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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PLANÍCIE DE PASSAGEM - P.2 / J. M. Auel
PLANÍCIE DE PASSAGEM - P.2 / J. M. Auel

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Ayla se debruçou sobre o leito da paciente, segurando a tigela com o liquido que amornava. Mergulhou nele o dedo mínimo para testar a temperatura, colocou a tigela no chão, e sentou-se por terra, de pernas cruzadas na posição da flor de lótus, por um momento.

Seus pensamentos recuaram para o tempo em que vivia com o Clã, principalmente para o período de treinamento que recebera da curandeira altamente capacitada que a criara. Iza cuidava da maior parte das doenças comuns e ferimentos pequenos, mas quando tinha de tratar de um problema sério — um acidente de caça mais grave, uma doença que ameaçava ser mortal —, recorria a Creb, na sua capacidade de Mo-gur. Pedia que ele invocasse os poderes do alto. Iza era uma curandeira, mas no âmbito do Clã. Creb era o mago, o Xamã, Creb tinha acesso ao mundo dos espíritos.

 

 

 

 

Entre os Mamutói e, a julgar pelo que Jondalar dizia, entre os do seu povo também, as funções de curandeira e Mog-ur não eram, necessariamente, distintas. Aqueles que curavam intercediam, muitas vezes, junto ao mundo dos espíritos, embora nem Todos os que Serviam à Mãe fossem igualmente versados em todas as matérias que sua carreira oferecia. O Mamute do Acampamento do Leão era muito mais como Creb. Seu interesse eram as coisas do espírito e da mente. Conhecia certos remédios e tratamentos, mas seus dotes de curandeiro eram relativamente primários, e cabia, muitas vezes, a Nezzie, companheira de Talut, tratar de doenças e acidentes menores do Acampamento. Na Reunião de Verão, porém, Ayla ficara conhecendo muitos curandeiros de grande sabedoria e habilidade entre os Mamutói e trocara ideias com eles.

Mas o aprendizado de Ayla fora de ordem prática. Como Iza, ela não era rezadeira, mas uma curandeira. Não se sentia à vontade com assuntos do mundo dos espíritos e desejava, num momento como aquele, ter alguém como Creb para quem apelar. Queria a assistência de poderes superiores, dispostos a vir em seu auxílio. Sentia que precisava deles. E se Mamute a iniciara na compreensão dos domínios espirituais da Grande Mãe, ela ainda estava mais familiarizada com o mundo espiritual em que fora criada, principalmente com seu próprio totem, o espírito do Grande Leão da Caverna.

Tratava-se de um espírito do Clã, mas ela sabia que era um espírito poderoso. Aliás, Mamute dissera que os espíritos de todos os animais e, na verdade, todos os espíritos existentes eram parte da Grande Mãe Terra. Ele até incluíra o totem protetor dela, o Leão da Caverna, na cerimônia em que ela fora adotada. E ela sabia como pedir o auxílio do seu totem. Roshario não pertencia ao Clã, pensou, mas talvez o espírito do Leão da Caverna estivesse disposto a ajudá-la, assim mesmo.

Ayla fechou os olhos e começou a fazer os belos movimentos ondulatórios da mais antiga, sagrada e silente linguagem gestual do Clã, a que todos os clãs conheciam e usavam para falar com o mundo dos espíritos.

— Grande Leão da Caverna, esta mulher aqui presente, escolhida pelo poderoso espirito do totem, é grata por ter sido escolhida. É grata pelos Dons que foram dados, grata, sobretudo, pelos Dons interiores, pelas lições aprendidas e pela sabedoria adquirida.

"Grande e Poderoso Protetor, conhecido por escolher machos de valor e carentes de grande proteção, mas que escolheu esta mulher e marcou-a com o sinal do totem quando ela ainda era menina, esta mulher é grata. Esta mulher não sabe por que o Grande Leão da Caverna do Clã escolheu uma criança do sexo feminino, e uma dos Outros, mas é grata por ter sido achada digna dessa honra e grata pela proteção do grande totem.

"Grande Espírito do Totem, essa mulher que pediu antes orientação pede agora assistência. O Grande Leão da Caverna guiou esta mulher e ela aprendeu as artes de uma curandeira. Esta mulher sabe curar. Esta mulher conhece remédios para doenças e ferimentos, conhece mezinhas e lavagens, emplastros e outros remédios feitos de plantas. Esta mulher conhece tratamentos e práticas medicinais. Esta mulher é grata por tais conhecimentos e grata pelo conhecimento ainda desconhecido que o Espírito do Totem lhe possa fazer chegar. Mas esta mulher não conhece os caminhos do mundo do espíritos.

"Grande Espírito do Leão da Caverna, que habita as estrelas no mundo dos espíritos, a mulher que aqui jaz não é do Clã. A mulher pertence aos Outros, como esta mulher que o Grande Espírito escolheu um dia e que pede agora ajuda para a Outra. Essa que sofre grandes dores, mas a dor pior é a íntima. A mulher está disposta a sofrer a dor física, mas achaque sem os dois braços ficará imprestável. A mulher pode ser uma boa mulher, uma mulher útil. Esta curandeira pode ajudá-la, mas a ajuda é prenhe de riscos. Esta mulher pede a assistência do espírito do Grande Leão da Caverna e de quaisquer espíritos que o Grande Totem eleja para guiá-la e para socorrer a mulher que jaz aqui, enferma.

Roshario, Dolando e Jondalar estavam tão mudos quanto Ayla, enquanto ela executava aqueles gestos incomuns. Dos três, Jondalar era o único que sabia o que ela estava fazendo, e ficou observando os outros com a mesma atenção com que a observava. Se bem que seu conhecimento linguagem do Clã fosse rudimentar — a coisa era muito mais complexa do que havia imaginado —, entendia que ela estava pedindo auxílio imundo dos espíritos.

Jondalar simplesmente não via algumas das nuances mais sutis de um sistema de comunicação que se desenvolvera em bases inteiramente diversas de qualquer linguagem vocal. E era impossível de traduzir completamente. Por menor que fosse, a tradução em palavras parecia pobre e simplista, enquanto que os gestos de Ayla tinham grande beleza. Ele se deu conta de que,em certa época, teria ficado embaraçado com a atitude dela e sorriu consigo mesmo dessa tolice. Estava curioso, no entanto, para ver interpretação que Roshario e Dolando dariam ao comportamento de Ayla.

Dolando parecia perplexo e um tanto inquieto, pois o que ela fazia era de todo inusitado. Preocupado como estava com Roshario, tudo o que fosse estranho, embora feito com boas intenções, encerrava um grão de ameaça. Quando Ayla terminou, ele encarou Jondalar com uma expressão interrogativa. Mas Jondalar apenas sorriu.

O ferimento deixara Roshario debilitada, fraca e febril, não tanto que lhe causasse delírio, mas esgotada e desorientada, mais aberta à sugestão. Concentrara-se naquela mulher desconhecida e se via estranhamente comovida. Não tinha a menor ideia do que os movimentos de Ayla significavam, mas admirava sua fluência e graciosidade. Era como se a curandeira dançasse com as mãos, mais do que com as mãos, na verdade Ela evocava uma beleza incorpórea com aqueles movimentos. Seus braços e ombros, mesmo seu tronco, pareciam partes integrantes das suas mãos dançarinas, correspondendo a algum ritmo interno que tinha decididamente um propósito. Embora não entendesse mais aquilo do que o fato de que Ayla tivesse sabido que ela precisava de sua ajuda, Roshario estava segura de que aquilo era relevante e que tinha algo a ver coma a vocação da estranha. Ela era Xamã. Isso bastava. Ela sabia mais que as pessoas comuns, e tudo que fizesse de misterioso apenas acrescentava a sua credibilidade.

Ayla apanhou a tigela e se ajoelhou junto da cama. Testou mais uma vez o líquido com o dedo mínimo, depois sorriu para Roshario.

—    Que a Grande Mãe de Todos zele por você, Roshario — disse. Levantou a cabeça e os ombros da mulher o bastante para que bebesse confortavelmente, e levou a pequena tigela até sua boca.

Era um preparado amargo e bastante fétido, e Roshario fez uma careta, mas Ayla a encorajou até que ela consumisse todo o conteúdo da tigela. Ayla pôs a cabeça da mulher de volta à almofada e sorriu outra vez, mas vigiava para ver os primeiros sinais de efeito.

—    Avise-me quando se sentir sonolenta — disse, embora aquilo fosse apenas confirmar outras indicações que já via: mudança no tamanho das pupilas, ritmo da respiração.

A curandeira não teria sido capaz de dizer que ministrara à doente uma droga que inibia o sistema nervoso parassimpático e paralisava as terminações nervosas. Mas podia observar os resultados da poção, e tinha bastante experiência para saber se eram os apropriados. Quando percebeu que as pálpebras de Roshario estavam pesadas de sono, palpou tórax e o estômago para monitorar a relaxação dos músculos elásticos do seu trato digestivo, embora não tivesse descrito o que acontecia nesses termos. Observou a respiração da paciente, a fim de saber a reação dos pulmões e dos brônquios. Quando se convenceu de que Roshario do tranquilamente e não parecia em perigo, pôs-se de pé.

— Dolando, é melhor que saia agora. Jondalar fica para ajudar-me, — disse com voz baixa mas firme. Suas maneiras competentes lhe davam autoridade.

O líder começou a objetar, mas se lembrou de que Xamã jamais permitia a presença nem mesmo de parentes próximos num caso daqueles, e não oficiava até que se retirassem. Talvez todos procedessem assim, pensou. Com um último olhar para a mulher adormecida, deixou a casa.

Jondalar já vira Ayla assumir assim o comando em outras ocasiões. Ela parecia esquecer de si mesma em sua concentração numa pessoa doente ou sofredora e, sem fazê-lo deliberadamente, dava ordens aos outros para executarem o que julgasse necessário. Não lhe ocorria que alguém fosse questionar seu direito de ajudar quem precisava de ajuda. Em consequência, ninguém questionava mesmo.

— Mesmo com ela dormindo, não é fácil ver alguém quebrar o osso de uma pessoa que a gente ama — disse Ayla para o homem alto que a amava.

Jondalar concordou e se perguntou se não fora por isso que Xamã não o deixara ficar quando Thonolan fora escornado. A ferida era terrível aberta, de bordas irregulares. Ele quase vomitara ao vê-la. E embora tivesse querido ficar, talvez não fosse fácil assistir às ministrações de Xamã. Agora mesmo, não estava seguro de querer ajudar Ayla, mas não havia quem o substituísse. Respirou fundo. Se ela era capaz de fazer aquilo, ele poderia pelo menos tentar ajudar.

—    O que devo fazer? — perguntou.

Ayla estava examinando o braço de Roshario, vendo até onde era possível movê-lo, e como a paciente reagia à manipulação. Ela resmungou alguma coisa e virou a cabeça de um lado para outro, mas aquilo parecia ser o efeito de algum sonho ou comando interno, e não diretamente resultado de dor. Ayla calcou, então, os dedos no músculo flácido, tentando localizar o osso. Quando se deu por satisfeita, chamou Jondalar, notando, de passagem, que Lobo atentava para tudo do seu lugar no canto do aposento.

—    Primeiro, quero que segure o braço na altura do cotovelo, enquanto tento quebrá-lo onde está emendado de forma errada. Uma vez quebrado, tenho de puxar com força para endireitá-lo e fixá-lo na posição correta. Com os músculos tão moles, os ossos de uma articulação podem ser separados, e corro o risco de deslocar um cotovelo ou um ombro, de modo que você terá de segurá-la com firmeza e talvez puxar também, na direção oposta.

— Compreendo — disse ele. Pelo menos achava que compreendera.

— Fique você mesmo numa posição cómoda, estável, estique o braço dela e apoie o cotovelo até mais ou menos esta altura. Avise-me quando estiver pronto — disse Ayla.

Ele obedeceu.

— Muito bem. Estou pronto.

Com as mãos, uma de cada lado da fratura que dava ao braço aquele ângulo pouco Pouco natural, Ayla segurou o braço de Roshario experimentalmente em diversos lugares, à procura das extremidades salientes do osso mal colado debaixo da pele e dos músculos. Se a junta se tivesse consolidado, ela nunca seria capaz de parti-la com as mãos e teria de tentar outro meio mais difícil de controlar. Talvez nem fosse capaz de quebrar direito o osso pela segunda vez. De pé a sobranceiro do leito, para ter mais força, inspirou profundo, depois exerceu uma pressão poderosa e rápida sobre a curvatura com suas fortes mãos.

Ayla sentiu o osso estalar. Para Jondalar o estalo foi de arrepiar os cabelos. Roshario mexeu-se espasmodicamente no sono, depois se aquietou. Ayla sondou o músculo para achar a ponta do osso que acabara de quebrar. O tecido na área não cimentara ainda a fratura muito bem talvez pelo fato de que na posição pouco natural em que se encontrava, o osso não se juntara de um modo que encorajasse a cicatrização. Era uma fratura boa e nítida. Ayla deu um suspiro de alívio. A primeira parte estava feita. Limpou o suor da fronte com as costas da mão.

Jondalar a observava com assombro. Embora a fratura estivesse apenas parcialmente consolidada, muita força era necessária para partir um osso daqueles. Ele sempre gostara de ver a força física da mulher desde o tempo em que se conheceram no vale dos cavalos. Entendera que ela precisava de força para viver só, como vivia. O fato de ter de fazer tudo por si mesma levara ao desenvolvimento dos músculos. Mas não sabia , até aquele momento, quão forte ela era realmente.

Essa força não vinha apenas disso. Já vinha progredindo desde criança, desde o tempo em que fora adotada por lza. As tarefas comuns, que se esperavam dela, tornaram-se um processo de condicionamento. Só para alcançar um nível mínimo de competência para uma mulher do Clã, ela se tornara uma mulher extraordinariamente forte dos Outros.

—    Deu certo, Jondalar. Agora, quero que segure o braço dela aqui em cima, no ombro — disse, mostrando-lhe o que desejava. — Não pode soltar o braço. Se começar a escorregar, avise na hora.

Ayla sabia que o osso resistira a consolidar-se na posição errada e que por isso fora mais fácil parti-lo do que se tivesse sido encanado direito pelo mesmo espaço de tempo, mas músculos e tendões tinham cicatrizado muito mais.

—    Quando eu endireitar o braço, algum músculo vai rasgar, como aconteceu quando o braço quebrou da primeira vez, e os tendões ficarão retesados. É difícil forçar tendão e músculo, e ela vai ter dores depois, em consequência, mas tem de ser feito. Diga-me quando estiver pronto.

— Como é que você sabe fazer isso, Ayla?

— Iza me ensinou.

— Eu sei que ela ensinou, mas como aprendeu isso, de quebra pela segunda vez um osso que já começou a colar?

— Uma vez Brun levou seus caçadores para um lugar distante. Estiveram muito tempo por lá. Não me lembro quanto tempo. Um dos homens quebrou o braço logo no começou da caçada, mas não quis voltar, Amarrou o braço no tronco e prosseguiu com um braço só. Quando regressaram, Iza teve de encanar o braço quebrado — explicou Ayla, falando depressa.

— Mas como o homem aguentou? Caçar, quero dizer, com um braço quebrado. Não sentia muitas dores?

— Claro que sentia muitas dores, mas nem ele fez conta disso, nem os demais. Homens do Clã preferem morrei a admitir fraqueza. É assim que são. Ou é assim que são treinados — disse Ayla. — Você está pronto?

Jondalar queria perguntar mais coisas, mas não podiam perder tempo.

— Estou pronto.

Ayla segurou o braço de Roshario com força, imediatamente acima do cotovelo, enquanto Jondalar o segurava logo abaixo do ombro. Com força, mas devagarinho, ela foi puxando para trás, não só corrigindo a direção do braço, mas virando-o um pouco para que osso não esfregasse contra osso, esmagando alguma coisa, e para que os ligamentos não se rompessem. Em certo momento, foi preciso esticar o braço um pouco além da sua forma original para que ele pudesse ser posto numa posição normal.

Jondalar não sabia como ela suportava aquela tensão quando ele já mal se aguentava. Ayla dava mostras de fadiga, o suor escorria-lhe pelo rosto, mas ela não podia parar àquela altura. Para que o osso ficasse no lugar, tinha de ser endireitado num movimento contínuo e suave. Mas uma vez passada aquela esticação forçada, para além da extremidade quebrada do osso, o braço acomodou-se na posição correta quase que por conta própria. Ayla sentiu que ele chegava no lugar, baixou o braço com cuidado para a cama e, finalmente, soltou-o.

Quando Jondalar a olhou, viu que ela estava trémula, de olhos fechados, e respiração curta. Conseguir controlar-se debaixo daquela forte tensão, todo o tempo, fora a parte mais difícil da operação, e ela agora lutava para controlar os próprios músculos.

—    Acho que você conseguiu, Ayla.

Ela respirou, exausta, mais algumas vezes, depois o encarou, e sorriu. Um largo sorriso, feliz, vitorioso.

—    Acho que sim. Agora tenho que pôr as talas. — Passou a mão de leve, ao longo do braço. Tinha aspecto normal agora. — Se ele emendar direito se não causei nenhum dano ao braço enquanto ele estava insensível, ela poderá usá-lo depois, mas vai ficar uma grande equimose, e vai inchar muito.

Ayla mergulhou as tiras de camurça na água Quente, pôs nardo-da-índia e milefólio junto, enrolou-as em torno do braço sem apertar muito, e pediu a Jondalar que fosse ver se Dolando já preparara as talas.

Quando Jondalar saiu, um mar de rosto o esperava. Não só Dolando, mas todos os moradores da Caverna, Xamudói e Ramudói por igual, tinham feito uma vigília em torno da lareira central.

—    Ayla precisa das talas agora, Dolando — disse ele.

— Foi bem? — perguntou o líder Xamudói, entregando-lhe os pedaços de madeira.

Jondalar achou que ele devia esperar por Ayla, mas sorriu. Dolando fechou os olhos, deu um fundo suspiro, estremeceu de alívio.

Ayla ajustou as talas no braço e enrolou mais tiras de camurça em torno delas. O braço incharia e o cataplasma teria de ser trocado. As talas imobilizariam o braço, de modo que os movimentos de Roshario não ameaçariam a nova fratura. Mais tarde, quando o inchaço amainasse, e ela quisesse andar, casca de bétula, molhada em água quente, se

Ayla verificou mais uma vez se a mulher estava respirando normalmente, conferiu o batimento das artérias no pulso e no pescoço, auscultou-lhe o peito, arregaçou-lhe as pálpebras, depois foi até a porta.

—    Você pode entrar agora, Dolando — disse ao homem que estava do lado de fora.

Ela está bem?

— Venha ver você mesmo.

Dolando entrou e se ajoelhou no chão, olhando para a mulher adormecida. Observou a respiração dela por algum tempo, assegurando-se de que o ritmo era normal, depois olhou o braço. Debaixo do curativo pareceu-lhe reto e normal.

—    Está perfeito! Acha que ela vai poder usar o braço outra vez?

— Fiz o que pude. Com a ajuda dos espíritos e da Grande Mãe Terra, poderá, sim. Talvez não fique tão bom quanto era antes. Mas agora ela precisa dormir.

— Vou ficar com ela — disse Dolando, procurando convencê-la com sua autoridade, embora soubesse que se Ayla insistisse ele iria embora.

— Imaginei que gostaria de fazer isso — disse Ayla. — Mas agora que fiz o que tinha de fazer, gostaria de pedir-lhe uma coisa.

— Peça tudo o que quiser — disse ele, sem hesitação, mas imaginando o que poderia ser.

— Gostaria de tomar um banho. A água do lago pode ser usada para nadar e lavar roupa?

Não era o que ele havia esperado ouvir, e Dolando ficou perplexo por um momento. E só então notou que o rosto de Ayla estava manchado de suco de amoras-pretas, seus braços arranhados por espinhos, as roupas rasgadas e sujas, os cabelos em desordem. Com uma expressão de culpa e um sorriso amarelo, ele disse:

—    Roshario jamais me perdoaria essa falta de hospitalidade. Ninguém lhe ofereceu um pouco d'água. E você deve estar exausta depois de uma viagem tão longa. Vou chamar Tholie. Tudo o que você quiser, e estiver a nosso alcance, é seu.

Ayla esfregou as flores ricas em saponina entre as mãos molhadas até que se formasse alguma espuma. Depois, esfregou a espuma nos cabelos. Essa espuma de ceanoto não era tão boa quanto a da raiz saponácea, mas afinal estava só enxaguando os cabelos, e as pétalas azul-pálido deixavam um perfume suave. A área em torno do acampamento e as plantas da região lhe pareciam tão familiares que estava certa de encontrar alguma planta que pudessem usar como sabão. Teve o prazer de encontrar ao mesmo tempo ceanoto e a raiz quando foram recolher bagagem, bote e trenó. Os dois tinham ido ver como estavam os cavalos, e Ayla tomou nota mentalmente de que precisava pentear Huiin mais tarde, para cuidar da sua pelagem, mas em parte também por garantia.

— Sobrou alguma dessas flores que dão espuma? — perguntou Jondalar.

— Sim, em cima daquela pedra, perto de Lobo — disse Ayla. — Mas são as últimas. Podemos apanhar outras, e mais algumas para secar e levar conosco. Eu gostaria disso — e mergulhou para enxaguar os cabelos.

— Aqui têm algumas peles de camurça para se enxugarem — disse Tholie, acercando-se da água. Tinha diversas das peles amarelas nas mãos.

Ayla não a vira chegar. A mulher Mamutói procurara ficar tão longe do lobo quanto possível, fazendo desvios para evitá-lo e indo agora pelo outro lado. Uma meninazinha de três ou quatro anos, que viera atrás dela agarrava-se agora às pernas da mãe, e fitava os estrangeiros de olhos arregalados, chupando o dedo.

—    Deixei um lanche para vocês lá dentro — disse, colocando as peles no chão. Jondalar e Ayla tinham recebido uma cama na construção que Tholie e Markeno usavam quando em terra firme. Era o mesmo abrigo que Thonolan e Jetamio tinham dividido com o casal, e Jondalar passou por maus momentos quando entrou na casa, lembrando-se da tragédia que levara seu irmão a ir-se e, em última análise, a morrer.

Mas não percam a fome — disse Tholie. — Vamos ter um grande banquete à noite para celebrar o regresso de Jondalar. — Ela não disse que a festa era também em honra de Ayla por ter ajudado Roshario. A doente estava ainda sob o efeito da anestesia, e ninguém ousava ainda dizer em voz alta que se recuperaria antes que acordasse. Podia dar azar.

Obrigado, Tholie — disse Jondalar. — Por tudo. — Depois sorriu para a meninazinha. Ela baixou a cabeça e se escondeu atrás da mãe ainda mais, mas não tirou os olhos de Jondalar. — Parece que os últimos vestígios vermelhos da queimadura no rosto de Shamio desapareceram. Não vejo mais nenhum.

Tholie pegou a garota no colo, dando assim a Jondalar uma oportunidade de examiná-la melhor.

Se olhar de perto, pode ver onde foi a queimadura, mas não se nota mais grande coisa. Sou agradecida à Mãe por sua bondade com ela.

E uma bonita menina — disse Ayla, sorrindo para eles e olhando a pequena com genuína nostalgia. — Você tem sorte. Eu gostaria muito de ter uma filha assim algum dia.

Dito isso, começou a sair do lago. Era refrescante, mas um pouco frio demais para ficar por muito tempo. — Você disse que o nome dela é Shamio?

— Sim, e acho também que tive sorte de ganhar uma filha assim — disse a jovem mãe, pondo a criança no chão. Tholie não pôde resistir ao cumprimento feito à filha e sorriu afetuosamente para aquela mulher, alta e formosa, que não era, todavia, o que pretendia ser. Tholie resolvera trata-la com reserva e cautela até saber mais.

Ayla apanhou uma das peles e começou a enxugar-se.

— Isto é tão macio, tão bom para usar como toalha de banho — disse, e fez com a camurça uma saia justa. Depois, pegando uma outra, enxugou os cabelos e fez uma trunfa com a camurça.

Viu que Shamio espiava o lobo, agarrada à mãe, mas visivelmente curiosa. Lobo também parecia interessado nela, contorcendo-se de vontade de aproximar-se dela, mas ficando no lugar como lhe fora ordenado. Ayla chamou-o, ajoelhou-se ao lado dele e pôs o braço em torno do pescoço do animal.

Shamio gostaria de conhecer Lobo? — perguntou. Quando a menina fez que sim, ela pediu com os olhos a aprovação da mãe. Tholie via com apreensão o tamanho do lobo e seus dentes afiados.

Ele não vai fazer mal à menina, Tholie. Lobo gosta de crianças. Foi criado com crianças no Acampamento do Leão.

Shamio já largara a saia da mãe e dera um primeiro passo, vacilante, na direção dele, fascinada com aquele bicho que olhava para ela com um fascínio igual. A criança o contemplava sem ir, com olhar solene, e o lobo gania de impaciência. Finalmente, Shamio deu mais um passo e estendeu as mãos para o animal. Tholie prendeu a respiração, mas o som foi abafado pelas risadinhas nervosas de Shamio quando Lobo se pôs a lamber-lhe o rosto. Ela empurrou o focinho dele, agarrou um chumaço do seu pêlo, mas perdeu o equilíbrio e caiu por cima de Lobo. Este esperou pacientemente que ela se levantasse, depois lambeu-lhe de novo a cara, e a menina deu risadas espremidas.

—    Vamos, meu Lobinho — disse ela, pegando-o pelo pêlo do pescoço e puxando-o. Já o considerava como uma espécie de brinquedo vivo.

Lobo olhou para Ayla e soltou um latido de filhote. Ela não o libertara ainda.

—    Pode ir com Shamio, Lobo — disse, dando-lhe finalmente o sinal pelo qual ele esperava. O olhar que Lobo lhe lançou era, quase, de gratidão. Não havia que duvidar do deleite com que seguiu a pequena. Até Tholie sorriu.

Jondalar assistia a tudo aquilo com interesse enquanto se enxugava. Apanhou depois as roupas deles e caminhou com as duas mulheres para a aba de arenito do penhasco. Tholie vigiava Shamio e Lobo, mas ela também estava intrigada com a mansidão do animal. E não era só ela. Muita gente estava atenta, observando a menina e o lobo. Quando um menino um pouco mais velho que Shamio se aproximou, também ele foi mimoseado com um convite molhado para brincar. Naquele momento duas outras crianças saíram de uma das habitações disputando um objeto de madeira. O menor deles jogou longe o objeto para impedir que o maior o pegasse. Lobo considerou aquilo como um sinal de que queriam jogar um dos seus jogos favoritos. Correu atrás do objeto, que era um bastão entalhado, e o trouxe de volta, depositando-o no chão e ficando ao lado dele, de língua para fora e rabo abanando, pronto para recomeçar a brincadeira. O menino então pegou o pedaço de pau e lançou-o longe de novo.

—    Acho que você tem razão, o lobo está brincando com as crianças. Ele deve gostar mesmo delas — disse Tholie. — Mas por que esse comportamento? Afinal, ele é um lobo!

— Pessoas e lobos têm coisas em comum — disse Ayla. — Lobos gostam de brincar. Desde pequenos, eles se divertem com os outros, e os mais crescidos e adultos adoram brincar com os filhotes. Lobo não tinha irmãozinhos quando o encontrei. Era o único sobrevivente de uma ninhada e mal abria os olhos. Ele não cresceu numa alcateia, cresceu brincando com as crianças.

— Veja só como ele faz! E tão tolerante, tão gentil. Tenho certeza de que quando Shamio lhe puxa o pêlo deve doer. Por que então ele deixa que ela o faça? — perguntou Tholie, ainda desejosa de entender.

— É natural para um lobo adulto ser bondoso com os mais jovens do mesmo bando, de modo que não foi difícil para mim ensiná-lo a ter cuidado, Tholie. Ele é principalmente carinhoso com crianças pequenas e bebês e tolera praticamente tudo por parte deles. Não tive de ensinar-lhe isso, ele é assim por natureza. Se as crianças ficam difíceis, ele se afasta, mas volta mais tarde. Ele não se sujeita às mesmas coisas de crianças mais velhas, e sabe muito bem a diferença entre alguém que o machuca acidentalmente e alguém que tenciona fazer-lhe mal. Jamais machucou ninguém, mas é capaz de dar uma mordidinha, um beliscão com os dentes, para lembrar a um menino mais levado, que lhe puxa o rabo, por exemplo, que algumas coisas causam dor.

— A ideia de que alguém, principalmente uma criança, pudesse puxar o rabo de um lobo de brincadeira é para mim inconcebível, ou pelo menos era até hoje — disse Tholie. — E não podia imaginar que ia ver um dia a minha Tholie brincando com um lobo. Você... tem feito muita gente pensar, Ayla... Ayla dos Mamutói.

Tholie queria dizer mais, perguntar coisas, mas não desejava exatamente acusar a mulher de haver mentido, não depois do que ela fizera por Roshario, ou parecia ter feito. Ninguém tinha certeza ainda.

Ayla sentia as reservas de Tholie e lamentava que fosse assim. Aquilo punha uma tensão muda entre as duas, e ela gostava da Mamutói, baixinha e gorducha. Caminharam alguns passos em silêncio, observando Lobo com Shamio e as demais crianças, e Ayla pensou de novo o quanto gostaria de ter uma filha como a de Tholie... uma filha mulher da próxima vez, não um menino. Shamio era uma garotinha muito linda, e o nome combinava com ela.

— Shamio é um bonito nome, Tholie, e incomum. Parece um nome Xamudói mas também Mamutói — disse Ayla.

Tholie teve de sorrir mais uma vez.

— Tem razão. Nem todo mundo sabe disso, mas foi o que procurei fazer. Ela seria chamada Shamie se fosse Mamutói, se bem que esse nome não seja comum nos acampamentos. Vem da língua Xaramudói, de modo que o nome dela tem dupla origem. Eu sou Xaramudói hoje, mas nasci na Lareira do Veado Vermelho, numa linhagem de grande status. Minha mãe exigiu da família de Markeno um bom preço por mim, e ele nem Mamutói era. Shamio pode orgulhar-se da sua origem Mamutói tanto quanto se orgulhara da sua herança Xaramudói. Foi por isso que eu quiz mostrar as duas coisas no nome dela.

Tholie se deteve como se um pensamento lhe tivesse ocorrido.

— Ayla é também um nome incomum. Em que Lareira você nasceu? — disse, e pensou: gora você terá de explicar isso.

— Eu não nasci Mamutói, Tholie. Fui adotada pela Lareira do Mamute — disse Ayla. Alegrava-se de que a mulher tivesse afinal perguntado o que, obviamente, de muito a preocupava.

Tholie ficou certa, porém, de que a pegara numa mentira.

— Ninguém é adotado pela Lareira do Mamute, disse. — Aquela. é uma lareira dos Mamutói. As pessoas escolhem os espíritos e podem vir a ser aceitas pela Lareira do Mamute, mas não adotadas.

— Essa é a regra geral, Tholie, mas Ayla foi efetivamente adotada — disse Jondalar, entrando na conversa. — Eu estava presente. Talut ia dotá-la no seu Lar do Leão, mas Mamute surpreendeu a todos e adotou-a no Lar do Mamute. Viu algo nela... e por isso ele a treinava. Afirmava que ela nascera para o Lar do Mamute, quer tivesse nascido Mamutói ou não.

— Adotada pelo Lar do Mamute? Uma estranha? — disse Tholie, surpresa, mas não duvidava de Jondalar. Afinal o conhecia bem e era aparentada com ele, mas ficou ainda mais interessada. Agora que não se sentia forçada a ser cautelosa, sua curiosidade natural e sua franqueza vieram à tona.

— Em que grupo você nasceu, Ayla?

—    Não sei, Tholie. Minha família morreu num terremoto, quando eu era um pouco mais velha que Shamio. Fui criada pelo Clã.

Tholie nunca ouvira falar de qualquer povo chamado o Clã. Devia ser alguma tribo oriental, pensou. Isso explicava muita coisa. Não admirava, então, que ela tivesse um sotaque tão estranho, embora falasse bem a língua, para uma estrangeira. Aquele Velho Mamute do Acampamento do Leão era um ancião muito ladino, pensou. Sempre fora velho, muito velho, ao que parecia. Mesmo quando ela mesma era criança, ninguém se lembrava de que ele tivesse sido jovem e ninguém duvidava de sua grande sabedoria.

Com um instinto natural de mãe, Tholie correu os olhos em torno para ver como estava sua filha. Vendo Lobo, pensou de novo como era esquisito que um animal preferisse fazer amizade com gente. Viu, depois, os cavalos, que pastavam, tranquilos. Pareciam satisfeitos no campo por perto das habitações. A autoridade de Ayla sobre os animais não era apenas surpreendente, era interessante, porque eles pareciam devotados a ela. Lobo, por exemplo, a adorava.

Quanto a Jondalar, bastava vê-lo. Estava obviamente cativo da bela mulher loura, e Tholie não achava que fosse apenas por ser ela bonita. Serenio fora bonita, e inúmeras mulheres bonitas tinham feito o possível para interessá-lo numa relação estável. Ele permanecera mais ligado ao irmão que a todas elas, e Tholie se lembrava de haver duvidado que ele jamais viesse a entregar seu coração a uma mulher. Mas aquela o conquistara. Mesmo sem as suas habilidades curativas, ela parecia ter alguma coisa de especial. O Velho Mamute tinha razão. Era provavelmente destino dela pertencer ao Lar do Mamute.

No interior da habitação, Ayla penteou o cabelo, amarrou-o para trás com uma fita de couro macio, e vestiu a túnica limpa e as calças curtas que vinha reservando para o caso de encontrarem gente. Assim, não tinha de apresentar-se nas suas roupas manchadas de viagem quando fosse fazer visitas. Em seguida foi ver como estava Roshario. Sorriu para Darvalo, sentado, com ar apático, à porta, e saudou Dolando com a cabeça quando entrou e se aproximou da mulher na cama. Examinou-a rapidamente, só para ter certeza de que ela passava bem.

— É natural que ainda esteja dormindo? — perguntou Dolando, com uma ruga de inquietação na testa.

— Ela está bem. Vai dormir mais um pouco.

Ayla avistou a sua bolsa de remédios e pensou que era tempo de recolher alguns ingredientes frescos para um chá reanimador, que ajudasse Roshario a sair daquele sono induzido pela datura quando começasse a acordar naturalmente.

Penso ter visto uma tília quando vinha para cá. Preciso de algumas flores de tília para fazer um chá para Roshario e também, se puder encontrá-las, de algumas outras ervas. Se ela acordar antes do meu regresso, você pode dar-lhe um pouco de água. Não se perturbe se ela estiver confusa e um pouco tonta. As talas vão manter seu braço no lugar, mas não convém que ela o mova muito.

— Você saberá achar o caminho? — perguntou Dolando. — Talvez devesse levar Darvo.

Ayla estava segura de que não teria dificuldade em achar o caminho, mas decidiu levar o rapaz assim mesmo. Na preocupação com Roshario, ele ficara um tanto esquecido, e também estava aflito por causa da mulher.

—    Obrigada, vou fazer isso.

Darvalo, que ouvira a conversa, já estava de pé e pronto para acompanhá-la. Parecia contente de ser útil.

—    Acho que sei onde fica esse pé de tília — disse. — Há sempre muitas abelhas em volta da árvore nesta época do ano.

— E a melhor época para apanhar as flores — disse Ayla —, quando cheiram a mel. Sabe onde posso encontrar unia cesta para trazê-las na volta?

— Roshario guarda cestas ali nos fundos — disse Darvalo, mostrando um pequeno depósito atrás da casa. Escolheram duas cestas.

Quando saíram da sombra da platibanda, Ayla viu lobo, que a observava, e chamou-o. Não se sentiria tranquila se ele ficasse sozinho com aquelas pessoas, mas as crianças protestaram quando ela o chamou. Mais tarde, quando todos estivessem mais familiarizado-, com os animais, seria diferente.

Jondalar estava no campo com os cavalos e dois homens. Ayla foi avisar-lhes aonde ia. Lobo correu à frente, e todos se voltaram para ver quando ele esfregou o focinho no de Huiin. A égua relinchou em saudação. Então Lobo se pôs numa pose marota, e deu um latido de lobinho dirigido ao jovem garanhão. Racer ergueu a cabeça, relinchou e pisoteou o chão como resposta ao gesto brincalhão do lobo. A égua então se aproximou de Ayla e pôs a cabeça no ombro dela. A mulher lhe passou os dois braços pelo pescoço e ficaram assim, encostadas uma à outra, numa postura familiar de desafogo e confiança mútua. Racer avançou e esfregou a cabeça nelas duas, querendo também o conforto de algum contato físico. Ayla o afagou, depois esfregou-lhe o pescoço, compreendendo que todos eles precisavam da presença uns dos outros naquele lugar de tantos estranhos.

—    Quero apresentá-la, Ayla — disse Jondalar.

Ela encarou os dois desconhecidos. Um era quase tão alto quanto Jondalar, se bem que mais magro. O outro era mais baixo e mais velho, mas a semelhança entre eles era notável, assim mesmo. O mais baixo avançou primeiro, com as mãos estendidas.

—    Ayla dos Mamutói, este é Carlono, líder Ramudói dos Xaramudói.

— Em nome de Mudo, Mãe de Todos, na água e na terra, eu lhe dou as boas-vindas, Ayla dos Mamutói — disse Carlono, tomando-lhe as mãos. Falava Mamutói ainda melhor que Dolando, resultado de diversas viagens de comércio à foz do Rio da Grande Mãe, bem como de ensino por Tholie.

— Em nome de Mut, agradeço a sua acolhida, Carlono dos Xaramudói — respondeu ela.

— Esperamos que venha logo à nossa doca — disse Carlono. Pensava: que estranho sotaque ela tem! Não creio ter ouvido igual antes, e conheço muitos. — Jondalar me disse que prometeu a você um passeio num barco decente, não como essas tigelas grandes dos Mamutói.

— Ficarei encantada — disse Ayla, brindando-o com um dos seus sorrisos radiantes.

Os pensamentos de Carlono derivaram da consideração dos maneirismos de conversação de Ayla para a apreciação da sua beleza. Era de fato uma beldade essa mulher que Jondalar trouxera. Combina com ele, pensou.

—    Jondalar me falou dos seus barcos, e da pesca do esturjão —continuou Ayla.

Os dois homens riram, como se ela tivesse dito uma pilhéria, e olharam para Jondalar, que também sorriu, embora ficasse vermelho.

— Ele já lhe contou de quando pescou meio esturjão? — disse o homem alto.

— Ayla dos Mamutói — disse Jondalar, formalizando-se. Esse é Markeno dos Ramudói, filho do lar de Carlono, e marido de Tholie.

— Bem-vinda, Ayla dos Mamutói — disse Markeno, informalmente, vendo que ela já fora saudada com o ritual apropriado muitas vezes.

Já conhece Tholie? Ela ficará contente com sua presença entre nós. Sente muita falta da sua gente às vezes. — Sua fluência da língua da companheira era quase perfeita.

— Sim, eu já estive com Tholie, e com Shamio também. É uma bela garotinha.

Markeno deu um sorriso radiante.

— Eu também acho, embora não deva dizer isso da filha do meu próprio lar. — Depois, voltando-se para o adolescente, inquiriu.

— Como vai Roshario, Darvo?

— Ayla consertou o braço dela. É uma curandeira.

— Jondalar nos contou que ela encanou o braço direito, disse Carlono com o cuidado de não se comprometer. Ele também achava bom esperar até ver o braço curado.

Ayla percebeu a reticência na resposta do chefe Ramudói, mas achou aquilo compreensível, nas circunstâncias. Por mais que gostassem de Jondalar, ela era uma estranha, afinal de contas.

— Darvalo e eu vamos apanhar algumas ervas que vi no caminho para cá, Jondalar — disse. — Roshario ainda dorme, e eu quero ter uma bebida pronta para ela, quando acordar. Dolando está com ela. Não estou gostando dos olhos de Racer. Vou ter de procurar aquelas plantas brancas para ele, mas agora não tenho tempo. Você pode lavá-los com água fresca — disse. Depois, sorrindo para todos, chamou Lobo, fez um sinal de cabeça para Darvalo e seguiu para a orla da angra.

A vista da trilha que acompanhava a escarpa não lhe pareceu menos espetacular que da primeira vez. Teve de prender a respiração quando olhou para baixo, mas não pôde resistir ao desejo de fazê-lo. Deixou que Darvalo fosse à frente, mostrando o caminho, e felicitou-se por ter feito isso quando ele lhe mostrou um atalho. O lobo explorou a área, perseguindo odores intrigantes e reunindo-se a eles em seguida. Das primeiras vezes em que ele surgiu, de repente, o rapaz se assustou, mas acabou acostumando-se àquelas idas e vindas.

A grande tília anunciou sua presença muito antes de que a alcançassem com uma rica fragrância, reminiscente do mel, e com um forte zumbido de abelhas. A árvore se fez visível numa curva do caminho e revelou a fonte daquele delicioso aroma: as pequeninas flores, verde-amarelas, reunidas em cimeiras, e pendentes de brácteas oblongas, aliformes. As abelhas estavam tão ocupadas em colher o néctar que não se importaram com as pessoas que as tinham vindo perturbar, se bem que a mulher tivesse de sacudir algumas delas das flores que cortava. Os insetos simplesmente voltavam para a árvore e encontravam outras.

— Por que isso é especialmente bom para Roshario? — perguntou Darvalo. — As pessoas estão sempre fazendo chá de tília.

— E gostoso, não é? Mas é medicinal também. Se você está nervoso, afrito. ou, até, zangado, pode ser calmante. Se está cansado, estimula e reanima. Pode curar uma dor de cabeça ou um estômago indigesto. Roshario vai ter tudo isso por causa da beberagem que lhe dei para que dormisse.

— Eu não sabia que a tília era boa para tanta coisa — disse Darvalo, reparando na árvore tão familiar, de copa larga e aberta e casca lisa, escura. Admirava-se de que uma essência tão comum pudesse ter todas aquelas qualidades e ser tão mais do que parecia.

Gostaria de encontrar também outra árvore, Darvalo, mas não sei o nome dela em Mamutói — disse Ayla. — É pequena e às vezes não passa de um arbusto. Tem espinhos, e as folhas são como mãozinhas espalmadas. Dá flores brancas, grupadas, no começo do verão e, nesta época, umas bagas redondas, vermelhas.

— Será uma roseira o que você está procurando?

—    Não, mas a roseira é uma boa aproximação. A que procuro é maior que uma roseira, mas as flores são menores, e as folhas diferentes.

Darvalo se concentrou, de cenho fechado. Depois, de súbito, sorriu.

—    Acho que sei que planta é essa de que você está falando, e podemos encontrar alguns pés não muito longe daqui. Na primavera costumamos apanhar botões para comer, quando passamos.

—    Você pode estar certo. Sabe levar-me até lá?

Lobo não estava à vista, e Ayla teve de assoviar. Ele apareceu quase de imediato, olhando-a com ar expectante. Ayla mandou que os seguisse. Andaram um pouco e avistaram uma concentração de pilriteiros.

É exatamente isso que eu procurava, Darvalo! — disse Ayla. — Não estava certa de ter feito uma boa descrição da planta.

Para que serve? — perguntou o rapaz, enquanto apanhavam bagas e folhas.

Faz bem para o coração, que restaura, fortalece e estimula, mas suavemente. É para um coração sadio. Não é para alguém de coração débil, que precisa de remédio mais poderoso — disse Ayla, procurando fazer-se entender pelo jovem, transmitir-lhe o que sabia por observação e experiência. O que aprendera com Iza fora vazado numa linguagem difícil de traduzir. — É bom também para misturar a outros remédios. Aviva a ação deles, faz com que funcionem melhor.

Darvalo estava achando divertido apanhar plantas com Ayla. Ela sabia toda espécie de coisas que ninguém sabia e não se importava de ensinar. Na volta, parou num lugar ensolarado e seco para apanhar algumas flores de hissopo, de cor púrpura e perfume agradável.

—    Isso para que serve? — perguntou ele.

—    Para limpar o peito. Ajuda a respirar. E isto — disse ela, apanhando ali perto algumas folhas de pilosela, macias, penugentas, em orelha de camundongo como as do miosótis —, isto estimula tudo. É mais forte, porém, e não tem gosto muito bom, de modo que vou usar só um pouco. Quero dar a Roshario alguma bebida de gosto agradável, mas isto vai clarear-lhe a mente. Ela se sentirá mais desperta.

Na volta, Ayla se deteve uma vez mais para colher uma grande braçada de belas flores de goivo, cor-de-rosa. Darvalo pensou que ia aprender mais um pouco de medicina, quando perguntou para que serviam.

—    Colhi estas aqui por causa do seu perfume gostoso e por terem um sabor doce e picante. Posso fazer um chá com algumas delas e posso pôr o resto numa jarra perto da cama de Roshario, para que ela se sinta bem. Mulheres gostam de coisas bonitas, cheirosas, Darvalo, principalmente quando estão doentes.

Ele se deu conta de que gostava também de coisas bonitas e cheirosas como a própria Avia. Apreciava que ela sempre o chamasse Darvalo e não Darvo, como todo mundo fazia. Não que se importasse muito quando era Dolando ou Jondalar quem fazia isso, mas gostava de ouvir seu nome de adulto. A voz da mulher era doce, também, embora Ayla pronunciasse algumas palavras de modo esquisito. O que fazia com que se prestasse mais atenção ao que ela dizia e, depois de algum tempo, verificasse que a voz dela era muito bonita.

Houvera um tempo em que o que ele mais queria era que Jondalar se ajuntasse para sempre a sua mãe e ficasse com os Xaramudói. O companheiro de sua mãe morrera quando ele era ainda pequeno, e depois disso nunca um homem tinha morado com eles até que aquele Zelandonii alto aparecesse.

Jondalar o tratara sempre como um filho do seu lar, começara, até, a ensinar-lhe como trabalhar o sílex, e Darvalo ficara triste quando ele partiu.

Queria muito que voltasse, mas nunca realmente esperara que isso acontecesse. Quando sua mãe se foi, com Gulec, o Mamutói, ele achou que não havia mais como prender o Zelandonii se ele voltasse. E agora que voltara, e com outra mulher, sua mãe não fazia mais falta. Todo mundo gostava de Jondalar, e principalmente depois do acidente com Roshario todos falavam da necessidade de ter quem entendesse de doenças e remédios. Ayla era uma boa curandeira. Por que não poderiam ficar, os dois?

— Ela acordou uma vez — disse Dolando, logo que Ayla entrou. Pelo menos, penso que acordou. Mas talvez apenas se debatesse, em sonhos. Mas logo ficou quieta e está dormindo agora.

O homem estava aliviado com sua chegada, embora não quisesse que isso ficasse muito visível. Ao contrário de Talut, que fora sempre completamente aberto e cordial, e cuja liderança se fundava na força do caráter, na disposição de ouvir, de aceitar divergências, e negociar compromisso... e uma voz suficientemente forte para se impor à atenção de um grupo, por mais barulhento que fosse, numa discussão acalorada... Dolando se parecia mais com Brun. Era reservado e, embora soubesse ouvir ponderasse uma situação longamente, não revelava o seu pensamento. Mas Ayla estava habituada a interpretar os maneirismos sutis de homens dessa espécie.

Lobo entrara com ela e se aquietara no seu canto, sem esperar um comando. Ela pôs a cesta no chão e foi ver Roshario. Depois dirigiu-se ao homem, que parecia ansioso.

— Ela vai acordar a qualquer momento, mas preciso ter pronto um chá especial que ela deve tomar logo.

Dolando notara o perfume das flores logo que ela entrara, e a infusão que preparou para eles tinha um forte cheiro floral. Ayla lhe trouxe uma xícara, e outra para a mulher no leito.

—    Para que serve?

—    É para ajudar Roshario a ficar desperta, mas talvez você também ache o meu chá refrescante.

Darvalo provou, esperando um gosto leve, floral, mas ficou surpreso com o sabor adocicado e forte, que lhe encheu a boca.

—    É ótimo! Que ingredientes leva?

—    Pergunte a Darvalo. Estou certa de que ele terá prazer em dizer-lhe.

O homem assentiu, percebendo a sugestão implícita.

—    Tenho de dar mais atenção a ele. Tenho estado tão aflito com Roshario que não penso em mais nada, e estou certo de que ele também está preocupado com ela.

Ayla sorriu. Começava a perceber as qualidades que tinham feito dele o chefe desse grupo. Gostava da sua rapidez de raciocínio e começava a gostar dele. Roshario fez um movimento, e a atenção deles se voltou para ela.

—    Dolando? — disse, com voz fraca.

—    Estou aqui — disse ele, e a ternura na voz do homem pôs um nó na garganta de Ayla. — Como se sente?

— Um pouco tonta. E tive os sonhos mais extraordinários.

— Trouxe-lhe alguma coisa para beber — disse Ayla.

Roshario fez uma careta, lembrando-se da última bebida que a mulher lhe dera.

— Deste chá você vai gostar, acho eu. Sinta o cheiro — disse Ayla. aproximando da doente a xícara com seu delicioso aroma. A fronte de Roshario se desanuviou, e Ayla ajudou-a a levantar a cabeça.

— É muito bom — disse Roshario, após beber alguns goles. Bebeu mais um pouco. E quando acabou recostou-se e fechou os olhos. Mas logo os abriu de novo.

— Meu braço! Como está o meu braço?

— Dói?

—    Dói um pouco, mas não tanto quanto antes, e dói diferente — disse. — Posso ver? — Virou-se para ver melhor, depois tentou sentar-se na cama.

—    Deixe que eu a ajude — disse Ayla, soerguendo-lhe o corpo.

— Está reto! Meu braço parece direito. Você o consertou! — disse a mulher. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela se recostou outra vez. — Agora não tenho de ser uma velha inútil.

— Talvez não fique tão bom quanto antes — disse Ayla —- mas agora está encanado corretamente e tem chance de cicatrizar direito.

— Você pode acreditar numa coisa dessas, Dolando? Ah, tudo está bem agora! — Roshario soluçava, mas seu choro era de alegria e alivio.

 

— Cuidado, agora — disse Ayla, ajudando Roshario a avançar com o corpo em direção a Jondalar e Markeno, que estavam debruçados por cima da cama, de um lado e de outro.

— A tipóia vai dar apoio ao braço e mantê-lo no lugar, mas junto do seu corpo.

— Você tem certeza de que ela já se pode levantar? — perguntou Dolando a Ayla, com uma expressão de ansiedade.

— Eu tenho certeza — disse Roshario. — Já fiquei muito tempo nesta cama. Não quero perder a festa pelo retorno de Jondalar.

— Contanto que não se canse muito, será melhor para ela andar um pouco e estar com as pessoas — disse Ayla. E, voltando-se para Roshario: — Mas não por muitas horas. O repouso é agora o melhor curandeiro.

— Só quero ver todo mundo feliz, para variar. Toda vez que alguém veio aqui foi com ar apreensivo. Quero que saibam que vou ficar boa — disse a mulher, saindo da cama para os braços dos dois homens.

— Cuidado, agora, atenção à tipóia — disse Ayla.

Roshario passou o braço bom em torno do pescoço de Jondalar.

—    Muito bem. Agora, juntos, levantem-na no ar.

Com a mulher entre eles, os dois se ergueram, avançando um pouco para poder endireitar-se debaixo do teto inclinado da casa. Eram mais ou menos da mesma altura e carregavam o peso dela sem esforço. Embora Jondalar fosse visivelmente mais musculoso, Markeno também tinha um bom físico. Sua força era disfarçada pelo fato de ter menos corpo que o outro, mas o hábito de remar e de manipular os grandes esturjões que costumava pescar haviam dado aos músculos enxutos e lisos do Ramudói resistência e flexibilidade.

—    Como se sente? — perguntou Ayla.

—    Nas nuvens — respondeu Roshario, rindo para os dois carregadores. — É uma vista diferente a que a gente tem, aqui de cima.

— Você se considera pronta?

— Como estou, Ayla?

— Muito bem, na minha opinião. Tholie fez um bom serviço, penteando e arranjando os seus cabelos — disse Ayla.

— O banho que vocês duas me deram também me ajudou a sentir-me melhor. Eu não tinha vontade de me lavar antes, nem de cuidar do cabelo. E agora me importo. O que quer dizer que estou melhor, não é? — disse Roshario.

— Em parte, isso é efeito do remédio que lhe dei para tirar a dor. Mas esse efeito vai passar. Avise-me logo que começar a sentir dor forte outra vez. Não queira ser corajosa. Também me diga quando começar a ficar cansada.

— Sim. Estou pronta.

—    Vejam quem está vindo! Roshario! — exclamaram diversas vozes quando ela emergiu, carregada, da habitação.

—    Ponham-na aqui — disse Tholie. — Preparei um lugar para ela.

Em algum tempo do passado um grande bloco da aba de arenito partira-se e caíra perto do círculo onde eles costumavam reunir-se. Tholie pusera um banco encostado nele e cobrira-o de peles. Os dois rapazes levaram Roshario para lá e fizeram-na descer suavemente.

— Está bom aqui? — perguntou Markeno depois que ela se instalara no assento acolchoado.

— Sim, sim, estou muito bem aqui — disse Roshario. Não estai-habituada a toda aquela atenção.

O lobo seguira-os para fora da casa e, logo que a doente se sentou ele arranjou um lugarzinho para deitar-se junto dela. Roshario ficou surpresa, mas quando viu a expressão com que o animal a olhava e notou como ele vigiava todos os que se aproximavam, teve uma impressão, estranha mas confortadora, de que ele a estava protegendo.

— Ayla, por que aquele lobo está perto de Roshario? Acho que você deveria afastá-lo dela — disse Dolando, imaginando o que poderia o animal querer com uma pessoa ainda tão fraca e vulnerável. Sabia que os lobos gostavam de atacar os membros mais velhos, doentes e fracos de um rebanho.

— Não, deixem-no ficar — disse Roshario, afagando a cabeça de lobo com a mão boa. — Ele não quer fazer-me mal, Dolando. Está tomando conta de mim.

— Também acho isso, Roshario — disse Ayla. — Havia um menino no Acampamento do Leão, um menino fraquinho, doentio, e Lobo sempre teve cuidados especiais com ele, sempre assumiu ares protetores. Acho que ele percebe que você está debilitada e quer protegê-la.

— Esse menino não terá sido Rydag? — perguntou Tholie. — Um menino que Nezzie adotou e que era... — hesitou, de súbito, lembrando-se da desarrazoada ojeriza de Dolando —... que era... um estranho?

Ayla percebeu a pausa que a outra havia feito e sabia que ela não dissera o que tinha pretendido inicialmente dizer. Por que seria?

— O menino ainda está com eles? — perguntou Tholie, corando muito.

— Não — disse Ayla. Ele morreu, no começo da estação, durante a Reunião de Verão. A morte de Rydag ainda a deixava triste e perturbada, e isso era visível.

A curiosidade de Tholie rivalizava com o seu senso de discrição. Queria fazer mais perguntas, mas aquela não era uma hora propícia. Mudou de assunto.

—    Alguém já estará com fome? — perguntou. — Por que não comemos?

E todo mundo comeu, inclusive Roshario, que se serviu com moderação, embora comesse mais do que comera numa só refeição havia muito tempo. Todos estavam agrupados em volta do fogo, com xícaras de chá ou de vinho de dente-de-leão, de baixa fermentação. Era a hora de contar histórias, recordar aventuras, e, principalmente, saber mais sobre as visitas e seus extravagantes companheiros de viagem.

Todos os Xaramudói do estabelecimento estavam lá, exceto os ausentes: os Xamudói, que moravam em terra, mas na enseada alta, o ano todo: e seus parentes que moravam no rio, os Ramudói. No calor, o Povo do Rio morava numa doca flutuante atracada logo embaixo da penedia no inverno eles subiam para o terraço elevado e partilhavam as instalações dos seus primos. Os casais duplos eram considerados tão unidos como marido e mulher, e os filhos das duas famílias eram tratados como irmãos uns dos outros.

Aquele arranjo era o mais estranho de todos os que Jondalar vira de grupos estreitamente relacionados, mas funcionava bem para os interessados por causa da afinidade existente entre eles e por um relacionamento singular, mas mutuamente proveitoso. Havia muitos laços práticos e de ordem ritual entre as duas metades, mas os Xamudói contribuíam com os produtos da terra e um abrigo seguro para os rigores do inverno; os Ramudói entravam com os peixes e transporte fluvial competente.

Os Xaramudói consideravam Jondalar afim, mas apenas através do irmão. Quando Thonolan se apaixonou por uma mulher Xamudói, ele aceitou os costumes dela e decidiu tornar-se um Xamudói. Jondalar vivera com eles enquanto formaram uma família e se sentiram como uma família. Aprendera e aceitara os costumes da comunidade, mas nunca passara por qualquer ritual de adesão. Não se sentia disposto a deixar a identidade com seu próprio povo. Não podia tomar a decisão de radicar-se com aquela gente para o resto da vida. Embora Thonolan se tornasse Xaramudói, Jondalar continuou Zelandonii. A conversa em torno do fogo começou, como era natural, com perguntas sobre o irmão dele.

— O que aconteceu depois que você saiu daqui com Thonolan? — perguntou Markeno.

Por doloroso que lhe fosse falar sobre Thonolan, Jondalar reconhecia que Markeno tinha o direito de saber. Markeno e Tholie se tinham ligado por aquele parentesco especial do grupo com Thonolan e Jetamio. Markeno era, assim, parente tão próximo de Thonolan quanto ele mesmo, embora ele fosse seu irmão consanguíneo, nascido da mesma mãe. Contou, resumidamente, de como eles tinham viajado rio abaixo no barco que Carlono lhes dera, alguns dos perigos por que passaram, e seu encontro com Brecie, a chefe Mamutói do Acampamento do Salgueiro.

— Somos parentes! — disse Tholie. — Ela é minha prima, e muito próxima.

— Fiquei sabendo disso muito depois, quando moramos no Acampamento do Leão, mas ela foi muito boa para nós antes de saber que éramos afins — disse Jondalar. — Foi isso que levou Thonolan a tomar decisão de ir para o norte e visitar outros Acampamentos Mamutói. Ele falou em caçar mamutes com eles. Tentei fazer com que desistisse disso, tentei convencê-lo a voltar comigo. Tínhamos chegado à foz do Rio da Grande Mãe, e era até lá que ele havia desejado ir.

Jondalar fechou os olhos e abanou a cabeça como se quisesse negar o fato, depois baixou a cabeça, agoniado. O povo esperou, partilhando da dor que ele sentia.

—    Mas não eram os Mamutói — continuou ele, depois de algum tempo. — Era Jetamio. Ele não conseguia esquecê-la. Tudo o que desejava era acompanhá-la ao outro mundo. Ele me disse que ia viajar até que a Grande Mãe o levasse. Estava pronto, disse, mas a verdade é que estava mais do que pronto. Queria tanto aquilo que se arriscava. E foi por isso que morreu. E eu não lhe estava dando a atenção devida. Isso também. Foi estupidez minha não ir com ele quando saiu atrás daquela leoa que lhe furtara a presa. Se não fosse Ayla, eu teria morrido com ele.

Esse último comentário de Jondalar acirrou a curiosidade geral, mas ninguém quis interrogá-lo para que ele não tivesse de viver de novo a sua mágoa. Finalmente, Tholie rompeu o silêncio.

—    Como conheceu Ayla? Você estava perto do Acampamento do Leão?

Jondalar ergueu os olhos para Tholie, depois para Ayla. Vinha falando em Xaramudói e não estava certo de que ela tivesse entendido tudo. Seria bom que ela soubesse mais da língua para poder narrar, ela mesma, sua parte. Não ia ser fácil explicar a coisa ou torná-la verossímil. Quanto mais tempo passava, mais irreal tudo parecia. Mesmo para ele. Mas quando Ayla contava, parecia mais fácil acreditar na história.

—    Não. Nós não conhecíamos o Acampamento do Leão naquele tempo. Ayla estava morando sozinha num vale, a vários dias de viagem do Acampamento do Leão.

—    Sozinha? — perguntou Roshario.

— Bem, não de todo. Ela dividia sua caverna com uns dois animais Para ter companhia.

— Você quer dizer que Ayla tinha outro lobo igual a este? — perguntou a mulher, estendendo a mão para afagar o bicho.

— Não. Ayla ainda não tinha Lobo. Recolheu-o quando estávamos vivendo no Acampamento do Leão. Tinha Huiin.

— E Huiin o que é?

— Huiin é um cavalo.

— Um cavalo? Você quer dizer que Ayla tinha um cavalo também?

—    Sim. Aquele lá. O da direita — disse Jondalar, apontando os cavalos no campo, projetados em silhueta contra o céu crepuscular, listado de vermelho.

Os olhos de Roshario se arregalaram de surpresa, o que fez com que os outros rissem. Tinham todos superado o choque inicial, mas Roshario não notara os cavalos lá fora.

— Ayla morava com aqueles dois cavalos?

—    Não exatamente. Eu estava lá quando o garanhão nasceu. Antes disso, ela morava só com Huiin... e o leão da caverna — completou Jondalar, quase que num sussurro.

— E... o quê? — disse Roshario, agora no seu imperfeito Mamutói. — Ayla conte você mesma. Jondalar está confuso, acho eu. Talvez Tholie possa traduzir para nós.

Ayla entendera fragmentos da conversa e olhou para Jondalar num mudo pedido de esclarecimento. Ele parecia aliviado.

— Temo não ter sido suficientemente claro, Ayla. Roshario quer ouvir sua história de você mesma. Por que não lhes fala de sua vida no vale, com Huiin e Neném? Por que não lhes conta como me encontrou? — disse.

— Por que você vivia sozinha no vale? — perguntou Tholie.

— É uma longa história — disse Ayla, respirando fundo. Os circunstantes responderam com sorrisos. Era exatamente o que queriam ouvir, uma longa história, nova e interessante. Ayla tomou um pouco do seu chá imaginando por onde começar.

— Eu disse a Tholie que não sei quem é o meu povo. Eles morreram num terremoto quando eu era muito pequena. Fui encontrada e adotada pelo Clã. Iza, a mulher que me encontrou, era uma curandeira, e começou a ensinar-me a sua arte desde o começo.

Bem, isso explicava a competência daquela mulher ainda tão jovem, pensou Dolando, enquanto Tholie traduzia. Mas Ayla já retomava o fio da narrativa.

—    Vivi com Iza e com o irmão dela, Creb. Seu companheiro morrera no mesmo terremoto que matou meu povo. Creb era o homem da casa. Ele ajudou a criar-me. Iza morreu há alguns anos, mas antes de morrer me disse que eu devia ir embora e procurar minha própria gente. Mas eu não fui. Não podia ir... — Ayla hesitou, procurando decidir o quanto devia contar. — Não naquela época, mas depois... da morte de Creb...eu tive de partir.

Uma pausa, mais um gole de chá. Tholie repetiu o que ela dissera, tropeçando um pouco nos nomes esquisitos. A narração reavivara para Ayla as fortes emoções daquele tempo, e ela precisava recuperar o domínio de si.

—    Andei em busca da minha gente, como Iza me recomendara, mas não sabia onde procurar. Toda a primavera, todo o verão, e não achei ninguém. Comecei a pensar se um dia os acharia mesmo. Estava ficando cansada de viajar. Então cheguei a um pequeno vale verde no meio das estepes secas, com um regato no meio e, além, uma bonita caverna. Tinha tudo de que precisava... exceto gente. Sem saber se ainda encontraria alguém, e com o inverno chegando, tive de preparar-me para ele, ou não poderia sobreviver. Resolvi ficar no vale até a próxima primavera.

O grupo ficara tão interessado na história que agora se manifestava, assentindo de cabeça. dizendo que ela estava certa, que aquilo era mesmo o que tinha de fazer. Ayla contou de como apanhara sem querer um cavalo numa armadilha de fojo, de como descobrira que era uma égua ainda nova, e de como vira um bando de hienas perseguindo a potranca depois que a soltara.

— Não pude conter-me. Era um bebê ainda de leite, incapaz de defender-se! Expulsei as hienas e levei a égua para viver comigo na caverna. Fiz bem. Ela aliviou a minha solidão, fez minha vida mais suportável, tornou-se minha amiga.

As mulheres, pelo menos, podiam entender aquilo. Mesmo um bebê, de cavalo era um bebê. Contada por Ayla, a história parecia perfeitamente razoável, mesmo que ninguém jamais tivesse ouvido falar de adotar um animal como se fora uma criança. Mas não eram só as mulheres que estavam fascinadas com a narrativa. Jondalar observava o grupo. Mulheres e homens estavam igualmente empolgados, e ele percebeu que Ayla se tornara uma consumada contadora de histórias. Ele mesmo estava fascinado — e conhecia a história. Ficou observando a mulher, procurando descobrir o que havia nela de tão irresistível. Notou que Ayla não usava apenas palavras, mas gestos, sutis, mas de grande poder evocativo.

Não era um esforço consciente ou destinado a produzir um efeito determinado. Ayla crescera habituada a comunicar-se à maneira do Clã, e era perfeitamente natural para ela descrever com movimentos além de palavras, mas quando primeiro se valeu de pios de pássaros e relinchos de cavalos, surpreendeu de fato os ouvintes. Vivendo só no vale, ouvindo só a vida animal da vizinhança imediata, ela começara a imitá-los e aprendera a reproduzir as vozes dos bichos com incrível fidelidade. Depois do primeiro choque, aqueles sons de animais, surpreendentemente realistas, acrescentavam uma fascinante dimensão à sua história.

Quando ela contou como começou a montar e treinar os cavalos, até Tholie queria tanto ouvir o resto da história que se impacientava com a tradução. A jovem mulher Mamutói falava muito bem as duas línguas, mas não sabia reproduzir o relincho de um cavalo ou o canto de um passarinho. Isso porém era desnecessário. As pessoas percebiam o que Ayla ia contando, em parte porque as línguas eram semelhantes, mas em parte pela expressividade do discurso. Compreendiam os sons, quando era o caso, depois esperavam que Tholie completasse com a tradução o que tinham perdido.

Ayla antecipava as palavras de Tholie tanto quanto os demais, mas por outro motivo, inteiramente diverso. Jondalar já notara com espanto sua inacreditável facilidade para línguas quando lhe ensinara a sua. Não sabia que aquilo se devia a um conjunto muito especial de circunstâncias. Tendo de conviver com gente que aprendia da memória dos antepassados, arquivadas desde o nascimento nos seus cérebros descomunais mas ou menos como uma forma evoluída e consciente de instinto, a filha dos Outros tivera de apurar suas próprias faculdades de memorização. Impusera-se a obrigação de lembrar depressa para não ser tida por obtusa pelo resto do seu Clã.

Ela fora uma garota normal, loquaz, antes de adotada, e embora tivesse perdido muito da sua linguagem articulada quando começou comunicar-se com gestos como o Clã fazia, os moldes já estavam todos implantados nela. Sua necessidade de reaprender a linguagem verbal para poder comunicar-se com Jondalar acrescentara ímpeto ao que era uma aptidão natural. Uma vez desfechado, o processo se acelerou quando foi morar no Acampamento do Leão e teve de aprender mais uma língua. Era capaz de memorizar palavras depois de ouvi-las apenas uma vez, embora sintaxe e estrutura levassem mais tempo. A lingua dos Xaramudói e a dos Mamutói tinham acentuadas semelhanças de construção e muitos termos eram semelhantes. Ayla escutava atentamente a tradução de Tholie, pois enquanto contava sua história ia aprendendo a língua dos ouvintes.

Por fascinante que tivesse sido a história do cavalinho novo, até a própria Tholie parou de traduzir quando Ayla narrou seu encontro com leãozinho ferido. Talvez a solidão levasse alguém a morar com um herbívoro como o cavalo, mas um carnívoro gigantesco é coisa muito diferente. Um leão das cavernas, passante como se diz em heráldica, atinge facilmente a altura de um cavalo pequeno da estepe e é ainda mais forte. Tholie queria saber como Ayla pudera conceber a ideia de conviver com o filhote.

—    Ele não era tão grande, sequer tinha a estatura de um lobinho, era um bebê... e estava ferido.

Ao falar em lobinho, Ayla pensara descrever um animal menor, mas os olhares dos ouvintes se voltaram para o canídeo acomodado junto de Roshario. Lobo vinha do norte, e era grande mesmo para os padrões de sua raça avantajada. Era o maior lobo que todos ali jamais tinham visto. A ideia de acolher um leão daquelas proporções não apetecia a ninguém.

—    O nome que Ayla lhe deu quer dizer "neném", e ela o chamou assim mesmo depois de crescido. Foi o maior neném que já vi — acrescentou Jondalar, provocando risos.

Ele também sorriu, mas logo contou um fato que os deixou sérios outra vez.

—    Achei a coisa divertida, como vocês, mas nosso primeiro encontro não teve nada de engraçado. Neném foi o leão que matou Thonolan e que por pouco não me matava também.

Dolando olhou de novo, apreensivo, para o lobo.

—    Mas o que seria de esperar quando se entra na toca de um leão? Embora tivéssemos visto sair a leoa, e não soubéssemos que Neném estava dentro, foi uma coisa estúpida. Afinal, foi uma sorte para mim que se tratasse daquele leão.

—    Por que "sorte"? — perguntou Markeno.

— Eu estava ferido gravemente e sem sentidos, mas Ayla conseguiu dete-lo antes que ele acabasse comigo.

Todos se viraram para ela. — Como poderia Ayla conter um leão das cavernas? — perguntou Tholie.

— Da mesma maneira como controla Lobo e Huiin — disse Jondalar — Ela mandou que ele parasse, e o leão obedeceu.

Muitos abanaram a cabeça, incrédulos.

— Como você sabe o que ela fez se estava inconsciente? — disse alguém.

Jondalar identificou quem falara. Fora um jovem homem do Rio que ele conhecia ligeiramente.

— Porque a vi fazer a mesma coisa mais tarde, Rondo. Neném foi visitá-la uma vez, quando eu ainda convalescia. Ele sabia que eu era um estranho, e talvez se lembrasse de quando invadira o seu covil. Independente do motivo, ele não me queria perto da caverna de Ayla e logo armou o ataque. Mas Ayla se interpôs e mandou que ele parasse. O leão obedeceu. Foi até cómica a maneira pela qual ele se encolheu já em meio a um salto, mas na hora eu estava por demais amedrontado para notar.

— E por onde anda esse leão? — perguntou Dolando, olhando mais uma vez para o lobo e se indagando se Neném não a teria também acompanhado. Mesmo sabendo-a capaz de controlar a fera, não tinha a menor vontade de receber a visita de um leão.

— Neném foi tratar da vida dele — disse Ayla. — Ficou comigo até crescer. Depois, como fazem os filhos, saiu à procura de uma companheira. Talvez tenha diversas, até, agora. Huiin também me deixou, por algum tempo, mas voltou. Estava prenha, ao voltar.

— E o lobo? Você acha que ele também irá embora, algum dia? — perguntou Tholie.

— Ayla tomou fôlego. Aquela era uma questão que sempre evitara encarar. A possibilidade lhe passara mais de uma vez pela cabeça, mas sempre a pusera de lado, recusando-se até a admiti-la. Agora viera à tona e havia que responder.

—    Lobo era muito novo quando o encontrei. Penso que cresceu acreditando que o povo do Acampamento do Leão era a sua alcateia. Muitos lobos ficam com suas alcateias, embora alguns saiam e se tornem lobos solitários até encontrar uma parceira. E aí uma nova alcateia tem início Lobo é ainda jovem, pouco mais que um filhote. Parece mais velho por ser tão grande. Não sei o que fará no futuro, Tholie, mas isso me aflige. Não gostaria que ele se fosse.

Tholie estava de acordo com ela.

—    Toda separação é difícil, para quem vai e para quem fica. — Pensava na própria decisão de deixar sua gente para viver com Markeno. — Sei o que passei. Você também não deixou queles que a criaram? Como foi mesmo que os chamou? Clã? Nunca ouvi falar deles. Onde vivem?

Ayla olhou para Jondalar. Ele estava perfeitamente imóvel, tenso a ponto de arrebentar, com uma expressão estranha no rosto. Parecia muito nervoso com alguma coisa, e ocorreu-lhe, de súbito, se não estaria envergonhado da sua origem e do povo que a criara. Pensara que ele já havia deixado para trás esses sentimentos. Ela não tinha vergonha do Clã. A despeito de Brun e da angústia que ele lhe causara, fora bem cuidada e amada, apesar de ser diferente, e dera afeição em troca. Com uma ponta de irritação e um grão de orgulho ferido, resolveu que não iria renegar o povo que amara.

— Eles vivem na península que avança no Mar de Beran.

— Na península? — disse Tholie. — Eu não sabia que havia gente morando na península. Aquilo é domínio dos cabeças-chatas... — A mulher interrompeu o que estava dizendo. Não poderia ser! Ou poderia?

Tholie não fora a única a perceber as implicações. Roshario prendera a respiração e observava Dolando furtivamente, procurando descobrir se ele estabelecera correlações, mas não querendo dar a perceber aos outros ter notado alguma coisa fora do comum. Os nomes estranhos que Avia tinha mencionado, aqueles nomes tão difíceis de pronunciar, poderiam ser nomes dados por ela a animais de outras espécies? Mas ela contara que a mulher por quem fora criada lhe ensinara a medicina prática. Poderia haver outra mulher, também estranha, vivendo com eles? Mas que mulher teria querido viver com eles, principalmente sabendo medicina? Uma Xamã iria morar com cabeças-chatas?

Ayla começava a perceber as curiosas reações de alguns dos presentes mas quando olhou para Dolando e viu a expressão com que a fitava, teve um arrepio de medo. Dolando não parecia o mesmo homem, o líder senhor de si mesmo, que cuidara de sua mulher com tamanha ternura. Não a olhava mais com a gratidão e alívio que sua proficiência nas artes de curar haviam despertado, nem com a aceitação desconfiada do primeiro encontro. Em vez disso, ela detectava uma dor profundamente enterrada no peito e um distanciamento. Uma cólera ameaçadora lhe vidrava os olhos. Era como se ele não pudesse ver claramente, mas só através de um véu rubro, de ódio.

— Cabeças-chatas! — explodiu ele. — Você viveu com aqueles animais imundos, assassinos! Eu por mim exterminaria todos eles. E você viveu lá. Como qualquer mulher decente poderia viver lá?

Ele tinha os punhos cerrados e fez menção de avançar para ela. Jondalar e Markeno se puseram de pé ao mesmo tempo para segurá-lo. Lobo se pôs de pé diante de Roshario, com os dentes à mostra e um rosnado baixo, agourento, na garganta. Shamio começou a chorar, e Tholie a pegou no colo, estreitando-a contra o peito, num gesto de proteção. Em circunstâncias normais não teria medo de deixar a filha ao alcance de Dolando, mas ele ficava cego quando o assunto eram cabeças-chatas, e parecia possuído naquele momento por uma loucura incontrolável.

— Jondalar! Como você ousa trazer uma mulher assim para cá? — disse Dolando, tentando arrancar-se aos braços do homem alto e louro que o seguravam.

— Dolando! Não diga isso! — disse Roshario, procurando levantar-se — Ela me ajudou! Que diferença faz onde tenha sido criada? Ela me ajudou!

O povo que se havia reunido para celebrar a volta de Jondalar denotava espanto. Muitos estavam boquiabertos, e ninguém sabia o que fazer. Carlono se levantou para ajudar Jondalar e Markeno e para acalmar seu co-líder.

Ayla estava assombrada com a virulenta reação de Dolando, tão completamente inesperada. Viu que Roshario procurava erguer-se e tirar o lobo do caminho. O animal continuava diante dela em atitude defensiva, tão confuso com aquela comoção quanto todo mundo, mas determinado a proteger a mulher, como lhe parecia de sua obrigação. Ela não devia levantar-se, pensou Ayla, e correu para impedi-la.

—    Afaste-se de minha mulher — gritou Dolando. — Não quero que ela fique manchada com a sua sujeira. — Ao mesmo tempo, procurava escapar aos homens que o seguravam.

Ayla parou. Queria ajudar Roshario mas não queria criar maiores problemas com Dolando. O que teria acontecido com ele? Percebeu então que Lobo estava pronto para atacar e chamou-o. Aquilo era a ultima coisa de que precisava, que Lobo fizesse mal a alguém. O animal estava dividido. Queria ficar onde estava ou atacar. O que não queria era afastar-se da confusão. Mas o segundo sinal de Ayla foi acompanhado de um assovio, e aquilo o decidiu. Correu para ela e se postou a sua frente, para guardá-la.

Sem saber Xaramudói, Ayla percebia no entanto que Dolando esbravejava contra os cabeças-chatas e lhe dirigia uma torrente de insultos, mas o sentido do que dizia não era de todo claro. Enquanto esperava que a situação se definisse, ali, com o lobo, de súbito entendeu o sentido principal do que ele dizia e começou a ficar com raiva. Os membros do Clã não eram imundos assassinos. Por que aquela fúria contra eles?

Roshario ficara de pé e tentava aproximar-se dos homens engalfinhados. Tholie entregou Shamio a outra mulher que estava perto e correu em seu auxílio.

—    Dolando! Dolando! Pare com isso! — dizia Roshario. Sua voz o alcançou, apesar de tudo, e ele deixou de debater-se. Nem por isso os homens o largaram. Ele dirigiu a Jondalar um olhar furibundo.

—    Por que você a trouxe aqui?

—    O que está havendo com você, Dolando? — perguntou Roshario. — Olhe para mim! O que teria acontecido se ele não a tivesse trazido, hein? Não foi Ayla quem matou Doraldo.

Ele encarou a mulher e, pela primeira vez, pareceu consciente daquela figura frágil, exaurida, de braço na tipóia. Uma espécie de espasmo o sacudiu da cabeça aos pés, e toda a fúria irracional o deixou.

—    Roshario, você não deveria estar de pé — disse, e procurou avançar para ela. Viu que os homens o impediam.

—    Pode soltar-me agora — disse a Jondalar, com uma voz glacial.

O Zelandonii tirou as mãos dele. Os outros dois, Markeno e Carlono, esperaram mais um pouco, até verificarem que ele não lutava mais. Mas ficaram junto dele, por precaução.

—    Dolando, você não tem por que estar zangado com Jondalar — disse Roshario. — Ele trouxe Ayla porque eu precisava dela. Todo mundo está nervoso, Dolando. Venha, sente-se aqui comigo, mostre a eles que você está bem.

Ela viu que havia uma expressão obstinada no olhar de Dolando, mas a acompanhou até o banco e sentou-se a seu lado. Uma das mulheres lhes lhe trouxe um pouco de chá. Depois foi até onde estavam Ayla, Jondalar, Carlono e Markeno, com Lobo.

— Vocês querem algum chá ou vinho?

— Você teria ainda daquele maravilhoso vinho de uva-do-monte, Carolio? — perguntou Carlono. E Ayla notou a extraordinária semelhança entre os dois.

— O vinho novo ainda não está pronto, mas talvez haja ainda vinho do ano passado. Para você também? — perguntou a mulher a Ayla.

— Sim. Se Jondalar tomar, eu provo um pouco. Não creio que tenhamos sido apresentadas.

— Não — respondeu a mulher. E quando Jondalar já se prestava nara fazer as apresentações do protocolo, ela disse: — Não precisamos ser formais. Todos sabemos quem você é, Ayla. Eu sou Carolio, irmã daquele ali — disse, mostrando Carlono.

Posso ver... a semelhança — disse Ayla. Lutara um pouquinho com a palavra, e Jondalar se conscientizou, de chofre, que ela estava falando Xaramudói. Olhou-a com assombro. Como poderia ter aprendido a língua tão depressa?

Espero que você possa relevar o destempero de Dolando — disse Carolio. — O filho do seu lar, o filho de Roshario, foi morto por cabeças-chatas, e ele tem ódio deles desde então. Doraldo era um rapaz alegre, só alguns anos mais velho do que Darvo. Na flor da idade, portanto, e o golpe foi muito rude para o pai. Ele jamais conseguiu superá-lo.

Ayla assentiu, mas tinha uma dúvida. Não era comum que o Clã matasse um dos Outros. O que teria feito o moço? Viu que Roshario a chamava. Embora a expressão de Dolando não fosse amável, ela acorreu.

—    Está cansada? Quer deitar-se? Tem dor?

—    Um pouco. Vou deitar-me logo, mas não já. Quero pedir-Ihe desculpas. Eu tive um filho.

— Carolio me contou. Ele foi morto, não é?

— Cabeças-chatas... — resmungou Dolando, entre dentes.

— Talvez tenhamos sido precipitados — disse Roshario. — Você contou que viveu... com gente que morava na península? É isso?

Houve, de repente, um silêncio total.

— Sim — respondeu Ayla. Depois olhou diretamente para Dolando e inspirou fundo. — O Clã. Esses a quem você chama cabeças-chatas, é assim que eles se denominam. O Clã.

— Mas como? Eles não falam — disse uma mulher jovem. Jondalar viu que era a mulher sentada ao lado de Chalono, outro rapaz que ele conhecia. A fisionomia dela lhe era familiar, mas não se lembrava de seu nome no momento.

Ayla antecipou o comentário que ela não chegara a formular.

— Eles não são animais. São gente, e falam, mas não com muitas palavras, embora usem algumas. Sua linguagem é feita de sinais e gestos.

— Era isso o que você estava fazendo? — perguntou Roshario. — Antes de me fazer dormir? Pensei que estivesse dançando com as mão.

Ayla sorriu.

— Eu estava falando com o mundo dos espíritos. Pedindo ao espírito. do meu totem que a ajudasse.

— Mundo dos espíritos? Falar com as mãos? Quanta bobagem! disse Dolando.

— Dolando — disse Roshario, procurando pegá-lo pela mão.

—    É verdade, Dolando — disse Jondalar. — Eu mesmo aprendi alguns desses sinais. Todo o Acampamento do Leão os conhecia. Ayla nos ensinou esse tipo de linguagem, para podermos conversar com Rydag. Todos se surpreenderam ao ver que ele era capaz de comunicar-se dessa maneira, embora não pudesse pronunciar direito as palavras. Isso os fez compreenderem que ele não era um animal.

—    Você se refere ao menino que Nezzie acolheu? — disse Tholie.

—    Que menino? Você estará falando daquela abominação de espíritos misturados que, segundo ouvimos contar, uma Mamutói maluca pegou para criar?

Ao ouvir isso, Ayla se empertigou. Estava furiosa.

—    Rydag era uma criança — disse. — Talvez proviesse de espíritos misturados, mas quem pode culpar uma criança pelo que ela é? Ele não pediu para nascer daquele jeito. Não se diz que é a Mãe que escolhe os espíritos? Então, ele era um filho da Grande Mãe tanto quanto as outras crianças. Que direito tem você de chamá-lo uma abominação?

Ayla lançava um olhar desafiador para Dolando, e todo mundo observava os dois. Era geral a surpresa com a defesa de Ayla. Dolando parecia tão espantado quanto os demais. Que reação teria?

—    E Nezzie não é maluca — continuou Ayla. — É uma criatura boa, generosa, cheia de calor humano. Tomou um órfão para criar, sem se importar com o que pudessem pensar. Era como Iza, a mulher que me acolheu quando eu não tinha ninguém neste mundo, embora eu fosse diferente, e viesse dos Outros.

—    Os cabeças-chatas mataram o filho do meu lar! — disse Dolando.

—    Isso pode ter acontecido, mas é incomum. O Clã prefere evitar contato com os Outros. É assim que chamam às pessoas como nós. — Ayla fez uma pausa, depois fitou de novo o homem que ainda sofria com aquela tragédia. — É duro perder um filho, Dolando, mas deixe que lhe conte a história de outra pessoa que perdeu um filho. Era uma mulher que conheci quando muitos dos clãs se reuniram numa espécie de Reunião de Verão, só que menos frequente. Ela e outras mulheres estavam apanhando mantimentos quando, de súbito, diversos homens caíram sobre elas. Homens dos Outros. Um deles a agarrou para forçá-la a ter com ele o que vocês chamam Prazeres.

Houve gritos sufocados no seio do grupo. Ayla falava de um assunto que jamais era discutido abertamente, embora todos, menos os jovens, já tivessem ouvido falar daquilo. Umas poucas mães quiseram retirar as crianças, mas ninguém na verdade tinha vontade de sair.

— As mulheres do Clã fazem o que os homens pedem. Não são forçadas. Mas o homem que agarrou aquela mulher não podia esperar. Sequer podia esperar que ela pusesse o seu bebê no chão. Pegou-a de maneira tão brutal que o bebê caiu por terra e ninguém notou. Só mais tarde, quando ele permitiu que ela se levantasse, a mulher descobriu que a cabeça da criança tinha batido numa pedra ao cair. O bebê estava morto.

Alguns dos ouvintes tinham os olhos cheios de lágrimas. E Jondalar falou:

— Eu sei que essas coisas acontecem. Ouvi histórias de rapazes que vivem longe, para as bandas do ocidente, e que gostam de divertir-se com cabeças-chatas. Vários deles formam gangues para forçar mulheres do Clã.

— Essas coisas acontecem aqui também — admitiu Chalono.

As mulheres ficaram surpresas por ele dizer aquilo, e muitos dos homens desviaram os olhos dele, exceto Rondo, que o olhou com repulsa, como se ele fora um verme.

—    E os rapazes se gabam disso, é sempre a façanha máxima para eles — disse Chalono, procurando defender-se. — Não são muitos os que fazem isso hoje em dia, sobretudo depois do que aconteceu com Doral...— Calou-se de súbito, olhou ao redor, baixando depois os olhos e desejando não ter nunca aberto a boca.

O silêncio penoso que se seguiu foi quebrado quando Tholie disse:

—    Roshario, você parece fatigada. Não acha que já é tempo de voltar para a cama?

—    Sim, gostaria de ir deitar-me — disse.

Jondalar e Markeno correram para ajudá-la, e todo mundo tomou aquilo como um sinal de retirada. Ninguém quis ficar conversando ou brincando junto do fogo naquela noite. Os dois homens carregaram a mulher para a casa, com um Dolando cabisbaixo fechando a marcha.

—    Obrigada, Tholie, mas acho que seria melhor que eu dormisse com Roshario — disse Ayla. — Espero que Dolando não faça objeções. Ela Passou por tanta coisa que vai ter uma noite difícil. Para dizer a verdade, os próximos dias serão difíceis. O braço já começou a inchar e vai doer um pouco. Não sei se ela fez bem de levantar-se hoje, mas insistiu tanto, fazia tanto gosto, que eu talvez não conseguisse impedi-la. Ficou dizendo que se sentia bem, mas isso era devido à bebida que faz dormir mas também tira a dor, cujo efeito ainda persistia. Dei-lhe mais outra coisa, mas tudo isso já não vai ajudar agora. Será melhor que eu esteja aqui.

Ayla acabara de entrar, depois de passar algum tempo escovando e penteando Huiin à luz moribunda do poente. Aquilo sempre lhe fazia bem, estar junto da égua e cuidar dela quando se sentia deprimida. Jondalar se reunira a ela do lado de fora por algum tempo, mas sentiu que Ayla queria ficar sozinha e se afastara, depois de alguns afagos e palavras de incentivo para Racer.

— Talvez fosse bom que Darvo dormisse com você, Markeno — disse. Ele não gosta de ver Roshario sofrer.

— Naturalmente — disse Markeno — vou busca-lo. Gostaria de convencer Dolando a ficar conosco também, mas ele não concordará, ainda mais agora, depois do que aconteceu. Ninguém lhe contara até então a história completa da morte de Doraldo.

—    Talvez tenha sido melhor assim. Agora que tudo está às claras, talvez ele possa tirar isso da cabeça — disse Tholie. — Dolando tem cultivado um ódio mortal pelos cabeças-chatas há muito tempo. Isso nos parecia inofensivo. Ninguém faz muito caso deles, afinal... Lamento, Ayla, mas é verdade.

—    Eu sei.

— E não temos muito contato. De maneira geral, Dolando é um bom chefe — continuou Tholie —, exceto no que diz respeito a cabeças-chatas. E é fácil acirrar outras pessoas contra eles. Mas um ódio assim tão forte não pode senão deixar sua marca. E acho que é sempre pior para a pessoa que odeia.

— Acho que deveríamos ir descansar. É tempo. Você deve estar exausta, Ayla.

Jondalar, Markeno e Ayla, com Lobo nos calcanhares, andaram juntos os poucos passos que os separavam da habitação ao lado. Markeno arranhou a cortina da porta e esperou. Em vez de perguntar quem era, Dolando veio até a entrada e afastou a cortina. Depois ficou de pé na sombra, encarando-os.

—    Acho, Dolando, que Roshario vai ter uma noite difícil. Gostaria de estar junto dela.

O homem baixou os olhos, depois olhou a mulher na cama, e disse:

—    Entre.

—    E eu quero ficar com Ayla — disse Jondalar. Estava decidido a não deixá-la só com o homem que a havia insultado e ameaçado, mesmo se ele parecia calmo agora.

Dolando concordou de cabeça e abriu caminho.

— Quanto a mim — disse Markeno —, vim perguntar a Darvo se ele não quer passar a noite conosco.

— Acho que ele deveria — disse Dolando. — Darvo, pegue suas coisas e vá dormir com Markeno esta noite.

O rapaz se levantou, recolheu peles e cobertas nos braços e marchou para a porta. Ayla achou que ele parecia aliviado, mas não feliz.

Lobo já se instalara no seu canto, Ayla foi até os fundos da habitação, que estava às escuras, para ver Roshario.

—    Você terá uma lâmpada ou um archote, Dolando? Preciso de um pouco mais de luz — disse.

—    E talvez um colchão. Devo pedir que Tholie providencie alguma coisa? — disse Jondalar.

Dolando teria preferido estar sozinho, no escuro, mas se Roshario acordasse com dores, sabia que a mulher saberia muito melhor do que ele o que fazer. Tirou de uma prateleira uma tigela de arenito, rasa, feita pelo processo de ir batendo no material e desbastando-o com outra pedra.

— As coisas de dormir estão aqui — disse a Jondalar. — Há algum oleo para a lâmpada na caixa junto da porta, mas vou ter de fazer um fogo para acender a lâmpada. O fogo apagou.

— Eu posso fazer o fogo — disse Ayla — se você me disser onde guarda sua isca e seus gravetos.

Ele lhe deu o material inflamável de que ela precisava, juntamente com um bastão curto, preto de carvão em uma das extremidades, e uma peça chata de madeira com diversos buracos redondos queimados nela pela operação de acender fogo outras vezes, mas Ayla não se utilizou dessas coisas. Em vez disso, tirou duas pedras de uma bolsa que tinha pendurada na cintura. Dolando viu, com curiosidade, que ela fazia uma pequena pilha com as aparas de madeira e, depois, ficando bem junto delas, batia uma pedra contra a outra. Para surpresa sua, uma fagulha grande e brilhante saltou das pedras para a serragem, e logo subiu uma fina espiral de fumaça. Ayla soprou bem de perto, e as aparas de madeira ficaram em chamas.

— Como você faz isso? — perguntou, surpreso, e com uma ponta de susto na voz. Uma coisa assim tão espantosa, e desconhecida, sempre gerava algum temor. Até onde iriam as artes de Xamã daquela mulher?, pensava.

— São pedras-de-fogo — disse Ayla, juntando alguns gravetos ao fogo, depois alguns pedaços maiores de madeira.

— Ayla descobriu isso quando morou naquele vale — disse Jondalar. — Havia muitas nas margens do rio, e eu também apanhei algumas. Posso mostrá-las amanhã e, até, dar-lhe umas. Assim, ficará sabendo como são. Deve haver coisa semelhante por aqui. Como vê, fica muito mais fácil fazer fogo por esse processo.

—    Onde está mesmo o óleo? — perguntou Ayla.

—    Na caixa perto da porta. Vou buscá-lo. Os pavios estão lá, também — disse Dolando. Ele pôs na tigela um bocado de sebo branco e mole... gordura que fora clarificada fervendo em água e escumada da superfície depois de fria... fincou nele, junto da borda, uma torcida feita de líquen seco, pegou um graveto aceso e tocou nele. O fogo estalou, espirrou um pouco, depois uma poça de óleo se formou no fundo da tigela e foi absorvida pelo pavio de líquen, o que resultou numa chama firme que clareou melhor a habitação.

Ayla pôs pedras de cozinhar no fogo, depois olhou o nível de água no reservatório. Fez menção de sair com ele, mas Dolando o tomou de suas mãos e foi buscar água. Enquanto ele estava ausente, Ayla e Jondalar arrumaram as cobertas de cama numa plataforma de dormir. Depois, Ayla remexeu nos seus pacotes de ervas secas, aromáticas e medicinais, para preparar uma infusão relaxante para todos eles. Deixou outros ingredientes em algumas de suas próprias tigelas para Rosnado, quando acordasse. Pouco depois de Dolando trazer a água, serviu uma xícara de chá para cada um.

Ficaram sentados em silêncio, sorvendo a bebida quente. Aquilo era um alívio para Dolando. Receara que quisessem conversar e não estava com disposição para isso. Ayla não estava calada por deliberação, não sabia o que dizer. Viera no interesse de Roshario, mas preferia estar longe dali. A ideia de passar a noite debaixo do teto de um homem que vociferara de raiva contra ela não lhe era agradável, e estava grata a Jondalar por haver insistido em fazer-lhe companhia. Ele, por seu lado, também não tinha o que dizer e esperava que alguém começasse. Isso não ocorreu, e ele sentiu que o mutismo era, talvez, nas circunstâncias apropriado.

Acabara de tomar o chá e Roshario começou a gemer e debater-se na cama. Ayla pegou a lâmpada e foi vê-la. Pôs a luz num banco de madeira, que servia de criado-mudo, empurrando para o lado uma cesta molhada com os cheirosos goivos dentro. O braço da mulher estava inchado e quente, mesmo através das ataduras, que estavam, agora, apertadas. A luz e o toque dos dedos de Ayla despertaram a mulher. Seus olhos, vidrados de dor entraram em foco e ela reconheceu Ayla. Fez um esforço para sorrir-lhe.

— É bom que tenha acordado — disse a outra. — Tenho de tirar a tipóia e afrouxar as bandagens e talas. Você tinha um sono agitado e precisa manter o braço imobilizado. Vou fazer uma nova compressa, para reduzir a inchação, mas tenho de preparar primeiro algo para a dor. Acha que posso deixá-la por um momento?

— Sim, vá providenciar o que for preciso. Dolando pode ficar e conversar comigo — disse, olhando por cima do ombro de Ayla, para um dos homens que estavam atrás dela.

—    Jondalar, você poderia ajudar Ayla.

Ele concordou. Era óbvio que Roshario queria falar com Dolando em particular, e para ele era um desafogo sair. Apanhou mais lenha, e em seguida, mais água. E mais pedras chatas, das que o rio ia polindo no seu curso e que serviam para aquecer líquidos. Uma das pedras da casa rachara na hora do chá quando transferida da fogueira para a água fria que Dolando acabara de trazer.

Permaneceu com Ayla enquanto ela preparava a poção e o emplastro. Da casa vinha um murmúrio indistinto de vozes. Alegrava-se de não poder ouvir o que diziam. Quando Ayla acabou de tratar de Roshario todos estavam fatigados e prontos para dormir.

Na manhã seguinte Ayla despertou deliciada com o riso das crianças, que brincavam do lado de fora, e com o nariz frio de Lobo no seu rosto. Ao abrir os olhos, Lobo se pôs a ganir baixinho, olhando alternadamente para ela e para a entrada de onde vinham os sons.

—    Você quer sair e brincar com as crianças, não é? — disse ela. Lobo ganiu de novo.

Ayla abriu as cobertas e se sentou, notando que Jondalar esparramado ao lado dela e dormindo a sono solto. Espreguiçou-se esfregou os olhos, e lançou um olhar na direção de Roshario. A doente dormia. Tinha muitas noites insones a recuperar. Dolando, embrulhado numa pele dormia no chão, ao lado da cama da mulher. Ele também passa noites acordado.

Quando Ayla se levantou, Lobo correu e esperou-a na porta, torcendo o corpo na expectativa do que o esperava do lado de fora. Mas Ayla saiu sozinha, erguendo e baixando rapidamente a cortina, depois de dizer-lhe que esperasse. Não queria surpreender ou assustar as pessoas com a irrupção súbita do animal. Viu diversas crianças, de várias idades, na piscina formada pela queda-d'água, juntamente com certo número de mulheres. Todos tomavam banho. Chamando Lobo e mandando que ficasse junto dela, Ayla se dirigiu para elas. Shamio deu gritos quando os viu.

— Venha, Lobinho, você também deve tomar banho.

Lobo gania, olhando para Ayla.

Tholie, alguém se importará se Lobo entrar na piscina? Parece que Shamio quer brincar com ele.

Eu já estou de saída — disse a mulher —, mas ela pode ficar e brincar com ele. Se os outros não se incomodarem.

Ninguém fez objeção, e Ayla fez sinal a Lobo.

— Pode ir.

O animal saltou na água e foi ruidosamente direto a Shamio.

Uma das mulheres, que saía com Tholie, sorriu.

— Quisera eu que meus filhos me obedecessem como ele obedece a você. Como consegue isso?

— Leva tempo. Tem de repetir tudo muitas vezes, e é difícil fazer de começo que ele entenda o que a gente quer. Mas, uma vez aprendida uma coisa, ele não esquece mais. É, de fato, muito esperto. Durante toda a viagem eu o ensinei, diariamente.

— É como ensinar criança, então — disse Tholie. — Só que nunca imaginei que um lobo pudesse aprender alguma coisa. Como você consegue?

— Sei que ele pode assustar quem não o conhece, e não quero que isso aconteça — disse Ayla. Vendo Tholie sair do banho e secar-se, notou que ela estava grávida. Não de muitos meses ainda, de modo que a roupa escondia a barriga. Mas não havia a menor dúvida que estava grávida.

— Gostaria de tomar banho, mas antes tenho de urinar — disse Ayla.

Se você seguir aquela trilha que passa atrás das casas, encontrará um fosso. Fica bem no alto, junto do paredão, de modo que cai tudo do outro lado quando chove. Esse caminho é mais curto do que se der a volta — disse Tholie.

Ayla começou a chamar Lobo, depois hesitou. Como de costume, ele tinha mijado, levantando a perna contra um arbusto qualquer — ela o ensinara a fazer fora mas não a usar lugares especiais. Via as crianças brincando com ele e sabia que ele gostaria de ficar. Mas não estava certa se deveria deixá-lo. Tudo corria bem, sem duvida, mas não sabia a reação das mães.

— Acho que pode deixá-lo aqui — disse Tholie. — Eu o vi com as crianças, e você tem razão. Depois, elas ficarão desapontadas se você o levar tão depressa.

Ayla sorriu.

— Obrigada. Volto já.

Começou a subir pela trilha que cortava em diagonal a rampa mais íngreme em direção a uma das paredes, depois infletia na direção da outra. Quando alcançou a última parede, atravessou-a usando degraus feitos de pequenas seções de toras de madeira. As toras eram fixadas por estacas enterradas no chão à frente deles, para que não rolassem, e escoradas, por trás, com terra e pedras.

A trincheira e uma área plana à sua frente, em que havia uma pequena cerca e troncos lisos e roliços em que podia sentar-se, haviam sido escavadas no solo inclinado do outro lado do muro. O cheiro e as moscas tornavam óbvio o propósito da instalação, mas o sol que brilhava através das árvores e o canto dos passarinhos tornavam o lugar agradável. Ayla resolveu, até, esvaziar também os intestinos. Viu no chão uma pilha de musgo seco e adivinhou sua utilidade. Não arranhava e era bastante absorvente. Quando acabou, viu que terra fresca havia sido, recentemente despejada no fundo da fossa.

A trilha continuava, descendo agora, e Ayla decidiu caminhar mais um pouco por ela. A região se parecia tanto com a da caverna em que crescera que era como se já tivesse estado ali. Sentiu uma sensação esquisita. Viu uma formação rochosa que lhe parecia familiar, um espaço aberto na crista de uma elevação, uma vegetação conhecida. Parou para colher algumas avelãs de uma moita que crescia contra uma parede rochosa e não pôde resistir ao impulso de afastar os ramos mais baixos e ver se havia uma pequena caverna atrás deles.

Encontrou outra grande formação de pés de amora-preta, com longos ramos caídos, pesados de bagas maduras. Empanturrou-se de amoras, perguntando-se o que teria acontecido com as outras, apanhadas na véspera. Depois lembrou-se de haver comido umas poucas no banquete de boas-vindas. Resolveu voltar para apanhar amoras para Roshario. E, de chofre, lembrou-se que tinha de ir embora. A mulher podia estar acordando e precisando de atenção. A mata lhe parecia tão familiar que, por um momento, esquecera onde estava. Sentia-se menina outra vez, correndo pelas colinas, com a desculpa de procurar plantas medicinais para Iza.

Talvez por ser aquilo uma espécie de segunda natureza, talvez pelo costume de prestar mais atenção às plantas na volta para ter alguma coisa que mostrar como resultado da exploração, o fato é que prestou mais atenção à vegetação local do que na ida.

Quase gritou de excitação e alívio quando deu com as frágeis trepadeiras amarelas de folhas e flores miúdas. Estavam, como sempre, enroladas em outras plantas, mortas e secas, estranguladas pelo fio-de-ouro.

É ela! O fio-de-ouro, a planta mágica de lza, pensou. E disso que preciso para o meu chá matinal. Com isso, nenhum bebê crescerá dentro de mim. E há grande quantidade por aqui. Meu estoque já andava tão reduzido que talvez não desse para toda a Jornada. Será que vou encontrar também raiz- de-salva-de-antílope por aqui? Tem de haver. Depois volto para procurar.

Achou ainda uma planta de largas folhas basais e teceu-as com gravetos para fazer uma cesta de emergência. Apanhou depois tanto das plantinhas quanto pôde colher, sem privar dela toda a área. Iza lhe ensinara muito tempo atrás que tinha de deixar sempre alguma para assegurar a floração do ano seguinte.

Fez na volta um pequeno desvio por um trecho mais denso e umbro-so de floresta, para ver se encontrava mais da planta branca e serosa que servia para aliviar os olhos dos cavalos. Eles já estavam melhores, mas mesmo assim, procurou debaixo das árvores com todo o cuidado. Com tanto que lhe era familiar em volta, mais aquilo não seria surpresa nenhuma. Quando viu de fato as folhas verdes da planta que buscava, prendeu a respiração e sentiu um frio na espinha.

 

Ayla se deixou cair no chão úmido e ficou sentada olhando as plantas, respirando o ar perfumado da floresta, deixando que as memórias a invadissem, de roldão.

Mesmo no Clã o segredo da raiz era pouco divulgado. A receita vinha da linhagem de Iza, e só os que descendiam dos mesmos antepassados — ou alguém a quem ela o tivesse ensinado — conheciam o complicado processo exigido para chegar ao resultado final. Ayla se lembrava de Iza explicando o método, pouco usual, de secar a planta, de modo a que suas propriedades se concentrassem nas raízes, e lembrava-se de que elas ficavam mais fortes com longa armazenagem, desde que mantidas em lugar escuro.

Embora Iza lhe tivesse mostrado repetidamente, e com todo o cuidado como preparar a beberagem a partir das raízes desidratadas, não permitira que Ayla a fizesse antes da ida para a Reunião dos Clãs. O remédio não devia ser usado sem o seu ritual apropriado, insistira Iza, e era por demais sagrado para ser jogado fora. Por isso, Ayla ingerira a borra encontrada no fundo da antiga vasilha de Iza, depois que ela o preparara para os mog-urs (seu consumo era defeso às mulheres). Assim, não teria de ser jogada fora. Ela não andava muito certa da cabeça naquela época. Muita coisa andava acontecendo ao mesmo tempo, outras bebidas lhe toldavam a mente, e a infusão de raízes era tão forte que mesmo o pouco que provara no curso da fabricação tivera um efeito poderoso.

Ela metera por entre os estreitos corredores das cavernas, e quando se viu de súbito cara a cara com Creb e os demais mog-urs não poderia ter recuado, nem que o tivesse querido. Foi então que a coisa aconteceu. De algum modo, Creb sentira a sua presença e ele a levara com o grupo, de volta às memórias. Não fora isso, e ela teria ficado perdida para sempre naquele vazio negro, mas algo aconteceu naquela noite que mudou Creb. Ele não foi mais O Mog-ur dali por diante, perdeu a vontade ou o ânimo, até aquela última vez.

Ayla levara consigo umas poucas raízes ao deixar o Clã. Estavam na sua bolsa de remédios, na sacola vermelha — a cor sagrada. Mamute ficara muito curioso quando ela lhe falou das propriedades da planta. Mas ele não tinha os poderes do Mog-ur, ou talvez a planta afetasse os Outros de modo diferente. Ela e Mamute foram arrastados para o vazio negro e quase não puderam voltar.

Sentada, agora, no chão, contemplando a planta aparentemente inócua, que podia ser convertida em uma poção tão poderosa, ela rememorou a experiência. E, de súbito, estremeceu com um segundo calafrio e sentiu que tudo escurecia, como se uma nuvem tivesse passado no céu E aí já não recordava apenas: revivia aquela estranha Jornada cora o Mamute. A verde mata esmaeceu e ficou imprecisa, e ela se sentiu puxada para a memória daquele escuro abrigo subterrâneo de outros tempos. Sentiu no fundo da garganta o travo escuro e frio da marga e dos fungos da velha floresta primeva. Sentiu-se ir outra vez a grande velocidade pelos estranhos mundos por onde andara com o Mamute, e sentiu de novo o terror do vazio negro.

Depois, fraca, remota, a voz de Jondalar a havia alcançado, cheia de um medo agoniado e de amor. E ela e Mamute foram trazidos para o presente pela força do amor dele e da sua privação. E num momento estava de volta, gelada até os ossos, apesar do calor do sol daquele fim de verão.

— Jondalar nos salvou! — disse em voz alta. Agora, porque na época não se dera conta por inteiro daquilo. Ele foi a primeira pessoa que ela viu ao abrir os olhos, mas logo desapareceu, e Renac surgiu em seu lugar, com uma bebida quente para reanimá-la. De Mamute foi que ouviu que alguém os ajudara, chamando. Ela não soube, então, que se tratava de Jondalar, mas agora sabia com clareza, como se estivesse escrito que um dia teria de sabê-lo.

O velho lhe dissera que não mais usasse a raiz, nunca mais, avisando-a do perigo que corria. Se lhe desobedecesse e tomasse a droga, então devia ter alguém por perto que pudesse acordá-la. A raiz, disse, era pior que mortal: podia roubar-lhe o espírito, e ela ficaria errante na treva e no vácuo sem jamais retornar à Grande Mãe Terra. Aquilo não importara muito na ocasião: ela não tinha mais raízes. Usara as últimas com Mamute. Mas agora, diante dos seus olhos, estava a planta.

Porque estava ali não queria dizer que a tivesse de apanhar, pensou. Se a deixasse ficar, não teria de importar-se nunca com o perigo de usá-la e perder o espírito. A bebida, afinal de contas, era proibida. Mulheres não deviam tomá-la. Era só para mog-urs, que lidavam com o mundo dos espíritos, não para curandeiras, cujo ofício era apenas prepará-la. Mas ela já provara a droga duas vezes. Além disso, Broud a excomungara: para o Clã ela estava morta. Quem então poderia proibir-lhe, independe do que fosse?

Ayla sequer se perguntou o que estava fazendo quando pegou um galho quebrado e o usou como pau-de-cavouco para retirar do solo, com cuidado, algumas das plantas sem danificar-lhes as raízes. Ela era uma das poucas pessoas no mundo a conhecer-lhes as propriedades. Não podia deixá-las ali, simplesmente. Não que tivesse qualquer intenção definida de fazer uso delas. Mas colher plantas assim, gratuitamente, era normal para ela. Tinha muitas poções que talvez não viesse jamais a usar. Tinham, todas, usos medicinais em potencial. Mesmo o fio-de-ouro de Iza, contra as essências capazes de impregnar uma mulher, servia também para picadas de insetos quando aplicado externamente. Mas aquela era diferente. Não servia para mais nada. Era mágica para o espírito.

— Ah! Aí está você. Já estávamos preocupados — disse Tholie, logo que a avistou. — Jondalar disse que se você não viesse ia mandar Lobo para buscá-la.

— Por que demorou tanto? — perguntou Jondalar antes que ela pudesse responder. — Tholie me disse que você voltava logo. — Na aflição, falara em Zelandonii inadvertidamente. E Ayla viu que ele estivera, de fato, ansioso.

— A vereda não acabava mais, e resolvi seguir em frente. Então, encontrei algumas plantas que andava procurando — disse Ayla, mostrando o material que tinha colhido. — Esta área é tão parecida com aquela em que me criei! Não via isto desde que saí de lá.

— E que importância têm que você não pôde deixar de apanhá-las agora? Esta aqui, para que serve? — indagou Jondalar, mostrando o fio-de-ouro.

Ayla já o conhecia bem para saber que o tom agressivo era apenas resultado de sua preocupação, mas a pergunta a pegou de surpresa.

—    Bom... Serve para picadas... mordidas — disse, corando. Não estava mentindo, mas a resposta era incompleta. Ayla fora criada como mulher do Clã, e mulheres do Clã não podiam recusar responder uma pergunta direta, sobretudo se feita por um homem. Mas Iza lhe proibira Terminantemente falar dos poderes daquele fio-de-ouro a qualquer pessoa, principalmente a um homem. Iza nunca deixaria de responder à pergunta de Jondalar — não teria podido resistir-lhe —, mas não teria ocasião de ser posta à prova. Nenhum homem do Clã ousaria submeter uma curandeira a um interrogatório sobre suas ervas ou sobre o exercício da sua profissão. O que Iza dissera era que Ayla não desse a informação voluntariamente.

Calar era aceitável, mas Ayla sabia que a permissão se dava por cortesia ou para garantir uma certa privacidade. Mas, no caso, ela fora mais além. Estava sonegando informação deliberadamente. Podia ministrar o remédio, quando achasse isso apropriado, mas sabendo, por Iza, que podia ser perigoso para ela se os homens a soubessem capaz de derrotar os mais fortes espíritos e impedir a fecundação. Aquilo era conhecimento secreto, privativo de curandeiras.   

Um pensamento ocorreu a Ayla. Se o remédio de Iza podia impedir a Mãe de abençoar uma mulher com um filho, podia ser ele mais forte que a Mãe? Mas como? E se Ela criara todas as plantas, não teria criado essa, com tais propriedades, de propósito? Para ajudar as mulheres se a gravidez fosse difícil ou perigosa para elas? Mas então por que um maior número de mulheres não tinha ciência do fato? Talvez elas tivessem As plantas cresciam tão perto do acampamento que aquelas mulheres Xaramudói podiam estar familiarizadas com os seus efeitos. Podia perguntar. Mas talvez não lhes respondessem. E se não sabiam de nada, como fazer uma pergunta daquelas sem deixar escapar o segredo? E por que não? Se a intenção da Mãe fora que as mulheres se servissem da planta, por que fraudar-lhe a intenção? A cabeça de Ayla fervia de perguntas, para as quais ela não tinha respostas.

— Por que precisa de plantas para picadas logo agora? — perguntou Jondalar, ainda incerto.

— Não tive a intenção de deixá-lo preocupado — disse Ayla. E sorriu. — Mas esta área é muito parecida com aquela onde fui criada. Não resisti ao desejo de explorá-la, só isso.

E ele teve de sorrir também.

— Achou também amoras-pretas, não foi? Agora sei por que levou tanto tempo! Não conheço ninguém que goste tanto de amoras quanto você. — Ele percebera que ela estava contrafeita e exultava imaginando haver descoberto o motivo.

— Bem, sim, comi algumas. Talvez a gente possa ir lá de novo e colher amoras para todo mundo. Estão maduras e deliciosas. E há outras coisas que quero ver se encontro.

— Acho que com você aqui vamos ter sempre quantas amoras-pretas quisermos! — disse Jondalar, beijando-lhe a boca tingida de púrpura.

Ele estava tão contente por tê-la de volta, sã e salva, e tão contente com a própria esperteza — descobrir seu fraco por amoras —, que Ayla se limitou a sorrir. Que Jondalar pensasse o que quisesse. Ela gostava, sim, de amoras silvestres, mas seu fraco mesmo era por ele. E sentiu, de repente, tanto amor por Jondalar que desejou que estivessem sozinhos. Queria abraçá-lo, tocá-lo, dar-lhe os Prazeres e senti-lo dando-lhe os Prazeres também, com a incrível mestria de sempre. Esses sentimentos refletiram-se nos seus olhos, e os olhos de Jondalar — tão maravilhosamente azuis — responderam-lhe com maior ardor ainda. Ela sentiu aquilo tão forte por dentro que teve de dar-lhe as costas para acalmar-se.

— Como vai Roshario? Ela já está acordada?

—    Sim, e disse que sente fome. Carolio veio do desembarcadouro e está preparando alguma coisa para nós, mas pensei que deveríamos esperar a sua volta para dar de comer à doente.


— Vou vê-la, então. Depois gostaria de nadar um pouco — disse Ayla, dirigindo-se para a casa. No mesmo momento, Dolando ergueu a cortina da porta para sair, e Lobo veio atrás dele, aos saltos. Correu para Ayla pôs as patas nos ombros dela e lambeu-lhe o queixo.

— Lobo! Quieto! Estou com as mãos cheias.

— Ele parece alegre por vê-la — disse Dolando. E, depois de uma breve hesitação. — Eu também estou, Ayla. Roshario precisa de você.

Era uma espécie de concessão. Pelo menos a admissão de que não queria mantê-la afastada de sua mulher, apesar da explosão da véspera. Ela sentira isso quando ele a admitira outra vez em casa, mas nada fora expresso em palavras até então.

— Você vai precisar de alguma coisa? Posso ajudá-la? — acrescentou vendo que ela trazia uma braçada de plantas.

— Gostaria de secar essas plantas, mas para isso vou precisar de um ripado. Posso fazer um, desde que tenha sarrafos, e algum fio para amarrá-los.

— Acho que posso encontrar coisa melhor. O Xamã costumava secar plantas para os seus remédios, e sei onde estão as grades de madeira que ele usava. Você quer uma?

— Seria perfeito, Dolando — respondeu ela. O homem fez um gesto de assentimento com a cabeça e se foi. Ayla entrou. Sorriu ao ver que Roshario estava sentada na cama. Colocou as plantas no chão e foi até o leito.

— Eu não sabia que Lobo estava aqui dentro. Espero que ele não tenha incomodado vocês.

— Não. Ele ficou de guarda, todo o tempo. Logo que entrou... sabe passar pela cortina... veio logo me ver. Eu lhe dei uns tapinhas na cabeça, e ele foi sentar-se naquele canto ali. Ficou lá o tempo todo. É o lugar dele, agora, sabe? — disse Roshario.

— Você dormiu bem? — perguntou Ayla, ajeitando a cama e escorando a mulher com almofadas e peles para que ficasse mais confortável.

— Melhor do que jamais me senti antes! Principalmente depois que eu e Dolando tivemos uma boa conversa. — Encarou, firme, a outra mulher, aquela loura alta que Jondalar trouxera com ele, criara tamanho rebuliço na vida de todos, e precipitara tantas mudanças em tão curto tempo. — Na verdade, Ayla, ele não quis dizer aquilo a respeito de você, mas ele anda nervoso. Tem vivido há anos com a ideia fixa da morte de Doraldo. Sempre foi incapaz de tirá-la da cabeça. Ele não sabia das circunstancias até a noite passada. Agora está procurando reconciliar anos de ódio e violência para com uma gente que ele tinha na conta de animais ferozes com tudo o que surgiu de novo sobre eles, inclusive você.

— E Quanto a você mesma, Roshario? Afinal, ele era seu filho também.

— Eu os odiava tanto quanto Dolando, mas então a mãe de Jetamio morreu, e nos a adotamos. Ela não tomou propriamente o lugar de Doraldo, mas estava tão fraquinha, e exigiu tantos cuidados, que não tive tempo de ficar remoendo a morte do meu filho. Quando passei a considerá-la como filha, deixei a memória dele em paz. Dolando também passou a amar Jetamio, mas meninos são alguma coisa especial para os pais, principalmente meninos nascidos para o seu lar. Ele não se conformava com o fato de que Doraldo tivesse morrido justamente quando chagara à maioridade e tinha a vida à sua frente. — Roshario estava com os olhos marejados de água. — E agora Jetamio também se foi. Tive até medo de criar Darvalo, com medo que ele também morresse jovem.

—    Não é fácil perder um filho — disse Ayla —, ou uma filha.

Roshario imaginou ter visto uma sombra de dor passar pelo rosto da outra, quando ela se ergueu e foi até o fogo para começar os seus preparativos. Quando voltou, trazia os remédios que ela devia tomar naquelas interessantes tigelinhas de madeira. Roshario nunca vira vasilhas como aquelas. Muitos dos seus utensílios e ferramentas eram decorados com entalhes ou pinturas, principalmente os de Xamã. As tigelas de Ayla tinham acabamento delicado, e lindas formas, mas eram absolutamente simples. Não tinham decoração de nenhuma espécie, exceto pelo veio da própria madeira.

— Sente dor agora? — perguntou Ayla, removendo as ataduras.

— Alguma. Mas muito menos do que antes.

—    A inchação está cedendo — disse Ayla, estudando o braço. — Isso é bom sinal. Vou pôr de novo as talas e a tipóia, para o caso de você querer levantar-se por algum tempo. De noite, porei novo emplastro. E quando não estiver mais inchado, enrolo o braço em casca de bétula, que não deve ser tirada até que o osso fique curado. Vai levar pelo menos uma lua inteira e metade de outra — explicou Ayla, removendo com grande perícia a pele macia e úmida de camurça e examinando a equimose causada pelas suas manipulações do dia anterior.

—    Casca de bétula? — perguntou Roshario.

— Sim. Quando molhada em água quente, ela amolece e fica fácil de moldar e ajustar. Depois endurece quando seca e conserva seu braço rígido, de modo que o osso fica reto e firme, mesmo que você saia cama e ande por aí.

— Quer dizer que vou poder fazer alguma coisa em vez de ficar deitada? — disse Roshario com uma expressão de alegria no rosto.

— Só poderá utilizar o outro braço, mas não há motivo por que não possa ficar de pé. Era a dor que a mantinha na cama.

Roshario concordou.

— Era mesmo.

—    Há outra coisa que eu queria que fizesse antes de pôr as ataduras de volta. Desejaria que movesse um pouco os dedos. Talvez doa um pouco.

Ayla procurou disfarçar sua preocupação. Se houvesse algum dano interno que impedisse Roshario de mexer com os dedos àquela altura isso poderia ser um sinal de que, mais tarde, teria apenas o uso limitado do braço. Ficaram de olhos fixos na mão, e sorriram, ambas, quando ela ergueu o pai-de-todos um pouco e, em seguida, os demais.

— Muito bom! Agora, será capaz de curvar um pouco os dedos?

— Posso senti-los perfeitamente! — disse Roshario, flexionando os dedos.

— E será que dói muito fechar a mão?

Ayla ficou olhando, e Roshario fechou a mão devagarinho.

— Dói, mas é possível.

— Muito bom mesmo. E até onde pode mover a mão? Poderá dobrá-la no pulso?

Roshario fez uma careta com o esforço e aspirou ar através dos dentes cerrados. Mas dobrou a mão para a frente.

— Agora chega — disse Ayla.

Ambas se voltaram para a porta, vendo que Lobo anunciava a chegada de alguém. Era Jondalar. Lobo deu um latido apenas, que mais parecia uma tosse rouca, e sorriu quando ele entrou.

— Vim ver se há alguma coisa que eu possa fazer. Quer que ajude Roshario a sair? — perguntou. Lançara um olhar para o braço descoberto da mulher e tirara os olhos depressa. Aquela coisa disforme e manchada não lhe parecia grande coisa.

— No momento, não precisamos de nada. Mas nos próximos dias gostaria muito de algumas tiras de casca de bétula, bem largas. Se você encontrar alguma árvore de porte guarde na cabeça a sua localização para mostrar-me onde fica. É para manter o braço de Roshario duro enquanto sara.

— Você não me explicou por que me mandou mexer os dedos, Ayla — disse Roshario.

Ayla sorriu.

— Significa que são boas as chances de que você venha a ter o uso normal do seu braço outra vez, ou pelo menos quase normal.

— Que boa notícia! — exclamou Dolando, que ouviu tudo ao entrar com uma espécie de grelha de madeira. Segurava-a por uma ponta e Darvalo por outra. — Isto aqui serve?

— Serve sim, e foi bom que vocês a tivessem trazido para dentro. Algumas das minhas plantas têm de secar no escuro.

— Carolio mandou dizer que a nossa refeição da manhã está pronta — disse o rapaz. — Ela quer saber se vocês não preferem comer lá fora. O dia está muito bonito.

— Bem, eu gostaria — disse Roshario. Depois se voltou para Ayla. — Se você estiver de acordo, é claro.

— Deixe-me pôr o braço na tipóia primeiro. Depois pode andar, ajudada por Dolando — disse Ayla.

O líder dos Xamudói abriu o rosto num sorriso que para ele constituía raridade.

— E se ninguém fizer objeçâo, vou dar um mergulho antes de comer.

— Você me garante que isso aí é um barco? — disse Markeno, ajudando Jondalar a pôr de pé contra a parede o barco redondo e os dois mastro. — Como é que você controla uma coisa dessas?


Não é tão fácil de controlar quanto os barcos de vocês e serve mais para atravessar rios. Os remos dão para fazer isso a contento. Naturalmente, como temos os cavalos, deixamos que eles o puxem — explicou Jondalar.

Ambos olharam para o campo, onde Ayla escovava Huiin. Race estava junto delas. Jondalar já o limpara mais cedo, e vira com prazer que as áreas onde o pêlo caíra durante a travessia das planícies quentes já se estavam recobrindo. Ayla tratara dos olhos dos dois cavalos. Agora que estavam num lugar mais fresco e mais alto, havia uma grande melhor.

A domesticação dos cavalos é o que mais me impressiona — disse Markeno. — Nunca imaginei que eles fossem ficar junto das pessoas mas esses dois parecem gostar disso. Embora eu deva confessar que fiquei mais surpreso com a presença do lobo, de início.

Agora você já se acostumou. Ayla o conservou sempre junto dela, achando que ele causava mais medo que os cavalos.

Viram que Tholie caminhava ao encontro de Ayla, com Shamio e Lobo correndo à volta dela.

Shamio adora Lobo — disse Markeno. — Olhe! Eu devia ter medo, aquele animal pode estraçalhar uma criança, mas Lobo não me assusta mais. Ele está brincando com a menina!

Os cavalos também sabem brincar. Mas o que você não pode imaginar é a sensação de montar e viajar a cavalo. Pode experimentar, se quiser, mas aqui não há muito espaço para que eles corram de verdade.

Não faz mal, Jondalar, acho que fico mesmo com os meus barcos — disse Markeno. Quando um homem apareceu na quina do penhasco, acrescentou: — Lá vem Carlono. Acho que é tempo de Ayla dar um passeio em um deles.

Todos seguiram para o lugar onde estavam os cavalos. Depois foram juntos para a borda do paredão e ficaram no lugar de onde o pequeno riacho se precipitava no Rio da Grande Mãe, embaixo.

Você acha mesmo que ela deve tentar descer assim, a pique? — disse Jondalar. — É muito íngreme, leva tempo, e dá medo. Eu próprio hesito. Há muito tempo que não faço isso.

Você mesmo disse que queria dar à moça a oportunidade de andar num barco de verdade, Jondalar — disse Markeno. — E talvez ela goste de ver o nosso desembarcadouro.

Não é tão difícil — disse Tholie. — Há apoios para os pés, e cordas. Posso mostrar-lhe como fazer.

Ela não precisa descer a pique — disse Carlono. — Podemos baixá-la na cesta dos suprimentos. Foi como você veio da primeira Jondalar.

Talvez fosse melhor — disse Jondalar.

Pois então venha comigo. Mandaremos a cesta para cima.

Ayla tinha assistido à discussão contemplando o rio, longe, e o caminho, tão precário, que eles usavam para descer — o caminho em que Roshario havia caído, embora estivesse inteiramente familiarizada com ele. Viu as fortes cordas trançadas, presas a cavilhas de madeira enterradas em fendas do rochedo, a partir do topo, onde estavam. Parte da descida vertical era lavada pela torrente, que batia, ao cair, em mais de uma saliência.

Viu que Carlono começava a descida com aparente facilidade, agarrando-se à corda com uma das mãos enquanto pousava o pé na primeira e estreita aba. Viu que Jondalar empalidecia, respirava fundo, depois ia atrás do outro, um pouco mais lentamente, porém, e com maior cautela. Entrementes, Markeno, que Shamio queria ajudar, apanhava um grande rolo de corda grossa, terminado em laço. Esse laço estava preso numa forte estaca, fincada na plataforma. A outra ponta foi lançada no espaço. Ayla ficou imaginando que espécie de fibra usavam. Nunca vira cordame tão grosso.

Pouco depois, Carlono reaparecia, com a outra ponta do cabo. Ele foi até uma segunda estaca, não muito afastada da primeira, depois começou a recolher a corda, deixando-a cair num rolo junto dele. Um objeto grande, achatado, parecido com uma cesta, logo surgiu entre as duas estacas. Cheia de curiosidade, Ayla se aproximou para vê-lo de perto.

Como as cordas, a cesta era muito resistente. O fundo chato, reforçado com madeira, era oval e tinha os lados direitos. Podia levar até uma pessoa deitada de todo o comprimento ou um esturjão de tamanho médio com a cabeça e o rabo para fora. O maior esturjão daquelas regiões, de uma das duas variedades que só existiam naquele rio e nos seus principais afluentes, alcançava nove metros de comprimento e pesava mais de 1.500 quilos. Tinha de ser cortado em mais de duas partes para subir.

A cesta dos suprimentos era içada entre duas cordas que se entrançavam nela e eram mantidas no lugar por quatro anéis de fibra, dois de cada lado. A corda descia por um anel e subia pelo outro, que lhe ficava oposto, em diagonal, do outro lado. Cruzavam no fundo. As quatro pontas da corda eram tecidas juntas e formavam uma larga alça em cima. A corda que fora lançada pela borda também passava pela mesma argola.

Pode embarcar, Ayla. Firmaremos a corda e desceremos você com cuidado — disse Markeno, calçando um par de mitenes de couro bem justas e enrolando em seguida a extremidade maior da corda em torno da segunda estaca para a descida da cesta.

Quando ela hesitou, Tholie disse:

        — Se prefere descer pela parede da rocha, vou junto, mostrando como é. Não gosto de descer na cesta.

        Ayla olhou mais uma vez a penedia. Nenhum dos dois sistemas lhe parecia convidativo.

        — Acho que vou experimentar a cesta, pela primeira vez — disse.

        Onde ficava o caminho, embaixo, e o paredão escarpado era ainda ingreme, mas se abria um pouco, o que facilitava a escalada. Pelo meio, onde estavam cravadas as cunhas de madeira, o topo do penhasco avançado para a frente em platibanda. Ayla entrou na cesta, sentou-se no fundo, e agarrou-se às bordas ate ficar com os nós dos dedos brancos.

        — Está pronta? — perguntou Carlono.

        Ayla virou a cabeça na direção dele sem largar as mãos e fez que sim com a cabeça.

        — Vamos descê-la, Markeno.

        O rapaz afrouxou a corda, e Carlono guiou a cesta para o vazio enquanto Markeno controlava o ritmo da descida, deixando que a corda fosse passando por suas mãos enluvadas de couro, a laçada no alto da cesta escorregava ao longo da corda pesada, e Ayla, suspensa no espaço por cima do desembarcadouro, descia devagar.

        O sistema era simples, mas eficiente. Era movido abraço, mas a cesta, embora forte, não era pesada, de modo que uma pessoa apenas podia manobrar cargas bastante grandes. Com mais de uma pessoa nos comandos, até cargas pesadas subiam.

        Quando a cesta passou a beira do barranco, Ayla fechou os olhos. Agarrada à borda, sentia o coração bater nos ouvidos. Mas quando percebeu que descia suavemente, abriu os olhos, depois olhou em volta, tomada de estupor. A visão que tinha era de uma perspectiva que jamais tivera antes e que, provavelmente, jamais teria de novo.

        Dependurada por cima do grande rio, ao lado da parede do despenhadeiro, sentia-se como que flutuando no ar. O muro rochoso do outro lado do rio ficava a pouco mais de um quilómetro de distância, mas lhe parecia muito mais próximo — embora no Portão fossem ainda muito mais juntos um do outro. O rio ali era reto, e vendo-o à direita e à esquerda, naquela grande extensão, podia sentir a sua força. Quando já estava bem perto do chão, e olhou para cima, viu uma nuvenzinha branca no limite da rocha e duas figuras — uma bem pequena — mais o lobo, que olhavam para baixo. Acenou. Depois, aterrissou com um pequeno impacto, enquanto ainda olhava para o alto.

        Quando viu a expressão sorridente de Jondalar, comentou.

        — Foi muito excitante.

        —    E espetacular, não é mesmo? — disse ele, ajudando-a a sair da gôndola.

        — Havia muita gente à espera, mas ela estava mais interessada no lugar que nas pessoas. Sentia um movimento debaixo dos pés quando pisou as pranchas de madeira do desembarcadouro e viu que estavam flutuando em cima da água. Era um cais espaçoso, capaz de acomodar diversos alojamentos de construção semelhante aos de cima, que a saliência do rochedo de arenito resguardava. E sobravam áreas livres. Havia um fogo perto, protegido por pedras, sobre uma laje de grés.

        Muitos daqueles barcos interessantes que ela já notara antes estavam atracados à plataforma flutuante. Usados pela população ribeirinha, eram estreitos e alongados e terminavam em ponta, a proa como a popa. Eram de vários tamanhos, e não havia dois que fossem exatamente iguais. Iam dos que mal tinha espaço para uma pessoa sozinha aos que podiam sentar todo um grupo.

        Ao virar-se para ver melhor, deu com dois realmente desmedidos. Tinham as proas curvas para cima de modo a formar cabeças de estranhos pássaros e eram pintados com motivos geométricos que, em conjunto, davam a impressão de penas. Havia um segundo par de olhos pintados junto da linha de flutuação. O maior dos barcos tinha, até, um dossel na sua seção mediana. Quando ela se voltou para Jondalar, a fim dr manifestar-lhe seu espanto, viu que ele fechara os olhos e tinha a testa franzida de angústia, e entendeu que o barco grande tivera algo a ver com irmão, Thonolan.

        Mas nenhum deles teve muito tempo para ver as coisas com calma e tirar conclusões. Foram arrastados pelos locais, ansiosos por mostrar aos visitantes tanto as suas embarcações, de modelo incomum, quanto a sua perícia em marinhagem. Ayla viu que as pessoas subiam rapidamente por uma conexão semelhante a uma rampa empinada que ligava a doca ao barco. Quando a levaram até lá, compreendeu que esperavam que ela também subisse. Muita gente andava sem esforço por aquelas pranchas oscilantes, equilibrando-se com facilidade, embora o cais balançasse para um lado e o barco para outro, ao que lhe parecia. Ayla ficou muito grata pela mão que Carlono lhe estendeu.

        Sentou-se entre Markeno e Jondalar, debaixo da coberta, num banco em que teriam cabido facilmente mais pessoas. Viu que havia gente atrás e na frente, e que muitos empunhavam longos remos. Antes de perceber o que estava acontecendo, tinham desatado as amarras e estavam no meio do rio.

        A irmã de Carlono, Carolio, postada na proa do barco, começou a entoar com voz forte um canto coletivo, ritmado, que se impôs à melodia líquida do Rio da Grande Mãe. Ayla via com fascinação como os remadores venciam a corrente, intrigada com a maneira como remavam em uníssono ao ritmo de uma canção, e ficou surpresa com a rapidez e aparente facilidade com que eram impelidos rio acima.

        Na volta do rio, os lados da garganta rochosa se estreitaram. Entre os elevados paredões de rocha, que subiam, verticais, das profundezas do caudal, o som da água ficou mais alto e mais intenso. Ayla sentiu que ar era mais frio ali e mais úmido, e suas narinas captaram o cheiro molhado do rio, da vida que nele nascia e morria, tão diferente dos aromas secos e revigorantes da planície.

        Quando a passagem se alargou de novo, apareceram árvores que vinham até o limite da água nas duas margens.

        — Isto já me parece familiar — disse Jondalar. — Aquilo em frente não é o lugar onde fazem os barcos? Vamos parar lá?

        — Não desta vez. Vamos prosseguir e fazer o retorno em Meio-Peixe.

        — Meio-Peixe? — disse Ayla. — O que é isso?

        Um homem que estava sentado à sua frente virou a cabeça e riu. Ayla reconheceu o marido de Carolio.

        — Por que não pergunta a ele? — disse o homem, apontando para Jondalar.

        Ayla viu que o rosto de Jondalar ficara vermelho.

        — Foi lá que ele se tornou Meio-Ramudói. Ele nunca lhe contou a história?

        Diversas pessoas riram.

        — Por que você mesmo não conta, Barono? — disse Jondalar. — Não será a primeira vez, seguramente.

        — Jondalar está certo. Essa é uma das histórias favoritas de Barono. Carolio diz que já está cansada de ouvi-las, mas todo mundo sabe que Barono nunca se farta de uma boa história, por mais conhecida que seja.

        — Bem, você tem de admitir que foi engraçado, Jondalar — disse Barono. — Mas é a você que cabe contar o caso.

        Jondalar não pôde deixar de sorrir.

        — Engraçado para os outros, talvez. — Ayla o olhava com um sorriso intrigado. — Muito bem, eu estava aprendendo a manejar barcos pequenos — começou ele. — Tinha um arpão comigo, e comecei a subir o rio. Vi que os esturjões começavam a mover-se também na mesma direção, para a desova. Pensei que era a minha chance de pegar o primeiro sem pensar em como poderia tirar da água um peixe daquele tamanho e sem pensar no que poderia acontecer num barco tão pequeno.

        — O peixe deu trabalho a Jondalar! — disse Barono, incapaz de conter-se.

        — Eu não tinha nem certeza de poder agarrá-lo. Não estava acostumado com arpão preso a uma corda — continuou Jondalar. — Imagine o que aconteceria se estivesse.

        —    Não entendo — disse Ayla.

        — Quando você caça em terra firme e espeta alguma coisa, um gamo, por exemplo, mesmo se fere o animal só de raspão e a lança cai, e ele foge, há como ir na pista dele — explicou Carlono. — Mas não há como seguir um peixe na água. Um arpão tem farpas, viradas para trás, naturalmente, e uma corda bem forte, de modo que quando um peixe é fisgado, a ponta com a corda entra nele, e ele não fica perdido. A outro ponta da corda está amarrada ao barco.

        — Pois o peixe de Jondalar o arrastou rio acima, com barco e tudo — disse Barono, interrompendo outra vez. — Nós estávamos na margem, lá atrás, e vimos quando ele passou, como um raio, agarrado à corda que estava presa no barco. Nunca vi ninguém que fosse assim tão depressa. Foi a coisa mais engraçada! Jondalar pensava ter pegado o peixe, mas na verdade o peixe o pegou.

        — Ayla ria agora, com os outros.

        —    Quando o peixe, afinal, perdeu muito sangue e morreu, eu estava bem longe, rio acima, continuou Jondalar. — O barco estava cheio d'água, e acabei tendo de nadar até a margem. Na confusão, o barco se foi, levado pela corrente, mas o peixe encalhou num remanso. Puxei-o para a terra. Àquela altura eu já estava com muito frio, perdera minha faca, e não encontrava gravetos nem nada para fazer fogo. E eis que de repente me aparece um cabeça-chata... um rapazinho do Clã.

        Os olhos de Ayla se arregalaram. A história ganhava novos contornos.

        — Ele me conduziu até onde tinha acendido uma fogueira. Havia uma velha no acampamento dele, e eu tremia tanto que ela me deu uma pele de lobo. Depois que me aqueci, fomos juntos de volta para o rio. O cabe... o moço... pediu metade do peixe e eu o reparti de boa vontade. Ele mesmo cortou o esturjão, de comprido, e levou sua parte embora. Todo mundo que me tinha visto passar procurava por mim, e logo depois me acharam. Fizeram muita pilhéria, mas assim mesmo, como gostei de vê-los!

        — A inda acho difícil acreditar que um cabeça-chata pudesse ter carregado aquele meio peixe sozinho. Precisamos de três ou quatro homens nara levar a outra metade — disse Markeno. — Era um esturjão enorme.

        — Os homens do Clã são fortes — disse Ayla. — Mas eu não sabia que houvesse gente do Clã por aqui. Para mim, todos viviam na península.

        —    Havia muitos, na outra margem — disse Barono.

        — E o que aconteceu com eles? — perguntou Ayla.

        Todos ficaram embaraçados, baixaram os olhos, ou olharam para longe. Finalmente, Markeno disse:

        —    Depois da morte de Doraldo, Dolando reuniu um grupo... e foi atrás deles. Depois de algum tempo, a maior parte... tinha ido... Acho que foram todos embora.

        — Mostre-me isso de novo — pediu Roshario. Ayla colocara a forma de casca de bétula no braço dela aquela manhã. O material, forte mas leve, não estava ainda inteiramente seco, mas ficara suficientemente rijo para manter o braço em posição, e Roshario já comemorava a maior mobilidade que aquilo lhe dava. Ayla, no entanto, não queria que ela começasse a usar a mão.

        Estavam sentadas, as duas, com Tholie, do lado de fora, ao sol, cercadas de peles macias de camurça, postas no chão. Ayla levara sua caixa de costura e fazia uma demonstração do puxador de linha que inventara com a ajuda do pessoal do Acampamento do Leão.

        —    Primeiro, a gente faz buraquinhos espaçados com qualquer instrumento pontudo nas duas peças de couro que quer juntar — disse.

        —    Como sempre fazemos — disse Tholie.

        —    Sim, mas você usa isso para fazer passar o fio pelos buracos. O fio entra nesse orifício da parte de trás, e quando você enfia a ponta nos buracos do couro ele puxa a linha através das duas peças que você deseja.

        — Uma idéia nova lhe passou pela cabeça, em meio à demonstração. Se a ponta do puxador de linha fosse bastante fina e forte, seria capaz de fazer, ela mesma, os buracos. Havia uma dificuldade: o couro pode ser duro.

        — Quero ver — disse Tholie. — Como é que você passa o fio pelo orifício do seu puxador?

        — Assim. Está claro? — disse Ayla, dando um primeiro ponto e passando o trabalho à outra. Tholie tentou mais alguns.

        —    É facílimo! — exclamou. — Quase que se pode fazer com uma mão só.

        Roshario, que prestava muita atenção, achou que Tholie tinha razão. Embora ela ainda não pudesse usar o braço quebrado, se conseguisse empregar a mão apenas para manter os dois couros juntos, com um puxador de fio como aquele poderia costurar com a mão boa.

        —    Nunca vi coisa igual. De onde você tirou isso?

        — Não sei — disse Ayla. — Foi uma ideia que tive quando estava em dificuldades para costurar alguma coisa, mas muita gente me ajudou. O mais difícil foi fazer uma broca de sílex suficientemente fina para fazer o buraco do puxador de linha. Jondalar e Wymez trabalharam nisso.

        — Wymez é o britador-chefe do Acampamento do Leão — explicou Tholie. — Já me disseram que é muito bom na sua especialidade.

        — Sei que Jondalar é ótimo — disse Roshario. — Ele fez tantos aperfeiçoamentos nas ferramentas que usamos para a construção de barcos que todo mundo ficou maravilhado com ele. Coisas pequenas, mas que foram de grande ajuda. Ele estava treinando Darvalo quando foi embora. Jondalar tem muito jeito para ensinar meninos. Talvez ele possa retomar as aulas com Darvo.

        — Jondalar diz que aprendeu muito com Wymez — disse Ayla.

        —    Talvez — disse Tholie —, mas vocês dois parecem muito bons na descoberta de novas maneiras de fazer as coisas. Esse puxador de linha vai facilitar muito a costura. Mesmo quando a gente tem prática, é difícil empurrar um fio num buraco com uma ponta qualquer. E o arremessador de lanças, de Jondalar, deixou todos os homens entusiasmados. Quando você demonstrou como é que ele funciona, muita gente aqui se julgou capaz de imitá-la, mas não acho que seja tão fácil assim. Você se adestrou muito tempo, com certeza.

        Jondalar exibira com grande êxito o arremessador de lanças. Chegar perto de uma camurça para matá-la exige habilidade e uma infinita paciência. Quando os caçadores Xamudói viram a distância a que uma lança podia ser atirada com aquele engenho, ficaram tão excitados que mal se continham na ânsia de experimentá-lo nos evasivos antílopes da montanha. Quanto aos pescadores de esturjão, igualmente tomados de admiração, decidiram criar uma variante com arpão, e testá-la para ver se funcionaria. No curso do debate, Jondalar apresentou sua velha idéia de uma lança em duas partes, com um cabo comprido guarnecido de duas ou três penas, e uma parte dianteira menor, destacável, e farpada. O potencial de uma arma dessas foi imediatamente assimilado pelos ouvintes, e diversas alternativas foram experimentadas pelos dois grupos — caçadores Xamudói e pescadores Ramudói — nos dias subsequentes.

        De repente, houve uma confusão do outro lado da plataforma. As três mulheres olharam para lá e viram que algumas pessoas içavam a cesta dos suprimentos. Alguns jovens corriam naquela direção.

        —    Eles pegaram um peixe! Pegaram-no com o lançador de arpões! — gritou Darvalo. — É uma fêmea!

        — Vamos ver! — disse Tholie.

        — Você vai na frente. Vou num instante. Primeiro vou guardar o meu puxador de linha.

        — E eu espero por você, Ayla — disse Roshario.

        Quando as duas se reuniram aos outros, a primeira parte do esturjão já descarregada, e a cesta fora mandada de volta para baixo. Era um peixe imenso, grande demais para ser trazido penhasco acima de uma vez só. A melhor parte fora mandada primeiro: quase oitenta quilos de pequeninas ovas escuras de esturjão. Parecia um bom presságio que o primeiro peixe apanhado com o arremessador de arpão — variação do arremessador de lanças de Jondalar — fosse aquela volumosa fêmea.

        Grelhas de secar peixe foram levadas para o fim do campo, e as pessoas começaram a retalhar o grande peixe em pequenos pedaços. A vasta massa de caviar, no entanto, foi levada em bloco para o centro da área social do acampamento. Cabia a Roshario, como mulher do chefe, supervisionar a distribuição. Ela pediu que Ayla e Jondalar a ajudassem, e serviu um pouco para que todos provassem.

        — Faz anos que não como isso! — disse Ayla, repetindo. — É sempre melhor assim fresco, mal saído do peixe. E é uma tamanha quantidade!

        O que é bom. Senão, não poderíamos comer tanto assim — disse Tholie.

        —    Por que não? — perguntou Ayla.

        — Porque as ovas do esturjão são empregadas por nós, como algumas outras coisas, para amaciar a pele da camurça — disse Tholie. — A maior parte é usada para isso.

        — Eu gostaria de ver como fazem, um dia desses — disse Ayla. — Sempre gostei de trabalhar com couros e peles. Quando vivia no Acampamento do Leão, aprendi a colorir peles, a fazer, por exemplo, que ficassem bem vermelhas. Crozie me ensinou também a fazer couro branco. E gosto muito dessa cor amarela de vocês.

        — Pois me surpreende que Crozie estivesse disposta a mostrar-lhe o seu trabalho — disse Tholie, lançando um olhar significativo para Roshario. — Sempre imaginei que o couro branco fosse um segredo do Lar do Grou.

        — Ela não me disse que era um segredo. Disse que aprendera com a mãe, e que a filha não estava interessada. Pareceu-me contente de passa a técnica a outra pessoa.

        — Bem, vocês eram, afinal, do mesmo acampamento, eram como uma família — disse Tholie, embora ainda surpresa. — Não creio que ela ensinasse uma estranha. Nós também não faríamos isso. O método Xamudói de tratar a camurça é um segredo. Nossas peles são admiradas e têm alto valor comercial. Se todo mundo soubesse como prepará-las, cariam depreciadas, de modo que guardamos o segredo — concluiu.

        Ayla assentiu de cabeça, mas seu desapontamento era visível.

        — Bem, são bonitas. E o amarelo é tão vivo!

        — Vem da murta-do-brejo, mas nós não usamos a planta pela cor. Isso simplesmente acontece. A murta-do-brejo ajuda a manter as peles macias mesmo depois de molhadas — disse Roshario. Se você ficasse aqui, Ayla, poderíamos ensinar-lhe a técnica de fazer camurça amarela.

        — Se eu ficasse... quanto tempo? — perguntou Ayla.

        — Oh, quanto quisesse. A vida inteira, Ayla — disse Roshario, com algum fervor. — Jondalar é nossa parente. Nós o consideramos assim. Em pouco tempo ele seria um perfeito Xaramudói. Até já ajudou a construir um barco. Você me disse que ainda não é casada. Estou certa de que encontraríamos alguém disposto a casar com você. Não tenho duvida de que seria bem recebida entre nós. Desde a morte do velho Xamã precisamos de alguém que o substitua.

        — Nós, como casal, eu e Markeno, estaríamos dispostos a recebe-los. — A oferta de Roshario fora espontânea, mas parecia a Tholie inteiramente apropriada no momento em que fora feita. — Tenho de falar com ele, mas estou certa de que concordará. Depois de Jetamio e Thonolan, tem sido difícil encontrar outro casal com quem gostássemos demorar juntos. O irmão de Thonolan é perfeito no caso. Markeno sempre gostou de Jondalar, e eu apreciaria muito partilhar a mesma casa com outra mulher Mamutói. — E sorrindo para Ayla: — Shamio também adoraria ter o Lobinho dela em volta todo o tempo.

        O oferecimento apanhara Ayla de surpresa. Quando, finalmente, compreendeu-lhe o sentido, emocionou-se. A tal ponto que ficou com os olhos marejados.

        —    Não sei o que dizer, Roshario. Senti-me em casa aqui desde o primeiro momento. Quanto a você, Tholie, gostaria muito de dividir... — Não pôde completar o pensamento. O choro a impediu.

        As duas mulheres Xaramudói sentiram o contágio do pranto e tiveram de piscar repetidamente para sopitar as lágrimas. Sorriam uma para a outra como cúmplices — que eram — de um plano maravilhoso.

        Logo que Markeno e Jondalar voltarem, falamos com eles — disse Tholie. — Markeno ficará tão aliviado...

        — Mas Jondalar, não sei — disse Ayla. Só sei que ele fez questão de vir cá. Até deixou de ir por um caminho mais curto pelo prazer de revê-los. Mas não sei se poderá ficar. Ele quer ir de volta para o seu povo.

        — Mas nós somos seu povo — disse Tholie.

        —    Não, Tholie. Embora ele tivesse permanecido entre nós tanto tempo quanto o irmão, Jondalar é ainda um Zelandonii. Ele nunca se desligou dos seus. Penso até que foi por isso que seus sentimentos por Serenio não ficaram nunca tão fortes.

        —    Serenio, a mãe de Darvalo? — perguntou Ayla.

        —    Sim — disse a mais velha das duas, sem saber o quanto Jondalar teria contado a Ayla sobre Serenio. — Mas uma vez que é óbvio o que ele sente por você, talvez, depois de tanto tempo, seus laços com se próprio povo estejam mais fracos. Já não viajaram bastante? Por que fazer mais uma Jornada tão longa, se podem ter um lar aqui?

        —    Além disso, está na hora de Markeno e eu termos outro casal conosco. Antes do inverno... Antes... Eu não lhes disse, mas a Mãe me abençoou de novo... Devemos escolher um casal antes do nascimento deste aqui.

        — Eu desconfiava — disse Ayla. — É maravilhoso, Tholie. — E com olhar sonhador: — Talvez, um dia, eu também tenha um bebê para ninar...

        — Se formos morar juntos, o bebê que eu levo será seu também, Ayla. E será bom saber que haverá alguém por perto, para ajudar, no caso... Se bem que eu não tenha tido problemas dando à luz Shamio.

        Ayla pensou que gostaria de ter um bebê algum dia. Um bebê de Jondalar. Mas se não pudesse conceber? Ela vinha tendo o cuidado de tomar seu chá todo dia, e não ficara grávida. Mas teria ficado sem o chá? E se não fosse capaz de começar uma criança? Não seria maravilhoso saber que os filhos de Tholie seriam seus também, e de Jondalar? Era verdade, além disso, a área em torno do acampamento era muito semelhante à outra da caverna do Clã de Brun. Sentia-se em casa, ali. As pessoas eram gentis. Só não confiava muito em Dolando. Gostaria ele também que ela ficasse? E os cavalos? Era bom para eles descansar um pouco. Mas teriam alimento suficiente para o inverno todo? Teriam, por perto, espaço suficiente para correr?

        E, o mais importante de tudo: como reagiria Jondalar? Estaria ele disposto a desistir de sua Jornada de volta à terra dos Zelandonii para instalar-se naquele lugar?     

 

        Tholie avançou até a grande fogueira e ficou projetada em silhueta contra o fundo vermelho das brasas e o céu poente, limitados pelos paredões pique que fechavam a enseada de um lado e de outro. Muita gente permanecia concentrada no espaço de reunião debaixo da platibanda de arenito, acabando de comer as amoras-pretas, tomando chá ou vinho levemente fermentado e espumante. O banquete comunitário de esturjão fresco tivera como entrada uma primeira e única porção de caviar. O resto teria uso mais prosaico: amaciar peles de camurça.

        — Quer dizer uma coisa, Dolando, enquanto estamos todos reunidos aqui — anunciou Tholie.

        O homem concordou, embora não tivesse feito diferença se ele disse não. Tholie já continuava sem esperar pela resposta.

        — Acho que expresso o sentimento de todos quando digo que estamos felizes com a presença de Jondalar e Ayla entre nós — disse.

        Diversas pessoas se manifestaram logo no mesmo sentido.

        —    Estávamos preocupados com Roshario — continuou Tholie — , não só por causa da dor que ela sentia mas porque temíamos que viesse a ficar com o braço inutilizado. Ayla mudou isso. Roshario diz que não sente mais dor e, com sorte, há uma chance de que possa usar o braço outra vez como antes.

        Houve, de novo, um coro de comentários positivos, expressando gratidão e desejando boa sorte.

        —    Devemos também agradecimentos a nosso parente Jondalar — disse Tholie. — Quando ele morava conosco, suas ideias para o aperfeiçoamento de nossas ferramentas foram de grande ajuda. Agora mesmo ele nos demonstrou seu arremessador, e o resultado é esta festança.

        Mais uma vez o grupo manifestou seu assentimento.

        — Enquanto viveu conosco, Jondalar pescava esturjão e caçava camurças e jamais nos disse se preferia a água ou a terra. Estou certa de que seria um grande homem do rio...

        — Muito bem, Tholie. Jondalar é um Ramudói! — exclamou um homem.

        — Ou pelo menos metade de um Ramudói! — disse Barono, saudado por um coro de gargalhadas.

        — Não, não — disse uma das mulheres. — Ele está ainda aprendendo coisas sobre a água, mas a terra já conhece muito bem.

        — Certo — disse um velho. — Mas por que não perguntam ao próprio Jondalar? Ele arremessou lança muito antes de arremessar arpão. Jondalar é um Xamudói.

        —    Ele até gosta de mulheres caçadoras!

        Ayla se voltou para ver quem fizera o último comentário. Fora uma adolescente, um pouco mais velha que Darvalo, chamada Rakario. Gostava de estar todo o tempo nas proximidades de Jondalar, o que aborrecia o rapaz. Queixava-se de que ela só vivia atrás dele.

        Agora, sorria, bem-humorado, com toda aquela animada discussão. Era uma demonstração da competição cordial entre as duas metades. Daquela espécie de rivalidade interna na família, que funcionava como um saudável elemento de emulação, mas que não podia nunca passar dos limites de todos conhecidos. Brincadeiras, bazófia, até mesmo um certo nível de insulto eram permitidos, mas tudo que pudesse ofender ou despertar ira era logo sufocado. Os dois lados se juntavam para acalmar os exaltados e pôr água na fervura.

        —    Como eu disse, Jondalar pode ser um excelente homem do rio — disse Tholie, quando todos sossegaram. — Mas Ayla está mais familiarizada com a terra, de modo que eu aconselharia a Jondalar fica com os caçadores. Se ele preferir assim, é claro, e se os caçadores estiverem de acordo. Se Jondalar e Ayla permanecerem conosco, e se tornarem Xaramudói, nós lhe oferecemos vida em comum. Mas como Markeno e eu somos Ramudói, eles teriam de ser Xamudói.

        Houve grandes mostras de excitação entre os ouvintes, com troca de comentários e, até, felicitações dirigidas diretamente aos dois casais.

        — É um plano maravilhoso, Tholie — disse Carolio.

        — A ideia foi de Roshario — disse Tholie.

        — Mas o que pensa Dolando de aceitarmos Jondalar? E o que acha de aceitarmos Ayla, uma mulher criada por aqueles que vivem na península? — perguntou Carolio, olhando diretamente para o chefe Xamudói.

        Houve um silêncio repentino. Todo mundo sabia as implicações da pergunta. Depois da sua violenta reação em relação a Ayla, estaria Dolando disposto a aceitá-la? Ayla esperara que o incidente ficasse esquecido e se perguntava por que Carolio o trouxera à tona. Mas ela não podia fazer outra coisa. A questão era de sua responsabilidade.

        Carlono e sua companheira tinham vivido originariamente com Dolando e Roshario, e juntos, os quatro, tinham fundado aquele grupo de Xaramudói quando se mudaram do seu lugar de origem, já superlotado. Posições de chefia eram, em geral, conferidas por consenso informal, e eles dois eram uma escolha natural. Na prática, a mulher do chefe assumia as responsabilidades de co-líder, mas a mulher de Carlono morreu quando Markeno era ainda muito jovem. O líder Ramudói nunca se casou outra vez formalmente, e sua irmã gémea, Carolio, que passara a tomar conta do menino, assumiu também, aos poucos, os deveres de mulher de líder. Com o tempo, ela foi aceita pela comunidade como co-líder, de modo que tinha a obrigação de fazer a pergunta.

        O povo sabia que Dolando permitira que Ayla continuasse a tratar de sua mulher, mas Roshario precisava dela, e Ayla, obviamente, lhe era útil. O que não significava que ele desejasse tê-la com o grupo em caráter permanente. Ele poderia estar apenas controlando seus sentimentos temporariamente. Mesmo que todos desejassem uma curandeira, Dolando era um deles, e Ayla, uma estranha. Não desejavam aceitar uma estranha que pudesse constituir problema para seu chefe e possível dissensão no grupo.

        Enquanto Dolando considerava a resposta a dar, Ayla sentiu um frio no estômago e ficou com um nó na garganta. Tinha a curiosa sensação de estar sendo julgada por algum erro cometido. Sabia, porém, que não fizera nada de errado. Gostaria de sair dali. Seu único erro era a sua origem. A mesma coisa lhe acontecera com os Mamutói. Teria de ser sempre assim? Aconteceria de novo com a gente de Jondalar? Bem, pensou, Iza, e Creb, e o Clã de Brun tinham cuidado dela, e ela não ia renegar aqueles que amava. Mas sentia-se isolada e vulnerável.

        Percebeu, então, que alguém viera colocar-se discretamente a seu lado. Sorriu com gratidão para Jondalar e se sentiu imediatamente melhor. Mas aquilo era ainda um julgamento, e ele aguardava para ver o seu desfecho. Ela o observara e sabia qual ia ser sua resposta à oferta de Tholie. Mas Jondalar esperava pela decisão de Dolando antes de formular sua própria resposta.

        Subitamente, quebrando a tensão, houve um riso repicado de criança. Shamio, seguida de outros meninos e meninas, saíra correndo de uma das casas. com Lobo aos saltos no meio deles.

        — Não é extraordinário como aquele lobo brincava com os pequenos? — disse Roshario. — Ainda há poucos dias eu não acreditaria que iria ver um bicho desses junto de crianças que eu amo sem temer pelas suas vidas. Talvez isso valha como lição. Quando a gente fica conhecendo um animal que antes odiava e temia, é possível que até passe a gostar muito dele. É sempre melhor compreender que ter um ódio cego.

        Dolando vinha pesando as palavras que devia dizer em resposta a Carolio. Sabia o que lhe estavam perguntando e quanta coisa dependia da decisão que tomasse. Mas não sabia como formular o que pensava e sentia. Sorriu para a mulher que amava, grato por ver que ela o conhecia tão bem. Roshario percebera que ele precisava de auxílio e lhe mostrara uma saída.

        —    Eu odiei com cegueira — começou — e tirei as vidas daqueles que odiava por pensar que tinham matado meu filho. Eu os julguei uns animais ferozes e quis acabar com todos eles, mas isso não nos restituiu Doraldo. Agora vejo que eles não mereciam tal ódio. Animais ou não, tinham sido provocados. Tenho de viver com essa culpa, mas...

        Dolando se interrompeu, começou a dizer alguma coisa sobre os que sabiam mais do que lhe tinham dito e que, assim mesmo, o secundaram nas suas surtidas, mas depois mudou de ideia.

        —    Essa mulher — disse, olhando para Ayla —, essa curandeira diz que foi criada por eles, educada por aqueles que eu julgava uns animais selvagens, que eu odiava. E mesmo que ainda os odiasse, não poderia expressar esse sentimento em relação a essa mulher. Graças a ela, Roshario me foi restituída. Talvez seja tempo de começar a entender. Acho que a ideia de Tholie é boa. E eu ficaria contente se os Xamudói aceitassem Ayla e Jondalar.

        Ayla sentiu que um imenso alívio a tomava. Agora sabia por que aquele homem fora escolhido pelo seu povo para chefiá-lo. Na sua convivência de todos os dias, tinham chegado a conhecê-lo bem. Sabiam a excelência básica do homem.

        — E então, Jondalar? — perguntou Roshario. — O que tem a dizer? Não acha que é tempo de dar por encerrada essa longa viagem? Que é tempo de deitar raízes, de fundar sua própria casa, de dar à Grande Mãe uma oportunidade de abençoar Ayla com um bebê ou dois?

        — Não encontro palavras para dizer-lhe o quanto estou grato, Roshario, por essa acolhida de vocês. Sinto que os Xaramudói são meu povo, minha família. Seria muito fácil para mim radicar-me aqui e vocês me tentam com esse oferecimento. Mas tenho de retornar aos Zelandonii. Se mais não fora — hesitou —, por meu irmão Thonolan.

        Fez uma pausa, e Ayla o olhou. Sabia que ele iria recusar, mas não era aquilo que ela pensava que ele fosse dizer. Percebeu um leve nuto, quase indiscernível, como se ele tivesse pensado em outra coisa. E nesse momento, Jondalar lhe sorriu.

        — Quando ele morreu, Ayla deu ao seu espírito todo o conforto que lhe foi possível dar para a sua Jornada no outro mundo, mas o espírito de Thonolan não teve paz. Receio, sinto, que ele ainda erra, só e perdido, procurando o caminho de volta para a Mãe.

        O que ele estava dizendo era uma surpresa para Ayla, e ela observou-o atentamente quando ele continuou.

        — Não posso deixar as coisas assim. Alguém tem de ajudá-lo a achar o seu caminho, e só conheço uma pessoa capaz de fazê-lo: Zelandoni, uma Xamã, uma xamã das mais poderosas, que estava presente quando Thonolan nasceu. Talvez com a ajuda de Marthona, minha mãe e mãe de Thonolan... Zelandoni consiga localizar seu espírito e guiá-lo para o aninho certo.

        Ayla sabia que aquele não era o motivo de Jondalar para voltar. Não motivo principal. Sabia que o que ele dissera era exato mas, como a resposta que ela lhe dera sobre o fio-de-ouro, não era completo.

        — Você está ausente há muito tempo, Jondalar — disse Tholie, claramente desapontada. — Talvez eles pudessem ajudar Thonolan, mas quem nos garante que sua mãe ou essa Xamã, Zelandoni, estão ainda vivas?

        —    Ninguém, Tholie, mas tenho de tentar. Mesmo que não possam ajudar, Marthona e os outros parentes e amigos gostariam de saber o quanto ele foi feliz aqui, com Jetamio, com você, com Markeno. Minha mãe teria gostado de Jetamio, estou certo disso. Como estou certo de que teria gostado de você, Tholie.

        A mulher não pôde deixar de sensibilizar-se com o elogio, embora procurasse disfarçar e embora estivesse frustrada.

        — Thonolan fez uma longa viagem — continuou Jondalar —... que foi sempre sua viagem. Eu apenas fui com ele. Para protegê-lo. Gostaria de contar aos Zelandonii essa viagem. Thonolan foi até a foz do Rio da Grande Mãe. Mais importante ainda, ele encontrou um lar aqui, com gente Que o amava. É uma história que merece ser contada.

        — O que eu acho, Jondalar, é que você está ainda procurando acompanhar seu irmão e zelar por ele, mesmo no mundo dos espíritos — disse Roshario. — Mas se é isso o que acha que tem de fazer, então só nos resta desejar-lhe boa sorte. Penso que Xamã nos teria dito que você deve seguir seu caminho.

        Ayla refletiu sobre o que Jondalar fizera. A oferta de Tholie e dos Xaramudói para que eles se incorporassem à comunidade não fora feita levianamente. Era uma oferta generosa e representava uma grande honra; difícil de recusar sem ofensa. Só uma forte compulsão de realizar um objetivo mais alto, de cumprir uma missão irrecusável, poderia fazer tal recusa aceitável. Jondalar não dissera que embora eles fossem sua família não eram a família que ele queria recuperar, mas sua resposta incompleta convencera a todos.

        No Clã, calar alguma coisa era aceitável, por dar alguma privacidade numa sociedade transparente, em que era difícil esconder qualquer coisa. Emoções e pensamentos podiam ser vistos refletidos na postura, na expressão, em gestos sutis. Jondalar preferira a consideração. Ela achava que Roshario suspeitava da verdade, mas aceitava a desculpa pela mesma razão que o fizera dá-la. Uma sutileza que Ayla anotou. Aprofundaria a questão mais tarde. Mas já sentia que ofertas generosas têm mais de uma faceta.

        — Quanto tempo ainda pretendem ficar aqui? — Perguntou Markeno.

        — Já cobrimos mais terreno do que eu tinha julgado possível. Não pensava que pudéssemos estar aqui antes do outono. Graças aos cavalos, viajamos mais depressa do que imaginei — explicou —, mas temos muito que andar ainda e há alguns obstáculos sérios à frente. Gostaria de levantar acampamento logo que pudermos.

        — Não devemos partir assim tão depressa, Jondalar — disse Ayla — Não posso ir antes que o braço de Roshario esteja bom.

        — E quanto tempo vai levar? — perguntou Jondalar, franzindo a testa.

        — Eu disse a Roshario que o braço dela tem de ficar imóvel naquela forma de casca de bétula por uma lua inteira mais metade de outra.

        — É muito. Não podemos ficar tanto tempo.

        — E quanto podemos ficar?

        — Muito pouco tempo.

        — Mas quem vai tirar a casca de bétula? Quem vai saber a hora!

        — Nós mandamos buscar um Xamã — disse Dolando. — Por mensageiro. Um Xamã não saberá fazer isso?

        — Suponho que saiba — disse Ayla. — Mas pelo menos gostaria de falar com ele. Não podemos ficar pelo menos até que ele chegue, Jondalar?

        — Se não demorar muito. Mas você poderia ensinar a Dolando e a Tholie o que fazer, se for o caso.

        Jondalar estava escovando Racer. A pelagem do garanhão crescia e ficava cheia e o animal parecia com frio. Ele mesmo já sentira um friozinho no ar, de manhã.

        —    Penso que você tem tanta vontade de ir embora quanto eu, não é mesmo, Racer?

        O animal virou as orelhas para o lado dele ao som do seu nome, e Huiin abanou a cabeça..

        —    Você também quer ir, não é mesmo, Huiin? Isto não é, na verdade, lugar para cavalos. Vocês precisam de campo aberto para correr. Tenho de lembrar isso a Ayla.

        Deu uma última palmada na anca de Racer e foi para a área debaixo do ressalto de pedra. Roshario parecia muito melhor, achou, vendo-a sozinha junto da grande lareira central, a costurar com uma só mão graças ao novo puxador de linha.

        — Sabe onde posso encontrar Ayla?

        —    Ela saiu com Tholie. Levaram Shamio e Lobo. Disseram que iam até o lugar onde se fazem barcos, mas acho que Tholie queria mostrar a Avia a Árvore da Sorte e fazer uma oferenda pedindo uma boa hora de parto e um bebê sadio. Tholie já começa a mostrar a bênção que recebeu — disse Roshario.

        Jondalar se acocorou perto dela.

        — Queria perguntar-lhe uma coisa, Roshario. É sobre Serenio. Foi imperdoável deixá-la, como eu fiz. Ela estava... feliz, depois, quando se foi daqui?

        — Sofreu muito, no começo. Disse que você estava disposto a ficar, ou tinha oferecido isso, mas que ela dissera que você devia ir com Thonolan. Ele precisava mais de você. E então, o primo de Tholie apareceu. Ele é como Tholie, sob muitos aspectos, diz sempre o que pensa.

        Jondalar sorriu.

        —    Eles são assim mesmo.

        — São. E ele se parece com a prima. É bem mais baixo que Serenio, mas é forte. E decidido também. Botou os olhos nela e logo resolveu que era a mulher da sua vida. Chamava-a 'meu belo salgueiro', em Mamutói. Nunca pensei que conseguisse conquistá-la. Quase lhe disse que não se desse ao trabalho. Nada que eu dissesse, porém, teria sido capaz de dissuadi-lo, mas eu achava Serenio um caso perdido. Ela não se apaixonaria por ninguém depois de você. Então, um dia, apanhei os dois rindo. E vi que estava errada. Era como se ela tivesse voltado à vida depois de um longo inverno. Floresceu. Eu nunca tinha visto Serenio tão feliz desde o tempo do seu primeiro homem, pai de Darvo.

        — Fico contente por ela — disse Jondalar. — Serenio merece ser feliz. Mas andei pensando. Quando parti, ela me disse que achava que a Mãe a abençoara. Serenio estava grávida? Teria começado alguma vida, talvez do meu espírito?

        — Não sei, Jondalar. Lembro-me de ter ouvido isso dela, quando você foi embora. Que estava prenha. Se estava, terá sido uma bênção especial para o novo companheiro. Mas ela nunca me contou.

        — Mas qual a sua opinião, Roshario? Serenio parecia grávida? É possível saber, assim tão no começo?

        — Quisera poder ajudá-lo, Jondalar. Mas não sei com certeza. Ela podia estar.

        Roshario o estudava com atenção, imaginando o porquê daquela curiosidade tão viva. Não era para reclamar a criança como sendo do seu lar — Porque ele renunciara a isso quando partiu —, embora se ela estivesse mesmo grávida o bebê seria muito provavelmente do seu espírito. E de súbito Roshario sorriu, imaginando um filho de Serenio do tamanho de Jondalar no lar daquele Mamutói baixote. Ele ficaria contente, pensou Roshario.

        Jondalar abriu os olhos e viu que o lugar a seu lado, embora revolvido, estava agora vazio. Abriu as cobertas, sentou-se na beira do catre, bocejou e espreguiçou-se. Tinham conversado em volta do fogo na noite anterior, sobre a caça às camurças. Alguém vira os primeiros exemplares descendo das alturas, o que significava que a estação estava próxima.

        Ayla demonstrava antegozar a perspectiva de uma caçada a esses antílopes de andar seguro e ar de bode, mas quando foram para a cama e conversaram um com o outro em voz baixa e mais tranquilamente como costumavam fazer, Jondalar insistira em que tinham de partir o mais rápido possível. A descida dos antílopes indicava que esfriara nas alturas. O tempo mudava. Tinham muito que viajar ainda, e deviam apressar-se.

        Não haviam discutido propriamente, mas Ayla deixara claro que não queria ir. Falou no braço de Roshario, mas ele sabia que ela gostaria de caçar camurças. Na verdade, estava convencido de que ela tivera vontade de ficar para sempre com os Xaramudói, e imaginava se não estaria adiando a partida na esperança de que ele ainda mudasse de ideia. Ela e Tholie já eram as melhores amigas do mundo e todos pareciam gostar sinceramente de Ayla. Se isso o alegrava sobremaneira, por outro lado tornava a partida mais penosa. E quanto mais tempo ficassem, mais difícil seria.

        Ficou acordado até tarde, pensando. Poderiam ficar, por ela. Mas, nesse caso, poderiam ter ficado com os Mamutói. Por fim, concluiu que urgia mesmo partir, o mais depressa possível, no dia seguinte até, ou dentro de dois dias, no máximo. Sabia que Ayla não ficaria contente com a sua decisão, e não sabia como contar-lhe.

        Levantou-se, vestiu as calças e marchou para a porta. Afastando a cortina, saiu e sentiu logo um vento frio no peito nu. Ia precisar de roupas mais quentes para a viagem, pensou, correndo para a área onde os homens urinavam de manhã. Em vez da nuvem de coloridas borboletas que sempre adejavam por perto — indagava-se por que elas seriam atraídas por um lugar que cheirava tão forte —, viu de chofre uma folha amarela que tombava devagar e viu que a folhagem das árvores começava a mudar de cor.

        Como não observara aquilo antes? Os dias tinham passado tão depressa, e o tempo fora tão clemente, que ele não prestara atenção à mulher dança da estação. Lembrou-se de súbito que estavam, ali, voltados para o sul e numa região meridional. A estação já poderia estar muito mais adiantada do que ele pensava para o norte, e faria muito mais frio também no rumo que iam tomar. Ao voltar para casa, às pressas, estava muito mais decidido ainda do que antes a partir em breve.

        — Ah, você já está de pé — disse Ayla, entrando com Darvalo e vendo que Jondalar se vestia. — Vim chamá-lo antes que toda a comida fosse retirada.

        — Estou tratando de me agasalhar melhor. Faz muito frio — disse — Logo vai chegar a hora de deixar a barba crescer.

        Ayla sabia que havia mais naquela frase do que as palavras diziam. Ele continuava preso ao assunto da noite anterior. A estação mudava e tinham de prosseguir viagem. E ela não queria falar daquilo.

        —    Acho que devíamos desempacotar nossas roupas de frio e ver se estão em boa ordem — disse Jondalar. — As cestas ainda se encontram na casa de Dolando?

        Ele sabe que estão, pensou Ayla. Por que então pergunta? Você sabe pôr que, disse ela consigo mesma, e pensou em alguma coisa que lhe desviasse a atenção.

        — Sim, as cestas estão lá — disse Darvo, querendo ser prestativo.

        — Preciso de uma camisa mais quente. Você se lembra onde guardamos minha roupa de inverno?

        Naturalmente que se lembrava. Mas ele também, por certo.

        — As roupas que você está usando agora são muito diferentes das que tinha no corpo ao chegar — disse Darvalo.

        — Estas me foram dadas por uma mulher Mamutói. As outras eram as minhas roupas Zelandonii.

        —    Experimentei hoje a camisa que você me deu. Ainda está grande para mim, mas não muito — disse o rapaz.

        — Você ainda tem aquela camisa, Darvo? Até já me esqueci como ela é.

        — Quer vê-la?

        — Quero sim. Gostaria muito — disse Jondalar.

        Ayla também estava curiosa.

        Foram até a casa de Dolando perto dali. De uma prateleira acima de sua cama, Darvalo tirou um embrulho feito com cuidado. Desatou o cordel, abriu o invólucro de couro mole, e ergueu a camisa no ar.

        —    Aí está ela.

        Era incomum, pensou Ayla. A combinação de cores, o estilo mais longo e mais solto não tinham nada a ver com as roupas Mamutói a que ela se acostumara. Uma coisa a surpreendeu mais do que o resto: era ornada com caudas de arminho, brancas com uma ponta preta.

        A camisa pareceu estranha ao próprio Jondalar. Tanta coisa ocorrera desde que vestira aquela camisa pela última vez que ela lhe parecia bizarra e antiquada. Não a usara muito quando morava ali, com os Xaramudói, preferindo vestir-se como os demais. Embora fizesse só um ano e poucas luas que ele presenteara Darvo com ela, era como se há uma eternidade ele não visse roupas de casa.

        —    E do estilo dela ser solta, Darvo. Você a ajusta com um cinto. Vamos, vista-a que eu lhe mostro. Tem alguma coisa que possa usar para atá-la?

        O rapaz passou a camisa de couro pela cabeça. Era longa como uma túnica e muito decorada. Depois passou uma tira de couro para Jondalar. Ele disse a Darvalo que se endireitasse, e cingiu a camisa bem baixo, quase nos quadris, de modo que o pano ficasse frouxo, como uma blusa, e os rabos dos ratos arménios, pendentes e livres.

        — Vê? Não está nada grande para você, Darvo — disse Jondalar. — O que acha, Ayla?

        — Acho fora do comum. Nunca tinha visto camisa feito essa. Mas parece muito bem, Darvalo.

        — Gosto dela — dela — disse o rapaz, esticando os braços e baixando os olhos para ver o efeito. Talvez a usasse da próxima vez que fosse visitar os Xaramudói de rio abaixo. Ela ficaria impressionada, pensou, a garota que lhe despertara a atenção.

        — Foi bom mostrar-lhe como se usa uma camisa dessas — disse Jondalar — antes de partir.

        — Quando vão partir? — perguntou Darvalo, espantado.

        —    Amanhã. Depois de amanhã o mais tardar — disse Jondalar, olhando firme para Ayla. — Logo que aprontarmos nossas coisas.

        — As chuvas já podem ter começado, na outra vertente das montanhas alertou Dolando —, e você se lembrará de como a Irmã fica quando enche.

        — Espero que não haja inundação — disse Jondalar —, ou precisaríamos de um dos seus barcos grandes para atravessar o rio.

        — Se quiserem ir de barco nós os levamos até o rio da Irmã — disse Carlono.

        — Temos de apanhar murta-do-brejo, de qualquer maneira — acrescentou Carolio —, e é de lá que ela vem.

        — Eu gostaria muito de subir o rio no seu barco, mas não creio que os cavalos possam viajar embarcados.

        — Você não disse que eles atravessam rios a nado? Talvez possam vir pela água, na esteira do barco — sugeriu Carlono. — E o lobo não é problema.

        — Sim, os cavalos podem nadar, mas a distância é grande, até a Irmã. Vários dias, se me lembro bem — disse Jondalar. — Não acredito que eles consigam nadar contra a corrente tanto tempo.

        — Há um caminho pela montanha — disse Dolando. — Você lerá de voltar um pouco, depois subir até um dos picos menores e contorná-lo. A trilha é bem marcada e os levará até bem próximo da confluência do rio da Irmã com o da Mãe. Há uma pequena serra para o sul que dá uma boa visão do lugar, uma vez alcançada a planície do lado do poente.

        — Mas seria esse o melhor ponto para atravessar o rio da Irmã.? — perguntou Jondalar, que se lembrava dos vastos redemoinhos da última passagem.

        — Provavelmente não. Mas dali você pode acompanhar o leito da Irmã para o norte até um vau melhor. O rio da Irmã não é fácil em nenhum trecho. Ele é alimentado por torrentes que descem da montanha com grande violência, de modo que sua correnteza é mais rápida que a da Mãe, além de ser mais traiçoeira. Muito mais traiçoeira — disse Carlono. — Subimos por ela durante quase um mês, certa vez. E o rio se mostrou veloz e difícil todo o tempo.

        — Se é o rio da Mãe que tenho de seguir para chegar em casa, isso implica atravessar o rio da Irmã.

        — Boa sorte, então.

        — Vocês vão precisar de víveres — disse Roshario. — E tenho uma coisa que quero dar-lhe, Jondalar...

        — Não temos muito espaço de sobra — começou ele.

        — É para sua mãe — continuou Roshario. — O colar favorito de Jetamio. Guardei-o para Thonolan, se ele voltasse. Não é coisa grande. Depois que Jetamio perdeu a mãe. ela precisava sentir que pertencia a algum lugar. Eu lhe disse que se lembrasse sempre de que era uma Xaramudói. Então ela fez o colar, de dentes de camurça e espinhas de esturjão... um dos pequenos... simbolizar a terra e o rio. Pensei que sua mãe apreciaria uma lembrança da mulher que seu filho escolheu.

        — Pensou bem — disse Jondalar —, e lhe agradeço muito. — Sei que vai representar muito para Marthona.

        — E por onde anda Ayla? Tenho um presentinho para ela também. Espero que ela possa levá-lo — disse Roshario.

        — Ayla está com Tholie, arrumando as cestas — disse Jondalar. — Ela não queria ir, não até que seu braço estivesse perfeito. Mas não podemos esperar mais.

        —    Tenho certeza de que meu braço vai ficar bom — disse Roshario. Ela se pusera ao lado dele e foram juntos para o correr de casas. — Ayla trocou ontem a casca de bétula por outra fresca. Meu braço parece menor, mas é por falta de uso. Ele está bom. Ayla pediu para eu manter essa forma mais algum tempo. Ela diz que logo que eu comece a trabalhar com ele meu braço engorda de novo.

        —    Sou da mesma opinião.

        — Não sei por que o nosso mensageiro e o velho Xamã estão levando tanto tempo para chegar. Mas Ayla explicou o que fazer, não só a mim, mas a Dolando, Tholie, Carlono e outros. Nós nos arranjaremos sem ela... embora fosse muito melhor que os dois ficassem. Não é tarde demais para mudarem de opinião...

        — Você nem imagina o quanto significa para nós a maneira como você nos recebeu, Roshario, tão generosamente, apesar de tudo, de Dolando, da... criação... de Ayla...

        Ela o encarou.

        —    Essa história o magoou muito, não foi?

        Jondalar ficou vermelho.

        — Sim — admitiu —, muito. Mas já não me aborrece mais. Você foi muito gentil, aceitando-a, sabendo o que Dolando pensava daquela gente da península... Não sei explicar. Sei é que sinto um imenso alívio. Não quero vê-la triste. Ayla já passou por tanta coisa.

        — Ficou mais forte, imagino — disse Roshario. Via a ruga de preocupação no cenho dele, a expressão de angústia nos seus fabulosos olhos azuis. — Você esteve fora muito tempo. Conheceu muita gente, aprendeu novas modas, novos costumes, até novas línguas. Seu povo não o reconhecerá, talvez você não seja a mesma pessoa de antes, ao partir. Eles também não serão mais as pessoas de que se lembra. Vocês pensarão uns nos outros como foram um dia, não como são agora.

        — Preocupei-me tanto com Ayla que não considerei isso-- Você tem razão. É muito tempo. Ela pode até adaptar-se melhor que eu. Para Ayla eles são estranhos, e ela vai entender rapidamente como são, corno sempre acontece.

        — Já você espera deles um certo comportamento — disse Roshario, retomando a marcha para as casas de madeira. E antes que entrassem concluiu: — Saiba que será sempre bem-vindo aqui. Todos dois serão bem vindos.

        — Obrigado. Mas é uma distância enorme, Roshario. Você nem imagina o tamanho da viagem.

        — De fato, não imagino mesmo. Mas você está habituado a viajar E se um dia quiser vir, não lhe parecerá tão longe.

        — Para alguém como eu, que nunca sonhou em cobrir grandes distâncias, já viajei demais — disse Jondalar. — Você tem razão quando diz que é tempo de me enraizar. Mas saber que tenho aqui essa alternativa me ajudará com os problemas de adaptação, em casa.

        Quando abriram a cortina, só encontraram Markeno.

        —    Onde está Ayla? — perguntou Jondalar.

        — Ela foi com Tholie apanhar as plantas que tinha posto para secar. Você não cruzou com as duas, Roshario?

        — Estamos vindo do campo — disse Jondalar. — Pensei encontrar Ayla aqui.

        — Ayla estava aqui. Estava conversando com Tholie sobre alguns dos remédios que usa. Ela examinou seu braço ontem e explicou o que fazer com ele. As duas só falaram de plantas, e a sua serventia. Aquela mulher sabe muito, Jondalar.

        —    Pensa que ignoro isso? É incrível como se lembra de tudo.

        —    Saíram juntas de manhã, e voltaram com cestas cheias. De tudo quanto é espécie. Mesmo plantinhas frágeis, fininhas, amarelas. Agora deve estar explicando o que fazer com elas — disse Markeno. — Que pena vocês irem embora! Tholie vai sentir muita falta de Ayla. Nós todos vamos sentir muita falta dos dois.

        —    Não é fácil para nós também...

        —    Eu sei. Quero dar-lhe algo. — Markeno remexeu numa caixa de madeira, cheia de ferramentas e pequenos utensílios de madeira, osso e chifre. Tirou dela, por fim, um objeto esquisito, feito da galhada primária de um veado, com as ramificações cortadas e um furo logo abaixo do ponto em que brotavam. Estava toda decorada não com formas geométricas e estilizadas de aves ou peixes no estilo tradicional Xaramudói, mas também com belos gravados figurativos de animais como o veado e o cabrito-montês em torno do cabo. Alguma coisa naquilo deu um arrepio em Jondalar. Quando o viu mais de perto soube o que era.

        — Isso é o endireitador de hastes de lança de Thonolan! — disse. Quantas vezes vira o irmão usar aquilo, pensou. Lembrava-se até do dia em que Thonolan o fizera.

        — Pensei que lhe seria agradável ter essa lembrança dele. Pensei também que isso poderá ajudá-lo a achar seu espírito. Além disso, quando esse espírito, graças a você, descansar em paz... talvez queira ter esse objeto com ele — concluiu Markeno.

        — Obrigado — disse Jondalar, pegando a robusta ferramenta e examinando-a com espanto e reverência. Aquilo fora a tal ponto urna parte intrigante do irmão que lhe trazia flashes de memória.

        — Isso significa muito para mim, Markeno. — Jondalar sopesou o objeto na mão, sentindo seu equilíbrio e a presença de Thonolan. — Você está certo. Há tanto dele aqui que quase posso senti-lo.

        — Quero dar algo a Ayla, e a oportunidade é esta — disse Roshario, saindo. Jondalar a acompanhou.

        Ayla e Tholie ergueram os olhos vivamente quando eles entraram na casa de Roshario. Por um momento, a mulher achou que tinham interrompido alguma coisa pessoal e secreta, mas logo sorrisos de boas-vindas dissiparam a impressão. Roshario foi até o fundo do aposento e tirou um embrulho de uma prateleira.

        —    Isto é para você, Ayla. Pelo que fez por mim. Fiz um embrulho para que permaneça limpo durante a viagem. Depois, você pode usar o invólucro de pele como toalha.

        Ayla, surpresa e encantada, desmanchou o nó e abriu as camurças macias. Dentro deles havia uma peça feita igualmente de camurça, tingida de amarelo, e lindamente enfeitada de contas e penas. Ela a pegou e ficou extasiada. Era a mais bela túnica que jamais vira. Dobrada debaixo dela havia um par de calças de mulher, totalmente decorada na frente das pernas e em volta do fundilho com um desenho igual ao da túnica.

        — Que beleza, Roshario! Nunca vi nada tão bonito. É até bonito demais para usar — disse Ayla. Colocou o presente na cama e abraçou a mulher do chefe. Pela primeira vez desde que tinham chegado, Roshario notou o estranho sotaque de Ayla, principalmente na maneira de pronunciar determinadas palavras, mas não achou esse sotaque desagradável.

        — Espero que sirva. Por que não experimenta a roupa para que a gente veja? — disse Roshario.

        — Acha mesmo que eu deva? — perguntou Ayla, com medo de tocar no presente.

        — É preciso saber se serve, para poder usar o conjunto quando você e Jondalar casarem.

        Ayla sorriu para Jondalar, excitada e feliz com a roupa nova. E não contou que já tinha uma roupa para a ocasião, dada pela mulher de Talut Nezzie, do Acampamento do Leão. Não podia usar as duas, mas acharia uma ocasião igualmente memorável para a roupa amarela.

        — Eu também tenho uma lembrança para você, Ayla — disse Tholie. — nada de tão especial assim. Mas útil — disse Tholie, entregando-lhe diversas tiras de couro macio que tirou de uma bolsa que trazia à cintura.

        Ayla as tomou e ergueu no ar, mas evitou olhar para Jondalar Sabia exatamente o que eram.

        — Como você sabia que eu preciso de tiras novas para a minha lua, Tholie.

        — Uma mulher precisa sempre de tiras novas, sobretudo quando viaja. Tenho também excelente enchimento absorvente para você. Roshario e eu discutimos os presentes. Ela me mostrou as roupas que fizera e eu pensei em dar-lhe também algo assim bonito. Mas você não pode levar muito, quando viaja. Então comecei a pensar sobre artigos de que pudesse precisar — disse Tholie, explicando aquele seu mimo tão prático.

        — É perfeito. Você não me poderia ter dado coisa que eu quisesse mais ou de que necessitasse mais — disse Ayla. Depois virou o rosto piscando. — Vou sentir sua falta.

        —    Deixe disso. Afinal, ainda não estão indo. Não ate amanhã cedo, pelo menos. Então haverá tempo para lágrimas — disse Roshario, embora seus olhos também já estivessem marejados.

        Naquela noite, Ayla esvaziou suas duas grandes cestas e espalhou tudo o que continham, a fim de resolver como arrumar tudo para incorporar à bagagem os mantimentos que tinham ganhado. Jondalar carregaria uma parte, é verdade, mas ele também não tinha muita folga. Haviam discutido sobre o barco redondo mais de uma vez, sem chegar a qualquer resultado: sua utilidade na passagem de rios valeria o esforço de carregá-lo naquelas passagens estreitas das montanhas? Por fim, resolveram levá-lo, não sem muita incerteza sobre a sabedoria da decisão.

        — Como você vai pôr tudo isso em duas cestas? — perguntou Jondalar, olhando com ceticismo a pilha de misteriosos pacotes, todos cuidadosamente embrulhados. O volume da carga o deixava aturdido. — Acha que precisamos mesmo de tanta coisa? O que tem aqui, por exemplo?

        — Minhas roupas de verão - disse Ayla. - Isso é justamente o que estou pensando deixar para trás, mas então vou precisar de roupas novas ano que vem. Já é um alívio não ter de pôr nas cestas todas estas pesadas roupas de inverno!

        — Hum! - fez ele, sem poder contestar-lhe o raciocínio, mas ainda alarmado com o tamanho da pilha. Mexeu nela e viu um amarrado que já conhecia. Ayla carregava aquilo desde o começo da viagem, e ele ainda não sabia o que efetivamente continha.

        — O que você leva aí?

        —    Jondalar, você assim não ajuda, atrapalha. Por que não verifica se essas placas de alimento comprimido para farnel que Carolio nos cabem na sua cesta?

        — Sossegue, Racer. Calma — disse Jondalar, puxando a rédea e mantendo-a junto do peito enquanto afagava o pescoço do animal e lhe dava tapinhas na cara. — Acho que ele já sabe que estamos prontos e está aflito para partir.

        — Estou certo de que Ayla vem logo — disse Markeno. — Aquelas duas ficaram mesmo íntimas no curto tempo que vocês, passaram aqui conosco. Tholie estava chorando ontem à noite, desejando ainda que ficassem. Para dizer-lhe a verdade, eu também estou triste por vê-lo partir Jondalar. Olhe que temos procurado, mas não encontramos um casal que gostássemos de ter na nossa intimidade. E precisamos assumir um compromisso logo. Tem certeza que não vai mudar de ideia?

        — Você não sabe como foi difícil para mim tomar essa resolução, Markeno. Quem sabe o que vou encontrar em casa? Minha irmã estará crescida e não se lembrará de mim. Não tenho ideia do que meu irmão mais velho faz nem de onde possa estar. Quanto a minha mãe, apenas espero que ainda viva. E Dalanar, o atual chefe da família. Minha prima mais próxima, filha do seu outro casamento, deve ser mãe a esta altura, mas nem sei se tem marido. Se tem, não o conheço, provavelmente. Não conheço mais ninguém por lá... e aqui tenho tantos amigos. Mas preciso ir assim mesmo.

        Markeno assentiu de cabeça. Huiin relinchou baixo, e os dois ergueram os olhos. Roshario, Ayla e Tholie, que trazia Shamio pela mão, vinham saindo do alojamento. A menina bracejou para soltar-se logo que viu Lobo.

        — Não sei o que vai ser de Shamio sem esse lobo — disse Markeno. — Ela quer sempre ter o bicho por perto. Dormiria com ele se eu deixasse.

        — Talvez você consiga um filhote para ela — disse Carlono, que se reunira a eles. Ele acabara de chegar do embarcadouro.

        — Não tinha pensado nisso, nem será fácil arranjar um filhote. Talvez eu obtenha um, furtando-o de um covil — disse Markeno. — Posso, pelo menos, prometer a Shamio que vou tentar. Tenho de inventar alguma coisa para consolá-la.

        — Se pegar um, que seja pequeno — disse Jondalar. — Nosso Lobo ainda mamava quando sua mãe morreu.

        — E como Ayla conseguiu alimentá-lo sem o leite materno? — perguntou Carlono.

        — Eu me perguntei muitas vezes a mesma coisa — disse Jondalar. — Ayla me explicou que um bebê pode comer tudo o que a mãe dele come. Tem apenas de ser mais mole e fácil de mastigar. Ela fazia um caldo, punha um pedaço de couro macio dentro, e deixava que ele ficasse chupando aquilo. Depois, cortava carne para ele em pedacinhos. Hoje ele come de tudo que comemos, mas gosta de caçar por conta própria, às vezes. Ele consegue caça para nós também. Ajudou-nos, por exemplo, com aquele alce que trouxemos, ao chegar.

        — Como conseguem que ele faça o que desejam? — perguntou Markeno.

        — Ayla gasta muito tempo com isso. Ela lhe ensina uma coisa, depois repete aquilo com ele até que o faça corretamente. É surpreendente o quanto ele pode aprender. E Lobo gosta muito de agradá-la.

        — Todo mundo pode ver isso. Acha que é por tratar-se dela? Afinal, Ayla é uma Xamã — disse Carlono. — Você acha que uma pessoa qualquer seria capaz de fazer-se obedecer por animais?

        — Eu monto Racer — disse Jondalar. — E não sou Xamã.

        — Eu não botaria minha mão no fogo por isso — disse Markeno. Em seguida, riu — Já o vi enfeitiçar mulheres. E qualquer uma faz o que você quer.


        Jondalar corou. Não pensava em suas conquistas havia bastante tempo.

        Ayla, que vinha em direção a eles, ficou intrigada com o motivo daquele rubor. Mas logo Dolando se reuniu ao grupo.

        —    Vou acompanhá-los nesta primeira parte da viagem, para mostrar-lhes as trilhas e o melhor caminho montanha acima — disse.

        — Obrigado. Será uma grande ajuda, disse Jondalar.

        — Eu vou também — disse Markeno.

        —    E eu — disse Darvalo. — Ayla olhou para ele e viu que usava a camisa que Jondalar lhe dera.

        —    E também eu — disse Rakario.

        Darvalo a encarou com uma expressão de agastamento, esperando vê-la de olhos fincados em Jondalar. Mas a moça olhava era para ele mesmo, e com um sorriso de adoração. Ayla viu que a expressão dele mudava de enfado para perplexidade, depois para confusão. Por fim, Darvo ficou vermelho. Embora surpreso, compreendera.

        Quase todo mundo se reunira no meio do campo para as despedidas dos visitantes. Muitas vozes manifestaram o desejo de ir com eles parte do caminho.

        — Eu não vou — disse Roshario, olhando para Jondalar, depois para Ayla —, mas queria que vocês dois ficassem. Desejo-lhes uma boa viagem.

        — Obrigado, Roshario — disse Jondalar, abraçando-a. — Vamos precisar mesmo de muita sorte.

        — Devo agradecer-lhe por ter trazido Ayla. Nem sei o que teria acontecido comigo sem ela. — Roshario tomou a mão de Ayla, que a apertou e também a outra, ainda na tipóia, satisfeita com a força que sentia nas duas. Em seguida, se abraçaram.

        Houve outros adeuses, mas a maior parte das pessoas pretendia acompanhar os viajantes pelo menos por algum tempo.

        —    Você vem, Tholie? — perguntou Markeno.

        — Não — disse Tholie. Tinha os olhos marejados. — Não será mais fácil despedir-me na estrada do que aqui — disse, e marchou decidida para o alto Zelandonii.

        — É difícil para mim ser amável com você neste momento, Jondalar. Sempre gostei de você e mais ainda depois que nos trouxe Ayla Desejei muito que ambos ficassem, e você não quis. Mesmo compreendendo os seus motivos, não me conformo ainda.

        — Lamento que se sinta assim, Tholie. Desejaria poder fazer alguma coisa para que se sentisse melhor.

        — Você pode, mas não vai fazer.

        Era típico de Tholie dizer exatamente o que sentia. Isso fazia com que todos gostassem dela. Com ela a gente sempre sabia onde estava.

        — Não fique zangada comigo. Se eu pudesse ficar, nada me agradaria mais do que viver com você e Markeno. Você nem imagina como me fez orgulhoso quando nos convidou, nem o quanto é difícil para mim ir embora. Mas tenho de ir, Tholie — disse Jondalar, e fitou-a com aqueles seus esplêndidos olhos azuis em que havia, agora, genuína tristeza, preocupação e carinho.

        — Jondalar, você não devia dizer-me essas coisas amáveis nem me olhar desse jeito. Só me faz desejar ainda mais que fique. Dê-me um abraço vamos.

        Ele se curvou para abraçá-la e sentiu o estorço que ela fazia para controlar o pranto. Tholie se soltou e olhou para a alta mulher loura postada ao lado dele.

        — Oh, Ayla, não quero que você se vá — disse, soluçando. E caíram nos braços uma da outra.

        —    Eu, por mim, não iria. Mas Jondalar tem de ir, não sei bem por que, e tenho de ir com ele — disse Ayla, chorando tanto quanto Tholie. De repente, a jovem mãe não suportou mais a cena, apanhou Shamio e correu para casa.

        Lobo quis segui-las.

        — Não, Lobo. Aqui! — comandou Ayla.

        —    Lobinho! Eu quero meu lobinho! — gritava Shamio, estendendo os braços para o grande carnívoro hirsuto.

        Lobo ganiu e olhou para Ayla.

        —    Não, Lobo. Fique. Nós vamos embora.

 

        Ayla e Jondalar estavam de pé na clareira que comandava uma larga vista montanha. Tinham uma sensação de perda e solidão vendo Dolando, Markeno, Carlono e Darvalo se afastarem pela trilha. O resto da Multidão que saíra com eles do acampamento fora ficando para trás em grupos de dois e de três. Quando os quatro últimos homens chegaram a uma curva do caminho, voltaram-se para acenar.

        Ayla respondeu à saudação deles com um gesto de chamada, com as costas da mão virada para eles. Mas logo se conscientizou de que nunca mais veria os Xaramudói. Naquele pouco tempo de convivência, aprendera a amá-los. Eles a tinham recebido, convidado para ficar, e ela teria vivido com eles com muito prazer.

        A partida lembrava-lhe uma outra: a partida do acampamento Mamutói, no começo do verão. Eles também a tinham acolhido de coração aberto, e ela gostava de muitos deles. Poderia ter sido feliz ali também, exceto pela necessidade de conviver com a tristeza que causara a Ranec. Além disso, partindo, havia a excitação de ir para casa com o homem que amava. Não havia essas correntes ocultas de infelicidade entre os Xaramudói, e isso fizera a partida ainda mais dilacerante. Embora ela amasse Jondalar e não duvidasse do seu desejo de querer ficar com ele, encontrara aceitação e amizade — laços difíceis de romper de maneira assim tão final.

        Viagens são cheias de despedidas, pensou. Ela se despedira, até e para sempre, do filho que deixara com o Clã. Se tivesse ficado agora, com Tholie e os outros, talvez pudesse um dia descer o Rio da Grande Mãe com os Ramudói, num barco, até o delta. Então, poderia procurar, na península, a nova caverna do Clã de seu filho. Mas não adiantava mais pensar nisso.

        Não haveria oportunidades de retorno, não haveria últimas chances com que sonhar. Sua vida a puxava em uma direção, e a vida de seu filho o puxava em outra. Iza lhe dissera: encontra sua própria gente, seu próprio homem. Ela fora aceita por gente com que tinha afinidade e achara um homem para amar que também a amava. Ganhara muita coisa, mas havia perdas também. Seu filho era uma delas, e havia que aceitar esse fato.

        Jondalar também sentia uma certa desolação, vendo que os amigos dobravam a curva da estrada e se iam para casa. Eram amigos com os quais vivera anos a fio e que chegara a conhecer muito bem. Embora não tivessem o seu sangue e seu relacionamento com eles não tivesse sobrevindo de laços matrilíneos, ele os considerava como parentes. Empenhado em voltar às suas raízes, eles eram a família que cumpria deixar para sempre, e isso o entristecia muito.

        Quando os últimos dos Xaramudói que tinham ido despedir-se dele desapareceram de vista. Lobo sentou-se no chão, ergueu a cabeça, soltou alguns ganidos, e, depois, um uivo profundo e rouco que sacudiu amanhã ensolarada. Os quatro homens surgiram de novo, já embaixo na trilha, e disseram adeus, respondendo à saudação do lobo. Um lobo também respondeu, de algum lugar. Markeno chegou a virar-se para ver de onde provinha o som, antes de prosseguir, montanha abaixo, com os companheiros. Então, Ayla e Jondalar lhes deram as costas e enfrentaram a montanha com seus picos de gelo glacial, de um brilho glauco.

        Menos elevadas, embora, que as da cordilheira ocidental, as montanhas que atravessavam agora eram contemporâneas das outras. Datavam todas, do período mais recente de formação do relevo — recente apenas em relação aos movimentos pesadamente lentos da grossa crosta de rocha que boiava no núcleo em fusão da terra primitiva. Levantado e dobrado numa série de alças paralelas, no curso de orogenia que definira todo o continente, o terreno enrugado dessa ponta mais oriental do extenso sistema de montanhas era coberto de vida verdejante.

        Uma faixa de árvores decíduas formava uma espécie de saiote estreito entre as planícies de baixo, ainda aquecidas pelos vestígios do verão, e as elevações mais frias. Na mata, composta principalmente de carvalhos e faias, com proeminentes incrustações de bétulas e bordos, folhas já mudavam de cor e formavam uma variegada tapeçaria em tons de vermelho e ocre, realçados pelos espruces sempre-verdes da orla mais alta. Um manto de coníferas — que vinha de baixo e não se compunha só do espruce, mas também de teixo, pinheiro e lariço, da variedade que perde as folhas no frio — escalava os flancos das elevações menores e cobria as escarpas dos picos mais altos com variações sutis de verde e amarelo. Acima da linha limite da floresta, havia uma faixa de pastos alpinos que a neve branqueara logo no começo da estação. E, coroando tudo, o duro capacete de gelo.

        O calor, que mal havia tocado as planícies com o advento do verão sempre efémero naquelas paragens, ja chegava ao fim, cedendo lugar ao outono e ao inverno. Uma tendência para o aquecimento gradual já moderava os piores efeitos do frio — um período intermediário de milhares de anos — mas o gelo se reagrupava para um último assalto à terra antes que a retirada ordeira e paulatina se transformasse na debandada geral dos milénios seguintes. Todavia, mesmo durante essa estiada que precedeu o avanço final, o gelo glacial não apenas cobria os picos e vestia os flancos das altas montanhas, como mantinha o continente em seu poder.

        Na paisagem acidentada, coberta de mata, e com o estorvo que era o barco circular e os mastros, Avia e Jondalar puxavam os animais pela brida a maior parte do tempo. Subiram escarpas alcantiladas, galgaram cristas, atravessaram trechos cobertos de seixos, meteram-se em ravinas precipitosas causadas pela descida, na primavera, de neve e gelo derretidos, ou pelas pesadas precipitações do outono nas montanhas do sul. Algumas das valas tinham água acumulada no fundo, ressumando de uma papa de plantas em decomposição e barro mole, que sugava pelos pés homens e animais por igual. Outras levavam correntes de água cristalina, mas todas estariam logo inundadas de novo pelo escoamento tumultuado dos aguaceiros do outono.

        Nas elevações menores, no bosque de folhas largas e árvores mais espaçadas, eles tropeçavam na vegetação rasteira, ali mais densa e viçosa, tendo de contornar as urzes ou abrir caminho na macega, penosamente. Os duros colmos e as vinhas espinhosas das amoreiras (ah, as deliciosas amoras-pretas!) eram um obstáculo formidável, que se prendia a roupas e lacerava a pele bem como o couro e as pelicas. O pêlo farto e desgrenhado dos cavalos da estepe, feito para a vida no frio, em campo aberto, logo se enredava e prendia, e até Lobo recolheu sua cota de carrapichos e gravetos.

        Muito se alegraram, por isso, ao alcançarem o patamar dos sempre-verdes, cuja sombra relativamente constante mantinha a vegetação rasteira sob controle, embora nas súbitas íngremes, onde o dossel não era tão fechado, o sol passasse mais facilmente do que teria passado na planura, facilitando o crescimento exuberante da vegetação arbustiva. Não era muito mais fácil cavalgar na floresta espessa de grandes árvores, onde os cavalos tinham de escolher caminho por entre os obstáculos, e os cavaleiros eram obrigados a curvar-se sobre o pescoço da montaria para Se desviar dos ramos baixos. Acamparam, na primeira noite, numa pequena clareira, em um outeiro rodeado de pinheiros-mansos, desses que não têm as folhas em forma de agulhas.

        Já anoitecia no segundo dia de viagem quando chegaram ao nível das últimas árvores. Livres, finalmente, da vegetação cerrada de pequeno porte e do rude obstáculo das essências gigantes, armaram sua barraca junto de uma torrente de águas frias num pequeno prado descoberto. Tirada a carga dos cavalos, eles se puseram logo a pastar com avidez. Por adequada que fosse sua ração habitual de feno, dos terrenos mais baixos e mais quentes, o capim verde e as ervas alpestres daquela região foram bem recebidos.

        Um pequenino rebanho de cervos dividiu com eles a pastagem. Os machos esfregavam os chifres nos troncos para livrá-los do revestimento macio de pele e vasos sanguíneos conhecido por veludo, a fim de prepara-los para o cio — e os combates singulares do outono.

        —    Logo começa para eles a estação dos Prazeres — comentou Jondalar, quando armavam a fogueira. — Estão se aprestando para as lutas e as fêmeas.

        —    Lutar constitui um Prazer para os machos? — perguntou Ayla.

        —    Nunca pensei nisso nesses termos, mas talvez constitua, para alguns pelo menos.

        —    Você pessoalmente gosta de lutar com outros homens?

        Jondalar franziu a testa e deu toda a atenção à pergunta.

        — Posso dizer que, nesse terreno, já fiz a minha parte. Algumas vezes a gente é obrigado a entrar numa briga, por este ou aquele motivo. Não poso dizer que gosto de lutar. Não gosto, se é a sério. Não me importo, se for de brincadeira ou em competição.

        — Os homens do Clã não lutam uns com os outros. Não é permitido. Mas tomam parte em competições — disse Ayla. — Mulheres também lutam, mas essas já são lutas de outra espécie.

        —    Em que se distinguem essas lutas das demais?

        Ayla fez uma pequena pausa para pensar.

        —    A competição entre as mulheres se dá naquilo que elas produzem: utensílios, obras de trançado, bebês — disse ela, e sorriu —, embora esta última seja uma competição mais sutil. De qualquer maneira, quase todo mundo pensa que elas ganham dos homens na matéria.

        Mais alto, na montanha, Jondalar divisou uma família de caneiros selvagens, com grandes chifres enrolados junto da cabeça.

        — Aqueles, sim — disse ele, apontando —, são bons de briga. Quando galopam um para o outro e batem de cabeça, o som é o de um trovão.

        — Quando veados e carneiros investem uns contra os outros, trançando seus chifres, estão de fato lutando ou simplesmente competindo?

        — Não sei. Podem sair feridos desses embates, mas isso não é comum. De regra, um cede quando o outro prova que é mais forte. As vezes se limitam, ambos, a pavonear-se e a berrar, e não lutam coisa nenhuma. Talvez seja de fato mais competição ou jogo que combate. — E com um sorriso: — Você faz cada pergunta, mulher!

        Uma brisa leve e fresca tornou-se fria quando o sol descambou e sumia do campo de visão dos viajantes. Já no correr do dia alguma neve cairá muito pouca, dissolvendo-se logo nos espaços abertos, mas acumulando-se na sombra, o que anunciava uma noite gelada e mais precipitação de neve, possivelmente.

        Lobo desapareceu logo que a barraca foi armada. Quando escureceu sem que ele tivesse retornado, Ayla começou a ficar aflita.

        — Você acha que devo assoviar chamando-o? — perguntou, quando se preparavam para dormir.

        — Não é a primeira vez que ele sai assim para caçar sozinho. Você está acostumada a ter Lobo por perto porque o mantém assim. Ele volta.

        — Espero que volte pelo menos amanhã de manhã. — disse Ayla, levantando-se para olhar. Mas era difícil enxergar qualquer coisa além da fogueira.

        — Ele é um animal. Sabe nadar por aí. Venha, Ayla, e sente-se — disse Jondalar. Colocou mais uma acha de lenha no fogo e ficou por um momento vendo as fagulhas que subiam para o céu.

        —    Olhe aquelas estrelas. Já viu tantas assim de uma só vez?

        Ayla olhou para cima e se deixou tomar de assombro.

        —    Parecem muitas, de fato. Talvez seja por estarmos mais perto delas, aqui em cima, que vemos tantas, principalmente das pequenas... Ou será que estão mais longe? Você acha que elas vão, assim, além, indefinidamente? Que não acabam mais?

        — Não sei. Nunca pensei nisso. Quem poderá dizer?

        — Sua Zelandoni saberá?

        — Talvez ela saiba, mas dificilmente nos contará. Há coisas que só Aqueles que Servem à Mãe devem saber. Mas você faz mesmo cada pergunta, Ayla! — disse Jondalar. Sentiu frio, de repente. Sem ter certeza se era mesmo do tempo, acrescentou: — Estou ficando com frio, e temos de sair cedo, amanhã. Dolando diz que as chuvas podem começar a qualquer momento agora. O que pode significar neve, aqui nestas culminâncias. Gostaria de estar embaixo, na planície, quando isso ocorrer.

        — Volto já. Quero apenas certificar-me de que Racer e Huiin estão bem. Talvez encontre Lobo com eles.

        Ayla ainda estava preocupada quando se enfiou por entre as pelicas da cama. Custou a dormir, com o ouvido atento a qualquer ruído que pudesse indicar a volta do animal.

        Estava por demais escuro para ver alguma coisa além das estrelas, das inumeráveis estrelas que subiam do fogo para o céu no turno. Mas ela continuou olhando. E então duas estrelas, duas luzes amarelas, se aproximaram uma outra na treva. Eram olhos, os olhos de um lobo que a fixavam. Ele se virou e começou a afastar-se. E ela entendeu que o animal queria que o seguisse. Mas quando começou a fazê-lo, o caminho foi de súbito bloqueado por um urso de grandes proporções.

        Ela recuou apavorada quando a gigantesca fera se ergueu nas patas traseiras e grunhiu. Mas quando ela olhou outra vez descobriu que não era urso nenhum. Era Creb, o Mog-ur, com seu manto de pele de urso.

        A distância ouviu que seu filho a chamava. Olhou por cima do ombro do grande mago e viu o lobo. Mas não era apenas um lobo, era o espírito do Lobo, o totem de Dure, e esse queria que ela o acompanhasse. Mas então o espírito do Lobo se transformou no seu filho, e era Durc que queria que ela o seguisse. Ele chamou uma vez mais, mas quando ela procurou atendê-lo, Creb se interpôs. E apontou alguma coisa atrás dela.

        Ela se virou e viu um caminho que levava à entrada de uma caverna não uma caverna profunda, mas uma platibanda de pedra de rocha muito clara, à beira de um penhasco. E acima dela, uma estranha pedra que parecia parada no ar no ato de cair. E quando olhou por cima do ombro Creb e Dure já não estavam lá.

        — Creb! Dure! Onde estão vocês? — disse Ayla, sentando-se de repente.

        — Ayla, você está sonhando de novo — disse Jondalar, sentando-se também.

        — Eles se foram! Por que ele não deixou que eu fosse com eles? — disse Ayla, com lágrimas nos olhos e um soluço na garganta.

        —    Quem foi embora? — perguntou Jondalar, tomando-a nos braços.

        — Dure. E Creb não deixou que eu fosse com ele. Atravessou-se no meu caminho. Por que terá feito isso? — disse ela, chorando.

        — Foi um sonho, Ayla. Nada mais que um sonho. Talvez queira dizer alguma coisa. Mas não passou de um simples sonho.

        — Você está certo. Sei que está. Mas parecia tão real!

        — Você tem pensando muito no seu filho?

        — Acho que sim. Tenho pensado que nunca mais o verei.

        —    Talvez por isso tenha sonhado com ele. Zelandoni sempre disse que quando a gente tem um sonho dessa espécie deve procurar lembrar tudo o que puder sobre ele para um dia entendê-lo — disse Jondalar, tentando ver a expressão de Ayla no escuro. — Procure dormir de novo.

        Ficaram os dois, lado a lado, e acordados, por algum tempo. Mas acabaram adormecendo. Quando acordaram, na manhã seguinte, o céu estava sombrio e Jondalar ficou ansioso. Era preciso partir. Lobo, no entanto, não voltara. Ayla assoviava periodicamente, enquanto desmontavam a barraca e empacotavam as coisas, mas ele não apareceu.

        — Temos de ir, Ayla. Ele nos alcançará, como sempre fez — Jondalar.

        — Não vou enquanto ele não voltar. Você vai. Eu espero. Vou procurá-lo.

        —    Como? Aquele animal pode estar em mil lugares.

        —    Talvez tenha descido a montanha, de volta para Shamio. Ele gostava dela. Talvez eu deva refazer nosso caminho, e ir atrás dele.

        — Não voltaremos. Não depois de ter cavalgado até aqui.

        — Eu vou, se for preciso. Não sigo viagem até que encontre Lobo.


Jondalar abanou a cabeça, mas Ayla começou a fazer de novo o caminho percorrido. Ela estava decidida. Já podiam estar longe se não fosse o animal. Os Xamudói que ficassem com ele!

Ayla seguiu sozinha, assoviando e, de repente, quando estava para entrar na floresta, Lobo surgiu do outro lado da clareira e correu para ela. Pôs-lhe as patas nos ombros com tal força que quase a derrubou. E se Pôs a lamber-lhe a boca e mordiscar o queixo.

—    Lobo! Lobo! Aí está você. Por onde andou? — disse Ayla, garrando-o pela coleira de pêlos, esfregando o rosto no focinho do animal e mordendo-o de leve para responder à sua saudação. — Eu estava muito aflita. Você não devia fugir assim.

— Acha que podemos ir agora? — perguntou Jondalar. — Já perdemos metade da manhã.

—    Pelo menos ele veio, e não tivemos de voltar — disse Ayla, montando. — Em que direção você quer que a gente vá? Estou pronta.

Atravessaram toda a pastagem sem trocar palavra, irritados um com o outro. Chegaram, depois, a uma crista. Cavalgaram ao longo dela, procurando uma passagem, até darem com uma descida íngreme, juncada de seixos e matacões. Parecia muito instável, e Jondalar ainda tentou encontrar outra saída. Se estivessem sozinhos, poderiam ter passado por diversos lugares, mas só aquela, apesar de escorregadia, era praticável para os cavalos.

— Ayla, você acha que os cavalos podem subir por aqui? Não creio que haja outro caminho. Podemos descer e contornar o morro.

— Você não admitia voltar, não é mesmo? Principalmente por causa de um animal.

— Não queria, mas o que for preciso faremos. Se você acha a escalada perigosa para os animais, desistimos.

— E se eu a julgasse perigosa para Lobo? Nós o abandonaríamos aqui?

Para Jondalar os cavalos eram úteis. Embora ele gostasse do lobo, não achava razoável que atrasassem a viagem por causa dele. Mas era óbvio que Ayla não concordava com isso, e ele sentira uma corrente de animosidade, uma tensão. Provavelmente porque ela teria preferido ficar com os Xaramudói. Pensou que uma vez que alguma distância existisse entre eles e o acampamento de Dolando, ela passaria a antegozar a chegada ao destino. Mas não queria fazê-la mais infeliz agora do que já estava.

— Não é que eu queira deixar Lobo no caminho. Pensei apenas que ele seria capaz de alcançar-nos como já fez antes — disse Jondalar, embora, na verdade, tivesse estado mesmo a ponto de abandonar o animal.

Ela sentiu que havia mais no que ele dizia, mas também não queria que o desacordo entre eles crescesse. Afinal, Lobo estava com eles, e não havia mais motivo para aflições. Com a ansiedade dissipada, a raiva também se fora. Desmontou, então, e procurou subir a pé testando o aclive.

— Não estou de todo convencida, mas acho que vale a pena tentar. Não é tão ruim quanto parecia à primeira vista. Se eles não conseguirem, então procuraremos algum outro caminho.

Aquele não era, na verdade, tão inseguro quanto parecera à primeira vista. Embora houvesse alguns momentos difíceis, ficaram ambos surpresos com o desempenho das montarias. Alegraram-se de ter deixado o problema para trás, mas encontraram outros mais acima. Na sua preocupação comum um com o outro e com os cavalos, acabaram por conversar outra vez naturalmente.

Para Lobo a subida era fácil. Foi até o alto e voltou enquanto eles conduziam os cavalos com cautela. Quando chegaram ao topo, Ayla assoviou e ficou esperando, Jondalar observou-a e achou que parecia muito mais preocupada com o lobo do que antes. Por que seria? Quis perguntar-lhe, mudou de ideia para não desgostá-la, mas acabou levantando a questão de qualquer maneira.

—    Ayla, estarei errado ou você anda mais preocupada com Lobo do que de hábito? Gostaria que se abrisse comigo. Você sempre insistiu em não termos segredos.

Ela hesitou fundo, fechou os olhos, franziu o cenho. Depois resolveu encará-lo e ao problema.

—    Tem razão. Não é que eu quisesse esconder isso de você. Queria esconder o problema de mim mesma. Você se lembra daqueles dois veados que encontramos esfregando os chifres nas árvores para remover o veludo?

—    Sim — disse Jondalar.

—    Não estou absolutamente certa disso, mas talvez seja a estação dos Prazeres para os lobos também. Nem quero pensar nisso de medo de que, pensando, aconteça, mas Tholie trouxe a questão à baila quando eu falei sobre o leão, Neném, que me deixou para encontrar uma companheira. Ela me perguntou se eu achava que Lobo faria a mesma coisa qualquer dia. E não quero que isso aconteça. Lobo é como um filho para mim.

—    E o que a leva a pensar que ele o faça?

— Antes da partida final de Neném, ele desaparecia assim por períodos cada vez mais longos. Às vezes, quando voltava, eu via que ele havia lutado. Sabia que estava à procura de uma leoa. Pois achou uma. Agora, cada vez que Lobo some, temo que ele esteja em busca de uma companheira.

— É isso então. — Acho que não podemos fazer alguma coisa. Mas será esse mesmo o caso? — disse Jondalar.

E a despeito dele mesmo, lhe veio o pensamento de que desejava que fosse. Não queria ver Ayla infeliz, porém mais de uma vez o lobo já havia provocado desavenças entre os dois. Tinha de admitir que se Lobo encontrasse um amor e partisse, ele lhe desejaria boa sorte e ficaria satisfeito com o desfecho.

—    Não sei — disse Ayla. — Ele sempre voltou, até agora. E parece contente de viajar conosco. Ele me saúda como se nos considerasse sua verdadeira alcateia, mas você sabe como são os Prazeres. É um Dom muito forte. O desejo pode ficar incontrolável.

— Eu sei. Mas, como já disse, não podemos fazer grande coisa. Seja como for, alegro-me que você tenha falado disso.

Cavalgaram em silêncio, lado a lado, por algum tempo, mas era um silêncio amistoso. Ele ficara de fato satisfeito por terem tratado do assunto. Pelo menos entendia agora um comportamento dela que lhe parecera estranho. Ayla se vinha portando como uma espécie de mãe por demais extremosa, o que não era natural nela, nem ele desejaria que fosse. Tinha pena dos rapazinhos que as mães tolhiam, que não podiam fazer coisas um pouco perigosas, como penetrar numa caverna mais profunda ou escalar montanhas.

—    Olhe, Ayla, um cabrito-montês! — disse, apontando um belo animal semelhante ao bode, mas com longos chifres curvos. Postava-se bem na borda de uma saliência da montanha, no alto.

— Já cacei animais como esse. E veja mais para cima: são camurças!

—    Ah, são esses os animais que os Xamudói caçam? — perguntou Ayla, observando aqueles exemplares de antílope. As camurças são aparentadas às cabras-montesas, mas têm os chifres menores e mais direitos e fazem incríveis cabriolas nos picos mais inacessíveis e nas encostas mais íngremes.

—    Sim, são. Já cacei com os Xamudói.

— Como é possível matar animais assim? Como vocês conseguem pegá-los?

— É uma questão de subir atrás deles. Eles costumam olhar para baixo todo o tempo a ver se algum perigo os ameaça, de modo que se a gente consegue ficar acima deles, chega em geral suficientemente perto para abatê-los. E você percebe como o propulsor de lanças pode ser útil — explicou Jondalar.

—    Isso me faz apreciar ainda mais a roupa que Roshario me deu — disse Ayla.

Continuaram a escalada e, à tarde, estavam, já, na linha da neve. Paredões lisos de pedra se elevavam de um lado e de outro deles, com manchas de gelo e neve não muito distantes, para cima. O topo do talude a frente se recortava contra o céu azul e parecia conduzir à borda do mundo. Ao alcançarem o ponto mais alto, pararam para contemplar a vista, que era espetacular.

Atrás deles via-se todo o caminho que tinham feito subindo a montanha desde a faixa de árvores. Dali para baixo, os sempre-verdes que cobriam a rocha fundamental disfarçavam o terreno áspero que tanto esforço lhes custara. Para leste, podiam divisar até a planície com as fitas Trançadas dos rios correndo preguiçosamente — o que causou surpresa a Ayla. O Rio da Grande Mãe parecia um simples conjunto de fios d'água daquele privilegiado ponto de observação no cume gelado da montanha, e ela mal podia acreditar que, tempos atrás, eles tinham suado de calor Viajando ao longo do seu curso. À frente via-se a próxima cordilheira, um pouco menos elevada, e o fundo vale coberto de pontas verdes e plumosas que os separava dela. Para cima, muito perto de onde estavam, os picos cintilantes de gelo.

Ayla correu os olhos em torno, tomada de um temor respeitoso. Seus olhos brilhavam de admiração, tocados pela beleza e grandiosidade da paisagem. No ar frio e limpo, o vapor que escapava da sua boca ao falar fazia cada excitada respiração perceptível.

—    Oh, Jondalar, estamos acima de tudo o que existe. Jamais subi tão alto. Sinto-me no topo do mundo. É tudo tão... belo, tão emocionam.

Ouvindo aquelas expressões de maravilhamento, vendo os olhos brilhantes dela, seu formoso sorriso, o entusiasmo que ele mesmo sentia diante daquele panorama esplendoroso se acendeu com a excitação de Ayla e ele ardeu de desejo por ela.

—    Sim, é muito belo. E excitante também.

Alguma coisa na voz de Jondalar pôs um arrepio no corpo de Ayla e obrigou-a a desviar a vista da paisagem.

Os olhos dele tinham uma tonalidade tão extraordinária de azul que ela imaginou por um momento que ele roubara dois pedaços do céu luminoso para enchê-las com seu amor e desejo. Sentiu-se apanhada por eles, capturada pelo seu inefável encanto, cuja origem era tão misteriosa para ela quanto a magia do amor dele, mas que ela não podia nem queria negar. O desejo de Jondalar por ela sempre fora o sinal dele. Para Ayla, não era um ato de vontade, mas uma reação física, uma necessidade tão forte e irresistível quanto a que ela mesma sentia.

Sem se dar conta de haver saído do lugar, Ayla se viu nos braços dele, esmagada por ele, e com a boca ardente e faminta do homem na sua. Certamente o que não faltava na sua vida eram Prazeres. Jondalar e ela partilhavam regularmente daquele Dom da Mãe, com grande contentamento, mas aquele momento presente era excepcional. Talvez fosse o cenário, mas ela percebia que cada sensação parecia intensificada. Onde quer que o corpo dele a tocasse uma descarga de sensações corria por ela, da cabeça aos pés. As mãos dele estavam nas suas costas, seus braços a enlaçavam, as coxas estavam coladas às suas. O volume da sua virilidade, percebido através da espessura das parkas de inverno, forradas de pêlo, era quente, e os lábios apertados nos seus lhe davam a indescritível convicção de não querer que ele parasse nunca.

Do momento em que a soltou e recuou um pouco para abrir os fechos da roupa externa dela até que a tocasse de novo, ela ardeu de desejo e de expectação. Mal podia esperar e, no entanto, não queria que ele se apressasse. Quando ele fechou a mão no seu seio por debaixo da túnica, ela gostou de senti-la fria a contrastar com o calor que tinha por dentro. Prendeu a respiração quando ele apertou um mamilo endurecido, arrepiando-lhe a pele e levando a excitação até aquele ponto dentro dela que ardia no desejo de mais.

Jondalar percebeu a forte reação na mulher e sentiu que ele próprio se inflamava ainda mais. Seu membro engrossou, ereto, e pulsou de tão cheio que estava. Sentiu que a língua de Ayla, quente e macia, se introduzira na sua boca e sugou-a. Então soltou-a, para buscar a macia, quentura dela, e de súbito sentiu uma vontade incoercível de provar o sal e sentir as dobras molhadas da outra abertura. Mas não queria, ao mesmo tempo, interromper os beijos que lhe dava. Ah, se pudesse tê-la toda ao mesmo tempo! Tomou os dois seios nas mãos, brincando com os bicos empinados, amassando, esfregando. Depois ergueu a túnica, pôs um deles na boca, e chupou com força, sentindo que ela apertava o corpo contra o dele e gemia baixinho de prazer.

Sentiu que o membro latejava e imaginou-o todo dentro dela. Beijaram-se ainda, mas ela sentiu que seu próprio desejo era agora mais agudo e mais urgente. Estava faminta pelo toque dele, suas mãos, seu corpo, sua boca, seu sexo.

Ele procurava remover-lhe a parka. Ayla ajudou-o, deleitando-se com o vento frio quando se desvencilhou da roupa. O vento era quente com as mãos de Jondalar no seu corpo, com a boca de Jondalar na sua boca. Sentiu que ele desatava os amarrilhos das suas perneiras, que as puxava para baixo. E logo estavam os dois deitados na parka estendida no chão, e as mãos de Jondalar acariciavam suas cadeiras, sua barriga, a parte interna das pernas. Ela se abriu toda a esse contato.

Ele se pôs entre as coxas da mulher, e o calor da sua língua explorando acendeu pontos de excitação por toda parte. Ela era tão sensível, suas reações tão intensas, que fazer amor lhe era quase insuportável, ou quase insuportavelmente estimulante.

Jondalar sentiu aquela vigorosa e imediata reação ao seu leve toque. Ele fora treinado como britador de pederneiras, artífice de ferramentas e armas de pedra, e era considerado o melhor do seu ramo pela sensibilidade ao sílex com suas finas, sutis variações. As mulheres respondiam à sua percepção aguçada e às suas manipulações de perito exatamente como uma fina pedra-de-fogo o faria. Mulher e pedra traziam à luz o que de melhor havia nele. Ele gostava sinceramente de ver uma bela ponta de lança emergir de uma peça de quartzo graças às suas ministrações de especialista e gostava de ver uma fêmea excitada ao máximo do seu potencial, e passara muito tempo praticando as duas artes.

Com sua inclinação natural e genuíno desejo de estar atento aos sentimentos de uma mulher, Ayla principalmente, naquele mais íntimo de todos os momentos, ele sabia que um toque de pluma a excitaria mais agora embora uma técnica diversa pudesse ser apropriada depois, num outro momento.

Beijou o interior da coxa da mulher, depois correu a língua de baixo para cima, notando que a pele se eriçava. De olhos fechados, ela estremecia, mas não se recusava. Ele se ergueu, e tirou a própria parka para cobri-la embora só até a cintura.

Para ela o frio não importava, mas o agasalho dele, forrado de pêlo e ainda quente, oloroso do seu forte cheiro de homem, era uma verdadeira maravilha. O contraste do vento frio com a pele das suas Pernas nuas, molhadas da lingua dele, dava-lhe calafrios de desejo. Percebeu que um líquido quente lhe imundava as dobras. Aquilo e o frio do vento lhe deram um desejo insuportável. Com um gemido rouco ela arqueou o corpo ao encontro dele.

Com as mãos, Jondalar separou-lhe os lábios, admirou a bela cor rosada daquela flor aberta, e, incapaz de conter-se por mais tempo, aqueceu as pétalas com a língua molhada, saboreando-as. Ela teve calor, depois frio, e ficou palpitante, em resposta. Aquilo era novo, nada que ele já tivesse feito antes. Jondalar usava o próprio ar do pico da montanha para lhe dar Prazer, e em algum outro plano, interior, ela admirou aquilo.

Mas, como ele continuasse, o ar ficou esquecido. Com uma pressão maior, e a provocação, com que estava familiarizada, da boca e das mãos do homem, estimulando, encorajando, incitando seus sentidos a responder, ela se esqueceu, até, de onde estava. Sentia apenas a boca que sugava, a língua que lambia e espetava a sede dos Prazeres, os dedos sapientes que se lhe metiam por dentro, nos refolhos, e, depois, só a maré que enchia, a onda que formava uma crista e rebentava, estrondando por cima dela, que agarrava o membro dele e o guiava para o lugar certo. Então, empurrou o corpo para cima, e ele a encheu.

Jondalar enfiou seu fuste até o fundo, fechando os olhos ao sentir a acolhida que ela lhe dava, úmida e quente. Esperou um momento, imóvel, para em seguida recuar, sentindo a carícia do túnel profundo, e empurrando outra vez. Enfiava e puxava, sentindo que cada golpe o adiantava um pouco, e que a pressão dentro dele crescia. Ouviu-a gritar, arquear-se contra ele, e gozou, explodindo na libertação de vaga após vaga de Prazer.

No silêncio absoluto, só se ouvia agora a voz do vento. Os cavalos esperavam pacientemente que aquilo acabasse, e o lobo assistia a tudo com interesse. Aprendera, contudo, a conter qualquer curiosidade mais ativa. Por fim, Jondalar se soergueu, apoiado nos braços, e contemplou a mulher que amava.

—    Ayla, e se tivermos feito um bebê?

—    Não se preocupe, Jondalar. Não creio que tenhamos feito bebê algum.

Ela se alegrava de ter encontrado mais das plantas anticonceptivas, e ficou tentada a confiar-lhe o segredo, como fizera com Tholie. Tholie ficara, de início, tão chocada, embora fosse mulher, que Ayla resolveu não contar nada.

—    Não tenho muita certeza, mas acho que este é desses períodos em que não pego filho — disse. E era verdade. Não estava absolutamente certa.

Iza tivera uma filha, apesar do remédio, que tomava havia anos. Talvez as plantas perdessem a eficácia com o uso prolongado. Ou talvez Iza tivesse esquecido de tomar a poção, embora Ayla duvidasse disso. Ficava imaginando o que aconteceria se deixasse de vez aquele chá matinal.

Jondalar esperava que ela tivesse razão, embora uma pequena parte dele desejasse o contrário. Ficava pensando se haveria um dia um filho do seu lar, produto do seu espírito, ou, quem sabe, da sua essência.

Levaram alguns dias para alcançar a cordilheira seguinte, que era mais baixa, e não se alçava muito acima do nível das árvores, mas tiveram dali sua primeira visão das largas estepes do oeste. Era um dia de céu limpo, apesar de ter nevado, e a distância podiam divisar uma terceira linha de montanhas incrustadas de gelo. Na planície chata havia um rio, que corria para o sul, em direção ao que lhes pareceu um grande lago intumescido.

— Aquele será, outra vez, o Rio da Grande Mãe?

— Não, é o da Irmã. Que temos de atravessar. Receio, aliás, que esse venha a ser o mais difícil cruzamento de toda a nossa Jornada — explicou Jondalar. — Vê aquilo, ao longe, no rumo do sul? Onde a água se alarga a ponto de parecer um lago? Lá está o Rio da Mãe ou, melhor, o lugar em que o Rio da Irmã se lança nele... ou procura fazê-lo. Ele recusa e transborda, e as correntes, ali, são perigosas. Nós não vamos tentar passar naquele ponto, mas Carlono diz que, mesmo a montante, o rio da Irmã é de curso turbulento.

Aconteceu que esse dia, em que olharam para oeste, a partir da segunda cordilheira, foi o último dia claro. Acordaram na manhã seguinte sob um céu encoberto e sombrio, tão baixo que se fundia na neblina que subia das depressões do terreno. Havia uma garoa palpável no ar, que se acumulava em gotículas nos cabelos e nas pelicas. A paisagem parecia envolta num impalpável sudário que só permitia que as árvores se materializassem como árvores, deixando de ser formas indistintas, quando o observador se aproximava delas.

À tarde, com uma trovoada imprevista e retumbante, os céus se abriram, depois de acesos, minutos antes, por um único relâmpago solitário. Ayla estremeceu, surpresa, e se deixou possuir pelo terror ao ver os sucessivos clarões lívidos que corriam pelos picos das montanhas que tinham deixado à retaguarda. Mas não era o raio que a assustava, mas a antecipação do estrondo que ele pressagiava de perto.

Ayla se encolhia cada vez que aquilo acontecia, longe ou perto. Parecia-lhe que a cada trovão a chuva recrudescia, como que tangida das nuvens pelo som. Enquanto desciam, trabalhosamente, o flanco ocidental da montanha, a chuva caía sobre eles em lençóis e catadupas. Os riachos enchiam e transbordavam. Pequeninos arroios, que antes saltavam, descendo, de saliência em saliência da rocha, se convertiam em torrentes tumultuosas. O chão ficava escorregadio e, em muitos lugares, perigoso.

Davam graças pelas suas parkas Mamutói de chuva feitas de couro de veado. A de Jondalar era do gigantesco megácero das estepes: a de Ayla rena do norte. Vestiam-nas por cima de suas parkas de peliça, quando fazia frio, ou de suas túnicas de uso cotidiano, quando fazia calor. A superfície externa desses impermeáveis era tingida de vermelho e ocre. Os pigmentos minerais, dissolvidos em gordura animal, eram esfregados mos casacos com um instrumento especial de brunir feito de um osso de costela. Com o processo, os abrigos adquiriam um acabamento lustroso à prova d'água. Mesmo molhado, um casaco desses oferecia proteção, mas era impotente contra um dilúvio como o que desabava agora sobre os viajantes.

Quando pararam para o pernoite e armaram a barraca, tudo estava úmido, inclusive as peles de dormir, e era impossível acender o fogo. Carregaram lenha para dentro, galhos mortos, baixos, de coníferas, na esperança de que secassem até de manhã. Mas quando acordaram chovia ainda, torrencialmente, e suas roupas continuavam úmidas. Graças, porém, a uma pederneira e a um pouco de mecha que levava consigo, Ayla conseguiu acender uma pequena fogueira para ferver água e fazer um chá que os esquentasse. Comeram só dos pequenos bolos quadrados e chatos que Roshario lhes dera, uma variação do alimento compactado, feito habitualmente para viagem, tão substancioso e nutritivo que uma pessoa podia subsistir indefinidamente, mesmo que não comesse qualquer outra coisa. Consistia em carne seca e moída, misturada com gordura, passas de frutas ou bagas, e, ocasionalmente, raízes ou grãos cozidos.

Encontraram os cavalos impassíveis do lado de fora da tenda, de cabeça baixa, pingando, a água a escorrer da sua pelagem hirsuta de inverno. O barco desabara e estava cheio d'água. Estavam dispostos a deixá-lo ficar ali mesmo e também os mastros. O trenó fora útil para arrastar cargas pesadas nas planícies abertas e era eficiente, quando combinado ao barco circular, para transportar seu equipamento para a outra margem de rios. Mas na montanha acidentada e coberta de árvores fora um estorvo. Não só atrasava a viagem como tornava mais arriscada a descida, debaixo de chuva, por encostas abruptas. Se Jondalar não soubesse que a maior parte do terreno que tinham ainda de atravessar era plano, já teria abandonado aquela tralha havia muito tempo.

Eles separaram o bote das varas e esvaziaram-no segurando-o no ar por cima das próprias cabeças. Nessa posição se entreolharam e riram. Ficavam, pela primeira vez, a seco ao ar livre. Não lhes tinha ocorrido antes que aquela meia-laranja, que os salvara da água, num rio, podia também funcionar como cobertura defendendo-os da chuva. Talvez não quando estivessem em movimento, mas quando a precipitação fosse tamanha eles teriam de parar e esperar uma estiada.

Essa descoberta não resolvia o problema de como transportá-lo pelo resto da Jornada. Então, como se ambos tivessem tido simultaneamente a mesma ideia, puseram-no em cima de Huiin. Se pudessem fixá-lo, abarraca e duas das cestas ficariam sempre secas. Usando os mastros e algumas cordas, conseguiram amarrá-lo bem. Ficou desajeitado, e sabiam que seria preciso retirá-lo em passagens estreitas ou evitá-las, contornando eventuais obstáculos, mas afinal não daria tanto trabalho quanto antes e podia oferecer suas vantagens.

Encabrestaram e carregaram os cavalos, mas sem a intenção de montá-los. Puseram a pesada barraca de couro e pano de forrar chão nas costas de Huiin, com o barco por cima de tudo, emborcado, apoiado nos mastros em cruz. Um couro de mamute, que Ayla costumava usa para cobrir a comida, foi posto no lombo de Racer para proteger as duas cestas que o garanhão levava.

Antes de saírem, Ayla passou algum tempo com Huiin, agradecendo-lhe e tranquilizando-a, na linguagem especial que tinham elaborado no Vale dos Cavalos. Não importava que o animal compreendesse as palavras. A linguagem era familiar e tranquilizante, e a égua indubitavelmente reagia a determinados sons e movimentos como sinais.

Até Racer ficou de orelha em pé, bateu com a cabeça, e relinchou durante o discurso de Ayla. Jondalar concluiu que ela estava estabelecendo alguma espécie de comunicação com os cavalos cuja natureza lhe escapava. Aquilo fazia parte do mistério que tanto o fascinava.

Começaram a descer pelo terreno acidentado puxando os animais e mostrando-lhes o caminho. Lobo, que passara a noite inteira na barraca, e estava relativamente seco no começo da marcha, ficou rapidamente mais ensopado que Huiin e Racer, com o pêlo cheio e desgrenhado colado ao corpo. Ele parecia magro, assim, e menor, mostrando os contornos de osso e músculo. As parkas úmidas do homem e da mulher eram quentes assim mesmo, senão inteiramente confortáveis, mas o forro de pele dos capuzes ficara molhado e emplastrado. Depois de algum tempo, a água começava a escorrer pelo pescoço deles, mas não podiam fazer nada. Os céus continuavam inclementes, e Ayla achou que o tempo chuvoso iria ser, dali por diante, a regra.

De fato, choveu quase sem parar nos dias que se seguiram, durante toda a descida da montanha. Quando alcançaram a linha das altas coníferas, o dossel lhes deu alguma proteção, mas deixaram a maior parte das árvores para trás quando o terreno se aplainou num largo terraço, embora o leito do rio estivesse muito mais embaixo. Ayla começou a ver que o rio que tinham visto de cima devia estar mais longe do que ela havia pensado e devia ser, também, muito maior. Embora a chuva ficasse fraca, de vez em quando, não parou. E sem a proteção, por incompleta que tivesse sido, das árvores, ficavam ensopados e infelizes. Mas tinham uma consolação: podiam, agora, cavalgar, pelo menos parte do tempo.

Seguiram no rumo do poente, por uma série de terraços de loess, os mais altos dissecados por incontáveis torrentes, provindas da montanha, como resultado daquele dilúvio. Eles patinharam na lama e cruzaram diversos desses riachos de ocasião, que despencavam das alturas, drenando-as. Então chegaram a outro terraço, e encontraram, inesperadamente, uma pequena colônia.

As casas, de madeira bruta, eram pouco mais que telhados de meia-água, obviamente improvisadas, e pareciam desengonçadas e em ruínas, mas pelo menos ofereciam abrigo e foram uma alegria para os olhos dos dois viajantes. Ayla e Jondalar correram para elas. Desmontaram, pensando no terror que os animais domesticados podiam infundir aos possíveis habitantes, e chamaram em Xaramudói, esperando que a língua fosse familiar aos locais. Mas não obtiveram resposta e, olhando mais de perto verificaram que os alojamentos estavam desertos.

— Estou certo de que a Mãe se dá conta de que precisamos de um teto. Doni não terá objeções a uma invasão — disse Jondalar, entrando em um dos telheiros e olhando em volta. Estava completamente vazio, a não ser por uma correia de couro dependurada de uma parede. O chão estava coberto de lama, como se uma das torrentes tivesse passado por dentro do casebre antes de ser desviada. Saíram e foram ver o maior de todos.

Ao se aproximarem, Ayla deu pela falta de uma coisa importante.

—    Jondalar, onde está o Doni? Não há uma figura da Mãe guardando a entrada.

Ele olhou e concordou com ela.

—    Isto deve ser um acampamento temporário de verão — disse — Eles não deixaram um Doni por não lhe terem pedido proteção. Não havia necessidade. Quem quer que tenha erguido esta instalação não esperava que durasse até o inverno. Eles abandonaram a região e levaram tudo ao partir. Buscaram, provavelmente, um lugar mais alto quando a chuva começou.

Entraram na casa e viram que era muito mais substancial que a anterior. Havia gretas que ninguém obturara nas paredes, e goteiras em diversos lugares, mas o chão de madeira bruta se elevava acima do barro pegajoso, e uns poucos pedaços de madeira estavam espalhados na vizinhança de uma lareira feita com pedras. Era o lugar mais seco e mais confortável que viam havia muito tempo.

Saíram, descarregaram o trenó e trouxeram os cavalos para dentro. Ayla acendeu o fogo, e Jondalar foi até uma das construções menores para tirar madeira das paredes internas, mais secas, para usar como lenha. Quando voltou, Ayla esticara cordas de parede a parede e estava estendendo a roupa para secar. Jondalar a ajudou a esticar o couro da barraca, mas tiveram de juntá-lo outra vez para escapar a uma goteira que não parava de pingar.

—    Temos de fazer alguma coisa — disse Jondalar.

—    Vi tábuas lá fora — disse Ayla. — Posso tecer as folhas rapidamente e cobrir os buracos com as esteirinhas.

Saíram para colher folhas duras que servissem para remendar o forro. Voltaram com uma braçada das plantas. As folhas, enroladas em torno dos talos, tinham meio metro de comprimento, em média, por dois centímetros ou mais de largura, e afilavam para a ponta. Ayla já ensinara a Jondalar os elementos da arte de fazer trançados. Vendo-a fazer seções quadradas de esteiras, ele se pôs também a fazer uma. Ayla viu aquilo e teve de rir sozinha. Não podia conter-se. Estava surpresa por Jondalar fazer trabalho de mulher, mas contente com a sua disposição. Trabalhando juntos, logo tiveram esteiras suficientes para tapar todas as goteiras.

As casas eram feitas de caniços amarrados a um certo número de toras compridas, não muito grossas, de árvores novas, presos uns aos outros. Apesar de não serem feitas de pranchas, assemelhavam-se muito aos abrigos em A dos Xaramudói. Com uma única diferença: o pau-de-fileira não era inclinado, e os cómodos eram assimétricos. O lado da entrada, que dava para o rio, era quase vertical, o lado oposto se inclinava para ele num ângulo agudo. As extremidades eram fechadas, mas podiam ser erguidas, como toldos.

Saíram para pôr as esteiras no telhado, prendendo-as com folhas das tabuas, alongadas e duras. Havia duas goteiras mais altas difíceis de alcançar mesmo com toda a altura de Jondalar e achavam que a estrutura não suportaria o peso deles, se nela subissem. Decidiram entrar e imaginar um meio de fixá-los de algum modo. No último momento, lembraram-se de encher uma bolsa e algumas tigelas com água para beberem e cozinhar. Quando Jondalar fechou uma das goteiras com a mão, ocorreu-lhes prender o remendo por dentro.

Taparam depois a porta com o couro de mamute. Ayla correu então os olhos pelo interior, iluminado agora só pela fogueira, que começava a aquecer o aposento, e achou a casa aconchegante. A chuva estava agora longe deles. Tinham um lugar quente e seco para dormir, embora houvesse um certo vapor no ar, das coisas que secavam, e não houvesse buraco no teto para a fumaça naquele abrigo de verão. A fumaça saía habitualmente pelas paredes não-estanques e pelo teto, ou pela parte superior das paredes deixadas abertas no tempo de calor. A palha seca e os caniços tinham inchado com a umidade, e o fumo tinha dificuldade em sair. Começava a acumular-se ao longo do pau-de-fileira, no teto.

Embora cavalos em geral estejam acostumados ao relento e, de regra, prefiram dormir a céu aberto, Huiin e Racer tinham sido criados com gente e estavam habituados a habitações humanas, mesmo fumacentas e escuras. Ficaram no fundo, onde Ayla decidira que era o melhor lugar para eles, e pareciam contentes de estar ao abrigo da chuva. Ayla pôs pedras de cozinhar no fogo. Depois, ela e Jondalar friccionaram os cavalos e Lobo, para secá-los.

Abriram, em seguida, os embrulhos, para ver se alguma coisa se estragara com o excesso de umidade. Acharam roupas secas e se trocaram. Depois sentaram-se junto do fogo para tomar um chá quente, enquanto preparavam uma sopa à base da comida compactada. Quando a fumaça no teto ficou excessiva, fizeram buracos de um lado e de outro no alto das paredes, o que limpou o ambiente e lhes deu mais um pouco de claridade.

Sentiam-se contentes por poderem descansar. Não sabiam até então o quanto estavam exaustos. Antes de escurecer de todo, homem e mulher se meteram nas suas peles, um tanto úmidas ainda, infelizmente. Mas, por mais fatigado que estivesse, Jondalar não conseguiu dormir. Lembrava-se da última vez que tinha enfrentado aquele rápido e traiçoeiro rio chamado da Irmã, e, na treva, tremeu de pavor ante a perspectiva de atravessá-lo com a mulher amada.

 

Ayla e Jondalar ficaram no acampamento abandonado todo o dia seguinte, e mais um. Na manhã do terceiro dia, a chuva, finalmente, amainou. A cobertura de nuvens, pesada e plúmbea, se fendeu e, à tarde, o sol brilhou nos retalhos de céu azul alinhavados entre nuvens brancas, lanudas — carneirinhos. Um vento forte e caprichoso soprava ora de uma direção, ora de outra, como se estivesse experimentando diferentes posições, incapaz de decidir de uma vez por todas qual delas servia melhor para a ocasião.

As coisas deles tinham secado, na maior parte, mas eles abriam assim mesmo os dois lados do alojamento para que o ar acabasse de secar as peças mais grossas e pesadas. Alguns dos itens de couro tinham endurecido. Precisavam ser esticados e alisados. Mas talvez o uso bastasse para endireitá-los e amaciá-los outra vez. Estavam, porém, essencialmente intactos. Já com as cestas de bagagem a coisa era muito diferente. Haviam perdido a forma secando, estavam puídas em diversos lugares, e bolorentas. O mofo amolecera a palha, e com o peso do conteúdo elas tinham ficado bambas. Muitas fibras tinham saltado para fora ou partido.

Ayla concluiu que tinha de tecer novas, embora os capins secos, as plantas e árvores do outono não fossem o material mais forte ou mais indicado. Quando tratou do assunto com Jondalar, ele levantou outro problema.

—    Essas cestas de bagagem me aborrecem há muito tempo, de qualquer maneira. Toda vez que atravessamos um rio mais profundo, em que os cavalos têm de nadar, as cestas ficam molhadas se não as retiramos antes. Com o barco e os mastros a situação melhorou. Podíamos pôr as cestas no barco. Enquanto estivermos em campo aberto não será difícil arrastá-las. Muito do caminho que temos pela frente é de pastagens, mas haverá florestas e terreno acidentado. Aí, como há pouco, na montanha talvez seja complicado levar a reboque barco e mastros. Se decidirmos abandoná-los, precisamos de cestas mais rasas, que não fiquem com o fundo molhado. Você pode fazer cestas assim?

Foi a vez de Ayla franzir o cenho e ponderar.

— Você tem razão, as cestas ficam molhadas. Quando as teci, não tinha de atravessar muitos rios, e os que atravessei não eram fundos — De testa enrugada devido ao esforço da concentração, Ayla se lembrou da alcofa que inventara.

— Eu não usava balaios no começo. Da primeira vez que quis que Huiin levasse alguma coisa às costas fiz um cesto grande, achatado flexível. Talvez possa tecer coisa semelhante agora. Seria mais fácil se não montássemos, mas isso... — Ayla fechou os olhos, procurando visualizar a ideia que começava a acudir-lhe. — Talvez... eu pudesse fazer cestas de bagagem que pudessem ser postas no lombo dos cavalos cada vez que tivéssemos de entrar na água. Não, isso não funcionará se estivermos cavalgando ao mesmo tempo... mas... eu poderia fazer algo para que os cavalos levassem na garupa, atrás de nós. — E, olhando agora para Jondalar: — Sim, acho que sou capaz de fazer cestas praticáveis.

Apanharam folhas de juncos e tábuas, vimes, raízes finas, compridas, de espruce, enfim, tudo o que Ayla julgou poder usar como material para cestos ou como cordame para construir trançados para o transporte de carga.

Tentando diversas abordagens e experimentando os cestos que iam fazendo em Huiin, Ayla e Jondalar trabalharam nesse projeto o dia inteiro. No fim da tarde tinham pronto um cesto-cargueiro peneiriforme, de tamanho suficiente para conter os pertences de Ayla e seu material de viagem, e que podia ser levado à garupa de Huiin com a mulher na sela. Ficaria razoavelmente seco se a égua tivesse de nadar. Aprovado o modelo, começaram a fazer outro igual para Racer. Fizeram o segundo cesto muito mais depressa, pois já conheciam, estavam com prática.

À noite, o vento encorpou e mudou de direçâo. Era agora vento do norte, ou aquilão, que logo soprou as nuvens todas para o sul. Quando o crepúsculo se transmudou em noite, o céu estava limpo, mas esfriara muito. Como pretendiam partir ao raiar do dia, resolveram fazer logo uma revisão das suas coisas de modo a aliviar a carga. Os cestos antigos eram maiores e tudo ficou apertado nas alcofas. Por mais que tentassem diversos arranjos, a carga simplesmente não cabia toda nos cestos novos. Tinham de abandonar alguma coisa — e espalharam no chão tudo o que ambos carregavam.

Ayla apontou a placa de marfim em que Talut gravara o mapa da primeira parte da viagem.

— Não precisamos mais disso. A terra de Talut já ficou para trás há muito tempo.

— Tem razão. Não precisamos, mas estou com muita pena de deixar isso — disse Jondalar. — Seria interessante mostrar, em casa, a espécie de mapa que os Mamutói fazem. Além do mais, isso me lembra Talut.

Ayla concordou.

—    Bem, se você acha que tem espaço para ele, leve-o. Mas essencial não é.

Jondalar correu os olhos pelas coisas de Ayla e apanhou o pacote fechado e misterioso que já notara antes.

— E isso, o que é?

— Um a coisa que fiz no inverno passado — disse, tirando-o das mãos dele e desviando o rosto, porque havia corado muito. Pôs o pacote atrás das costas, enfiando-o na pilha do que ia levar. — Vou deixar toda a minha roupa de verão. Está manchada e gasta, de qualquer maneira, e vou usar as de inverno, isso me dá uma certa folga.

Jondalar a fitou de maneira penetrante, mas não fez qualquer comentário. Estava frio quando acordaram, na manhã seguinte. A respiração deles era visível no ar. Vestiram-se rapidamente e, depois de acender o fogo para uma apressada xícara de chá, desfizeram o leito, aflitos para partir. Mas quando saíram, pararam, surpresos.

Uma fina camada de geada transformara as colinas circundantes que cintilavam ao forte sol da manhã com incrível nitidez. À medida que o gelo derretia, cada gota d'água se convertia num prisma e refletia um diminuto arco-íris, numa pequena explosão de cores — vermelho, verde, ouro, azul — que se transmudavam umas nas outras quando eles se moviam e viam o espectro de um ângulo diferente. A beleza dessas efêmeras jóias da geada era, porém, um lembrete de que a estação do calor não passava de um brilho fugaz de cor num mundo dominado pelo inverno. O verão, curto e quente, acabara.

Quando ficaram prontos para sair, Ayla lançou um último olhar ao acampamento que fora para eles um refúgio tão bem-vindo. Estava mais dilapidado ainda, porque eles tinham arrancado material dos abrigos menores para alimentar sua fogueira. Mas aquelas frágeis construções temporárias não tinham muito futuro, de qualquer maneira. Ela estava grata por haverem encontrado o acampamento quando tanto precisavam dele.

Rumaram para oeste, em direção ao Rio da Irmã. Desceram uma encosta até outro terraço, mais abaixo. Estavam ainda em terreno suficientemente alto para ver as vastas pastagens da Sibéria na outra margem do turbulento rio de que se aproximavam. Aquele belvedere lhes dava uma visão em perspectiva da região bem como da extensão da planície aluvial que tinham pela frente. A terra, que em tempo de enchente ficava submersa, era de cerca de 25km2 , dos quais a maior parte na margem oposta. Os contrafortes da montanha do lado em que estavam limitavam a expansão normal da inundação, embora houvesse elevações, colinas e penhasco também do outro lado do Rio da Irmã.

Em contraste com as pastagens, a planície aluvial era um imenso deserto de brejos, laguinhos, matas, e cerrado sujo que o rio atravessava. espumejante. Se bem que não tivesse meandros, lembrou a Ayla o tremendo delta do Rio da Grande Mãe, em menor escala. Os salgueiros e a macega sazonal, que pareciam brotar direto da água ao longo das bordas da veloz correnteza, indicavam tanto a amplitude da enchente causada pelas últimas chuvas quanto a grande porção de terra já apropriada pelo rio.

A atenção de Ayla foi desviada da paisagem quando Huiin perdeu o pé: seu cascos tinham afundado em areia. As pequenas torrentes que tinham cortado os terraços antigos acabaram transformadas em leitos de rio profundamente escavados entre dunas movediças de marga arenosa. Os cavalos tropeçavam na sua progressão, levantando a cada passo esguichos de solo fofo, desagregado, rico em cálcio.

No fim da tarde, com o sol poente quase cegante de intensidade o homem e a mulher, protegendo os olhos com as mãos, procuraram um lugar conveniente para acampar. À medida que se aproximavam da planície aluvial notaram que a areia fina e solta mudava ligeiramente de caráter. Como nos terraços superiores, ela era, primariamente, loess, criado pela ação triturante da geleira e depositado pelo vento como partículas finíssimas — mas, ocasionalmente, o rio, cheio, atingia o nível dos terraços. O sedimento argiloso e amarelo acrescentado, assim, ao solo, endurecia e estabilizava o terreno. Quando Ayla e Jondalar começaram a ver capins de tipo conhecido, comuns na estepe, crescendo às margens do rio que acompanhavam, um dos muitos que desciam velozmente da montanha e corriam para o Rio da Irmã, resolveram parar.

Depois de armarem a barraca, foram em diferentes direções à caça de material para o jantar. Ayla, que se fizera acompanhar de Lobo, logo fez com que um pequeno bando de ptármigas levantasse vôo. Lobo se precipitou em cima de uma enquanto Ayla derrubava com a funda uma outra que julgara haver alcançado a segurança do céu. Pensou por um momento em deixar para o lobo a ave que pegara, mas quando o animal ofereceu resistência, mudou de ideia. Uma das presas teria bastado para ela e Jondalar, mas Lobo devia compreender que, se necessário, tinha de dividir o que caçava com seus donos. Ninguém podia prever o que viria mais adiante.

Ela não pensou tudo isso ordenadamente naquele momento, mas o ar frio a alertara para o fato de que iam viajar durante a estação fria por uma região desconhecida. Os grupos com que estava familiarizada, o Clã e os Mamutói, raramente se afastavam muito do lugar onde moravam nos severos invernos glaciais. Instalavam-se ao abrigo do frio e das tempestades de neve, comendo os víveres que tinham armazenado. A ideia de viajar no inverno afligia Ayla.

Jondalar acertara uma grande lebre com sua lança e, de comum acordo, decidiram reservar para consumo em outra ocasião. Ayla teria gostado de assar as aves no espeto, mas estavam em plena estepe, junto de um curso d'água, com vegetação rala à volta. Ela achou duas galhadas de veado, desiguais no tamanho e, obviamente, oriundas de diferentes animais, que se teriam descartado delas no ano anterior. Era muito mais difícil partir osso que madeira, mas ajudada por Jondalar, com afiadas facas de sílex e a pequena machadinha que ele levava sempre enfiada no cinto, conseguiram quebrá-las. Ayla usou um pedaço para trespassar as ptármigas, e as pontas serviram de forquilhas para sustentar o espeto. Depois de tanto esforço, pensou que deveria guardar o material para emprego ulterior, principalmente porque osso não pega fogo com facilidade.

Ayla serviu um bom pedaço de carne a Lobo, junto com uma porção de raízes de junto que ela extraíra de uma vala junto do rio e de cogumelos do prado que reconhecera como comestíveis e saborosos. Depois da refeição da noite, sentaram-se junto do fogo e ficaram contemplando o céu, que escurecia. Os dias eram cada vez mais curtos, agora, e eles não ficavam tão cansados à noite, sobretudo por ser muito mais fácil cavalgar no plano.

— As aves estavam deliciosas — disse Jondalar. — Gosto da pele bem tostada, como você fez.

— Nesta época do ano, quando elas estão gordas e bonitas, é a melhor maneira de prepará-las — disse Ayla. — As penas já estão mudando de cor, e o peito está cheio delas. Dariam um bom enchimento para alguma coisa. Penas de ptármiga são ideais para colchões e travesseiros por serem macias e quentes, mas não temos espaço na bagagem.

— Para o ano, talvez, Ayla. Os Zelandonii também caçam ptármigas — disse Jondalar, visando animá-la um pouco. Aquilo fazia com que a ela apetecesse o termino da viagem.

—    Ptármiga era a iguaria preferida de Creb — disse ela.

Jondalar sentiu na voz dela que estava triste. E quando Ayla não disse mais nada, ele cominou falando, a ver se a distraía.

—    Há uma espécie de ptármiga, não na nossa área de Cavernas, mas para o sul, que não fica branca no inverno. Guarda o ano todo a mesma cor, o mesmo aspecto e o mesmo gosto que tem no verão. As pessoas que vivem por lá a chamam de tetraz-vermelho, e enfeitam toucados e roupas com suas penas. Fazem, inclusive, fantasias para a cerimónia do Tetraz-Vermelho, e dançam imitando os movimentos da ave, batendo com os pés e tudo, como fazem os machos quando querem conquistar as fêmeas. É parte do seu Festival da Mãe. — Jondalar fez uma pausa, mas vendo que ela ainda não tinha comentário a fazer, continuou.

—    Caçam as aves com redes, e apanham muitas ao mesmo tempo.

—    Derrubei uma dessas com a minha funda, mas foi Lobo quem pegou a outra — disse Ayla.

E como não dissesse mais nada, Jondalar achou que ela não estava mesmo com vontade de falar, e ficaram sentados por algum tempo em silêncio, vendo o fogo queimar capim e bosta, que secara suficientemente depois da chuva para arder. Por fim, ela disse mais alguma coisa.

—    Você se lembra do bastão de arremesso de Brecie? Quisera eu saber como se usa uma arma dessas. Brecie conseguia derrubar vários pássaros de uma vez com ela.

A noite refrescou rapidamente, e eles se rejubilaram de ter uma barraca. Embora Ayla continuasse calada, o que não era habitual, triste, a relembrar coisas, reagiu com calor ao toque dele, e Jondalar logo deixou de atormentar-se com o silêncio dela.

De manhã, o ar estava frio, e a umidade condensada de novo revestira a terra de um brilho fantasmagórico de geada. A água do riacho estava gelada, mas revigorante quando eles a usaram para lavar-se. Tinham enterrado a lebre de Jondalar, envolta na sua própria pele, com pelos e tudo, para que cozinhasse debaixo das cinzas quentes do borralho durante a noite. Quando retiraram o invólucro enegrecido, viram que a espessa camada de gordura logo debaixo dela regara a carne, muitas vezes magra e fibrosa. E o fato de ter ficado na sua capa natural tornou-a molhada e tenra. Era a melhor época do ano para caçar aqueles animais de orelhas compridas.

Cavalgaram lado a lado através do capim alto e maduro, sem pressa, mas num ritmo vivo e regular, conversando ocasionalmente. A caça miúda abundava com a aproximação do Rio da Irmã, mas os únicos animais grandes que viram a manhã toda estavam longe e na outra margem do rio: um pequeno bando de mamutes, que iam para o norte. Quando o dia estava mais avançado, viram um bando misturado de cavalos e saigas, também na margem oposta. Huiin e Racer deram mostras de haver tomado conhecimento dos animais.

— O totem de Iza era o Saiga — disse Ayla. — Um totem muito poderoso para uma mulher. Mais forte, até, que o totem original de Creb, o cabrito-montês. Naturalmente, o Urso das Cavernas o escolhera e era seu totem secundário antes que ele se tornasse Mog-ur.

— Mas seu totem, Ayla, é o Leão das Cavernas, animal muito mais poderoso que um antílope saiga — disse Jondalar.

— Eu sei. É um totem de homem, um totem de caçador. Foi por esse fato que eles custaram tanto a acreditar. Só de primeiro, porém — disse Ayla. — Eu, a rigor, não me lembro, mas Iza me contou que Brun chegou a ficar zangado com Creb quando Creb o anunciou na minha cerimónia de adoção. E foi por isso que todo mundo ficou certo de que eu jamais teria filhos. Nenhum homem tinha totem capaz de superar o meu, capaz de derrotar o Leão das Cavernas. Foi uma surpresa geral quando fiquei grávida de Dure, e estou certa de que foi Broud quem deu início ao bebê, quando me forçou. — Ela enrugou a testa com a lembrança desagradável. — E se espíritos de totem têm alguma coisa a ver com a origem de crianças, o totem de Broud era o Rinoceronte lanudo. Lembro-me de ter ouvido contar pelos caçadores da caverna de um rinoceronte desses que matou um leão das cavernas, de modo que eles podem fazer isso e, como Broud, podem ser perversos.

— Rinocerontes lanudos são imprevisíveis e podem ser bravios — disse Jondalar. — Thonolan levou uma chifrada de um não muito longe daqui. E teria morrido se os Xaramudói não nos tivessem encontrado. — Jondalar fechou os olhos com aquela lembrança penosa e se deixou levar por Racer. Ele e Ayla não disseram mais nada por algum tempo. Depois, o homem perguntou.

— Todo mundo no Clã tem um totem?

—    Sim, tem — respondeu Ayla. — Um totem é um guia, dá proteção. O mog-ur de cada clã descobre o totem de todo bebê que nasce, e já no primeiro ano de vida, em geral. Ele dá à criança um amuleto, com um fragmento da pedra vermelha dentro, na cerimónia totêmica. O amuleto e a residência do espírito do totem.

— Como o doni é uma área de repouso para o espírito da Mãe. É isso? — Perguntou Jondalar.

— Deve ser, acho eu, mas um totem protege sua pessoa, não sua casa, embora seja melhor para você morar numa área com que esteja familiarizado. Você tem de levar o amuleto junto o tempo todo. É graças a ele que o espírito do seu totem o reconhece. Creb me disse que o espírito do meu Leão das Cavernas não seria capaz de encontrar-me se eu não o portasse. Eu perderia a proteção dele. Creb disse, até, que se eu perdesse algum dia o amuleto, morreria.

Jondalar não havia compreendido até então todas as implicações do amuleto de Ayla, com o qual ela se preocupava tanto. Muitas vezes pensara que ela levava essa preocupação longe demais. Raras vezes o ti do pescoço, exceto para tomar banho ou nadar, e por vezes nem mesmo nessas ocasiões. Ele imaginara que era um modo de sentir-se ligada à sua infância, e esperando que algum dia ela viesse a superar isso. Agora via que a ligação era mais séria. Se um homem de grandes poderes mágicos desse a ele, Jondalar, alguma coisa dizendo-lhe que morreria se a perdesse, então ele também cuidaria bem do objeto. Jondalar já não duvidava que o feiticeiro do Clã, que criara Ayla, tivesse mesmo grande poder derivado do mundo dos espíritos.

— O amuleto é também importante para indicar, por sinais do totem, que decisão tomar em momentos importantes da vida da gente — continuou Ayla. Uma ansiedade que a vinha aborrecendo havia algum tempo de súbito a assaltou com maior força. Por que o totem não lhe dera um sinal que confirmasse o acerto da decisão por ela tomada de ir com Jondalar para o povo dele? Não achara nada que pudesse interpretar como aprovação do totem desde que tinham deixado os Mamutói.

— Poucos Zelandonii têm totens pessoais — disse Jondalar. Os que os têm são tidos por afortunados. Willomar tem um.

—    Willomar é o companheiro de sua mãe? — perguntou Ayla.

—    Sim. Rhonolan e Folara nasceram no lar dele, e ele sempre me tratou como se eu também fosse seu.

—    Qual o totem de Willomar?

— A Águia-Real. Conta-se que quando ele era ainda um bebê, uma águia-real deu um mergulho no ar e o apanhou, mas a mãe segurou o menino antes que lhe fosse arrebatado. Ele ainda traz as marcas das garras no peito. O zelandoni deles disse que a águia o identificara como pertencendo a ela e fora buscá-lo. Foi assim que ficaram sabendo qual o totem do bebê. Marthona acha que é por isso que ele gosta tanto de viajar. Ele não pode voar como a águia, mas sente a necessidade de conhecer a terra.

— É, sem dúvida, um totem poderoso, como o Leão das Cavernas ou o Urso das Cavernas — comentou Ayla. — Creb sempre dizia que não é fácil viver com um totem assim tão forte, e é verdade, mas fui cumulada de dons. Foi ele, inclusive, quem me mandou você. Penso que tenho tido muita sorte. Espero que ele lhe dê sorte também, Jondalar. Ele totem agora.

Jondalar sorriu.

—    Você já me disse isso.

—    O Leão das Cavernas o escolheu, e você tem as cicatrizes para prová-lo. Foi marcado, exatamente como Willomar, pelo seu totem.

Jondalar ficou pensativo por um bom momento.

—    Talvez você tenha razão. Eu não havia pensado nisso desse modo.

Lobo, que andara explorando as redondezas, apareceu. Latiu para chamar a atenção de Ayla, depois alinhou-se com Huiin. A mulher observou-o. Tinha a língua pendente da boca, de lado, as orelhas espetadas para cima, e andava no passo comum dos lobos, um trote que não cansa. O capim alto o escondia da vista de vez em quando. Parecia feliz e alerta. Adorava correr assim, livremente, explorando o terreno. Mas sempre retornava, o que era uma alegria para ela. Cavalgar com o homem e o cavalo a seu lado também a alegrava.

— Vendo como você fala dele sempre, acho que seu irmão deve ter sido parecido com o homem da casa — disse Ayla. — Entendo que Thonolan também gostava muito de viajar. Ele se parecia fisicamente com Willomar?

—    Sim, mas não tanto quanto eu me pareço com Dalamar. Todo mundo nota logo isso. Thonolan se parecia muito mais com Marthona — disse Jondalar, sorrindo. — Não foi escolhido por uma águia, de modo que não há explicação para seu ímpeto de viajar. — O sorriso se apagou. — As cicatrizes de meu irmão foram as daquele imprevisível rinoceronte lanudo. — Deixou-se ficar pensativo por algum tempo. Por fim, disse: — Thonolan podia ser também imprevisível. Deveria isso ao seu totem? O Rinoceronte não lhe deu muita sorte, embora os Xaramudói nos tivessem encontrado, e eu nunca o tivesse visto antes tão feliz quanto depois que conheceu Jetamio.

— Não acho que o Rinoceronte lanudo seja um totem de sorte — disse Ayla. — Já o Leão das Cavernas certamente é. Quando ele me escolheu, deu-me, até, as mesmas marcas que o Clã usa para um totem de Leão das Cavernas, de modo que isso não poderia passar despercebido para um homem como Creb. As suas cicatrizes, Jondalar, não correspondem a marcas de Clã, mas são nítidas: você foi marcado por um Leão das Cavernas.

— Ah, sim. Não há a menor dúvida. Tenho as cicatrizes que provam que fui marcado pelo seu leão, Ayla.

— Acho que o espírito do Leão das Cavernas elegeu você, de modo que o espírito do seu totem ficasse suficientemente forte para enfrentar o meu, de modo que algum dia eu possa ter filhos de você — disse Ayla.

—    Pensei que você dissera que era um homem que iniciava um bebê no ventre de uma mulher, não os espíritos — disse Jondalar.

— É um homem, mas talvez os espíritos tenham de ajudar, de alguma forma. Uma vez que tenho totem tão forte, o homem que cruzar comigo precisa ter uma força equivalente. Talvez a Mãe tenha dito ao Leão das Cavernas para escolher você, de modo a fazermos bebês juntos.

Cavalgaram em silêncio outra vez, cada um imerso nos próprios pensamentos. Ayla imaginava um bebê parecido com Jondalar. Uma menina Não tinha sorte com meninos, ao que parecia. Talvez conseguisse criar uma fêmea.

Jondalar também pensava em filhos. Se era verdade que um homem dava início a um bebê com seu membro, eles dois tinham certamente dado a um bebê todas as chances possíveis de começar a crescer. Por que, então, Ayla não estava grávida?

E Serenio? Estaria ela esperando um bebê quando parti?, pensava. Alegra-me que ela tenha encontrado alguém com quem possa ser feliz. Mas é uma pena que não tenha dito nada a Roshario. Haverá alguma criança no mundo que tenha uma parte minha? Jondalar ficou pensando nas mulheres que conhecera. Lembrou-se de Noria, do povo Haduma, com a qual partilhara Ritos de Iniciação. Tanto Noria quanto o velho Haduma em pessoa se haviam mostrado convencidos de que o espírito de Jondalar entrara no corpo de Noria e que ela concebera. Deveria, então partir um filho de olhos azuis como os dele. Chamar-se-ia Jondal. Mas seria verdade, tudo isso? Teria mesmo o seu espírito dado partida a um novo ser em combinação com o espírito de Noria?

O povo Haduma não vivia tão longe, e sua área ficava na direçâo certa, para norte e para oeste. Talvez pudessem parar para uma visita Só que, como de súbito se deu conta, ele não sabia exatamente como encontrar os Haduma. Eles tinham ido até onde ele e Thonolan estavam acampados. Sabia que as cavernas deles não ficavam a oeste do Rio da Irmã, mas sim a oeste do Rio da Grande Mãe. Mas não sabia bem em que altura. Lembrou-se de uma coisa: costumavam caçar naquela estreita mesopotâmia, mas isso, a rigor, ajudava pouco. Ele provavelmente jamais ficaria sabendo se Noria tivera aquele filho.

Os pensamentos de Avia, que tinham girado, de começo, na necessidade de esperar o fim da viagem antes de começar a fazer crianças, evoluíram para o povo dele: como seria o povo de Jondalar? Seria bem aceita? Ficara mais confiante um pouco depois do encontro com os Xaramudói. Havia um lugar para ela em alguma parte. Mas haveria com os Zelandonii? Lembrava-se de que Jondalar reagira com revulsão ao saber que ela fora criada pelo Clã. Lembrava-se também do estranho comportamento dele no último inverno, quando viviam com os Mamutói.

Rance linha alguma coisa a ver com isso. Ela ficou sabendo da história antes de partir com Jondalar, mas não compreendera tudo muito bem de começo. Ciúmes não eram parte da sua criação. Mesmo que sentissem esse tipo de emoção, os homens do Clã jamais demonstrariam cume de uma mulher. Mas parte daquele comportamento estranho de Jondalar tinha raízes na sua preocupação com a reação que seu povo teria quando ele se apresentasse com ela. Sabia agora que, embora a amasse, ele sentia vergonha do seu passado na península. Sentia vergonha, sobretudo, do filho dela. É verdade que nos últimos tempos ele não mais demonstrava tais sentimentos. Ele a protegeu e pareceu à vontade com o background dela no Clã quando o assunto foi levantado no acampamento Xaramudói, mas devia ter algum motivo sério para sentir-se daquela maneira estranha nos primeiros tempos do seu relacionamento com ela.

Bem, ela amava Jondalar e desejava viver com ele. Além disso, era tarde demais para mudar a decisão tomada. Esperava ter agido certo desejava que o seu totem, o Leão das Cavernas, lhe desse um sinal de aprovação, mas nenhum parecia à vista.

Quando os viajantes se aproximaram da grande extensão alagado e turbulenta da confluência do Rio da Irmã com o da Grande Mãe, as margens soltas, fragmentadas dos terraços superiores — areias e argilas ricas em Cálcio — deram lugar a solos de cascalhos e loess nos níveis mais baixos.

Naquele mundo do cenozóico, as cristas das montanhas alimentavam torrentes e rios na estação mais quente com águas da fusão do gelo. Para o fim do verão, com a adição das pesadas chuvas acumuladas como neve nas elevações mais altas, e que mudanças de temperatura podiam libertar, subitamente, as torrentes aumentavam e a inundação se generalizava, na planície aluvial. Sem lagos na vertente ocidental da cordilheira para recolher esse dilúvio crescente num reservatório natural e distribuir aqueles excessos de precipitação ordenadamente, tudo aquilo caía montanha abaixo em catadupa, arrastando areia, pedras, fragmentos de arenito, calcários e argilas xistosas das montanhas, que eram carregados pelo rio caudaloso e depositados nos leitos e na planície aluvial.

As planícies centrais, outrora fundo de um mar interior, ocupavam agora uma bacia entre duas cadeias maciças de montanhas, a leste e oeste, e entre altiplanos ao norte e ao sul Quase igual em volume de água borbulhante ao Rio da Grande Mãe, nas proximidades da confluência, o Rio da Irmã, crescido, recolhia a drenagem de uma parte da planície e de toda a vertente ocidental da cadeia de montanhas que se encurvava num gigantesco arco para noroeste. O Rio da Irmã corria pela calha mais profunda da bacia para entregar sua oferenda de águas da inundação à Grande Mãe dos rios, mas sua corrente, engrossada e encapelada, refluía devido ao nível mais alto das águas do Rio da Grande Mãe, já inteiramente cheio. Obrigada a refluir sobre si mesma, ela dissipava seu ofertório num vértice de contracorrentes e num alagamento destrutivo das águas da cheia.

Perto do meio-dia, o homem e a mulher se aproximaram do grande charco selvagem, formado pela vegetação arbustiva já coberta a meio pela enchente e por formações ocasionais de árvores com água pela cintura. Ayla achou que a semelhança daquele lugar com o vasto delta da foz do Rio da Grande Mãe era maior de perto que de longe, com uma diferença apenas: as correntes e contracorrentes dos afluentes eram, aqui, verdadeiros turbilhões. Com o tempo muito mais frio, os insetos aborreciam menos, mas as carcaças inchadas de animais devorados ao meio e apodrecidos atraíam um certo número dessas pragas. Para o sul, um maciço, com vertentes densamente revestidas de mata, se erguia inesperadamente, saído da neblina púrpura dos numerosos remoinhos.

— Estas devem ser as Colinas Arborizadas de que Carlono nos falou — disse Ayla.

— Sim, mas são muito mais que colinas — disse Jondalar. — São mais elevadas do que você imagina, e cobrem uma área muito extensa. O Rio da Grande Mãe corre para o sul até aquela barreira. E essas colinas desviam o Rio da Grande Mãe para leste.

Costearam uma grande piscina natural de águas tranquilas, um remanso milagrosamente separado das correntezas, e se detiveram no ângulo mais oriental do rio intumescido, um pouco acima do Ponto de confluência. Quando Ayla lançou os olhos para a margem oposta por cima da forte correnteza, começou a entender o que Jondalar queria dizer com a dificuldade de atravessar o Rio da Irmã.

As águas barrentas, regirando em torno dos delgados troncos de salgueiros e bétulas, arrancavam as árvores cujas raízes não estavam seguramente ancoradas no solo das ilhas rasas, que só apareciam à tona na estação seca e pareciam, então, rodeadas de canais. Muitas dessas árvores eram visíveis, debruçadas em ângulos precários sobre o leito do rio. Inúmeros eram os galhos nus e troncos de árvores arrancados de florestas mais acima no rio, encalhados na lama das margens ou deixados rodopiando, nos muitos redemoinhos da corrente.

Em silêncio, Ayla refletiu como conseguiriam atravessar um rio como aquele.

—    Onde você acha que devemos passar, Jondalar?

Jondalar desejou que o grande barco Ramudói que havia recolhido a ele e a Thonolan alguns anos antes surgisse de repente para levá-los para o outro lado. A lembrança do irmão deu-lhe de novo uma dolorosa pontada de mágoa. Teve também, de súbito, uma aguda preocupação com a segurança de Ayla.

— É óbvio que aqui não podemos atravessar. Eu não sabia que o rio ficaria tão ruim assim, em tão pouco tempo. Temos de subir mais e procurar um ponto mais favorável. Só espero que não chova antes que o encontremos! Outra tempestade como a última, e toda esta planície ficará debaixo d'água. Não é de admirar que aquele acampamento de verão estivesse abandonado.

— Este rio não deveria encher tanto, não é mesmo? — disse Ayla, arregalando os olhos.

— Eu não imaginava que enchesse tão cedo, mas ele é capaz de fazer isso. Toda aquela água que desce da montanha vem dar aqui. Alem disso, uma precipitação abundante e repentina pode muito bem descer por aquele riacho que passa ao lado do acampamento. Acho que não temos muito tempo, Ayla. Este não é um lugar seguro se recomeçar a chover — disse Jondalar, olhando para o céu. Em seguida, pôs a montaria a galope. Foram, os dois, tão rápido, que Lobo teve dificuldade em acompanhá-los. Depois de algum tempo, diminuíram a marcha, mas sem voltar ao ritmo descansado que vinham mantendo antes.

De tempos em tempos, Jondalar parava para estudar o rio e a margem oposta, antes de prosseguir rumo norte, sempre olhando para o céu com ansiedade. O rio parecia mais estreito em alguns lugares e mais largo em outros, mas era tão cheio e vasto que não podiam saber ao certo. Cavalgaram até quase o escurecer sem encontrar um lugar em que fosse possível passar a vau — nem vau de orelha, nem vau de rabo. Jondalar insistiu em pernoitar em lugar elevado, e só pararam quando já estava escura demais para viajar a salvo.

— Ayla! Ayla! Acorde! — disse Jondalar, sacudindo-a delicadamente. — Temos de ir embora.

— O quê? Jondalar! O que aconteceu?

Ela costumava acordar antes dele, e ficou atrapalhada de ser despertada tão cedo. Quando saiu das cobertas, porém, sentiu logo na pele uma brisa fria e viu que a barraca estava entreaberta. Podia ver, lá fora, a radiância difusa de nuvens que passavam. A luz que vinha da fresta era a única iluminação da barraca, e não podia ver direito o rosto de Jondalar naquela meia claridade opalescente, mas sentiu que ele estava angustiado e teve um arrepio de temor.

— Temos de sair daqui — disse Jondalar. Ele mal dormira a noite toda. Não seria capaz de dizer exatamente por que sentia que tinham de atravessar o rio o mais depressa possível, mas esse sentimento era tão forte que lhe dava um nó de medo na boca do estômago. Não por ele mesmo, mas por Ayla.

Ela se levantou sem perguntar mais nada. Sabia que ele não a teria chamado se não pensasse que a situação era crítica. Vestiu-se rapidamente, depois tirou o material de fazer fogo.

—    Não vamos perder tempo fazendo fogo esta manhã — disse Jondalar.

Ela franziu a testa, mas serviu apenas água fria. E empacotaram as coisas comendo bolos de viagem. Quando ficaram prontos, Ayla chamou Lobo, mas ele não estava no acampamento.

—    Por onde andará Lobo? — perguntou, com um certo desespero na voz.

—    Provavelmente caçando. Mas ele nos alcança. Sempre alcançou.

— Vou assoviar — disse ela. E soltou, no ar da madrugada, o assobio característico que usava para chamar o animal.

— Vamos, Ayla. Temos pressa — disse Jondalar, já com uma ponta da sua habitual impaciência com o lobo.

— Não vou sem ele — disse Ayla, assoviando mais forte e com maior insistência.

— Temos de encontrar um vau antes que a chuva comece. Ou não conseguiremos passar — disse Jondalar.

— Não podemos continuar subindo o rio? Ele tende a estreitar-se, não? — argumentou ela.

— Quando a chuva se desencadear ele apenas ficará cada vez mais largo. Mesmo nas cabeceiras estará mais caudaloso do que está agora, e não sabemos que espécie de afluentes estará recebendo das montanhas mais acima. Podemos ser facilmente apanhados por uma inundação de surpresa. Dolando disse que elas são comuns. Podemos também ser detidos por um afluente intransponível, de maior porte. O que faremos, então? Subiremos para contornar a montanha? Não. Devemos é cruzar o Rio da Irmã enquanto podemos — disse Jondalar. Ele montou e olhou para a mulher, de pé ao lado da égua, com o trenó a reboque.

Ayla virou a cabeça e assoviou de novo.

— Temos de ir. Agora.

— Por que não podemos esperar mais um pouco? Lobo já deve estar vindo.

— Ele é só um animal. A sua vida é mais importante para mim que a dele.

Ela o encarou. Seria mesmo perigoso esperar, como Jondalar dizia? Ou ele estava sendo apenas impaciente? E a vida de Jondalar, não devia ser mais importante para ela que que a de Lobo?

Nesse justo momento, o animal apareceu. Ayla soutou um suspiro de alivio e se firmou nos pés porque sabia que ele ia por as patas nos seus ombros para lamber-lhe o queixo. Depois montou, usando um dos mastros do trenó como apoio. Mandou que Lobo ficasse rente da égua e seguiu atrás de Jondalar e de Racer.

Não houve nascer do sol. O dia ficou imperceptivelmente mais claro, mas não luminoso. A cobertura de nuvens era baixa, o que emprestava ao céu um gris uniforme, e havia uma umidade fria no ar. Mais tarde, já com a manhã avançada, Ayla fez chá para aquecê-los, depois uma substanciosa sopa à base de um dos bolos compactados para viagem. Temperou-a com folhas de azedinha, com a fruta da silva-macha ou rosa-de-cão, depois de removidas as sementinhas e os espinhos, e umas poucas folhas tiradas das roseiras-do-campo que cresciam por perto. Por algum tempo, chá e sopa aliviaram a aflição de Jondalar, mas logo ele viu que nuvens mais escuras se juntavam acima da sua cabeça.

Insistiu em que partissem imediatamente e ficou observando o céu com crescente apreensão. Vigiava também o rio, em busca de um lugar para a travessia. Queria um lugar sem torvelinhos, mais largo e raso, com uma ilha ou, até, um banco de areia entre as duas margens. Finalmente. sentindo que a tempestade não tardaria a cair, decidiu que tinham decorrer o risco, embora o tumultuoso Rio da Irmã não se mostrasse em nada diferente naquele segmento do que nos anteriores. Sabendo que, com chuva, a situação se agravaria, rumou para um ponto em que a margem lhe pareceu mais praticável. Desmontaram.

—    Você acha que devemos passar montados nos cavalos? — perguntou Jondalar, olhando, apreensivo, para o céu ameaçador.

Ayla estudou a correnteza veloz, vendo os destroços que ela arrastava. Muitas vezes eram árvores inteiras que passavam por eles, e galhos quebrados trazidos pelas torrentes desde o alto da montanha. Estremeceu ao ver também a carcaça inchada de um veado, com os chifres enganchados nos ramos de uma árvore encalhada perto da margem. A vista do animal fê-la temer pela sorte dos cavalos.

—    Será mais fácil para eles se não estivermos montados, Jondalar. Acho que devemos nadar ao lado deles.

— É o que acho também.

— Mas vamos precisar de cordas de apoio.

Muniram-se de pequenos pedaços de corda, verificaram cesta e arreios, para ver se estavam seguros, a barraca, os alimentos, e seus poucos e preciosos pertences. Ayla libertou Huiin do trenó. Seria muito perigoso para a égua nadar num rio tão revolto puxando tudo aquilo. Mas também não queriam perder o barco e os mastros, se lhes fosse possível conservá-los.

Com isso em mente, amarraram os mastros um no outro. Depois, Jondalar prendeu uma extremidade deles no barco, e Ayla prendeu a outra no arnês usado como apoio da alcofa que inventara. Fez um nó corrediço, fácil de desmanchar caso preciso. Por fim, atou uma corda bem forte na correia chata, trançada — que já passava pelo peito da égua e por trás das suas pernas dianteiras, e que servia para prender o cochonilho.

Jondalar fez coisa semelhante com Racer. Depois tirou as botas e parte das roupas. As mais grossas, quando molhadas, ficariam pesadas impedindo-o de nadar. Juntou tudo numa trouxa e colocou sobre a alcofa da garupa, mas ficou com a túnica de baixo e as perneiras. O couro, mesmo molhado, o aqueceria. Ayla fez o mesmo.

Os animais sentiam a aflição dos seus donos e viam com alarme a agua turva. Tinham recuado, à vista do veado morto, e marcavam passo, batendo com a cabeça e rolando os olhos. Mas tinham as orelhas para cima e para a frente. Estavam alertas. Lobo, por seu lado, fora até a bordada da água para farejar a carcaça, mas não entrara no rio.

— Como você acha que os cavalos se portarão, Ayla? — perguntou Jondalar, quando grandes gotas espaçadas de chuva começaram a cair.

— Estão nervosos, mas vão sair-se bem, principalmente por estarmos junto deles. Minha dúvida é Lobo.

— Não podemos carregá-lo. Ele terá de nadar também, por si mesmo — disse Jondalar. — Você sabe disso. — Mas vendo a angústia de Ayla, acrescentou: — Lobo é um bom nadador. Ele vai conseguir.

— Espero que sim — disse ela, ajoelhando-se para dar um abraço em Lobo.

Jondalar viu que as gotas de chuva caíam agora mais depressa e que eram consideravelmente maiores.

—    Vamos — disse, pegando Racer diretamente pela brida. A corda de apoio estava amarrada mais atrás. Fechou os olhos por um momento, pedindo boa sorte. Pensou em Doni, a Grande Mãe Terra, mas não se lembrou de nada que pudesse prometer-lhe em troca de ajuda. Fez apenas uma oração mental: que Ela os auxiliasse a atravessar o Rio da Irmã. Embora soubesse que um dia haveria de encontrar a Mãe, não queria que isso acontecesse agora. E não queria, principalmente, perder Ayla.

O cavalo bateu com a cabeça e quis recuar quando Jondalar o conduziu para o rio.

— Vamos, Racer — disse ele.

A água estava fria quando envolveu seu pé nu, rodopiando, e lhe cobriu as panturrilhas e as coxas. Uma vez na água, Jondalar soltou a brida de Racer a corda de apoio na mão, e deixou que o forte animal achasse seu caminho.

Ayla também deu várias voltas na mão com a corda que passava pelo peito da égua, enfiou a extremidade por baixo de tudo, e fechou bem o punho. Seguiu, depois, atrás de Jondalar, caminhando ao lado de Huiin. Ia puxando à retaguarda a outra corda, a que estava atada aos mastro e ao barco, vendo que não se embaraçassem ao entrar no rio.

Sentiu a água fria e a força da corrente. Olhando para trás, viu que Lobo estava ainda na margem, avançando e recuando, e ganindo o tempo todo. Hesitava em entrar no rio. Ela o chamou, encorajando-o, mas o animal continuava a ir para a frente e para trás, medindo a distância que o separava da mulher. De súbito, quando a chuva começou, ele a sentiu e uivou. Ayla assoviou então, e depois de algumas indecisões, o lobo finalmente mergulhou e começou a nadar em direção a ela. Ayla pôde voltar sua atenção para a égua e para o rio à frente.

A chuva, mais forte agora, parecia aplainar as ondas picadas, a distância. Mas, junto dela, a água estava mais juncada de destroços do que pensara. Árvores decepadas e galhos soltos rodavam em torno ou batiam nela, alguns ainda com folhas, outros submersos e quase escondidos. As carcaças inchadas de animais eram o pior de tudo: muitas vinham rasgadas pela violência da cheia que os colhera de repente, trazendo-os morro abaixo até o rio lamacento.

Ela identificou diversos ratos-da-bétula e ratos-calungas, dos pinheiros. Um grande esquilo foi mais difícil de reconhecer. Seu pelame cor de mel estava escuro e a cauda fofa e cheia ficara aplastada. Um lemingue, com longos pêlos brancos de inverno apontando através do cinza de verão, alisados, mas ainda brilhantes, mostrava as solas dos pés já cobertas de lã alvíssima. Vinha, provavelmente, de um dos patamares mais altos da montanha, junto da neve. Uma camurça passou boiando, com um chifre quebrado, e sem pêlo em metade da cara. Via-se exposto o músculo rosado. Quando ela viu a carcaça de um jovem leopardo-da-neve, procurou Lobo com os olhos, mas inutilmente.

Observou, porém, que a corda que a égua arrastava vinha puxando um tronco submerso além dos mastros e do barco. O tronco, com suas raízes espalmadas, atrasava a égua. Ayla puxou e sacudiu a corda, tentando livrar Huiin daquela carga suplementar, mas ela se soltou sozinha, de súbito, ficando preso apenas um pedaço de galho. O que a preocupava sobremaneira era não saber de Lobo. Não podia ver muito bem, pois sua cabeça estava muito baixa, na água. Afligia-a não poder fazer nada Assoviou, chamando-o, mas talvez ele não a pudesse ouvir com o estrondo da correnteza.

Examinando Huiin — talvez a carga exagerada a tivesse fatigado —, viu que a égua nadava com grande disposição. Racer também avançava. com a cabeça de Jondalar subindo e descendo ao lado dele. Ficou aliviada verificando que eles estavam bem. Nadava com o braço livre e batia com os pés, procurando ser o menos pesada possível. Mas à medida que progrediam, passou a firmar-se cada vez mais na corda. Começava a sentir muito frio. Achava também que a travessia levava um tempo excessivo, e a margem oposta parecia ainda muito longe. Os calafrios não haviam sido muito fortes de início, mas logo pioraram, e não pareciam querer cessar. Seus músculos começavam a endurecer, numa contração espasmódica, de câimbra, e seus dentes batiam.

Procurou de novo Lobo com os olhos mas não o viu. Preciso ir atrás dele. Deve estar com tanto frio, coitado, pensou. E tremeu violentamente. Talvez Huiin pudesse fazer meia-volta. Mas quando quis falar, sua mandíbula estava tão hirta, e os dentes matraqueavam tanto, que não pôde articular as palavras. Não, Huiin não deveria ir. Ela mesma iria. Tentou desprender a corda da mão, mas estava muito bem presa e a mão tão dormente que mal a sentia. Talvez Jondalar pudesse ir à procura de Lobo. Mas onde estava Jondalar? Estará ainda no rio? Terá ido procurar Lobo? Oh, outra galhada se prendeu à corda, atrás. Eu mesma tenho... de fazer alguma coisa... aquela corda... demasiado pesada para Huiin.

Seu tremor cessara, mas seus músculos estavam agora tão rijos que não podia mover-se. Fechou os olhos para descansar. Era tão bom fechar os olhos... e descansar.

 

Ayla estava quase inconsciente quando sentiu as sólidas pedras lisas do leito do rio debaixo das costas. Procurou pôr-se de pé, pois Huiin a arrastava pelo fundo. Deu alguns passos, vacilantes, numa praia de seixos rolados na curva do rio. Então caiu. A corda, ainda firmemente presa na mão, a fez rodar, e obrigou a égua a parar.

Jondalar também sentira os primeiros sintomas de hipotermia durante a travessia do rio, mas chegara à margem primeiro, antes de ficar sem coordenação ou irracional. Ela podia ter chegado mais depressa, mas tanta coisa se prendera à corda de Huiin que a égua se atrasara muito. Até Huiin começava a sofrer com o frio da água quando o nó corrediço, embora inchado pela prolongada imersão, finalmente soltou-se, e ela ficou livre do estorvo da carga.

Infelizmente, quando Jondalar chegou ao outro lado, o frio já o afetava de tal modo que ele não estava de todo lúcido. Mesmo assim, enfiou sua parka de pele pela cabeça, por cima da roupa ensopada, e saiu à procura de Ayla, a pé, puxando o cavalo. Só que caminhou na direção errada, ao longo da margem. O exercício o aqueceu e clareou-lhe a mente. Ele e Ayla haviam sido levados rio abaixo pela correnteza até certa distância, mas desde que ela demorara mais para atravessar o rio, tinha de estar mais a jusante do que ele. Chegando a essa conclusão, Jondalar voltou sobre seus passos. Quando Racer relinchou, e ele ouviu um relincho em resposta, pôs-se a correr.

Encontrou Ayla deitada de costas nos seixos rolados da margem, ao lado da sua paciente montaria, com um dos braços para cima: a corda que tinha enrolada na mão o mantinha assim, na vertical. Jondalar correu para ela, desesperado. Depois de verificar que ainda respirava, apertou-a contra o peito, com lágrimas nos olhos.

—    Ayla! Ayla! Você está viva! — gritou. — Tinha tanto medo que não estivesse!      

Estava muito fria, porém. Tinha de aquecê-la. Soltou-lhe a mão da corda e ergueu-a nos braços. Ela se mexeu, abriu os olhos. Com os músculos endurecidos, mal podia falar, mas procurava dizer alguma coisa.

—    Lobo. Encontre Lobo — disse, num fio de voz, que era mais um murmúrio rouco.

—    Primeiro tenho de cuidar de você.

—    Por favor. Lobo. Perdi muitos filhos. Não posso perder Lobo também — disse, de dentes cerrados.

Tinha uma tal tristeza nos olhos que ele não podia recusar.

—    Muito bem. Vou procurá-lo. Mas tenho de deixá-la abrigada em algum lugar.

Chovia forte quando ele carregou Ayla pelo aclive suave. No alto, o terreno se nivelava em terraço, com uma fieira de salgueiros, alguma vegetação baixa, carriços, e, no fundo, alguns pinheiros. Procurou uma área seca e protegida e ali, rapidamente, armou a barraca, cobrindo o solo saturado, para maior proteção, com o couro de mamute. Trouxe, então, para dentro, Ayla, as bagagens e as peles em que os dois se embrulhavam para dormir. Despiu-a das roupas molhadas, tirou também as suas, meteu a mulher entre as pelicas, e aninhou-se ao lado dela.

Ayla não estava inconsciente, mas numa espécie de estupor. Tinha a pele fria e pegajenta, o corpo hirto. Procurou cobri-la com o próprio corpo para aquecê-la. Quando ela começou a tremer de novo, Jondalar respirou mais aliviado. Aquilo significava que ela estava ficando mais quente por dentro. Mas com a volta da consciência, lembrou-se de Lobo outra vez, e se pôs a insistir, de maneira irracional, quase frenética, que ele saísse à procura de Lobo.

A culpa foi minha, dizia, batendo os dentes. — Eu o fiz saltar no rio. Eu assoviei. Ele confiou em mim. Tenho de achá-lo! — Fez esforço para levantar-se.

Ayla, esqueça Lobo. Você nem sabe por onde começar a busca — disse Jondalar, procurando mantê-la deitada.

Tremendo muito e soluçando histericamente, ela tentou escapar das cobertas de pele.

— Preciso encontrá-lo — gritava.

—    Ayla, eu vou. Se você ficar aqui, prometo que vou procurá-lo — disse ele, querendo convencê-la a ficar na cama quente. — Mas você tem de prometer que ficará quietinha onde está e bem agasalhada.

— Por favor, ache-o.

Ele se vestiu rapidamente, com roupas secas e a parka. Depois apanhou uns dois quadrados da comida prensada para viagem, rica em gorduras e proteínas.

— Vou agora. Coma isto e não saia das peles.

Ela agarrou-lhe a mão quando ele já se preparava para sair.

— Prometa que vai procurá-lo — disse, olhando-o nos olhos azuis. Ainda era sacudida por calafrios, mas já falava com mais facilidade.

Ele a fitou de volta. Havia tanta pena e tanta súplica nos olhos cinza-azulados de Ayla que ele a abraçou mais uma vez.

— Temi que você tivesse morrido.

Ela o abraçou também, tranquilizada pela força dele, pelo seu amor.

— Eu o amo, Jondalar, não poderia perdê-lo, mas, por favor, encontre Lobo. Eu não poderia suportar a falta dele. Ele é para mim como... uma criança... um filho. Não posso perder mais um filho.

Ele se levantou.

—    Vou procurar Lobo. O que não posso prometer é achá-lo. Mesmo que o encontre, não posso prometer que esteja vivo.

Uma expressão de medo e horror encheu os olhos de Ayla. Ela os fechou em seguida e fez um sinal com a cabeça.

—    Procure-o apenas — disse. Mas quando ele quis sair, ela o puxou de novo.

Jondalar não estava certo de ter tido mesmo a intenção de sair à procura do lobo quando se ergueu da cama. Pretendera apanhar lenha para o fogo a fim de;dar-lhe chá e sopa, e ver os cavalos. Mas prometera. Racer e Huiin estavam de pé contra o renque de salgueiros, ainda com os cobertores por cima e Racer com seu cabresto. Mas eram animais fortes, e pareciam bem, de modo que ele desceu a rampa.

Não sabia que direção tomar ao alcançar o rio, mas decidiu ir no sentido da corrente. Puxando o capuz para a frente, a fim de se defender da chuva, seguiu pela margem, examinando as pilhas de galhos e concentrações de destroços. Viu muitos animais mortos e também carnívoros e carniceiros, tanto quadrúpedes quanto alados, banqueteando-se naquelas dádivas do rio. Viu inclusive uma alcateia de lobos, mas nenhum deles se parecia com Lobo.

Finalmente, voltou. Iria também rio acima, talvez tivesse mais sorte. Não contava encontrar o animal, e percebeu, com surpresa, que isso o entristecia. Lobo aborrecia, às vezes, mas ele já gostava do animal. Iria sua falta, e Ayla ficaria desolada.

Alcançou a área onde a encontrara. Fez a curva do rio, incerto quanto à distância que iria percorrer nessa outra direção, principalmente por notar que o nível da água continuava subindo. Resolveu mudar a barraca para mais longe, assim que Ayla pudesse andar. Talvez devesse dar por encerrada a busca rio acima e voltar. Pensou, mas hesitou. Bem, talvez eu deva procurar mais um pouco. Ela vai perguntar se tentei nas duas direções.

Continuou, então, a subir o rio, contornando um monte de toras e galhos partidos. Mas quando viu a majestosa silhueta de uma águia-imperial, pairando com as asas estendidas, parou para observá-la com respeito e admiração. De repente, a graciosa ave dobrou as asas poderosas e mergulhou para a margem do rio. E logo alçou vôo outra vez, levando nas garras um grande esquilo.    

Um pouco mais adiante, no lugar onde a ave de rapina havia achado a sua refeição, um belo afluente, que se abria num pequeno delta, juntava suas águas às do Rio da Irmã. Pensou ver, então, alguma coisa familiar na larga praia de areia que ali se formara. Sorriu ao reconhecer o que era: o barco. Mas olhando com mais atenção, franziu a testa e se pôs a correr. Ao lado do barco estava Ayla, sentada na água, com a cabeça de Lobo no regaço. Um corte acima do olho direito do animal ainda sangrava.

Ayla! O que está fazendo? Como veio parar aqui? — explodiu, mais de temor e preocupação que de raiva.

Ele está vivo, Jondalar — disse ela, tremendo de frio e soluçando tanto que mal podia falar. — Lobo está ferido, mas vivo.

Depois que ele pulara no rio, nadara em direção a Ayla. E ao alcançar o bote vazio, descansou as patas nos mastros. E ficou lá, com aqueles objetos conhecidos, deixando que o barco e os varais o sustentassem. Só quando o laço corrediço se soltou, e tanto barco quanto mastros começaram a dançar nas ondas revoltas, ele foi atingido pelo tronco pesado e encharcado que vinha enganchado neles. Mas aí já estavam quase na margem oposta do rio. O barco foi lançado na areia, e os mastros, com o lobo caído por cima deles, ficaram metade fora d'água. O golpe o atordoara, mas estar mergulhado em água fria tanto tempo era pior. Até lobos são sujeitos à hipotermia e à morte por longa exposição às intempéries.

—    Venha, Ayla, você está tremendo outra vez. Temos de ir para a barraca. Por que veio? Eu não lhe disse que iria procurá-lo? Eu o levo — disse Jondalar. Tirou o lobo de cima dela e procurou ajudá-la a ficar de pé.

Depois de alguns passos, no entanto, verificou que teriam a maior dificuldade para alcançar o acampamento. Ayla mal podia andar, e Lobo era um animal grande e pesado. O pêlo molhado ainda acrescentava ao peso Jondalar não podia carregar os dois, mas sabia que Ayla jamais concordaria em que ele deixasse o animal para uma segunda viagem. Ah, se lhe fosse possível chamar os cavalos assoviando como Ayla fazia com o lobo! E por que não seria? Ele inventara um assovio para chamar Racer, mas não se esforçara muito para que o cavalo aprendesse a responder. Nunca precisara disso. Depois, Racer sempre vinha, quando Ayla chamava Huiin.

Talvez Huiin viesse agora, se ele assoviasse. Podia, pelo menos, tentar. Procurou imitar o assovio de Ayla, esperando que o animal estivesse suficientemente perto para ouvi-lo. Mas se os cavalos não acorressem, estava decidido a ir em frente de qualquer maneira. Mudou a posição de Lobo nos braços e procurou fazer com que Ayla se apoiasse no seu ombro, para maior firmeza.

Não tinham chegado ainda à pilha de destroços e ele já se sentia cansado. Ainda se aguentava por puro esforço de vontade. Ele também nadara muito para atravessar o rio. E carregara Ayla, armara a barraca, explorara a margem do rio nas duas direções. Não podia mais. Mas ouviu um relincho e ergueu os olhos. À vista dos dois cavalos, alegria e alívio o inundaram.

Pôs o lobo nas costas de Huiin, que já o levara antes, e estava acostumada com ele. Depois ajudou Ayla a montar em Racer e puxou-o pela praia. Huiin os seguiu. Ayla, tremendo nas roupas molhadas, teve dificuldade em ficar montada no cavalo quando começaram a subir a encosta Chovia mais forte agora, mas, indo devagar e com cautela, conseguiram alcançar a barraca.

Jondalar ajudou a mulher a apear e levou-a para dentro, mas a hipotermia lhe tirava a coordenação outra vez, e ela estava ficando histérica com a situação do lobo. Ele teve de levá-lo logo para a barraca e de prometer que ia secá-lo incontinenti. Mas com o quê? Procurou freneticamente alguma coisa apropriada nas bagagens. Mas quando Ayla quis levar Lobo para a cama, ele recusou. Pôs, no entanto, uma coberta por cima do animal. Ayla soluçava incontrolavelmente, mas ele a forçou a despir-se e deitar-se entre as peles.

Depois saiu para remover o cabresto de Racer e os cobertores de montar dos dois cavalos. Afagou-os com palavras de gratidão. Embora cavalos vivessem normalmente a céu aberto e em qualquer espécie de tempo, sabia que eles não gostavam muito de chuva, e esperava que não viessem a adoecer.

Por fim, ele mesmo entrou, despiu-se, e se enfiou na cama. A mulher continuava a tremer muito. Ela pusera Lobo a seu lado e Jondalar se aconchegou às suas costas. Depois de algum tempo, com o calor do lobo de um lado e o do homem de outro, os tremores cessaram, e eles se entregaram à exaustão. Dormiram.

Ayla acordou com uma língua molhada lambendo-lhe o rosto. Rechaçou Lobo, mas sorriu de alegria, e o abraçou. Com a cabeça dele entre as palmas das mãos, examinou-o atentamente. A chuva lavara o ferimento, que não sangrava mais. Seria preciso passar-lhe algum remédio mais tarde, mas no momento, ele estava bem. Não fora a pancada na cabeça que o enfraquecera, mas a longa permanência no rio. O sono e o calor eram, para o caso, a melhor medicina. Viu que Jondalar a enlaçava estreitamente por trás, mesmo dormindo, de modo que permaneceu como estava, segurando Lobo e escutando a chuva tamborilar no couro da tenda.

Lembrava-se fragmentariamente dos acontecimentos da véspera: a caminhada, aos tropeções, por entre a macega e os galhos que o rio trouxera, esquadrinhando a margem do rio em busca de Lobo; a mão doendo por causa da corda apertada; Jondalar levando-a nos braços. Sorriu quando pensou nele, tão junto dela. Depois o viu ocupado em armar a barraca. Sentiu-se envergonhada de não ter podido ajudá-lo. Mas estava tão rígida de frio que lhe teria sido impossível mover-se.

Lobo tanto se contorceu que escapou do jugo de Ayla e saiu farejando pelas imediações da barraca. Ayla ouviu o relincho de Huiin e, tomada de alegria, por pouco não lhe respondeu. Lembrou-se em tempo que o Jondalar estava dormindo. Começou a preocupar-se com a permanência dos cavalos na chuva. Estavam acostumados com tempo seco, não com aquela chuvarada interminável. Mesmo um frio intenso era suportável quando seco. Lembrava-se, porém, de ter visto cavalos pelo caminho, de modo que alguns deveriam viver na região. Cavalos têm uma camada subjacente de lã espessa, densa e quente, mesmo quando molhada. Acreditava que eles conseguiriam enfrentar aquele clima, desde que não chovesse sem parar.

Ela mesma não gostava nada das pesadas chuvas de outono que caíam nessa região meridional, embora tivesse apreciado as longas primaveras chuvosas do norte, com suas cerrações e garoas. A caverna do Clã de Brun ficava para o sul, e chovia muito por lá no outono. Mas não se lembrava de dilúvios como os que vinham enfrentando. No sul, as regiões não eram idênticas umas às outras. Pensou em levantar-se, mas antes de fazê-lo adormeceu de novo.

Quando despertou pela segunda vez, o homem ao lado dela começava a mexer-se. Ficou quieta por mais algum tempo nas suas peles, mas sentiu que alguma coisa mudara, não sabia bem o quê. Depois descobriu: o som da chuva cessara. Levantou-se, então, e saiu. A tarde caía, e estava mais frio lá fora do que antes. Devia ter vestido alguma coisa mais grossa. Urinou junto de um arbusto, e foi ver os cavalos, que pastavam junto dos salgueiros, onde havia um arroio. Lobo estava com eles. Vieram correndo, os três, quando viram que se aproximava. E ela passou algum tempo fazendo-lhes festas e coçando-os. Foi, então, de volta para a barraca e se deitou outra vez ao lado de Jondalar.

— Você está fria, mulher! — disse ele.

— E você está quente e gostoso — disse ela.

Ele a enlaçou e ficou a esfregar o rosto em seu pescoço, aliviado ao ver que ela se aquecia rapidamente. Demorara tanto para chegar ao normal depois de ter gelado na água do rio!

— Não sei onde eu estava com a cabeça deixando que você ficasse tão molhada e fria — disse Jondalar. — Não devíamos ter atravessado aquele rio.

— Mas Jondalar, que outra coisa podíamos fazer? Você estava certo. Com aquela chuva toda, teríamos de atravessar da mesma maneira Teria sido muito mais difícil passar um rio de montanha.

— Se tivéssemos deixado os Xaramudói mais cedo, teríamos escapado às chuvas. Então o Rio da Irmã não estaria tão caudaloso e rápido — disse Jondalar, continuando a culpar-se por tudo.

— Mas foi minha a culpa! Até Carlono achou que conseguiríamos chegar em tempo.

— Não, Ayla, a culpa foi minha. Eu sabia que esse rio era assim. Se eu tivesse insistido, nós teríamos vindo. E se tivéssemos deixado o barco para trás, ele não nos teria atrasado na montanha, nem você levaria tanto tempo para alcançar a margem oposta do Rio da Irmã.

— Jondalar, por que faz isso? Você não é estúpido. Não podia prever o que aconteceria. Nem mesmo Um que Serve à Mãe pode prever tudo com exatidão. As coisas não são claras. Nunca. E conseguimos passar. Estamos do lado de cá, e tudo esta bem, Lobo inclusive, graças a você. Temos também o barco. Quem sabe os serviços que ainda nos poderá prestar?

— Mas quase perdi você — disse ele, enfiando de novo o nariz no pescoço dela e apertando-a tanto que doía, embora ela não procurasse impedi-lo — Não sei dizer o quanto a amo. Eu me importo muito com você mas as palavras me faltam. Não bastariam, de qualquer maneira, para expressar o que sinto. — Ele a estreitava ainda, como se pensasse que fazendo-o, ela se tornaria de algum modo parte dele e, assim, nunca a perderia.

Ela o abraçava também, amando-o c desejando fazer alguma coisa que aliviasse a angústia dele. De repente, descobriu o que poderia ser. Disse-lhe o que era ao ouvido e beijou-o no pescoço. A reação dele foi imediata. Ele a beijou com paixão, esfregando os braços dela, fechando as mãos nos seus seios, e sugando-lhe os mamilos com grande voracidade. Ayla se pôs a cavalo nele e rolou-o para que ficasse por cima dela, depois abriu as coxas. Ele recuou um pouco e ficou a bater-lhe com o membro já intumescido, querendo encontrar a abertura. Ela se curvou para ajudá-lo. Ambos sentiam um desejo ardente um pelo outro.

Quando se afastavam um do outro e se juntavam de novo, seu corpo e o da mulher se distanciavam e reuniam num ritmo tão perfeito que Ayla se deu completamente quando a velocidade aumentou, gloriando no que sentia. Centelhas de fogo corriam por ela, centradas lá dentro do seu ventre. E eles se moviam, uníssonos, para a frente, para trás...

Nele uma potência vulcânica ganhava em ímpeto, vagas de excitação o tomavam e engolfavam, e antes mesmo de dar-se conta do que acontecia chegou ao clímax. Movendo-se depois, mais umas poucas vezes, sentiu uns choques menores, como os tremores que se seguem a um terremoto. E logo veio a gloriosa sensação de satisfação completa.

Deixou-se ficar de bruços por cima dela, até normalizar a respiração depois daquele esforço tão grande e subitâneo. Ayla tinha os olhos fechados, consentindo. Depois de algum tempo, ele escorregou para o seu lado da cama, aconchegando-se. Ayla, dando-lhe as costas, colou-se nele. E ficaram muito quietos, gozando o prazer de estarem assim, encaixados um no outro como duas colheres.

Depois de um longo tempo, Avia disse com doçura:

— Jondalar?

— Hein? — resmungou ele. Estava num delicioso estado de languidez, sem sono, mas também sem nenhuma vontade de mexer-se.

— Quantos rios como esse ainda temos de cruzar?

Ele a beijou na orelha.


— Nenhum.

— Nem mesmo o Rio da Grande Mãe?

— O Rio da Grande Mãe não é tão rápido, traiçoeiro e perigoso quanto o da Irmã — disse ele —, mas não vamos atravessá-lo. Vamos ficar deste lado a maior parte do tempo a caminho da geleira do platô. Quando chegarmos ao limite dos gelos, gostaria de visitar certas pessoas que moram na outra margem do Rio da Grande Mãe. Mas isso está ainda muito distante de nós. Quando lá chegarmos, o rio já estará reduzido às proporções de uma torrente de montanha — e pondo-se de costas: — Não que não tenhamos de atravessar mais rios, mas nesta planície o Rio da Grande Mãe se divide em inúmeros canais que se separam e reúnem mais adiante. Quando estiverem todos juntos de novo, o rio já se mostrará tão pequeno que você não o reconhecerá como o Rio da Grande Mãe.

— Sem toda a água do Rio da Irmã não estou certa de que o reconheceria — disse Ayla.

— Penso que reconheceria sim. Por maior que seja o Rio da Irmã quando os dois rios confluem, o Rio da Grande Mãe é ainda bem maior Há outro rio de grandes proporções que o alimenta como afluente da outra margem, logo antes do ponto em que as Colinas Arborizadas o fazem infletir para leste. Thonolan e eu encontramos alguns habitantes do local, que nos levaram de balsa para o lado de lá. Muitos outros afluentes descem também das grandes montanhas ocidentais, mas nós vamos para o norte pela planície, e sequer os veremos.

Jondalar sentou-se. A conversação lhe dera vontade de levantar acampamento, se bem que não pudessem partir antes do dia clarear. Mas ele se sentia tão bem e recuperado do cansaço que não queria ficar mais na cama.

— Não vamos cruzar muitos rios até chegarmos aos planaltos do norte — continuou ele. — Pelo menos foi isso que os Hadumas me disseram. Segundo eles, encontraremos algumas colinas, mas em geral a região é plana. Muitos dos rios que veremos são afluentes do Rio da Grande Mãe. que serpenteia, ao que se conta, por toda a área. É uma boa zona de caça, esta aqui. Tem fama disso. O povo Haduma atravessa os canais todo o tempo para vir caçar aqui.

— O povo Haduma? Acho que você já me falou nessa gente, mas nunca disse muita coisa. — Ayla também se levantara e já puxava, para arrumá-la, a cesta chata que fizera para Huiin levar na garupa.

— Não estive com eles muito tempo, só o bastante para... — Jondalar hesitou, pensando nos Ritos de Iniciação que partilhara com uma bela garota, Noria. Ayla percebeu a estranha expressão no rosto dele. Era como se estivesse embaraçado, mas também contente consigo mesmo — ...uma cerimónia, um festival.

—    Um festival em honra da Grande Mãe Terra? — perguntou Ayla.

—    Bem... sim, efetivamente. Eles me convidaram... quero dizer, eles convidaram a Thonolan e a mim para participar do festival com eles.

—    Vamos visitar os Haduma? — perguntou Ayla da porta da barraca, segurando uma pele Xaramudói de camurça com que pretendia enxugar-se depois de ter tomado banho no córrego dos salgueiros.


— Eu bem que gostaria de fazê-lo, mas não sei onde eles moram — disse Jondalar. Depois, vendo o ar de perplexidade na fisionomia dela, explicou. — Alguns dos caçadores Haduma encontraram o nosso acampamento e mandaram chamar Haduma. Foi ela quem decidiu realizar o festival, e ali mesmo, e mandou que viessem os demais. — Ele fez uma pausa, rememorando. — Haduma era uma mulher e tanto. A pessoa mais velha que já vi. Mais velha até que Mamute. É mãe de seis gerações. — De cinco, com certeza. De seis, possivelmente, ou assim espero, pensou. — Gostaria, sinceramente, de revê-Ia, mas já estará morta, de qualquer maneira. Seu filho, Ameno, porém, estará vivo. Ele era o único que sabia falar Zelandonii.

Ayla saiu. Jondalar estava com muita vontade de urinar. Enfiou rapidamente a túnica pela cabeça e saiu atrás dela. Enquanto urinava, contemplando o arco de água amarela, de cheiro forte, quente de soltar fumaça, ficou pensando outra vez se Noria tivera o bebê que Haduma anunciara e se aquele órgão que ele tinha na mão fora responsável direto por isso.

Viu Ayla caminhando para os salgueiros, toda nua, só com a camurça em torno das espáduas. Achou que devia lavar-se também, embora já tivesse sua cota de água fria. Não que ele não tivesse coragem de enfrentar água fria quando necessário, para vadear um rio por exemplo, mas tomar banho não tinha a mesma importância antigamente, quando viajava com o irmão...

Não que Ayla lhe fizesse qualquer observação. Mas como jamais permitia que o frio a impedisse de banhar-se, ele não podia usar essa desculpa. Tinha, aliás, de admitir que gostava do fato de que ela sempre cheirasse bem, lavada de fresco. Mas Ayla chegava ao extremo de quebrar gelo para obter água. Como podia suportar aquilo ele não sabia.

Pelo menos ela já estava de pé e andando de um lado para o outro. Pensara que teriam de ficar acampados por alguns dias, para que a mulher se recuperasse. Talvez a mulher adoecesse. Podia ser que todos aqueles banhos de água fria a tivessem preparado? E talvez um pouco de água fria não me fizesse mal, disse consigo mesmo. Percebeu, então, que estivera a observar a maneira pela qual as nádegas de Ayla se mostravam debaixo da camurça, gingando de maneira provocante quando ela andava.

Seus Prazeres vinham sendo mais excitantes e mais satisfatórios do que imaginara, considerando a pressa com que, em geral, acabavam. Mas vendo Ayla pendurar a toalha num galho e seguir para o arroio, teve vontade de começar tudo outra vez, só que agora a amaria bem devagar, com carinho, saboreando cada pedaço do corpo de Ayla.

As chuvas continuaram, intermitentes, quando eles começaram a atravessar as terras baixas, entre o Rio da Grande Mãe e o afluente quase comparável a ele, o Rio da Irmã. Rumaram para noroeste, embora sua rota estivesse longe de ser direta. As planícies centrais pareciam as estepes do lado oriental e eram, na verdade, uma extensão delas. Mais os rios que cruzavam a antiga de norte para sul tinham papel dominante no caráter da região. O curso do Rio da Grande Mãe, cheio de meandros e de bifurcações, criava enormes áreas alagadas nas vastas pastagens secas.

Lagos semicirculares formavam-se nos cotovelos mais pronunciados dos grandes canais, e constituíam, com os pântanos, os prados encharcados e os campos férteis que davam diversidade às magníficas estepes um refúgio a um número incrível de aves de grande variedade. Mas forçavam quem quer que viajasse por terra a seguidos desvios. A diversidade de céus era complementada por uma rica vida vegetal e uma variegada população animal, comparável à das estepes orientais, se bem que mais concentrada, como se a paisagem tivesse encolhido enquanto sua comunidade de seres vivos permanecia inalterada.

Rodeadas de montanhas e platôs que funcionavam como funis na irrigação da terra, as planícies centrais, principalmente no sul, eram também mais arborizadas, por vezes de maneira sutil. Em vez de serem enfezadas e deformadas, as árvores das matas ciliares eram, muitas vezes, de porte normal e copa frondosa. Os arbustos não eram mirrados, mas cheios. Na parte meridional, junto da larga e turbulenta confluência, havia pântanos e alagados nos vales e depressões do terreno, que se espraiavam, ficando enormes na estação das chuvas. Umas poucas, pequenas, florestas encharcadas, de amieiros, freixos e bétulas, pareciam à espreita do incauto para fazê-lo atolar entre cômoros coroados de salgueiros, carvalhos e faias. Já os pinheiros preferiam deitar raízes em solos mais arenosos.

Os terrenos eram ali, na sua maior parte, ou uma mistura de rico loess e terras pretas ou de areias e cascalhos aluviais, com afloramentos ocasionais da rocha fundamental, que interrompiam a horizontalidade do relevo. Essas elevações isoladas surgiam vestidas, em geral, de coníferas, que por vezes desciam até a planície, hospedando diversas espécies de animais que não poderiam viver exclusivamente em campo aberto, e se concentravam, de preferência, na orla da formação. Mas com toda essa complexidade, a vegetação primária era, ainda, e por toda parte, relva. Sobretudo, as planícies centrais eram uma região de pastagens extraordinariamente ricas em capins altos e rasteiros, ervas, estipas, gramíneas como a festuca, e a todas o vento afagava e fazia oscilar.

À medida que Ayla e Jondalar deixavam as planícies do sul e se acercavam do setentrião gelado, a estação parecia passar mais rapidamente do que seria normal. O vento que recebiam no rosto já trazia um um aviso do frio terrível de que provinha. A acumulação inconcebivelmente maciça de gelo glacial, cobrindo vastas extensões das terras do norte, jazia diretamente à frente deles, a uma distância muito menor que a percorrida desde o início da Jornada.

Com a estação prestes a mudar, a força crescente do ar gelado mostrava o seu potencial profundo, ainda escondido. As chuvas diminuíram de intensidade e, por fim. cessaram de todo. Cirros-cúmulos, como algodão esgarçado, substituíram, no céu, os cúmulos-nimbos escuros das tempestades. O mesmo vento constante que esfiapava as nuvens arrancava as folhas secas das árvores decíduas, lançando-as num tapete solto aos pés dos viajantes. Por vezes, numa súbita mudança de intenção, uma corrente de ar vinda de baixo erguia esses quebradiços esqueletos do verão, fazia-os girar com fúria por algum tempo, para depois, cansada do jogo, depositá-los em outro lugar.

Mas esse tempo seco e frio agradava aos viajantes. Ayla e Jondalar estavam mais familiarizados com ele. Era mais confortável, até, pois tinham cada um, sua boa parka e seu capuz forrado de pele. A informação recebida se confirmou: a caça era abundante e os animais estavam gordos e saudáveis, depois de um verão regalado. Aquela era também a época do ano mais propícia para a colheita de grãos, frutas, bagas, nozes e raízes. Não precisavam apelar para as razões de emergência. Puderam mesmo substituir suprimentos gastos quando mataram um veado gigante. Resolveram, nessa ocasião, acampar por alguns dias. Descansariam e poderiam secar a carne. Seus rostos brilhavam de saúde e de felicidade de estarem vivos e amando.

Os cavalos também pareciam rejuvenescidos. Estavam no seu habitat, no clima e nas condições a que melhor se adaptavam. Sua pelagem ficou fofa com a lã que lhes nascera para o inverno, e ambos pareciam ativos e brincalhões toda manhã. O lobo, de nariz para o vento, apanhava no ar odores catalogados nos recessos profundos, instintivos, do seu cérebro, e seguia essas pistas impalpáveis, alegremente. Continuava a fazer suas surtidas de sempre, mas voltava, arvorando um ar presunçoso, segundo Ayla.

A travessia de rios não era problema. Muitos dos cursos d'água da região corriam paralelamente ao eixo norte-sul do Rio da Grande Mãe, embora tivessem de passar alguns que cruzavam a planície em sentido contrario. A configuração era de todo imprevisível. Os canais tinham tantos meandros que eles não estavam sempre seguros se uma corrente que se atravessava no caminho era um volteio de um rio ou uma das raras torrentes que provinham das montanhas. Alguns canais paralelos terminavam abruptamente num curso d'água que rumava para oeste e que, por sua vez, desaguava em outro canal do Rio da Grande Mãe.

Embora tivessem de fazer desvios ocasionais da sua direção geral norte, forçados por uma curva mais pronunciada do rio, estavam outra vez naquela espécie de campo aberto em que a viagem a cavalo tinha grande vantagem sobre a viagem a pé. Eles mantinham um ritmo excepcionalmente bom, cobrindo tão grandes distâncias todos os dias que compensavam os atrasos anteriores. Jondalar se rejubilava pensando que compensavam, até, o tempo perdido com sua decisão de tomar o caminho mais longo, a fim de visitar os Xaramudói.

Os dias límpidos, de frio estimulante, davam-lhes uma ampla visão panorâmica, toldada apenas de manhãzinha por cerrações, quando o sol aquecia a umidade condensada durante a noite. Para leste ficavam, agora, as montanhas que eles tinham ladeado quando acompanharam o grande rio através dos prados quentes do sul, as mesmas montanhas cuja ponta sudoeste os dois haviam escalado. Os picos gelados e cintilantes se aproximavam imperceptivelmente deles com a curvatura da cordilheira para noroeste num grande arco.

Para a esquerda, a mais alta cadeia de montanhas do continente com uma pesada coroa de gelo glacial que descia até metade dos seus lados, marchava em cristas sucessivas de leste para oeste. Os cimos altaneiros e brilhantes erguiam-se no horizonte cor púrpura como uma presença vagamente sinistra, uma barreira aparentemente intransponível entre os viajantes e seu destino. O Rio da Grande Mãe os levaria, à roda da larga face setentrional da cadeia, a um glaciar relativamente pequeno que cobria, qual armadura de gelo, um velho maciço arredondado na extremidade noroeste do promontório alpino das montanhas.

Mais baixo e mais próximo, para além de um prado relvoso interrompido por florestas de pinheiros, destacava-se outro maciço. A elevação granítica dominava as campinas e o Rio da Grande Mãe, mas diminuía aos poucos à medida que eles avançavam para o norte, fundindo-se harmoniosamente nas colinas suaves que continuavam até os contrafortes das montanhas ocidentais. Um número cada vez menor de árvores rompia a mesmice enfadonha daqueles infindáveis campos, e as que o faziam assumiam o aspecto enfezado e contorcido de árvores esculpidas pelo vento que já haviam encontrado pelo caminho.

Ayla e Jondalar tinham viajado três quartos, aproximadamente, da distância total, de sul para norte das imensas planícies centrais, antes que aparecessem os primeiros flocos de neve.

— Jondalar, veja! Está nevando! — disse Ayla, com um sorriso radiante. — É a primeira neve do inverno. — Ela vinha sentindo cheiro de neve no ar, e a primeira nevada da estação sempre lhe parecia especial.

— Não posso entender por que isso a deixa assim tão feliz — disse Jondalar. Mas a alegria dela era contagiosa, e ele teve de sorrir-lhe de vota.

— Acho que você vai ficar muito cansada de neve e gelo antes de termos chegado ao fim desta Jornada.

— Você tem razão, mas assim mesmo adoro a primeira neve. — E depois de mais alguns passos: — Não poderíamos acampar logo?

— Passa só um pouco do meio-dia — disse Jondalar, intrigado. — Por que você já fala em acampar?

— Vi algumas ptármigas há pouco. Elas já começaram a branquear, mas sem neve no chão é fácil vê-las por enquanto. Será difícil, depois, elas são particularmente saborosas nesta época do ano, sobretudo à moda de Creb, mas leva muito tempo para cozinhá-las como ele gostava. — Ayla tinha os olhos perdidos, lembrando. — A gente faz um buraco no chão, forra-o de pedras, acende um fogo dentro, depois põe as aves, envoltas em fenos, cobre de terra, e espera. — As palavras tinham saído de sua boca tão depressa que ela quase as engolia, falando. — Mas vale a pena esperar.

— Calma, Ayla, você está muito excitada — disse ele, rindo. Estava encantado e divertido ao mesmo tempo. Gostava de vê-la assim, tomada de entusiasmo. — Se você acha que elas ficarão deliciosas preparadas desse jeito, só nos resta acampar mesmo cedo e sair caçando ptármigas.

— Ah, ficarão esplêndidas! — disse ela, encarando Jondalar com uma expressão de grande seriedade. — Mas você já conhece essa maneira de prepará-la Sabe que gosto terão. — Notou, então, o sorriso matreiro dele e viu que estivera brincando com ela. Tirou a funda da cintura e acrescentou: — Você prepara o acampamento. Eu vou caçar. E, depois, se quiser ajudar, faça o buraco. Sou até capaz de deixar que prove uma das aves. — E, com um último sorriso, chamou Huiin e montou.

— Ayla! — gritou Jondalar antes que ela se afastasse muito. — Se você deixar comigo os mastros, prometo armar o acampamento sozinho, ó Mulher-Caçadora.

Ela parou, surpresa.

—    Não imaginava que você se lembraria de como Brun me chamou quando me permitiu caçar — disse, voltando, e fazendo parar a égua junto dele.

— Posso não ter as suas memórias do Clã, mas lembro de algumas coisas, sobretudo se afetam a mulher que amo — disse e viu que o adorável sorriso dela se acentuava. Aquilo a embelezava ainda mais. — Além disso, se você me ajudar a escolher o lugar para armar a barraca, saberá para onde tem de voltar trazendo as aves.

— Se eu não o visse, iria procurá-lo, mas vou deixar a carga de arrasto. Com ela, Huiin não pode mesmo virar-se com a rapidez desejada.

Cavalgaram um pouco até encontrar uma área apropriada, à margem de um riacho, com terreno plano para a barraca, umas poucas árvores e, mais importante para Ayla que tudo isso, uma praia rochosa com pedras que ela poderia usar para o seu forno enterrado.

—    Já que estou ainda aqui, posso ajudar a fazer o acampamento.

—    Vá caçar suas ptármigas. Apenas me diga antes de ir onde quer que eu comece a cavar o buraco — disse Jondalar.

Ayla ouviu e concordou. Quanto mais depressa ela as matasse, tanto mais depressa poderia começar a assá-las. O preparo demandava tempo, e a caça podia ser demorada. Ela percorreu a área e apontou um lugar que lhe pareceu ideal para fazer o buraco para o preparo das aves.

— Aqui — disse —, não muito longe destas pedras.

Em seguida, caminhou um pouco pela praia. Já que estava lá, podia aproveita e recolher algumas belas pedras redondas para a sua funda.

Chamando Lobo, voltou por onde tinham vindo, procurando as ptármigas. Uma vez que se pôs em busca das gordas aves, encontrou diversas espécies parecidas com elas. Ficou tentada, primeiro, por um bando de perdizes-cinzentas, que viu bicando as sementes maduras do raigrás e do trigo. Identificou o número surpreendentemente grande de filhotes pelas suas marcas ligeiramente menos definidas e não pelo tamanho. Embora essas aves de porte médio e atarracadas ponham até vinte ovos de uma vez, são vítimas de predação tão grande que poucas sobrevivem e chegam à idade adulta.

As perdizes-cinzentas também são saborosas, mas Ayla resolveu continuar, memorizando a sua localização para o caso de não encontrar mais as ptármigas. Um pequeno bando de codornas com várias ninhadas a assustou levantando vôo. Esses pássaros, gregários rotundos, eram também saborosos, se bem que pequenos, mas ela precisaria saber manejar o bastão de arremesso para derrubar várias de um golpe só.

E como desprezara as outras aves, muito se alegrou ao encontrar as ptármigas, em geral bem camufladas, perto de onde as vira antes. Exibiam ainda muito das suas marcas habituais, mas as penas brancas já predominantes, faziam com que ficassem conspícuas contra o solo acinzentado e a grama seca, da cor de ouro velho. As ptármigas, gordas baixotas, já tinham penas de inverno nas pernas e nos pés. Serviam para aquecê-las e podiam ser usadas como raquetes de inverno. Embora as codornas costumem cobrir grandes distâncias, tanto as perdizes quanto as ptármigas, ou seja, as aves da família do tetraz que ficam brancas no inverno, permaneciam numa área em geral próxima do seu lugar de origem, migrando apenas num raio muito curto entre inverno e verão.

Naquele mundo liberal, que ensejava estreitas associações entre seres vivos cujos habitats estariam, em outras condições, muito afastados, cada espécie tinha seu nicho, mas ficavam ambas nas planícies centrais durante o inverno. Enquanto a perdiz se mantinha no campo aberto e varrido de vento, comendo sementes e nidificando em árvores junto de rios ou nos terrenos mais altos, as ptármigas ficavam diretamente na neve, morando em buracos para se esconder do frio, e sobrevivendo com uma dieta de brotos, botões, rebentos, que por vezes continham óleos repugnantes — ou, até, venenosos — para outros animais.

Ayla mandou que Lobo ficasse quieto enquanto apanhava duas pedras no bornal e preparava a funda. Montada em Huiin, ela mirou um dos pássaros já quase brancos e arremessou a primeira pedra. Lobo, entendendo o movimento dela como um sinal, lançou-se sobre outra ptármiga ao mesmo tempo. Com ruidosos protestos e grande rumor de asas o resto do bando se elevou no ar, batendo forte com os músculos de vôo. A camuflagem normal de terra das ptármigas parecia diferente quando voavam. A plumagem eriçada mostrava outro desenho, característico, para facilitar a indivíduos da mesma espécie seguirem juntos em bando.

Depois do ímpeto inicial, o vôo das ptármigas se alongou, planado e calmo. Com a pressão e movimento do corpo que já eram, para ela, uma segunda natureza, Ayla fez com que Huiin acompanhasse as aves, enquanto preparava a segunda pedra.

A mulher apanhou a funda no seu curso descendente, deslizou a mão pela correia até a ponta e, com um só movimento, que a prática fizera perfeito, trouxe-a de volta à posição inicial, encaixou a segunda pedra no lugar e lançou. Embora às vezes precisasse de uma segunda volta no ar para o primeiro arremesso, raras vezes precisava reforçar o momento para o segundo.

Sua habilidade em lançar pedras assim depressa era tão rara, que se ela tivesse perguntado a alguém se aquilo estava no campo das possibilidades teria ouvido que não: não era só difícil, era impossível. Mas como não tivera a quem pedir conselho, ninguém lhe dissera que não podia ser feito, e Ayla desenvolveu sozinha a sua técnica de lançamento duplo. Com correr dos anos a aperfeiçoara, e tinha boa pontaria com as duas pedras. A ave que mirava no chão jamais levantou vôo. E quando a segunda tombou do céu, ela apanhou rapidamente mais duas pedras. Mas a essa altura o bando estava fora de alcance.

Lobo veio trotando com uma terceira ptármiga na boca. Ayla escorregou da égua e, a um sinal, o lobo depôs a presa aos seus pés. Em seguida sentou-se, olhando para ela, todo contente de si, com uma pena leve e branca presa a um lado da boca.

— Muito bem, Lobo! — disse Ayla, agarrando-lhe a coleira de pêlos agora mais farta para o inverno, e encostando a testa na dele. Depois se voltou para a égua.

— Esta mulher agradece sua ajuda, Huiin — disse, na linguagem especial que usava com a égua, feita de sinais do Clã e curtos relinchos em surdina. A égua levantou a cabeça, resfolegou e se aconchegou à mulher. Ayla segurou-lhe a cabeça e fungou nas narinas de Huiin, trocando com ela cheiros de reconhecimento e amizade.

Depois, torceu o pescoço de uma ave que não estava morta. Usando um capim forte, atou os pés de todas elas e depositou-as na alcofa da garupa. A caminho do acampamento, porém, não resistiu à tentação de pegar também umas duas perdizes. Não conseguiu acertar uma terceira. Lobo caçou a sua, e Ayla deixou, dessa vez, que ele ficasse com ela.

Resolveu que cozinharia todas as aves juntas, para comparar as duas espécies. Deixaria o que sobrasse para o dia seguinte. Começou, então, a pensar no recheio mais indicado. Se as aves estivessem em ninho poderia usar os próprios ovos delas. Mas usara grãos outrora, quando morava com os Mamutói. Levaria muito tempo, no entanto, apanhar um número suficiente de grãos. A tarefa era demorada e mais própria para um grupo de pessoas. Alguns tubérculos de bom tamanho serviriam. Com cenouras, talvez, e cebolas.

Pensando na refeição que ia preparar, a mulher não prestava muita atenção ao que a cercava, mas não podia deixar de perceber quando Huiin parou. A égua sacudiu a cabeça e relinchou, depois ficou absolutamente imóvel, mas Ayla podia sentir a tensão do animal. Huiin tremia toda, e a mulher entendeu por quê.

 

Ayla, montada em Huiin, olhava direto para a frente, sentindo uma inexplicável apreensão, um medo que crescia dentro dela e lhe dava um frio na espinha. Fechou os olhos e sacudiu a cabeça para livrar-se da sensação. Afinal de contas, não havia nada a temer. Abrindo os olhos, viu, como antes, a grande manada de cavalos à sua frente. O que havia de tão ameaçador num bando de cavalos?

Muitos dos animais olhavam na sua direção, e a atenção de Huiin estava tão intensamente concentrada naqueles membros da sua espécie quanto a deles nela. Ayla fez sinal a Lobo para que permanecesse junto da égua ao ver que ele também estava curioso e já se dispunha a ir investigar. Cavalos, afinal, são presa comum de lobos, e aqueles cavalos selvagens certamente não gostariam se ele chegasse muito perto.

Ao observar a manada mais atentamente, não muito certa do que deveriam fazer, ela e Huiin, Ayla percebeu que se tratava, na verdade, de dois bandos distintos. Dominando o espaço, estavam as éguas, com suas crias, e Ayla supôs que uma delas, a que estava agressivamente à frente das demais, fosse a líder. À retaguarda ficava a manada menor, de cavalos. Notou, de súbito, entre eles, um exemplar especial, de que não pôde mais tirar os olhos: era o cavalo mais singular que jamais vira.

Na sua maior parte, os equinos que ela conhecia eram variações da cor de Huiin, o amarelo torrado, dito baio; alguns mais escuros, tendiam para o castanho, outros, mais claros, para o ouro desmaiado. O castanho profundo de Racer era incomum. Ayla não conhecia outro cavalo assim tão escuro. Mas aquele que estava ali à sua frente era estranho no sentido oposto. Jamais vira cavalo tão claro. O garanhão, adulto, bem formado, que se aproximava, lento e desconfiado, era imaculadamente branco!

Antes de ver Huiin, o cavalo branco vinha mantendo os outros machos a distância. Deixava claro que se não chegassem muito perto podiam ser tolerados. Como não era a estação do acasalamento para os cavalos, só ele tinha o direito de se misturar com as fêmeas. A súbita aparição de uma fêmea estranha, no entanto, despertou seu interesse, e chamou igualmente a atenção dos outros.

Os cavalos são, por natureza, animais sociáveis. Gostam da companhia de outros cavalos. Éguas, em particular, tendem a formar alianças permanentes. Mas ao contrário da maior parte dos animais que se congregam em rebanhos, em que as filhas ficam com as mães em grupos estreitamente unidos, na raça dos cavalos as manadas se formam com éguas não-aparentadas. As fêmeas jovens deixam em geral seu grupo natal ao atingir a plena maioridade, ou seja, por volta dos dois anos de idade. Existem, entre elas, hierarquias dominantes, com vantagens e privilégios para éguas de melhor linhagem e seus descendentes, inclusive primazia no acesso à água, por exemplo, ou às melhores áreas de pastio — mas suas ligações são cimentadas por cuidados mútuos com a toalete e com outras atividades igualmente amistosas.

Embora eles se enfrentem, de brincadeira, enquanto potros, só quando os jovens machos se juntam aos machos inteiros adultos, aos quatro anos de idade, é que de fato começa o seu treinamento a sério para o dia em que terão de conquistar lutando o direito de cruzar com uma fêmea. Embora eles se embelezem reciprocamente quando membros da horda dos ‘solteiros', competir por predominância é a atividade principal. As confrontações, que começam com empurrões para cá e para lá, incluem defecações e fungadelas rituais, e aumentam progressivamente, sobretudo na. época do cio. Então, empinações, mordidas no pescoço e coices — na cabeça, no peito, na cara — são comuns. Só depois de vários anos de associações desse tipo os machos ficam habilitados a roubar éguas jovens ou desalojar de seu posto um líder macho já estabelecido.

Como fêmea não-comprometida que se aventurara ao alcance deles, Huiin era objeto de intenso interesse por parte da manada de éguas e do grupamento de machos celibatários.

Ayla não gostou da maneira pela qual o cavalo branco marchava para a sua montaria, altivo e seguro de si, como se estivesse a ponto de reivindicar alguma coisa.

— Você não precisa mais ficar aqui, Lobo! — disse, dando-lhe o sinal que o libertava. Ficou observando a atitude de desafio e tocaia que ele de imediato assumiu. Para Lobo, o que tinha ali era todo um rebanho de Racers e Huiin, com os quais queria brincar. Ayla estava convencida de que independente do que ele fizesse não constituía perigo para os cavalos. Ele não poderia derrubar um animal daqueles sozinho. A tarefa demandaria uma alcateia inteira, e alcateias raramente atacam animais sadios.

Ayla instou com Huiin para que regressassem ao acampamento. A égua hesitou. Mas o hábito de obedecer à mulher foi mais forte que seu interesse pela manada. Começou a andar, mas a passo, e com relutância. Mas então Lobo investiu contra a manada. Divertia-se espalhando cavalo para todo lado. Ayla gostou daquilo. Desviava da sua Huiin a atenção animais.

Quando chegou ao acampamento, tudo estava pronto para ela. Jondalar erigira os três mastros para manter os alimentos que levavam fora do alcance da maior parte dos animais que poderiam interessar-se por eles. A barraca estava armada, o buraco na terra para o preparo das aves fora escavado e forrado de pedras, e ele separara algumas pedras maiores para lareira.

— Olhe só aquela ilha — disse, quando ela desmontou, mostrando-lhe uma formação alongada, que os sedimentos acumulados haviam criado no meio do rio, com ciperáceas, e, até, algumas árvores. — Há um bando inteiro de garças pousado lá. Brancas e pretas. Vi quando aterrissaram — disse, com um sorriso satisfeito. — Fiquei torcendo para que você chegasse em tempo. Era um espetáculo digno de ser visto. Elas mergulhavam, erguiam vôo, viravam cambalhotas. Fechavam as asas e caiam do céu como pedra. Só na última hora desfraldavam as asas. Ao que me parece, demandam o sul. Devem partir ao alvorecer.

Ayla olhou, do outro lado da água, as grandes aves pernaltas, de bico longo e ar majestoso. Cuidavam de alimentar-se, andando ou correndo pela ilha ou na água rasa, atacando tudo que se movesse em torno com bicos fortes: peixes, lagartos, rãs, insetos, minhocas. Comiam, até, carniça, a julgar pela sofreguidão com que se lançaram sobre os resto de uma carcaça de bisonte que o rio jogara na praia. As duas espécies eram muito semelhantes no aspecto geral, apesar da diferença de cor As garças-brancas tinham asas debruadas de preto, e havia mais delas que das outras; as garças-morenas tinham a parte inferior do corpo inteiramente branca, e estavam, na maioria, metidas na água, ocupadas em pescar.

—    Encontramos uma grande manada de cavalos na volta — disse Ayla, apanhando as ptármigas e perdizes que trouxera. — Muitas éguas e potras. Mas os machos andavam por perto, e o líder deles é branco.

— Branco?

— Tão branco quanto aquelas garças-brancas. Nem mesmo as pernas dele eram pretas — disse, desatando as correias da alcofa. — Ficará invisível na neve.

— Branco é raro. Nunca vi um cavalo branco — disse Jondalar. Depois, lembrou de Noria e dos Ritos de Iniciação, e do couro de cavalo branco pendurado na parede atrás da cama nupcial, decorada com as cabeças vermelhas de pica-paus-carijós ainda imaturos. — Mas já vi o couro de um cavalo branco.

Alguma coisa no tom da voz dele fez com que Ayla o encarasse. Ele sentiu o olhar dela, corou um pouco ao virar-se para remover a cesta da bagagem da garupa de Huiin, e achou-se no dever de explicar.

—    Foi no curso da tal... cerimónia com os Hamudai.

— Os Hamudai são caçadores de cavalos? — perguntou Ayla, ao dobrar o cobertor que usava no lombo do animal para montar. Apanhou, em seguida, as aves, e caminhou para a beira do rio.

— Bem, eles caçam cavalos sim. Por quê? — perguntou Jondalar, caminhando ao seu lado.

— Você se lembra de Mamute nos contando sobre a caça ao mamute branco? A coisa era muito sagrada para os Mamutói por serem eles os Caçadores de Mamutes. Se os Hamudai usam um couro de cavalo branco nas suas cerimónias, talvez pensem que os cavalos são animais muito especiais. Foi o que pensei, Jondalar.

— É bem possível. Mas não ficamos com eles tempo suficiente sabermos, Ayla.

— Mas eles caçam mesmo cavalos? — insistiu Ayla, começando a depenar as aves.

—    Sim. Estavam, aliás, caçando cavalos quando Thonolan os encontrou. Não ficaram muito felizes com a nossa presença, de início, por termos dispersado a manada que perseguiam. Mas como poderíamos saber disso?

— Por precaução, porei o cabrestro em Huiin esta noite e vou amarrá-la junto da barraca, Jondalar. Se há caçadores de cavalos por perto, será melhor mantê-la bem perto de nós. Além disso, não gostei nada da maneira pela qual aquele garanhão branco foi na direção dela.

— Talvez você tenha razão. Acho que vou prender Racer também. Mas que gostaria de ver aquele cavalo branco.

— Pois eu não. Mas você está certo. Cavalos brancos são uma raridade — disse Ayla. As penas voavam porque ela as puxava com movimentos extremamente rápidos. Fez uma pausa, depois acrescentou: — Preto também é raro. Você se lembra do que Ranec disse? Estou certa de que ele se incluía na história, embora não fosse preto, mas apenas pardo.

O homem sentiu uma pontada de ciúme à menção do nome do individuo com que Ayla quase vivera. E isso apesar do fato de ela ter preferido viver com Jondalar.

—    Você lamenta não ter ficado com os Mamutói e casado com Ranec?

Ela se virou para encará-lo de frente, interrompendo para isso o trabalho que fazia.

— Você sabe muito bem, Jondalar, que o único motivo pelo qual prometi casar com Ranec foi ter pensado que você não me amava mais. E eu sabia que ele me amava. Mas... sim, lamento, se me pergunta. Eu podia ter ficado com os Mamutói. E se não tivesse conhecido você poderia até ser feliz com Ranec. Eu gostava dele, de certo modo, mas não da maneira como gosto de você.

— Bem. Pelo menos é uma resposta honesta — disse ele, enrugando a testa.

— Eu podia ter ficado também com os Xaramudói, mas queria estar junto de você. Se tem de voltar para o seu povo, então devo acompanhá-lo — continuou Ayla, tentando esclarecer as coisas. Notando a persistência da ruga na testa, entendeu que aquela não era a resposta que ela esperava.

— Você me fez uma pergunta, Jondalar. E quando me pergunta algo, tenho de dizer-lhe o que sinto. E mesmo que eu não pergunte nada, gostaria que dissesse se alguma coisa não está certa. Não quero que aquela espécie de mal-entendido que houve entre nós no inverno passado se repita: eu não sabendo o que você de fato queria dizer, você recusando esclarecer-me, ou achando que eu estava sentindo algo sem me perguntar. Prometa, Jondalar, que será sempre aberto comigo.

Parecia tão séria e falava com tanta franqueza, que ele deu um sorriso afetuoso.

— Prometo, Ayla. Eu também não quero passar outra vez por um tempo como aquele. Não podia aguentar quando a via com Ranec. Principalmente por entender por que qualquer mulher se interessaria por ele. Ranec era simpático e divertido. Era um grande entalhador, um verdeiro artista. Minha mãe, por exemplo, teria gostado dele. Ela gosta de artistas, de escultores. Se as coisas fossem diferentes, eu mesmo teria gostado dele. Ranec tinha muita coisa de Thonolan, de certo modo. Não se parecia com os Mamutói, mas era como eles são. Aberto, confiável.

—    Era um Mamutói — disse Ayla. — Tenho saudades do Acampamento do Leão. Tenho saudade das pessoas. Não vimos muita gente nesta Jornada. Eu não sabia o quanto você tinha viajado, Jondalar, nem quanta terra há. Tanta terra, e tão pouca gente.

Quando o sol ficou mais perto, as nuvens por cima das altas montanhas para as bandas do oeste se puseram nas pontas dos pés para abraçar o orbe de fogo. E ficaram vermelhas de excitação. O brilho do sol se fundiu no brilho do céu em torno, depois se apagou. Jondalar e Ayla terminavam a refeição da tarde. Ela se levantou para guardar as aves que tinham sobrado. Assara deliberadamente mais do que podiam comer de uma só vez. Jondalar pôs algumas pedras de cozinhar no fogo para que pudessem preparar o chá noturno.

—    Estavam deliciosas, Ayla. Foi bom que você tivesse sugerido este acampamento prematuro. Valeu a pena.

Ayla levantou a cabeça mas desviou o olhar para a ilha. E perdeu o fôlego, estupefata. Jondalar viu aquilo e, por sua vez, olhou.

Diversos homens, armados de lanças, tinham saído da sombra e entrado no círculo de luz da fogueira. Dois deles vestiam mantos de crinas de cavalo, com a cabeça seca ainda presa ao couro e usada como um elmo. Um deles lançou esse elmo para trás e avançou em direçâo a ele.

—    Ze-lan-do-nii! — disse, apontando para Jondalar, alto e louro. Depois, bateu com a mão no peito. — Hamudai! Jeren! — Ria de orelha a orelha.

Jondalar atentou para ele, e riu de volta.

—    Jeren! Será mesmo você? Grande Mãe! Não posso acreditar! E você!

O homem se pôs a falar numa língua ininteligível para Jondalar tanto quanto a sua o era para Jeren. Mas os sorrisos de amizade eram entendidos pelos dois.

—    Ayla! — disse Jondalar, fazendo-a avançar. — Este é Jeren, o caçador Hamudai que nos deteve quando íamos na direção errada, Thonolan e eu. Não posso crer nos meus olhos!

Ambos ainda riam, com sincero deleite. Jeren olhou para Ayla, e seu sorriso se tornou de franca apreciação. Fez um sinal afirmativo para Jondalar.

—    Jeren, esta é Ayla, Ayla dos Mamutói — disse Jondalar, formalizando as apresentações. — Ayla, este é Jeren, do povo Haduma.

Ayla estendeu as mãos.

—    Bem-vindo ao nosso acampamento, Jeren, do povo Haduma — disse.

Jeren compreendeu a intenção, embora aquele gesto não fosse comum no seu povo. Pôs a lança de volta num estojo que tinha às costas, tomou nas suas as mãos da mulher, e disse:

— Ayla.

Sabia que aquele era o nome dela, embora não tivesse entendido o resto das palavras. Bateu no peito outra vez, com força.

— Jeren! — disse, e acrescentou algumas palavras incompreensíveis.

E logo deu sinais de apreensão. Vira o lobo que se aproximava da mulher. Sentindo a reação dele, Ayla se ajoelhou e pôs um braço em torno do pescoço do animal. Os olhos de Jeren se arregalaram de surpresa.

— Jeren — disse a mulher, levantando-se e fazendo as mesuras de uma apresentação protocolar. — Este é Lobo. Lobo, este é Jeren, do povo Haduma.

—    Lobo? — disse ele, com os olhos cheios ainda de apreensão.

Ayla pôs as mãos diante do focinho de Lobo como que para deixar que ele sentisse o seu perfume. Depois, ajoelhou-se, pôs o braço em torno do pescoço do lobo, demonstrando sua intimidade e ausência de temor. Tocou, em seguida, a mão de Jeren, pôs sua própria mão no nariz do lobo outra vez, mostrando a Jeren o que queria dele. Hesitante, Jeren estendeu a mão para o animal.

Lobo tocou-a com o nariz frio e recuou. Passara por cerimónias semelhantes de apresentação muitas vezes quando estavam com os Xaramudói, e pareceu entender a intenção de Ayla. Ela pegou na mão de Jeren e, de olhos fixos nele, guiou-a para a cabeça do lobo. Queria que sentisse o pêlo e afagasse a cabeça de Lobo. Quando Jeren a olhou, com ar de compreensão, e acariciou a cabeça de Lobo por conta própria, ela ficou tranquila.

Jeren fez meia-volta e disse para os outros:

—    Lobo!

Apontava. Disse também outras coisas, proferindo, inclusive, o nome dela. Quatro homens entraram para o círculo de luz da fogueira. Ayla fez gestos de boas-vindas e mandou que se sentassem.

Jondalar, que a tudo assistia, sorriu, aprovando.

— Foi uma boa ideia, Ayla — disse.

—    Você acha que eles têm fome? Sobrou muito do jantar — disse.

— Por que você não oferece a comida e vê o que fazem?

Ayla apanhou a bandeja, feita de marfim de mamute, que usara para servir as aves que acabavam de comer. Pegou depois algo que parecia um molho já murcho de feno e abriu-o, revelando uma ptármiga inteira. Ayla ofereceu a bandeja a Jeren e aos outros. O aroma a precedeu. Jeren arrancou uma perna e se viu com um pedaço tenro e suculento de carne na mão. O sorriso no seu rosto depois de prová-lo encorajou os demais.

Ayla trouxe também uma perdiz, servindo o recheio de raízes e grãos num pequeno conjunto de tigelas e pratinhos, alguns trançados, outros feitos de marfim, e um de madeira. Deixou que os homens dividissem entre si a carne como quisessem, enquanto ela enchia uma grande tigela de madeira, que ela mesma fizera, com água para o chá.

Os homens pareceram muito mais à vontade depois da refeição, mesmo quando Ayla trouxe o lobo para farejá-los. Todos ficaram sentaram sentados em volta do fogo com xícaras de chá nas mãos, procurando comunicar-se além do plano dos sorrisos de amizade e hospitalidade.

Jondalar começou.

— Haduma? — perguntou.

Jeren abanou a cabeça e ficou triste. Fez com a mão um gesto mostrando o chão que Ayla entendeu significar que ela retornara à Grande Mãe Terra. Jondalar também entendeu que a anciã que ele aprendera a estimar se fora.

— Tamen? — perguntou.

Sorrindo, Jeren sacudiu a cabeça afirmativamente, de maneira exagerada. Depois, apontou para um dos circunstantes e disse alguma coisa que incluía o nome de Tamen. Um rapaz, pouco mais que um menino sorriu, e Jondalar viu nele uma certa semelhança com o homem que conhecera.

— Tamen, sim — disse Jondalar, sorrindo e concordando de cabeça. — Filho, talvez neto, de Tamen. Gostaria que Tamen estivesse aqui conosco — disse a Ayla. — Ele sabia um pouco de Zelandonii, e podíamos conversar. Fizera uma grande viagem até lá, quando jovem.

Jeren olhou para o conjunto do acampamento, depois para Jondalar, e disse.

— Ze-lan-do-nii... Ton... Thonolan?

Dessa vez foi Jondalar quem sacudiu a cabeça e se mostrou entristecido. Depois, pensando no que o outro fizera, mostrou a terra. Jeren pareceu surpreso, mas fez que sim, de cabeça, e disse uma palavra que era uma pergunta. Jondalar não compreendeu e olhou para Ayla.

—    Você sabe o que ele está querendo dizer?

Embora a linguagem não lhe fosse familiar, havia uma qualidade em todas as línguas que ela ouvia que as aparentava. Jeren repetiu a palavra, e algo na sua expressão ou entonação deu à mulher uma chave. Ela fechou a mão como uma garra e rugiu como um leão das cavernas.

O som que fez foi tão realista que os homens a encararam com um expressão de espanto e choque, mas Jeren entendeu. Ele perguntara como morrera Thonolan, e ela lhe respondera. Um dos outros homens disse alguma coisa a Jeren. Quando Jeren respondeu, Jondalar ouviu outro nome conhecido, Noria. O homem que perguntara apontou para Jondalar, sorrindo, depois para o seu próprio olho, e sorriu outra vez.

Jondalar se emocionou. Talvez aquilo significasse que Noria tivera um bebê de olhos azuis. Mas podia ser apenas uma alusão ao fato de que tinha conhecimento: um homem de olhos azuis celebrara os Ritos de iniciação com Noria. Não podia ter certeza. Os outros homens apontavam também para os próprios olhos e sorriam. Estavam aludindo a uma criança de olhos azuis ou a Prazeres com um homem de olhos azuis?

Pensou em proferir o nome de Noria e imitar com os braços o movimento de ninar um bebê, mas depois olhou para Ayla e desistiu. Não lhe contara nada sobre Noria ou sobre a notícia que Haduma lhe dera no dia seguinte: a Mãe abençoara a cerimonia, e a moça teria um filho homem que se chamaria Jondal e com os olhos iguais aos seus. Jondalar sabia que Ayla desejava um filho dele... ou do seu espírito. Como reagiria se soubesse que Noria já tinha um? No lugar de Ayla, ele teria ciúmes.

Ayla fazia gestos indicando que os homens deviam dormir no acampamento, junto da fogueira. Vários deles concordaram e se ergueram para ir buscar as peles de dormir. Tinham deixado suas coisas junto do rio antes de irem verificar se aquele fogo, cujo cheiro sentiam, era um fogo amigo. Esperavam que sim, mas não podiam estar certos disso. Quando Ayla os viu contornando a barraca e marchando para onde estavam os cavalos, correu para barrar-lhes o caminho. Ficaram olhando uns para os outros quando ela desapareceu no escuro e quando começaram a andar outra vez. Jondalar lhes indicou que esperassem. Eles sorriram e assentiram de cabeça.

Mas suas expressões denotaram temor quando Ayla reapareceu puxando os dois cavalos. Ela se postou entre os animais, procurando mostrar com gestos, inclusive os expressivos gestos da linguagem do Clã, que aqueles eram cavalos especiais. Teriam entendido? Nem ela nem Jondalar podiam ter certeza disso. Jondalar temeu que eles ficassem pensando que a mulher tivesse poderes mágicos para conjurar cavalos e tivesse chamado aqueles expressamente para que os caçassem. Disse a Ayla que uma demonstração talvez ajudasse.

Apanhou uma lança na barraca e fez como se fosse atacar Racer. Ayla permaneceu barrando o caminho, com os braços cruzados no peito, a sacudir a cabeça de forma enfática. Jeren coçou a cabeça e os outros homens pareceram perplexos. Finalmente, Jeren fez um gesto afirmativo, tirou uma de suas próprias lanças da bolsa em que as levava, nas costas, apontou-a para Racer, depois enterrou-a no chão. Jondalar não sabia se o homem pensava que Ayla lhes dizia para não caçar os dois cavalos presentes ou todos os cavalos em geral, mas alguma coisa ficara entendida.

Os homens dormiram em volta da fogueira, mas estavam de pé aos primeiros clarões do dia. Jeren disse algumas palavras a Ayla que Jondalar lembrou vagamente serem fórmulas de apreciação da comida. O homem sorriu para ela quando Lobo o farejou outra vez e deixou que ele afagasse sua cabeça. Ela ainda procurou convidá-los a comer com eles a refeição da manhã, mas eles se foram rapidamente.

— Quisera saber a língua dos Hadumai — disse Ayla. — Foi simpática a visita, mas não pudemos conversar.

— Sim, teria sido bom conversar — disse Jondalar. Desejava sinceramente saber se Noria tivera um filho e se ele nascera com olhos azuis.

— No Clã, diferentes clãs usavam palavras na sua linguagem habitual que não eram sempre compreendidas por todos, mas todos conheciam a língua universal dos gestos. A comunicação era possível — disse Ayla. — Que pena que os Outros também não tenham uma língua assim, auxiliar.

— Seria muito útil, especialmente em viagens, mas é difícil para mim, imaginar uma língua universal. Você realmente pensa que os membros do Clã, onde quer que vivam, entendem a mesma linguagem gestual? — perguntou Jondalar.

— Não é uma língua que eles tenham de aprender. Já nascem com ela, Jondalar. É tão antiga que está na memória deles, e essa memória remonta ao começo dos tempos. E você nem pode imaginar a que distância está isso de nós.

Ela teve um calafrio de medo, lembrando-se da ocasião em que Creb, para salvar-lhe a vida, a levara com eles, contra toda a tradição. Pela lei não escrita do Clã, ele a devia ter deixado para morrer. Pensou na ironia da coisa. Quando Broud a amaldiçoou, desejando-lhe a morte, não deveria tê-lo feito. Não havia motivo para isso. Creb, ao contrário, tinha um motivo: ela quebrara o tabu mais potente do Clã. Seu dever era puni-la Mas não o fizera.

Começaram a desfazer o acampamento, guardando a barraca, as peles de dormir, utensílios, cordas e demais equipamentos nas cestas de bagagem, com a eficiência de uma rotina que dispensava palavras. Ayla enchia as bolsas de água no rio quando Jeren e seus guerreiros voltaram. Com sorrisos e muitas palavras, que eram, obviamente, efusivos agradecimentos, os homens presentearam Ayla com um embrulho feito de couro de auroque. Abrindo-o, encontrou dentro um tenro peso de alcatra Era da anca de um bovídeo abatido de fresco.

— Sou-lhe muito grata, Jeren — disse Ayla, e lhe deu o formoso sorriso que fazia seu homem derreter-se de amor. Pareceu ter o mesmo efeito em Jeren, e Jondalar achou graça vendo a expressão bestificada na cara do homem. O caçador levou um bom minuto para recuperar-se do deslumbramento. Então se pôs a falar com Jondalar, procurando comunicar-lhe com insistência algo que considerava importante. Quando viu que não era compreendido, interrompeu o discurso para conferenciar com os companheiros. Finalmente, voltou-se para Jondalar.

— Tamen — disse, e começou a caminhar para o sul, indicando que os seguissem. — Tamen — repetiu, chamando, e acrescentando palavras ininteligíveis.

— Acho que quer que você vá com ele — disse Ayla — para ver esse homem que você conhece. O que fala Zelandonii.

— Tamen. Zeland-do-nii. Hadumai — disse Jeren, chamando também Ayla..

—    Ele deseja que o visitemos. O que acha? — perguntou Jondalar.

— Acho que é isso mesmo — disse Ayla. — Você quer parar para essa visita?

— Teríamos de voltar — disse Jondalar —, e não sei bem até onde. Se os tivéssemos encontrado mais para o sul, eu não me importaria de interromper a viagem por alguns dias, mas abomino a ideia de ir, agora que já estamos tão adiantados.

Ayla concordou.

— Será preciso dizer-lhe isso, de algum modo.

Jondalar sorriu para Jeren, depois abanou a cabeça.

— Lamento. Mas temos de ir para o norte. Norte — repetiu, apontando naquela direção.

Jeren pareceu angustiado, fez que não com a cabeça, e fechou os olhos para pensar. Depois, aproximando-se deles, tirou um bastão curto do cinto. Jondalar notou que o bastão era esculpido. Sabia que vira um assim antes, e procurava lembrar-se onde fora, quando Jeren limpou um espaço no chão e fez um risco na terra com a ponta do bastão e outro cruzando o primeiro. Debaixo da primeira linha desenhou grosseiramente um cavalo. E na extremidade da segunda linha traçou um círculo com raios a toda volta. Ayla olhou a figura mais de perto.

— Jondalar — disse, excitada. — Quando Mamute me mostrava símbolos e me ensinava o que eram, esse signo representava "sol".

Jeren assentia vigorosamente. Em seguida apontou para o norte e fechou o cenho. Marchou para a extremidade norte da linha que traçara, postou-se de frente para eles, cruzou os braços no peito como Ayla fizera para dizer-Ihes que não matassem Huiin e Racer. Por fim, fez um sinal negativo com cabeça. Ayla e Jondalar se entreolharam e olharam outra vez para Jeren.

—    Você acha que ele está dizendo que não devemos ir para o norte? — perguntou Ayla.

Jondalar começou a entender o que Jeren queria.

— Ayla, não é que ele deseje apenas que a gente vá para o sul, a fim de visitá-los. Ele está tentando comunicar mais alguma coisa. Avisar-nos que é perigoso ir para o norte.

— Perigoso? O que poderá haver no norte que seja perigoso para nós? — disse Ayla.

—    Poderia ser a grande barreira de gelo? — disse Jondalar.

— Mas nós sabemos sobre o gelo. Caçamos mamutes no limite do glaciar, com os Mamutói. Faz frio, sim, mas não é perigoso.

—    A geleira se move — disse Jondalar —, ela anda, embora leve nos, mas até arranca árvores com raízes e tudo com a mudança das estações. Mas não se move tão depressa que a gente não possa sair do caminho.

—    Não será o gelo, então — disse Ayla. — Mas Jeren nos previne contra o norte, e parece muito preocupado.

— Acho que você está certa, mas o que haverá de tão perigoso? — disse Jondalar. — Às vezes, as pessoas que não viajam muito para fora do seu círculo imediato acham que o mundo para além desses limites é perigoso... por ser diferente.

— Não penso que Jeren seja homem de assustar-se com muita coisa — disse Ayla.

— Tenho de concordar com você — disse Jondalar. — E, virando-se para o Haduma. — Jeren, queria muito compreendê-lo.

Jeren observara a reação deles. Percebeu pela expressão dos dois que haviam entendido o principal do seu aviso. Aguardava, agora, a resposta.

— Você acha que devemos fazer meia-volta e ir falar com Tamen? — perguntou Ayla.

— Eu detestaria voltar a perder tempo. Temos de alcançar a geleira antes do inverno. Se prosseguimos agora, podemos fazer isso facilmente, e ainda teremos algumas folga. Mas se acontece o imprevisto e nos atrasamos, então será primavera, o gelo derrete, e a passagem fica muito perigosa — disse Jondalar.

—    Então continuamos para o norte — disse Ayla.

—    Sim. Mas redobrando de cuidados. Ah, como eu gostaria de saber que perigos nos ameaçam! — disse Jondalar. E olhando para Jeren de novo: — Jeren, meu amigo, obrigado pelo aviso. Teremos cuidado. Mas precisamos seguir viagem. — Dito isso, apontou o sul, fez que não com a cabeça, e apontou o norte.

Jeren tentou protestar ainda, abanando a cabeça, mas finalmente desistiu. Fizera o possível. Foi falar com o homem de capa e capacete de cavalo e voltou, dizendo que iam embora.

Ayla e Jondalar acenaram. Jeren e seus caçadores partiram. Então o homem e a mulher acabaram de empacotar seus pertences e, um pouco preocupados, rumaram para o norte.

À medida que avançavam para a faixa mais setentrional da vasta região central de pastagens, podiam ver que o terreno à frente mudava. As planícies chatas cediam lugar a colinas escarpadas. As elevações ocasionais que interrompiam as planícies eram ligadas, embora mergulhassem parcialmente em alguns pontos, a grandes blocos de rocha sedimentar deslocada e fraturada, que corria, como uma espinha dorsal irregular, de nordeste para sudoeste através das planícies. Erupções vulcânicas relativamente recentes haviam coberto as elevações com solos férteis, que alimentavam florestas de espruces, pinheiros e lariços nas curvas de nível mais altas, com bétulas e salgueiros nas encostas mais baixas. O flancos secos e protegidos revestiam-se de macega e capim-da-estepe.

Quando começaram a subir as colinas, viram-se com frequência obrigados a desviar-se de buracos profundos ou a contornar formações que bloqueavam o caminho. Ayla achou a terra mais deserta. Mas como estava frio, imaginou que talvez a mudança de estação fosse responsável por essa impressão. Olhando do alto, ganharam uma nova perspectiva da região que tinham atravessado. As poucas árvores decíduas e mesmo os arbustos estavam já sem folhas, mas a planície central cobria-se com o outro poento da forragem seca, mas ainda de pé, que alimentaria multidões de animais durante o inverno.

Viram muitos deles, pastando, em bando ou solitários. Os cavalos pareciam predominar, achou Ayla, mas talvez por estar mais cônscia deles que de outros bichos. Havia também veados-vermelhos, e, principalmente, nas estepes mais setentrionais, renas. Os bisontes começavam a congregar-se em grandes manadas e a rumar para o sul. Durante um dia inteiro, esses grandes animais corcovados, de imensos chifres pretos, passaram incessantemente num grosso tapete ondulante. Ayla e Jondalar sofreavam muitas vezes as montarias para vê-los. A poeira que erguiam pairava por cima deles como um pálio, escondendo-os. A terra tremia com o tropel dos cascos, e o estrépito combinado de patas, grunhidos e berros era como um trovão.

Viam menor número de mamutes do que antes. Em geral se dirigiam para o norte. Mesmo a distância, esses gigantescos elefantes lanudos chagavam a atenção. Quando não são tangidos, pelas exigências da reprodução, os mamutes machos tendem a formar pequenos bandos com pouco companheirismo. Ocasionalmente, um mamute se juntava a uma horda de fêmeas e com ela viajava por algum tempo. Mas sempre que os viajantes encontravam um indivíduo solitário era, invariavelmente, macho. As grandes manadas permanentes são constituídas de fêmeas estreitamente aparentadas: uma avó, a velha e astuta matriarca, investida do comando, e por vezes, uma irmã ou duas, com as filhas e netas. As manadas de fêmeas eram fáceis de identificar porque as defesas eram, em geral, menores e menos encurvadas que as dos machos, e havia sempre filhotes misturados aos animais adultos.

Embora igualmente impressionantes à vista, os rinocerontes lanudos eram mais raros e menos sociáveis. Não se grupavam, geralmente, em hordas. As fêmeas ficavam em família, e os machos, a não ser na época do acasalamento, viviam solitários. Nem mamutes nem rinocerontes, à exceção dos indivíduos muito velhos ou muito jovens, tinham muito a temer de caçadores de quatro pernas, inclusive do leão. Os machos, principalmente, podiam viver sozinhos. Já as fêmeas precisavam de companhia, para a proteção dos filhotes.

O boi-almiscarado lanudo, menor, com aspecto de bode, também era gregário por considerações de defesa. Quando atacados, os bois adultos se juntavam numa formação circular de falange, olhando para fora, e mantendo os filhotes no meio. Umas poucas camurças e uns poucos cabritos-monteses fizeram aparições esporádicas quando Jondalar e Ayla escalaram patamares mais altos das colinas. Esses animais muitas vezes desciam das alturas com a aproximação do inverno.

Inúmeros animais de pequeno porte atravessavam o inverno em segurança, metidos nas suas tocas profundas, rodeados de estoques de alimentos armazenados para esse fim: sementes, nozes, bulbos, raízes, e, no caso dos lagômios, de feixes de feno empilhados depois de cortados e secados ao sol. Os coelhos e as lebres mudavam de coloração. Não se punham brancos, mas de um mosqueado mais claro. No bosque de um outeiro viram, até, um castor e um esquilo arborícola. Jondalar utilizou seu propulsor de lanças para pegar o castor. A carne desse roedor é saboroso e sua cauda gorda é deliciosa e eles a comeram em separado, assada no espeto.

Empregavam, em geral, para a caça maior, os arremessadores que Jondalar inventara. Tanto ele quanto Ayla eram peritos no seu uso, mas ele tinha mais força e podia alcançar mais longe. Ayla muitas vezes derrubava os animais pequenos com a funda.

Não costumavam caçar lontras nem texugos, cangambás, martas mas viam que todos esses animais eram abundantes na região. Os carnívoros — raposas, lobos, linces, felinos grandes de várias espécies — alimentavam-se da caça menor ou de herbívoros. Embora poucas vezes pescassem, ele e Ayla, nessa etapa da Jornada, Jondalar sabia da existência de peixes de grandes dimensões no rio, inclusive perca, lúcio e carpa — das grandes.

À tardinha, viram uma caverna com uma enorme boca e decidiram investigar. Ao se aproximarem dela, os cavalos não deram mostras de nervosismo, o que tomaram como um bom sinal. Lobo farejou com interesse quando entraram. Estava naturalmente curioso, mas em nenhum momento ficou de pêlo eriçado. Vendo o comportamento despreocupado dos animais, Ayla se tranquilizou. A caverna estava deserta. Decidiram passar a noite ali.

Depois de acender o fogo, fizeram um archote para explorar um pouco mais fundo. Logo na entrada havia sinais de que a caverna já fora ocupada. Jondalar achou que os arranhões na parede podiam ter sido feitos por um urso ou um leão. Lobo cheirou excrementos, mas tão velhos e secos que dificilmente se poderia dizer de que animal provinham. Encontraram alguns ossos grandes, de perna, roídos pela metade. A maneira como estavam partidos e as marcas de dentes deram a Ayla a convicção que haviam sido quebrados por hienas das cavernas, com suas fortes mandíbulas. Estremeceu de repugnância à ideia.

As hienas não eram piores que outros animais. Lançavam-se sobre as carcaças dos que tinham morrido naturalmente ou haviam sido mortos por carnívoros maiores. Mas todos os predadores não faziam o mesmo? Lobos, leões, homens? O ódio que Ayla sentia por hienas era, portanto, desarrazoado. Para a mulher elas representavam o que havia de pior no reino animal.

A caverna não fora usada recentemente. Todos os vestígios de ocupação eram antigos, mesmo o carvão num buraco raso. Ayla e Jondalar penetraram até uma certa distância, mas a caverna parecia não ter fim e, a não ser na entrada, clara e seca, não havia evidência de uso. As colunas de pedra que subiam do chão ou desciam do teto e, às vez, encontravam-se a meio caminho eram os únicos habitantes do interior, escuro e úmido.

Ao dobrarem uma volta, pensaram ter ouvido água correndo e resolveram voltar. Sabiam que a tocha improvisada não duraria muito e nenhum dos dois queria perder de vista o arco de ténue luz da entrada. Voltaram apalpando os muros de calcário e se alegraram ao rever o ouro baço e fanado da grama seca e a luz brilhante que debruava de ouro, no céu, as nuvens para o lado do poente. Penetrando mais profundamente nas terras altas, ao norte da grande planície central, Ayla e Jondalar observaram muitas outras alterações na paisagem. O terreno mostrava-se todo esburacado de grutas, cavernas, sumidouros, que iam desde depressões rasas, circulares, cobertas de relva, até desníveis inacessíveis, de grande profundidade. Era uma topografia tão peculiar que os dois se sentiam vagamente inquietos. Embora os cursos d’água superficiais e os lagos fossem raros, ouviam às vezes o misterioso e soturno rumor de rios subterrâneos.

Criaturas desconhecidas dos mares primevos e quentes eram a causa daquela configuração estranha e imprevisível. No curso de milénios sem conta, o soalho dos mares se cobriu com suas carapaças e esqueletos. Depois de um número ainda maior de éons, o sedimento de cálcio endureceu, elevou-se por movimentos conflitantes da crosta, e se converteu em pedra calcária, em rochas constituídas essencialmente de carbonato de cálcio No subsolo subsolo de vastas extensões de terra, muitas das cavernas existentes se formaram, então de calcário, porque, dadas as condições exigidas, essa rocha dura, sedimentária, se dissolve.

Em água pura, ela é dificilmente solúvel, mas basta que a água seja ligeiramente ácida para que isso aconteça. Nas estações mais quentes, e quando os climas eram mais úmidos, a água que circulava no subsolo, rica em ácido carbónico das plantas e carregada de dióxido de carbono, dissolveu grandes quantidades dessa rocha.

Correndo ao longo de planícies estratificadas e descendo por fendas diminutas nas junções verticais das grossas camadas de pedra calcária, a água do solo foi gradualmente alargando e aprofundando as fissuras. Escavou pisos dentados e intricados sulcos ao levar embora o calcário dissolvido, que escorreu em infiltrações e espirrou em fontes. Forçada a empoçar-se em níveis mais baixos pela força da gravidade, a água acídica alargou fraturas subterrâneas em covas e grutas, que se transformaram em cavernas e canais, em que se abriam estreitas chaminés verticais. Esses canais se juntavam, por vezes, com outros, para formar completos sistemas fluviais subterrâneos.

A dissolução de rochas abaixo do nível do solo teve efeito profundo sobre o solo. E a paisagem, dita karate, passou a exibir características incomuns e distintivas. À medida que as cavernas se alargavam e seu topo aproximava da superfície, elas afundavam, criando sumidouros de paredes abruptas. Restos de tetos de cavernas derruídas formaram pontas naturais no alto. Correntes e rios superficiais desapareciam de vez em quando em sumidouros, deixando secos, em cima, vales formados anteriormente por rios.

A água começava a escassear. A água corrente logo caía em cavidades e caldeirões rochosos. Mesmo depois de uma pesada precipitação, a água desaparecia quase instantaneamente, sem deixar regatos na superfície. Um dos nossos viajantes teve de ir ao fundo de um desses sumidouros para conseguir o precioso fluido. Em outra ocasião, a água surgiu de súbito em uma nascente, jorrou por algum tempo, depois desapareceu outra vez no seio da terra.

O terreno era maninho e pedregoso, com uma fina camada de solo superficial a expor a rocha subjacente. A vida animal também escasseava. A não ser pelo muflão, com seus casacões de inverno de lã bem grossa e encaracolada, e seus chifres espiralados, os únicos animais que eles viram foram umas poucas marmotas. Esses bichos, espertos e rápidos, conseguiam escapar aos seus muitos predadores. Fossem eles lobos raposas árticas, falcões ou águias-reais, um assovio agudo de uma sentinela bastava para fazê-los entrar correndo em pequenas tocas e grutas.

Em vão Lobo tentava pegá-las. Mas como cavalos de pernas compridas não lhes pareciam normalmente perigosos, Ayla conseguiu derrubar algumas com a funda. A carne desses pequenos roedores peludos engordados para a hibernação próxima, parecia com a de coelho. Mas eram animais pequenos. Pela primeira vez desde o verão, Ayla e Jondalar se viram obrigados a pescar para o jantar no Rio da Grande Mãe.

Prevenidos por Jeren, Ayla e Jondalar viajavam com extremo cuidado através da paisagem karst, com suas estranhas formações de cavernas e buracos. Mas a familiaridade com ela acabou por dissipar em parte a apreensão que, de começo, tinham sentido. Andavam a pé, naquele dia, para descansar os cavalos. Jondalar puxava Racer com rédea longa, mas deixava que ele pastasse, de tempos em tempos, um pouco da grama esparsa e seca. Huiin fazia o mesmo, mascando um pouco de capim, depois seguindo Ayla, embora esta não estivesse usando o cabresto.

—    Fico pensando se o perigo a que Jeren se referia era esta terra áspera, cheia de buracos — disse Ayla. — Não gosto nada daqui.

—    Eu também não. Não imaginava que seria assim — disse Jondalar.

— Mas você não esteve aqui antes? Imaginava que tinha vindo por este caminho — disse a mulher, surpresa. — Pensava ter ouvido de você que acompanhara o Rio da Grande Mãe.

— Sim, nós acompanhamos o rio, mas sempre pela outra margem. Só o atravessamos muito mais ao sul. Achei que seria mais fácil ficar nesta margem agora, na volta, e estava também curioso de conhecê-la. O rio faz uma volta muito fechada não longe deste ponto. Estávamos indo para leste daquela vez, eu e Thonolan, e fiquei intrigado com as elevações que forçavam a água para o sul. Esta é a única oportunidade que jamais terei na vida para vê-las.

— Você me devia ter dito isso antes.

— Que diferença faz? Nós continuamos a acompanhar o rio.

—    Mas eu pensava que você estava familiarizado com esta área. E não sabe mais sobre ela do que eu mesma.

Ayla não poderia dizer por que aquilo a aborrecia tanto, mas na verdade contara com ele para saber o que os esperava. E agora ele não sabia nada. Aquilo a deixava nervosa. E o lugar era muito estranho.

Caminhavam, tão ocupados com essa conversa que já tendia para uma discussão, que mal atentavam para onde iam. De chofre, Lobo, que trotava ao lado de Ayla, ladrou e roçou-lhe a perna. Ambos olharam para ver do que se tratava e, por puro instinto, pararam. Ayla sentiu uma pontada de terror e Jondalar empalideceu.

 

Ficaram olhando para o terreno à frente e não viram nada. A terra simplesmente não estava lá. Tinham chegado, por inadvertência, à beira de um precipício. Jondalar sentiu o costumeiro aperto nas entranhas ao olhar para o abismo, mas se surpreendeu ao ver, no fundo, uma campina lisa e verdejante, cortada por um riacho.

O fundo de grandes sumidouros era, de regra, coberto por uma espessa camada de solo, o resíduo insolúvel do calcário. Alguns dos sumidouros mais fundos se juntavam e abriam em depressões alongadas, criando vastas áreas de terra muito abaixo da superfície normal. Com material orgânico e água, a vegetação embaixo era luxuriante e convidativa. Infelizmente, nenhum dos dois podia ver como chegar àquele verde prado no fundo do precipício.

— Jondalar, alguma coisa está errada com este lugar — disse Ayla. — É tão árido e seco que nada ou quase nada pode viver aqui. E lá embaixo, vemos uma bela campina com árvores e um rio. Mas é impossível alcançá-la. Um animal que o tentasse morreria da queda. É tudo misturado. Não me parece certo.

— Sim. Talvez você tenha razão. Talvez tenha sido isso o que Jeren nos quis dizer. Não há muita caça, e o lugar em si é perigoso. Jamais conheci lugar em que é preciso caminhar atentando para o risco de cair num precipício.

Ayla se curvou, pegou a cabeça de Lobo nas mãos e encostou a testa na dele.

—    Muito obrigada, Lobo, por nos ter prevenido quando não prestávamos atenção — disse. Ele ganiu e lambeu-lhe o rosto, com afeto.

Recuaram, e contornaram o obstáculo com os cavalos, sem conversar quase. Ayla já nem se lembrava da discussão que quase haviam tido. Pensava apenas que não podiam nunca ter estado tão distraídos que não vissem onde pisavam.

Continuaram rumando para o norte. O rio à esquerda deles corria através de uma garganta que ficava a cada passo mais profunda, com altos paredões rochosos. Jondalar se perguntava se deveriam descer e acompanhar de perto o curso d'água ou ficar nas alturas em que se encontravam. Alegrava-se por seguirem o curso d'água sem tentar passar para a outra margem. Em vez de vales com encostas relvosas e largas planície, aluviais, nas regiões karst os grandes rios que podiam ser vistos da superfície tendiam a correr em gargantas de lados abruptos, calcários. Por difícil que fosse usar rios como guias numa viagem daquelas sem ter margens por onde acompanhar seu curso, mais difícil ainda seria atravessa-los.

Lembrando a grande garganta mais ao sul, com longos trechos em que também não havia barrancas praticáveis, Jondalar decidiu ficar no planalto. Continuaram a subir, portanto. E ele viu, com alívio, uma longa e fina torrente que se precipitava no rio daquelas alturas. Ficava na outra margem, mas servia para mostrar que havia água nas elevações embora a maior parte dela escoasse pelas fendas do karst.

Mas karst era também paisagem com uma profusão de cavernas. Tão frequentes, na verdade, que Ayla, Jondalar e os cavalos passaram as duas noites seguintes protegidos do tempo por paredes e abóbadas de pedra. Não precisaram armar a barraca uma só vez. Depois de examinar um sem-número de cavernas, aprenderam a reconhecer as que mais lhes convinham.

Embora cavernas subterrâneas e alagadas continuassem a aumentar de tamanho, aquelas em que se podia entrar, junto da superfície, já não eram tão grandes. Ao invés, seu espaço interior diminuía, por vezes drasticamente, em condições gerais de chuva, embora pouco mudassem nos dias secos. Algumas cavernas só davam acesso nesses dias; enchiam-se de água quando chovia forte. Algumas, embora sempre abertas, tinham rios correndo pelo piso. Os viajantes procuravam cavernas secas, em terreno mais elevado, mas fora a água, ajudada pelo calcário, que modelara e esculpira todas elas.

Água de chuva. Penetrando devagarinho pelas rochas do teto, a água absorvia o calcário dissolvido. Cada pingo de água calcária, cada gota de umidade do ar, era saturado de carbonato de cálcio em solução, que era depositado de novo na caverna. Embora habitualmente branco,o mineral endurecido podia ficar translúcido e de extrema beleza, mas também mosqueado de cinza ou levemente tingido de vermelho ou ocre. Criavam-se pisos de travertino, e drapejamentos imóveis de pedra afestoavam os muros. Estalactites pendiam dos tetos e procuravam, gota a gota, ligar-se aos estalagmites que cresciam lentamente do solo. Alguns já se haviam juntado e formavam colunas finas, que engrossariam com o tempo, no ciclo sempre renovado da vida na Terra.

Os dias iam ficando mais frios e ventosos, e Ayla e Jondalar se felicitavam com a prevalência das cavernas que serviam como abrigo. Em geral verificavam, antes de entrar, se elas não eram ocupadas por habitantes de quatro pernas, mas logo viram que podiam contar com os sentidos dos seus companheiros de viagem para escaparem aos perigos. Conscientemente ou não, eles dependiam do cheiro de fumaça para saber se havia ocupantes humanos — o homem é o único animal que usa fogo —, mas não encontraram ninguém. Mesmo as outras espécies animais eram raras.

Em consequência, ficaram surpresos quando se lhes deparou uma região rica em vegetação, pelo menos se comparada com o resto da paisagem nua e pedregosa. O calcário não era sempre o mesmo. Variava muito segundo a maneira pela qual se dissolvia, e na proporção em que era insolúvel. Como resultado, havia áreas férteis de karst calcário, com prados e bosques crescendo à margem de rios normais, de superfície. Cavernas e rios subterrâneos ainda existiam na área, mas eram agora em menor número.

Quando encontraram um rebanho de renas pastando num campo de feno — seco mas ainda de Pé —, Jondalar sorriu para Ayla, depois sacou do seu propulsor de lanças. Ayla fez que sim com a cabeça e mandou que Huiin acompanhasse o homem e seu cavalo. Sem nada em torno, salvo uns poucos animais de pequeno porte, e com o rio longe, no fundo da garganta, não podiam pescar. Vinham recorrendo, essencialmente, para subsistir, às suas rações de comida desidratada, partilhando essa comida insólita com o lobo. Os cavalos passavam mal. O capim ralo que crescia naquele solo delgado mal era suficiente para eles.

Jondalar cortou a garganta da pequena fêmea de antílope que tinham matado para que o sangue escorresse. Depois içaram a carcaça para o barco ligado ao trenó e procuraram um lugar para acampar. Ayla queria secar parte da carne e clarificar a gordura de inverno do animal. Quanto a Jondalar, antecipava o prazer de um bom pernil, de um lombo assado, de um pedaço macio de fígado. Pensavam demorar-se ali um dia ou dois, principalmente por terem aquela bela campina à mão. Os cavalos precisavam pastar. Lobo descobrira uma abundância de animaizinhos, ratos-calungas, lemingues e lagômios, e saíra para explorar a vizinhança e caçar.

Quando viram uma caverna encravada num flanco de colina, foram correndo para ela. Era menor do que desejavam, mas parecia suficiente. Desataram os mastros, e carregaram-nos eles mesmo para cima. Descarnaram os cavalos, para que fossem gozar do prado. Puseram a bagagem na caverna, depois saíram, cada qual para seu lado, a fim de recolher lenha e estrume seco.

Ayla fazia planos para uma refeição de carne fresca e já escolhia mentalmente os acompanhamentos. Colheu sementinhas e grãos dos capins do prado, e também as sementes pretas de uma fedegosa que nascia junto d’água , um pouco ao norte da caverna. Quando voltou da sua expedição, Jondalar adiantara o fogo, e ela lhe pediu que fosse encher as bolsas de água no riacho.

Lobo voltou antes do homem, mas quando se aproximou da caverna , arreganhou os dentes e fungou. Ayla sentiu os cabelos da nuca se eriçarem.

— O que foi, Lobo? — disse, preparando automaticamente a funda e uma pedra, apesar de ter também o arremessador de lanças à mão. O lobo entrou devagarinho na caverna, rosnando do fundo da garganta. Ayla o seguiu de perto, baixando a cabeça para passar pela porta. Desejaria ter um archote, mas seu nariz lhe dizia o que os olhos não podiam ver. Fazia muito tempo que não respirava aquele odor, mas jamais o teria esquecido. E de repente a memória lhe trouxe aquela primeira vez, já tão remota.

Eles estavam nos contrafortes das montanhas, não muito longe da reunião dos Clãs. Seu filho vinha escarranchado nela, preso pelo xale de carregar criança. Embora ela fosse jovem e uma dos Outros, ocupava na coluna de marcha a posição que cabia a uma curandeira. Todos tinham parado e olhavam o monstruoso urso da caverna que coçava, indiferente, as costas numa casca de árvore.

Embora o gigantesco animal, duas vezes maior que qualquer urso escuro da sua espécie, fosse seu totem mais venerado, os jovens do Clã de Brun jamais tinham visto um. Não havia um só exemplar de resto nas montanhas em que moravam, embora muitas ossadas dessem testemunho de que em priscas eras existira. Pelos poderes mágicos que tinham, Creb recolhera os poucos tufos de pêlo deixado pelo urso na árvore quando se fora, restando apenas, na esteira, aquele cheiro inconfundível.

Ayla chamou Lobo e saiu sem fazer o menor ruído. Viu que tinha a funda na mão e enfiou-a na cintura com uma careta. De que serviria uma funda contra um urso das cavernas? Rejubilava-se de que ele já tivesse embarcado no seu sono comprido e não tivesse sentido a intrusão. Lançou rapidamente terra na fogueira e apagou-a também com os pés. Depois, apanhou a alcofa e procurou ganhar distância da caverna. Felizmente não tinham desempacotado muita coisa. Voltou para apanhar a bagagem de Jondalar, depois arrastou o trenó sozinha. Acabava de pegar outra vez a própria bagagem para carregá-la ainda mais longe quando Jondalar surgiu com as bolsa d'água cheias.

—    O que está fazendo, Ayla?

—    Há um urso naquela caverna — disse ela. E vendo sua apreensão, acrescentou: — Ele já começou seu sono de inverno, acho eu, mas às vezes eles despertam se alguém os incomoda, se é logo no começo do frio. Pelo menos, assim ouvi dizer.

—    Quem disse?

—    Os homens do Clã de Brun. Eu ficava escutando quando eles falavam de caça... às vezes. — E riu. — Não só às vezes. Escutava sempre que podia, principalmente depois que comecei a praticar com a funda. Os homens em geral não fazem caso de uma menina ocupada com suas próprias coisas na vizinhança deles. Eu sabia que jamais me ensinariam o que quer que fosse. Ouvir-lhes as histórias era, então, a única maneira de aprender. Pensei que talvez se zangassem se soubessem o que eu estava fazendo, mas só muito mais tarde fiquei sabendo como o castigo era severo.

—    Bom, ninguém deve entender mais de urso que o Clã, que é do próprio — disse Jondalar. — Você acha seguro ficar por aqui?

—    Não sei. Mas eu não gostaria de ficar.

— Por que não chama Huiin, então? Ainda é dia, podemos encontrar outra área para acampar antes que escureça.

Depois de passar a noite na barraca, em campo aberto, partiram cedo na manhã seguinte, querendo pôr ainda maior distância entre eles e o urso da caverna. Jondalar não quis perder tempo secando a carne e convenceu Ayla de que estava fazendo frio. A carne não se estragaria. Queria sair logo daquela região. Onde há um urso em geral há outros.

Mas quando chegaram ao topo da cordilheira, pararam. O céu estava limpo, e o ar revigorante. E a vista era espetacular. Para leste elevava-se uma montanha mais baixa que a deles, mas coberta de neve. Anunciava a cadeia oriental, mais próxima agora, que se encurvava em torno deles. Embora não fossem excepcionalmente notáveis, as montanhas cobertas de gelo dessa série alcançavam grandes altitudes mais para cima, erguendo-se de modo a formar, no horizonte, uma linha de picos denteados de um branco levemente anilado, contra o céu de puríssimo azul.

As montanhas boreais estavam no cinturão mais externo de um grande arco. Os viajantes estavam no arco interior da mesma formação, no sopé de uma cadeia que os envolvia e que se estendia através da antiga bacia que formava a planície central. O grande glaciar, aquela massa densamente comprimida de gelo sólido que, vindo do norte, cobrira quase uma quarta parte de todas as terras, terminava num gigantesco muro que ficava logo atrás dos picos que eles tinham diante dos olhos. Para noroeste, as elevações eram mais modestas, mas, por estarem próximas, dominavam o quadro. Tremeluzindo na imensa distância, o gelo glacial podia ser entrevisto com um pálido, remoto horizonte. Para o lado do poente, a cadeia de montanhas, muito mais elevada, se perdia nas nuvens.

Era um cenário magnífico, mas a vista de tirar o fôlego ficava mais perto deles. Logo abaixo de onde se encontravam, na garganta profunda. o Rio da Grande Mãe mudara de direção. Vinha, agora, do oeste. Contemplando-o do alto, Ayla e Jondalar sentiram que os dois também tinham chegado a um ponto crucial da sua Jornada.

— A geleira que temos de atravessar fica a oeste daqui — disse Jondalar, num tom distante que combinava com os seus pensamentos —, mas vamos acompanhar o Rio da Grande Mãe, e ele vai virar um pouco para noroeste e, de novo, para o sudoeste, antes que o alcancemos. Não é uma geleira descomunal e, a não ser por uma certa região, mais alta, a nordeste, é quase plana uma vez que a gente a tenha escalado, como um grande platô feito de gelo. Passado esse obstáculo, rumamos bem rápido para sudeste uma vez mais, mas, essencialmente, daqui por diante, nossa direção é o ocidente, até em casa.

Rompendo através da formação de rochas calcárias e cristalinas, o rio, como se hesitasse, ou não soubesse resolver por onde ir, virava para norte, e logo para sul, e outra vez para norte, formando uma alça, antes de, finalmente, decidir-se pelo sul, através da planície.


Aquele é o Rio da Grande Mãe? — perguntou Ayla. — Quero dizer, é ele mesmo, todo, e não apenas um canal?

— É ele sim, inteiro. É ainda um rio de proporções respeitáveis, se bem que não se compare com o que já vimos.

— Nós o acompanhamos, então, já faz bastante tempo. Eu estava acostumada a vê-lo tão mais cheio quando não se dividia, que pensava estarmos seguindo agora um canal. Já atravessamos simples afluentes com maior volume d'água que isso — disse Ayla, um pouco decepcionada ao ver que aquele enorme rio se tornara um curso d'água como os outros.

— Estamos muito no alto. Ele parece diferente daqui. Há mais nele ainda do que você imagina — disse Jondalar. — Temos alguns lagos afluentes por vadear, e haverá momentos em que o Rio da Grande Mãe se dividirá em canais como antes, mas é verdade que vai ficando sempre menor. — Jondalar olhou para o poente durante um minuto e acrescentou: — Estamos apenas no começo do inverno. Alcançaremos a geleira em tempo... se nada nos atrasar.

Os viajantes viraram para oeste com a alta serrania, acompanhando a curvatura mais externa do rio. A elevação continuava a acentuar-se ao norte do Rio da Grande Mãe até que se viram diretamente acima do pequeno meandro do sul. A queda para oeste era quase vertical, e eles seguiram para o norte, descendo por uma encosta menos íngreme, de vegetação rasteira esparsa. No fundo, um pequeno afluente que rodeava a base da majestosa elevação do nordeste abrira uma garganta. Os dois acompanharam o rio, contra a corrente, até acharem um vau. O terreno era ondulado na margem oposta, e eles cavalgaram ao longo do rio até alcançarem o Rio da Grande Mãe outra vez. Depois rumaram, como antes, para oeste.

Na vasta planície central havia apenas poucos afluentes, mas atravessavam agora uma área onde muitos rios e torrentes vindas do norte alimentavam profusamente o Rio da Grande Mãe. Encontraram, quando o dia já ia avançando, um afluente mais importante, e molharam as perneiras, atravessando-o. Não era como cruzar um rio no verão. Não importava ficarem um pouco molhados, se fazia calor. Mas agora a temperatura chegava ao ponto de congelamento, de noite. A água gelada os incomodou tanto que resolveram acampar na margem oposta para se aquecer e secar.

Continuaram para o ocidente. Depois de passarem o terreno acidentado, chegaram outra vez à planície, um campo relvoso e encharcado, mas não como os do lado da foz. Os solos, agora, eram ácidos, e mais alagadiços que pantanosos, com charnecas de esfagno. Em certos terrenos, o musgo compactava-se em turfa. Descobriram que a turfa era inflamável quando um dia, inadvertidamente, fizeram a fogueira num terreno em que ela florava, nua e seca. No dia seguinte apanharam alguma turfa para acampamentos futuros.

Quando encontraram um largo afluente, de correnteza rápida, que se abria em leque na sua confluência com o Rio da Grande Mãe, decidiram seguir seu curso por algum tempo e ver se encontravam lugar propicio para a travessia. Chegaram a um trecho em que dois rios convergiam. Acompanharam o da direita, e foram dar com outra confluência, onde um terceiro rio desaguava. Os cavalos não tiveram dificuldade em vadear o rio menor, e a bifurcação do maior, embora mais funda, também não foi difícil. Já a terra entre esse ponto e a margem era baixa, pantanosa, com muita turfa de estagno, e deu mais trabalho.

A última bifurcação era funda, e não havia como passá-la sem se molharem. Além disso, foram perturbados por um megácero, com enorme galhada, e resolveram ir atrás dele. O veado gigante, com longas pernas ganhou facilmente distância dos cavalos, embora Racer e Huiin o tivessem perseguido valentemente. Huiin, sobretudo, que arrastava os mastros não era páreo para ele, mas a aventura deixou todos de excelente humor.

Jondalar, vermelho, despenteado pelo vento, e com o capuz de lã togado para as costas, ria ao voltar. Ayla sentiu uma inexplicável pontada de amor, vendo-o chegar, radioso. Ele deixara crescer a barba, de um louro muito pálido, como costumava fazer no inverno, para manter o rosto quente, e ela sempre gostara dele assim. Jondalar costumava chamá-la "bela", mas ele, sim, era belo.

—    Que bicho para correr, Ayla! E você viu que beleza de chifres? Só um deles já é maior do que eu!

Ayla também sorria.

—    Era um animal magnífico. E formoso. Mas me alegro que não o tenhamos apanhado. Era grande demais para nós, de qualquer maneira. Não poderíamos aproveitar toda aquela carne, e seria um vexame matá-lo à toa.

Cavalgaram de volta para as margens do Rio da Grande Mãe, e embora suas roupas tivessem secado no corpo, até certo ponto, precisavam acampar e trocá-las. Penduraram tudo perto das chamas para que secassem inteiramente.

No dia seguinte começaram rumando para oeste, mas o rio os obrigou a seguir para noroeste. A pouca distância podiam ver outra cadeia de montanhas. A elevação que se estendia até o Rio da Grande Mãe era a ponta noroeste, a última que veriam, da grande cadeia de montanhas que estava com eles quase que desde o começo da viagem. Estivera a oeste deles, então. Depois haviam contornado sua larga base meridional, seguindo o curso inferior do Rio da Grande Mãe. Os picos brancos se haviam deslocado num grande arco para leste deles quando cavalgaram pela planície central, acompanhando o curso principal, sinuoso, do Rio da Grande Mãe Indo agora ao longo do curso superior do rio, aquela cadeia era a última.

Nenhum afluente desaguou no rio até quase a montanha. Ayla e Jondalar perceberam que deviam ter estado entre dois canais. O rio que, vindo de leste, se lançava no rio ao pé do promontório rochoso, era a outra extremidade do canal norte do Rio da Grande Mãe. Dali por diante, o rio fluía entre a cadeia e uma alta colina através da água, mas havia suficiente margem plana e baixa por onde cavalgar em torno do contraforte da ponta rochosa.

Atravessaram outro grande afluente imediatamente do outro lado da cadeia, um rio cujo grande vale marcava a separação entre os dois grupos de montanhas. As altas colinas para o lado do ocidente eram a projeção mais oriental e mais avançada da enorme cadeia do oeste. Com a cadeia às suas costas, eles viram que o Rio da Grande Mãe se dividia outra vez em três canais. Foram pela margem externa do canal que ficava mais para o norte através das estepes de uma bacia menor, setentrional, que era, na verdade, uma extensão da planície central.

Quando a bacia central fora um grande mar, esse largo vale fluvial de estepes relvosas, junto com os pântanos e charnecas das terras ribeirinhas e os campos para o norte delas, eram, todos, ilhas daquela antiga massa interior de água. A curva interna da cadeia oriental de montanhas incluía pontos fracos da crosta terrestre que se tornaram orifícios de escape para a saída de material vulcânico. Esse material, combinado a antigos depósitos marinhos e ao loess levado pelo vento, criou um solo rico e fértil. Mas só as madeiras esqueletais do inverno davam testemunho disso.

Os dedos ossudos e os membros descarnados de poucas bétulas junto do rio chocalhavam ao vento rapace do norte. Macega seca, caniços, fetos mortos juncavam as margens, onde camadas de gelo já se formavam e logo ficariam espessas e projetariam saliências pontudas para o alto: o começo das banquisas de primavera. Nas vertentes setentrionais, e nos patamares mais altos das colinas onduladas, na linha divisória de águas do vale, o vento cardava campos encapelados de feno ainda ereto e cor de cinza, com movimentos ritmados. Enquanto isso, ramos de sempre-verdes, como o espruce e o pinho, ondulavam e se arrepiavam tocados por lufadas erráticas, que conseguiam abrir caminho e atacar os flancos protegidos voltados para o sul. Uma poeira de neve rodopiava em torno, para deitar-se, depois, de leve, no chão.

O tempo era agora, definitivamente, frio, mas nevascas não constituíam problema. Os cavalos, o lobo, e, até, as pessoas estavam acostumados às estepes de loess do norte, com sua neve invernal, leve e seca. Só com neve pesada, que deixasse os cavalos fatigados e tornasse difícil encontrar forragem, Ayla começaria a preocupar-se. Tinha mais em que pensar, no momento. Avistara cavalos a distância, e Racer e Huiin também os tinham visto.

Quando olhou para trás uma vez, Jondalar teve a impressão de haver visto fumaça subir para o céu, na outra margem do rio. Parecia sair de trás da colina mais alta da última cadeia de montanhas que haviam contornado. Haveria gente por lá? Voltou-se, diversas vezes, depois, para conferir, mas não viu nada.

No fim da tarde, acompanharam um pequeno afluente no sentido da montanha através de um bosque pouco denso de salgueiros e vidoeiros desnudos até uma formação de pinheiros. Noites geladas tinham dado a um laguinho próximo uma transparente camada de gelo na superfície e congelaram as bordas do riacho, mas ele ainda corria, livre, pelo centro. Acamparam ali. Caía neve, mas seca, que empoava de branco os contrafortes voltados para o norte.

Huiin ficara agitada desde a visão dos cavalos, ao longe. Isso, por sua vez, punha Ayla nervosa. Decidiu que a égua ficaria com o cabresto nessa noite e amarrou-a numa árvore perto dela. Apanharam gravetos, então, para a fogueira, e arrancaram galhos secos dos pinheiros. Esses galhos, escondidos pelos galhos verdes, eram chamados na terra de Jondalar de "madeira de mulher". São encontrados com frequência nas coníferas, ficam sempre secos, independente das condições meteorológicas, e podem ser apanhados com a mão sem necessidade de machado ou faca. Fizeram o fogo logo à entrada da barraca e a deixaram aberta para aquecer o interior.

Uma lebre mutante, já quase toda branca, passou como um raio pelo acampamento. Por coincidência, Jondalar verificava qualquer coisa na sua arma de arremesso. Dedicara as últimas noites à confecção de uma nova lança. Atirou sem pensar, mais por instinto, e ficou espantado quando o dardo que lançou, mais curto, de ponta de sílex e não de osso, acertou bem no alvo. Foi até onde vira cair a presa, apanhou-a, e tentou retirar o dardo com a mão. Como não conseguiu, sacou da faca, cortou fora a ponta, e ficou alegre ao ver que a sua nova arma não fora danificada.

— Carne para esta noite — disse, entregando a lebre a Ayla. — Fico pensando que o bicho apareceu só para me dar oportunidade de testar os novos dardos. São leves e fáceis de lançar. Você precisa experimentar um deles qualquer dia.

— O mais provável é que tenhamos acampado bem no meio da sua linha a habitual de passagem — disse Ayla. — Mas foi um belo arremesso. Quero, sim, testar a nova lança curta. Mas agora acho que vou começar a cozinhar e ver o que posso achar por perto para completar a refeição.

Ela removeu as entranhas da lebre mas não a esfolou. Assim, a gordura criada para o inverno não ficaria desperdiçada. Ayla pôs a lebre num espeto feito com um galho de salgueiro e colocou o espeto em duas forquilhas. Depois, embora tivesse de quebrar o gelo para apanhá-las, recolheu do lago diversas raízes de rabos-de-gato e alguns rizomas, em hibernação, de alcaçuz. Esmagou tudo junto com uma pedia arredondada num almofariz com água para tirar as fibras duras, depois deixou que a polpa branquicenta e rica em amido assentasse no fundo da tigela. Enquanto isso, foi ver nos mantimentos o que mais tinha de reserva.

Quando todo o amido se precipitou, e o líquido ficou quase transparente, ela despejou em outra vasilha a maior parte dele e juntou-lhe bagas de sabugueiro secas. Precisavam inchar e absorver mais um pouco da água. Para não perder tempo, Ayla removeu a casca grossa, externa, de uma bétula, raspou um pouco da macia camada de câmbio, que fica entre o lenho e o líber e é doce e comestível, para juntá-la à mistura. Recolheu algumas pinhas e quando as pôs no fogo viu que diversas delas tinham ainda grandes pinhões. O calor ajudara a rebentar os duros invólucros.

Quando a lebre ficou pronta, ela abriu um pouco da pele enegrecida e esfregou o lado de dentro numa pedra que tinha posto a aquecer no fogo para cobri-la de gordura. Tomou, então, porções da massa que preparara e depositou essas porções nas pedras quentes.

Jondalar observava toda essa atividade. Ayla conseguia ainda surpreendê-lo com seus conhecimentos de plantas. Muita gente sabia distinguir espécies comestíveis, mas não conhecia alguém que entendesse tanto do assunto quanto ela. Quando os biscoitos ázimos, pastosos, ficaram assados, ele se permitiu provar um.

— É delicioso! Você é mesmo incrível, mulher! Poucas pessoas têm o privilégio de comer bem assim em pleno inverno.

— Não estamos ainda em pleno inverno, Jondalar. Você exagera Não é ainda tão difícil encontrar coisas de comer. Espere para ver, quando o solo ficar duro — disse Ayla, tirando a lebre do espeto, removendo a pele, bem tostada, e pondo a carne na bandeja de marfim de mamute, da qual os dois se serviriam.

— Pois tenho certeza de que você encontrará o que fazer mesmo então! — disse Jondalar.

— Dificilmente plantas — disse ela, dando-lhe uma tenra perna da lebre.

Quando acabaram de devorar a carne e os biscoitos de raiz de rabo de-gato, deram as sobras a Lobo, inclusive os ossos. Ayla começou a preparar o chá, acrescentando-lhe um pouco do câmbio de bétula pelo sabor da pirola. Depois tirou os pinhões do borralho. Ficaram sentados junto da fogueira por algum tempo, bebericando chá e comendo pinhões, abrindo as cascas com pedras ou até com os dentes. Depois, fizeram preparativos para a partida, que seria cedo, verificaram os cavalos, a ver se tudo estava em ordem com eles, depois se acomodaram entre as suas quentes peles para dormir.

Ayla lançava a vista pelo corredor de uma longa e sinuosa caverna, e a linha de archotes que mostravam o caminho iluminava impressionantes formações que eram como graciosos drapeados parietais. Viu um que lembrava a cauda comprida e fluida de um cavalo. Quando se aproximou, o pseudo-animal, pardo amarelado, relinchou e abanou o rabo, como se a chamasse. Ela quis atendê-lo, mas a caverna de súbito escureceu, e as estalagmites ficaram opressivas.

Olhou para o chão, a fim de ver onde pisava, e quando ergueu de novo a cabeça, já não era um cavalo que a chamava, afinal de contas. Parecia mais um homem. Firmou o olhar a ver quem era e ficou pasma ao descobrir que se tratava de Creb. Saindo das sombras, ele lhe fez sinal para que se apressasse e fosse com ele. Depois lhe deu as costas e seguiu em frente, manquitolando.

Ela começou a segui-lo, e ouviu o relincho de um cavalo. Quando olhou por cima do ombro, à procura da égua parda, a cauda escura se perdeu em meio a uma grande manada de cavalos de caudas escuras. Correu, mas eles se transformaram em cavalos de pedra e, em seguida, em colunas. Quando olhou para a outra direção, Creb desaparecia num túnel escuro.

Correu atrás dele, procurando alcançá-lo, até que chegou a uma bifurcação. Não sabia que caminho Creb tomara. Entrou em pânico, olhando em um, depois no outro. Finalmente, escolheu o da direita, e deu com um homem, de pé no meio dele, bloqueando-lhe a passagem.

Era Jeren! Ele enchia todo o espaço do corredor, estava de pernas abertas e braços cruzados no peito. Abanava a cabeça deforma negativa. Ela implorou que a deixasse passar, mas ele não pareceu entender. Depois, com um bastão curto, apontou qualquer coisa na parede oposta.

Era um sombrio cavalo pardo que corria, e um homem, de cabelos louros, corria no seu encalço. De súbito, o rebanho envolveu o homem, escondeu-o. Ela correu para ele, os cavalos relincharam, e Creb apareceu de novo, agora na boca da caverna, dizendo-lhe que fugisse antes que fosse tarde demais. De repente, o tropel dos cavalos ficou mais alto. Ela ouviu relinchos e, com uma sensação de horror e pânico, um grito dilacerante de cavalo.

Ayla sentou-se na cama, sobressaltada. Jondalar também acordara. Havia um tumulto do lado de fora da barraca, cavalos relinchando e batendo com as patas. Lobo rosnou, depois deu um uivo de dor. Os dois pularam das cobertas e saíram correndo.

A escuridão era total, só havia uma fina fatia de lua, que dava pouca luz. Mas havia certamente mais cavalos entre os pinheiros do que os dois que ali tinham deixado. Percebiam isso pelos sons, embora não pudessem ver nada. Quando Ayla correu na direção de onde vinha o barulho, tropeçou numa raiz e caiu. Desmaiou.

— Ayla! Você está bem? — perguntou Jondalar, procurando por ela no escuro. Ouvira apenas o som da queda.

— Estou aqui — disse Ayla, num sopro, tentando recobrar o fôlego. Sentiu as mãos dele e procurou levantar-se. Ouviram, então, que um bando de cavalos se afastava, dentro da noite. Ela se ergueu com esforço. E os dois correram para o lugar onde os cavalos estavam amarrados. Huiin se fora!

— Ela fugiu! — exclamou Ayla. Assobiou e gritou o nome da égua.

— É ela! É Huiin! Aqueles cavalos a levaram. Tenho de recuperá-la — disse a mulher, e se pôs a correr pela floresta, tropeçando na escuridão.

Jondalar a alcançou em dois tempos.

— Ayla, espere! Não podemos ir agora, no escuro. Você sequer sabe onde está pisando.


— Mas eu tenho de trazê-la de volta, Jondalar!

— Faremos isso, mas pela manhã — disse ele, tomando-a nos braços.

— Até lá, eles terão ido embora — disse a mulher, chorando.

— Mas estará claro então, veremos as suas pegadas. Podemos segui-las. Nós a encontraremos, Ayla.

— Oh, Jondalar, o que farei sem Huiin? Ela é minha amiga. Por muito tempo foi minha única amiga — disse ela, rendendo-se à lógica do argumento, mas aos prantos.

Jondalar a abraçou e deixou que chorasse à vontade. Depois disse:

—    Agora, precisamos ver se Racer também se foi. E precisamos achar Lobo.

Ayla se lembrou, de súbito, de tê-lo ouvido ganir de dor e também ficou preocupada com ele. Assobiou, para o lobo, e chamou também os cavalos.

Ouviu um relincho primeiro; depois, um ganido lamentoso. Jondalar foi procurar Racer, e ela, guiada pelos ganidos do bicho, encontrou-o. Curvou-se para confortá-lo e sentiu nas mãos algo molhado e pegajento.

—    Lobo! Você está ferido! — Tentou pegá-lo no colo e carregá-lo até a fogueira, que poderia reanimar para ver o que ele tinha. Mas Lobo se debateu e gemeu quando ela tentou carregá-lo e ficou de pé, sozinho; e embora aquilo lhe custasse um visível esforço, foi com ela, mas por si mesmo, andando.

Jondalar voltou, puxando Racer pela corda. Ayla acendia o fogo.

— A corda aguentou — disse. Tinha o hábito de usar cordas fortes para o cavalo, que sempre fora mais difícil para ele de dominar que Huiin para Ayla.

— É uma alegria que ele esteja bem — disse a mulher, afagando o pescoço do animal, e examinando-o de perto para ter certeza de que nada lhe acontecera.

— Por que não usei, eu também, corda mais forte? — disse, furiosa consigo mesma. — Se eu tivesse me precavido, Huiin estaria aqui. —Sua relação com a égua era mais estreita que a dele com Racer. Huiin era uma amiga, que a obedecia voluntariamente, de modo que Ayla usava apenas uma corda fina, só para que a égua não fosse muito longe. E aquilo sempre bastara.

— Não foi culpa sua. A manada não estava atrás de Racer. Eles queriam uma égua, não um cavalo. Huiin não os teria acompanhado se eles não a obrigassem.

— Mas eu sabia que esses cavalos estavam na área, devia imaginar que viriam buscar Huiin. Agora, ela foi embora, e até Lobo está ferido.

— Coisa séria?

—    Não sei — disse Ayla. — Dói muito quando eu toco nele, de modo que ainda não pude examiná-lo direito. Deve ter alguma costela seriamente machucada ou, até, quebrada. Pode ter levado um coice. Vou dar-lhe alguma coisa para aliviar a dor, e de manhã vejo melhor o que fazer, antes de irmos procurar Huiin. — Estendeu os braços para Jondalar, num gesto de desespero.

— Oh, Jondalar, e se não a encontrar? Se a pender para sempre? — disse, em lágrimas

 

— Veja, Ayla — disse Jondalar, pondo um joelho em terra para ver melhor o chão, coberto de marcas de cascos. — O rebanho inteiro esteve aqui a noite passada. E o rastro é nítido. Eu não disse que seria fácil seguir-lhes a pista assim que amanhecesse?

Ayla olhou a direção que as marcas tomavam, para nordeste. Os dois estavam na beira da mata e podiam ver longe no campo aberto, mas por mais que se esforçasse, ela não conseguia avistar um só cavalo. Ficou pensando. As pegadas estavam fáceis de acompanhar, mas até onde?

A mulher não pregara um olho desde que fora acordada pelo tumulto e descobrira que sua grande amiga desaparecera. Do momento em que o céu clareou, passando de ébano para índigo, ela se levantou, embora estivesse muito escuro ainda para distinguir bem qualquer coisa. Já avivara o fogo e pusera água para ferver quando o céu se transformou, passando gradativamente por um espectro monocromático de nuanças cada vez mais pálidas de azul.

Lobo se acercara dela, sub-repticiamente, e teve de gemer para chamar-lhe a atenção. Ela o examinou, então, detidamente. Embora ganisse quando apertava um pouco, viu, com alívio, que não havia ossos quebrados. Uma contusão já era ruim o suficiente. Jondalar se levantara logo que o chá ficara pronto, mas antes que houvesse luz suficiente para rastrear.

— Vamos andando — disse Ayla. Eles não devem ganhar grande distancia. Podemos empilhar tudo no barco... Não... não podemos. — Percebera de súbito que, sem a égua, não era tão simples empacotar e sair. — Racer não sabe puxar a tralha, de modo que não podemos botá-la no barco e levá-la a reboque. Sequer podemos levar a alcofa de Huiin.

— E se quisermos alcançar aquela manada de cavalos temos de montar Racer. Nós dois. Não podemos levar, portanto, a cesta dele. Temos de reduzir a bagagem ao mínimo necessário — disse Jondalar.

Refletiram sobre a nova situação, a que a perda de Huiin os reduzira Ambos sabiam que cumpria tomar decisões drásticas.

— Levaremos só as mantas de dormir e as peles que usamos para cobrir o chão. Elas podem servir de barraca, embora baixa. Se enrolarmos tudo junto, talvez caiba na garupa de Racer, atrás de nós — sugeriu Jondalar.

— Sim, uma barraca baixa é suficiente — disse Ayla. — Não tínhamos mais que isso quando saímos para caçar, no Clã. Usávamos um galho como mastro, na frente, e pedras ou ossos pesados que encontrávamos para prender a pele no chão. — Ficou lembrando os tempos em que ela e outras mulheres iam com os caçadores. — As mulheres tinham de carregar tudo, exceto as lanças. E como tínhamos de andar depressa, para não ficarmos para trás, levávamos pouca bagagem.

— O que mais levavam? O que poderíamos considerar como minimo necessário? — perguntou Jondalar, curioso.

— Material de acender fogo. Algumas ferramentas. Machadinha, para cortar lenha ou partir ossos de animais que tenhamos de esquartejar para comer. Podemos fazer fogo com bosta seca e capim, mas será preciso ceifar o capim. Precisaremos de uma faca para esfolar animais e outra para cortar carne. — Ayla rememorava não só o tempo em que acompanhava os caçadores mas o período em que viajara sozinha, depois de deixar o Clã.

— Uso meu cinto com alças para o machado e a faca de cabo de marfim — disse Jondalar. — Você deve usar o seu também.

— Um pau de cavouco sempre ajuda e pode ser usado para sustentar a barraca. Alguma roupa quente, para o caso de esfriar muito, algumas cobertas de pé de reserva — continuou a mulher.

— Um par sobressalente de forros de botas. É uma boa ideia. Roupa de baixo, mitenes, de lã. Podemos, se for preciso, usar as peles de dormir como agasalho.

—    Uma ou duas bolsas d'água...

— Podemos levá-las presas à cinta. E com uma corda que dê para fazer um laço por cima do ombro, podemos levá-las junto do corpo no frio mais forte, para que a água não congele.

— Vou precisar dos meus remédios, do material de costura, que não ocupa muito espaço, da funda...

— E não esqueça suas lanças e o arremessador — acrescentou Jondalar. — Acha que eu deveria levar ferramentas de britar pedra ou pedras já preparadas para o caso de alguma faca ou outra coisa qualquer quebrar?

— Não podemos levar nada que eu não possa carregar às costas, ou poderia, se tivesse uma cesta apropriada.

— Se alguém tiver de levar algo às costas, penso que deve ser eu disse Jondalar —, mas tenho minha armação.

— Podemos, certamente, fazer outra, com uma das alcofas. por exemplo, e um pedaço de corda ou uma correia. Mas como poderei ir na sua garupa se você estiver usando urna coisa dessas? — perguntou Ayla.

—    Mas eu é que pretendo ticar atrás de você — disse Jondalar. Os dois se olharam e sorriram, cúmplices. Tinham, até, de decidir como montar. E cada um, naturalmente, fizera seus planos. Era a primeira vez que Ayla sorria naquela manhã, pensou Jondalar.

— Você tem de guiar Racer, de modo que cabe a mim ir na garupa — disse Ayla.

— Posso muito bem guiá-lo com você na minha frente — retrucou ele — Já atrás de mim você só verá as minhas costas. Não creio que fique feliz assim, sem enxergar adiante. Nós dois temos de estar atentos às pegadas dos cavalos. Será difícil rastreá-los em terreno duro ou se houver outras que se misturem às nossas. Sei que você é uma boa rastreadora.

O sorriso de Ayla ampliou-se.

— Tem razão, Jondalar. Não sei se eu aguentaria muito tempo sem ver o caminho à frente.

Ela via que ele se preocupava tanto quanto ela com a dificuldade de seguir a pista dos cavalos, e que procurara também considerar os seus sentimentos. Ficou com os olhos cheios d'água com o amor que sentia por ele. E logo chorava.

— Não chore, Ayla. Nós vamos achar Huiin.

— Não estou chorando por causa de Huiin. Estava só pensando no quanto que o amo. E as lágrimas me vieram.

— Eu também a amo — disse ele, com um nó na garganta, estendendo-lhe a mão.

Mais um segundo, e ela lhe caía nos braços, soluçando. As lágrimas agora eram também por Huiin.

—    Temos de encontrá-la, Jondalar.

— Nós vamos encontrá-la. Agora, que tal fazer uma cesta para eu levar ás costas? Algo que possa conter arremessadores de lanças e lanças também, do lado de fora, onde seja fácil pegá-las.

— Não será difícil. Temos de levar, também, naturalmente, a comida prensada, de viagem — disse Ayla, enxugando as lágrimas com as costas da mão.

— Quanto de comida, a seu ver?

— Depende. Quanto tempo você acha que vamos levar para achar Huiin?

Aquilo os emudeceu. Quanto tempo levaria a busca? Quanto tempo até encontrarem Huiin e trazê-la de volta?

— Uns poucos dias. Mas talvez seja prudente levarmos víveres para um meio ciclo de lua.

Ayla ficou calculando.

— Isso são mais de dez dias. Três mãos, talvez: quinze dias. Acha que vai levar tanto tempo assim?

— Não, Ayla. Mas é melhor estarmos preparados.

— Não podemos deixar o acampamento abandonado por tanto tempo assim, Jondalar. Algum animal pode destruir tudo. E há lobos, hienas carcajus, ursos... Não, os ursos já estão dormindo. Mas qualquer fera. Vão destruir a barraca, o barco, tudo que for de couro. Vão comer toda a reserva de carne. O que faremos então, sem nada?

— E se Lobo ficar de guarda? — disse Jondalar, franzindo a testa. — Ele não obedeceria, se você o mandasse ficar? Está machucado alem de tudo. Não seria melhor para ele se não viajasse?

—    Sim, seria melhor, mas ele não ficaria. Por algum tempo, talvez, mas iria em nossa procura se não voltássemos em um dia ou dois.

—    Talvez pudéssemos prendê-lo perto do acampamento.

—    Não. Ele detestaria isso, Jondalar — exclamou Ayla. — Você não gostaria de ser obrigado a ficar num lugar em que não desejasse estar. Além disso, se vierem lobos ou outros animais ele seria atacado e não poderia lutar nem fugir. Temos de imaginar outro meio de defender nossas coisas.

Voltaram em silêncio para o acampamento. Jondalar, um tanto acabrunhado; e Ayla, francamente preocupada. Mas ambos tentando ainda resolver o problema dos seus pertences: o que fazer com as coisas enquanto estivessem ausentes? Quando se aproximavam da barraca, Ayla fez uma sugestão.

— Tive uma ideia. Poderíamos pôr tudo dentro da barraca e fecha-la. Tenho ainda um pouco daquele repelente que fiz para impedir que Lobo ficasse mastigando as coisas. Poderia amolecer o material e passá-lo na barraca. Isso talvez afaste os animais. Alguns, pelo menos. O que acha, Jondalar?

— Sim, o repelente funcionaria, até que alguma chuva o lavasse, e isso não aconteceria de imediato. Mas e os animais que tentassem entra por baixo da barraca, cavando? Não poderíamos reunir tudo e fazer um grande embrulho com o couro da barraca? Passaríamos o repelente por fora. Mas não poderíamos deixar o volume ao ar livre.

— Seria preciso fazer como fazemos com a carne: içá-lo — disse Ayla, animando-se. — Preso no tripé de mastros. E coberto com o barco emborcado, como defesa contra a chuva.

— É uma boa ideia! — disse Jondalar. Depois hesitou. —Os mastros poderiam ser derrubados por um leão, por exemplo. Ou por uma alcatéia de lobos, por hienas... — Jondalar correu os olhos em torno e teve, também, uma ideia. Havia, ali perto, uma formação de amoreiras silvestres, com longas canas e acerados espinhos.

— Ayla, o que acha de fincarmos os três mastros no meio dessas amoreiras, amarrar uns nos outros ao meio, pôr a barraca no topo, e cobrir tudo com o barco?

— Acho bom. Poderíamos cortar algumas das canas com todo o cuidado, instalar os mastros como você sugere e recolocar as canas, prendendo-as nas outras. Pequenos animais passariam, mas estão, em grande parte, dormindo o sono do inverno, ou quietos nas suas tocas, e esses espinhos provavelmente afastarão os animais de grande porte. Até leões evitam espinhos. Acho que dará certo.

Escolher as poucas coisas que levariam exigiu longa deliberação. Decidiram levar algumas peças extras de sílex, algumas ferramentas indispensáveis, e tanta comida quanto pudessem carregar. Separando suas coisas, Ayla encontrou o cinto que Talut lhe dera na sua cerimônia de adoção no Acampamento do Leão das Cavernas. O cinto tinha compridas tiras de couro que podiam ser convertidas em alças para carregar coisas, como a adaga, embora servisse também para prender uma variedade de objetos.

Passou-o à volta da cintura, por cima da túnica, depois tirou a adaga e quedou por algum tempo, sopesando-a na mão, resolvendo se a levaria ou não consigo. A ponta era bastante aguda, mas se tratava mais de um objeto mais cerimonial que prático. Mamute usara uma igual para tirar-lhe sangue do braço e marcar a placa de marfim que usava no pescoço. Com esse ritual, ela passava a ser uma Mamutói.

Vira adaga semelhante empregada para fazer tatuagens: a ponta cortava finos sulcos na pele. Carvão de madeira de freixo era, então, esfregado nas feridas. Ayla não sabia que o freixo produz um anti-séptico natural que impede a infecção, e é pouco provável que o Mamute que lhe contou isso soubesse exatamente como o produto atuava. Mas o fato é que ficara para sempre impressionada e convencida de que só a cinza de madeira de freixo devia ser empregada para escurecer a cicatriz de uma tatuagem.

Ayla pôs a adaga de volta na bainha de couro cru e deixou-a lá. Apanhou depois outra bainha, que protegia a ponta extremamente fina e afiada da pequena faca de cabo de marfim que Jondalar fizera para ela. Enfiou-a em um dos receptáculos, depois o cabo do machado que ele lhe dera ocupou outra das alças. A cabeça de pedra do machado curto ela envolveu em couro para maior proteção.

Concluiu que não havia motivo para não levar também no cinto o lançador de dardos. Pôs também nele a funda. Experimentou, em seguida, o bornal em que guardava pedras. Ficou pesado, mas era o jeito mais conveniente de carregar coisas se tinham de viajar com pouco. Juntou, finalmente, suas lanças às que Jondalar já reunira na alcofa da garupa.

Gastaram mais tempo decidindo o que levar do que tinham imaginado e mais tempo ainda arranjando em segurança tudo o que deixavam no acampamento. Ayla se afligia com a demora, mas por volta do meio-dia montaram e partiram.

Ao saírem, Lobo foi trotando animadamente junto deles, mas logo se atrasou. Sentia dores, como seria de esperar. Ayla se preocupava, não sabendo até onde ele aguentaria, mas se conformou com a ideia de deixar que ele fosse como pudesse, no seu ritmo. Se não conseguisse andar emparelhado, teria de alcançá-los cada vez que parassem no caminho. Preocupava-se com ele e com Huiin, mas o lobo, pelo menos, estava por perto ela confiava em que, mesmo ferido, ele se recuperasse. Já a égua podia estar em qualquer lugar àquela altura, e quanto mais se demorassem, mais longe ela poderia estar.

Seguiram o rastro dos cavalos por algum tempo. Tendo começado no rumo nordeste, subitamente mudaram, sem explicação, de direção. Só depois de algum tempo Ayla e Jondalar se aperceberam disso. No primeiro momento, julgaram haver perdido o rastro. Retrocederam, mas só de tarde encontraram de novo a pista, e já era quase noite quando deram com um rio.

Era evidente que os cavalos tinham passado para a margem oposta, mas já estava excessivamente escuro para distinguirem as marcas dos cascos, e julgaram melhor acampar na margem do rio. A questão era: qual das duas? Se vadeassem naquela hora, suas roupas estariam secas de manhã, mas Lobo poderia perder-se deles. Resolveram esperar, acampando ali mesmo.

Com aquele mínimo de bagagem, o acampamento parecia vazio, e os dois se sentiram deprimidos. Não tinham visto mais nenhum rastro da passagem dos cavalos o dia todo. Ayla começava a pensar se não estariam na pista de outros cavalos, e afligia-se por causa de Lobo. Jondalar procurava consolá-la. Mas quando o lobo não apareceu, e já o firmamento reluzia de estrelas, a aflição de Ayla aumentou. Esperou acordada até bem tarde. Quando Jondalar, finalmente, a convenceu a reunir-se a ele nas peles de dormir, Ayla não conseguiu logo conciliar o sono. Mas já cochilava quando sentiu um focinho frio na cara.

—    Lobo! Você conseguiu chegar! Você está aqui! Veja, Jondalar, Lobo está aqui!

Ayla percebeu que ele gemia com os seus carinhos. Jondalar também se alegrou, mas por causa de Ayla. Pelo menos agora ela podia dormir um pouco. Mas primeiro a mulher se levantou para servir ao animal a parte que guardara para ele da refeição da noite, um cozido de carne-seca, tubérculos, e um bolo de carne moída, prensada para viagem.

Preparara, anteriormente, numa tigela, uma infusão de casca de salgueiro. Lobo estava com tanta sede que lambeu tudo aquilo, inclusive o remédio. Depois enrodilhou-se junto deles, e Ayla adormeceu com um braço em torno do lobo, enquanto Jondalar se aconchegava e a enlaçava do outro lado. Na noite límpida, mas excessivamente fria, eles tiraram apenas as botas e os agasalhos externos de pele. Nem se deram ao trabalho de armar a pequena barraca. Dormiram, vestidos, ao relento.

Ayla verificou que Lobo estava melhor. Mesmo assim, tirou mais casca de salgueiro da bolsa de remédios de pele de lontra e acrescentou um pouco dessa decocção à comida dele. Todos tinham de enfrentar as águas gélidas do rio, e ela não sabia como isso iria afetar o ferimento do animal. Talvez o frio fosse demais para ele. Por outro lado, poderia aliviar tanto a lesão interna quanto a dor.

Ela não tinha a menor vontade de ficar de roupa molhada. Não tanto pelo frio. Já se banhara em águas mais frias. Mas a ideia de montar depois, com as calças molhadas, naquele ar quase gelado, lhe era desagradável. Quando começou a enrolar em torno da panturrilha o couro de sua bota de cano alto, tipo mocassim, mudou de ideia.

—    Não vou meter isto na água. Prefiro ir descalça e molhar o pés. Pelo menos depois tenho alguma coisa seca para usar.

— Não é má ideia — disse Jondalar.

— Aliás, não vou nem vestir isto — disse ela, tirando as caças e ficando despida diante dele da túnica de baixo. Jondalar sorriu e pensou logo em fazer outra coisa em vez de perseguir cavalos. Mas sabia que Ayla estava tão preocupada com Huiin que não admitiria perder tempo com frivolidades.

Estava cómica assim, mas a ideia era boa. O rio tinha proporções modestas, embora parecesse rápido. Podiam atravessá-lo montados em Racer, de pernas e pés nus, e pôr roupas secas quando alcançassem a margem oposta. Seria mais confortável e lhes pouparia horas de frio.

— Acho que você tem razão, Ayla — disse Jondalar, desnudando por sua vez as longas pernas. Em seguida, pôs a mochila às costas, e Ayla sobraçou o rolo de dormir para garantir que ele não ficasse molhado. O homem se achou um tanto ridículo montando sem calças. Mas sentir a pele de Ayla entre as pernas fê-lo esquecer o resto. O efeito do seu trem de pensamentos ficou logo óbvio para Ayla. Se não estivessem com tanta pressa, ela teria gostado de ficar um pouco por ali. Pensou que poderiam cavalgar assim, juntos, outro dia, só de brincadeira, mas o momento não era para isso.

A água estava gélida quando o cavalo entrou no rio, rompendo a fina crosta de gelo junto à margem. Embora o rio fosse veloz e ficasse logo tão profundo que a água lhes chegou ao meio das coxas, o cavalo foi em frente. Não era preciso nadar, ali. Os dois encolheram as pernas, no começo, mas logo ficaram com elas dormentes. A meio caminho, Ayla se voltou para ver onde estava Lobo. Ainda na margem, avançando e recuando, como devia fazer, antes de mergulhar. Ayla assoviou para encorajá-lo, e ele criou coragem.

Alcançaram o outro lado sem incidentes, exceto o frio. O vento nas pernas molhadas era cortante. Secaram-se como puderam, com as mãos, e logo puseram calças e botas. Estas, com um forro de lã de camurça empastada — presente de despedida dos Xaramudói, pelo qual muito gratos ficaram naquela hora. Pernas e pés se puseram rapidamente a formigar coma volta do calor. Lobo, que chegava, sacudiu-se todo. Ayla o examinou e se deu por satisfeita: a imersão não lhe fizera mal.

Não foi difícil encontrar o rastro dos cavalos. Galoparam no encalço deles, e logo deixaram Lobo outra vez para trás. Ayla se afligia vendo-o atrasar-se mais e mais. O fato de que ele os tivesse encontrado na véspera a deixava menos temerosa, e consolava-se pensando que aquilo já acontecera antes e que ele sempre soubera achá-los. Era aborrecido abandoná-lo assim à própria sorte, mas tinha de pegar Huiin.

Só a tarde avistaram os cavalos, ao longe. Quando se aproximaram um pouco, Ayla procurou distinguir Huiin no meio dos outros. Julgou vislumbrar uma pelagem familiar, cor de feno, mas não estava segura disso. Havia muitos animais da mesma cor. E quando o vento lhes trouxe o cheiro deles, os cavalos saíram em disparada.

— Esses cavalos já foram caçados antes — disse Jondalar. E se felicitou por não haver expressado em voz alta o pensamento seguinte: devia haver, por ali, gente que gostava de carne de cavalo. Não queria deixar. Ayla ainda mais perturbada. A manada se distanciara: levava evidente vantagem sobre um pobre potro sobrecarregado. Mas continuaram a seguir o rastro assim mesmo. Era tudo o que podiam fazer no momento.

Os cavalos viraram para o sul, por algum motivo que só eles sabiam dirigindo-se de volta ao Rio da Grande Mãe. Em breve o terreno começou a subir, ficando áspero e pedregoso. O capim também escasseou. Ayla e Jondalar prosseguiram até alcançar um campo largo e sobranceiro ao resto da paisagem. Quando viram a água embaixo, compreenderam que estavam num platô no topo da elevação cuja base haviam contornado poucos dias antes. O rio que tinham de atravessar corria junto da encosta ocidental antes de lançar-se no Rio da Grande Mãe.

Quando os cavalos começaram a pastar, eles se aproximaram.

—    Lá está ela, Jondalar! — disse Ayla, excitada, apontando um dos animais.

—    Como pode ter certeza? Tem muitos da mesma cor.

Era verdade, mas a mulher conhecia bem a conformação da sua égua para enganar-se. Assoviou, e Huiin ergueu a cabeça.

—    Não falei? É ela!

Assoviou de novo, e Huiin começou a mover-se na sua direção. Mas a égua no comando, um animal gracioso e grande, de pelagem mais escura que a comum, cinza e ouro, percebeu o que a mais recente aquisição da horda ia fazer e se interpôs. O macho principal correu para ajudá-la. Era um cavalo estupendo, enorme, pardo, de crina opulenta, prateada, uma lista cinza nas costas, e cauda longa, também de prata, que ficava quase branca quando ele a agitava. Tinha as pernas compridas no mesmo tom de gris. Ele esbarrou nos jarretes de Huiin, empurrando-a para onde estavam as fêmeas, que assistiam à cena com nervoso interesse. Depois voltou para desafiar Racer. Escarvou, insolente, com a pata, e empinou, relinchando. Era o desafio à luta.

O jovem cavalo castanho recuou, intimidado, e não se deixou convencer a avançar, para grande frustração do homem e da mulher. A distância soltou um relincho dirigido a Huiin, que respondeu. Ayla e Jondalar desmontaram para discutir a situação.

—    O que faremos, Jondalar? Eles não vão permitir que a levemos.

—    Não se aflija, nós a teremos, nem que seja preciso usar os arremessadores de lança. Mas não creio que tenhamos de chegar a esse extremo.

Jondalar parecia tão seguro de si, que Ayla se acalmou. Não tinha pensado nos arremessadores. Não queria sacrificar qualquer cavalo, mas faria o que fosse necessário para recuperar Huiin.

—    Você tem um plano?

—    Estou convencido de que essa horda já foi caçada antes e tem medo de gente. Isso nos dá uma vantagem. O garanhão chefe imagina que Racer está querendo desafiá-lo. Ele e aquela égua avantajada estavam procurando impedir que ele furtasse uma égua do bando. De modo que temos de tirar Racer de cena. Huiin virá, se você a chamar. Se eu puder distrair o garanhão, você a ajuda a evitar a égua até ficar o suficiente perto de você para montá-la. Aí, se gritar com a outra égua ou espetá-la com a lança, se chegar muito perto, ela guardará distância e você irá embora.

Ayla sorriu, aliviada.

— Parece fácil. E o que faremos com Racer?

— Há uma pedra grande ali atrás, com alguns arbustos perto. Posso amarrar Racer em um deles. Será fácil para ele soltar-se, se fizer força, mas ele está acostumado a ficar preso e creio que ficará quieto.

Jondalar puxou, então, o cavalo pela corda e seguiu em largas passadas para o ponto que mencionara. Quando chegou lá, disse:

— Agora, tome o seu lançador e um ou dois dardos. Quanto a mim, vou tirar esta coisa das costas e deixá-la aqui. Atrapalha os meus movimentos.

"Uma vez que você esteja de posse de Huiin, apanhe Racer e vá me pegar.

O platô se estendia de norte para sul, com uma inclinação gradual ao norte que ficava mais pronunciada para leste. A ponta sudoeste se projetava no vazio. Do lado ocidental, olhando para o afluente que eles tinham cruzado, a queda era menor; mas no flanco sul era abrupta. Um precipício.

Quando Ayla e Jondalar se encaminharam para os cavalos o dia estava claro, com o sol alto no céu, embora já bem passado o zénite. Olharam para baixo, no limite oeste da esplanada, mas recuaram com medo que um passo em falso ou um tropeção os despejasse no abismo.

Ao se aproximarem dos cavalos, pararam para localizar Huiin outra vez. A horda — éguas, crias de um ano, potrancas — pastava no centro de um campo de capim alto e seco que lhes batia pela cintura. O líder estava um pouco afastado dos demais. Ayla pensou ver sua égua bem atrás, do lado sul. Assoviou, a égua cinza e ouro levantou a cabeça, e Huiin veio na direção deles. Com o arremessador em punho e uma lança no lugar. pronta para ser disparada, Jondalar se acercou bem devagar do cavalo pardo, procurando postar-se entre ele e a horda enquanto Ayla caminhava para as éguas, disposta a apartar Huiin.

Alguns dos cavalos que pastavam levantaram a cabeça e olharam. Mas não estavam olhando para ela! E Ayla teve a sensação de que alguma coisa estava errada. Voltou-se, procurando por Jondalar, e viu, com surpresa, uma fumaça, depois outra. Era o cheiro de queimado que sentia antes. O campo de capim seco estava em chamas em diversos lugares. E, de súbito, através do fumo, divisou figuras indistintas que corriam para os cavalos, gritando e brandindo archotes! Estavam empurrando os cavalos para a beira do campo, para o precipício. E Huiin estava entre eles!

Os cavalos começavam a ficar apavorados, mas em meio aos sons confusos que ouvia reconheceu um relincho vindo de outra direção. Era o cavalo de Jondalar que corria para a horda, arrastando a corda. Por que se soltara justamente naquele momento? E onde estava Jondalar? O ar ficava pesado de fumaça. Ela podia sentir a tensão e cheirar o medo contagioso dos animais procurando fugir do fogo.

Havia cavalo por todo lado, e ela já não podia ver Huiin. Mas racer vinha ao seu encontro, a todo galope, tomado, ele também, de terror. Ela assoviou alto e correu para ele, que diminuiu o passo. Tinha as orelhas deitadas para trás e rolava os olhos. Ela o alcançou, pegou a corda. Racer gritou e empinou, acossado por outros cavalos. A corda queimou a mão de Ayla quando ele quis correr, mas ela aguentou firme. E quando Racer colocou as patas dianteiras no chão, pegou-o pela crina e saltou-lhe lhe em cima.

Racer empinou outra vez e quase derrubou Ayla. Tinha medo ainda mas estava acostumado com aquele peso às costas. Havia um certo conforto em ser montado, e naquela mulher, com que já se familiarizara. Começou a trotar, mas era difícil para ela controlar um cavalo que Jondalar treinara, apesar de já ter montado Racer antes e de saber os sinais que o homem empregava. Mas não sabia comandar com corda ou rédea. Jondalar usava todas duas com a mesma facilidade, e o cavalo confiava no seu cavaleiro habitual. Não reagiu bem às primeiras tentativas de Ayla, que procurava Huiin com os olhos ao mesmo tempo em que tentava acalmá-lo. A ansiedade por Huiin atrapalhava.

Cavalos corriam em todas as direções agora, volteando em torno dela, relinchando estridentemente, e o medo deles era sensível às narinas da mulher. Ela assoviava, mas não sabia se poderia ser ouvida devido ao alarido. Sabia, sim, que fugir era urgente.

De súbito, através da poeira e da fumaça, viu que um cavalo diminuía o passo, virava-se, tentava resistir à debandada que o fogo provocara. Embora a pelagem estivesse agora da cor do ar enfumaçado, era, ser dúvida, Huiin. Ayla assoviou para encorajá-la e viu que sua amada égua hesitava. O instinto de acompanhar a fuga da horda era muito forte, mas aquele assovio sempre representara segurança, conforto e amor. E ela não temia o fogo. Fora criada com o cheiro de fogueiras por perto. Aquilo apenas significava a presença de gente.

Ayla viu que Huiin estava parada e que os outros animais passavam por ela, procuravam evitá-la. Incitou Racer a avançar, e Huiin começou a correr para ela. Mas o cavalo pardo surgiu e quis interceptá-la, desafiando Racer mesmo naquelas circunstâncias, querendo afastar sua nova aquisição daquele macho mais jovem. Dessa vez, porém, Racer respondeu, escavou o chão, e partiu contra o cavalo, esquecido de que era ainda muito jovem e inexperiente para lutar contra um garanhão mais velho.

Então, por algum motivo — mudança de ideia, contágio do pânico —, o cavalo pardo desistiu e se foi. Huiin fez menção de segui-lo, e Racer galopou para alcançá-la. Já agora a horda estava perto da beira do abismo, onde a morte certa a esperava. Pois a égua com pêlo da cor de trigo maduro e o jovem cavalo que ela gerara, de pêlo castanho-escuro. com a mulher às costas, estavam sendo arrastados com os demais! Com firme determinação, Ayla fez Racer parar perto de Huiin. Ele relinchou de medo, querendo correr em pânico com os demais, mas a mulher e os comandos que estava acostumado a obedecer o detiveram.

Então, todos os cavalos tinham passado por ela. Só Huiin e Racer ficaram, apavorados. O resto da horda desapareceu pela beira do precipício. Ayla estremeceu ouvindo o som distante e indistinto de relinchos e gritos. Ficou depois estupefata com o silêncio. Huiin, Racer, e ela mesma poderiam ter estado entre eles. Ayla respirou fundo, depois olhou em torno, procurando Jondalar.

Não o viu. O fogo movia-se agora para leste. O vento soprava contra direção do abismo — mas o fogo servira a seu propósito. Ela olhou para todos os lados sem ver Jondalar. Ayla e os dois cavalos estavam sós no campo queimado. Ela sentiu um nó na garganta. O que teria acontecido com Jondalar?

Ela apeou, deixando-se escorregar do lombo de Racer. Em seguida, montou Huiin sem esforço e, puxando Racer pela corda, voltou ao terreno onde se haviam separado. Examinou a área com cuidado, em busca de pegadas, mas o lugar estava todo pisoteado. Então, com o canto do olho divisou alguma coisa no chão. Com o coração aos saltos, correu a ver o que era: o arremessador de lanças de Jondalar!

Olhando mais de perto, viu pegadas. Obviamente de muitas pessoas, mas as de Jondalar também estavam lá. As marcas de seus grandes pés calçados com aquelas botas já surradas. Vira muitas daquelas pegadas em acampamentos para poder confundi-las com outras. Viu depois uma pequena mancha escura no capim. Tocou-a com a ponta do dedo. Era sangue.

Seus olhos se arregalaram, e o medo a pegou pela garganta. Ficou onde estava, para não apagar os rastros, e estudou tudo com atenção, procurando reconstituir o que acontecera. Era uma rastreadora experiente, e para os seus olhos treinados ficou perfeitamente claro que alguém ferira Jondalar e o levara embora. Acompanhou os rastros por algum tempo. Iam para o norte. Depois, tomou nota do lugar onde estava, para poder encontrar a pista outra vez. Então, montada em Huiin e puxando Racer, foi na direçâo oeste para recuperar a bagagem.

Tinha o cenho franzido, e essa expressão zangada refletia exatamente o que sentia. Mas havia que refletir antes de tomar qualquer decisão. Alguém atacara e levara Jondalar, e ninguém tinha o direito de fazer isso. Talvez ela não entendesse bem a maneira de ser dos Outros, mas que era assim ela estava ciente. Sabia também outra coisa: havia de resgatar Jondalar. Restava por decidir de que maneira.

Ficou aliviada vendo que a mochila dele estava ainda pacificamente encostada à pedra, como ele a deixara. Esvaziou-a para rearrumá-la, fazendo algumas alterações a fim de que Racer a pudesse carregar agora. Depois começou a enchê-la outra vez. Deixara de usar seu cinto naquele dia, era muito incômodo, com todas aquelas coisas penduradas. Pudera tudo na mochila. Olhou o cinto, agora, com a adaga cerimonial ainda enfiada nele. Acidentalmente espetou o dedo nela. Ficou olhando a minúscula gota de sangue e teve uma absurda vontade de chorar. Estava sozinha no mundo outra vez. Alguém levara Jondalar.

De súbito, pôs outra vez o cinto, completo com adaga, faca, machadinha e armas de caça. Ele não ficaria longe dela por muito tempo pôs a barraca no lombo de Racer mas guardou as peles de dormir. Quem podia saber que espécie de tempo encontrariam? Guardou também consigo uma bolsa d'água. Depois pegou um dos bolos de carne compactada e sentou-se na pedra para comer. Não que tivesse fome. Mas precisava alimentar-se para ter forças, acompanhar a pista de Jondalar, e acha-lo.

Outra preocupação maior era Lobo. Não podia sair procurando Jondalar Ele era mais do que um simples animal de estimação. Podia ser muito útil para rastrear uma pista. Esperava que voltasse antes da noite. Talvez devesse voltar por onde tinham vindo até acha-lo. Mas e se ele estivesse caçando? Talvez se desencontrassem. Apesar de estar impaciente, decidiu que seria melhor aguardá-lo.

Procurou organizar as ideias. O que deveria fazer? Sequer conseguia imaginar que alternativas tinha de ação. O próprio ato de sequestrar alguém era-lhe tão difícil de conceber que ficava difícil raciocinar a partir daí. A coisa toda lhe parecia desatinada e ilógica.

Interrompendo seu pensamento, ouviu um ganido, depois um queixume. Era Lobo, que vinha correndo, visivelmente feliz de vê-la. Ayla ficou muito aliviada.

—    Lobo! — gritou. — Você veio! E muito mais cedo do que ontem. Está melhor?

Depois de afagá-lo com alegria, pôs-se a apalpá-lo e viu confirmado o diagnóstico da véspera: o animal estava machucado mas não tinha fraturas.

Resolveu partir na mesma hora, para recuperar a pista enquanto havia luz. Atou Racer numa das tiras dos arreios de Huiin, depois montou na égua. Mandando que Lobo a seguisse, voltou pela trilha até o terreno onde encontrara as pegadas misturadas e a mancha de sangue, já agora marrom. Apeou para ver tudo de novo.

—    Temos de encontrar Jondalar, Lobo — explicou. O animal a olhava com um ar maroto.

Ayla se abaixou e, confortavelmente agachada, examinou de perto o terreno, fazendo um esforço para identificar pegadas individuais de modo a poder saber quantos eram os sequestradores e identificar o tamanho e a forma de cada impressão. O lobo esperava, sentado, olhando para ela. Sentia que algo de muito importante — e incomum — se passava. Finalmente, Ayla apontou para a mancha de sangue.

— Alguém feriu Jondalar e o levou. Temos de encontrá-lo.

O Lobo cheirou o sangue, abanou a cauda e latiu.

— Esta — continuou Ayla — é a pegada de Jondalar.

Era uma pegada característica, maior que as outras. Lobo farejou onde ela mostrara e encarou-a como que à espera do resto.

—    Esses o levaram — disse Ayla, mostrando os outros rastros de pés humanos.

Depois, teve uma ideia. Foi até Racer, apanhou o lançador de Jondalar, deu-o a Lobo para cheirar e repetiu:

— Temos de encontrar Jondalar. Lobo! Alguém se apoderou dele. Temos de trazê-lo de volta!

 

Jondalar se deu conta, bem devagar, de que estava desperto, mas a cautela fez com que se mantivesse imóvel até saber o que havia de errado. Porque havia alguma coisa indiscutivelmente errada.

Antes de mais nada, a cabeça doía. Entreabriu os olhos. A luz era pouca mas suficiente para que visse o chão sujo e frio, de terra batida, em que jazia. Tinha alguma coisa seca e empastada num dos lados da cara, mas quando tentou tocá-lo com a mão para ver o que era, descobriu que alguém lhe atara as mãos atrás das costas. Os pés também estavam amarrados.

Rolou de lado e olhou em volta. Achava-se no interior de uma pequena estrutura circular, uma espécie de armação ou gaiola de madeira rodeada de peles de bichos, a qual, a seu ver, se inseria em outra estrutura maior. Não se ouvia o vento, não havia correntes de ar. As peles não batiam como fariam se a estrutura estivesse ao ar livre. Embora fizesse algum frio, a temperatura não era gelada. Descobriu que lhe haviam retirado a parka.

Fez um esforço para sentar-se, mas logo ficou tonto e nauseado. A cabeça latejava, e havia um ponto que doía mais, logo acima da têmpora esquerda, junto do resíduo seco, agrumado. Imobilizou-se quando ouviu vozes que se aproximavam. Duas mulheres, falando língua desconhecida, embora detectasse algumas palavras que soavam vagamente como Mamutói.

— Alô! Vocês aí fora. Estou acordado — disse, na língua dos Caçadores de Mamutes. — Alguém pode vir soltar-me? Estas cordas são desnecessárias. Há algum mal-entendido. Não quero fazer mal a ninguém. Há algum mal-entendido. Não quero fazer mal a ninguém.

As vozes cessaram por um momento. Depois continuaram, mas ninguém respondeu nem entrou.

Jondalar, de bruços no chão, procurou lembrar-se como fora parar ali e o que poderia ter feito que levasse qualquer pessoa a manietá-lo. Em sua experiência, as pessoas só eram amarradas quando se portavam como loucas e tentavam molestar molestar outras pessoas. Lembrava-se de uma cortina de fogo, de cavalos correndo para o precipício da extremidade do campo. Havia pessoas perseguindo os cavalos, e ele se vira apanhado no meio da confusão.

Lembrou-se, depois, de ter visto Ayla montada em Racer e tendo dificuldade para controlar o animal. Não entendia como o cavalo podia estar lá se ele o deixara amarrado a um arbusto.

Jondalar teve, então, um momento de pânico. Temeu que o cavalo, reagindo segundo o instinto da sua espécie, se tivesse precipitado no abismo, levando Ayla consigo. Lembrou-se de ter corrido para eles com o arremessador de lanças pronto para entrar em ação. Por mais que gostasse daquele seu cavalo escuro, preferia tê-lo morto a vê-lo despencar com Ayla daquela altura toda. Essa era a última coisa de que se recorda. À exceção de uma dor violenta e repentina. Depois, tudo escurecera.

Alguém me feriu, pensou. E foi golpe violento, porque não sei de mais nada. Mas fui trazido para cá, e minha cabeça ainda dói. Será que pensaram que estava arruinando a estratégia de caça deles? Quando ficara conhecendo Jeren e seus caçadores, fora a mesma coisa. Ele e Thonolan tinham inadvertidamente espantado uma horda de cavalos que os caçadores empurravam para uma armadilha. Mas Jeren compreendera, passada a raiva, que a interferência não fora intencional, e eles haviam ficado amigos. Não estraguei a caçada deste povo. Ou estraguei?

Quis, outra vez, sentar-se. Dobrou as pernas na posição fetal, depois procurou rolar e ficar sentado. Teve de fazer diversas tentativas, e a cabeça doeu com o esforço, mas acabou conseguindo. Sentou-se de olhos fechados, à espera que a dor diminuísse. Quando isso aconteceu, sua preocupação com Ayla e com os animais o assaltou de novo. Huiin e Racer teriam caído no precipício? E teria Racer levado Ayla lá?

Estaria ela morta? Sentia o coração disparar com o medo de que isso tivesse acontecido. Estariam perdidos mesmo, Ayla e os dois cavalos? E por onde andaria Lobo? Quando o animal ferido chegasse ao campo, não encontraria mais ninguém. Jondalar podia vê-lo farejando em torno, procurando seguir um rastro que não levava a lugar nenhum. O que faria, então? Lobo era bom caçador, mas estava ferido. Poderia caçar para sobreviver naquele estado? Sentiria falta de Ayla e do resto da sua alcateia. Não estava acostumado a viver sozinho. Como iria fazer, o pobre? O que aconteceria quando encontrasse um bando de lobos selvagens? Seria capaz de defender-se?

Mas ninguém virá? Gostaria de um pouco de água, pensou Jondalar. Elas me ouviram, por certo. Tenho fome, também, mas principalmente sede. A boca ficava cada vez mais seca, a vontade de tomar água cada vez mais forte.

— Estou com sede! — gritou. Não me podem trazer um pouco de água? Que espécie de gente são vocês? Amarram um homem e não lhe dão nem água!

Ninguém respondeu. Depois de gritar a mesma coisa diversas vezes, decidiu poupar o fôlego. Aquilo só servia para dar-lhe mais sede ainda, e a dor na cabeça redobrava. Pensou em deitar-se outra vez, mas tivera tanto trabalho para sentar-se que duvidava poder fazê-lo de novo.

À medida que o tempo passava foi ficando taciturno. Estava fraco, à beira do delírio, e imaginava o pior. Estava convencido da morte de Ayla e dos dois cavalos também. Quando pensava em Lobo, era para visualizar o bicho errando pelo mato, sozinho, doente, incapaz de caçar, procurando Ayla, e vulnerável ao ataque de lobos da região, hienas, outras feras... o que era melhor, afinal, que morrer de inanição. Talvez ele também fosse deixado ali para morrer de sede. Chegou a desejar que isso acontecesse. Identificado à sorte que imaginara para o lobo, o homem decidiu que ele e Lobo eram os últimos sobreviventes daquele grupo incomum de viajantes e que logo eles também desapareceriam.

Foi arrancado ao desespero pelo som de passos, que se aproximavam. A cortina da porta da estrutura em que o tinham metido se abriu e ele pode ver, pela fresta, uma figura feminina de mãos na cintura, pernas abertas, projetada em silhueta contra a luz de archotes. Ela deu uma ordem ríspida. Duas outras mulheres entraram, pegaram-no pelos braços, de um lado e de outro, e arrastaram-no para fora. Puseram-no de joelhos diante da figura, com as mãos e os pés amarrados. Sua cabeça latejava e ele se apoiou precariamente a uma das mulheres. Ela o empurrou.

A mulher que ordenara que o trouxessem olhou-o por um momento ou dois, depois riu. Era um som áspero e dissonante, desagradável, demente. Jondalar se encolheu involuntariamente, com um arrepio de medo. A figura lhe dirigiu algumas palavras. Ele não entendeu o que ela dizia mas se empertigou e a olhou. Tinha a visão turva e cambaleava um pouco. A mulher fechou a cara, deu mais algumas ordens, e foi embora. As mulheres que o seguravam soltaram-no para segui-la, juntamente com várias outras. Jondalar caiu de lado, tonto e fraco.

Sentiu que lhe cortavam as cordas dos pés; depois, que lhe derramavam água na boca. Quase engasgou, mas procurou avidamente sorver um pouco. A mulher que segurava a bolsa d'água disse algumas palavras em tom de desgosto e passou a bolsa para as mãos de um homem velho. Este se adiantou, aproximou a bolsa da boca de Jondalar, e inclinou-a, não com mais delicadeza propriamente, mas com mais paciência, de modo que Jondalar conseguiu engolir e, finalmente, saciar sua sede voraz.

Antes, porém, que se considerasse satisfeito, a mulher disse uma palavra e o homem recolheu a água. Então ela obrigou Jondalar a levantar-se.

Ele cambaleou quando foi empurrado para fora do abrigo, onde havia um grupo de homens. Estava frio, mas ninguém lhe devolveu a parka ou desamarrou-lhe as mãos para que ele pudesse aquecê-las, esfregando-as uma na outra.

O ar frio, no entanto, o reanimou, e ele viu que alguns dos homens presentes também tinham as mãos atadas atrás das costas. Observando-os de perto, descobriu que eram de várias idades, desde muito jovens — verdadeiros meninos, na verdade — até anciãos. Todos pareciam emaciados, frágeis e sujos, com roupas inadequadas, em farrapos, e cabelos emaranhados. Poucos exibiam feridas não tratadas, cobertas de sangue seco e terra.

Jondalar quis falar com o vizinho mais próximo em Mamutói, mas o homem abanou a cabeça. Jondalar imaginou que ele não entendera, e tentou Xaramudói. O homem olhou para outro lado, justamente quando uma mulher que tinha uma lança na mão se aproximou deles e ameaçou Jondalar com a arma, dizendo-lhe qualquer coisa. As palavras eram ininteligíveis, mas a atitude clara, e ele ficou sem saber se o homem não lhe respondera por não conhecer as línguas ou por não querer.

Várias mulheres com lanças se distribuíam entre os prisioneiros. Uma delas deu um comando, e os homens se puseram em marcha. Jondalar aproveitou a oportunidade para olhar em torno e ver se descobria onde estava. O estabelecimento, que consistia em diversas casas circulares, lhe pareceu vagamente familiar, o que era estranho porque a região lhe era de todo desconhecida. Depois percebeu que era a forma das construções. Pareciam pavilhões Mamutói. Embora não fossem exatamente iguais aos que ele conhecia, pareciam feitos do mesmo modo, provavelmente com emprego de ossos de mamutes como apoio estrutural, cobertos de palha, e, depois, de barro.

Caminharam para o alto de uma colina, o que lhe deu uma visão mais ampla. O campo era do tipo estepe ou tundra, plano, sem árvores, com um subsolo congelado que derretia no verão e apresentava uma superfície barrenta e negra. A tundra só conseguia alimentar ervas raquíticas, mas na primavera uma floração conspícua acrescentava cor e beleza à paisagem, e permitia alimentar o boi almiscarado, a rena e outros animais, Havia também faixas de taiga, com árvores sempre-verdes de altura tão uniforme que suas copas pareciam tosadas no alto por algum gigantesco instrumento de cortar — como de fato o eram. Ventos gelados, carregados de agulhas de saraiva ou fragmentos de loess arenoso, podavam todo galho ou ponta que ousasse passar acima dos outros.

Mais no alto Jondalar viu uma manada de mamutes pastando e, um pouco mais perto, renas. Sabia que havia cavalos na região — e caçadores de cavalos —, e achava que o bisonte e o urso também a frequentavam nas estações mais clementes. A terra parecia-se muito mais coma sua, com as estepes secas da parte oriental, pelo menos no que dizia respeito aos tipos de plantas existentes, se bem que a vegetação dominante fosse diversa e, também, provavelmente, a mistura proporcional de animais.

Percebeu, com o canto do olho, algum movimento à sua esquerda. Virou-se com tempo para ver uma grande lebre branca atravessara a colina perseguida por uma raposa ártica. Enquanto olhava, o animal. que era gordo, parou e fugiu em outra direção, passando pela caveira meio decomposta de um rinoceronte lanudo, e metendo-se, depois, na sua toca.

Onde existem mamutes e rinocerontes, pensou Jondalar, existe também leões, e com outros animais gregários, hienas provavelmente, também leões, e com outros animais gregários, hienas provavelmente, e também, por certo, lobos. Abundância de carne, de animais peludos, de plantas alimentares. Uma terra de grande fertilidade. Fazer esse tipo de avaliação era, para ele, uma segunda natureza, como, em maior ou menor grau, para muita gente. Viviam, todos, da terra, e a observação detida dos seus recursos era necessária.

Quando o grupo chegou a um terreno plano e alto, no flanco da colina, parou. Jondalar olhou morro abaixo e viu que os caçadores que viviam naquela área gozavam de uma vantagem singular. Não só podiam ver de longe os animais, mas eles tinham de passar, embaixo, por um estreito corredor entre o rio e os paredões verticais de arenito. Seria fácil caçá-los, inclusive daquele mirador. Por que, então, estariam caçando cavalos perto do Rio da Grande Mãe?

Um lamento longo e lúgubre se fez então ouvir, obrigando Jondalar a desviar a atenção do cenário para concentrá-la no palco em que se encontrava. Uma figura feminina, mulher velha, de longos cabelos grisalhos desgrenhados, avançava apoiada em duas mulheres mais jovens. Era ela quem gritava, tomada de evidente desespero. De repente, conseguiu soltar-se, caiu de joelhos, e se dobrou sobre alguma coisa que estava no chão. Jondalar avançou um pouco, a ver do que se tratava. Ele era muito mais alto que a maioria dos circunstantes e bastaram-lhe dois ou três passos para entender o motivo da dor da mulher.

Aquilo era, obviamente, um funeral. Estendidos no solo estavam três corpos — de jovens, ao que lhe pareceu, adolescentes, todos; ou teriam pouco mais de vinte anos. Dois eram, sem dúvida, do sexo masculino. Tinham barba. O mais alto talvez fosse o mais jovem. Seus pêlos faciais eram finos e ainda esparsos. A mulher de cabelos grisalhos chorava sobre o cadáver do outro, cujo cabelo castanho e cuja barba curta eram mais aparentes. O terceiro era bastante alto, mas magro, e alguma coisa no corpo e na maneira pela qual jazia indicava que tivera alguma deformidade física. Jondalar não viu sinal de barba, o que lhe deu a impressão de que o corpo fosse de mulher. Mas podia ser também o corpo de um tomem alto e glabro.

Os detalhes das vestes não ajudavam muito. Todos tinham as pernas enroladas em couro e usavam túnicas soltas, que disfarçavam os traços. Essas roupas lhe pareceram novas, mas não tinham qualquer decoração. Era como se alguém não desejasse que eles fossem reconhecidos no outro mundo e tivesse procurado torná-los anónimos.

A mulher grisalha foi puxada do chão, quase arrastada, embora não com violência, para longe do cadáver do jovem pelas duas mulheres que tinham entrado com ela. Então, outra mulher avançou, e alguma coisa nela fez com que Jondalar olhasse duas vezes. Seu rosto era curiosamente oblíquo e assimétrico, com um dos lados como que repuxado para trás e um pouco menor que o outro. Ela não procurava esconder isso. Seus cabelos eram claros, talvez cinzentos, puxados para cima e arranjados em um coque no alto da cabeça.

Jondalar achou que ela teria a idade de sua mãe, e se movia com a mesma graça e dignidade, embora não houvesse qualquer semelhança física entre ela e Marthona. A despeito da sua ligeira deformidade, a mulher não deixava de ser atraente, e o rosto impunha respeito. Quando seu olhar cruzou com o de Jondalar, ele percebeu que estava olhando fixamente, mas ela desviou os olhos antes dele, com uma certa precipitação, achou. E quando começou a falar, Jondalar percebeu que ela oficiava a cerimónia fúnebre. Devia ser uma mamute, achou ele, uma pessoa capaz de comunicar-se com o mundo dos espíritos, uma zelandonii para aquela gente.

Sentiu que outra mulher o fitava, do lado da congregação. Era alta, bastante musculosa, tinha traços fortes, mas uma certa formosura, com cabelos castanhos e, o que era interessante, olhos muito escuros. Não olhou para outro lado quando ele a encarou, continuou a encará-lo sem constrangimento. Tinha a estatura e a aparência das mulheres por quem ele costumava interessar-se, pensou, mas o sorriso dela o deixava desconfortável.

Notou, então, que ela mantinha as pernas bem separadas e tinha as mãos na cintura e soube, subitamente, quem ela era: a mulher que lhe rira na cara de maneira tão ameaçadora. Teve vontade de recuar e esconder-se atrás dos outros homens, sabendo que não poderia fazer isso nem que, de fato, tentasse. Não era só bem mais alto do que os demais, e também mais saudável e mais musculoso que eles. Seria conspícuo onde quer que estivesse.

A cerimónia lhe pareceu bastante perfunctória, como se fosse uma obrigação desagradável e não um rito solene, relevante. Sem mortalha ou qualquer espécie de sudário, os corpos foram simplesmente carregados um por um, para uma cova comum, rasa. Estavam moles quando os ergueram do chão. Também não fediam. O cadáver mais alto e magro foi primeiro. Deitaram-no de costas, puseram-lhe um pouco de pó de ocre. vermelho, na cabeça, e também, o que era peculiar, na pélvis, na poderosa área da geração, o que fez Jondalar pensar de novo que talvez se tratasse de uma fêmea.

Os outros dois foram enterrados de modo diferente, mas ainda mais estranho. O macho de cabeleira castanha foi estendido na cova comum, à esquerda do primeiro defunto, do ponto de observação de Jondalar, mas deitado de lado, olhando para o outro corpo. O braço foi estendido, de modo a que a mão, inerte, ficasse sobre a região púbica pintada de vermelho. O terceiro corpo foi quase jogado na sepultura, de bruços, do lado direito do primeiro corpo, o principal. Ocre vermelho foi polvilhado na cabeça dos dois. Era, seguramente, uma proteção. Mas para quem? E contra quem? Jondalar não sabia.

Logo que a terra solta começou a ser lançada em cima dos cadáveres, a velha descabelada se libertou outra vez dos que a seguravam, correu até a cova, e lançou alguma coisa lá dentro. Jondalar viu duas facas de pedra e umas poucas pontas de lança feitas de sílex.

A mulher de olhos escuros adiantou-se, obviamente encolerizada. Deu uma ordem a um dos homens, apontando a cova. Ele se encolheu todo mas não saiu do lugar. Então a Xamã avançou e falou, abanando a cabeça todo o tempo. A outra gritou, de raiva e frustração, mas a Xamã não cedeu nem parou de abanar a cabeça. A outra recuou e lhe deu uma bofetada com as costas da mão. Houve uma espécie de arquejo coletivo, um grito sufocado em muitas gargantas. Depois, a mulher se retirou, furiosa, seguida por uma coierie de fêmeas armadas de lanças.

A Xamã não se deu por achada. Não tomou conhecimento do insulto sequer levou a mão ao rosto, embora Jondalar pudesse ver, mesmo de onde estava, a vermelhidão que o tomava. A sepultura foi enchida rapidamente com terra, que tinha de mistura fragmentos de carvão e pedaços de madeira meio calcinada. Devem ter feito grandes fogueiras aqui, pensou Jondalar. Desviou o olhar para o estreito corredor lá embaixo. Ocorreu-lhe, então, que aquele mirante era um observatório privilegiado de onde se podiam fazer sinais com fogo quando animais — ou qualquer outra coisa — se aproximassem.

Logo que os corpos ficaram cobertos, os homens foram conduzidos colina abaixo e levados para uma área cercada por uma alta paliçada feita de troncos de árvores postos lado a lado e amarrados uns aos outros. Ossos de mamute estavam empilhados contra uma parte da cerca, e Jondalar se perguntou qual o motivo disso. Ele foi separado dos outros e levado para a casa de barro e, dentro dela, para o pequeno recinto circular, coberto de couro, que já ocupara. Antes de entrar, observou como era feito.

A armação, robusta, se compunha, basicamente, de troncos finos de árvores jovens, cuja parte mais grossa era enterrada no chão. Depois, os troncos eram encurvados para o centro e atados uns aos outros. Os lados eram fechados com couros, mas o que servia de cortina na entrada, e que ele vira de dentro, era fechado do lado externo por uma espécie de portão, que podia ser amarrado de fora com segurança.

Uma vez lá dentro, Jondalar prosseguiu no seu exame da estrutura. Era completamente nua. Sequer havia um catre ou enxerga em que pudesse dormir. O teto baixo não lhe permitia ficar de pé, exceto no meio, mas ele baixou a cabeça e andou em torno do espaço exíguo e escuro, estudando-o com cautela. Observou que os couros eram velhos e gastos. Alguns estavam já em tiras. Pareciam, até, podres, e haviam sido costurados como que às carreiras. Havia falhas entre as seções, de modo que lhe era possível enxergar um pouco da área circundante. Jondalar se sentou no chão e ficou olhando a entrada da casa, que estava aberta. Passaram algumas pessoas, mas nenhuma entrou.

Depois de algum tempo, ele teve vontade de mijar. De mãos amarradas, sequer podia abrir a roupa para aliviar-se. Se ninguém aparecesse para desamarrá-lo, e logo teria de urinar nas calças. Além disso, seus pulsos começavam a ficar esfolados, onde as cordas cortavam a pele. Começava a ficar furioso com a situação. Aquilo era ridículo! Já fora longe demais.

— Vocês — gritou. — Por que me mantêm assim, preso? Não fiz mal a ninguém! Por que me prendem assim, como um animal numa jaula? Quero me soltem as mãos! Se ninguém o fizer, vou mijar nas calças!

Nada aconteceu. E ele se pôs a berrar de novo.

— Alguem aí fora! Venha soltar as minhas mão! Que espécie de gente são vocês? Ficou de pé e se encostou com força na estrutura. Era sólida, mas cedeu um pouco. Fie ganhou distância, tanta quanto podia, e meteu o ombro na parede para deitá-ia abaixo. Ela cedeu um pouco, e ele forçou mais. Com grande satisfação, ouviu um estalo. Um pedaço de madeira quebrara. Recuou, pronto a repetir a manobra, mas ouviu que alguém entrava correndo na construção principal.

— Era tempo! Tirem-me daqui! Tirem-me daqui agora mesmo!

Ouviu os movimentos de alguém que procurava destrancar o portão. Então a cortina da porta foi levantada, e várias mulheres surgiram à vista, com lanças apontadas para ele. Jondalar ignorou-as e saiu.

— Desamarrem as minhas mãos! — disse , virando-se de costas para que elas pudessem ver os amarrilhos dos pulsos. — Tirem essas cordas de mim!

O velho que o ajudara a beber no primeiro momento deu um passo em frente.

—    Zelandonii... Você... de... longe — disse, lutando, obviamente, para lembrar as palavras certas.

Jondalar não se dera conta de que, na sua fúria, tinha falado na língua nativa.

—    Você sabe Zelandonii? — disse ao homem, com surpresa. Mas sua necessidade premente falou mais forte. — Diga-lhes que me soltem ou vou mijar nas calças!

O homem falou com uma das mulheres. Ela respondeu, sacudindo negativamente a cabeça, mas o homem insistiu. Por fim, ela tirou uma faca pequena de uma bainha que tinha na cintura e, dando uma ordem que fez com que as demais apontassem suas lanças para o prisioneiro, avançou e mandou que ele se virasse. Ele obedeceu e esperou. Estão precisando muito de alguém que saiba trabalhar com sílex!, pensou. A faca da mulher era cega.

Depois de um tempo que lhe pareceu interminável, as cordas tombaram por terra. De imediato, ele se curvou para abrir a braguilha e, apitado como estava para urinar, tirou o membro para fora sem nenhuma vergonha e procurou freneticamente um canto onde aliviar-se. As mulheres das lanças, porém, não deixaram que ele saísse do lugar. Como protesto e desafio, ele se pôs de frente para elas e, com um grande suspiro de alívio, mijou.

Ficou a observá-las durante a operação. O longo jorro amarelo esvaziou bem devagar a sua bexiga, fazendo fumaça ao tocar o solo frio e cheirando forte. A mulher no comando pareceu horrorizada, embora se esforçasse para ficar impassível. Duas das outras mulheres viraram a cara ou desviaram o olhar. Houve, porém, as que pareceram fascinadas como se nunca tivessem visto um homem urinar. O velho fez um esforço inaudito para não rir. Mas seu deleite era óbvio.

Quando Jondalar acabou, guardou o pênis e encarou as carcereiras, decidido a não deixar que o manietassem de novo. E, dirigindo a palavra ao homem, apresentou-se formalmente.

— Sou Jondalar, dos Zelandonii, e estou no curso de uma Jornada.

— Pois viaja longe, Zelandonii. Talvez... longe demais.

Viajei muito mais longe que isso. Passei o último inverno com os Mamutói. Estou voltando para casa, agora.

— Foi o que pensei ter ouvido de você, anteriormente — disse o sujeito, passando a falar na língua em que era muito mais fluente. — Alguns aqui, entendem Mamutói, mas os Mamutói em geral vêm do norte. Você veio do sul.

— Se me ouviu falar antes, por que não se apresentou? Sei que há um mal-entendido. Por que me aprisionaram?

O velho abanou a cabeça, desconsolado na opinião de Jondalar.

—    Logo ficará sabendo, Zelandonii.

Subitamente, a mulher interrompeu o diálogo, com uma furiosa explosão de palavras. O ancião se retirou, apoiando-se num cajado.

—    Espere! Não se vá! Quem é você? Quem é esta gente? E quem é aquela mulher que mandou que me prendessem?

O velho olhou por cima do ombro.

—    Aqui me conhecem por Ardemun. Estes são os S'Armunai. E a mulher é... Attaroa.

Jondalar não deu a devida atenção à ênfase que ele pusera no nome da mulher.

—    S'Armunai? Onde foi que ouvi esse nome antes? Espere... eu me lembro. Laduni, o chefe dos Losadunai...

—    Laduni é o líder? — disse Ardemun.

—    Sim. Ele me falou dos S'Armunai, quando viajamos para o leste, mas meu irmão não quis parar — disse Jondalar.

— Ainda bem. E é uma lástima que esteja aqui, agora.

— Por quê?

A mulher que comandava as guardas armadas de lança interrompeu de novo com uma ordem.

—    Eu também já fui um Losadunai. Desgraçadamente, fiz, como você, uma Jornada... — disse Ardemun, ao sair, manquitolando, da casa.

Quando o viu pelas costas, a comandante falou rispidamente com Jondalar. Ele entendeu que ela queria levá-lo para algum lugar, mas resolveu fingir completa ignorância.

— Não compreendo o que diz. Terá de chamar Ardemun de volta — disse.

Ela se dirigiu de novo a ele, mais zangada ainda agora, e espetou-lhe a ponta da lança. A pele se rompeu, e um fio de sangue escorreu pelo braço de Jondalar. Seus olhos refletiram a raiva que sentiu. Tocou a ferida com os dedos, depois olhou o sangue na mão.

— Não era necessá... — começou a dizer.

Mas a mulher o interrompeu com mais um monte de palavras. As outras o rodearam. A chefe se afastou, e elas mostraram a Jondalar que devia acompanhá-la, chuchando-o com os cabos das lanças. Lá fora, o ar frio lhe deu arrepios. Eles saíram da paliçada e embora Jondalar não pudesse ver lá dentro, sentiu que estava sendo observado pelos que estavam detidos através de frestas nas paredes. O sentido daquilo tudo lhe escapava. Animais eram postos em lugares assim, para que não escapassem. Era parte da arte da caça. Mas por que gente? E quantos haveria trancafiados ali?

Não é tão grande assim, a paliçada. Não pode haver tanta gente lá. Imaginava o trabalho que teria custado fechar mesmo uma pequena área com madeira. As árvores eram raras na região. Havia alguma vegetação arbustiva, mas as árvores usadas para aquela cerca tinham vindo do vale embaixo. Teria sido preciso cortar as árvores lá mesmo, retirar os galhos, carregar tudo morro acima, cavar buracos suficientemente profundos para que os troncos ficassem direitos, tecer cordas e atilhos, e depois atar as árvores umas às outras. Por que teria aquele povo despendido tanto esforço por algo que não fazia sentido — ou fazia muito pouco?

Jondalar foi levado até um arroio, quase todo congelado, onde Attaroa e diversas mulheres vigiavam enquanto uns poucos homens jovens carregavam ossos de mamute, grandes e pesados. Todos os carregadores pareciam famélicos, e ele não podia imaginar de onde tiravam as forças para trabalhar.

Attaroa o olhou dos pés à cabeça. Só uma vez. Depois, ignorou-o. Jondalar esperou, ainda intrigado com o comportamento daquele estranho povo. Depois de algum tempo, ficou gelado até os ossos, e começou a andar um pouco, a pular parado algumas vezes, e a bater com os braços no corpo para aquecer-se. Ficava mais e mais furioso com a estupidez de tudo aquilo e, finalmente, decidindo que não mais se sujeitaria a tratamento tão absurdo, fez meia-volta e se foi, rumo à casa. Lá pelo menos estaria livre do vento. Seu movimento, por imprevisto, pegou as sentinelas de surpresa, e quando elas levantaram as armas, ele as afastou com o braço e continuou a andar. Ouviu gritos, mas os ignorou.

Ainda sentia frio quando entrou. Procurando algo com que aquecer-se, arrancou a cobertura de couro da gaiola interior e envolveu-se nela. Mas já as mulheres chegavam. A que o ferira com a lança estava entre elas. E, obviamente furiosa, procurou alcançá-lo outra vez. Ele se esquivou agilmente e segurou a lança dela com as mãos, mas tudo foi interrompido por uma grande gargalhada de zombaria.

Zelandonii! — exclamou Attaroa, e disse mais algumas coisas que ele não entendeu.

Ela quer que você saia — disse Ardemun. Jondalar não o vira, junto da porta. — Ela o acha inteligente, um pouco demais para seu gosto. Entendo que ela o deseja onde possa cercá-lo com o seu esquadrão de guerreiras.

—    E se eu não sair?

—    Então, provavelmente, ela mandará matá-lo aqui e agora.

Essas palavras foram ditas, em impecável Zelandonii, por uma das mulheres. E sem traço de sotaque! Jondalar olhou com grande surpresa para a direção de onde vinha a voz. Era a Xamã!

— Se sair, Attaroa deixará que viva um pouco mais. Ela está interessada em você, mas acabará por matá-lo, de qualquer maneira.

— Mas por quê? O que represento para ela? — disse Jondalar.

— Uma ameaça.

— Uma ameaça? Mas eu nunca a ameacei.

— Você ameaça a autoridade dela. Ela quer usar você como exemplo.

Attaroa interrompeu, e embora Jondalar não entendesse o que dizia, a fúria mal contida das palavras da mulher parecia dirigida à Xamã. A resposta da mulher mais velha foi moderada, mas não havia na sua expressão ou entonação sinais de medo. Depois da troca de palavras, ela explicou a Jondalar.

— Attaroa queria saber o que foi que eu lhe disse. Eu lhe contei.

— Diga-lhe que concordo em sair.

Quando a mensagem foi transmitida, Attaroa riu, disse alguma coisa, e saiu.

—    O que ela disse?

— Que sabia disso. Os homens aqui fazem qualquer coisa para prolongar por mais tempo suas vidas miseráveis.

Nem tudo, talvez — disse Jondalar, saindo. Já à porta, perguntou: — Qual o seu nome?

— S'Armuna.

— Achei que seria. E como fala tão bem a minha língua?

—    Vivi com seu povo por algum tempo — disse S'Armuna, mas cortou logo o óbvio desejo dele de saber mais. — É uma história comprida.

Embora o homem esperasse que ela lhe perguntasse, em troca, quem era, S'Armuna simplesmente voltou-lhe as costas. Ele deu, assim mesmo, a informação.

— Eu sou Jondalar, da Nona Caverna dos Zelandonii.

Os olhos de S'Armuna ficaram arregalados de surpresa.

— A Nona Caverna?

—    Sim — continuou ele. Poderia ter continuado, enumerando seus parentescos, mas a expressão no rosto dela o deteve, embora não soubesse ler o seu sentido. Um momento depois, a expressão da mulher já não mostrava nada, e ele ficou pensando se não teria imaginado aquilo.

— Ela está à sua espera — disse S'Armuna, saindo.

Attaroa estava sentada, do lado de fora, num banco alto, coberto com uma pele, e posto sobre uma plataforma de terra batida, que fora tirada do chão do grande aposento que ficava atrás dela, e era meio subterrâneo. Dava para a área cercada e, ao passar pela cerca, Jondalar se sentiu outra vez observado pelas frestas.

Ao chegar perto da mulher, teve certeza de que a pele em que ela sentava era de lobo. O capuz da parka que Attaroa usava, lançada para as costa, tinha um debrum de pele de lobo, e ela exibia, no pescoço, um colar feito principalmente de caninos de lobos, embora houvesse também, no conjunto, alguns dentes de raposa ártica e um, pelo menos, de urso das cavernas. Ela segurava na mão uma espécie de cetro, um bastão entalhado como o Bastão Falante que Talut usava quando havia assuntos relevantes em pauta ou controvérsias por resolver. Aquele bastão ajudara mais de uma vez a manter em ordem os debates. Quem o empunhasse tinha o direito de falar, e quando outra pessoa achava que tinha algo pertinente a dizer precisava pedir a palavra, isto é, o Bastão Falante.

Havia alguma outra coisa familiar naquele bastão que ele não sabia identificar. Poderia ser o motivo nele gravado? Mostrava a forma estilizada de uma mulher sentada, com uma série de círculos concêntricos representando seios e barrigas, e uma cabeça triangular e insólita, estreita no queixo, e um rosto de desenho enigmático. Não era obra Mamutói de talha, mas lhe dava assim mesmo a impressão de coisa conhecida.

Diversas das mulheres rodeavam Attaroa. Outras, que ele não havia ainda visto, algumas com crianças, poucas, estavam de pé nas proximidades. Ela o estudou por alguns minutos. E quando falou, encarou-o todo o tempo. Ardemun, sentado a um lado, começou a fazer uma tradução hesitante em Zelandonii. Jondalar quis sugerir que ele falasse Mamutói, mas S'Armuna interrompeu, disse alguma coisa a Attaroa, depois o olhou.

—    Eu traduzo — anunciou.

Attaroa fez um comentário zombeteiro que provocou risos. S'Armuna não traduziu.

— Ela falava comigo — disse, impassível. E foi tudo. A mulher sentada falou de novo, dirigindo-se dessa feita a Jondalar.

— Falo agora como Attaroa — explicou S'Armuna, começando a traduzir. — Por que veio até aqui?

— Não vim voluntariamente. Fui trazido para cá, de pés e mãos atados — disse, enquanto S'Armuna traduzia, quase simultaneamente. — Estou no curso de uma viagem. Ou estava. Não sei por que me amarraram. Ninguém se deu ao trabalho de me dizer.

— De onde vem? — perguntou Attaroa pela boca de S'Armuna, ignorando o que ele dissera.

— Passei o inverno com os Mamutói.

— Você mente! Vinha do sul.

— Vim pelo caminho mais longo. Queria visitar parentes que moram perto do Rio da Grande Mãe, na ponta das montanhas orientais.

— Mente de novo. Os Zelandonii vivem longe de nós, para oeste. Como pode ter parentes do outro lado?

— Não minto. Eu viajei com meu irmão. Ao contrário dos S'Armunai, os Xaramudói nos receberam muito bem. Meu irmão tomou mulher lá. Eles são meus parentes por parte dele.

E então, cheio de uma espécie de santa indignação, Jondalar começou a falar. Era a primeira vez que tinha oportunidade de desabafar e com alguém que ouvia.

—    Não sabe que aqueles que viajam têm direito de passagem? A maior parte das pessoas acolhe os estrangeiros. Trocam experiências e histórias. Mas não aqui! Aqui me feriram na cabeça e, embora machucado, não me trataram. Ninguém me deu de comer ou de beber. Tiraram de mim a minha parka de pele, que não me foi devolvida, nem mesmo quando me obrigaram a sair para o frio.

Quanto mais falava, mas furioso ia ficando. Fora muito maltratado.

— Fui posto fora de casa, e deixado de pé interminavelmente, em jejum. Nenhum povo na minha longa Jornada me tratou assim. Até os animais das campinas partilham seu pasto, sua água. Que espécie de gente são vocês?

Attaroa o interrompeu.

— Por que tentou furtar a nossa carne? — Ela estava irritada, mas não queria mostrá-lo. Embora soubesse que tudo o que ele dizia era verdade, não gostava que lhe dissessem que era pior que outras pessoas, sobretudo em público, diante do seu povo.

— Eu não quis furtar a sua carne — disse Jondalar, negando enfaticamente a acusação. A tradução de S'Armuna era tão fluente e rápida, e a necessidade de comunicar-se de Jondalar tão intensa, que ele quase se esquecia da intérprete. Sentia como se estivesse falando diretamente com Attaroa.

— Mentira! Você investiu de lança na mão contra aquela horda de cavalos que nós estávamos perseguindo.

— Não estou mentindo! Eu queria apenas salvar Ayla. Ela montava um daqueles cavalos, e eu não podia deixar que os outros a levassem para o abismo.

—    Ayla?

—    Você não a viu? Ayla é a mulher com quem estou viajando.

Attaroa riu.

— Você viaja com uma mulher que monta cavalos? Se você não é um contador ambulante de histórias, então errou a vocação. — Attaroa se curvou para a frente e espetou o dedo no peito dele para reforçar o Que dizia. — Tudo falso! Você é mentiroso e ladrão.

— Nem uma coisa nem outra. Eu disse a verdade e não furtei nada — disse Jondalar com convicção. Mas no fundo do coração não podia honestamente censurá-la por não acreditar nele. A não ser que alguém tivesse visto Ayla, como conceber que eles dois viajassem montando cavalos domesticados? Começou a ficar apreensivo. Como convencer Attaroa de que dizia a verdade, que não interferira deliberadamente na sua caçada? E se ele soubesse toda a gravidade da sua situação teria ficado mais que apreensivo.

Attaroa estudava aquele homem musculoso e belo, de pé à sua frente, envolto nos couros que rasgara da gaiola. Notou que a barba loura era um pouco mais escura que o cabelo. E os olhos, de uma tonalidade inacreditavelmente vívida de azul, eram irresistíveis. Sentia-se fortemente atraída por ele, mas a própria intensidade da sua emoção lhe trazia do passado penosas lembranças há muito sufocadas e que provocavam nela uma reação vigorosa mas estranhamente torcida. Não se permitiria ceder à atração de nenhum homem. Isso implicaria dar-lhe poder sobre ela — e jamais permitiria outra vez que alguém, principalmente um homem, exercesse controle sobre Attaroa.

Ela lhe tirara a parka e o deixara no frio pelo mesmo motivo por que o deixara sem comida ou água. A privação torna os homens mais fáceis de dominar. Enquanto eles tinham capacidade de resistir era preciso mantê-los em ferros. Mas aquele Zelandonii, vestido com aqueles couros que não tinha o direito de usar, não mostrava temor, pensou. Bastava vê-lo de pé, à sua frente, seguro de si.

Era tão desafiador e gabola que ousava, até, criticá-la perante todo mundo, inclusive os homens do Depósito! Ele não se humilhava, não pedia, não mostrava açodamento, não procurava agradá-la como os outros faziam. Pois jurava que ele haveria de fazer tudo aquilo! Estava decidida a dobrá-lo. Mostraria a todos como se trata um homem como aquele. E depois de humilhado, morreria.

Mas antes de dominá-lo, disse consigo mesma, vou brincar com ele um pouco. Ademais, é um homem forte, difícil de controlar se quiser resistir. Está desconfiado agora, tenho de fazê-lo baixar a guarda. Precisa ser enfraquecido. S'Armuna deve conhecer algum meio.

Attaroa chamou a Xamã e conversou com ela em particular. Depois olhou para o homem e sorriu, mas havia tanta malícia no sorriso que lhe deu um calafrio na espinha.

Jondalar não ameaçava apenas a sua liderança, mas o frágil mundo que a sua mente doentia a levara a criar. Ameaçava, até, a sua ténue ligação com a realidade, a qual, ultimamente, ficara tensa a ponto — quase — de arrebentar.

—    Venha comigo — disse S'Armuna, quando ele deixou Attaroa.

—    Para onde? — perguntou Jondalar, postando-se ao lado dela. Duas mulheres com lanças fechavam a marcha.

—    Attaroa mandou que eu trate a sua ferida — explicou.

Ela conduziu Jondalar a uma construção na parte mais remota do estabelecimento, semelhante à grande construção de barro junto da qual Attaroa se sentara, mas um pouco menor e abobadada. Uma entrada baixa e estreita levava através de um estreito corredor para outro arco. Jondalar teve de curvar a cabeça e andar de joelhos dobrados por algum tempo. Depois desceu três lanços de degraus. Ninguém, nem mesmo uma criança, poderia entrar facilmente na morada de S'Armuna, mas uma vez lá dentro ele pôde ficar de pé normalmente e ainda lhe sobrava muito espaço para cima. As duas mulheres que tinham vindo com eles ficaram do lado de fora.

Depois que seus olhos se adaptaram à penumbra do interior, viu uma plataforma de dormir posta contra a parede do fundo. Estava coberta com uma pele branca de alguma espécie. Os animais brancos, por incomuns e raros, eram sagrados para o seu povo e, como descobrira viajando, para outros povos também. Ervas secas pendiam em molhos do teto, e muitas das cestas e tigelas ao longo dos muros provavelmente continham mais. Qualquer Xamã, Mamute ou Zelandonii, que ali entrasse, sentir-se-ia em casa. Exceto por uma coisa. Entre muitos povos a morada de Uma Que Serve à Mãe era uma área cerimonial ou ficava adjacente a uma, e o espaço maior era o lugar reservado aos visitantes. Mas aquela não era uma área espaçosa e convidativa para atividades ou visitas. Tinha um clima fechado e secreto. Jondalar teve certeza de que S'Armuna vivia só e que pouca gente entrava nos seus domínios.

Ele a viu acender o fogo, juntar-lhe excremento seco e uns poucos gravetos, e encher de água um recipiente escurecido pelo uso, com aspecto de bolsa. Fora, seguramente, o estômago de um animal, preso agora a uma armação de osso. De uma das cestas das prateleiras ela tirou uma mancheia de algum material, e quando a água começou a porejar pelas paredes do recipiente ela o pôs diretamente nas chamas. Enquanto houvesse líquido nela, mesmo fervente, a bolsa não queimaria.

Embora Jondalar não soubesse o que a mulher havia despejado na água, o odor que dela saía lhe era familiar e, curiosamente, o fazia pensar na sua casa. E, num átimo, lembrou-se. Aquele cheiro muitas vezes emanava das figueiras dos Zelandonii. Eles usavam o mesmo decocto para lavar cortes e feridas.

—    Você fala muito bem a nossa língua. Viveu longamente entre os Zelandonii? — perguntou Jondalar.

S'Armuna o olhou e pareceu considerar a resposta que daria.

—    Vários anos.

—    Então sabe que os Zelandonii são hospitaleiros. Não entendo esta gente. O que poderei ter feito para merecer esse tratamento? Você gozou da hospitalidade dos Zelandonii. Por que não explica a eles sobre os direitos de passagem e a cortesia devida a estrangeiros? É mais que uma cortesia, a rigor. É uma obrigação.

A única resposta de S'Armuna foi um olhar sardônico.

Ele sabia que não estava indo muito bem. Mas ainda incrédulo com o que lhe acontecera recentemente, sentia uma necessidade quase infantil de explicar como as coisas deveriam ser, como se isso pudesse consertá-las. Decidiu tentar outra abordagem.

—    Imagino se, tendo morado lá tanto tempo, conheceu minha mãe. E sou filho de Marthona...

Teria continuado, mas a expressão no rosto deformado da mulher o deteve. Registrara tanto choque que as feições ficaram ainda mais condidas.

—    Você é filho de Marthona, nascido no lar de Joconan? — disse ela, por fim.

— Não. Esse é meu irmão Joharran. Eu nasci de Dalanar, o homem com quem Marthona ficou, depois. Você conheceu Joconan?

— Sim — disse S'Armuna, baixando os olhos. Depois, deu toda sua atenção ao pote, que quase fervia.

— Então deve conhecer minha mãe! — Jondalar estava excitado. — Se conheceu Marthona, sabe que não sou um mentiroso. Ela nunca permitiria que um dos seus filhos mentisse. Sei que isso parece difícil de acreditar, eu mesmo não acreditaria se me fosse contado e eu não a conhecesse, mas a mulher com quem eu estava viajando montava efetivamente um dos cavalos que esta gente precipitou no despenhadeiro. Era um cavalo criado por ela desde pequeno e que não pertencia àquele bando. Agora nem sei se está viva. Você precisa dizer a Attaroa que não minto! Preciso procurar Ayla. Preciso saber se ela vive!

O apelo de Jondalar não fez efeito sobre a mulher. Ela nem mesmo ergueu os olhos da bolsa de água quente que estava mexendo. Mas ao contrário de Attaroa, não duvidava dele. Um dos caçadores de Attaroa viera falar com ela sobre uma confusa história de uma mulher em cima de um dos cavalos. Tinha medo que fosse um espírito! S'Armuna achava por isso que a história de Jondalar tinha fundamento. Só não sabia se era real ou sobrenatural.

—    Você conheceu Marthona, não conheceu? — insistiu ele, indo até o fogo para chamar a atenção da mulher. Ele já a fizera reagir antes invocando sua mãe.

Quando S'Armuna ergueu os olhos, seu rosto estava impassível.

—    Sim, conheci Marthona. Fui mandada, muito jovem ainda, para aprender com os Zelandonii da Nona Caverna. Sente-se aqui. — Tirou o remédio do fogo e apanhou uma pele macia. Ele se encolheu quando ela lavou a ferida com a solução anti-séptica que havia preparado. Estava certo de que seria boa, pois a mulher aprendera aquilo com seu povo.

Depois de limpo o corte, S'Armuna o examinou de perto.

Você ficou sem sentidos algum tempo, mas não é grave. A ferida vai cicatrizar sozinha — disse, evitando encará-lo. — Você vai ter, porém, provavelmente, alguma dor de cabeça. Vou dar-lhe algo para isso.

— Não, não preciso de nada agora. Mas tenho sede, ainda. Gostaria de um pouco de água. Posso beber da sua bolsa? — perguntou, dirigindo-se para a grande bexiga, cheia d'água e úmida por fora, com a qual ela havia enchido a panela. — Eu a encho de novo, se quiser, depois. Tem uma cuia que eu possa usar?

Ela hesitou, depois tirou uma cuia de uma prateleira.

— Onde posso encher a bolsa? Há algum lugar especial, aqui perto?

— Não se incomode com a água.

Ele se aproximou da mulher, compreendendo que ela não o deixara andar livremente, nem mesmo para buscar água.

—    Nós não estávamos querendo capturar os cavalos que eles perseguiam. E mesmo se estivéssemos, Attaroa deveria saber que daríamos alguma coisa para compensar. Se bem que, com toda aqueia horda lançada no precipício, haverá carne de sobra. Só espero que Ayla não esteja no meio dela. S'Armuna, preciso ir embora para procurá-la.

—    Você a ama, não é? — perguntou S'Armuna.

—    Sim, eu a amo — disse ele. E viu que a expressão da mudava outra vez. Havia agora um elemento de amargor triunfante, e uma nota mais suave também. — Estávamos a caminho de casa. Iamos casar, mas também dar parte a minha mãe da morte de meu irmão mais moço, Thonolan. Começamos a viagem juntos, mas ele... morreu. Ela ficará muito infeliz. É duro perder um filho.

S'Armuna assentiu de cabeça, mas não fez qualquer comentário.

— Sobre o funeral, hoje. O que aconteceu com aqueles moços?

— Eles não eram muito mais moços que você — disse S'Armuna. — tinham idade suficiente para fazer tolices.

Jondalar teve a impressão de que ela estava constrangida.

— Como foi que morreram?

— Eles comeram alguma coisa errada.

Jondalar não acreditou que ela estivesse dizendo a verdade. Mas antes que pudesse acrescentar qualquer coisa, ela lhe deu suas roupas de couro e o entregou às mulheres que tinham ficado montando guarda. Foram com ele. uma de cada lado, mas dessa vez não o levaram para a jaula. puseram-no no interior da paliçada, cujo portão entreabriram para dar-Ihe passagem.

 

Ayla tomou chá junto ao fogo, no acampamento, olhando sem ver o prado à sua frente. Quando interrompera a busca para que Lobo descansasse, notou uma grande formação rochosa projetada contra o fundo azul do céu, para noroeste; mas assim como a conspícua colina de arenito se esfumava entre névoas e nuvens no horizonte, também se lhe esfumou na memória, quando seus pensamentos se voltaram para dentro, para a idéia fixa de Jondalar.

Combinando sua perícia de rastreadora com o faro finíssimo de Lobo ela conseguira levantar e seguir a pista deixada pela gente que havia sequestrado Jondalar. Depois de descer, aos poucos, para o campo, viajando no rumo norte, eles tinham infletido para oeste até chegar ao rio que ela e Jondalar tinham cruzado antes — deixando sempre um rastro fácil de acompanhar.

Na primeira noite, Ayla acampou às margens da corrente e continuou a rastrear no dia seguinte. Não sabia quantos eram aqueles que perseguia, mas via ocasionalmente diversas pegadas nas barrancas lamacentas do rio, algumas das quais começava a reconhecer. Nenhuma, porém, correspondia aos grandes pés de Jondalar, e ela começou a duvidar que ele ainda estivesse com seus captores.

Então se lembrou de que, de longe em longe, alguma coisa grande era depositado por eles deixando uma compressão no solo, poento ou molhado, e se lembrava de ter visto essa impressão repetida, juntamente com as pegadas e outros sinais, desde o início. Não poderia ser carne de cavalo, pensou, porque os cavalos haviam sido lançados no precipício, e aquela carga viera com eles do altiplano. Tinha de ser o homem, que carregavam em alguma espécie de padiola, o que lhe dava, ao mesmo tempo, alívio e aflição.

Se tinham de carregá-lo, isso queria dizer que ele não podia andar, de modo que o sangue que vira indicava uma lesão séria. Não se dariam, no entanto, ao trabalho de carregá-lo se estivesse morto. Concluiu que Jondalar estava vivo, mas gravemente ferido. Esperava que o estivessem levando para algum lugar onde pudesse ser tratado. Mas por que o teriam ferido?

Independente de quem fosse que ela estivesse seguindo, movia-se com agilidade, mas a trilha esfriava, e ela sentia que estava ficando para trás Os sinais que mostravam para onde eles teriam ido não eram fáceis de encontrar, o que a retardava. Mesmo Lobo tinha alguma dificuldade em seguir a pista. Sem o animal, ela não teria, provavelmente, chegado tão longe, sobretudo por haver áreas de solo rochoso, onde as ténues marcas da passagem deles eram praticamente inexistentes. Além disso, não queria deixar Lobo longe da vista, com medo de perdê-lo também. Sentia, não obstante, uma grande ânsia de continuar, de apressar-se, e se felicitava pelo fato de que o animal parecia melhor a cada dia que passava.

Acordara naquela manhã cheia de estranhos pressentimentos, e ficara contente ao ver que Lobo também parecia aflito para partir. Mas à tarde viu que ele estava cansado. Decidiu parar e fazer uma xícara de chá. O lobo ganharia alento e os cavalos poderiam pastar um pouco.

Não muito tempo depois de recomeçarem a busca, encontrou uma bifurcação do rio. Tinha atravessado facilmente dois pequenos riachos que desciam das montanhas, mas não sabia ao certo se deveria cruzar mais esse. Não via pegadas já havia algum tempo. Seria melhor acompanhar o braço direito da bifurcação ou passar à margem oposta e seguir pelo lado esquerdo? Optou pela margem direita, indo para a frente e para trás. à procura do rastro, e só no cair da noite viu um sinal incomum que lhe mostrou claramente o caminho a tomar.

Mesmo à luz precária do crepúsculo, era óbvio que os pilares que saíam da água haviam sido postos lá com um propósito. Tinham sido fincados no leito do rio perto de várias toras fixadas à margem. Do tempo passado com os Xaramudói reconhecia a construção como um pequeno atracadouro para alguma espécie de barco. Ayla pensou em acampar ali mesmo, nas imediações do cais, mas depois mudou de ideia. Não sabia nada sobre o povo que estava seguindo, exceto que tinham ferido e raptado Jondalar. Não queria ser surpreendida por eles, quando dormisse e estivesse vulnerável. Escolheu, por isso, um lugar mais discreto e abrigado, para além da curva do rio.

De manhã examinou com cuidado a contusão de Lobo antes de faze-lo entrar no rio. Não era um rio largo, mas profundo e de água fria. Lobo teria de nadar, e suas pisaduras eram ainda sensíveis ao toque. Melhorara muito, porém, e estava ansioso para ir em frente. Parecia querer encontrar Jondalar a todo custo e tanto quanto ela.

Decidiu, não pela primeira vez, retirar as perneiras antes de montar; assim, não ficariam molhadas. Viu, com surpresa, que Lobo não hesitou para entrar na água. Em vez de ficar avançando e recuando na margem, como de hábito, saltou e nadou rapidamente na sua esteira. Era como se ele não quisesse perdê-la de vista.

Após chegar ao outro lado, Ayla saiu logo do caminho para escapar aos borrifos dos animais. Enquanto eles se livravam do excesso de água, ela reajustava a proteção das pernas. Viu que o lobo estava bem — não mostrara desconforto quando se sacudira — e começou a procurar os rastros. Mas foi Lobo quem descobriu, pouco abaixo da pequena doca e escondida na vegetação da margem, a chata que os caçadores de cavalos tinham usado para atravessar o rio. Levou algum tempo para descobrir o que era.

Imaginara que aquele povo usaria um barco semelhante aos dos Xaramudói — escavados belamente, com graciosas proas e popas; ou como o barco em forma de cuia, mais vulgar sem dúvidas, mas funcional, que ela e Jondalar vinham utilizando. Mas o que Lobo achou foi uma espécie de plataforma construída de toras, e ela não estava familiarizada com balsas. Uma vez compreendida a finalidade daquilo, achou que era um meio de transporte engenhoso mas desajeitado. Lobo cheirou-o todo com a maior curiosidade. Quando chegou a determinado lugar, parou, e rosnou, do fundo da garganta.

— O que foi agora, Lobo? — perguntou. Era uma nódoa marrom em um dos paus. Ayla sentiu que empalidecia, tomada de vertigem. Aquilo era sangue, sangue de Jondalar. Ela afagou a cabeça de Lobo.

— Nós o acharemos — disse, tanto para consolar o lobo quanto para animar a si mesma. Mas não estava já tão certa de encontrá-lo vivo.

O rastro ia do desembarcadouro entre campos de capim alto e seco e era muito mais fácil de seguir. O problema era que se tratava de uma trilhar tão usada que ela não podia estar certa de serem as marcas mais frescas oriundas da gente que perseguia. Lobo ia à frente, e logo Ayla ficou mais do que grata a ele por isso. Não estavam seguindo aquele caminho havia muito tempo quando o animal parou, franziu o focinho e mostrou os dentes, rosnando.

— Lobo? O que é? Vem alguém? — disse Ayla, virando Huiin para o lado e dirigindo-se com os cavalos para o abrigo de uma vegetação alta e cerrada. Fez sinal a Lobo para que viesse também. Ayla saltou logo que ficaram escondidos por aquela cortina vegetal, puxou Racer pela rédea para colocá-lo atrás da égua, pois ele levava a cesta, e se ocultou entre os dois cavalos. Ajoelhou-se, em seguida, num joelho só, passando o braço pelo pescoço de Lobo para que ele ficasse quieto.

Esperaram.

Ela não se enganara. Logo duas meninotas passaram por eles, obviamente a caminho do rio. Ela mandou que Lobo ficasse e, depois, usando a maneira furtiva que aprendera ao rastrear carnívoros quando pequena, acompanhou-as por trás das ervas e se escondeu nos arbusto para vigiar.

As duas meninas conversavam enquanto preparavam a balsa, A lingua era desconhecida, mas tinha alguma semelhança com Mamutói. Podia perceber o sentido de uma ou outra palavra.

As duas empurraram a balsa quase até a água, depois retiraram duas longas varas que estavam escondidas debaixo dela. Amarraram a ponta de uma longa corda numa árvore, depois embarcaram. Enquanto uma impelia a balsa a vara, a outra se encarregava da corda. Quando já estavam perto da margem oposta, onde a corrente não era tão rápida, começaram a fazer a zinga rio acima até alcançarem o embarcadouro. com cordas presas à balsa, elas a amarraram firmemente nos pilares que saíam da água e saltaram para as toras fixadas à margem. Deixando, então a balsa, correram pelo caminho por onde Ayla tinha vindo.

Ela foi para junto dos animais. O que deveria fazer? Sentia que podiam voltar logo. Mas isso podia ser no mesmo dia, no dia seguinte, ou em outro dia qualquer. Queria achar Jondalar o mais depressa possível, mas não desejava arriscar que a descobrissem. Relutava em abordar diretamente aquela gente antes de saber mais sobre eles. Finalmente, resolveu procurar um lugar de onde pudesse observá-las quando retornassem sem ser percebida por elas.

Não teve de esperar muito. À tarde as duas voltaram, acompanhadas de muitas outras pessoas. Todos carregavam macas com grandes pedaços de carne e partes decepadas de cavalos. Conseguiam mover-se com rapidez incrível a despeito da carga que levavam. Ayla ficou surpresa ao ver que não havia um só homem no grupo. Eram caçadoras mulheres! Viu-as amontoar a carne na balsa, depois levá-la com a vara para o outro lado, usando a corda como guia. Esconderam a balsa, depois de descarregá-la, mas deixaram a corda estendida através do rio, o que intrigou Ayla.

Surpreendeu-se de novo com a velocidade das mulheres quando, em terra, tomaram a trilha. Num abrir e fechar de olhos tinham desaparecido. Esperou um pouco antes de segui-las e guardou sempre uma boa distância delas.

Jondalar ficou horrorizado com as condições que encontrou por trás da paliçada. Os únicos abrigos eram um telhado ou toldo de meia-água, grande mas primitivo, que oferecia pouca proteção em caso de chuva ou neve; e a própria cerca de toras, que servia de barreira contra o vento. Não havia fogo nem comida, e a água era pouca. Todas as pessoas ali presas eram homens e mostravam os efeitos das condições deploráveis em que viviam. A medida que saiam da sombra para examiná-lo, viu que estavam magros, sujos e maltrapilhos. Nenhum deles tinha roupas apropriadas para aquele frio e, provavelmente, ficavam grupados debaixo do alpendre para se aquecer.

Reconheceu um ou dois do funeral, e se perguntou por que homens e rapazes viveriam num lugar daqueles. De súbito, várias coisas díspares se juntaram e fizeram sentido: a atitude das mulheres armadas de lanças, os estranhos comentários de Ardemun, o comportamento dos homens no funeral, a reticência de S'Armuna, o tardio exame da sua ferida, o tratamento brutal de que estava sendo vítima. Talvez não fosse resultado de um mal-entendido ou coisa que se esclarecesse logo que ele tivesse convencido Attaroa da sua boa-fé.

A conclusão que era forçado a admitir lhe parecia grotesca, mas a verdade dela o pegou com uma força capaz de pôr abaixo a incredulidade Era tão óbvia que se surpreendeu de não ter entendido antes. Os homens estavam ali contra sua vontade, eram man idos presos pelas mulheres!

Mas por quê? Parecia desperdício deixar pessoas inativas como aquelas, quando podiam todas contribuir para o bem-estar da comunidade. Pensou no próspero Acampamento do Leão dos Mamutói, com Talut e Tulie organizando todas as atividades necessárias do estabelecimento no interesse geral. Todos contribuíam, e tinham tempo para trabalhar nos seus projetos individuais.

Attaroa! Até onde aquilo era obra dela? A mulher estava obviamente na chefia da comunidade, era a líder daquele acampamento. Se não era de todo responsável por aquele estado de coisas, pelo menos parecia determinada a mantê-lo.

Aqueles homens deveriam estar caçando, fazendo coleta de alimentos, pensou Jondalar, cavando silos, fazendo abrigos novos, consertando os velhos, contribuindo com alguma coisa, e não se escorando ali, uns nos outros, para ficarem aquecidos. Não era de espantar que estivessem caçando cavalos já tão tarde. Teriam comida suficiente estocada para viverem todo o inverno? E por que caçavam tão longe, se dispunham de perfeitas oportunidades de caça à mão?

—    Você deve ser esse a que chamam o Zelandonii — disse um dos homens, em Mamutói. Jondalar reconheceu-o como o que tinha as mãos atadas atrás das costas no cortejo do funeral.

—    Sim. Sou Jondalar, dos Zelandonii.

—    E eu sou Ebulan, dos S'Armunai — disse o outro. Depois acrescentou sardonicamente: — Em nome de Muna, a Mãe de Todos, deixe que eu lhe dê as boas-vindas ao Depósito, como Attaroa gosta de chamar este lugar. temos outros nomes para isto: Acampamento dos Homens, o Submundo Gelado da Mãe e A Armadilha de Homens de Attaroa. Escolha o que quiser.

— Não entendo. Por que estão vocês... todos vocês, aqui?

— E uma longa história. Mas, em resumo, fomos todos enganados, de um modo ou de outro — disse Ebulan. Depois, com uma careta irônica, continuo. — Fomos até induzidos, pela astúcia da mulher, a construir este lugar. Ou a maior parte dele.


— Por que, simplesmente, não pulam a cerca e vão embora? disse Jondalar.

— Para sermos perfurados por Epadoa e suas lanceiras? — disse outro homem.

— Olamun está certo. Além disso, já não sei quantos teriam ainda forças para fugir — acrescentou Ebulan. — Attaroa nos conserva fracos deliberadamente. Fracos... ou pior que isso.

—    Pior? — perguntou Jondalar, franzindo a testa.

—    Mostre-lhe, S'Amodun — disse Ebulan a um homem alto, cadavérico, de cabelos grisalhos e emaranhados, com uma barba comprida, quase branca. Tinha um rosto duro, de traços marcantes, cavalete do nariz saliente, sobrancelhas grossas, que lhe acentuavam o desça nado das faces. Mas eram os olhos que concentravam a atenção do observador: escuros, como os de Attaroa, e magnéticos. Em vez de malícia, espelhavam grande sabedoria, mistério e doçura. Jondalar não sabia definir o que era, mas havia naquele homem, no seu porte, na sua postura, algo que inspirava grande respeito, mesmo naquelas condições lamentáveis.

O velho concordou e chamou Jondalar para debaixo da coberta. Ao se aproximarem, pôde ver que havia ainda homens lá dentro. Quando curvou a cabeça para passar por baixo do toldo, sentiu um fedor insuportável. Um dos prisioneiros jazia numa prancha que fora arrancada do teto e estava coberto apenas com um pedaço de couro rasgado. O velho puxou o couro e deixou à mostra uma ferida gangrenosa.

Jondalar ficou estupefato.

— Por que ele está assim?

— As lanceiras de Epadoa fizeram isso — disse Ebulan.

— E S'Armuna sabe que ele está assim? Ela pode fazer alguma coisa por ele.

— S'Armuna! Ah! O que o leva a pensar que ela faria algo? —disse Olamun, um dos que os tinham acompanhado. — Quem você acha que ajudou Attaroa quando tudo começou?

—    Mas ela limpou a ferida da minha cabeça — disse Jondalar.

—    Então Attaroa tem algum plano em mente para você — disse Ebulan.

—    Plano? O que quer dizer?

— Ela gosta de pôr para trabalhar os homens jovens e fortes. Enquanto possa controlar esses homens — disse Olamun.

— E se alguém se recusa a trabalhar para ela? — perguntou Jondalar. — De que maneira ela impõe sua vontade?

— Privando o indivíduo de comida e água. E se isso não bastar ameaçando-lhe a família — disse Ebulan. Se você sabe que alguém do seu lar, ou um irmão seu vai ser posto numa gaiola, sem comer nem beber, você obedece.

— Que gaiola?

— Aquela em que você mesmo estava — disse Ebulan. E com um sorriso torto: — De onde saiu com esse manto magnífico. — Os outros homens sorriram também.

Jondalar olhou o couro rasgado que ele tirara da estrutura da jaula para cobrir-se.

— Essa foi boa! — disse Olamun. — Ardemun nos contou também que você quase arrebentou a própria gaiola. Não creio que ela esperasse isso.

— Da próxima vez, faz uma gaiola mais forte — disse outro homem. Era óbvio que ele não estava muito familiarizado com a língua. Ebulan, porém, e Olamun eram tão fluentes que Jondalar até se esquecera de que Mamutói não era a língua nativa daquela gente. Aparentemente, outros sabiam, e a maior parte era capaz de acompanhar, por alto, o que estava sendo dito.

O homem da prancha soltou um gemido, e o velho se ajoelhou para confortá-lo. Jondalar notou mais duas figuras que se mexiam, no fundo da coberta.

—    Não importa. Se ela não tiver mais uma gaiola, ameaçará matar seus parentes para obrigá-lo a fazer o que deseja. Se você teve o azar de fazer um filho antes do advento dela como chefe, ela pode forçá-lo a tudo o que quiser.

Jondalar não entendeu todas as implicações daquilo, e franziu o cenho.

— Por que seria um azar ter um filho?

Ebulan olhou para o velho.

— S'Amodun?

Vou perguntar se querem conhecer o Zelandonii — disse ele.

Era a primeira vez que S'Amodun falava, e Jondalar se perguntou como uma voz tão profunda podia sair de um homem tão frágil. Ele retornou à coberta, curvou-se para falar com as figuras amontoadas no espaço onde o forro inclinado tocava o chão. Eles podiam ouvir os tons profundos e melodiosos de sua voz, mas não as palavras, e depois o som de vozes mais jovens. Com a ajuda do ancião, um dos moços se levantou e avançou, pulando num pé só.

—    Esse é Ardoban — disse o velho.

—    Eu sou Jondalar, da Nona Caverna dos Zelandonii, e em nome de Doni, a Grande Mãe Terra, eu o saúdo, Ardoban — disse ele, com grande formalidade, estendendo as mãos para o rapazinho. Sentia obscuramente que ele precisava ser tratado com toda a dignidade.

O rapaz tentou firmar-se para tomar as mãos dele, mas Jondalar, ao ver que ele fazia uma careta de dor, fez menção de apoiá-lo mas pensou melhor.

— Na verdade, eu prefiro ser chamado apenas Jondalar — disse, com um sorriso, tentando atenuar o constrangimento daquele instante.

— Eu chamado Doban. Nada de Ardoban. Attaroa sempre diz Ardoban. Ela quer que eu diga S'Attaroa. Não digo. Não mais.

Jondalar pareceu um tanto perdido.


—    É difícil de traduzir — disse Ebulan. — Trata-se de uma forma de respeito. Significa alguém tido na mais alta estima.

—    E Doban deixou de respeitar Attaroa.

— Doban detesta Attaroa! — disse o jovem, com voz esganiçada e já à beira das lágrimas. Virou-lhe, em seguida, as costas, procurando voltar para a coberta. S'Amodun indicou aos outros que deviam ir-se e foi ajudar o jovem.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Jondalar, depois que tavam a alguma distância.

— Puxaram-lhe a perna até que ela foi deslocada da junta — disse Ebulan. — Attaroa fez isso, ou, melhor, mandou que Epadoa o fizesse.

— O quê? — disse Jondalar, arregalando os olhos de incredulidade. — Você está dizendo que ela deslocou deliberadamente a perna do menino? Que espécie de abominação é essa mulher?

— Ela fez a mesma coisa com o outro menino, o mais novo dos filhos de Odevan.

—    Que justificação ela teria invocado para fazer uma coisa assim?

— No caso do mais jovem, foi para dar um exemplo. A mãe dele não gostava da maneira como Attaroa nos tratava, e queria seu homem de volta em casa. Avanoa conseguiu entrar aqui algumas vezes para passar a noite com ele e costumava contrabandear comida para nós. Ela não é a única mulher a fazer isso, mas a questão é que incitava as outras, e também Armodan, a resistirem a Attaroa, recusando trabalhar. Ela se vingou no rapazinho. Disse que, aos sete anos, ele já tinha idade bastante para largar as saias da mãe e viver com os homens, mas deslocou sua perna primeiro.

— O outro menino tem sete anos? — disse Jondalar, abanando a cabeça e estremecendo de horror. — Jamais ouvi história mais terrível.

— Odevan tem muitas dores, e sente falta da mãe, mas o caso de Ardoban é pior. — Era S'Amodun quem falava. Ele saíra da coberta e se juntara ao grupo.

—    É difícil imaginar coisa pior — disse Jondalar.

—    Ele padece mais da dor da traição que da dor física — disse S'Amodun. — Ardoban considerava Attaroa uma espécie de mãe. Sua própria mãe morreu quando ele era pequeno, e Attaroa o recolheu, mas o tratava mais como um boneco, um brinquedo, do que como uma criança. Gostava de vesti-lo com roupas de mulher, enfeitá-lo com coisas absurdas, mas o alimentava bem e dava-lhe, de vez em quando, presentinhos. Ela até o ninava ou o levava para dormir com ela na cama, quando o queria. Mas quando se cansava dele, fazia-o dormir no chão. Poucos anos atrás a mulher cismou que estavam tentando envenená-la.

—    Consta que foi o que ela fez com seu homem — disse Olamum.

—    Attaroa passou a usar o menino como seu provador — continuou o velho. — E quando ele cresceu, ela o deixava amarrado às vezes, convencida de que tentaria fugir. Mas assim mesmo, Attaroa foi a única mãe que o menino teve. Ele a amava e fazia tudo para agradá-la. Começou a tratar os outros rapazes da sua idade da mesma maneira que ela tratava os homens, e a dar ordens. Attaroa o encorajava, é claro.

— Ele ficou insuportável — acrescentou Ebulan. — Parecia ser dono de todo o Acampamento. A vida dos outros meninos tornou-se insuportável.

— E o que aconteceu? — perguntou Jondalar.

— Ele ficou adulto — disse S'Amodun. Ao ver o olhar intrigado de Jondalar, explicou: — A Mãe foi falar com ele enquanto dormia, sob a forma de uma bela jovem, e pôs seu membro para funcionar.

— Claro. Isso acontece com todo rapaz — disse Jondalar.

— Attaroa descobriu — explicou S'Amodun — e foi como se ele se tivesse feito homem só para aborrecê-la. Ela ficou furiosa! Berrou com ele chamou-o dos piores nomes, depois confinou-o ao Acampamento dos Homens, mas não antes de fazer deslocar a sua perna.

—    Com Odevan foi mais fácil — disse Ebulan. — Ele era mais moço. Nem estou mesmo seguro se, de começo, tinham mesmo a intenção de aleijá-lo. Acho que queriam só que a mãe e a mulher sofressem ouvindo os gritos dele. Uma vez acontecido, porém, Attaroa pode ter pensado que aquela era uma boa maneira de fazer um homem inválido e mais fácil de dominar.

— Tinha Ardemun como exemplo — disse Olamun.

— Ela deslocou-lhe a perna também?

— De certo modo, sim — disse S'Amodun. Foi um acidente. Mas aconteceu quando ele estava tentando fugir. Attaroa não deixou que S'Armuna cuidasse dele, embora eu acredite que a Xamã desejasse fazer isso.

— É mais difícil incapacitar um menino de doze anos. Ele lutou e berrou, mas não adiantou nada — disse Ebulan. — E, devo dizer a vocês, depois da agonia do rapaz, ninguém pôde guardar mágoa dele. Tinha mais que pagado por seu comportamento infantil.

—    É verdade que ela avisou as mulheres de que todo filho que nascesse homem teria as pernas deslocadas? — perguntou Olamun.

—    Foi o que Ardemun disse — confirmou Ebulan.

— Será que ela pensa que pode ditar normas à Mãe? Forçá-La a fazer somente fêmeas? — perguntou Jondalar. — isso seria um desafio à deidade.

— Talvez — disse Ebulan. — Mas só a Mãe em pessoa poderá deter essa mulher, a meu ver.

— O Zelandonii tem razão — disse S'Amodun. — Acho até que a Mãe já lhe deu um aviso. Vejam como foram poucos os bebes nascidos nos últimos anos. Essa última atrocidade da megera, vitimando crianças, foi a ultima para Ela. Crianças têm de ser protegidas e não mutiladas.

— Sei que Ayla jamais admitiria uma coisa assim. Ela não suportaria isso — disse Jondalar. E logo, baixando os olhos, acrescentou: — Mas não sei se ainda está viva.

Os homens se entreolharam, hesitando falar, embora todos tivessem, na ponta da língua, a mesma pergunta. Por fim, Ebulan resolveu falar.

— Ayla é a mulher que você nos disse ser capaz de viajar montada em cavalos? Ela deve ter grandes poderes se é capaz de dominar animais dessa maneira.

—    Ela mesma não diria isso — retrucou Jondalar, sorrindo, — Mas penso que tem certamente mais poderes do que admite. Ela não monta qualquer cavalo. Ela monta apenas a égua que criou, embora tenha montado também o meu cavalo. Teve mais dificuldade em controlá-lo, porém. E esse foi o problema...

—    Você também... monta? — perguntou Olamun, incrédulos.

— Monto um cavalo, o meu. Bem, já montei também o de Ayla, mas...

— Você está querendo dizer que a história que contou a Attaroa verdadeira? — disse Ebulan.

— Claro que é. Por que iria eu inventar uma coisa assim? — Jondalar correu os olhos por todos aqueles rostos incrédulos. — Talvez eu deva começar do começo. Ayla criou uma potrancazinha...

— Onde achou a potranca? — perguntou Olamun.

— Ela estava caçando, matou a mãe, e só então viu a cria.

— Mas por que a criou?

—    Porque Ayla estava sozinha, e a cria estava órfã... É uma longa história — disse Jondalar, disposto a ser breve. — Ela queria companhia e decidiu adotar a égua. Quando Huiin cresceu... Ayla lhe deu esse nome... pariu um potro. Isso aconteceu mais ou menos quando nos conhecemos. Ela me ensinou a cavalgar e me entregou o potro para que eu o adestrasse. Eu o chamei Racer. É uma expressão Zelandonii, que quer dizer "o mais veloz de todos". Viajamos desde a Reunião de Verão dos Mamutói, contornando a ponta sul daquelas montanhas orientais, montando esses dois cavalos. Isso não tem nada a ver com poderes sobrenaturais. É uma questão de acostumá-los com a gente, desde pequenos, como a mãe faz com o bebê.

—    Bem, se você acha... — disse Ebulan.

—    Acho porque é verdade — contrapôs Jondalar. Depois decidiu que seria inútil prosseguir naquele assunto. Eles teriam de ver para crer, e era improvável que algum dia isso ocorresse. Ayla se fora e também os dois cavalos.

Nesse momento o portão se abriu e todos se voltaram para ver o que acontecia. Epadoa entrou primeiro, seguida por algumas das suas mulheres. Agora que ele sabia mais sobre ela, Jondalar estudou a mulher que causara tanto sofrimento a crianças. Não sabia qual das duas era mais abominável: a que concebia o plano ou a que o executava. Não tinha dúvida de que Attaroa seria capaz de fazer a maldade ela mesma. Havia algo de muito errado com ela. Não era uma personalidade completa. Algum espírito imundo entrara nela e roubara uma parte essencial do seu ser Mas o que dizer de Epadoa? Essa parecia saudável e inteira, mas como podia ser tão cruel e insensível? Faltariam a ela também algumas partes essenciais?

Para surpresa geral, a própria Attaroa entrou em seguida.

—    Ela não vem nunca — disse Olamun. — O que poderá querer? — O comportamento habitual da mulher lhe inspirava terror.

Atrás dela entraram diversas mulheres carregando bandejas de carne cozida e fumegante e também cestas de trançado miúdo com uma sopa cheirosa com pedaços de carne. De cavalo! Os caçadores tinham voltado, então! Havia muito tempo que Jondalar não provava carne de cavalo, a ideia não lhe apetecia, mas naquele momento a comida cheirava muito bem. As mulheres levavam também uma bolsa d'água cheia e diversas xícaras.

Os homens olhavam a procissão com avidez, mas nenhum deles movia mais que os olhos, com medo que Attaroa cancelasse o banquete. Temiam, aliás, que aquilo pudesse ser uma espécie de brincadeira atroz: mostrar-lhes a comida e retirá-la em seguida.

—    Zelandonii! — disse Attaroa, fazendo a palavra soar como uma ordem. Jondalar a encarou enquanto a mulher se aproximava. Ela parecia quase masculina. Não, não era bem isso. Seus traços eram fortes e marcados, mas bem definidos, bem desenhados. Era na verdade bela, a seu modo, ou poderia ter sido, não fora a dureza da expressão. Havia crueldade no corte da boca, e a ausência de alma era patente nos olhos.

S'Armuna surgiu a seu lado. Devia ter vindo com as outras mulheres, pensou, embora não a tivesse notado antes.

—    Eu agora falo por Attaroa — disse, em Zelandonii.

—    Você tem muito que explicar — disse ele. — Como permite que tais coisas aconteçam? Attaroa é insana, mas não você. Eu a responsabilizo. — Os olhos azuis de Jondalar eram frios como o gelo.

Attaroa interpelou a intérprete com raiva.

—    Ela não quer que você fale comigo. Tenho de traduzir para ela. Só isso. E Attaroa quer que você a encare.

Jondalar obedeceu e esperou.

S'Armuna começou a tradução.

— Attaroa é quem fala: Quer saber o que você acha de suas novas... acomodações?

— O que pode esperar que eu ache? — disse Jondalar a S'Armuna, que evitou olhar para ele e falou com Attaroa.

Um sorriso malicioso brincou no rosto da líder.

— Estou certa de que já ouviu muita coisa a meu respeito. Mas não deve dar ouvidos a tudo o que lhe dizem.

— Acredito no que vejo — disse Jondalar.

— Bem, você me viu trazer comida.

— Não vejo ninguém comendo. E sei que todos têm tome.

O sorriso dela se alargou quando ouviu a tradução.

— Eles devem comer. E você também. Vai precisar de toda a sua força — disse. E riu de novo.

— Não duvido — retrucou Jondalar.


Depois que S'Armuna traduziu, Attaroa saiu bruscamente, fazendo sinal às mulheres para que a seguissem.

—    Você é responsável — repetiu Jondalar para S'Armuna, que já lhe dava as costas.

Logo que o portão se fechou, uma das guardas disse:

—    Vocês deviam comer logo, antes que ela mude de ideia.

Os homens se lançaram sobre as travessas de carne postas no chão. Quando S'Amodun passou por Jondalar, disse:

—    Muito cuidado, Zelandonii! Attaroa tem alguma coisa em mente para você.

Os dias seguintes pareceram intermináveis para Jondalar. Alguma água lhes foi dada, mas muito pouca comida. Ninguém podia sair, nem mesmo para trabalhar, o que era incomum, na opinião geral. Os homens ficavam inquietos, sobretudo porque Ardemun também recebera ordem de permanecer no Depósito. Seu conhecimento de diversas línguas o transformara num intérprete, primeiro, e, depois, num porta-voz entre Attaroa e os homens. Por causa da sua perna deslocada, ela achava que ele não representava uma ameaça. Também achava que ele não poderia fugir. Assim, tinha maior liberdade de movimentos no interior do Acampamento e muitas vezes trazia fragmentos de informação sobre a vida no exterior da paliçada e, até, ocasionalmente, comida contrabandeada.

Muitos dos homens passavam o tempo jogando e apostando vantagens futuras. Usavam pedaços de madeira, pedrinhas, ossos quebrados dos que vinham com a carne. O fémur da perna de cavalo fora posto de lado, depois de limpo e aberto. Podia servir para alguma coisa.

Jondalar passou o primeiro dia do seu confinamento examinando com atenção toda a cerca que os prendia e testando-lhe a resistência. Encontrou vários lugares por onde, a seu ver, poderia passar, e outros que lhe seria possível galgar. Mas era também possível ver através das frestas que Epadoa e suas mulheres montavam guarda o tempo todo. A terrível infecção do homem da ferida o dissuadia de tentar uma abordagem tão direta. Examinou o teto inclinado e imaginou o que poderia fazer para consertá-lo e torná-lo um pouco mais resistente às intempéries — se houvesse ferramentas e material.

De comum acordo, uma extremidade da área, por trás de algumas pedras — único aspecto característico daquele recinto despojado, além da coberta — fora reservado para mictório e latrina. Jondalar se sentira nauseado logo no primeiro dia com o cheiro impregnado do Depósito, pior onde a carne em putrefação juntava seu aroma aos outros, mas à noite não tinha escolha senão abrigar-se. Aconchegava-se aos demais, como todos faziam, para aquecer-se, dividindo seu manto improvisado com os companheiros, que tinham menos roupa que ele.

Nos dias que se seguiram, sua sensibilidade à fedentina embotou, mas sentia mais o frio agora e ficava tonto ocasionalmente. Gostaria muito de ter um pouco de casca de salgueiro para a sua dor de cabeça.

As circunstâncias começaram a mudar quando o homem da ferida morreu. Ardemun foi ao portão e pediu para falar com Attaroa ou Epadoa, para que o cadáver fosse removido e enterrado. Vários homens saíram para preparar o sepultamento, e foram avisados que todos os que dessem deveriam comparecer à cerimonia fúnebre, Jondalar se envergonhou do alvoroço que sentiu com a possibilidade de sair do cercado, uma vez que o motivo disso era um falecimento.

Do lado de fora, as sombras de um sol já crepuscular se alongavam no chão, valorizando os aspectos do vale e do rio, embaixo, Jondalar teve uma impressão comovente da beleza e grandiosidade do panorama. Sua apreciação foi interrompida por uma pontada no braço. Voltou-se aborrecido para Epadoa e três das suas mulheres que o rodeavam com lanças em riste e precisou de muito controle para não tirá-las do seu caminho.

— Ela quer que você ponha as mãos para trás, a fim de serem amarradas — disse Ardemun. — Você não sai se as mãos não estiverem atadas.

Jondalar fechou a cara, mas obedeceu. Acompanhando, depois, Ardemun, pensava na sua situação. Sequer sabia muito bem onde estava, nem há quanto tempo, mas a ideia de permanecer ali pelo resto da vida, sem nada senão a paliçada como cenário, era mais do que podia suportar. Queria sair, de um jeito ou de outro, e logo. Se não o fizesse, logo chegaria um momento em que não mais poderia fazê-lo. Passar uns poucos dias sem comer não era grande problema, mas poderia vir a ser se continuasse naquele regime. Além disso, se havia uma possibilidade de que Ayla estivesse viva, ferida talvez, mas viva, tinha de encontrá-la o mais depressa possível. Não sabia ainda como conseguiria fazer isso. Sabia apenas que não ia ficar no Depósito indefinidamente.

Caminharam um pouco e atravessaram um riacho, molhando os pés. O serviço fúnebre foi perfunctório, e Jondalar se perguntou por que Attaroa se dava ao trabalho de enterrar com cerimónia um homem por quem não se importara em vida. Ele mesmo não conhecera o infeliz, nem sabia o nome dele, vira-o sofrer apenas — sofrimento gratuito. Agora se fora e errava no outro mundo, mas pelo menos estava livre de Attaroa. Talvez fosse melhor morrer que definhar por trás de uma cerca.

Por breve que fosse a cerimónia, os pés de Jondalar ficaram frios. Culpa dos sapatos molhados. Na volta, prestou mais atenção ao arroio, procurando alguma alpondra em que pudesse pisar ou outra maneira de atravessar sem molhar os pés. Mas quando olhou para baixo, deixou de importar-se: como se tivessem sido postas ali de propósito, viu duas pedras, uma junto da outra, na borda da água. Uma era um nódulo, pequeno, mas adequado, de pederneira; a outra, uma pedra arredondada que parecia feita para acomodar-se à sua mão — tinha a forma perfeita de uma cabeça de martelo.

— Ardemun — disse ao homem que vinha atrás dele. E continuou em Zelandonii. — Você está vendo aquelas duas pedras? Pode arranja-las para mim? — continuou, mostrando com o pé.— É muito importante.

— Aquela é uma pederneira?

— Sim. E eu sou um britador profissional.

De repente, Ardemun pareceu tropeçar e caiu pesadamente. Aleijado, te dificuldade para se levantar, e uma das mulheres lanceiras apareceu. Ela disse qualquer coisa, em tom ríspido, a um dos homens, que deu a mão ao outro para puxá-lo. Epadoa retrocedeu, a ver o que estava retardando a marcha. Ardemun se pôs de pé antes que ela surgisse, e se mostrou contrito e apologético quando foi repreendido.

Quando voltaram, ele e Jondalar se dirigiram para o fim do Depósito, onde havia o mictório, para urinar. Quando se reuniram aos demais, Ardemun disse aos homens que os caçadores tinham voltado trazendo mais carne da matança de cavalos, mas alguma coisa acontecera enquanto o segundo grupo regressava. Não sabia o que era, mas estava provocando grande comoção entre as mulheres. Todas falavam, excitadíssimas, mas, ele não conseguira ouvir nada de específico.

Naquela noite, comida e água foram servidas, mas ninguém ficou para cortar a carne. Ela fora dividida em nacos e posta em cima de algumas toras sem qualquer explicação. Os homens comentaram isso enquanto comiam.

— Alguma coisa muito estranha está ocorrendo — disse Ebulan, falando em Mamutói para que Jondalar entendesse. — Acho que as mulheres receberam ordens de não falar com a gente.

— Mas isso não faz sentido — disse Olamun. — Mesmo que soubéssemos de algo, o que poderíamos fazer?

— Tem razão, Olamun. Não faz sentido. Mas concordo com Ebulan. As mulheres estão proibidas de falar — disse S'Amodun.

— Talvez, então, a hora tenha chegado — disse Jondalar. — Se as lanceiras de Epadoa estão ocupadas conversando umas com as outras, talvez não notem.

— Notem o quê? — perguntou Olamun.

— Ardemun conseguiu apanhar uma pedra-de-fogo...

— Ah, então foi isso! — disse Ebulan. — Não vi nada em que ele pudesse ter tropeçado.

— Mas de que serve uma pedra-de-fogo? — quis saber Olamun. — Seriam necessárias ferramentas para transformá-la numa arma. Eu costumava ver um britador trabalhar, mas ele morreu.

— Sim. Mas Ardemun pegou também uma pedra que pode servir para fazer um martelo. Temos alguns ossos aqui. Podemos fazer lâminas, convertê-las em facas, e pontas e outras ferramentas. É urna excelente pederneira.

—    Você trabalha com pedras? — perguntou Olamun.

— Sim, mas alguém terá de ajudar. Vocês precisarão fazer barulho para que não se ouça o atrito de pedra contra pedra — disse Jondalar.

—    Ainda que façamos algumas facas, de que servirá isso? As mulheres têm lanças — disse Olamun.

—    Com as facas, podemos cortar no futuro as cordas de alguém que tenha sido amarrado — disse Ebulan. — No momento podemos inventar um jogo ou competição que cubra o ruído. Mas já não há quase luz.

— Essa me basta. Não vai levar muito tempo fazer as facas e pontas. Amanhã de dia trabalharemos na parte coberta, onde não nos possam ver. Vou precisar daquele osso de pernil, daqueles pedaços de madeira e, talvez, de alguma tábua do teto. Seria bom se houvesse ainda nervo ou tendão, mas tiras finas de couro podem servir. Outra coisa, Ardemun: se você me conseguir algumas penas de ave quando estiver fora do Depósito, eu acharia função para elas.

Ardemun assentiu. Depois disse:

— Você vai fazer algo que voa? Uma lança de arremesso?

— Sim, uma coisa capaz de voar. Isso implicará desbastar e polir e tomará tempo. Mas acho que sou capaz de fazer uma arma que os surpreenderá.

 

Na manhã seguinte, antes de recomeçar a lidar com o sílex, na parte coberta, Jondalar foi conversar com S'Amodun sobre os dois rapazes aleijados. Refletira sobre o assunto durante a noite. Se Darvo iniciara seu aprendizado de britador ainda menino, os dois poderiam fazer a mesma coisa. Aprendido o ofício, poderiam ter vidas úteis e independentes, apesar da invalidez.

— Com Attaroa na chefia — ponderou S'Amodun —, você de fato acha que eles tenham alguma chance?

— Ela dá a Ardemun uma certa liberdade, certo? — disse Jondalar. — Talvez acabe reconhecendo que eles não representam ameaça maior e permita que saiam mais vezes. Até uma tresloucada como Attaroa é capaz de compreender a utilidade de ter dois britadores a seu serviço. As armas de caça de que dispõe são de qualidade inferior. E quem sabe se ela ficara no poder por muito tempo ainda?

S'Amodun demorou o olhar naquele estrangeiro louro que tinha à sua frente, com ar especulativo.

— Será que você sabe de alguma coisa que eu ignoro? Seja como for, vou ver se animo aqueles dois a virem assistir ao seu trabalho.

Na véspera, Jondalar trabalhara do lado de fora, para que as estilhas aguçadas que quebram no processo de desbastamento da pedra não ficassem espalhadas em torno do único abrigo que tinham. Escolhera um terreno por trás do amontoado de pedras que guardava a área da cloaca. Por causa do fedor, as guardas evitavam o fim do recinto, que era, por isso mesmo, a parte menos vigiada do Depósito.

As peças em forma de lâmina que ele extraiu rapidamente da pedra eram pelo menos quatro vezes mais compridas que largas e tinham extremidades arredondadas. Eram as matrizes das quais seriam feitas as ferramentas. As bordas eram finas e afiadas como navalhas modernas, por serem tiradas do núcleo ou cerne de pedra. Seriam capazes de cortar um pedaço de couro como se fora banha coagulada. O gume das lâminas era, na verdade, tão cortante que muitas vezes tinha de ser embotado para que as ferramentas pudessem ser manipuladas sem risco.

Escondido pela cobertura, na manhã seguinte a primeira coisa que Jondalar fez foi escolher um lugar debaixo de uma falha do teto: teria mais luz. Depois, cortou um pedaço do couro que lhe servia de manto e forrou com ele o chão para recolher as inevitáveis lascas de sílex. Com os dois aleijados e diversos outros prisioneiros à sua volta, ele se pôs a demonstrar como uma pedra oval e diversos pedaços de osso podiam ser empregados para fazer ferramentas de sílex, as quais, por sua vez, eram em seguida utilizadas para o fabrico de outras coisas, de couro, madeira e osso. Embora eles tivessem de ser cautelosos, para não atrair a atenção das mulheres, saindo um pouco, como de rotina, depois voltando, como que para se abrigarem e aquecerem — o que também servia para obstruir a visão das sentinelas —, todos o observavam com fascinação.

Jondalar apanhou uma lâmina e estudou-a com ar crítico. Eram diversas as ferramentas que desejava fazer, e tinha de decidir qual delas se adaptava melhor a cada matriz. Da que tinha nas mãos, uma das bordas era quase reta, a outra apresentava leves ondulações. Começou por embotar a borda desigual, raspando-a algumas vezes com o martelo de pedra. Deixou a outra borda como estava. Em seguida, com a ponta comprida de um osso de perna partido, ele desbastou a extremidade arredondada, tirando dela pequenas lascas cuidadosamente controladas, até obter uma ponta. Se tivesse tendão ou cola, ou breu, ou outro material qualquer, com o qual pudesse prendê-la a um cabo, ele o teria feito. Mas tal qual estava era uma faca, perfeitamente adequada quando a aprontou.

Enquanto a faca era passada de mão em mão e seu fio testado em cabelos de braço ou pedaços de couro, Jondalar escolheu outra matriz. Nessa, as duas faces se afundavam no meio, formando uma espécie de cintura. Fazendo pressão com a parte nodosa e arredondada do osso perna, ele tirou fora apenas o gume mais acerado dos dois comprimentos, o que os embotou um pouco, e acertou-os, o que era mais importante, de modo a que a peça pudesse ser usada como raspadeira, para modelar e alisar outras peças, de madeira ou osso. Mostrou como se fazia e passou-a também aos companheiros para exame.

Com a terceira matriz ele embotou os dois lados para que a ferramenta pudesse ser manejada facilmente, sem perigo. Então, com dois golpes secos, cuidadosamente estudados e relativamente fracos, aplicados a umas das pontas, ele tirou duas lasca, deixando uma ponta afiada, de formão. Para demonstrá-la, fez uma goivadura num osso, depois trabalhou nela, aprofundando-a cada vez mais, e vendo crescer, à margem, uma pilha de lascas e aparas finas, encaracoladas. Explicou como um fuste, uma ponta ou um cabo podiam ser feitos grosseiramente na forma desejada, e depois raspados e alisados na fase de acabamento.

A demonstração de Jondalar foi uma revelação. Nenhum daqueles homens ou rapazes jamais tinha visto um britador profissional em ação. Dois mais velhos, poucos conheciam um oficial com a perícia de Jondalar. No pouco tempo de luz que tivera na véspera, ele tirara quase trinta matrizes de um só nódulo de sílex, e só parou quando o nódulo ficou por demais pequeno para ser trabalhado. Mais um dia, e a maior parte dos homens já havia utilizado uma ou mais das ferramentas que ele fabricara.

Procurou, então, explicar-lhes a máquina de caça que tinha em mente. Alguns dos homens pareceram compreendê-lo de imediato, embora, como seria de esperar, duvidassem da acurácia e velocidade que ele atribuía a uma azagaia ou lança curta, arremessada com o engenho que ele descrevia. Outros pareceram incapazes de assimilar prontamente o conceito da coisa, mas isso não tinha importância.

Ter ferramentas confiáveis nas mãos e trabalhar com elas em algo construtivo dera, a todos, nova motivação. Fazer alguma coisa contra Attaroa e as condições de vida que ela lhes impunha curou-os do desespero em que tinham afundado no Acampamento dos Homens e reacendeu a esperança de que lhes seria possível, um dia, retomar a direção do próprio destino.

Nos dias imediatos, Epadoa e suas mulheres sentiram uma alteração na atitude deles e ficaram um tanto ressabiadas. Os homens pareciam andar com mais leveza e sorrir mais frequentemente, o que era suspeito. Mas nada descobriram, por mais que olhassem. Os homens tinham sido extremamente cuidadosos, escondendo não só as facas, raspadores e formões que Jondalar fabricara, mas até as lascas, estilhas, fitas e aparas de madeira, osso ou pedra. Tudo foi enterrado na área abrigada e coberto com uma tábua ou pedaço de couro.

A maior mudança de todas foi a que se operou nos meninos aleijados. Jondalar não se limitara a mostrar-lhes como fazer ferramentas. Fabricara ferramentas especiais para eles, ensinando-lhes como manejá-las. Os dois deixaram de esconder-se nas sombras do abrigo e começaram a relacionar-se com os outros companheiros, mais maduros, do Depósito. Ambos idolatravam o Zelandonii. Doban, principalmente, que era o mais velho deles, compreendia melhor as coisas, embora relutasse em demonstrar sentimentos.

Desde que vivia à sombra de Attaroa, perturbada mentalmente e insensata, Ardoban se sentia indefeso, completamente à mercê de circunstâncias sobre as quais não tinha controle. Temia sempre, dia e noite, que algumas coisa terrível lhe acontecesse. Depois do trauma excruciante e pavoroso da experiência por que passara, achara que sua vida só podia piorar. Muitas vezes desejara a morte. Mas o espetáculo de alguém que, tomando duas pedras achadas num rio, e usando apenas a cabeça e as mãos, dava-lhe a esperança de mudar seu mundo causara-lhe a mais profunda impressão. Doban tinha medo de pedir — ainda não conseguia confiar em ninguém —, mas queria agora, mais do que tudo no mundo, aprender com Jondalar a fazer ferramentas de pedra.

Jondalar sentiu isso e desejou ter mais sílex para poder ensinar ao rapaz os rudimentos do ofício. Será que aquela gente costumava ir a Encontros ou Reuniões de Verão, em que ideias, informações e objetos eram trocados? Haveria, por certo, na região, britadores capazes de ajuda-lo depois. Ele precisava dominar uma profissão em que a deficiência física não fizesse diferença.

Depois que Jondalar construiu em madeira um modelo de arremessador de lanças, mostrando para que servia, e como se fabricava, vários dos homens passaram a fazer cópias daquele estranho petrecho. Jondalar fez também pontas de lança de sílex com algumas das matrizes. Com o couro mais forte de que dispunham, ele cortou finas tiras para amarrá-las aos cabos — que ainda não tinham. Ardemun conseguira, até, tendo achado um ninho de águia-real, trazer-lhe algumas boas penas de vôo — rêmiges primárias. Faltavam-lhe agora apenas os fustes de madeira.

Tentando sempre arranjar-se com o pouco material de que dispunha, Jondalar cortou uma longa peça estreita de uma tábua com a afiada talhadeira que fizera. Usou-a para mostrar aos moços como fixar a ponta e como prender as penas direcionais. Ensinou-lhes também como manejar seu ejetor de azagaias e as técnicas básicas de lançamento, sem, no entanto, fazer nenhuma demonstração prática. Fabricar um fuste de lança a partir de uma prancha era trabalho prolongado e enfadonho. A madeira, seca e frágil, não tinha elasticidade, e quebrava facilmente.

Ele precisava era de arvorezinhas novas, retas, com ramos razoavelmente longos que pudessem ser endireitados. E para endireitá-los precisaria de calor. Ah, se pudesse sair a procurar madeira apropriada! Teria, para isso, de convencer Attaroa. Quando confiou esses pensamentos a Ebulan, à hora em que já se preparavam para dormir, o homem lhe lançou um olhar enviesado, começou a dizer alguma coisa, depois desistiu. Abanando a cabeça, fechou os olhos, e deu-lhe as costas. Jondalar achou aquela reação muito estranha, mas logo a esqueceu, e dormiu pensando no problema.

Attaroa também pensava em Jondalar. Antecipava a diversão que ele seria para ela durante o longo inverno. Queria ganhar controle sobre ele, vê-lo atender a todos os seus desejos. Havia de mostrar que era mais poderosa do que aquele homem alto e belo. Depois, quando não quisesse mais nada com ele, tinha outros planos. Talvez ele já pudesse ser tirado Depósito para trabalhar. Epadoa lhe dissera que alguma coisas passava lá dentro e que o Zelandonii estava metido na história, mas que ainda não descobrira o que era. Talvez fosse bom separá-lo dos outros por algum tempo, pensou Attaroa, botá-lo de volta na gaiola. Seria um boa maneira de deixar todos lá dentro inquietos.

Pela manhã, disse às mulheres que queria uma equipe de trabalho e desejava o Zelandonii incluído nela. Jondalar ficou satisfeito com essa oportunidade de sair e ver algo mais que terra nua e homens desesperados. Era a primeira vez que o tiravam do Depósito para trabalhar, e não imaginava o que teria de fazer. Mas era uma oportunidade de procurar arvores novas, de caule retilíneo. Levá-las para o Depósito seria outro problema.

Mais tarde, no curso do mesmo dia, Attaroa saiu da sua casa, acompanhada por S'Armuna e duas de suas mulheres. Envergava — ostensivamente — a parka de Jondalar. Os homens estavam ocupados empilhando ossos de mamute que tinham vindo de algum lugar. Tinham trabalhado a manhã toda e parte da tarde sem nada para comer e pouca água. Embora estivesse fora do Depósito, Jondalar não tivera oportunidade de procurar as suas arvorezinhas e muito menos de pensar como cortá-las elevá-las para lá. Vigiavam-no de perto e não lhe davam descanso. Estava não só frustrado mas exausto, e com fome, sede e raiva.

Quando as mulheres se aproximaram, ele colocou no chão o osso de perna que ele e Olamun estavam carregando e encarou-as. Notou mais uma vez o quanto Attaroa era alta, mais alta que muitos homens. Talvez tivesse sido atraente. Por que passara a odiar tanto os homens?

Ela lhe dirigiu a palavra. Apesar de não compreender bem a língua, o sarcasmo era evidente.

—    Bem, Zelandonii, estará disposto a contar-nos outra história como a última? Estou com disposição de divertir-me.

S'Armuna traduziu, inclusive com a entonação de escárnio.

— Não contei uma história. Disse-Ihe a verdade — respondeu Jondalar.

— Sobre a mulher que viajava com você no lombo de cavalos? E por onde anda essa bendita mulher? Se tem os poderes que você lhe atribui, por que não veio libertá-lo? — disse Attaroa, de mãos na cintura, como se quisesse mesmo zombar dele.

— Não sei. Daria tudo para saber. Temo que ela tenha sido arrastada para o abismo com os cavalos que vocês caçavam — disse Jondalar.

— Você mente, Zelandonii! Meus caçadores não encontraram mulher nenhuma com os cavalos no fundo do despenhadeiro. Acho que você ouviu que a pena por furtar dos S'Armunai é a morte e quer escapar com essa impostura.

Nenhum corpo fora encontrado? Jondalar ganhou alma nova com tradução de S'Armuna. Ayla poderia, então, estar viva!

—    Por que sorri, Zelandonii, se acabo de dizer-lhe que a pena para o furto é a morte? Duvida que eu seja capaz de puni-lo? — disse Attaroa, espetando o dedo no ar para maior ênfase, primeiro em direção a ele, depois a ela própria.

— A morte? — repetiu Jondalar, depois empalideceu. Seria justo condenar alguém à morte por furtar comida? Ele ficara tão feliz com a possibilidade de que Ayla não tivesse caído no desfiladeiro, afinal de contas, que não prestara atenção ao resto. Quando se conscientizou do que ela dizia, ficou mais furioso ainda do que antes.

— Os cavalos não foram dados só aos S'Armunai. Eles pertencem a todos os Filhos da Terra. Como pode pretender que caçá-los seja furto? Mesmo se eu estivesse caçando seria para comer.

— Ah! Vê? Apanhei-o! Agora você admite que estava caçando o cavalos.

— Não admito. Porque não estava. E não disse isso agora. —. E olhando para a intérprete, pediu-lhe: — Informe-a, S'Armuna, que Jondalar dos Zelandonii, filho de Marthona, antiga líder da Nona Caverna não mente.

— Agora diz ser filho de uma ex-líder? Nosso Zelandonii é um rematado mentiroso. Soma a uma deslavada mentira sobre a mulher mágica essa nova mentira sobre outra mulher, líder de caverna.

— Conheci diversas mulheres líderes. Você não é a única da sua espécie, Attaroa. Muitas mulheres Mamutói são líderes.

—    Co-líderes! Dividem o poder com um homem.

— Minha mãe foi líder durante dez anos. Tornou-se líder quando seu homem morreu, e não partilhou o poder com ninguém. Era igualmente respeitada por homens e mulheres, e passou o poder a meu irmão Joharran por livre e espontânea vontade. O povo não queria a sucessão.

— Respeitada por homens e mulheres por igual? Escutem só o que ele diz! Pensa que não conheço homens, Zelandonii? Pensa que jamais casei? Acha-me tão feia que nenhum homem me olharia?

Attaroa estava aos berros, e S'Armuna traduzia quase simultaneamente, como se soubesse as palavras que a outra iria empregar. Jondalar podia abstrair da intérprete, era como se ouvisse e entendesse a própria Attaroa. Mas o tom desapaixonado da Xamã dava às palavras um estranho distanciamento da mulher que se escandia com tamanha beligerância. Uma expressão amarga, insana, surgiu agora nos olhos dela ao continuar com sua arenga.

—    Meu homem era o chefe, aqui. Era um grande chefe, um homem forte, vigoroso.

— Muitos são fortes. A força não faz o líder — disse Jondalar.

Attaroa sequer o ouviu. Não estava escutando. Fazia pausas para reunir os próprios pensamentos, as próprias memórias.

Brugar era um chefe tão forte que tinha de bater-me todo dia para provar isso. — E com escárnio. — Uma pena que os cogumelos que comeu fossem venenosos! — O sorriso dela era, positivamente, maligno. Disputei o poder com o filho da irmã dele em luta singular e leal O rapaz era um fraco. Eu o venci e matei. — E encarando Jondalar. — Mas você não é fraco, Zelandonii. Não gostaria também de uma oportunidade de lutar comigo por sua vida?

— Não desejo lutar com você, Attaroa. Mas defenderei minha vida se preciso for.

— Não. Você não luta comigo porque sabe que será derrotado. Eu sou mulher. Tenho o poder de Muna do meu lado. A Mãe sempre honrou as mulheres. São elas as dispensadoras da vida. Devem chefiar.

— Não — disse Jondalar.

Alguns dos circunstantes se alarmaram: como ousava aquele homem discordar assim, abertamente, de Attaroa?

—    A liderança não pertence necessariamente a alguém abençoado pela Mãe ou a alguém que seja fisicamente mais forte. O líder dos que apanham amoras, por exemplo, é aquele que sabe onde encontrar amoras, quando as amoras estão maduras, e a melhor maneira de colher amoras. — Jondalar embarcara numa arenga independente. — Um líder tem de ser confiável, seguro. Um líder tem de saber o que faz.

Attaroa fechara a cara. As palavras de Jondalar não tinham efeito sobre ela, que só a si mesma ouvia. Mas não gostava do tom de repreensão do discurso dele, como se tivesse o direito de falar com tamanha liberdade, como se tivesse a pretensão de ensinar-lhe alguma coisa.

—    Não importa a natureza da tarefa — continuou Jondalar. — O chefe da caçada é o que sabe onde os animais estão, e quando. É aquele capaz de rastreá-los. É o mais hábil na caça. Marthona sempre disse que os líderes de um povo devem importar-se com o povo que lideram. Caso contrário, não serão líderes por muito tempo.

Jondalar dissertava, doutrinário, dando vazão à sua fúria, indiferente à expressão de Attaroa, ao seu rosto afogueado.

—    Que importa que o chefe seja homem ou mulher?

—    Não permitirei que os homens liderem outra vez — interrompeu Attaroa. — Aqui, os homens sabem que o poder incumbe às mulheres. Os moços são criados nessa convicção. As mulheres é que caçam, aqui. Não precisamos de homens para rastrear e não precisamos de homens no governo. Você acha que mulheres não sabem caçar?

— É claro que as mulheres sabem caçar. Minha mãe era caçadora antes de ser líder, e a mulher com quem eu viajava é tão boa caçadora quanto qualquer homem que eu tenha conhecido. Ela gostava de caçar e era uma rastreadora incomparável. Eu posso arremessar uma lança mais longe do que Ayla, mas a pontaria de Ayla é melhor do que a minha. Ela pode derrubar ao mesmo tempo uma ave que voa e uma lebre que possa com uma única pedra da sua funda.

— Mais histórias! — zombou Attaroa. — É fácil cantar os feitos de uma mulher que não existe. Minhas mulheres não caçavam. Não tinham permissão para isso. Quando o chefe era Brugar, jamais mulher alguma tocou numa arma. De modo que não foi fácil para nós sobreviver quando assumi a liderança. Ninguém sabia caçar. Mas eu as ensinei. Vê aqueles alvos? — Attaroa apontou para uma série de postes fincados no chão.

Jondalar já os vira, de passagem, embora não soubesse para que serviam. Agora reparara que havia um grande pedaço de carcaça de cavalo dependurado de um tarugo posto quase no topo de um deles. Umas poucas estavam fincadas nela.


—    Todas as mulheres têm de praticar diariamente, e não apenas enterrando as lanças o bastante para que o golpe seja mortal, mas arremessando-as também, de longe. As melhores se tornam minhas caçadoras Mesmo antes, porém, de aprendermos a fazer uso de lanças, fomos capazes de caçar. Há um despenhadeiro ao norte daqui, perto do lugar onde fui criada. Os habitantes daquela área costumam lançar cavalos nesse precipício pelo menos uma vez por ano. Nós aprendemos a caçar cavalos com essa gente. Não é difícil provocar o pânico e forçá-los até a borda do paredão vertical. Basta atraí-los com um engodo qualquer — explicou ela.

Attaroa olhou para Epadoa com óbvio orgulho.

—    Epadoa descobriu que os cavalos gostam de sal. Ela faz com que as mulheres guardem a urina que expelem e usa essa urina como chamariz para os cavalos. Minhas caçadoras são os meus lobos — disse Attaroa, sorrindo em direção às mulheres armadas de lanças que se haviam reunido em torno dela.

Agradava-lhes, sobremaneira, o elogio; enchiam o peito. Jondalar não dera grande atenção às roupas delas até aquele momento. Percebia agora que todas as caçadoras usavam alguma coisa tirada de um lobo. Muitas tinham um debrum de pele de lobo no capuz e pelo menos um dente de lobo e, mais habitualmente, vários, no pescoço. Algumas tinham uma barra de pele de lobo nos punhos ou na barra das parkas, além de outros elementos decorativos, costurados aqui e ali. O capuz de Epadoa era de pele de lobo, e tinha no topo uma porção de crânio de lobo, dentes à mostra. Tanto a barra quanto os punhos da sua parka tinham arremates de pele. Patas de lobo pendiam-lhe dos ombros na parte da frente, e uma cauda peluda de lobo saía de um quadrado de pele costurado na parte de trás.

— Suas lanças são as presas, elas atacam em bando... em alcateia... e trazem a carne para casa. Seus pés são as patas dos lobos, correm de sol a sol, e cobrem muito terreno — disse Attaroa numa espécie de recitativo ritmado, como se já tivesse repetido aquilo centenas de vezes. — Epadoa é a líder da alcateia, Zelandonii. Eu não tentaria ludibriá-la. Ela e muito esperta.

— Acredito que sim — disse Jondalar, sentindo-se em desvantagem. Mas não podia deixar de ter certa admiração pelo que elas haviam conseguido, tendo começado com tão pouco. — Parece-me, no entanto, um desperdício que tantos homens estejam parados e ociosos, quando poderiam contribuir também no esforço comum, ajudando na caça, na coleta de alimentos, no fabrico de instrumentos de trabalho. As mulheres não teriam de trabalhar tanto. Não digo que elas não sejam capazes de dar conta do serviço, mas por que deverão fazer tudo, para elas e para os homens?

Attaroa soltou umas das suas risadas ásperas, de louca, e ele teve um calafrio.

— Já pensei nisso, eu também. São as mulheres que geram a vida. Por que precisamos de homens? Algumas das mulheres não querem abrir mão dos homens, ainda. Mas do que nos servem eles? Para que prestam? Para os ditos Prazeres? Mas são os homens que gozam com prazeres? Nós não mos importamos mais em deitar com homens. Em vez de dividir uma casa com um homem, nossas mulheres moram juntas. Dividem o trabalho, o cuidado das crianças, e se entendem muito bem umas com as outras. Sem homens por perto, a Mãe terá de misturar os espíritos das Mulheres na gestação, de modo que só nascerão crianças do sexo feminino.

Funcionaria, um esquema desses?, pensou Jondalar. S'Amodun dissera que muito poucos bebes tinham nascido nos últimos anos. E, de repente, acudiu a Jondalar a ideia de Ayla: que eram os Prazeres partilhados por um homem e uma mulher que faziam com que uma vida nova começasse a crescer dentro da mulher. Attaroa mantivera homens e mulheres separados. Era por isso que havia tão poucos bebês?

— Quantas crianças nasceram? — perguntou, por pura curiosidade.

— Não muitos. Alguns. Mas se há alguns pode haver mais.

— Só meninas?

— Os homens estão ainda muito perto de nós. Isso deixa a Mãe confusa. Logo não haverá mais homens, e então veremos quantos meninos vão nascer.

— Ou quantos bebês vão nascer, meninos ou meninas — disse Jondalar. — A Grande Mãe Terra criou homens e mulheres, e as mulheres, a exemplo d'Ela mesma, são abençoadas com machos e fêmeas, mas é a Mãe quem decide que espírito do homem se mistura ao da mulher. Mas é sempre um espírito de homem. Você realmente acredita que vai poder alterar o que Ela estabeleceu?

— Não queira dizer-me o que a Mãe fará ou não! Você não é mulher, Zelandonii — disse Attaroa, com desprezo. — Você não gosta é que lhe digam quão pouca importância tem. Ou talvez não queira renunciar aos seus Prazeres. É isso, não é? — indagou ela.

De súbito, Attaroa mudou de tom, passando a ronronar como uma gata!

—    Você quer Prazeres, Zelandonii? Se não me enfrenta, o que estará disposto a fazer pela sua liberdade? Ah, mas eu sei! Prazeres. Por um tomem assim, formoso, Attaroa será capaz de proporcionar Prazeres. Mas será capaz de dar Prazeres a Attaroa?

A mudança na tradução de S'Armuna, que, no fim da frase, falou na terceira pessoa e não como Attaroa, fez ver a Jondalar que todas as palavras que ele ouvira tinham sido traduzidas. Era uma coisa falar com a voz de Attaroa, a chefe, e outra muito diferente falar como a voz de Attaroa, a mulher. S'Armuna sabia traduzir as palavras. Mas não podia assumir a persona íntima da mulher. O que ela disse em seguida deu a Jondalar a oportunidade de distinguir as duas figuras.

— Tão alto, tão louro, tão perfeito, ele poderia ser o homem da Mãe em Pessoa. Vejam, ele é mais alto que a própria Attaroa, e não muitos homens o são. Você já deve ter dado Prazeres a inúmeras mulheres, certo? Um sorriso apenas do belo homem de olhos azuis e as mulher disputam o privilégio de se esgueirarem entre as peles da sua cama. Você lhes deu Prazeres, Zelandonii, a todas elas?

Jondalar não respondeu. Houvera um tempo, sim, em que ele se comprazia em dar Prazeres a muitas mulheres, mas agora só queria Ayla. Uma dor dilacerante o tomou. O que faria sem Ayla? Importava se ele vivesse ou morresse?

—    Vamos, Zelandonii, se você der a Attaroa grande Prazer, poderá ir em liberdade. Attaroa sabe que é capaz de fazê-lo. — E, dizendo isso a mulher, majestosa e sedutora, aproximou-se dele.

Jondalar permaneceu impassível.

—    Vê? Attaroa se entregará a você. Mostre a todos como um homem forte dá Prazeres a uma mulher. Partilhe o Dom de Muna, a Grande Mãe Terra, com Attaroa, Jondalar dos Zelandonii — começou a excitá-lo.

Attaroa pôs os braços em torno do pescoço dele e se colou contra seu corpo. Jondalar não reagiu. Ela quis beijá-lo, mas ele era alto demais para ela e não baixou a cabeça. Não estava acostumada a um homem daquela estatura. Não era sempre que tinha de pôr-se nas pontas dos pés para alcançar um parceiro, sobretudo um que não dobrava a cabeça. Aquilo a fez sentir-se ridícula e avivou a sua ira.

— Zelandonii! Estou disposta a copular com você e a dar-lhe urna chance de ser livre!

— Não quero partilhar o Dom dos Prazeres da Grande Mãe em tais circunstâncias — disse Jondalar. Sua voz, calma e controlada, desmentia a sua fúria, mas não conseguia disfarçá-la. Como ousava aquela mulher insultar a Grande Mãe daquele modo?

— O Dom é sagrado, e se partilha com alegria, de forma voluntária. Copular desse modo seria um insulto para a Grande Mãe. Seria profanar Seu Dom e insultá-la. Exatamente como tomar mulher à força. Eu escolho a mulher com quem quero copular e não tenho nenhum desejo de partilhar o Dom da Grande Mãe com você, Attaroa.

Jondalar poderia ter correspondido ao convite, mas sabia que não era sincero. Ele era atraente e excitante para muitas mulheres. Aprendera a satisfazê-las e tinha experiência em matéria de atração e sedução. Com todo o seu andar sinuoso, não havia calor em Attaroa, e ela não acendia nele qualquer fagulha de desejo. Sentiu que mesmo que tentasse não corresponderia à expectativa da mulher.

Mas Attaroa pareceu estupefata quando ouviu a tradução. Muitos homens teriam estado mais do que dispostos a partilhar o Dom dos prazeres com aquela mulher atraente em troca da liberdade. Estrangeiros que haviam tido o infortúnio de passar pelos territórios dela e serem capturados pelas suas lanceiras costumavam aceitar com alvoroço a chance de escapar da Loba dos S'Armunai tão facilmente. Embora alguns hesitassem, temerosos, a imaginar alguma astúcia ou embuste, nenhum jamais se recusara assim cabalmente. Logo descobriam que tinham tido razão de duvidar da sinceridade dela.

— Você não quer! — disse a líder, estupefata. A tradução fora feita sem ênfase, mas a reação dela era clara. — Você refuga Attaroa. Como se atreve! — gritou. E, voltando-se para as suas lanceiras.

— Tirem-lhe a roupa e amarrem-no ao alvo.

Aquela era a intenção dela todo o tempo. Mas não pretendia executá-la de imediato. Pretendia divertir-se com Jondalar durante todo o inverno, geralmente enfadonho e demorado. Gostava de tentar seus homens com promessas de liberdade a preço de Prazeres. Para ela, aquilo era o máximo da ironia. Daquele ponto em diante, ela os levava a outros atos de humilhação e degradação e, de regra, conseguia que fizessem tudo o que ela mandava antes de jogar a partida final. Eles chegavam a despir-se quando ela mandava, esperando que cumprisse a promessa de deixá-los ir.

Mas nenhum homem dava Prazer a Attaroa. Tinham abusado terrivelmente dela em criança, dela, que havia sempre sonhado casar com o líder algum outro grupo. Quando o fez, descobriu que sua nova situação era pior do que a anterior. Seus Prazeres vinham sempre mesclados de dolorosos espancamentos e práticas vexatórias, até que ela se rebelou e vingou-se, infligindo ao homem que a fizera sofrer morte dolorosa e humilhante. Mas aprendera a lição. E a crueldade de que fora vítima a deformou. Não podia ter Prazer sem infligir sofrimento. Attaroa não fazia caso de partilhar o Dom da Grande Mãe com homens ou, até, com mulheres. Dava a si mesma Prazeres vendo homens sofrerem morte lenta e dolorosa.

Quando houve um longo intervalo sem estranhos, certa vez, Attaroa chegou a divertir-se com homens S'Armunai. Mas depois que os primeiros dois ou três foram vítimas dos seus "Prazeres", os demais ficaram conhecendo o jogo e não caíam nele. Apenas imploravam por suas vidas. Ela às vezes perdoava, mas não sempre, aos que tinham mulheres que suplicassem por eles. Algumas delas não eram dóceis — não entendiam que era pelo bem delas que Attaroa precisava eliminar os homens —, mas podiam ser dominadas através dos machos de que gostavam, e por isso Attaroa permitia que vivessem.

Os viajantes costumavam aparecer no verão. Pouca gente se aventura tão longe no frio do inverno, principalmente no curso de uma Jornada, e os estranhos rareavam. Não viera nenhum no último verão. Poucos conseguiam fugir. Algumas das mulheres, também. Esses avisavam outros. Muita gente recebia com ceticismo — como rumores infundados ou descabeladas fantasias de contadores de histórias — as notícias da Mulher-Loba. Mas sua crónica ia crescendo, e as pessoas evitavam aquelas paragens.

Attaroa ficara encantada quando lhe levaram Jondalar, mas ele se revelava pior do que um dos seus próprios homens. Não fazia seu jogo, sequer lhe dava o gosto de pedir misericórdia. Se o fizesse, talvez ela o deixasse viver algum tempo. Quanto mais não fosse, para vê-lo render-se à vontade.

Ouvindo a ordem, as Mulheres-Lobas se precipitaram sobre Jondalar. Ele se defendeu, com murros e pontapés, derrubando lanças e desferindo golpes que teriam dolorosas consequências. Por pouco não se livrava delas, e escapava, mas acabou vencido pela força do número mulheres. Continuou a forcejar quando cortaram os fechos da sua túnica e as pernas da calça. Mas elas o subjugaram encostando-lhe as aceleradas pontas das lanças no pescoço.

Depois de lhe removerem a túnica e deixarem seu tórax à mostra amarraram as mãos dele com uma corda e passaram-na pelo prego de madeira do poste onde ele vira antes a carcaça de cavalo. Chutou-as quando lhe puxaram as botas e as calças, acertando algumas das mulheres com força. Essas teriam equimoses. Mas de nada adiantou a resistência. Apenas deu vontade às mulheres de revidar. E elas tinham como.

Uma vez preso, nu, ao poste, as lanceiras recuaram e ficaram a contemplá-lo com ar satisfeito. Por mais forte e grande que fosse, a luta fora infrutífera. E a posição era incómoda. Os pés tocavam o chão, mas de leve. Muitos homens teriam ficado dependurados ali. Tinha, apesar de tudo, alguma sensação de segurança com o fato de tocar a terra. E dirigia um vago apelo mudo à Grande Mãe Terra para que lhe enviasse alguém que o salvasse daquela situação inesperada e pavorosa.

Attaroa ficou interessada na grande cicatriz que ele tinha na parte superior da coxa e na virilha. Nada sugeria que houvesse sofrido ferimento tão grave. O Zelandonii não puxava da perna. Se era assim tão forte, talvez durasse mais que muitos. Talvez ele lhe proporcionasse ainda, e afinal de contas, algum divertimento. Attaroa sorriu a esse pensamento.

A expressão subitamente desligada da mulher intrigou Jondalar. Uma brisa lhe arrepiou o corpo, e ele estremeceu, mas não só de frio. Quando ergueu os olhos, viu que Attaroa sorria. Tinha o rosto afogueado e arfava. Parecia satisfeita e estranhamente sensual. O contentamento dela era sempre maior se o homem por quem se interessava era bonito. Atraída à sua moda por aquele estranho alto, indiferente ao próprio carisma, ela decidiu fazer com que ele durasse o mais possíveis.

Jondalar olhou a paliçada. Sabia que os homens assistiam ao espetáculo pelas frinchas. Por que não o tinham prevenido? Aquela não era, obviamente, a primeira vez que uma coisa daquelas acontecia no pátio. E de que teria adiantado um aviso? Ele teria demonstrado medo, se soubesse? Possivelmente acharam melhor para ele não saber.

Na verdade, alguns dos homens tinham discutido a questão. Todos gostavam do Zelandonii e admiravam suas habilidades de britador. Com as facas afiadas e as ferramentas que eram o seu legado, contavam fugir um dia. Haveriam sempre de lembrar-se dele, mas sabiam que se houve-se outra vez um longo intervalo sem estranhos, Attaroa podia muito bem pendurar qualquer um deles naquele mesmo poste. Poucos já haviam estado lá uma vez e sabiam que suas súplicas abjetas não a comoveriam de novo. Secretamente, aprovavam a recusa de Jondalar, mas tinham medo de que qualquer demonstração chamasse a atenção para eles. Ficaram por isso, num silêncio absoluto enquanto a cena se desenrolava, sentindo, todos, compaixão e medo, e um pouco de vergonha também.

Não só as Mulheres-Lobas, mas todas as mulheres do acampamento tinham de ser testemunhas do suplício do homem. Muitas detestavam aquilo, mas tinham medo de Attaroa, inclusive das caçadoras. Ficavam tão afastadas quanto possível. Aquilo as deixava nauseadas, mas se não comparecessem qualquer homem que tivessem defendido no passado seria a próxima vítima.

Umas poucas mulheres tinham tentado tugir, e algumas tiveram êxito. Mas, em geral, eram trazidas de volta. E se houvesse homens no Depósito pelos quais se interessassem — maridos, irmãos, filhos —, esses eram postos na gaiola sem comida ou água, e elas eram obrigadas a vê-los sofrer dias a fio. Às vezes, mas não com frequência, algumas eram postas na jaula elas mesmas.

As mulheres com filhos eram as mais assustadas. Nunca podiam saber o que lhes aconteceria. Principalmente depois do que Attaroa fizera com Odevan e Ardoban. As mais temerosas eram as que tinham filhos de colo e as que estavam grávidas. Attaroa era gentil com elas, mandava dar-lhes guloseimas, e perguntava pela saúde delas. Mas cada uma guardava um segredo. Se Attaroa descobrisse, podiam acabar amarradas ao poste do suplício.

Attaroa se postou à frente das suas caçadoras e apanhou uma lança. Jondalar notou que era uma arma pesada e malfeita e, mesmo naquela hora extrema, pensou que poderia fazer lanças melhores. A ponta, no entanto, por grossa que fosse, e feia, não deixava de ser aguçada e eficaz. Viu que a mulher apontava para baixo. Não queria matar, mas aleijar. Estava terrivelmente cônscio da própria vulnerabilidade, aberto daquela maneira a qualquer dor que ela quisesse infligir-lhe, e fez um esforço para não levantar as pernas a fim de proteger-se. Logo estaria dependurado no ar, mais vulnerável ainda, achava, e teria, ademais, mostrado medo.

Attaroa o observava com olhos semicerrados, sabendo que ele a temia, e retirando prazer desse fato. Alguns lhe pediam perdão. Aquele não Pediria. Não ainda, pelo menos. Ela ergueu o braço como se fosse arremessar a lança. Jondalar fechou os olhos e pensou em Ayla, sem saber se estava viva ou se tivera o corpo despedaçado debaixo de uma horda de cavalos no fundo de um precipício. Com uma dor mais funda do que a que qualquer lança lhe pudesse causar, ele soube que se Ayla estava morta a vida já não fazia sentido, de qualquer maneira.

Ouviu o choque de uma lança no alvo, mas acima de sua cabeça, não embaixo, como previra, e não dolorosamente. E logo caiu de joelhos, pois seus braços estavam livres. Olhou para as mãos e viu que a corda fora cortada. Attaroa ainda tinha a lança na mão! O impacto que ouvira não viera dela. Jondalar ergueu os olhos e viu, espetada no poste, uma lança bem bem-feita, de ponta de sílex. Sua extremidade plumada ainda tremia. A ponta, fina, cortara a corda. Ele conhecia aquela lança!

Virou-se para olhar na direção de onde viera. Diretamente atrás de Attaroa havia movimento. Sua visão ficou borrada, pois seus olhos se encheram de lágrimas de alívio. Mal podia acreditar no que via. Seria mesmo ela? Estava ela viva? Baixou os olhos e piscou repetidas vezes para enxergar melhor. Erguendo-se, em seguida, viu quatro pernas quase negras de cavalo ligadas a um cavalo baio, com uma mulher em cima.

— Ayla! — gritou. — Você está viva!

 

Attaroa também se voltou para ver quem atirara a lança. Do fundo do campo que ficava logo além do Acampamento, viu uma mulher que vinha em sua direção montada num cavalo. O capuz de parka que a mulher vestia estava lançado para trás. Seus cabelos de um louro fulvo e a pelagem cor de trigo maduro do cavalo combinavam tão bem que a assustadora aparição parecia, na verdade, uma só carne. Poderia a lança ter vindo daquela mulher-cavalo?, pensou. Mas como poderia alguém arremessar uma lança àquela distância? E só então viu que a mulher tinha outra lança à mão.

Attaroa sentiu que seus cabelos se eriçavam de pavor e que isso nada tinha a ver com coisas tão materiais quanto lanças. Aquela aparição que tinha diante de si não era uma mulher. Disso estava segura. Num momento de lucidez conscientizou-se da inominável atrocidade dos seus atos e viu que a figura que vinha a galope pelo campo era uma das formas espirituais da Mãe, uma Munai, um espírito vingador, mandado para castigá-la. No fundo, Attaroa quase a acolheu de bom grado. Seria um alívio se o pesadelo que era sua vida acabasse.

Attaroa não era a única a temer a estranha mulher-cavalo. Jondalar tentara contar-lhes, mas ninguém lhe dera crédito. Ninguém jamais concebera um ser humano cavalgando um cavalo. Mesmo vendo, não era fácil acreditar naquilo. A súbita aparição de Ayla afetou cada um dos presentes individualmente. Para alguns, o que assustava era apenas a estranheza da mulher em cima de um cavalo. Uma visão que acrescentava ao medo que tinham do desconhecido. Outros viam o fato inexplicável como manifestação de poderes sobrenaturais e ficaram apreensivos. Muitos ainda, a exemplo de Attaroa, viam nela uma Nêmesis pessoal, um reflexo das suas consciências sobre as suas iniquidades. Encorajados ou forçados por Attaroa, muitos haviam cometido brutalidades inacreditáveis, ou permitido que fossem cometidas, ou pactuado com elas. Por tudo o que tinham feito ou faziam, sentiam vergonha à noite, e tremiam com o medo de castigo futuro.

Até Jondalar pensou, por um momento, que Ayla tivesse vindo do outro mundo para salvar-lhe a vida, convencido de que, mesmo morta, se tivesse querido fazê-lo, poderia. Viu-a aproximar-se, sem pressa, estudando cada detalhe dela, com cuidado e amor, desejando encher a visão com uma imagem que pensara não ver nunca mais: a mulher amada cavalgando sua égua. Ayla tinha o rosto vermelho de frio. Mechas de cabelo, escapadas da correia que as prendia, flutuavam ao vento. Baforadas de ar quente eram visíveis a cada exalação da mulher ou do animal, e Jondalar ficava ainda mais cônscio do seu corpo exposto e frio e dos seus dentes que chocalhavam.

Ayla usava o cinto por cima da parka e, numa de suas calças, a adaga feita de uma presa de mamute que fora presente de Talut. A faca de sílex com cabo de osso que fizera para ela também balançava na bainha. Viu que trazia o machado também. E a bolsa de remédios, do outro lado.

Montando com graça e sem esforço, Ayla parecia inteiramente confiante e serena, mas Jondalar podia sentir que ela estava tensa e pronta para entrar em ação. Tinha a funda na mão direita, e ele sabia a rapidez com que podia manejá-la naquela posição. Com a mão esquerda, em que haveria, estava seguro, duas pedras, ela segurava uma lança, ajustada no arremessador e apoiada diagonalmente em Huiin, da perna direita de Ayla até o ombro esquerdo da montaria. Outras lanças apontavam de um receptáculo trançado posto logo atrás da perna dela.

Avançando, Ayla pôde ver as reações da mulher que ameaçara Jondalar. Sua expressão denotava choque e medo, e o desespero daquele momento de verdade. Mas quando chegou mais perto, nuvens escuras de insânia já obscureciam a razão de Attaroa. Ela semicerrou os olhos para observar a mulher loura, depois sorriu devagarinho, um sorriso de malícia, perverso e calculista.

Ayla não estava familiarizada com a loucura, mas interpretava as expressões inconscientes da outra, e percebeu que estava em face de uma adversária perigosa: unia hiena. Já matara muito carnívoro na vida e sabia como as feras são imprevisíveis, mas só a hienas desprezava. Elas lhe serviam de metáfora para a pior qualidade de gente que havia. E aquela Attaroa era uma hiena, uma manifestação perigosamente maligna do Mal em que ninguém jamais poderia confiar.

O olhar severo de Ayla concentrava-se em Attaroa, mas vigiava também o grupo todo, inclusive as Mulheres-Lobas, tomadas de estupor. E foi afortunado que vigiasse. Quando Huiin estava a poucos passos de Attaroa, Ayla captou um movimento furtivo para o lado. Com gestos tão rápidos que eram difíceis de acompanhar, pôs uma pedra na funda, girou-a e lançou.

Epadoa deu um guincho de dor, segurou o braço e deixou cair com estrondo a lança no solo gelado. Ayla poderia ter-lhe quebrado o osso se assim o desejasse, mas mirara deliberadamente a parte superior do braço e controlara a força. Mesmo assim, a líder das Mulheres-Lobas teria uma contusão muito dolorosa por algum tempo.

— Diga lanceiras parar, Attaroa! — exigiu.

Jondalar só percebeu que Ayla falara numa língua estranha ao ver que entendera o sentido do que ela dissera. Ficou, em seguida, perplexo diante da evidência de que ela falara em S'Armunai! Como poderia Ayla saber S'Armunai? Ela nunca ouvira a língua antes. Ou ouvira.?

Attaroa ficou também aturdida ao ser chamada por seu nome por uma completa estranha. E mais, por notar a peculiaridade do sotaque de Ayla, que era como o de uma outra sem ser. A voz acordava nela sentimentos havia muito tempo esquecidos, a memória sepultada de um complexo de emoções, como o medo, e aquilo a encheu de um grande desconforto. Reforçou nela a convicção de que a figura que se aproximava não era simplesmente uma mulher em cima de um cavalo.

Havia muitos anos que ela não se sentia assim. Attaroa não gostava das circunstâncias que haviam provocado nela outrora aquele estado de espírito e gostava ainda menos de vê-lo voltar agora. Ficava nervosa, agitada, com raiva. Queria expulsar aquelas lembranças. Tinha de livrar-se delas, destruí-las completamente, para que nunca mais voltassem. Mas como?

Olhou para Ayla no cavalo e concluiu, na hora, que a mulher loura era a culpada de tudo. Fora ela quem lhe reavivara a memória e os sentimentos. Se ela se fosse, destruída, tudo desapareceria, tudo ficaria em ordem como antes. Com sua inteligência pervertida, mas ágil, começou a considerar como destruir a mulher. E logo um sorriso astuto e malicioso lhe animou o rosto.

—    Então o Zelandonii estava dizendo a verdade, afinal de contas. Pensamos que ele tentara furtar carne, que já é pouca para as nossas necessidades. E entre os S'Armunai o furto é punido com pena de morte. Ele nos contou uma história sobre cavalos de sela mas nós a achamos difícil de acreditar, o que é compreensível — falou.

Attaroa notou que seu discurso não estava sendo traduzido e interpelou S'Armuna.

—    Intérprete! Você não está repetindo minhas palavras!

S'Armuna estava perdida na contemplação de Ayla. Lembrava-se muito bem que uma das primeiras caçadoras do grupo que viera trazendo o Zelandonii falara de uma visão aterradora que tivera no curso da caçada, pedindo-lhe que a interpretasse: vira uma bela mulher loura sentada em cima de um dos cavalos que eles empurravam para o despenhadeiro! A mulher teria conseguido controlar o animal e desviá-lo do abismo. Quando o segundo grupo de caçadoras chegou, trazendo carne, e falou de um cavalo que escapara montado por uma mulher, S'Armuna ficara sem saber o sentido dessa visão estranha reiterada.

Muitas coisas vinham aborrecendo Aquela que Servia à Mãe desde algum tempo, mas quando o ferido que as caçadoras trouxeram acabou sendo um rapaz saído do seu próprio passado, e ele também falou da mulher a cavalo, aquilo a deixara angustiada. Tinha de ser um aviso, mas qual o sentido aviso? E a coisa ficou remexendo no fundo da mente de S'Armuna.

O fato de que, uma mulher como a que lhe haviam descrito tivesse entrado, efetivamente, no acampamento montando um cavalo amarelo dava ao aviso uma força nunca vista. Era a manifestação material de uma visão! O impacto disso a deixou confusa, impedindo que desse atenção integral a Attaroa, mas ouvira assim mesmo o que fora dito, e rapidamente traduziu em Zelandonii as palavras da Mulher-Loba.

— Matar um caçador pelo fato de caçar não é do agrado da Grande Mãe. Nem um pouco — disse Ayla em Zelandonii, quando a tradução foi concluída. Havia entendido o principal, em S'Armunai. A língua daquele povo lhe parecia tão próxima do Mamutói que não era proeza nenhuma perceber o que diziam, se bem que imperfeitamente. Mas Zelandonii era mais fácil, e em Zelandonii ela podia expressar-se melhor.

— A Mãe exige que Seus filhos acolham o estrangeiro e lhe dêem de comer.

Foi quando falava Zelandonii que S'Armuna percebeu a peculiaridade do sotaque de Ayla. Embora falasse perfeitamente, havia alguma coisa que... Mas não tinha tempo de pensar nisso agora. Attaroa esperava.

— É por causa da escassez que temos essa pena — explicou Attaroa com voz neutra. O esforço que fazia para controlar-se era evidente, tanto para S'Armuna quanto para Ayla. — Desencoraja o desvio de carne, de modo a haver bastante para todos. Para uma mulher como você, tão hábil no manejo de armas, é difícil entender como a vida era difícil quando não se permitia às mulheres caçar. A comida era pouca. Sofremos, todas.

— Mas a Grande Mãe Terra provê mais do que carne para Seus filhos. Certamente as mulheres daqui têm ciência dos alimentos que nascem da terra e podem ser colhidos — disse Ayla.

— Mas tive de proibir a coleta! Se elas passassem o tempo apanhando plantas, não aprenderiam a caçar.

— Então a escassez de alimentos é culpa de vocês mesmas. De você, Attaroa, e das suas seguidoras. Mas isso não justifica que matem os que não conhecem seus costumes — disse Ayla. — Você usurpou um direito Que só a Mãe tem. Ela chama Seus filhos para o Seu seio quando quer. Não cabe a Attaroa assumir a autoridade Dela.

— Todos os povos têm costumes e tradições que são relevantes para eles. Quando tais normas são transgredidas, pode dar-se o caso de que a pena apropriada seja a morte.

Era verdade. Ayla sabia disso por experiência própria.

— Mas por que os costumes do seu povo impõem a pena de morte para o simples desejo de comer? — disse ela. — Os mandamentos da Mãe têm precedência sobre todos os outros. Ela exige a repartição dos alimentos e a hospitalidade para com os estranhos. Você é... descortês e pouco Caleira, Attaroa.

“Descortês" e "pouco hospitaleira"! Jondalar fez um esforço para não cair na gargalhada. "Assassina" e "desumana" teria sido mais correto! Ele assistia a tudo e tudo ouvia com espanto. Estava surpreso e encantado com os eufemismos de Ayla. Lembrava-se de quanto ela não tinha qualquer senso de humor. Não entendia uma pilhéria e era incapaz de fazer insultos sutis como aqueles.

Attaroa estava irritada, era evidente. Continha-se a custo, mas sentia o aguilhão da crítica irónica de Ayla. Tinha ralhado com ela como se fora uma menina travessa. Mil vezes preferia ser chamada má, uma mulher poderosa e malévola, que cumpria respeitar e temer. A moderação das palavras da outra fazia dela objeto de ridículo. Attaroa via o ar de deboche de Jondalar e fuzilava-o com os olhos, certa de que todos ali desejariam rir com ele. Ah, ele se arrependeria daquilo e também a mulher!

Ayla pareceu acomodar-se melhor em Huiin. A verdade é que mudará de posição para empunhar melhor o arremessador de lanças.

—    Acho que Jondalar precisa de suas roupas — disse, levantando a lança um pouco. Não ameaçava com ela, propriamente, apenas mostrava que estava ali. — Não esqueça acarto, que está, no momento, usando. Talvez possa mandar alguém trazer-lhe cinto, mitenes, bolsa d'água faca e as ferramentas que tinha consigo ao ser detido — disse Ayla. È esperou que S'Armuna traduzisse.

Attaroa rilhou os dentes mas sorriu, embora o sorriso fosse mais uma espécie de careta. Fez um sinal a Epadoa. Com o braço esquerdo, o que não lhe doía — Epadoa sabia que ia ter também uma equimose na perna, onde Jondalar a chutara —, a comandante das Mulheres-Lobas apanhou as roupas que tinham tirado do homem com tanto trabalho e deixou-as no chão, junto dele. Depois foi apanhar os outros pertences.

Enquanto aguardavam, Attaroa tomou inesperadamente a palavra, procurando falar num tom mais amigável.

—    Você viajou muito tempo e deve estar fatigada. Como é mesmo seu nome? Ayla?

A mulher fez que sim do alto do cavalo. Entendia muito bem o S'Armunai da outra. A líder não fazia caso de apresentações formais. Faltava-lhe sutileza.

—    Uma vez que dá tanta importância à hospitalidade, talvez eu lhe deva fazer as honras da casa. Vocês podem ficar comigo. Aceitam?

Antes que eles tivessem tempo de responder, S'Armuna interveio.

—    É costume oferecer alojamento aos estranhos com Aquela que Serve à Mãe. São muito bem-vindos aos meus aposentos.

Escutando o que Attaroa dissera e aguardando a tradução, Jondalar pôs as calças. Não se dera conta antes do frio que sentia. É que tinha a vida em perigo imediato. Mas seus dedos estavam tão duros que teve dificuldade para atar os cordéis da perneira. A túnica estava rasgada, mas ele a envergou com prazer assim mesmo. Interrompeu a operação ao ouvir o inesperado convite de S'Armuna. Erguendo os olhos, depois de enfiar a túnica pela cabeça, viu que Attaroa olhava com cara de poucos amigos para a Xamã. Depois sentou-se para calçar as botas tão depressa quanto pôde.

Ela vai ter notícias minhas, pensou Attaroa. Não perde por esperar. Mas disse, sorridente:

— Permita-me, então, oferecer-lhe uma festa, Ayla. Organizaremos um banquete e vocês dois serão nossos hóspedes de honra — disse, incluindo Jondalar num olhar abrangente. — Tivemos êxito numa caçada recente, e não posso permitir que se vão fazendo mau juízo de mim.

Jondalar achou que a tentativa de sorrir amavelmente era um desastre. Além disso, não queria comer com ela nem ficar mais um minuto naquele acampamento. Não teve tempo de opinar, porém. Ayla falou primeiro.

— Teremos muito gosto em aceitar a sua hospitalidade, Attaroa. Quando pretende fazer esse banquete? Eu gostaria de preparar alguma coisa, mas o dia já vai adiantado.

É verdade — disse Attaroa. — E há coisas que também desejo preparar. O banquete será amanhã. Mas, naturalmente, jantarão comigo esta noite. Uma refeição ligeira?

— Tenho de aprontar nossa contribuição para a festa. Voltaremos amanhã — disse Ayla. E acrescentou: — Jondalar ainda precisa da sua parka. Naturalmente ele devolverá o "manto" que estava usando.

A mulher puxou a parka pela cabeça. Jondalar sentiu o cheiro dela, feminino, ao vestir o casaco, mas o calor era bem-vindo. O sorriso de Attaroa era maldade pura, de pé, ali, no frio, com as roupas de tecido fino.

—    E o resto dos pertences dele? — perguntou Ayla.

Attaroa lançou um olhar para a porta da casa e chamou a mulher que estava lá, de pé, havia algum tempo. Epadoa trouxe logo os petrechos de Jondalar, que depositou por terra a alguns passos dele. Não devolvia aquelas coisas de boa vontade. Attaroa prometera dar-lhe algumas delas. Queria, principalmente, a faca. Era a mais bem-feita de todas as que já vira.

Jondalar ajustou o cinto e colocou os objetos nos seus lugares. Mal podia acreditar que os tinha de volta. Então, para surpresa geral, montou de um salto na garupa de Ayla. Aquele era um Acampamento que ele queria ver pelas costas. Ayla correu os olhos em torno, certificando-se de que ninguém estava em posição para impedi-los de sair ou atirardes uma lança. Depois, virou Huiin, e partiram a galope.

—    Atrás deles! — ordenou Attaroa. — Não vão escapar assim tão facilmente!

Depois, entrou em casa fervendo de ódio, mas toda arrepiada de frio.

Ayla manteve Huiin num trote vivo por algum tempo, até ficarem a uma boa distância do acampamento, descendo uma colina. Diminuiu a marcha ao entrar num bosque que havia no sopé da elevação, perto do rio, depois mudou de direção, rumando para o seu próprio acampamento, que ficava, na verdade, próximo do estabelecimento dos S'Armunai. Uma vez a passo, Jondalar ficou consciente da proximidade de Ayla e sentiu tanta gratidão pelo fato de estar com ela outra vez que aquilo quase o sufocou. Passou-lhe os braços em torno da cintura e a estreitou, sentindo os cabelos de Ayla no rosto e respirando seu perfume inebriante e singular de mulher.


— Você está aqui, está comigo. É difícil de acreditar. Temia que estivesse longe, nas campinas do mundo dos espíritos. Sinto uma tremenda gratidão por tê-la aqui. Nem sei o que dizer.

— Eu o amo demais, Jondalar — disse ela, inclinando o corpo trás, de modo a aninhar-se mais nos braços que a enlaçavam. Era um grande alívio estar com Jondalar novamente. Seu amor por ele cresceu-lhe no peito e a deixou sem fôlego.

— Encontrei uma pequena mancha de sangue e segui seu rastro todo o tempo, sem saber, porém, se estava vivo ou morto. Quando descobri que o levavam carregado, entendi que vivia, mas tão ferido que não podia andar. Isso me deixou aflita, a pista não era fácil de seguir e eu sentia que me atrasava. As caçadoras de Attaroa viajam depressa por estarem a pé e conhecerem o caminho.

— Você chegou na hora exata. Se demorasse um pouco mais, teria sido tarde demais.

— Eu não cheguei naquela hora.

— Quando então?

— Cheguei logo depois do segundo carregamento de carne. Eu estava à frente até do primeiro deles, mas as mulheres me alcançaram no lugar onde atravessam o rio. Tive a sorte de ver duas delas que iam ao encontro dos carregadores. Temi que me tivessem visto também, de longe pelo menos. Eu estava a cavalo, de modo que me afastei depressa da pista. Depois voltei, e acompanhei-os de novo, com mais cuidado, porém. Poderia haver um terceiro carregamento.

— Isso explica a "comoção" de que Ardemun falava. Ele não sabia do que se tratava, só que todo mundo estava nervoso e falando animadamente depois da segunda viagem. Mas se você já estava nas imediações, por que levou tanto tempo para me tirar de lá?

— Tive de esperar uma oportunidade para fazê-lo sair daquele lugar fechado por uma cerca. Como é que o chamam? Depósito?

Jondalar fez que sim.

—    Não teve medo de que a vissem?

— Já tocaiei lobos em seu covil. As "lobas" de Attaroa são barulhentas e muito mais fáceis de evitar. Eu me aproximava delas o bastante para escutar o que diziam. Há um outeiro atrás do acampamento. De lá se pode ver toda a instalação e, até, o interior do Depósito. Atrás dele, se você erguer os olhos, vê três grandes pedras brancas alinhadas já bem perto do topo da colina.

— Eu sei quais são. Se soubesse que você estava lá me sentiriam melhor cada vez que olhasse para aquelas rochas brancas.

— Ouvi que uma das mulheres as chamava As Três Donzelas ou talvez, As Três Irmãs.

— Acampamento das Três Irmãs é o nome que dão ao lugar — se Jondalar.

—    Acho que ainda não sei muito bem a língua dessa gente.

—    Sabe mais do que eu. Creio que surpreendeu Attaroa dirigindo-lhe a palavra em S'Armunai.

— A língua não difere muito do Mamutói. É fácil perceber o sentido das palavras — disse Ayla.

— Nunca me ocorreu perguntar-lhes o nome dos três rochedos. São um bom ponto de referência, de modo que é lógico que tenham nome.

— Toda aquela elevação é muito característica e pode ser vista a grande distância. Parece um animal adormecido. Mesmo daqui, como logo vera.

— Estou certo de que a colina tem também nome, por ser de caça abundante, mas só estive lá duas vezes, para funerais. Houve dois seguidos. No primeiro, enterraram três moços — disse Jondalar, baixando a cabeça para evitar os galhos sem folha de uma árvore.

— Eu o segui por ocasião do segundo funeral — disse Ayla. — Pensei que talvez pudesse tirá-lo de lá durante a cerimónia, mas elas o vigiavam muito bem. Então você achou as pedras de pederneira e ensinou os outros a usar o arremessador de lanças — disse Ayla. — Eu tinha de esperar pelo momento certo, de modo a surpreendê-las. Lamento que tenha levado tantos dias.

— Como ficou sabendo das pedras? Nós achávamos que tínhamos tido todo o cuidado possível.

— Eu o vigiava o tempo todo. As Mulheres-Lobas não são tão boas nisso. Você teria visto isso e conseguido um meio de escapar se não tivesse ficado distraído com as pedras. Elas não são tão boas caçadoras quanto pensam — acrescentou.

— Considerando que não sabiam nada quando começaram, a verdade é que não se saíram tão mal. Attaroa disse que elas não sabiam manejar lanças e que por isso tinham de perseguir animais — disse Jondalar.

— Elas gastam um tempo enorme indo até o Rio da Grande Mãe para lançar cavalos no precipício quando podiam caçar muito melhor aqui mesmo. Os animais têm de passar por um corredor estreito entre o rio e a montanha, e é perfeitamente possível avistá-los de longe — disse Ayla.

— Notei isso quando assisti ao primeiro funeral. O lugar em que os moços foram sepultados é um excelente mirante, e descobri que já foi usado para sinalização com fogos embora não possa precisar há quanto tempo. Pude ver ainda o carvão de grandes fogueiras.

— Em vez de fazer currais para homens, deviam fazê-los para animais. Seria possível dirigi-los para dentro dos cercados, até mesmo sem armas — disse Ayla, fazendo com que Huiin parasse. — Veja. Lá está a elevação. Apontou para uma formação calcária recortada contra o horizonte.

— Parece mesmo um animal dormindo. E, veja, lá estão também as Três Irmãs — disse Jondalar.

Cavalgaram em silêncio por algum tempo. Depois, como se viesse pesando nisso, Jondalar disse:

— Se é tão fácil sair do Depósito, por que os homens não o fizeram?

— Acho que não tentaram — disse Ayla. — Talvez por isso as mulheres deixaram de vigiá-los com maior cuidado. Muitas, porém, já não querem que eles fiquem segregados lá. Não os libertam com medo de Attaroa. — E, mudando de assunto: — Olhe, Jondalar, é aqui que tenho estado acampada.

Como que para confirmar o que ela dizia, Racer soltou um relincho ao entrarem num pequeno espaço limpo de vegetação mais cerrada. O potro estava amarrado a uma árvore. Ayla fazia um acampamento diminuto toda noite e levantava-o ao amanhecer, pondo tudo nas costas de Racer para o caso de ter de partir de imediato.

— Você conseguiu salvar os dois da tragédia do abismo! — disse Jondalar. — Eu não sabia se tinha conseguido, e tive medo de perguntar. A última coisa de que lembro, antes de ser ferido na cabeça, foi de ver você montada em Racer e tendo dificuldade em dominá-lo.

— Tive só de me acostumar à rédea. O maior problema foi aquele outro cavalo, o grande, mas ele se perdeu, e tenho pena. Huiin atendeu ao meu assovio logo que eles deixaram de empurrá-la para longe de mim.

Racer demonstrou alegria ao ver Jondalar. Baixou a cabeça, depois sacudiu-a em saudação. Teria ido ao encontro do homem se não estivesse amarrado. De orelhas apontando para a frente e o rabo levantado no ar, esperou que ele se aproximasse e logo se pôs a esfregar o focinho na mão do dono. Jondalar o abraçou como a um amigo que pensava não ver mais, conversando com ele, afagando-lhe o pescoço, coçando-o.

Depois franziu a testa. Tinha outra pergunta, que se esquecera, até então, de fazer.

—    E Lobo? O que aconteceu com ele?

Ayla sorriu, depois deu um assobio diferente. Lobo veio correndo, e ficou tão contente de ver Jondalar que não conseguia parar quieto. Correu para ele, agitando o rabo, latiu um pouco, depois botou-lhe as patas no ombro para lamber-lhe o queixo. Jondalar o pegou pelos pêlos do pescoço, como tantas vezes vira Ayla fazer, afagou-o, e, por fim, apoiou a testa contra a do animal.

—    Ele nunca fez isso comigo antes — disse, surpreso.

— É que sentiu a sua falta. Penso que queria encontrá-lo tanto quanto eu. E nem sei se teria conseguido a pista sem ele. Estávamos a considerável distância do Rio da Grande Mãe, e havia grandes extensões de solo rochoso, que não mostravam rastros. Mas o faro de Lobo os encontrou — disse Ayla, e afagou o lobo.

— E ele ficou esperando lá, escondido no mato, todo o tempo? E só veio quando você chamou? Deve ter sido difícil ensinar-lhe isso. que o fez?

— Tive de ensinar-lhe a esconder-se porque não sabia quem podia vir, e não queria que as caçadoras ficassem sabendo a respeito dele. Elas comem carne de lobo.

— Quem come carne de lobo? — perguntou Jondalar, franzindo o nariz de nojo.

— Attaroa e suas caçadoras.

— Passam tanta fome assim? — perguntou Jondalar.

— Talvez tenham passado, mas agora fazem isso como um ritual. Eu as vi, uma noite. Estavam iniciando uma nova caçadora, admitindo uma jovem na sua alcateia. Elas fazem segredo disso para as outras mulheres, saem do estabelecimento e vão para um lugar especial. Nessa noite, levavam um lobo numa jaula. Abateram-no, cortaram a carne em pedaços, assaram e comeram. Gostam de pensar que estão assimilando, dessa forma, a astúcia e a força do lobo. Seria melhor se apenas observassem como os lobos fazem. Aprenderiam mais.

Não era de admirar que ela desprezasse as Mulheres-Lobas e suas habilidades como caçadoras — pensou Jondalar, entendendo por que Ayla não gostava delas. Seus ritos de iniciação eram uma ameaça para Lobo.

— Você o ensinou, então, a ficar escondido até que o chamasse? Aquilo foi um assovio novo, não foi?

— Você pode aprender comigo a reproduzi-lo. Mas mesmo que Lobo fique escondido... e fica, a maior parte do tempo... eu ainda me preocupo com ele. Também com Huiin e Racer. Lobos e cavalos são os únicos animais que vi serem mortos pelo bando de Attaroa — disse Ayla, procurando com os olhos os seus animais de estimação.

—    Você aprendeu muito sobre elas, Ayla.

—    Tinha de aprender, para poder tirar você de lá. Talvez tenha aprendido até demais.

—    Demais? O que quer dizer?

—    Quando o achei, pensei unicamente em tirá-lo daquele lugar e ir embora com você o mais depressa possível. Mas agora acho que não podemos ir.

—    Por que não? — disse Jondalar, franzindo a testa.

—    Não podemos deixar aquelas crianças na terrível situação em que se encontram. Nem os homens. Precisamos libertá-los do Depósito.

Jondalar ficou preocupado. Conhecia aquele olhar decidido de Ayla.

—    É perigoso ficar, Ayla, e não apenas para nós. Os cavalos são um alvo fácil. Eles não fogem de gente. E você não quer ver os dentes de Lobo postos em colar em volta do pescoço de Attaroa. Eu também gostaria de ajudar aquelas pessoas, vivi no Depósito, e ninguém deveria viver em condições tão vergonhosas, sobretudo crianças, mas o que podemos fazer? Somos só dois.

Ele queria ajudar os companheiros, mas temia que Attaroa fizesse mal a Ayla, se ficassem. Ele a julgara perdida, e agora que estavam reunidos não queria arriscar sua vida. Precisava arranjar um argumento suficientemente forte para convencê-la.

— Não estamos sozinhos. Outros também querem mudar as coisas. Temos de ajudá-los — disse Ayla. Fez uma pausa, para refletir. — Penso que S’Armuna está contando conosco. Por isso ofereceu sua hospitalidade. Precisamos comparecer ao tal banquete.

— Attaroa já usou veneno antes. Se formos, talvez não haja volta — disse Jondalar. — Ela a odeia, sabia?

— Sim, mas temos de arriscar. Pelas crianças. Não comeremos nada, exceto o que eu levar, e não perderemos de vista essa comida. Acha que devemos mudar de acampamento ou ficar aqui? — disse Avia — Tenho muito que fazer até amanhã.

— Não adiantaria mudar, Ayla. Elas nos rastreariam. E é por isso que devemos partir agora — disse Jondalar, segurando-a pelos braços, e olhando-a dentro dos olhos com grande concentração. Talvez assim ela mudasse de opinião. Por fim, soltou-a. Sabia que ela não iria embora que ele teria de ficar para ajudá-la. Isso era, no fundo, o que ele mesmo desejava fazer, mas tinha de tentar dissuadi-la. Jurara não deixar que nada de mal lhe acontecesse.

— Muito bem. Eu disse àqueles homens que você não toleraria que alguém fosse tratado daquela maneira. Não sei se me acreditaram. Mas vamos precisar que alguém nos auxilie. Admito que fiquei surpreso quando S'Armuna sugeriu que ficássemos em casa dela. É uma instalação pequena, distante. Não tem acomodações para hóspedes. Por que você acha que ela deseja que voltemos?

— Porque interrompeu Attaroa para dizer isso. Aquela Xamã não está de acordo com as condições reinantes no acampamento. Você confia em S'Armuna, Jondalar?

Ele se concentrou para pensar.

— Não sei. Confio mais nela do que em Attaroa, mas isso não é dizer muito. Sabe que S'Armuna conheceu minha mãe? Ela morou na Nona Caverna quando jovem, e as duas foram amigas.

— É por isso que fala a língua tão bem. Mas se conheceu sua mãe, por que não fez nada por você?

— Tenho pensado nisso. Talvez não quisesse fazê-lo. Talvez tenha acontecido alguma coisa entre ela e Marthona. Minha mãe nunca me falou, que me lembre, de uma estranha que tivesse morado com ela na mocidade. Mas tenho esperanças em S'Armuna. Ela tratou minha ferida e não fez isso pelos homens do Depósito. Acho que gostaria de fazer mais, e Attaroa não permite.

Os dois desarrearam Racer e montaram o acampamento, se bem que inquietos. Jondalar acendeu o fogo, e Ayla começou a preparar uma refeição. Começou com as porções que usava, de regra, para duas pessoas. Lembrando-se, porém, de que os homens comiam pouco no Depósito, aumentou a quantidade. Uma vez que Jondalar começasse a comer, descobriria que estava faminto.

Jondalar se ocupou da fogueira e ficou sentado um pouco junto dela com o pensamento em Ayla. Depois marchou para a mulher.

—    Venha cá, antes que fique por demais ocupada — disse, tomando-a nos braços. — Já cumprimentei um cavalo e um lobo, mas não aquela que é a coisa mais importante do mundo para mim.  .

Ela sorriu com aquele jeito que sempre acendia nele sentimentos de amor e ternura.

—    Não estou nunca por demais ocupada quando se trata de você.

Ele se curvou para beijá-la na boca, devagar, no começo, e depois mais ardentemente. O temor de perdê-la, a angústia que sofrera o dominaram.

— Pensava que estava morta, que nunca mais nos veríamos. — A voz dele se partiu num soluço de aflição e de alívio, quando a tomou nos braços. — Nada que Attaroa me pudesse ter feito seria pior que perder você.

Ele a apertava tanto que Ayla mal podia respirar. Mas não queria que ele a soltasse. Jondalar beijou-lhe a boca, o pescoço, e se pôs a explorar aquele corpo, que lhe era tão familiar, com mãos de conhecedor.

— Jondalar, estou certa de que Epadoa veio atrás de nós...

O homem recuou um pouco e prendeu a respiração.

—    Você está certa. Esta não é uma boa hora. Estaríamos muito vulneráveis se elas chegassem de repente. — Ele devia ter pensado nisso. Encabulado, procurou desculpar-se. — Mas é que... tive medo de não mais nos vermos... É como que um outro Dom da Mãe estarmos aqui juntos... bem... tive um impulso... o desejo de honrá-La.

Ayla o abraçou, querendo que ele soubesse que ela pensava do mesmo modo. Ocorreu-lhe que Jondalar jamais procurara justificar antes porque a desejava. Ela não precisava de explicações. Aquilo era tudo o que podia fazer para não esquecer o perigo em que estavam e para não ceder ao desejo que tinha dele. Mas ao sentir que esse desejo crescia dentro dela, reconsiderou, tentativamente, a situação.

—    Jondalar... — o tom de voz da mulher lhe chamou a atenção. — Se você acha realmente... estamos longe de Epadoa, ela vai levar algum tempo para localizar a gente... Depois, Lobo nos avisa...

Jondalar a encarou, começando a perceber onde ela queria chegar. Então sorriu, e seus olhos azuis, de atração irresistível, se encheram de amor.

—    Ayla, minha mulher, minha amada adorável — disse, já rouco de desejo.

Fazia muito tempo, e ele estava pronto, mas quis beijá-la primeiro, sem pressa, e profundamente. Sentir que os lábios dela se abriam para dar-lhe acesso à sua boca ardente despertou nele a lembrança de outros lábios e outras aberturas, úmidas e quentes, e ele sentiu, por antecipação, o que seu membro faria. Ia ser difícil, daquela vez, refrear-se até dar-lhe Prazer.

Ayla fechara os olhos para pensar apenas na boca de Jondalar na sua na língua dele que explorava, cautelosa. Sentia aquela túrgida pressão contra o ventre, e sua reação foi tão imediata quanto a dele, um desejo veemente que não sabia esperar. Queria-o mais perto dela ainda, dentro dela. Sem tirar os lábios dos dele, removeu na cintura o fecho das perneiras de lã, depois abaixou-se um pouco para livrá-lo das que ele usava.

Jondalar viu que Ayla tinha dificuldade com os nós que dera nas correias de couro que haviam sido cortadas. Endireitou-se, quebrando o contato entre eles, sorriu dentro dos olhos dela, que eram da cor cinza e azul, de uma determinada pedra-de-fogo de alta qualidade, tirou a faca da bainha, e cortou mais uma vez os amarrilhos. Tinham de ser trocados, de qualquer maneira. Não fazia mal. Ela riu, arriou a roupa de baixo até certo ponto, deu uns poucos passos curtos, assim, desajeitadamente, até as peles de dormir, e se deixou cair por cima delas. Jondalar a seguiu. Ela tirou as próprias botas, depois desamarrou as dele.  

De lado, jacentes, beijaram-se de novo, e Jondalar procurou, debaixo da parka de pele e da túnica, o seio firme e cheio. Sentiu que o mamilo inchava e endurecia na palma da sua mão, e abriu as roupas grossas para exporta-lo à vista. Ele se contraiu com o frio, mas Jondalar o pôs na boca. A ponta do seio ficou quente e não amoleceu. Era demais para Ayla. Sem querer esperar, rolou de costas, puxou-o para cima dela, e abriu-se para recebê-lo.

Com um sentimento de alegria por ver que estava já tão pronta quanto ele mesmo, o homem se pôs de joelhos entre as suas coxas quentes, e guiou com a mão o membro ansioso para o poço profundo. O calor dela e sua umidade o envolveram acariciantes, e ele a penetrou de uma vez até o âmago com um gemido surdo de prazer.

Ayla o sentiu dentro dela, bem fundo. E só pensou nele, na sua quentura, arqueando o corpo para que o homem a enchesse. Sentiu que ele puxava, acariciando-a, e depois se enfiava, de novo, até a raiz. Ela gritava de prazer quando seu longo fuste recuava e voltava, na exata posição para esfregar-se no seu pequeno centro de prazer, o que produzia choque de excitação através do seu corpo.

Jondalar se excitava também rapidamente agora. Por um instante temeu que estivesse indo depressa demais, mas não poderia refrear o clímax nem que quisesse — e nem sequer tentou. Avançou e recuou como seu desejo mandava, sentindo a receptividade dela nos movimentos que fazia ao encontro dos seus, cada vez mais rápidos, agora. E de chofre, sentiu que o Prazer estava às portas.

Com uma intensidade que ia de par com a sua, ela estava pronta. Murmurou apenas:

— Agora, oh, agora.

E se empinou ao seu encontro. Esse encorajamento dela era uma surpresa. Ayla nunca fizera aquilo antes — mas o efeito foi imediato e fulminante. Com mais um empuxo, veio a explosão. Ela estava apenas a um tempo atrasada dele, e com um grito de extremo deleite alcançou seu clímax logo após. Mais uns poucos movimentos, e os dois se aquietaram.

Embora tudo tivesse acontecido muito rápido, o momento fora tão intenso que a mulher levou algum tempo para descer das alturas daquelas pináculo. Quando Jondalar, sentindo que talvez pesasse muito agora em cima dela, rolou para o lado e soltou-se, Ayla teve um inexplicável sentimento de perda e desejou que pudessem ter ficado mais tempo acoplados. Jondalar, de certo modo, a completava, e a conscientização plena do quanto ela temera por ele e do quanto lhe sentira a falta foi tão pungente de repente que seus olhos se encheram de lágrimas.

Jondalar viu uma gota transparente de água cair do canto do olho de Ayla e escorrer pelo lado do rosto até a orelha. Soergueu-se apoiado num cotovelo e perguntou:

— O que foi, Ayla?

— Eu choro de felicidade de estar com você — disse ela. E uma outra lágrima subiu e lhe tremeu na borda da pálpebra antes de cair.

Se está feliz, por que chora? — disse ele, embora não precisasse perguntar.

Ela abanou a cabeça, incapaz de falar no momento. Ele sorriu, cônscio de que a mulher partilhava os seus sentimentos de alívio e gratidão por estarem reunidos. Ele a beijou nos olhos, na face, e, por fim, na formosa boca sorridente.

— Eu a amo também — disse-lhe ao ouvido.

Sentiu que seu membro pulsava de novo e desejou recomeçar. Mas não era possível. Epadoa, cedo ou tarde, os encontraria.

— Há um curso d'água aqui perto — disse Ayla. — Preciso lavar-me. Aproveito para encher as bolsas.

— Vou com você — disse o homem, em parte por querer estar com ela, em parte para protegê-la.

Apanharam as roupas de baixo, as botas, as bolsas d'água, e foram até o rio, que era largo, e estava quase congelado. Só uma seção fluía, no meio. Jondalar estremeceu com o choque da água fria e só se lavou porque ela o fazia. Teria ficado satisfeito em secar-se com o calor das roupas, mas sempre que Ayla podia tomava banho, por mais fria que fosse a água. Era um ritual que sua madrasta do Clã lhe incutira, embora agora ela invocasse a Mãe com palavras embrulhadas na língua dos Mamutói.

Encheram as bolsas d'água e, no caminho, Ayla recordou a cena que testemunhara antes que os amarrilhos das perneiras dele fossem cortadas da primeira vez.

— Você recusou fazer amor com Attaroa? Humilhou-a diante do seu povo.

— Eu também tenho meu orgulho. Ninguém me obrigará a partilhar com quem quer que seja o Dom da Grande Mãe. E não teria feito diferença. Estou convencido de que a intenção dela, desde o princípio, era fazer de mim um alvo para a sua lança. Mas agora é você que precisa ter cuidado. "Descortês" e "pouco hospitaleira"... — Jondalar fez um muxoxo e sorriu. Depois, ficou sério. — Ela a odeia, sabe? Ela nos matará se tiver oportunidade.

 

Ao se instalarem para a noite, Ayla e Jondalar ficaram atentos a todo e qualquer ruído. Os cavalos foram amarrados perto, e Ayla manteve Lobo junto da cama, ciente de que ele a avisaria de tudo que percebesse de anormal. Mesmo assim, dormiu pouco e mal. Seus sonhos continham ameaças, mas foram amorfos e desorganizados, sem mensagens ou avisos que pudesse identificar, exceto que Lobo aparecia neles com frequência.

Ela acordou logo que o dia rompeu por cima da galhada desnuda dos salgueiros-chorões e das bétulas, à beira do riacho. Ainda estava escuro no resto da estreita ravina em que se achavam, mas, firmando a vista, Ayla começou a distinguir o espruce, com suas agulhas curtas, e os pinheiros, de agulhas mais compridas, na luz que se intensificava. Uma neve seca caíra durante a noite e cobrira de branco os sempre-verdes, o mato fechado, a relva e, até, as peles de dormir. Mas Ayla se sentia bem, no aconchego quente da cama.

Tinha quase esquecido como era bom ter Jondalar dormindo a seu lado. E se deixou ficar por um momento quieta, gozando apenas a proximidade dele. Preocupava-se com o dia que tinha pela frente e com o que ia preparar para o festim. Resolveu, por fim, levantar-se, mas quando quis sair das peles sentiu que o braço de Jondalar a enlaçava, para impedir que se fosse.

—    Tem mesmo de ir? Faz tanto tempo que não durmo com você do lado... — disse Jondalar, afagando-lhe a nuca.

Ela se acomodou.

— Não quero sair da cama, está frio, desejaria ficar com você, mas preciso cozinhar alguma coisa para o banquete de Attaroa e fazer a nossa refeição da manhã. Não está com fome?

— Agora que você fala nisso, acho que seria capaz de comer um cavalo — disse Jondalar, lançando um olhar guloso para os dois equinos.

—    Jondalar! — disse Ayla, como se estivesse chocada.

— Não um dos nossos, é claro, mas é o que tenho comido ultimamente: carne de cavalo. E quando me davam! Eu não imaginava que comeria isso, mas quando não se tem outra coisa... Não é ruim, aliás.

— Eu sei, mas aqui você não vai ter de comer isso. Temos muita coisa.

Aconchegaram-se um pouco mais, depois Ayla pulou fora da cama.

—    O fogo apagou. Se você acender outro, faço chá. Depois precisamos de uma boa fogueira, para preparar nossa comida.

Para a refeição da noite anterior, Ayla preparara uma sopa substanciosa, à base de carne-seca de bisonte, tubérculos e pinhões apanhados na vizinhança. Mas Jondalar descobriu com pena que não conseguia comer tanto quanto desejara. Terminado o jantar, Ayla havia começado a fazer uma espécie de geléia de maçã. Tinha colhido maçãs pequenas, pouco maiores que cerejas, que encontrara quando andava na pista de Jondalar. Estavam congeladas nos ramos sem folhas das árvores na encosta sul de uma colina. Ayla cortou as maçãs ao meio, tirou-lhes as sementes e botou-as para ferver em água juntamente com bagas secas de roseira brava. Pusera o preparado junto do fogo. De manhã, esfriara e engrossara, devido à pectina natural, numa calda com consistência de geléia em que havia pedacinhos incrustados de casca de maçã.

Agora, antes de fazer o chá. Ayla pôs um pouco d'água na sopa que jurara da véspera e aqueceu-a também para reforçar a refeição da manhã. Provando a compota, verificou que o congelamento diminuíra a acides das frutas e as bagas de roseira lhe tinham dado um belo tom avermelhado e um gosto especial, picante e adocicado ao mesmo tempo. Serviu a geléia numa tigela ao mesmo tempo que a sopa.

— Esta é a melhor comida que já provei na vida! — disse Jondalar. — Que temperos você usou?

— O principal tempero é a fome — disse Ayla, sorrindo.

Jondalar concordou e, de boca cheia, disse:

— Acho que está certa. Fico com pena daqueles pobres coitados, no Depósito.

— Não se pode deixar que alguém passe fome quando há o que comer— disse Ayla. Sua indignação fervia outra vez. — É diferente, se todos passam fome.

— Isso acontece, no fim de um inverno muito intenso — disse Jondalar. — Você já passou fome?

— Eu não comia sempre todas as refeições, regularmente; e meus pratos favoritos acabavam antes que chegasse a minha vez. Mas se a gente procura, sempre encontra o que comer — se tem a liberdade de procurar!

— Conheço gente que passou fome por ter acabado a comida e não saber onde achar mais. Você, porém, sempre acha alguma coisa, Ayla. Como explica isso?

— Iza me ensinou. Fui sempre interessada em comida e plantas — disse Ayla, e fez uma pausa. — Acho que houve um tempo em que eu quase passei fome. Antes que Iza me encontrasse. Eu era menina e não me lembro muito bem. — Um sorriso iluminava-lhe o rosto, com as reminiscências. Iza dizia que não conhecera nunca uma pessoa que tivesse aprendido tão depressa quanto eu a achar alimentos, o que era extraordinário, pois eu não nascera com a memória de onde procurar ou o quê. Ela me disse que a fome me ensinara.

Jondalar devorou o primeiro prato e repetiu. Depois ficou olhando enquanto Ayla revistava suas reservas de mantimentos e começava a preparar a iguaria que pretendia levar para o almoço de Attaroa. Que vasilha usar? Cumpria fazer uma grande quantidade de comida, para todo o Acampamento S'Armunai, e eles tinham trazido apenas artigos de primeira necessidade.

Esvaziou uma grande bolsa d'água, a maior de que dispunham, dividindo o líquido por diversas tigelas. Depois separou o forro da pele. Os dois tinham sido costurados juntos, com o pêlo do animal para fora. O forro era um estômago de auroque, não exatamente à prova d'água, mas deixava a água passar muito devagar. A umidade que porejava era absorvida pelo couro macio do invólucro e pelos pêlos, de modo que a parte externa da bolsa ficava sempre seca. Ayla cortou o topo do forro, atou-o a uma armação feita com tendões finos da sua cesta de costura, e encheu o de água outra vez, esperando até que uma névoa de umidade tivesse passado para o lado de fora.

Àquela altura, o fogo, que fora aceso bem cedo, já estava reduzido a brasas, e Ayla pôs a bolsa cheia diretamente em cima delas, certificando-se de que tinha mais água à mão para que a panela de pele estivesse sempre cheia. Enquanto esperava pela fervura, começou a tecer urna cesta com galhos de salgueiro e capins amarelos, que a umidade da neve tornara flexíveis.

Quando as bolhas apareceram, ela quebrou dentro da água tiras de carne-seca magra e algumas barras do alimento agrumado de viagem Obteve assim um caldo grosso. Misturou nele uma diversidade de grãos. Pretendia ainda juntar-lhe raízes e tubérculos secos — a cenoura, por exemplo, ou a chufa — mais leguminosas como a vagem, groselhas e vacínios. Temperou tudo com ervas aromáticas do seu estoque: unha-de-cavalo, azeda, basilicão e rainha-dos-prados, mais um pouco de sal, que guardava desde a Reunião de Verão dos Mamutói, que Jondalar nem sabia que ela ainda tinha.

Ele não queria afastar-se muito e ficara por perto, apanhando madeira e água, colhendo capins, cortando juncos e ramos de salgueiro para o trançado que ela fazia. Estava tão feliz com a companhia dela que não queria perdê-la de vista. Ela também se regozijava vendo-o de volta. Mas quando o homem percebeu a quantidade de alimentos que ela estava tirando dos suprimentos de viagem alarmou-se. Passara fome havia pouco e estava muito consciente do problema.

— Ayla, você está botando nessa vasilha grande parte das nossas reservas de alimentos. O que tirou não vai fazer falta?

— Quero ter bastante para as mulheres e os homens do Depósito. Quero mostrar-lhes o que podem ter se trabalharem todos juntos — explicou Ayla.

— Talvez eu deva ir atrás de carne fresca — disse Jondalar, com uma expressão preocupada.

Ela o olhou, admirada com a reação dele. De longe, a maior parte do que tinham comido durante a viagem fora colhida in loco, e se usavam os suprimentos era mais por gosto ou conveniência que por necessidade. Além disso, tinham outras reservas na margem do rio, com o resto dos seus pertences. Notou que Jondalar emagrecera e começou a compreender o motivo daquela angústia, tão pouco característica nele.

—    Pode ser uma boa ideia. E talvez deva levar Lobo. Ele é bom para levantar caça e lhe dará aviso se alguém se aproximar. Tenho certe de que Epadoa e as Mulheres-Lobas de Attaroa estão procurando por nós.

—    Mas se eu levo Lobo, quem avisará você?

— Huiin. Ela sentirá a presença de estranhos. Mas eu gostaria de sair deste lugar logo que a comida esteja pronta e ir diretamente para estabelecimento de Attaroa.

— Quanto tempo ainda isso vai levar? — perguntou ele, de cenho franzido, sopesando as alternativas.

— Não muito, espero. Não estou acostumada a fazer tanta quantidade de uma vez só, de modo que não posso saber com certeza.

— Talvez eu deva esperar, então, e caçar depois.

— Como quiser, mas se fica eu gostaria de mais lenha.

— Vou procurar lenha. E também empacotar tudo o que você não esta usando. Assim, estaremos prontos para partir.

Levou mais tempo do que Ayla imaginara. Quando a manhã ia em meio, Jondalar saiu com Lobo para reconhecer a área. Mais para ter certeza de que Epadoa não andava por perto do que para procurar alguma caça. Ficou surpreso com a pronta disposição do lobo em acompanhá-lo... depois que Ayla assim determinou. Sempre considerara o animal como propriedade dela e nunca pensara em levá-lo consigo em suas expedições. O animal revelou-se excelente companhia, e logo pegou um coelho. Jondalar deixou que ele ficasse com a presa.

Quando regressaram, Ayla serviu uma grande porção da deliciosa mistura que preparara para os S'Armunai. Costumavam comer apenas duas vezes por dia. Mas logo que Jondalar vira a vasilha cheia de comida descobrira que estava com fome. Ayla provou um pouco e deu um bocado a Lobo.

Passava de meio-dia quando ficaram prontos para partir. Enquanto a comida cozinhava, Ayla completara dois cestos alguidariformes, ambos de bom tamanho, mas um maior que o outro. Encheu os dois com a apetitosa preparação que fizera, e acrescentou ainda alguns pinhões, um tanto oleosos. Achava que com sua dieta habitual de carnes magras, as gorduras e óleos fariam sucesso entre o povo do Acampamento. Sabia também, sem entender muito bem por que, que era disso que eles precisavam mais, principalmente no inverno, para calor e energia. Sabia que todos ficariam satisfeitos e de barriga cheia.

Ayla cobriu as cestas cheias com outras, rasas, gameliformes, à guisa de tampas, e colocou-as na garupa de Huiin, amarrando-as com um artilho grosseiro, feito às pressas, de ramos de salgueiro e capim torcido. Ia ser usado só uma vez e jogado fora. Em seguida, dirigiram-se ao acampamento, mas por outra via. No caminho foram combinando o que fazer com os animais uma vez nos domínios de Attaroa.

— Podemos esconder os cavalos na mata, junto do rio, amarrando-os a uma árvore, e indo a pé o resto do caminho — propôs Jondalar.

— Não quero amarrá-los. Se as caçadoras de Attaroa os acharem, será fácil matá-los. Ao passo que se estiverem em liberdade terão pelo menos uma chance de fugir. Voltarão quando assoviarmos, chamando-os. Prefiro que fiquem debaixo de nossos olhos, e perto, para virem quando for o caso.

— Então, o campo coberto de capim seco das imediações do acampamento me parece o lugar ideal. Ficarão lá sem serem amarrados. Sempre ficam se podem pastar um pouco — disse Jondalar. — Causará uma grande impressão em Attaroa e nos S'Armunai se chegarmos montados ao acampamento. Se os S'Armunai forem como os demais que encontramos pelo caminho, terão um certo medo de gente capaz de dar ordens a cavalos. Pensarão que isso tem algo a ver com espíritos, poderes mágicos, ou coisa da mesma espécie. E se tiverem medo de nós, temos uma vantagem inicial. Como somos só dois, precisamos de toda vantagem que pudermos conseguir.

— É verdade — disse Ayla. Estava preocupada com a segurança deles dois e dos cavalos. Também não gostava de aproveitar-se dos receios infundados, supersticiosos, dos S'Armunai. Era como se ela estivesse mentindo. Mas suas vidas estavam em perigo, e também as vidas dos meninos e homens presos no Depósito.

Era um momento difícil para Ayla, obrigada a escolher entre dois males. Mas, afinal, fora ela quem insistira na permanência deles, mesmo com risco de vida. Tinha de superar sua compulsão de ser, sempre, absolutamente veraz, e escolher o mal menor, em suma, de adaptar-se, se queriam salvar os meninos, os homens e eles mesmos da sanha de Attaroa.

—    Ayla — disse Jondalar. E vendo que ela não dava mostras de ter ouvido, repetiu: — Ayla!

—    Hein? Sim...

—    E Lobo? Se não for conosco, onde escondê-lo? É tudo campo aberto em volta do estabelecimento de Attaroa.

Ela pensou um pouco e respondeu.

—    Ele pode ficar onde eu ficava para observá-lo, Jondalar, no topo da colina. Existem árvores por lá, um arroio, e alguma vegetação rasteira. As mulheres de Attaroa sabem da existência dos nossos cavalos mas não sabem nada sobre o lobo. Considerando o que fazem com esses bichos, não podemos facilitar. Vou dizer-lhe que fique escondido. Acho que me obedecerá, se me vir de vez em quando.

Ayla pensou mais um momento.

—    Vou levá-lo agora. Você espera aqui por mim, com os cavalos. Depois fazemos uma volta e apareceremos no Acampamento vindo de outra direção.

Ninguém os viu sair da orla da mata e entrar no campo. Os primeiros que deram com eles — um homem e uma mulher, cada um num cavalo, galopando rumo ao acampamento — pensaram que tinham, simplesmente, aparecido. Quando alcançaram a casa de Attaroa, todos os que podiam estavam lá, à espera. Até os homens do Depósito pareciam apinhados atrás das frestas, olhando.

Attaroa estava de mãos nas cadeiras e pernas abertas, na sua atitude habitual de comando. Jamais o admitiria, mas estava chocada e ansiosa vendo-os chegar, e dessa vez em cavalos separados. Nas poucas ocasiões em que alguém lhe escapara, fugira tão depressa quanto era possível. Ninguém retornara jamais por vontade própria. Que poderes teriam aqueles dois, que se sentiam, assim, tão confiantes? Com seu medo latente de represálias por parte da Grande Mãe e do mundo dos espíritos, Attaroa procurava perceber o significado da reaparição daquela mulher enigmática e do alto e belo Zelandonii. Mas nada disso lhe transpareceu nas palavras.

— Decidiram voltar, então! — disse, ordenando a S'Armuna com um olhar que traduzisse.

Jondalar achou que a Xamã ficara igualmente surpresa, mas sentiu nela também um certo alívio. Antes de traduzir para Attaroa, S'Armuna se dirigiu a eles diretamente.

— Não importa o que ela lhe diga. Aconselho-o a não se hospedar aqui, filho de Marthona. Minha própria casa continua à disposição de vocês dois. Em seguida, repetiu o que a líder dissera.

Attaroa achou que ela usara mais palavras do que lhe pareciam necessárias para traduzir o pouco que dissera. Mas desconhecendo a língua, não podia ter certeza.

—    Por que voltamos, Attaroa? Pois não fomos convidados para um banquete em nossa honra? — disse Ayla. — Trouxemos uma pequena contribuição em alimentos.

Enquanto essas palavras eram vertidas para o S'Armunai, Ayla desmontou, tirou da garupa de Huiin a maior das duas cestas e depositou-a no chão, entre Attaroa e S'Armuna. Quando destampou a vasilha, o delicioso aroma das ervas e grãos que usara como tempero fez com que os presentes arregalassem os olhos. Aquilo era um regalo como raras vezes tinham visto nos últimos anos, principalmente no inverno. Ficaram todos de água na boca, e até Attaroa perdeu momentaneamente a fala. Passado o espanto, disse:

—    Parece suficiente para todos.

—    Isso é só para as mulheres e crianças — disse Ayla. Depois apanhou a cesta menor, das duas que havia tecido, e que Jondalar acabava de entregar-lhe, e deixou-a ao lado da primeira. Levantando a tampa, anunciou:

—    Esta porção é para os homens.

Um murmúrio correu atrás da paliçada e entre as mulheres que tinham acorrido das casas. Attaroa, porém, ficou furiosa.

—    O que quer dizer com isso? Para os homens?

— Certamente quando a líder de um Acampamento anuncia um festim em honra de um visitante inclui todo o povo. Ou não é assim? Assumi que você era a líder do conjunto do Acampamento e que eu deveria trazer comida suficiente para todos. Você é a líder de todos, certo?

— Claro que sou a líder de todos — disse Attaroa, com dificuldade para achar as palavras.

—    Se não está pronta, ainda, seria melhor levarmos isto para dentro a fim de que não congele — disse Ayla, apanhando a vasilha maior e virando-se para S'Armuna. Jondalar apanhou a outra.

Attaroa logo se recompôs.

— Convidei-os para ficar na minha casa — disse.

— Imagino que esteja ocupada com os preparativos — disse Ayla —, e eu não gostaria de ser um estorvo para a líder deste Acampamento. Será mais apropriado que nos hospedemos com Aquela que Serve à Mãe.

S'Armuna traduziu e acrescentou:

—    É como sempre se faz.

Ayla voltou-se para sair, dizendo baixinho a Jondalar:

—    Comece a andar para a casa de S'Armuna.

Attaroa os acompanhou com os olhos. Um sorriso malévolo alterou-lhe as feições, mudando um rosto que podia ser belo numa grotesca caricatura. Haviam sido estúpidos de voltar, sabendo que isso lhe dava a oportunidade que desejava para destruí-los. Mas era preciso apanhá-los distraídos. Fora bom, então, que tivessem ido com S'Armuna. Saíam do caminho. Precisava de tempo para discutir planos com Epadoa, que não voltara ainda.

Por outro lado, tinha de fazer a festa. Chamou uma das mulheres a que parira uma menina e era sua favorita, mandando que dissesse às outras para prepararem alguma coisa para um grande almoço.

—    Que façam bastante para todos — disse —, inclusive para os homens do Depósito.

A mulher pareceu surpresa, mas saiu correndo para cumprir as instruções.

— Imagino que possamos agora tomar chá — disse S'Armuna, depois de mostrar a Ayla e Jondalar onde deveriam dormir. Esperava que Attaroa entrasse como um pé de vento a qualquer minuto. Mas, depois que serviu o chá e nada aconteceu, ficou mais tranquila. Quanto mais tempo Ayla e Jondalar ficassem lá sem objeções por parte de Attaroa, mais chance havia de que ela lhes permitisse permanecer.

Mas quando a tensão passou, um silêncio inconfortável caiu sobre os três. Ayla estudava a mulher que Servia à Mãe sem ser indiscreta. O rosto dela era mais proeminente do lado esquerdo do que do direito. Concluiu que S'Armuna devia ter alguma dor no lado menos desenvolvido do rosto ao mastigar. A mulher não fazia nada para esconder a anormalidade. E usava o cabelo castanho-claro, que começava a ficar grisalho, puxado para trás e para cima com simples dignidade, e preso num coque macio no alto da cabeça. Por algum motivo inexplicável, Ayla se sentia atraída pela Xamã.

Sentia nela, entretanto, uma certa hesitação. Era como se S'Armuna estivesse dividida e indecisa. Ela ficava olhando para Jondalar como se quisesse dizer-lhe algo, mas como se fosse difícil começar, como se procurasse um jeito de abordar assunto delicado.

Movida pelo instinto, Ayla tomou a palavra.

—    Jondalar me contou que você conheceu Marthona, S'Armuna — disse ela. — Eu me perguntava onde teria aprendido a falar tão bem a língua dele.

A mulher olhou para ela com espanto. A língua dele pensou, não dela? Ayla sentiu a nova e repentina avaliação dela pela Xamã, mas a resposta foi no mesmo tom, vigoroso.

—    Sim, conheci Marthona, e também o homem com quem ela casou. — Parecia querer dizer mais alguma coisa, mas, ao invés, se calou.

Jondalar preencheu o vazio, aflito para falar dos seus, sobretudo com alguém que os conhecera.

— Joconan era o líder da Nona Caverna quando você estava lá? — perguntou.

— Não, mas não me admira que ele tenha chegado ao posto.

— Dizem que Marthona era quase uma co-Líder. Como as dos Mamutói, suponho eu. Foi por isso que, morto Joconan...

— Joconan morreu? — perguntou S'Armuna. Ayla percebeu que a notícia fora um choque para ela e notou uma expressão no seu rosto que era quase de dor. Depois a Xamã recobrou o autodomínio.

—    Deve ter sido um período difícil para sua mãe.

—    Sim, certamente. Mas não penso que ela tenha tido muito tempo para pensar nisso ou para chorá-lo. Todos a pressionavam para assumir a liderança. Não sei quando ela conheceu Dalanar, mas quando começou a viver com ele já era líder da Nona Caverna havia vários anos. Zelandoni me disse que ela já fora abençoada com a promessa do meu nascimento antes de casar, de modo que o casamento deve ter sido feliz. No entanto, eles desmancharam o laço quando eu tinha dois anos, e Dalanar foi em bora. Não sei o que aconteceu, e histórias e cantigas sobre o amor dos dois ainda são correntes entre nós. Minha mãe fica desconcertada com elas.

Ayla fez com que continuasse. Queria saber mais. O interesse de S'Armuna não era menor.

—    Ela casou mais uma vez, não foi? E teve mais filhos? Sei que você tinha outro irmão.

Jondalar retomou o fio da narrativa, dirigindo-se agora a S'Armuna:

—    Meu irmão Thonolan nasceu ao tempo de Willomar, bem como Folara, minha irmã. Acho que foi um bom casamento para ela. Marthona está feliz com Willomar e ele foi sempre muito bom para mim. Viajava muito em missões de negócios para minha mãe. Às vezes, me levava. E a Thonolan também, quando ele ficou maior um pouco. Por muito tempo considerei Willomar um segundo pai, até que fui morar com Dalanar e fiquei conhecendo Dalanar um pouco melhor. Ainda me sinto mais ligado a Willomar, embora Dalanar também tenha sido sempre gentil comigo e eu tenha aprendido a gostar dele também. Ele encontrou uma rica pedreira, casou com Jerika e fundou sua própria Caverna. Tiveram uma filha, Joplaya, que é minha prima.

Ocorreu a Ayla que se um homem era tão responsável quanto uma mulher pelo fato de uma vida começar dentro dela, então a "prima" a quem ele chamava Joplaya era, na verdade, sua irmã. Tão irmã quanto a outra, Folara. Ele a chamara de prima. Será que consideravam o parentesco mais próximo que a relação com os filhos das irmãs da mãe ou com mulheres dos irmãos dela? Ela se deu conta, porém, de que a conversa sobre a mãe de Jondalar continuara enquanto ponderava essas outras aplicações.

— ...então minha mãe passou a liderança para Joharran, se bem que ele insistisse na permanência dela como uma espécie de conselheira dizia Jondalar. — Como conheceu minha mãe?

S'Armuna hesitou uma fração de segundo, de olhar perdido no espaço como se estivesse vendo um quadro do passado. Depois, lentamente, começou a falar.

—    Eu era pouco mais que uma menina quando fui levada para lá O irmão de minha mãe era líder aqui, e eu era sua predileta, a única filha mulher nascida de suas duas irmãs. Ele fez uma Jornada quando jovem. Ouvira falar da renomada zelandonia. Quando acharam que eu tinha algum talento ou dom para Servir à Mãe, quis que eu fosse educada pelos melhores. Levou-me então para a Nona Caverna, porque a Zelandoni de vocês era a Primeira entre todas as que Serviam à Mãe.

— Parece que essa é uma tradição da Nona Caverna. Quando sal nossa atual Zelandoni vinha de ser escolhida como Primeira — comentou Jondalar.

— Você sabe o nome primitivo daquela que é Primeira hoje? — perguntou S'Armuna, muito interessada.

Jondalar deu um sorriso e Ayla achou que sabia o motivo.

—    Eu a conheci como Zolena.

—    Zolena? Muito jovem para ser Primeira, não acha? Zolena era apenas uma menininha quando morei lá.

—    Jovem, sim, talvez. Mas dedicada — disse Jondalar.

S'Armuna assentiu, com um nuto. Depois retomou o fio da sua história.

— Marthona e eu tínhamos aproximadamente a mesma idade, e o lar de sua mãe gozava de grande status. Meu tio e sua avó, Jondalar, combinaram que eu fosse morar com ela. E ele ficou apenas o tempo bastante para me ver instalada. — Os olhos de S'Armuna estavam de novo perdidos na distância. Depois, sorriu.

— Marthona e eu éramos como irmãs. Mais próximas até, corno gémeas. Ela até resolveu estudar para Zelandoni ao mesmo tempo que eu.

— Eu não sabia disso — disse Jondalar. — Talvez ela tenha adquirido nessa época suas qualidades de liderança.

— Talvez. Mas nenhuma de nós pensava em liderar nada, naquele tempo. Éramos inseparáveis, gostávamos das mesmas coisas... até que isso tornou-se um problema.

— S'Armuna se calou.

— Problema? — encorajou Ayla. — Houve problema pelo fato de sentir-se tão próxima de uma amiga? — Estava pensando em Deegie e de como fora maravilhoso ter uma amiga íntima, mesmo por pouco tempo. Teria gostado muito de ter uma pessoa assim quando adolescente. Uba fora como uma irmã para ela, mas por mais que a tivesse amado, Uba era Clã. Não importava como se sentisse, havia sempre coisas que uma podia nunca entender na outra, como a curiosidade inata de Ayla ou as lembranças de Uba.

— Sim — disse S'Armuna, encarando a outra e notando, de repente, outra vez, o seu sotaque tão peculiar.

— O problema foi que nos apaixonamos pelo mesmo homem! Acho que Joconan deve ter amado nós duas. Uma vez ele falou de casar com ambas. Eu e Marthona concordamos, mas àquela altura a velha Zelandoni havia morrido, e quando Joconan foi pedir conselho à nova, ela lhe disse que escolhesse Marthona. Achei que isso se deveu ao fato de ser Marthona tão bonita. De não ter o rosto torto. Hoje penso que talvez meu tio lhes tivesse dito que me queria aqui de volta. Não fiquei para o Matrimónio deles, estava muito amarga, e furiosa também. Parti logo que eles me comunicaram que iam casar.

—    Veio sozinha? Através da geleira? Sozinha? — perguntou Jondalar.

—    Sim — disse a Xamã.

— Pois não são muitas as mulheres capazes de fazer uma Jornada assim, principalmente sozinhas. Os perigos são muitos. Você demonstrou grande bravura — disse Jondalar.

— Sim. Havia perigos. Quase caí numa grande fenda. Mas não acho que o tivesse feito por bravura. Acho que minha ira me sustentou. Quando cheguei, no entanto, tudo mudara. Eu estivera ausente muitos anos. Minha tia e minha mãe tinham ido para o norte, onde há uma numerosa colónia S'Armunai. Com elas foram primos e irmãos. Meu tio estava morto, e um estranho era o chefe. Ele se chamava Brugar. Não sei exatamente de onde provinha. Pareceu-me encantador, de começo. Não era bem-apessoado, mas tinha encanto, de natureza um tanto rústica, digamos. Mas era também cruel e mórbido.

—    Brugar... Brugar... — repetiu Jondalar, fechando os olhos e procurando lembrar onde ouvira o nome. — Não era Brugar o homem de Attaroa?

S'Armuna se pôs de pé, muito agitada.

—    Alguém deseja mais chá?

Ayla e Jondalar aceitaram. Ela lhes trouxe novas xícaras da mesma tisana, depois foi apanhar a sua. Mas antes de sentar-se, disse:

— É a primeira vez que conto essa história.

— E por que o faz? — perguntou Ayla.

— Para que vocês compreendam a situação.

E, voltando-se para Jondalar, retomou o fio da narrativa.

—    Sim, Brugar era o companheiro de Attaroa. Parece que ele começou a fazer mudanças por aqui logo que assumiu. Começou a fazer os homens mais importantes que as mulheres. De início, eram coisas pequenas. As mulheres deviam ficar sentadas e esperar que lhes dessem licença de falar. Mulheres não podiam tocar em armas. Não pareceu tão grave, no primeiro momento, e os homens puderam, tranquilamente, gozar do poder. Mas depois que a primeira mulher foi espancada até a morte como castigo por ter dito abertamente o que pensava, as outras viram que a situação era grave. Mas aí já não se sabia como aquilo tudo acontecera nem como fazer para voltar atrás e restabelecer a moda antiga. Brugar despertava nos homens o que havia neles de pior. Andava com um bando de fiéis seguidores. E os demais tinham medo cie discordar.

— De onde tirou essas ideias? — disse Jondalar.

Com uma inspiração repentina, Ayla perguntou:

— Que aspecto tinha esse Brugar?

— Traços fortes, tosco de maneiras, mas cativante quando queria.

— Há muita gente do Clã, cabeças-chatas, por aqui? — perguntou Ayla.

— Havia, naquele tempo. Não mais. Eles são mais numerosos para oeste daqui. Por quê?

— Os S'Armunai se dão bem com essa gente? Com os de espíritos misturados, principalmente?

— Bem, eles não são considerados uma abominação entre nós, como são entre os Zelandonii. Alguns dos nossos têm mulheres do Clã. Os filhos desses casais são tolerados, mas não são, a rigor, bem aceitos, aqui ou lá. Tanto quanto eu saiba.

— Você acredita que Brugar possa ter sido produto de uma dessas misturas de espíritos?

—    Por que me faz todas essas perguntas?

— Porque acho que ele deve ter vivido com esses que vocês chamam cabeças-chatas. Talvez tenha sido criado por eles — respondeu Ayla.

— Por que acha isso?

— Porque as coisas que você descreve são habituais no Clã.

— Clã?

—    É como os próprios cabeças-chatas se denominam — explicou Ayla, e se pôs a especular: — Mas se ele se expressava bem e tinha algum encanto, é que não viveu com eles sempre. Talvez não tenha nascido lá, e tenha ido morar com os cabeças-chatas mais tarde. Sendo mestiço, não o tolerariam. Talvez, até, considerassem ele uma aberração. O que é irónico. Duvido que tenha podido entendê-los, de modo que deve ter sido marginalizado por eles. Sua vida foi, provavelmente, miserável.

S'Armuna ficou surpresa. Como é que Ayla, uma estranha, podia saber tanto?

—    Para alguém que não conheceu Brugar, você sabe muita coisa dele.

— Então, ele era mesmo fruto de espíritos misturados? — disse Jondalar.

— Era. Attaroa me falou da história dele, o que sabia a respeito, pelo menos. Aparentemente, a mãe de Brugar era mestiça: meio humana, meio cabeça-chata. A mãe dela era cabeça-chata dos quatro costados — começou S'Armuna.

Produto de algum estupro dos Outros — pensou Ayla. Corno a pequena da Reunião do Clã, que ficou noiva de Durc.

—    Sua infância deve ter sido desgraçada. Ela deixou seu povo logo que se tornou mulher, com um homem de uma Caverna do povo que habitava para oeste daqui.

— Os Losadunai? — perguntou Jondalar.

— Sim. Acho que é como se chamam. Seja como for, não muito tempo depois de partir ela teve um menino, esse Brugar — continuou S'Armuna.

— Sim, Brugar. As vezes chamado Brug? — interrompeu Ayla.

— Como sabe disso?

— Brug pode ter sido seu nome como membro do Clã.

— Acho que o homem com quem a mãe dele fugiu batia nela. Quem poderá dizer por quê? Alguns homens gostam de espancar mulheres.

— As mulheres do Clã aprendem desde cedo a aceitar isso — disse Ayla. — Não se permite que os homens briguem uns com os outros, mas podem bater numa mulher ou repreendê-la. Não devem espancá-las, mas alguns o fazem.

S'Armuna assentiu de cabeça, vigorosamente. Podia entender aquilo.

— Assim, pode ser que, no princípio, a mãe de Brugar tivesse aceitado que o homem com quem passara a viver lhe batesse. Mas a brutalidade deve ter aumentado. Isso é comum com homens desse tipo. Ele passou a bater no menino também. Talvez isso a tenha levado a ir embora. Seja como for, ela fugiu um dia, com o filho. De volta para o seu povo — disse S'Armuna.

— E se foi difícil para ela criar-se com o Clã, deve ter sido ainda mais difícil para o menino, que não era, sequer, um mestiço de verdade — disse Ayla.

— Se os espíritos se misturaram como esperado, ele seria três quartas partes humano e só uma parte cabeça-chata — disse S'Armuna.

Ayla pensou, de súbito, no seu próprio filho, Dure. Broud certamente faria a vida dele miserável. E se ele acabar como Brugar? Mas Dure é um mestiço, e tem Uba que o ama, e Brun para educá-lo. Brun o aceitou no Clã quando era líder e Dure, um bebê. Ele cuidará para que Dure aprenda as normas do Clã. Sei que ele pode inclusive aprender a falar, se alguém se dispuser a ensiná-lo, mas ele pode também ter as memórias. Se tiver, será Clã inteiramente, com o auxílio de Brun.

S'Armuna teve uma súbita inspiração sobre aquela jovem mulher misteriosa.

—    Como é que sabe tanto sobre cabeças-chatas, Ayla? — perguntou.

A pergunta apanhou Ayla de surpresa. Ela estava com a guarda aberta. Se se tratasse de Attaroa, estaria prevenida. Mas não queria desconversar nem mentir. Disse a verdade, pura e simples.

—    Eles me criaram. Meu povo morreu num terremoto, e os cabeças-chatas me adotaram.

—    Sua infância deve ter sido, então, mais difícil ainda que a de Brugar — disse S'Armuna.

— Não. Acho que, de certo modo, foi mais fácil. Eu não era considerada uma filha deformada do Clã. Era diferente, só isso. Uma dos Outros... que é como eles nos chamam. Não esperavam grandes coisas de mim. Não sabiam o que pensar diante de certas estranhezas minhas. Muitos me achavam burra. Eu era lenta porque tinha dificuldade em me lembrar das coisas. Não digo que tenha sido fácil crescer no meio deles. Tinha de viver segundo as suas normas, aprender as tradições do grupo. Era difícil para mim entrosar-me, mas tive sorte. Iza e Creb, os dois que me criaram, tinham amor por mim. Não fossem eles, e eu não teria sobrevivido.

Quase todas as coisas que ela dizia acendiam questões na mente de S'Armuna, mas a oportunidade não era ideal para esclarecer tudo aquilo.

—    É bom que haja uma certa mistura em você — disse, lançando um olhar significativo para Jondalar —, principalmente por ter de travar conhecimento com os Zelandonii.

Ayla interceptou o olhar, mas não sabia o que a mulher queria dizer. Lembrava-se da primeira reação de Jondalar ao descobrir quem a criara, e fora ainda pior quando ele ficou sabendo da existência de um filho de espíritos misturados.

—    Como sabe que ela não os conhece ainda? — perguntou Jondalar.

S'Armuna fez uma pausa para considerar a pergunta. Como sabia? Sorriu para o homem.

—    Você disse que ia "para casa". E ela disse "a língua dele".— E, de chofre, um pensamento lhe veio, uma revelação. — A língua! O sotaque! Agora sei onde o ouvi antes. Brugar tinha um sotaque assim! Não tão acentuado quanto o seu, Ayla, embora ele não falasse tão bem a própria língua como você fala a de Jondalar. Mas ele deve ter adquirido essa maneira de falar... esse maneirismo... porque não se trata, exatamente, de um sotaque... quando morou com os cabeças-chatas. Há algo característico no som da sua fala, e agora que o identifiquei, não creio que vá esquecê-lo jamais.

Ayla se sentiu embaraçada. Fizera tamanho esforço para falar corretamente mas nunca fora capaz de produzir com perfeição determinados sons. De maneira geral, não se importava quando as pessoas mencionavam isso, mas S'Armuna estava dando importância excessiva à questão.

A Xamã notou a confusão da outra.

— Desculpe, Ayla, não queria deixá-la contrafeita. Você, na verdade, fala Zelandonii admiravelmente bem, melhor do que eu até, uma vez que já esqueci muito do que sabia. E não é bem um sotaque que você tem. É outra coisa. Estou certa de que muita gente nem se aperceberá disso. Mas é que você me deu uma tal inspiração sobre Brugar que isso me ajuda a compreender Attaroa.

— Compreender Attaroa? — disse Jondalar. — Quisera eu compreender como alguém pode ser tão cruel!

— Ela não foi sempre má. Ou tão má. Cheguei a admirá-la quando vim, embora sentisse também muita pena dela. Mas, de certo modo, ela estava preparada para Brugar como poucas mulheres poderiam estar.

— Preparada? É uma observação estranha. Preparada para o que?

—    Para a crueldade dele — explicou S'Armuna. — Attaroa sofreu muito em criança. Ela não fala disso, mas eu sei que achava que sua própria mãe lhe tinha ódio. Eu soube por outra pessoa que essa mãe, de fato, abandonou a menina, ou assim se acreditou. O certo é que foi embora deixando a filha, e não se ouviu mais falar nela. Attaroa acabou recolhida por um homem cuja mulher morrera de parto, em circunstâncias das mais suspeitas. O bebe também morreu. E as suspeitas surgiram justamente quando se soube que ele espancava Attaroa e que abusara dela quando ainda não era mulher. Mas ninguém mais quis, na ocasião, responsabilizar-se por sua criação. Era alguma coisa com relação à mãe, ao passado dela. Mas o fato é que Attaroa foi criada por esse homem e deformada pela malevolência dele. Finalmente, o homem morreu, e algumas pessoas do seu Acampamento arranjaram o casamento dela com o nosso líder deste Acampamento.

—    Arranjaram sem o consentimento dela? — perguntou Jondalar.

—    Convenceram-na a aceitar e trouxeram-na aqui para conhecer Brugar. Como eu disse, ele podia ser encantador, às vezes, e estou certa de que achou Attaroa atraente.

Jondalar concordou. Sabia que ela podia ser atraente.

— Penso que Attaroa recebeu com alegria a perspectiva desse matrimónio. Era uma oportunidade para um novo começo. Mas descobriu que o homem a quem se unira era ainda pior do que o outro que conhecera antes. Os Prazeres de Brugar eram sempre feitos com pancadaria, humilhações e outras coisas. À sua moda, Brugar a... hesito em dizer "amava", mas gostava dela. Apenas era... mórbido. Pois mesmo assim, ela era a única pessoa que ousava enfrentá-lo, a despeito de tudo o que ele lhe fazia — narrou ela.

S'Armuna fez uma pausa, sacudiu a cabeça, e continuou.

— Brugar era um homem vigoroso, tinha muita força, e gostava de maltratar pessoas, mulheres principalmente. Acho que lhe dava Prazer causar dor em mulheres. Você diz que os cabeças-chatas não permitem que homens machuquem homens. Mas podem machucar mulheres, não é? Isso pode ter alguma coisa a ver com a história. Brugar apreciava a rebeldia de Attaroa. Ela era mais alta que cie, e é uma mulher muito forte. Ele gostava de dobrar a resistência dela, gostava quando ela o enfrentava, fisicamente. Aquilo lhe dava uma desculpa para castigá-la, para sentir-se poderoso.

Ayla estremeceu, lembrando uma situação não muito diferente dessa, e teve um momento de empatia e compaixão pela chefe das Mulheres-Lobas.

— Ele se vangloriava disso com os outros homens, que o encorajavam ou, pelo menos, mostravam-se solidários com ele — disse a Xamã.

— Quanto mais ela lhe resistia, pior. Por fim, ela cedeu. E ele... é curioso... não a quis mais. Muitas vezes já me perguntei: se ela tivesse cedido no começo, ele teria cansado logo dela e deixado de bater-lhe?

Ayla ficou Pensando naquilo. Broud se cansara da mulher quando ela cansara de resistir-lhe.

— Duvido — disse S'Armuna. — Mais tarde, quando ela foi abençoada e ficou dócil, nada mudou. Ela era dele, afinal, pertencia-lhe. Podia fazer com ela o que bem quisesse e entendesse.

Nunca fui casada com Broud, pensou Ayla, e Brun não permitia que ele me batesse. Não depois da primeira vez. Embora tivesse o direito de faze-lo, o resto do Clã de Brun achava esquisito o interesse dele por mim. Todos desencorajavam o seu comportamento.

—    Brugar continuou a espancar Attaroa mesmo depois que ela ficou grávida? — indagou Jondalar, horrorizado.

—    Continuou, embora parecesse contente que ela fosse ter um filho.

Eu também fiquei grávida, pensou Ayla. Sua vida e a de Attaroa tinham muitas semelhanças.

—    Attaroa vinha à minha procura, para tratá-la — continuou S'Armuna, fechando os olhos e sacudindo a cabeça, como que para espantar aquelas memórias. — Era medonho o que Brugar fazia com ela. Não posso nem dizer-lhes. Equimoses de espancamentos eram o mais simples.

—    E por que Attaroa se submetia?

—    Ela não sabia para onde ir. Não tinha parentes nem amigos Os membros do seu outro Acampamento tinham dito claramente que não a queriam lá. E ela era por demais orgulhosa, no princípio, para voltar e deixar que eles vissem que seu casamento com o líder das Três Irmãs fora um desastre. Entendo como se sentia — disse S'Armuna. — Ninguém me bateu, embora Brugar tivesse tentado uma vez, mas achei também que não havia outro lugar para onde ir... e eu tenho parentes. Mas era Aquela que Serve à Mãe. Não podia admitir que as coisas tivessem chegado àquele ponto de ignomínia. Seria admitir que eu falhara.

Jondalar concordava com tudo aquilo. Ele também se julgara um fracasso, certa vez. Olhou para Ayla, e seu amor por ela o reanimou.

—    Attaroa tinha ódio a Brugar — continuou S'Armuna, mas, de alguma forma estranha, ela o amava também. Provocava-o, às vezes, deliberadamente. Eu imaginava se não seria por saber que ele a possuía depois de espancá-la. Embora não lhe desse amor, nem Prazer, pelo menos fazia com que ela se sentisse desejada por alguém. Talvez tenha aprendido com ele essa forma pervertida de Prazer, mesclado de crueldade. Agora ela não deseja ninguém. Ela mesma se dá Prazer causando sofrimento aos homens. Se vocês a observarem, verão como fica excitada.

—    Tenho pena dela, ou quase — disse Jondalar.

—    Pode ter. Mas não confie em Attaroa — disse a Xamã. — E uma demente, possuída por algum espírito do mal. Vocês podem entender isso? Jamais sentiram uma raiva tamanha que toda razão os abandone?

Jondalar arregalou os olhos e se viu obrigado a concordar. Ele já tivera uma raiva assim. Batera num homem até deixá-lo inconsciente. E mesmo então fora incapaz de parar.   

— Com Attaroa, é como se ela estivesse todo o tempo possui por uma cólera insaciável desse tipo. Ela nem sempre o demonstra... na verdade, é muito hábil em matéria de dissimulação... mas seus pensamentos e sentimentos ficam tão cheios dessa fúria cega que ela já perdeu, de há muito, a capacidade de pensar e de sentir como as pessoas comuns. Deixou de ser humana — explicou a Xamã.

— Mas terá ainda, certamente, pensamentos humanos? — quis saber Jondalar.

— Você se lembra do enterro, pouco depois da sua entrada no Acampamento?

— Sim, três jovens. Dois eram homens. Quanto ao terceiro, não tive certeza do seu sexo. A roupa era igual para todos eles. Lembro-me de ter ficado imaginando o que poderia ter causado suas mortes. Eram tão moços ainda!

— Attaroa foi a causa das três mortes — disse S'Armuna. — E aquele cadáver cujo sexo o intrigou saíra do seu próprio ventre.

Ouviram, nesse momento, um ruído e se voltaram para a entrada da casa de S'Armuna.

 

 

                                                             CONTINUA

 

 

A mulher jovem, que surgira à vista deles, olhava, nervosa, em torno. Jondalar notou de imediato que a moça tinha muito pouca idade. Era quase uma menina. Ayla notou que esperava um bebê.

—    O que é, Cavoa? — perguntou S'Armuna.

— Epadoa acaba de voltar com suas caçadoras. E Attaroa está gritando com ela.

— Obrigada por vir contar-me — disse S'Armuna. E voltou-se para os seus hóspedes: — As paredes desta casa são tão grossas que é difícil ouvir o que se passa do lado de fora. Talvez devamos sair.

Passaram rápido pela mulher grávida, que tentou encolher-se para que pudessem passar. Ayla agradeceu com um sorriso.

—    A espera chega ao fim, não é? — disse, em S'Armunai.

Cavoa sorriu, nervosa. Depois baixou os olhos para o chão.

Ayla achou que ela estava assustada e infeliz, o que era incomum para uma futura mãe. Mas, afinal de contas, muitas mulheres que esperam o primeiro filho ficam nervosas.

Logo que saíram puderam ouvir Attaroa, que esbravejava.

 

 

 

 

— ...e me diz que achou o lugar onde acamparam! Pois perdeu uma bela oportunidade. Bonita Mulher-Loba é você, que não sabe nem mesmo rastrear — dizia a líder, zombando da outra.

Vestida com suas peles de lobo, Epadoa permanecia ereta, lábios comprimidos, olhos fuzilando de raiva, porém muda. Havia muita gente em volta, mas não perto demais das duas. De repente notou que as pessoas desviavam a atenção da disputa para olhar em outra direção. Olhou também e viu, com espanto, que era a mulher loura que se aproximava, acompanhada, fato mais surpreendente ainda, pelo alto Zelandonii. Jamais vira nenhum homem voltar ao acampamento.

—    O que estão eles fazendo aqui?

— Eu já lhe disse. Você perdeu a oportunidade — escarneceu Attaroa. — Eles vieram por conta própria.

— E por que não viríamos? — disse Ayla. — Não fomos convidados para um festim?

S'Armuna traduzia.

—    O banquete não está pronto. Será à noite — disse Attaroa aos hóspedes. E logo para Epadoa: — Venha comigo, tenho algo a dizer-lhe. — E logo entrou, seguida pela comandante da sua guarda.

Depois que se foram, Ayla procurou Racer e Huiin com os olhos. Afinal, Epadoa e suas mulheres caçavam cavalos. Ficou aliviada ao ver que os dois estavam lá e pastavam o capim seco e quebradiço, a pequena distância. Estudou, então, a mata cerrada na colina próxima do Acampamento, com vontade de avistar Lobo, mas contente por não ver nada Queria que ele permanecesse escondido, mas fazia questão de mostrar-se, na esperança de que ele a pudesse ver.

Voltaram com S'Armuna para os aposentos dela. No caminho, Jondalar se reportou a um comentário que a Xamã fizera e...

 

 

                                                                                                 

 

 

 

                                       

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