou choro a sua. Ninguém pode impedir que seja assim. Mas se Ela quiser que eu passe mais tempo com você, meu Dolando, não desejo passá-lo Sofrendo e imprestável. Prefiro morrer agora, tranquilamente. Você ouviu o que Ayla disse: é improvável que eu morra. E se a operação não funcionar e eu não ficar melhor, pelo menos saberei que fiz uma tentativa e isso me dará forças para continuar.

Dolando, sentado na cama ao lado dela, segurando-lhe o braço bom, olhou para a mulher com quem partilhara tanta coisa da sua vida. Viu a determinação nos olhos dela. E, por fim, assentiu com a cabeça. Depois voltou-se para Ayla.

— Você foi honesta. Agora eu serei honesto. Não vou recriminá-la se não fizer nada por ela. Mas se ela morrer nas suas mãos, terá de sair daqui imediatamente. Não posso garantir que não vou responsabilizar você, e não sei qual será a minha reação. Considere isso antes de começar.

Jondalar traduziu pensando nas perdas sucessivas que Dolando sofrera: o filho de Roshario — filho do seu lar, do seu coração — morto logo ao fazer-se homem; e Jetamio, a menina que fora como uma filha para Roshario e que conquistara também o coração de Dolando. Ela crescera para preencher o vazio deixado pela morte do primogénito depois que sua própria mãe morrera. Sua luta para andar de novo, para superar a paralisia que já levara tantos, a fizera querida de todos, inclusive Thonolan. Parecia injusto que ela tivesse de sucumbir às agonias do parto. Jondalar podia compreender se Dolando culpasse Ayla pela morte de Roshario, mas ele o mataria antes que o chefe pudesse fazer-lhe mal. Ficou pesando se Ayla não estaria assumindo uma responsabilidade séria demais.

— Talvez você devesse pensar duas vezes, Ayla — disse, falando em Zelandonii.

— Roshario está sofrendo muito, Jondalar. Tenho de ajudá-la, se ela o desejar. E se ela aceita os riscos, também aceito os meus. Há sempre um risco a correr. E eu sou uma curandeira. É o que sou. Não posso fazer nada contra isso, como lza também não podia. — Em seguida, olhou para a mulher estendida na cama. — Estou pronta, Roshario, se você estiver.

 

 

                                                                CONTINUA

 

 

Ayla se debruçou sobre o leito da paciente, segurando a tigela com o liquido que amornava. Mergulhou nele o dedo mínimo para testar a temperatura, colocou a tigela no chão, e sentou-se por terra, de pernas cruzadas na posição da flor de lótus, por um momento.

Seus pensamentos recuaram para o tempo em que vivia com o Clã, principalmente para o período de treinamento que recebera da curandeira altamente capacitada que a criara. Iza cuidava da maior parte das doenças comuns e ferimentos pequenos, mas quando tinha de tratar de um problema sério — um acidente de caça mais grave, uma doença que ameaçava ser mortal —, recorria a Creb, na sua capacidade de Mo-gur. Pedia que ele invocasse os poderes do alto. Iza era uma curandeira, mas no âmbito do Clã. Creb era o mago, o Xamã, Creb tinha acesso ao mundo dos espíritos.

 

 

 

 

Entre os Mamutói e, a julgar pelo que Jondalar dizia, entre os do seu povo também, as funções de curandeira e Mog-ur não eram, necessariamente, distintas. Aqueles que curavam intercediam, muitas vezes, junto ao mundo dos espíritos, embora nem Todos os que Serviam à Mãe fossem igualmente versados em todas as matérias que sua carreira oferecia. O Mamute do Acampamento do Leão era muito mais como Creb. Seu interesse eram as coisas do espírito e da mente. Conhecia certos remédios e tratamentos, mas seus dotes de curandeiro eram relativamente primários, e cabia, muitas vezes, a Nezzie, companheira de Talut, tratar de doenças e acidentes menores do Acampamento. Na Reunião de Verão, porém, Ayla ficara conhecendo muitos curandeiros de grande sabedoria e habilidade entre os Mamutói e trocara ideias com eles.

Mas o aprendizado de Ayla fora de ordem prática. Como Iza, ela não era rezadeira, mas uma curandeira. Não se sentia à vontade com assuntos do mundo dos espíritos e desejava, num momento como aquele, ter alguém como Creb para...

 

 

                                                                                                   

 

 

 

                                       

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