Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PONTO DE IMPACTO
Primeira Parte
Quando um novo satélite da NASA encontra um estranho objeto escondido nas profundezas do Ártico, a agência espacial aproveita o impacto da sua descoberta para contornar uma grave crise financeira e de credibilidade, o peso dessa, sobretudo, para a iminente eleição presidencial.
Com o objetivo de verificar a autenticidade da descoberta, a Casa Branca envia a analista de inteligência Rachel Sexton para a desolada geleira Mune. Acompanhada por uma equipe de especialistas, incluindo o carismático pesquisador Michael Tolland, a revelação acarreta sérias implicações para a política espacial norte-americana Rachel se depara com indícios de uma fraude científica que ameaça abalar o planeta.
Antes que Rachel possa falar com o presidente dos Estados Unidos sobre suas suspeitas, ela e Michael são perseguidos por assassinos profissionais controlados por uma pessoa que é capaz de tudo para encobrir a verdade. Em uma fuga desesperada para salvar suas vidas, a única chance de sobrevivência para Rachel e Michael é desvendar a identidade de quem se esconde por trás de uma conspiração sem precedentes.
Com fascinantes informações sobre a NASA, a comunidade de inteligência e os bastidores da política americana, sem falar na polêmica discussão sobre a possibilidade de vida extraterrestre, Ponto de Impacto revela o amadurecimento de Dan Brown como escritor reunindo todas as qualidades que o transformariam em um fenômeno mundial com o livro seguinte, O Código Da Vinci.
“Se esta descoberta for confirmada, com certeza será uma das mais incríveis revelações sobre nosso universo já feitas pela ciência. Suas implicações são tão vastas e impressionantes que ultrapassam nossa imaginação. Ao mesmo tempo em que promete responder a algumas de nossas mais antigas perguntas, ela nos coloca diante de outras ainda mais fundamentais.”
Presidente Bill Clinton, em uma coletiva de imprensa após a descoberta conhecida como ALH84001 no dia 7 de agosto de 1997.
A morte, naquele lugar deserto e esquecido por todos, podia ter infinitas formas. O geólogo Charles Brophy havia enfrentado o esplendor selvagem daquele terreno durante anos, mas, ainda assim, nada poderia prepará-lo para um destino tão bárbaro e antinatural quanto aquele que em breve encontraria.
Os quatro huskies siberianos que puxavam seu trenó pela tundra subitamente reduziram a marcha, olhando para o céu.
— O que há rapazes? — perguntou Brophy, descendo do trenó carregado com equipamentos geológicos.
Atravessando as pesadas nuvens que anunciavam uma tempestade, um helicóptero de transporte de dois rotores passou entre os picos glaciais com precisão militar, manobrando em direção ao solo.
Estranho, ele pensou. Nunca havia visto helicópteros tão ao norte. A aeronave pousou a uns 50 metros, levantando um jato de neve granulada.
Os cachorros ganiram, assustados.
As portas se abriram e dois homens desceram. Vestidos com uniformes militares brancos apropriados para o frio e armados com rifles, eles caminharam na direção de Brophy com determinação.
— Dr. Brophy?
O geólogo ficou paralisado.
— Como sabe meu nome? Quem são vocês?
— Pegue seu rádio, por favor.
— O quê?
— Faça o que eu disse.
Perplexo, Brophy puxou o rádio de dentro de sua parca.
— Precisamos que você transmita um comunicado de emergência. Ajuste sua freqüência de transmissão para 100 kHz.
— 100 kHz? — Brophy não estava entendendo nada. — Ninguém pode receber nada em uma freqüência tão baixa.
— Houve algum acidente?
O outro homem levantou seu rifle e apontou-o para a cabeça de Brophy.
— Não há tempo para explicar. Apenas obedeça.
Tremendo, Brophy ajustou sua freqüência de transmissão. O homem que havia falado primeiro lhe passou um papel com algumas linhas impressas.
— Transmita esta mensagem.
Agora. Brophy olhou para o papel.
— Não entendo. Isto aqui está errado. Eu não...
O homem pressionou o rifle com força contra a cabeça do geólogo. A voz de Brophy estava trêmula ao enviar a estranha mensagem.
— Muito bem — disse o homem. — Agora pegue seus cães e vamos para o helicóptero.
Sob a mira do rifle, Brophy relutantemente levou seus cães em direção à aeronave e subiu por uma rampa para dentro do compartimento de carga. Assim que se acomodaram, o helicóptero partiu na direção oeste.
— Afinal, quem são vocês? — protestou Brophy, suando frio por baixo de sua parca. — E qual era o sentido daquela mensagem?
Os homens permaneceram em silêncio. À medida que o helicóptero ganhava altitude, o vento que entrava pela porta aberta tornava-se insuportavelmente cortante. Os quatro huskies de Brophy, ainda atrelados ao trenó, uivavam baixinho.
— Pelo menos fechem a maldita porta — exigiu o geólogo. – Meus cachorros estão assustados, vocês não estão vendo?
Eles nada disseram. Quando o helicóptero passou de mil metros de altitude e inclinou-se fortemente sobre uma série de precipícios e fendas no gelo, os homens levantaram-se bruscamente, agarraram o trenó e jogaram-no porta afora. Brophy olhou, aterrorizado, enquanto seus cachorros se debatiam inutilmente, puxados pelo enorme peso do trenó.
Em poucos instantes os animais haviam sumido de vista, seus uivos desesperados ecoando ao longe. Brophy estava de pé, gritando, quando os homens também o pegaram e o empurraram em direção à porta. Em pânico, tentou livrar-se das mãos firmes que procuravam jogá-lo para fora.
Seu esforço foi em vão. Poucos instantes depois, ele também despencou, espaço abaixo, em direção às profundezas do gelo.
Local predileto para o mais refinado café da manhã dos executivos e políticos de Washington, o restaurante Toulos, próximo ao Capitol Hill, ostenta, com um toque de ironia, um menu politicamente incorreto que inclui até carpaccio de cavalo. Naquela manhã o Toulos estava movimentado — uma cacofonia de prataria sendo remexida, máquinas de café expresso em ação e pessoas falando em seus celulares.
O maítre estava bebericando disfarçadamente seu Bloody Mary matinal quando a mulher entrou. Ele se virou, com um sorriso profissional.
— Bom dia. Posso ajudá-la?
Era uma mulher atraente, dos seus trinta e poucos anos, usando uma calça de flanela cinza, blusa de grife marfim e discretos sapatos de salto baixo. Tinha uma postura alinhada e o queixo levemente levantado — o suficiente para demonstrar força sem, contudo, ser arrogante. Seu cabelo era castanho-claro, cortado no estilo “jornal das oito”, o mais popular daquele momento em Washington; elegantemente desfiado e curvado para dentro na altura dos ombros. Longo o bastante para parecer sensual, curto o suficiente para transmitir a quem olhasse a nítida impressão de que a mais inteligente ali era ela.
— Estou um pouco atrasada — disse a mulher. — Marquei um café-da-manhã com o senador Sexton.
O maítre sentiu um frio na espinha. O senador Sedgewick Sexton. Era um cliente habitual da casa e, naquele momento, um dos homens mais famosos do país. Na semana anterior, após ter levado a melhor em todas as 12 eleições primárias dos republicanos, o senador havia praticamente garantido sua indicação pelo partido para presidente dos Estados Unidos. Muitos acreditavam que, nas próximas eleições, ele tinha uma ótima chance de vencer a disputa pela Casa Branca contra o atual presidente. Ultimamente o rosto de Sexton parecia estar em todas as revistas, e seu slogan de campanha estava espalhado por todo o país: “Chega de gastar, é hora de reformar.”
— O senador Sexton está em seu reservado — disse o maítre. — A quem devo anunciar?
— Rachel Sexton. Sou filha dele.
Mas que burrice a minha, ele pensou. As semelhanças eram evidentes. A mulher tinha os mesmos olhos penetrantes do senador e a mesma altivez — aquele ar polido de uma nobreza jovial. Era óbvio que a beleza clássica do senador havia sido transmitida à geração seguinte, ainda que Rachel Sexton parecesse lidar com a graça natural que lhe havia sido concedida com uma dignidade recatada que seu pai não possuía.
— É um prazer recebê-la, senhorita Sexton.
O maítre acompanhou a filha do senador através do salão, um pouco incomodado com o fogo cruzado de olhares masculinos que a seguiam, com maior ou menor discrição. Poucas mulheres freqüentavam o Toulos, e raramente se via uma tão bela quanto Rachel.
— Belas curvas — sussurrou um cliente. — Será que Sexton finalmente conseguiu arrumar uma nova mulher?
— Aquela é a filha dele, seu idiota — respondeu um outro.
O primeiro homem deu uma risadinha e completou:
— Se conheço Sexton, ele provavelmente transaria com ela mesmo assim.
Quando Rachel chegou à mesa de seu pai, o senador estava falando em seu celular, bem alto, sobre mais um de seus recentes sucessos. Olhou para ela brevemente, apenas o suficiente para dar um tapinha em seu relógio Cartier, lembrando-a de que estava atrasada.
Também senti sua falta, pensou Rachel.
O nome de seu pai era Thomas, mas há muito tempo que ele optara por usar apenas seu sobrenome. Rachel achava que ele gostava da aliteração. Senador Sedgewick Sexton. Era um político profissional de cabelos grisalhos e fala macia que havia sido agraciado com a aparência de um astro de seriado de televisão, o que parecia bastante adequado, considerando seu talento para disfarces e artimanhas.
— Rachel! — seu pai finalmente desligou o telefone e levantou-se para lhe dar um beijo na bochecha.
— Oi, pai — ela não retornou o beijo.
— Você parece exausta.
Lá vamos nós de novo, pensou ela.
— Recebi seu recado. Aconteceu alguma coisa?
— Puxa! Agora preciso de uma razão para chamar minha filha para tomar café comigo?
Rachel aprendera desde cedo que seu pai raramente a chamava, a não ser que tivesse algo específico em mente.
O senador tomou um gole de café.
— Então, como vai sua vida?
— Ando ocupada. Vejo que sua campanha está indo bem.
— Ah, não vamos falar de negócios. — Sexton inclinou-se ligeiramente sobre a mesa, baixando o tom de voz. — Como vai aquele rapaz do Departamento de Estado que eu lhe apresentei?
Rachel respirou fundo, já se controlando para não olhar para o relógio. A manhã prometia ser longa.
— Pai, definitivamente não tenho tempo de ligar para ele. E eu gostaria muito que você parasse de tentar...
— Você precisa encontrar tempo para as coisas que realmente importam, querida. Sem amor, tudo mais perde o sentido.
Uma enorme quantidade de respostas veio à sua mente, mas Rachel preferiu se manter em silêncio.
— Pai, você queria me ver? Você disse que era importante.
— De fato é. — Ele estudou o rosto da filha atentamente.
Rachel sentiu parte de suas defesas se desfazer diante daquele exame minucioso e amaldiçoou o poder daquele homem. O olhar do senador era a sua maior dádiva — grande o suficiente para levá-lo até à Casa Branca. Seu domínio era tamanho que conseguia ficar com os olhos cheios de lágrimas quando desejava e, um instante depois, exibir um olhar límpido, como se estivesse abrindo uma janela para sua alma apaixonada, fortalecendo seus laços de boa fé com os outros. “Confiança é tudo”, seu pai sempre lhe dissera. Embora ele houvesse perdido a confiança de Rachel há anos, agora estava ganhando a de toda uma nação.
— Queria lhe propor uma coisa — disse o senador.
— Deixe-me adivinhar — respondeu Rachel, tentando retomar sua vantagem. — Algum divorciado de grande prestígio à procura de uma jovem esposa?
— Não se iluda, querida. Você já não é assim tão jovem.
Rachel teve a sensação de estar diminuindo, o que muitas vezes acontecia em seus encontros com o pai.
— Quero lhe dar uma chance, quero lhe oferecer um porto seguro — ele disse.
— Há alguma tempestade vindo na minha direção?
— Na sua, não. Mas no caminho do presidente, sim. E acho melhor você se afastar dele enquanto há tempo.
— Acho que já tivemos essa conversa, não é?
— Pense em seu futuro, Rachel. Venha trabalhar comigo.
— Espero que não tenha me chamado aqui só por causa disso.
O verniz da calma aparente do senador se desfez quase imperceptivelmente.
— Rachel, você não vê o quanto o fato de estar trabalhando para ele repercute negativamente para mim e para minha campanha?
Ela suspirou. Os dois já haviam conversado sobre aquilo.
— Pai, eu não trabalho para o presidente. Eu nunca encontrei o presidente. Eu nem trabalho em Washington, você sabe disso!
— Política é a arte da percepção, Rachel. Para quem olha, parece que você trabalha para o presidente.
Ela respirou fundo, tentando manter a calma.
— Pai, dei duro para conseguir esse emprego e não vou pedir demissão.
Os olhos do senador se fixaram nela.
— Você sabe, tem horas em que sua atitude egoísta é realmente...
— Senador Sexton? — um repórter apareceu do nada e estava agora de pé ao lado da mesa.
A postura de Sexton abrandou-se rapidamente. Rachel resmungou algo e pegou um croissant da cestinha em cima da mesa.
— Ralph Sneeden, do Washington Post — disse o repórter. — Posso lhe fazer algumas perguntas?
O senador sorriu, limpando gentilmente a boca com um guardanapo.
— É um prazer, Ralph. Mas, por favor, não demore. Não quero que meu café esfrie.
O repórter riu, como previa o script.
— Claro, senhor. — Ele tirou do bolso um minigravador e ligou-o. — Senador, sua propaganda na televisão diz que são necessárias leis para garantir igualdade salarial para as mulheres no mercado de trabalho, assim como cortes nos impostos para as famílias recém-formadas. O senhor pode explicar o que pretende com essas propostas?
— Claro. Sou um grande fã de mulheres fortes e de famílias fortes.
Rachel quase se engasgou com o croissant.
— Ainda a respeito das famílias — prosseguiu o repórter —, o senhor tem falado muito sobre a importância da educação e até propôs alguns cortes orçamentários polêmicos para que mais recursos sejam destinados às escolas.
— Acredito que nosso futuro está nas crianças de hoje.
Rachel não podia acreditar que seu pai estivesse recorrendo àquele tipo de lugar-comum.
— Uma última pergunta, senhor — disse o repórter. — Os resultados das pesquisas indicam um enorme avanço de sua candidatura nas últimas semanas. O presidente deve estar preocupado. Algo a dizer sobre esse recente sucesso?
— Acredito que tenha a ver com confiança. Os americanos estão começando a perceber que o presidente não é confiável o bastante para tomar as duras decisões necessárias para garantir o futuro desta nação. Os gastos descontrolados do governo estão afundando o país em uma dívida cada vez maior, e o povo parece ter compreendido que chega de gastar, é hora de reformar.
O alarme do pager de Rachel disparou, interrompendo providencialmente a retórica do pai. O irritante bipe eletrônico que sempre a perturbava soava agora quase como uma melodia.
O senador lançou-lhe um olhar de indignação por ter sido interrompido.
Rachel pegou rapidamente o pager em sua bolsa e digitou a seqüência de cinco teclas que confirmava sua identidade. O ruído eletrônico cessou e a pequena tela começou a piscar. Em 15 segundos ela iria receber uma mensagem de texto codificada.
Sneeden sorriu para o senador.
— Sua filha é obviamente uma mulher ocupada. É reconfortante ver que vocês ainda conseguem encontrar tempo para tomar um café-da-manhã juntos.
— Como eu disse, a família está sempre em primeiro lugar.
Sneeden assentiu e, em seguida, ficou sério, fitando Sexton com um olhar duro.
— Posso perguntar-lhe, senador, como o senhor e sua filha gerenciam seus conflitos de interesses?
— Que conflitos? — O senador inclinou a cabeça em um gesto inocente de aparente perplexidade. — A que você se refere?
Rachel olhou para cima, fazendo uma careta diante da atuação teatral de seu pai. Ela sabia muito bem onde aquilo iria parar. Malditos repórteres, pensou. Metade deles estava na folha de pagamento de algum político. Aquela era uma armação; a pergunta parecia ser dura, mas na verdade era formulada de maneira a favorecer o senador. Uma bola lenta jogada no ponto exato para que seu pai pudesse acertar uma tacada em cheio, marcando um belo ponto e esclarecendo algumas coisas no meio tempo.
— Bem, senhor... — o repórter tossiu, querendo mostrar-se pouco à vontade. — O conflito diz respeito ao fato de sua filha trabalhar para seu oponente.
O senador Sexton deu uma gargalhada, retirando instantaneamente toda a tensão da pergunta.
— Ralph, em primeiro lugar, eu e o presidente não somos oponentes. Somos apenas dois patriotas que possuem idéias divergentes sobre como administrar o país que amamos.
O repórter abriu um largo sorriso. Tinha conseguido chegar aonde queria.
— E em segundo lugar?
— Em segundo lugar, minha filha não trabalha para o presidente. Ela trabalha para a comunidade de inteligência. Analisa relatórios de inteligência e os envia para a Casa Branca. É uma posição relativamente baixa na hierarquia. — Fez uma pausa e olhou para Rachel. — Na verdade, querida, acho que você nem mesmo chegou a se encontrar pessoalmente com o presidente, não é?
Rachel encarou-o, soltando faíscas pelos olhos. Seu bipe emitiu um outro som e ela olhou para a tela.
— RPRT DIRNRO IMED — Ela decifrou mentalmente a mensagem abreviada e franziu a testa. A mensagem era inesperada e provavelmente traria más notícias. Bem, pelo menos tinha um motivo para sair dali.
— Senhores, lamento profundamente, mas preciso ir embora. Estou atrasada para o trabalho.
— Senhorita Sexton — atalhou o repórter rapidamente —, antes de sair, será que você poderia responder a uma pergunta? Há rumores de que esta reunião matinal era para discutir a possibilidade de que você deixasse seu cargo para trabalhar na campanha de seu pai. É verdade?
Rachel sentiu seu rosto pegando fogo como se tivesse sido atingida por uma xícara de café quente. A pergunta pegou-a totalmente desprevenida.
Ela olhou para o pai e percebeu, por trás de seu sorriso forçado, que a pergunta havia sido previamente combinada. Teve vontade de subir na mesa e atacá-lo com um garfo.
O repórter enfiou o gravador na cara dela.
— Senhorita Sexton?
Ela olhou firme para o repórter, furiosa.
— Ralph, ou seja lá quem você for, preste atenção: não tenho a menor intenção de abandonar meu cargo para trabalhar para o senador Sexton. Se você publicar algo diferente, irá precisar de ajuda médica para tirar esse gravador de onde vou enfiá-lo.
O repórter arregalou os olhos, espantado, e desligou o gravador, escondendo um risinho.
— Agradeço a ambos — disse, sumindo de vista.
Rachel arrependeu-se logo de seu acesso de raiva. Havia herdado o temperamento do pai e odiava isso. Calma, Rachel. Muita calma. Seu pai lançou-lhe um olhar de desaprovação.
— Seria bom se você aprendesse a manter a calma.
Ela começou a pegar suas coisas.
— Nossa reunião está terminada.
O senador parecia também não ter mais nada a dizer e puxou seu celular para fazer uma chamada.
— Adeus, querida. Dê uma passada no escritório um dia desses para me dizer “oi”. E encontre um homem para se casar, pelo amor de Deus. Você já está com 33 anos.
— Trinta e quatro — respondeu, ríspida. — Sua secretária me enviou um cartão. Ele balançou a cabeça, contrariado.
— Trinta e quatro. Uma balzaquiana solteirona. Você sabe, aos 34 anos, eu já tinha...
— Casado com minha mãe e ido para a cama com a vizinha? — As palavras saíram num tom um pouco mais alto do que ela pretendia, num sincronismo absolutamente perfeito e desafortunado com uma daquelas pausas que costumam ocorrer no burburinho dos restaurantes. Parecia que ela estava falando sozinha para todo o salão. As pessoas se viraram para olhá-la.
O senador Sexton a encarou com um olhar gélido.
— Tome cuidado com o que diz, minha jovem.
Rachel não respondeu, apenas dirigiu-se para a saída. Não, você é quem deve tomar cuidado, senador.
Os três homens estavam sentados em silêncio dentro de sua tenda Therma-Tech de proteção contra tempestades. Do lado de fora, um vento gelado açoitava o abrigo, como se quisesse arrancá-lo de seus tirantes. Os homens pareciam não se importar: todos já haviam passado por situações bem mais arriscadas do que aquela.
A tenda, totalmente branca, tinha sido montada em uma ligeira depressão do terreno, para que não pudesse ser vista à distância. As armas, o transporte e os dispositivos de comunicação usados por seus ocupantes eram todos de última geração. O líder do grupo respondia pelo codinome Delta-Um. Era um homem musculoso e ágil, com um olhar tão desolado quanto a paisagem à sua volta.
De repente, o cronógrafo militar no pulso de Delta-Um emitiu um bip agudo, em perfeita sincronia com os bipes dos cronógrafos que os outros dois homens estavam usando. Mais 30 minutos haviam se passado.
Era hora. Outra vez. Automaticamente, Delta-Um deixou seus dois companheiros e saiu da tenda em meio à escuridão e à ventania.
Examinou o horizonte iluminado pelo luar com seus binóculos de infravermelho. Como sempre, concentrou-se na estrutura que estava aproximadamente a um quilômetro de distância. Era uma construção enorme e inusitada erguida em meio ao terreno desértico. Desde que fora construída, há 10 dias, ele e sua equipe a vigiavam. Delta-Um não tinha dúvidas de que o que acontecia lá dentro iria mudar o mundo.
Algumas pessoas já haviam perdido suas vidas para que aquelas informações fossem resguardadas.
Por enquanto não havia atividade alguma fora da estrutura. O verdadeiro teste, contudo, dizia respeito ao que estava acontecendo lá dentro.
Delta-Um retornou à tenda e falou com os outros soldados:
— Vamos fazer um reconhecimento.
Os dois assentiram. O mais alto deles, Delta-Dois, abriu um laptop e ligou-o. Posicionando-se diante da tela, Delta-Dois segurou o joystick e moveu-o levemente. Um quilômetro adiante, escondido nas profundezas do prédio, um robô do tamanho de um mosquito recebeu a transmissão e ativou-se.
Rachel Sexton ainda estava furiosa. Dirigia agora seu carro pela Leesburg Highway. As árvores ainda desfolhadas na encosta das montanhas de Falls Church destacavam-se nitidamente contra o céu revigorante de março, mas o cenário idílico não era suficiente para dissipar sua raiva. A recente ascensão de seu pai nas pesquisas deveria ter dado a ele um mínimo de confiança e amabilidade. Entretanto, parecia ter servido apenas de combustível para sua arrogância.
A armação de seu pai se tornava ainda mais dolorosa porque ele era o único parente próximo que Rachel ainda possuía. Sua mãe havia morrido há três anos, uma perda terrível cujas feridas emocionais permaneciam no coração de Rachel. O único consolo era saber que a morte, com uma compaixão irônica, libertara sua mãe de um estado de total desespero diante de um casamento infeliz com o senador.
O pager de Rachel emitiu um novo bipe, trazendo seus pensamentos de volta para a estrada que se estendia à sua frente. A mensagem era a mesma:
— RPRT DIRNRO IMED — Reporte-se ao diretor do NRO imediatamente. Ela respirou profundamente. Que saco, estou chegando!
Com uma sensação crescente de incerteza, Rachel chegou à saída habitual da via expressa, entrou na estradinha particular de acesso e parou defronte da cabine de guarda fortemente armada. O endereço era Leesburg Highway, 14.225, um dos locais mais secretos do país.
Enquanto o guarda fazia a varredura de rotina em seu carro à procura de dispositivos de escuta, ela olhou para a gigantesca construção que surgia, ainda um pouco distante, à sua frente. O complexo de quase 10 hectares estava majestosamente situado em um bosque de 28 hectares nos arredores de Washington, D.C., em Fairfax, no estado da Virgínia. A fachada do prédio era uma fortaleza de vidro espelhado, refletindo um batalhão de antenas de satélite, parabólicas e domos de radar espalhados pelo terreno em torno do prédio, duplicando, ao espelhá-los, o número já impressionante de dispositivos eletrônicos.
Após ser liberada, Rachel estacionou o carro e atravessou os jardins cuidados até a entrada principal, onde havia a seguinte inscrição numa placa de granito:
ESCRITÓRIO NACIONAL DE RECONHECIMENTO (NRO) National Reconnaissance Office. Os dois marines armados que estavam de sentinela junto à porta giratória blindada permaneceram em posição de alerta enquanto Rachel passava. Ao chegar ao prédio, ela sempre tinha a sensação de estar diante de um gigante adormecido.
Dentro da abóbada do lobby, Rachel captou os sons esparsos de conversas sussurradas, como se as palavras descessem, filtradas, dos escritórios acima. No chão, um enorme mosaico de lajotas expunha a diretriz do NRO: GARANTIR A SUPERIORIDADE GLOBAL DE INFORMAÇÕES DOS ESTADOS UNIDOS NA PAZ OU NA GUERRA
As paredes do hall estavam decoradas com enormes fotografias — lançamentos de foguetes, batismos de submarinos, instalações de interceptação —, feitos impressionantes que só podiam ser comemorados dentro daquelas paredes.
Daquele ponto em diante Rachel sentia que as preocupações do dia-a-dia se dissolviam aos poucos. Estava entrando no mundo das sombras, onde os problemas sempre provocavam alarde e as decisões eram tomadas na surdina.
Rachel aproximou-se da última guarita, tentando adivinhar o que seria tão urgente para que enviassem duas mensagens para seu pager nos últimos 30 minutos.
— Bom dia, Senhorita Sexton — o guarda sorriu quando ela se aproximou de uma grande porta de aço.
Rachel sorriu de volta e pegou a embalagem que o guarda lhe entregou.
— Você sabe o que fazer...
Rachel abriu a embalagem hermeticamente fechada e retirou um bastonete com algodão na extremidade. Então o colocou na boca, como um palito de sorvete, segurando-o sob a língua durante alguns segundos. Depois se inclinou para frente, permitindo que o guarda pegasse o bastão. O guarda inseriu o algodão, agora úmido de saliva, numa máquina atrás dele. Só foram necessários quatro segundos para verificar as seqüências de DNA na saliva de Rachel. Depois um monitor acendeu-se, exibindo sua foto e seu código de segurança.
O guarda piscou.
— Parece que você continua sendo você mesma. — Ele retirou o bastonete usado de dentro da máquina e jogou-o num recipiente, onde foi imediatamente incinerado. — Tenha um bom dia. — Apertou um botão, e as enormes portas de aço se abriram.
Rachel andou pelo labirinto agitado de corredores à sua volta pensando em como era curioso que, mesmo após seis anos, ela ainda ficasse intimidada pelo tamanho colossal daquela organização. O Escritório Nacional de Reconhecimento tinha outras seis instalações nos Estados Unidos, empregava mais de 10 mil agentes e seus custos operacionais ultrapassavam a marca de 10 bilhões de dólares por ano.
Em total segredo, o NRO havia construído e mantinha um arsenal impressionante de tecnologias de ponta para espionagem: interceptores eletrônicos de alcance global, satélites-espiões, chips de retransmissão não-detectáveis embutidos em produtos de telecomunicações e até mesmo uma rede de reconhecimento naval conhecida como Classic Wizard, uma teia secreta de 1.456 hidrofones colocados no fundo do mar em diversos pontos do planeta para monitorar o movimento de navios em qualquer lugar da Terra.
As tecnologias do NRO não apenas ajudavam os Estados Unidos a vencer conflitos militares, mas também forneciam, em tempos de paz, uma infinita quantidade de dados para agências como a CIA, a NSA e o Departamento de Defesa, ajudando-as a combater terroristas e a detectar crimes contra o meio ambiente, além de fornecer aos legisladores informações para que pudessem embasar suas decisões em uma grande quantidade de tópicos.
Rachel trabalhava lá como “depuradora”. O processo de depuração, ou redução de dados, exigia que relatórios complexos fossem analisados para que, em seguida, sua essência fosse consolidada em relatórios concisos. Desde o início, Rachel demonstrara um talento natural para aquele trabalho. Ela acreditava ter desenvolvido sua habilidade ao longo dos anos que passara ouvindo a besteirada que seu pai falava...
Agora ela era a principal “depuradora” do NRO, pois servia como elemento de ligação com a Casa Branca. Rachel tinha que ler todos os relatórios diários de inteligência do escritório e decidir quais eram relevantes para o presidente, resumindo-os, então, em documentos de uma página que eram encaminhados para o conselheiro de segurança nacional do presidente.
O trabalho era difícil e exigia muita dedicação, mas ela se sentia honrada com o cargo, além de ser uma forma de afirmar sua independência em relação ao pai. O senador já havia se oferecido diversas vezes para sustentar Rachel, se ela abandonasse o emprego, mas isso era algo que ela não tinha a menor intenção de fazer. Não iria se tornar financeiramente dependente de Sedgewick Sexton, ela havia testemunhado o que acontecera com a mãe ao depositar poderes demais nas mãos de um homem como ele.
O som do pager de Rachel ecoou pelo hall de mármore.
De novo? Ela nem se preocupou em reler a mensagem.
Ainda pensando em que diabos estaria acontecendo, entrou no elevador e foi direto até o último andar.
Chamar o diretor do NRO de homem comum era um exagero. William Pickering era pequeno, pálido, careca e sem traços marcantes. Apesar de já ter visto alguns dos mais profundos segredos do país, seus olhos castanhos pareciam opacos. Ainda assim, para seus subordinados, Pickering era um grande homem. Sua personalidade serena e seu pragmatismo eram lendários no NRO. Seu jeito calmo e zeloso, combinado com o fato de que usava sempre ternos pretos, fizera com que o apelidassem de Quaker, numa referência aos membros da seita protestante inglesa. Estrategista brilhante e modelo de eficiência, ele governava seu mundo com total transparência e pregava que era preciso “encontrar a verdade e agir de acordo com ela”.
Quando Rachel chegou ao escritório do diretor, ele estava ao telefone.
Observando-o, ela não pôde deixar de pensar que era curioso alguém de aparência tão comum ter poder suficiente para acordar o presidente a qualquer hora.
Pickering desligou e fez sinal para que ela se aproximasse.
— Agente Sexton, sente-se.
— Obrigada, senhor — respondeu Rachel, sentando-se.
Ainda que muitos se sentissem desconfortáveis com o estilo direto e sem rodeios de William Pickering, Rachel sempre gostara dele. Era a antítese perfeita de seu pai... não era fisicamente imponente, não era carismático e cumpria seu dever com um patriotismo abnegado, evitando as luzes da ribalta que seu pai tanto amava.
O diretor tirou os óculos e olhou para ela.
— Agente Sexton, o presidente me ligou há cerca de meia hora. Queria falar especificamente sobre você.
Rachel moveu-se em sua cadeira, inquieta. Pickering era conhecido por ir direto ao assunto. Bom princípio de conversa, pensou.
— Espero que um de meus relatórios não tenha causado problemas.
— Pelo contrário. Ele disse que a Casa Branca está muito impressionada com seu trabalho.
Rachel suspirou.
— O que ele queria, então?
— Uma reunião com você. Pessoalmente. Agora.
A inquietude de Rachel retornou.
— Uma reunião pessoal? Sobre o quê?
— Excelente pergunta. Ele não quis me dizer.
Aquilo soou estranho. Esconder informações do diretor do NRO era como não contar segredos do Vaticano ao Papa. Na comunidade de inteligência circulava uma piada dizendo que, se William Pickering não sabia de algo, era porque não havia acontecido.
Pickering levantou-se e começou a andar em frente da janela.
— Ele me pediu apenas que entrasse em contato com você imediatamente e a enviasse para um encontro com ele.
— Neste instante?
— Ele mandou um transporte. Está esperando lá fora.
Rachel ficou tensa. O pedido do presidente já era inusitado por si só, mas o ar de preocupação do diretor a deixava realmente nervosa.
— Você obviamente não está totalmente de acordo com isso.
— Mas que diabos, claro que não! — Pickering explodiu, algo que raramente fazia. — O pedido do presidente, neste exato momento, me parece quase imaturo em sua transparência. Você é filha do homem que o está ameaçando nas pesquisas e ele telefona pedindo uma reunião pessoal com você? Acho isso completamente inadequado. Seu pai sem dúvida concordaria comigo.
Rachel pensou que Pickering estava certo, embora não desse a mínima para o que o pai pudesse ou não pensar.
— Você não confia nas motivações do presidente?
— Meu juramento diz respeito a fornecer suporte de inteligência à atual administração na Casa Branca e a não fazer julgamentos sobre suas políticas.
Uma resposta no melhor estilo Pickering, pensou. O diretor não se esforçava muito para ocultar sua visão de que políticos eram figuras transitórias passando rapidamente por um tabuleiro no qual o verdadeiro controle estava nas mãos de homens como ele — veteranos que já haviam tido tempo para desenvolver uma perspectiva real sobre o jogo. Pickering costumava dizer que dois mandatos na Casa Branca não eram nem de longe o suficiente para entender a fundo a complexidade do cenário político internacional.
— Pode ser que seja apenas um pedido comum — disse Rachel, pensando alto e torcendo para que o presidente não se rebaixasse a ponto de tentar truques baratos de campanha. — Que ele precise de um relatório sobre algum assunto delicado, por exemplo.
— Sem querer menosprezar seu trabalho, agente Sexton, a Casa Branca tem acesso a uma boa quantidade de profissionais da sua área que poderiam fazer um relatório. Se de fato se tratar de um trabalho interno da Casa Branca, o presidente deveria ter pensado melhor antes de chamá-la. E, se não for isso, ele definitivamente deveria ter pensado melhor antes de requisitar uma reunião com um recurso do NRO e recusar-se a me dizer o motivo.
Pickering sempre se referia a seus funcionários como “recursos”, uma forma de falar que muitos achavam peculiarmente fria.
— Seu pai está ganhando força — prosseguiu ele. — Muita força. A Casa Branca deve estar tensa com isso — suspirou. — O jogo político sempre envolve um certo desespero. Quando o presidente pede uma reunião secreta com a filha de seu oponente, creio que tem algo mais em mente do que relatórios de inteligência.
Rachel sentiu um arrepio. Os palpites de Pickering costumavam estar absolutamente corretos.
— E você tem medo de que a Casa Branca esteja desesperada o bastante para me colocar no meio desse jogo?
Ele fez uma breve pausa.
— Creio que você não faz muita força para ocultar seus sentimentos por seu pai e tenho certeza de que os coordenadores da campanha do presidente estão a par dessa cisão. Minha impressão é que podem estar querendo usá-la contra seu pai de alguma forma.
— Onde é que eu assino? — perguntou Rachel, sarcástica. Pickering não sorriu: apenas olhou para ela friamente.
— Vou lhe dar um conselho importante, agente Sexton. Se você acha que problemas particulares com seu pai podem atrapalhar seu julgamento ao lidar com o presidente, eu devo sugerir fortemente que recuse esse pedido.
— Recusar? — Rachel deu uma risadinha nervosa. — Eu não poderia negar um pedido do presidente.
— Não — disse o diretor —, mas eu posso.
Suas palavras ressoaram pela sala, lembrando a Rachel o outro motivo pelo qual ele era chamado de Quaker. Apesar de ser um homem de baixa estatura, William Pickering podia causar terremotos políticos quando ficava irritado.
— Minha preocupação, neste caso, é muito simples — disse Pickering. — Sou responsável por proteger aqueles que trabalham para mim e não aceito a mais vaga insinuação de que alguém do NRO possa ser usado como peão num jogo político.
— O que você me recomenda, então?
O diretor suspirou.
— Sugiro que vá se encontrar com ele. Não assuma compromissos. Assim que o presidente lhe disser o que tem em mente, ligue para mim. Se eu achar que ele está usando você como joguete político, acredite, vou tirá-la dessa história tão rápido que ele não vai nem saber o que o acertou.
— Obrigada, senhor. — Rachel sentia no diretor um estilo protetor que faltava a seu próprio pai. — O senhor disse que o presidente já mandou um carro?
— Quase isso. — Pickering levantou uma sobrancelha e apontou para fora. Sem entender muito bem, Rachel andou até a janela.
Um helicóptero PaveHawk MH-60G estava pousado no jardim. Um dos modelos mais rápidos existentes, aquele tinha a insígnia da Casa Branca. O piloto estava em pé do lado de fora, olhando impaciente para o relógio.
Rachel virou-se para o diretor sem acreditar naquilo.
— A Casa Branca mandou um PaveHawk só para me levar para um passeio de 25 quilômetros até lá?
— Aparentemente o presidente espera que você fique impressionada ou intimidada — disse Pickering, olhando para ela. — Sugiro que você não se deixe levar pelas emoções.
Ela concordou, mas era difícil se controlar. Estava impressionada e intimidada.
Quatro minutos depois, Rachel Sexton saiu do NRO e entrou no helicóptero que estava à sua espera. Quase que imediatamente, o aparelho estava no ar, descrevendo uma curva fechada sobre as florestas da Virgínia. Ela olhou para fora e viu as árvores passando tão rápido que pareciam um borrão abaixo dela. Sentiu seu pulso acelerar. Teria acelerado ainda mais se ela soubesse que aquele helicóptero jamais chegaria à Casa Branca.
O vento gélido castigava o tecido Therma-Tech da tenda, mas Delta-Um não estava preocupado com isso. Ele e Delta-Três estavam concentrados em seu companheiro, que manipulava o joystick com uma precisão quase cirúrgica. A tela à frente deles exibia uma transmissão de vídeo em tempo real de uma câmera pouco maior que um alfinete instalada no microrrobô.
Este é o melhor dispositivo de vigilância já criado, pensou Delta-Um, que sempre se surpreendia quando ligavam o aparelho. Ultimamente, no mundo da micromecânica, os fatos pareciam superar a ficção.
Os microssistemas eletromecânicos (MEMS) — ou microrrobôs — eram a mais recente ferramenta de alta tecnologia para fins de vigilância.
Foram apelidados de “mosca na parede”. Literalmente.
Ainda que robôs microscópicos com controle remoto parecessem saídos da ficção científica, na verdade já existiam desde os anos 1990. A revista Discovery publicou uma matéria de capa sobre microrrobôs, em meados de 1997, mostrando tanto os modelos “nadadores” quanto os “voadores”. Os “nadadores” — nanossubmarinos do tamanho de um grão de sal — podiam ser injetados na corrente sangüínea de uma pessoa, como no filme Viagem fantástica. Estavam sendo usados pelas clínicas e hospitais mais avançados para ajudar os médicos a navegar pelas artérias usando um controle remoto. Assim podiam observar transmissões ao vivo de imagens intravenosas e localizar bloqueios arteriais sem jamais utilizar um bisturi.
Ao contrário do que poderíamos imaginar, construir um microrrobô voador era ainda mais simples. O conhecimento de aerodinâmica necessário para fazer uma máquina voar estava disponível desde o vôo dos irmãos Wright em Kitty Hawk, e a única coisa que precisava ser resolvida era a questão da miniaturização. Os primeiros microrrobôs voadores, projetados pela NASA como ferramentas de exploração remota para futuras missões em Marte, mediam pouco mais de um palmo. Contudo, com os recentes avanços em nanotecnologia, na fabricação de materiais ultraleves capazes de absorver energia e em micromecânica, os microrrobôs voadores haviam se tornado uma realidade.
O grande avanço veio do novo campo da biomimética, ou seja, como copiar a Mãe Natureza. Logo ficou claro que libélulas miniaturizadas eram o protótipo ideal para esses ágeis e eficientes microrrobôs voadores. O modelo PH2 que Delta-Dois estava controlando naquele momento tinha apenas um centímetro de comprimento; era quase do tamanho de um mosquito. Empregava um duplo par de asas transparentes, articuladas e feitas de lâminas de silício, que lhe davam uma mobilidade e eficiência sem igual para voar.
O mecanismo de reabastecimento dos microrrobôs havia sido outro grande avanço. Os primeiros protótipos só podiam recarregar suas células de energia quando se posicionavam diretamente sob uma luz intensa, o que obviamente não era ideal para mantê-los ocultos ou usá-los em locais escuros. Os novos modelos, contudo, podiam recarregar-se simplesmente parando a poucos centímetros de um campo magnético. Isso era particularmente conveniente, pois nos dias de hoje os campos magnéticos se tornaram onipresentes, além de ficarem discretamente posicionados. Tomadas, monitores de computador, motores elétricos, alto-falantes, telefones celulares... Parecia haver um número infinito de obscuras estações de recarga. Uma vez que o microrrobô fosse introduzido com sucesso em um local, ele poderia transmitir áudio e vídeo quase que indefinidamente. O PH2 da Força Delta estava transmitindo imagens há mais de uma semana sem nenhum contratempo.
Como um inseto dentro de uma caverna, o microrrobô voava agora, em completo silêncio, no ar parado do gigantesco salão central da estrutura. Fornecendo uma visão global do espaço abaixo dele, circulava despercebido sobre os ocupantes da sala — técnicos, cientistas e especialistas de campos diversos. Em meio às imagens vindas do PH2, Delta-Um vislumbrou os rostos familiares de duas pessoas que estavam conversando. Seriam uma boa fonte de informação.
Ele pediu a Delta-Dois que se aproximasse para ouvi-las.
Manipulando os controles, Delta-Dois ativou os microfones do robô, orientou seu amplificador parabólico e baixou-o até que ficasse a uns três metros da cabeça dos cientistas. A transmissão estava baixa, mas compreensível.
— Ainda não consigo acreditar — dizia um dos cientistas. O tom de animação em sua voz não havia diminuído desde que ali chegara há cerca de 48 horas.
O homem com quem conversava estava tão entusiasmado quanto ele.
— Em toda a sua vida... Você algum dia pensou que iria presenciar algo assim?
— Nunca — respondeu o cientista, sorrindo. — É como um sonho fantástico.
Delta-Um já havia ouvido o bastante. Estava claro que tudo lá dentro corria conforme o esperado. Delta-Dois manobrou o microrrobô de volta até seu esconderijo. Estacionou o pequeno dispositivo em um local onde não podia ser detectado, próximo ao motor de um gerador elétrico. As células de energia do PH2 começaram a recarregar-se, preparando-o para a próxima missão.
Rachel estava perdida em pensamentos sobre os estranhos acontecimentos daquela manhã enquanto o PaveHawk cruzava os céus. Ela só percebeu que estavam indo na direção errada quando o helicóptero sobrevoou velozmente a baía de Chesapeake. Sua confusão inicial rapidamente cedeu lugar ao medo.
— Ei! — gritou para o piloto. — O que você está fazendo? — Sua voz mal podia ser ouvida em meio ao ruído dos rotores. — Você deveria estar me levando para a Casa Branca.
O piloto sacudiu a cabeça.
— Desculpe-me, senhora. O presidente não está na Casa Branca esta manhã.
Rachel tentou lembrar se Pickering havia mencionado especificamente a Casa Branca ou se era apenas algo que ela havia presumido.
— Onde ele está, então?
— Seu encontro é em outro local.
— Não me diga. E que outro local é esse?
— Não estamos longe.
— Não foi o que perguntei.
— Mais uns 25 quilômetros.
Rachel fez uma cara feia para ele. Esse cara deveria ser político.
— Você se desvia de balas tão bem quanto se desvia de perguntas?
O piloto não respondeu.
Levou menos de sete minutos para o helicóptero cruzar a baía de Chesapeake. Quando a terra voltou a aparecer, o piloto fez uma curva para o norte e contornou uma península estreita, onde Rachel viu uma série de pistas de pouso e instalações de aspecto militar. O piloto começou a descer, e ela entendeu, então, onde estavam. As seis plataformas de lançamento e torres de concreto chamuscadas davam uma boa pista, mas, se isso não bastasse, havia ainda duas palavras pintadas, com letras enormes, no telhado de um dos prédios: ILHA WALLOPS.
A ilha Wallops era uma das mais antigas bases de lançamento da NASA e continuava sendo usada para lançar satélites e testar aeronaves experimentais. Wallops era a instalação da NASA que ficava longe dos olhares indiscretos das câmeras.
— O presidente está na ilha Wallops?
Não fazia sentido.
O piloto do helicóptero seguiu a trajetória de três pistas de pouso que percorriam toda a extensão da península e pareciam se dirigir ao ponto mais distante da pista central. Então reduziu a velocidade.
— Você irá se encontrar com o presidente em seu escritório.
Rachel virou-se, tentando entender se era uma piada.
— O presidente dos Estados Unidos tem um escritório na ilha Wallops?
— O presidente dos Estados Unidos tem seu escritório onde desejar, senhora — respondeu o piloto, bem sério, apontando para o final da pista.
Ao ver a enorme silhueta brilhando ao longe, Rachel sentiu seu coração quase parar. Mesmo a 300 metros de distância, ela podia reconhecer a fuselagem azul clara do 747 modificado.
— Eu vou encontrá-lo a bordo do...
— Sim, senhora. Sua casa longe de casa.
Rachel olhou para o impressionante avião. A obscura designação militar daquele avião famoso era VC-25-A. O resto do mundo, contudo, o conhecia como Air Force One.
— Parece que você vai conhecer o novo modelo esta manhã — disse o piloto, indicando o número pintado na cauda do avião.
Rachel concordou. Poucos sabiam que, na verdade, existiam dois Air Force One em serviço ao mesmo tempo; dois 747-200-B configurados de forma idêntica, um deles com a numeração 28000 e o outro numerado 29000. Ambos tinham uma velocidade de cruzeiro de 600 milhas por hora e haviam sido modificados para reabastecimento em vôo, o que lhes dava, na prática, autonomia ilimitada.
O PaveHawk desceu na pista ao lado do avião presidencial e, ao observá-lo, Rachel compreendeu por que muitos diziam que o comandante-em-chefe da nação levava sempre vantagem ao se deslocar no Air Force One. A visão da aeronave era intimidadora.
Quando o presidente viajava para outros países a fim de se encontrar com chefes de estado, muitas vezes pedia, por razões de segurança, que a reunião ocorresse na pista, a bordo de seu jato. Ainda que o pedido fosse motivado pela preocupação com sua proteção, com certeza havia também a intenção de se ganhar alguma vantagem na negociação através da intimidação pura e simples. Uma visita ao Air Force One era muito mais impressionante do que qualquer visita à Casa Branca. Na fuselagem, com quase dois metros de altura, estava escrito ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA.
— Senhorita Sexton? — Um agente do serviço secreto, vestindo um terno, surgiu do lado de fora do helicóptero e abriu a porta para ela. – O presidente está à sua espera.
Rachel saiu do helicóptero e olhou, do início da escada, para a enorme aeronave. Lembrava-se de ter ouvido dizer que o “Salão Oval” voador tinha quase 400 metros quadrados de espaço interno, incluindo quatro dormitórios privados, acomodações para uma tripulação de 26 pessoas e dois refeitórios capazes de fornecer comida para 50 pessoas.
Rachel subiu pela escada de acesso, sentindo a presença do agente do serviço secreto atrás dela, escoltando-a. No alto, a porta da cabine estava aberta, como um pequeno corte feito na lateral de uma gigantesca baleia metálica. Dirigiu-se para a entrada escura e sentiu que sua autoconfiança diminuía.
Calma, Rachel. É só um avião.
Na entrada do avião, o agente educadamente tomou seu braço e guiou-a através de um corredor surpreendentemente estreito. Viraram para a direita, andaram alguns passos e chegaram a uma luxuosa e espaçosa cabine. Rachel já a havia visto antes em fotografias.
— Espere aqui — disse o agente, saindo da sala.
Rachel ficou sozinha na famosa cabine dianteira do Air Force One, observando as paredes revestidas com madeira. .
Aquela era a sala usada para reuniões, para entreter chefes de estado e, aparentemente, para matar de medo os passageiros de primeira viagem.
Coberta de ponta a ponta por um grosso carpete marrom-claro, a sala ocupava toda a largura do avião. A mobília era impecável — cadeiras de couro de cabra dispostas em torno de uma mesa oval de reuniões feita de uma madeira rara, luminárias em bronze ao lado de um sofá de design sofisticado e de um bar de mogno sobre o qual havia um conjunto de taças de cristal gravadas à mão.
Supostamente os designers da Boeing teriam projetado aquela cabine a fim de transmitir aos passageiros um “sentido de ordem e tranqüilidade”. Tranqüilidade, contudo, era a última coisa que Rachel sentia naquele momento. Só conseguia pensar no número de líderes mundiais que já haviam se sentado naquela mesma sala e tomado decisões que mudaram os rumos da História.
Tudo naquela sala transmitia a sensação de poder, desde o suave aroma de fumo para cachimbo até o onipresente selo presidencial. A águia agarrando as flechas e os ramos de oliva estava bordada nas almofadas, gravada no balde de gelo e até mesmo impressa nos descansos para copos no bar. Rachel pegou um deles e o observou.
— Já está roubando um souvenir? — perguntou uma voz grave atrás dela.
Assustada, Rachel deixou o descanso cair no chão e ajoelhou-se desajeitadamente para pegá-lo. Ao se levantar, deu de cara com o presidente dos Estados Unidos, olhando-a com um sorriso divertido.
— Não sou da realeza, senhorita Sexton. Não é preciso ajoelhar-se.
O Senador Sedgewick Sexton estava apreciando a privacidade de sua limusine Lincoln enquanto enfrentava o trânsito matinal de Washington a caminho de seu escritório. Diante dele estava Gabrielle Ashe, sua assistente pessoal de 24 anos, que repassava os compromissos do dia.
Sexton quase não prestava atenção.
Amo Washington, pensou, admirando as formas perfeitas da assistente, delineadas sob a suéter de cashmere. O poder é o maior de todos os afrodisíacos — e atrai centenas de mulheres como esta para a capital federal.
Gabrielle se formara em uma das melhores universidades de Nova York e sonhava em se tornar senadora um dia. Ela conseguirá, pensou Sexton.
Era incrivelmente bonita e esperta como uma raposa. Acima de tudo, ela entendia as regras do jogo.
Gabrielle Ashe era negra, com um tom de pele moreno-jambo, uma coloração confortavelmente indefinível que Sexton sabia que os “brancos” mais radicais apoiariam sem ferir seus preconceitos raciais.
Sexton descrevia Gabrielle para seus colegas como alguém com a beleza de Halle Berry aliada à ambição e ao cérebro de Hillary Clinton, mas às vezes ele achava que ela era ainda melhor do que as duas juntas.
Gabrielle havia se tornado uma peça importante em sua campanha desde que ele a promovera ao cargo de assistente pessoal há três meses. Para tornar as coisas ainda melhores, ela estava trabalhando de graça. Sua recompensa pelas jornadas de 16 horas era aprender como funcionava o jogo do poder na prática, trabalhando ao lado de um político veterano.
É claro que eu a convenci a fazer um pouco mais do que apenas seu trabalho, gabava-se Sexton.
Logo após a promoção, o senador convidou-a para uma sessão noturna de “orientação” em seu gabinete. Como era esperado, sua jovem assistente chegou com os olhos brilhando e ansiosa para agradar o chefe.
Avançando lentamente, com uma paciência aprimorada durante décadas, ele foi hipnotizando sua presa, ganhando sua confiança, cuidadosamente despindo suas inibições, exibindo total controle da situação e, finalmente, seduzindo-a lá mesmo, em seu escritório.
Ele não tinha dúvida de que o encontro tinha sido uma das melhores experiências sexuais da vida daquela jovem. Porém, ao acordar na manhã seguinte, Gabrielle arrependeu-se do que havia ocorrido. Envergonhada, pediu demissão. Sexton recusou. Ela decidiu ficar, mas deixou suas intenções bem claras. Desde então, a relação entre os dois passara a ser estritamente profissional.
Os lábios carnudos de Gabrielle continuavam se movendo:
— ...não quero que você pareça apático ao participar do debate na CNN hoje à tarde. Ainda não sabemos quem a Casa Branca vai mandar como oponente. Você talvez queira ler estas anotações que digitei — disse ela, entregando uma pasta ao senador.
Sexton pegou a pasta, inalando a fragrância de seu perfume que se misturara com o cheiro do couro que revestia os bancos do carro.
— Você não está prestando atenção — ela disse.
— Claro que estou — respondeu ele, com um sorriso forçado. – Esqueça esse debate na CNN. Na pior das hipóteses, a Casa Branca vai me esnobar enviando algum estagiário do comitê de campanha. Na melhor das hipóteses, vão mandar um figurão, e eu farei picadinho do sujeito no ar.
— Tudo bem. Incluí uma lista dos tópicos possivelmente mais hostis nas anotações que lhe passei.
— Os suspeitos habituais, obviamente.
— Com um novo item. Acho que você pode se defrontar com a hostilidade da comunidade gay por causa dos comentários que fez no programa do Larry King.
— Sei. Sobre o casamento de homossexuais — Sexton deu de ombros, distraído. Gabrielle lançou-lhe um olhar de reprimenda.
— Você se posicionou contra isso de forma bem veemente.
Casamento de homossexuais, pensou Sexton, aborrecido. Se dependesse de mim, aquelas bichas não teriam nem o direito de votar.
— Tudo bem, vou maneirar um pouco o tom.
— Bom. Você tem exagerado um pouco nesses tópicos polêmicos nos últimos tempos. Não se torne arrogante, o público pode mudar de idéia muito rápido. Você está ganhando agora, está na crista da onda. Aproveite, não é preciso fazer um gol de placa hoje. Basta manter a bola rolando.
— Notícias da Casa Branca?
— Silêncio completo. É oficial agora: seu oponente tornou-se o “Homem Invisível” — respondeu Gabrielle, com um misto de espanto e satisfação.
O senador mal podia acreditar na sorte que vinha tendo nos últimos tempos. Durante meses, o presidente trabalhou duro em sua campanha. Então, do nada, há uma semana, ele se trancara no Salão Oval e, desde então, ninguém mais o vira ou ouvira falar dele. Era como se ele simplesmente não pudesse fazer frente ao súbito crescimento de Sexton nas pesquisas.
Gabrielle passou a mão em seus cabelos escuros e alisados.
— Ouvi dizer que a equipe de campanha da Casa Branca está tão perplexa quanto nós. O presidente não apresentou nenhuma explicação para seu desaparecimento, e todos estão muito irritados por lá.
— Especulações? — perguntou Sexton.
Gabrielle olhou para ele por cima dos óculos que lhe davam uma aparência de intelectual.
— Bem, por acaso eu consegui alguns detalhes interessantes hoje pela manhã com um contato pessoal na Casa Branca.
Sexton reconheceu a expressão por trás daquele olhar. Gabrielle Ashe tinha, mais uma vez, conseguido uma informação interna. Ele ficava imaginando se ela estaria transando com algum dos auxiliares do presidente em troca desses segredos de campanha. Não que ele se importasse... contanto que as informações continuassem fluindo.
— De acordo com os rumores — ela prosseguiu num tom de voz mais baixo —, esse comportamento estranho do presidente começou semana passada, após um encontro confidencial de emergência com o administrador da NASA. Aparentemente o presidente saiu da reunião atordoado. Pediu que todos os seus compromissos fossem imediatamente cancelados e vem mantendo contatos freqüentes com a agência espacial desde então.
Sexton ficou feliz com aquela história.
— Você acha que a NASA lhe deu más notícias de novo?
— Seria uma explicação lógica — disse ela, pensativa. — Ainda assim, teria que ser algo bem sério para fazer o presidente cancelar tudo e sumir.
Sexton pensou sobre o assunto. Fosse lá o que estivesse acontecendo com a NASA, as notícias deveriam ser ruins. Do contrário, o presidente já teria jogado tudo na minha cara. Nos últimos tempos, o senador vinha batendo forte no presidente em relação às verbas destinadas à NASA. O histórico recente de missões problemáticas ou abortadas, além dos gigantescos rombos orçamentários, tinha dado à agência a duvidosa honra de ser a bandeira não-oficial de Sexton contra os gastos excessivos do governo e sua ineficiência administrativa. Atacar a NASA, um dos maiores símbolos do orgulho norte-americano, não era a maneira mais ortodoxa de se conquistar votos, mas Sexton tinha uma arma que poucos políticos possuíam; Gabrielle Ashe — e seus instintos impecáveis.
A jovem havia atraído a atenção do senador meses antes, quando trabalhava como coordenadora no seu escritório de campanha em Washington. Sexton estava ficando bem para trás nas pesquisas das primárias, e sua posição quanto aos gastos excessivos do governo vinha sendo ignorada pelos eleitores. Foi então que Gabrielle escreveu-lhe um bilhete sugerindo uma nova e radical abordagem para a campanha. Ela sugeriu que o senador atacasse os excessos orçamentários da NASA e as freqüentes verbas emergenciais fornecidas pela Casa Branca como exemplo principal da falta de controle financeiro da administração do presidente Herney.
— A NASA está custando uma fortuna para o bolso dos americanos — escreveu Gabrielle, relacionando cifras, fracassos e verbas emergenciais. — Os eleitores não fazem idéia de quanto está sendo gasto. Vão ficar horrorizados. Transforme a NASA em uma questão política.
Sexton suspirou diante da ingenuidade da moça. Lógico, e aproveito para declarar que sou contra cantar o hino nacional antes das partidas de basquete.
Nas semanas que se seguiram, Gabrielle continuou enviando ao senador informações sobre a NASA. Quanto mais Sexton lia, mais convencido ficava de que ela tinha razão. Mesmo pelos padrões das agências governamentais, a NASA era um poço sem fundo para as verbas — cara, ineficiente e, nos últimos anos, de uma incompetência grosseira.
Uma tarde, Sexton estava participando de uma entrevista ao vivo no rádio sobre educação, e a entrevistadora não parava de pressioná-lo para saber de onde ele pretendia tirar os fundos para promover as melhorias prometidas nas escolas públicas. Como resposta, o senador decidiu testar a teoria de Gabrielle sobre a NASA. Em um tom meio jocoso, respondeu:
— Dinheiro para a educação? Bem, talvez eu corte o programa espacial pela metade. Creio que, se a NASA pode gastar 15 bilhões por ano no espaço, devo conseguir 7,5 bilhões para as crianças aqui da Terra.
Na sala de transmissão, os diretores de campanha de Sexton engoliram em seco diante daquela observação descuidada. Já tinham visto campanhas inteiras arruinadas por muito menos. Ao fazer um ataque frontal à NASA, ele estava mexendo num vespeiro.
Imediatamente as linhas de telefone da estação de rádio se acenderam. Os diretores de campanha se encolheram, esperando o contra-ataque dos patriotas espaciais.
No entanto, algo inesperado aconteceu.
— Quinze bilhões por ano? — disse o primeiro ouvinte ao telefone, parecendo chocado. — Com um “b”? Você está me dizendo que a turma de matemática do meu filho está superlotada porque as escolas não podem pagar os professores enquanto a NASA está gastando 15 bilhões de dólares por ano para tirar fotos de poeira espacial?
— Hum... é isso mesmo — disse Sexton, cautelosamente.
— É um absurdo! E o presidente tem algum poder para mudar isso?
— Claro que sim! — respondeu o senador, mais confiante. — O presidente tem direito de vetar o pedido de verbas de qualquer agência que ele acredite ser excessivo.
— Então meu voto é seu, senador Sexton. Quinze bilhões para a pesquisa espacial e nossas crianças aqui, sem professores. É revoltante! Boa sorte, senhor. Espero que chegue lá!
O próximo telefonema foi colocado no ar.
— Senador, eu li há pouco tempo que a Estação Espacial Internacional da NASA já gastou muito mais do que o previsto em seu orçamento e que o presidente está pensando em conceder verbas adicionais para manter o projeto em andamento. É verdade?
— Sim, é verdade! — disse Sexton, aproveitando a oportunidade para explicar que a estação espacial havia sido originalmente proposta como um programa em conjunto, cujos custos seriam divididos entre 12 países. Mas, após o início da construção, o orçamento da estação fugiu totalmente do controle e muitos países se retiraram do projeto por discordarem do rumo das coisas. Em vez de sucatear o projeto, o presidente decidiu cobrir as despesas de todos os outros. — O custo total do projeto da Estação Espacial Internacional — anunciou Sexton — subiu dos oito bilhões inicialmente propostos para a formidável quantia de 100 bilhões de dólares!
O ouvinte do outro lado da linha estava furioso.
— Então por que o presidente não manda parar com essa história? — Sexton teve vontade de beijar o sujeito.
— É uma excelente pergunta. Infelizmente, um terço dos materiais para a construção já estão em órbita e o presidente investiu o dinheiro público para colocá-los lá. Paralisar o projeto seria admitir que cometeu um erro de muitos bilhões de dólares com o dinheiro do povo.
As chamadas não paravam, uma atrás da outra. Pela primeira vez, parecia que os americanos haviam compreendido que manter a NASA era uma escolha, e não uma obrigação da nação.
Quando a entrevista acabou, com exceção de alguns fãs de carteirinha da NASA que ligaram e fizeram discursos comoventes sobre a eterna busca da humanidade pelo conhecimento, o consenso era claro. A campanha de Sexton havia encontrado um filão, uma questão controversa, mas ainda não debatida, que havia atingido em cheio os eleitores.
Nas semanas que se seguiram, Sexton trucidou seus oponentes em cinco primárias cruciais. Anunciou que Gabrielle Ashe seria sua nova assistente pessoal de campanha, elogiando seu trabalho por ter trazido a questão da NASA ao conhecimento dos eleitores. Como num passe de mágica, o senador transformou a jovem negra numa estrela política em ascensão e fez seu histórico de votos racistas e machistas desaparecer de uma hora para a outra.
Agora, enquanto os dois circulavam de carro pela cidade, Sexton refletia sobre o que Gabrielle acabara de lhe contar. A assistente provara mais uma vez seu valor. A informação sobre a reunião secreta da semana anterior entre o administrador da NASA e o presidente certamente sugeria que havia novos problemas com a agência — quem sabe outro financiamento destrutivo para a nação por conta da estação espacial.
Quando a limusine passou em frente ao Monumento a Washington, o senador Sexton sentiu que era o escolhido.
O homem que ocupava o mais poderoso cargo político do mundo não era uma figura imponente. Magro, com ombros estreitos e estatura mediana, o presidente Zachary Herney usava óculos bifocais, tinha o rosto coberto de sardas e cabelos ralos e pretos. Seu físico pouco impressionante contrastava com seu enorme carisma. As pessoas costumavam dizer que um único encontro com o presidente era suficiente para fazer com que qualquer um se tornasse seu fiel seguidor, indo até os confins da Terra por ele.
— Fico feliz que você tenha atendido ao meu chamado — disse o presidente Herney, estendendo a mão e cumprimentando Rachel com um toque caloroso e sincero.
Rachel tentou se livrar do nó em sua garganta.
— Sim... claro, senhor presidente. É uma honra conhecê-lo.
O presidente abriu um sorriso reconfortante, e Rachel sentiu em primeira mão a lendária amabilidade de Herney. Aquele homem possuía um semblante tranqüilo que os cartunistas políticos adoravam porque, independentemente da qualidade de suas charges, era impossível não reconhecer aquele sorriso caloroso e amigável. Seus olhos transpareciam sinceridade e dignidade o tempo todo.
— Se você quiser me acompanhar — disse, num tom de voz bem-humorado —, há uma xícara de café esperando por você lá dentro.
— Obrigada, senhor.
O presidente pressionou o interfone e pediu que levassem café para seu escritório.
Rachel seguiu-o em direção ao gabinete, observando que ele parecia particularmente feliz e relaxado para alguém que estava indo mal nas pesquisas eleitorais. Ela também notou que ele estava vestido de maneira bem informal: calça jeans, camisa pólo e botas de caminhada.
Sem saber o que fazer, Rachel tentou puxar assunto.
— Tem feito caminhadas, senhor presidente?
— Ah. Não, nada disso. É que meus assessores de campanha decidiram que este deveria ser meu novo visual. O que você acha?
Rachel esperava sinceramente que aquilo fosse uma brincadeira.
— Bem, eu diria que é... muito masculino, senhor. — Herney respondeu com a maior cara-de-pau:
— Que bom. Achamos que isso me ajudaria a conquistar alguns dos votos femininos de seu pai. — Após uma curta pausa, o presidente abriu um largo sorriso. — Senhorita Sexton, isso foi uma piada. Nós dois sabemos que é preciso mais do que uma camisa pólo e uma calça jeans para vencer essa eleição.
A franqueza e o bom humor do presidente fizeram com que Rachel começasse a se sentir mais à vontade. A falta de atributos físicos de Zach Herney era totalmente compensada por seu jeito afável de lidar com as pessoas. Não era uma habilidade que tivesse desenvolvido, era um talento natural.
Os dois caminharam em direção à parte traseira do Air Force One. À medida que avançavam, menos o interior se parecia com o de um avião.
Havia corredores recurvados, revestimento com papel de parede e até mesmo uma bem equipada sala de ginástica. Estranhamente, o avião parecia completamente deserto.
— O senhor vai viajar sozinho, presidente?
Ele balançou a cabeça.
— Acabei de chegar, na verdade.
Rachel estava surpresa. Chegar de onde? Os relatórios de inteligência daquela semana não continham nenhum planejamento relativo a viagens presidenciais. Aparentemente ele estava usando a ilha Wallops para viajar despercebido.
— Minha equipe deixou o avião pouco antes de você chegar — disse o presidente. — Vou retornar à Casa Branca em breve para me encontrar com eles, mas queria falar com você aqui e não em meu escritório.
— Tentando me intimidar?
— Pelo contrário. Tentando demonstrar respeito, senhorita Sexton. A Casa Branca não tem a menor privacidade, e a notícia de um encontro entre nós dois poderia colocá-la em uma situação complicada em relação a seu pai.
— Agradeço seu cuidado, senhor.
— Creio que você tem conseguido manter um equilíbrio delicado de forma graciosa e não vejo razões para atrapalhar isso.
Rachel lembrou-se rapidamente do encontro matinal com seu pai: ela duvidava que seu comportamento pudesse ser chamado de “gracioso”. De qualquer jeito, Herney estava fazendo um esforço evidente para agir de maneira honrada.
— Posso chamá-la de Rachel? — perguntou Herney.
— Claro. Posso chamá-lo de Zach?
— Meu escritório — disse o presidente, fazendo sinal para que ela entrasse por uma porta de madeira entalhada.
O gabinete presidencial do Air Force One tinha um clima mais intimista do que seu equivalente na Casa Branca, mas, ainda assim, o mobiliário guardava um certo ar de austeridade. Havia uma pilha de papéis sobre a escrivaninha. Na parede atrás da mesa estava pendurada uma imponente pintura a óleo de uma escuna de três mastros, velas infladas, tentando sobrepujar uma furiosa tempestade. Parecia a metáfora perfeita para a situação política de Zachary Herney naquele momento.
O presidente puxou uma das três cadeiras executivas que estavam em frente à sua mesa para Rachel. Ela se sentou, esperando que ele fosse sentar-se do outro lado, atrás da escrivaninha. Em vez disso, ele puxou uma das outras cadeiras e acomodou-se ao lado dela.
No mesmo nível, ela pensou. Um mestre em relacionamentos.
— Bem, Rachel — disse Herney, soltando um suspiro de cansaço. — Imagino que você esteja confusa quanto à razão de estar sentada aqui neste momento, não é?
Rachel baixou a guarda diante da sinceridade na voz do presidente.
— Para falar a verdade, estou perplexa.
Herney soltou uma risada.
— Fantástico! Não é todo dia que consigo deixar alguém do NRO perplexo!
— Também não é todo dia que alguém do NRO é convidado a subir a bordo do Air Force One por um presidente usando botas de caminhada.
Ele riu novamente.
Uma batida suave na porta anunciou a chegada do café. Uma tripulante entrou com uma cafeteira fumegante e duas xícaras de estanho numa bandeja. A pedido do presidente, ela deixou a bandeja sobre a mesa, saindo discretamente.
— Creme e açúcar? — perguntou Herney, servindo o café.
— Somente creme, por favor. — Rachel saboreou o aroma forte do café. O presidente dos Estados Unidos está me servindo café pessoalmente?
Zach Herney passou-lhe uma pesada xícara de estanho.
— É uma Paul Revere autêntica — disse ele. — Um pequeno luxo.
Rachel tomou um gole de café. Era o melhor que já havia provado.
— Bem — disse o presidente, enchendo sua própria xícara e sentando-se novamente —, não posso ficar aqui por muito tempo, então vamos direto ao assunto. — O presidente deixou cair um cubinho de açúcar em seu café e olhou para ela. — Suponho que Bill Pickering tenha alertado você sobre as minhas intenções. Ele provavelmente lhe disse que eu só poderia estar interessado em tirar alguma vantagem política deste encontro, certo?
— Na verdade, senhor, foi exatamente o que ele disse.
O presidente deu uma gargalhada.
— Ele é sempre muito cético.
— Ele estava errado?
— Pickering, errado? — o presidente riu. — Bill nunca erra. Ele está absolutamente correto.
Enquanto a Limusine avançava lentamente em meio ao trânsito matinal rumo ao escritório de Sexton, Gabrielle Ashe olhava distraidamente para fora da janela, refletindo sobre como havia chegado àquele ponto em sua vida. Assistente pessoal do senador Sedgewick Sexton. Era exatamente o que ela sempre tinha desejado, não?
Estou sentada em uma limusine com o próximo presidente dos Estados Unidos.
Ela olhou para o senador à sua frente, aparentemente perdido em seus próprios pensamentos. Examinou seus belos traços e estilo impecável.
Parecia um presidente, de fato.
Gabrielle conhecera o senador há três anos, quando cursava Ciências Políticas na Universidade de Cornell. Ela tinha ido assistir à palestra de Sexton e nunca se esqueceria da forma como ele a encarava do palco, como se quisesse mandar-lhe uma mensagem especial – confie em mim. Depois da conferência, ela havia esperado na fila para cumprimentá-lo.
— Gabrielle Ashe — disse o senador, lendo o nome escrito em seu crachá. — Um lindo nome para uma linda jovem.
— Obrigada, senhor — respondeu Gabrielle, apertando sua mão e sentindo a força que ele transmitia. — Fiquei realmente impressionada com o que disse.
— Fico feliz com isso! — Sexton lhe entregou um cartão de visitas. — Estou sempre à procura de jovens inteligentes que compartilhem minha visão. Quando terminar a faculdade, procure por mim. Meu pessoal talvez tenha um trabalho para você.
Gabrielle começou a dizer algo em agradecimento, mas o senador já estava falando com a próxima pessoa da fila. Nos meses que se seguiram, ela acompanhou a carreira de Sexton pela televisão. Sempre ficava admirada com seus discursos contra os gastos do governo americano. Ele defendia cortes orçamentários, propunha uma modernização da receita federal para aumentar a eficácia da arrecadação, sugeria um corte nas verbas da DEA, órgão responsável pelo combate às drogas, e até mesmo a abolição de ações na área social que estivessem duplicadas.
Quando a mulher do senador morreu num acidente de automóvel, Gabrielle ficou atônita com sua capacidade de transformar algo tão negativo em um fato positivo.
Sexton superou sua dor pessoal e declarou à nação que iria se candidatar à presidência, dedicando o restante de seus anos de serviço público à memória da mulher. Foi naquele momento que Gabrielle decidiu que queria trabalhar na campanha presidencial do senador.
E não podia ter se dedicado mais intensamente àquela missão.
Ela lembrou-se da noite que havia passado com Sexton em seu gabinete e trincou os dentes, tentando bloquear as imagens vergonhosas que surgiam em sua mente. Mas o que eu estava pensando? Ela sabia que poderia ter resistido, mas, ainda assim, não conseguiu. Sedgewick Sexton era um grande ídolo para ela... e pensar que ele a desejava.
A limusine passou por um buraco, trazendo seus pensamentos de volta ao presente.
— Está tudo bem? — Sexton estava olhando para ela.
— Tudo certo — Gabrielle apressou-se em sorrir.
— Você não está pensando de novo naquela jogada suja dos nossos oponentes, está?
Ela deu de ombros.
— Acho que ainda estou preocupada.
— Deixe para lá. Aquilo foi a melhor coisa que aconteceu em minha campanha.
Cerca de um mês atrás, a equipe de campanha do presidente, preocupada com sua queda nas pesquisas, resolveu tentar um movimento mais agressivo e deixar vazar uma história que suspeitavam ser verdadeira: a de que o senador Sexton tivera um caso com sua assistente pessoal.
Infelizmente para a Casa Branca, não havia nenhuma prova material disso. O senador, que acreditava firmemente na idéia de que a melhor defesa é o ataque, não perdeu a oportunidade de contra-atacar.
Convocou uma coletiva para proclamar sua inocência e declarar que se sentia ultrajado. “Não posso acreditar que o presidente venha desonrar a memória de minha falecida esposa com essas mentiras maldosas”, disse ele diante das câmeras, exibindo um olhar profundamente magoado.
O tiro da Casa Branca definitivamente havia saído pela culatra.
O desempenho de Sexton na TV foi tão convincente que a própria Gabrielle quase acreditou que eles não haviam feito sexo. Vendo como era fácil para ele mentir, a assistente percebeu o quão perigoso aquele homem era.
Mais tarde, ainda que estivesse certa de que estava apostando no cavalo mais forte na corrida à presidência, ela começou a se questionar se estava apostando no melhor cavalo. Trabalhar ao lado de Sexton estava sendo uma experiência muito reveladora.
Ainda que Gabrielle continuasse confiando plenamente na mensagem do senador, ela estava começando a duvidar do mensageiro.
— Aquilo que estou prestes a lhe dizer, Rachel, é classificado como “UMBRA” e está muito além de sua posição na hierarquia de segurança — confidenciou o presidente.
Rachel sentiu as paredes do Air Force One se fecharem em torno dela. O presidente mandara um helicóptero levá-la até a ilha Wallops para que os dois pudessem ter um encontro secreto em seu avião, servira-lhe café, dissera com toda a clareza que pretendia usá-la politicamente contra seu pai e agora anunciava que pretendia lhe passar informações secretas ilegalmente. Por mais cortês que Zach Herney parecesse ser, Rachel acabara de descobrir que ele assumia o controle da situação muito rapidamente.
— Há duas semanas — disse o presidente, olhando dentro de seus olhos — a NASA fez uma descoberta.
As palavras pairaram no ar por alguns instantes, antes que Rachel pudesse compreendê-las. Uma descoberta da NASA? Os últimos relatórios de inteligência não sugeriam que nada de extraordinário estivesse acontecendo na agência espacial. Claro que, nos últimos tempos, uma “descoberta da NASA” em geral significava que tinham cometido um erro grosseiro ao estimar os custos de um novo projeto. E sempre erravam para menos.
— Antes de prosseguir, eu queria saber se você compartilha com seu pai o desprezo pela exploração do espaço — disse o presidente.
Rachel ficou ressentida com o comentário.
— Espero que você não tenha me trazido até aqui para me pedir que controle os ataques de meu pai à NASA.
Ele riu.
— Claro que não! Não seja tola, eu lido com o Senado há bastante tempo para saber que ninguém controla Sedgewick Sexton.
— Meu pai é um oportunista, senhor, exatamente como a maioria dos políticos bem-sucedidos. E infelizmente a NASA se mostrou uma boa oportunidade para ele.
Os erros cometidos recentemente pela agência eram tão inaceitáveis que as pessoas não sabiam se deviam rir ou chorar: satélites se desintegravam em órbita, sondas espaciais sumiam sem nunca mandar mensagens de volta, o orçamento da Estação Espacial Internacional já havia sido multiplicado por 10 enquanto os demais países participantes abandonavam o projeto como ratos tentando escapar de um navio prestes a afundar. Bilhões estavam sendo perdidos, e o senador Sexton usava isso para chegar aonde queria: Pennsylvania Avenue, 1.600 — a Casa Branca.
— Devo admitir — continuou ele — que a NASA tem sido uma espécie de desastre ambulante nos últimos tempos. Toda vez que eu me viro surge uma nova razão para que eu corte suas verbas.
Rachel viu uma brecha e aproveitou-se dela.
— Mas, ainda assim, presidente, eu li que o senhor aprovou na semana passada mais três milhões de dólares em fundos emergenciais para evitar que a agência se tornasse inadimplente...
O presidente deu uma risadinha.
— Seu pai certamente ficou feliz com essa notícia, não é?
— Nada melhor do que fornecer munição para seu carrasco...
— Você ouviu o que ele disse no programa Nightline? “Zach Herney é viciado no espaço e são os dólares dos contribuintes que financiam seu vício.”
— Mas o senhor continua provando que ele está certo...
Herney assentiu.
— Nunca ocultei o fato de que sou um grande fã da NASA. Sempre fui. Nasci na era da corrida espacial — Sputnik, John Glenn, Apollo 11 – e nunca hesitei em demonstrar meus sentimentos de admiração e de orgulho nacional por nosso programa de conquista do espaço. Na minha cabeça, os homens e mulheres da NASA são os pioneiros da história contemporânea. Desejam o impossível, aceitam os fracassos e então retornam às suas pranchetas enquanto o restante de nós fica só observando e criticando.
Rachel ficou em silêncio por um instante. Ela percebera que a aparente calma do presidente escondia uma raiva indignada contra a incessante retórica anti-NASA de seu pai. Àquela altura, ela só queria saber que diabos a NASA teria encontrado. O presidente estava dando uma longa volta antes de chegar ao cerne da questão.
— Hoje pretendo mudar radicalmente sua opinião sobre a NASA – disse Herney, com vigor.
Rachel olhou para ele, incerta quanto ao que dizer.
— O senhor já tem o meu voto. Talvez devesse se preocupar mais com o restante do país, presidente.
— É o que pretendo fazer — disse, tomando um gole de café e sorrindo. — E vou pedir que você me ajude. — Fez uma pausa e inclinou-se na direção dela. — De uma forma peculiar.
Ela podia sentir que Zach Herney estava analisando cada um de seus movimentos, como um caçador tentando avaliar se sua presa pretendia fugir ou lutar. Infelizmente, Rachel não tinha para onde fugir.
— Devo presumir — prosseguiu ele, servindo mais café para os dois — que você está a par de um projeto da NASA chamado EOS?
Rachel assentiu. Earth Observing System.
— Sistema de Observação da Terra. Creio que meu pai tocou nesse assunto uma ou duas vezes.
Sua débil tentativa de parecer sarcástica fez o presidente franzir a testa. Na verdade, o pai de Rachel mencionava aquele projeto sempre que podia. Era uma das mais controvertidas empreitadas da NASA.
Consistia numa constelação de cinco satélites projetados para observar a Terra a partir do espaço a fim de analisar o meio ambiente do planeta: redução da camada de ozônio, derretimento das calotas polares, aquecimento planetário, devastação das florestas tropicais. A intenção era fornecer aos ambientalistas dados macroscópicos inéditos para que pudessem planejar melhor o futuro da Terra.
Infelizmente o projeto EOS tivera problemas desde sua concepção. E, como sempre, os imprevistos eram dispendiosos. Quem estava levando a pior nesse caso era Zach Herney. Ele tinha se aproveitado do lobby dos ambientalistas para conseguir aprovar no Congresso uma verba de 1,4 bilhão de dólares para o projeto. No entanto, em vez de fornecer as contribuições prometidas para ampliar o conhecimento científico sobre o planeta, o EOS se transformara em outro pesadelo terrivelmente custoso de lançamentos fracassados, falhas em computadores e coletivas de imprensa deprimentes na NASA. A única pessoa feliz, nos últimos tempos, era o senador Sexton, que não se cansava de lembrar aos eleitores e contribuintes quanto o presidente havia gasto no EOS e como os resultados tinham sido péssimos.
— Por mais surpreendente que isso possa parecer, a descoberta da NASA a que estou me referindo foi feita pelo EOS.
Rachel ficou aturdida com aquela declaração. Se o EOS obteve um sucesso recente, por que a NASA não o anunciou? Seu pai estava crucificando o Sistema de Observação da Terra na mídia, e a agência espacial se beneficiaria muito de qualquer notícia favorável.
— Não li nada a respeito de uma descoberta do EOS — disse Rachel.
— Eu sei. A NASA prefere guardar as boas novas para si mesma durante algum tempo.
Rachel tinha dúvidas quanto a isso.
— De acordo com minha experiência, senhor, quando o assunto é a NASA, nenhuma notícia em geral significa que há más notícias. — A discrição não era exatamente o ponto forte da agência. No NRO circulava uma piada dizendo que a NASA convocava a imprensa toda vez que um de seus cientistas espirrava.
O presidente levantou uma sobrancelha.
— Ah, sim. Esqueci que estava falando com uma das discípulas de Pickering. Ele continua reclamando e resmungando a respeito da língua solta da NASA?
— Ele lida com segurança, senhor. E leva isso muito a sério.
— Está absolutamente certo. Só não entendo por que duas agências com tantas coisas em comum conseguem encontrar sempre um motivo para brigar.
Rachel havia aprendido bem cedo, sob o comando de William Pickering, que, apesar de a NASA e o NRO serem organizações ligadas ao espaço, as duas tinham filosofias opostas. O NRO era mais voltado para a defesa e mantinha todas as suas atividades espaciais em segredo, enquanto a NASA era acadêmica e divulgava, com entusiasmo, cada uma de suas descobertas para todo o planeta. William Pickering argumentava que muitas vezes essa atitude chegava a colocar em risco a segurança nacional. Algumas das melhores tecnologias desenvolvidas pela NASA — como as lentes de alta resolução para telescópios de satélites, sistemas de comunicação de longo alcance e dispositivos de mapeamento por ondas de rádio — invariavelmente apareciam no arsenal de inteligência de países hostis, sendo usadas para espionar os Estados Unidos. Bill Pickering reclamava que os cientistas da NASA podiam até ter grandes cérebros, mas suas bocas eram ainda maiores.
Havia, contudo, uma questão mais delicada entre as duas organizações.
Como a NASA era responsável pelos lançamentos de satélites do NRO, muitos dos seus problemas recentes afetavam diretamente o trabalho do Escritório Nacional de Reconhecimento.
Nenhum fracasso havia sido maior do que o ocorrido em 12 de agosto de 1998, quando um foguete Titan 4 da NASA/Força Aérea explodiu 40 segundos após o lançamento, desintegrando sua carga — um satélite de 1,2 bilhão de dólares do NRO cujo codinome era Vortex 2. Pickering não tinha a menor intenção de esquecer aquele episódio, especificamente.
— Então por que a NASA não anunciou seu sucesso recente ao público? — questionou Rachel. — A agência certamente se beneficiaria de uma boa notícia neste momento.
— A NASA manteve silêncio porque eu ordenei que ninguém falasse nada — declarou o presidente.
Rachel ficou pensando se tinha mesmo ouvido aquilo. Se fosse verdade, o presidente estava cometendo uma espécie de suicídio político que ela não podia entender.
— A descoberta tem implicações assombrosas — disse Herney.
Rachel sentiu um calafrio. No mundo da inteligência, “implicações assombrosas” dificilmente significavam boas notícias. Ela estava pensando se todo aquele segredo se devia a algum desastre ambiental iminente descoberto pelos satélites do EOS.
— Há algum problema sério?
— Nenhum problema. O que o EOS descobriu, na verdade, é maravilhoso.
Rachel ouvia em silêncio.
— Suponha que eu lhe dissesse que a NASA acabou de fazer uma descoberta de tamanha importância científica, tamanha significância planetária, que por si só justificasse cada dólar já gasto pelos americanos em pesquisas espaciais?
Rachel não sabia o que pensar. O presidente levantou-se.
— Vamos dar uma volta?
Rachel e O presidente Herney saíram do avião para a luz forte da manhã. Ela começou a descer as escadas do Air Force One, sentindo o ar fresco de março clarear suas idéias. A clareza, contudo, tornava as afirmações do presidente ainda mais estranhas.
A NASA fez uma descoberta de tamanha importância científica que justifica cada dólar já gasto pelos americanos nas pesquisas espaciais?
Rachel imaginava que uma descoberta de tal magnitude só poderia estar centrada em uma coisa — o Santo Graal da NASA, ou seja, contato com uma forma de vida extraterrestre. Infelizmente ela conhecia o suficiente a respeito dessa questão em particular para saber que era completamente implausível.
Por conta de seu trabalho, Rachel muitas vezes era bombardeada por perguntas de amigos que queriam saber sobre a suposta dissimulação do governo a respeito de contatos com alienígenas. Sempre ficava chocada com as teorias nas quais seus amigos “cultos” acreditavam: discos voadores que haviam caído na Terra e estavam escondidos em galpões secretos do governo, corpos de extraterrestres congelados, até mesmo civis inocentes sendo abduzidos e submetidos a cirurgias.
Tudo aquilo era absurdo, claro. Não havia alienígenas. Não havia dissimulação alguma.
Todo mundo que fazia parte da comunidade de inteligência sabia que, em sua grande maioria, as visões de alienígenas e as pessoas abduzidas eram apenas o produto de imaginações férteis ou armações para tirar dinheiro dos outros.
Quando surgiam evidências fotográficas autênticas de óvnis, curiosamente ocorriam sempre perto de alguma base militar dos EUA onde estava sendo testado um novo protótipo secreto de aeronave. Quando a Lockheed começou a fazer testes de vôo de um novo e radical avião a jato chamado Stealth Bomber, o número de aparições de óvnis perto da Base Aérea de Edwards aumentou quase 15 vezes.
— Você está com uma expressão bastante cética — disse o presidente.
O som de sua voz surpreendeu Rachel. Ela olhou para ele, sem saber o que dizer.
— Bem... — ela hesitou. — Posso presumir, senhor, que não estamos falando sobre naves alienígenas ou homenzinhos verdes?
O presidente pareceu achar aquilo engraçado.
— Rachel, creio que você vai achar essa descoberta ainda mais intrigante do que ficção científica.
Ela ficou mais tranqüila ao pensar que a NASA não estava desesperada o suficiente para tentar convencer o presidente de que havia encontrado alienígenas. Ainda assim, aquele comentário apenas aprofundou o mistério.
— Então, seja qual for a descoberta, devo dizer que o momento é extremamente conveniente.
Herney parou no meio da escada.
— Conveniente? Como assim?
Como assim? Rachel parou e olhou para ele.
— Senhor presidente, a NASA está neste momento em meio a uma batalha de vida ou morte para justificar sua própria existência, e o senhor está sendo atacado por manter suas linhas de financiamento. Uma grande descoberta feita pela NASA neste momento poderia ser uma solução tanto para a agência quanto para sua campanha. Seus críticos, entretanto, iriam achar as circunstâncias altamente suspeitas.
— Você está me chamando de mentiroso ou de tolo?
Rachel sentiu um nó na garganta.
— Não quis desrespeitá-lo, senhor. Eu estava apenas...
— Relaxe. — Um leve sorriso surgiu nos lábios de Herney e ele continuou descendo. — Quando o administrador da NASA me contou sobre essa descoberta, eu prontamente a rejeitei como um completo absurdo. Acusei-o de estar planejando a mais transparente de todas as trapaças.
Rachel relaxou. Quando os dois chegaram ao final da descida, Herney parou e olhou para ela.
— Uma das razões pelas quais pedi que se mantivesse essa história em segredo foi para proteger a NASA. A magnitude dessa descoberta está além de qualquer coisa que a agência já tenha anunciado. Fará com que o fato de termos enviado homens à Lua se torne insignificante. Como todos, inclusive eu, temos tanto a ganhar — e a perder —, achei que era prudente que alguém fosse verificar os dados da NASA antes que nos colocássemos no centro dos olhares do mundo inteiro dando uma declaração formal.
— O senhor não está pensando em mim, está? — Rachel perguntou, assustada.
O presidente riu.
— Não, essa área não é sua especialidade. Além disso, os dados já foram verificados através de canais extra governamentais.
O alívio de Rachel deu lugar novamente ao espanto.
— Você quer dizer que convocou alguém de fora do governo? Em um assunto ultra-secreto?
O presidente assentiu, convicto.
— Montei uma equipe de verificação externa: quatro cientistas civis, sem qualquer conexão com a NASA, mas muito respeitados em suas áreas de atuação e com uma reputação a zelar. Eles usaram seus equipamentos para fazer observações e tirar suas próprias conclusões. Nas últimas 48 horas, esses cientistas confirmaram, sem sombra de dúvida, a descoberta da NASA.
Agora ela estava impressionada. O presidente havia se protegido com a segurança que lhe era característica. Ao contratar uma equipe de “céticos” de alta confiabilidade — pessoas de fora do governo que não teriam nada a ganhar confirmando a incrível descoberta —, Herney preparou uma defesa prévia contra qualquer suspeita de que aquilo fosse um plano desesperado da NASA para justificar suas verbas, reeleger um presidente favorável a seus projetos e bloquear os ataques do senador Sexton.
— Hoje, às oito da noite, vou dar uma coletiva na Casa Branca para anunciar essa descoberta ao mundo — anunciou Herney.
Rachel sentiu-se frustrada. O presidente ainda não havia lhe dito nada muito substancial.
— E o que seria essa descoberta, exatamente?
O presidente sorriu.
— Você entenderá hoje que a paciência é uma virtude. A descoberta é algo que você precisa ver por conta própria. Você tem que compreender a situação por completo antes de prosseguirmos. O administrador da NASA está à sua espera para lhe dar os detalhes. Ele irá lhe contar tudo o que for necessário. Depois, eu e você iremos conversar mais a fundo sobre seu papel nessa história.
Rachel sentiu o toque de suspense na fala do presidente e lembrou-se do palpite do diretor do NRO de que a Casa Branca tinha uma carta escondida na manga. Pickering, ao que parecia, estava certo mais uma vez.
Herney apontou para um hangar próximo.
— Venha comigo — pediu ele.
Rachel seguiu-o, confusa. O prédio à frente deles não tinha janelas e seus enormes portões estavam fechados. O único acesso parecia ser através de uma porta lateral que estava entreaberta. O presidente acompanhou Rachel até à porta.
— Aqui é o fim da linha para mim. Você segue em frente — disse ele.
Rachel hesitou.
— O senhor não vem?
— Preciso voltar para a Casa Branca. Falarei com você em breve. Você tem um telefone celular?
— Claro, senhor.
— Pode me dar seu aparelho?
Rachel entregou-o ao presidente, presumindo que ele iria registrar na agenda do telefone um número para que ela pudesse contatá-lo pessoalmente. Em vez disso, ele pegou o aparelho e guardou-o no bolso.
— A partir de agora, você está fora de circuito — disse o presidente. — Já resolvemos as questões relativas a seu trabalho. Você não irá falar com mais ninguém hoje sem minha permissão expressa ou a do administrador da NASA. Está claro?
Rachel ficou perplexa. O presidente ficou com meu celular?
— Depois que o administrador lhe der os detalhes da descoberta, ele irá colocá-la em contato comigo através de um canal seguro. Nos falaremos em breve. Boa sorte.
Ela olhou para a porta do hangar, com um mal-estar crescente.
O presidente Herney colocou a mão em seu ombro, reconfortando-a.
— Rachel, pode estar certa de que não irá se arrepender de me ajudar.
Sem dizer mais nada, o presidente saiu andando em direção ao PaveHawk que havia trazido Rachel até ali. Subiu a bordo e decolou. Não olhou para trás uma única vez.
Rachel estava de pé, sozinha, prestes a entrar no hangar isolado.
Olhando para a escuridão à sua frente, sentia-se como se estivesse no limiar de outro mundo. Uma brisa fria e com cheiro de mofo saía lá de dentro, como se o prédio estivesse respirando.
— Olá? — gritou, com a voz ligeiramente trêmula. Silêncio.
Sentindo-se um pouco nervosa, ela entrou no galpão. Tudo ficou escuro por alguns instantes.
— Senhorita Sexton, não é? — disse uma voz masculina, a poucos metros de distância.
Ela deu um pulo, sobressaltada, e virou-se em direção à voz.
— Sim, senhor.
Naquele breu só conseguia distinguir os contornos do homem que se aproximava. Quando seus olhos finalmente se acostumaram à pouca luz, ela deu de cara com um jovem de traços fortes em um macacão de vôo da NASA. Seu corpo era atlético e musculoso e seu peito estava coberto de insígnias.
— Comandante Wayne Loosigian — apresentou-se ele. — Desculpe tê-la assustado. Está bem escuro aqui. Ainda não tive tempo de abrir as portas do hangar. — Antes que Rachel pudesse dizer algo, ele acrescentou: — Terei a honra de ser seu piloto esta manhã.
— Piloto? — Rachel olhou espantada para o homem. Um piloto acabou de me trazer até aqui. — Vim aqui para me encontrar com o administrador da NASA.
— Sim, senhorita Sexton. Minhas ordens são para levá-la até ele imediatamente.
Demorou um tempo até que Rachel processasse o que ele acabara de dizer. Quando finalmente compreendeu, sentiu-se enganada. Parece que teria outra viagem pela frente.
— E onde ele está? — perguntou, preocupada.
— Ainda não tenho essa informação — respondeu o piloto. — Receberei as coordenadas depois que tivermos decolado.
O homem parecia sincero. Ela e o diretor Pickering não eram as duas únicas pessoas que estavam sendo mantidas no escuro. O presidente estava levando a questão da segurança muito a sério, e Rachel sentiu-se envergonhada ao pensar sobre quão facilmente Zachary Herney a havia “tirado de circuito”. Uma hora fora do NRO e já estou privada de qualquer forma de comunicação. Além disso, meu diretor não tem a menor idéia de onde eu esteja.
Diante da postura rija do piloto da NASA, Rachel tinha certeza de que todos os planos relativos àquela manhã estavam selados.
Independentemente de gostar ou não, ela estaria a bordo daquele vôo. A única questão era saber onde ele iria parar.
O piloto caminhou em direção à parede e pressionou um botão. O extremo oposto do hangar começou a correr para o lado fazendo bastante barulho. A luz entrou, vinda de fora, delineando a silhueta de um grande objeto no centro do galpão.
Rachel ficou boquiaberta. Deus me ajude...
Estava diante de um caça a jato preto de aspecto agressivo. Era o avião com a aerodinâmica mais perfeita que Rachel já havia visto pessoalmente.
— Isso é uma piada?
— A reação inicial é comum, senhorita, mas o F-14 Tomcat é uma aeronave extremamente confiável. É um míssil com asas.
O piloto acompanhou Rachel até o avião. Ele apontou para o cockpit de dois lugares.
— Você vai atrás.
— Sério? — Ela lhe devolveu um sorriso tenso. — Achei que você queria que eu dirigisse.
Depois de vestir um macacão de vôo térmico sobre suas roupas, Rachel subiu no cockpit. Desajeitadamente, encaixou seus quadris no assento estreito.
— A NASA obviamente não contrata pilotos de quadris largos! — brincou.
O piloto deu um sorriso enquanto a auxiliava com o cinto de segurança. Depois colocou um capacete na cabeça dela.
— Nossa altitude de cruzeiro vai ser bem alta — ele disse. — Você tem que usar esta máscara de oxigênio. — Puxou uma máscara de um painel lateral e começou a ajeitá-la por cima do capacete dela.
— Acho que posso me virar — disse Rachel, tentando colocá-la.
— É claro, senhorita.
Rachel lutou um pouco com a máscara de oxigênio, mas acabou conseguindo colocá-la sobre o capacete. O encaixe era estranho e pouco confortável.
O comandante ficou olhando para ela, com cara de quem estava achando alguma coisa engraçada.
— Tem alguma coisa errada? — ela perguntou.
— Não, em absoluto. — Ele parecia estar segurando um risinho. – Há sacos de vômito sob seu assento. A maioria das pessoas fica enjoada na primeira vez que voa em um F-14.
— Acho que vou ficar bem — disse Rachel, tranqüilizando-o, a voz abafada pelo encaixe sufocante da máscara. — Não sou dada a enjôos.
O piloto retornou um sorriso cético.
— Muitos homens de tropas de elite como os Navy Seals dizem a mesma coisa, mas já me cansei de limpar o vômito deles no meu cockpit.
Ela acenou com a cabeça. Que ótimo!
— Alguma pergunta antes de partirmos?
Rachel pensou um pouco e depois bateu na máscara de oxigênio, que estava apertando seu queixo.
— Isto aqui está atrapalhando minha circulação. Como vocês conseguem suportar essas coisas em vôos mais longos?
O piloto sorriu.
— Bem, normalmente não as colocamos ao contrário!
Dentro do caça estacionado no final da pista de decolagem, com as duas turbinas pulsando atrás dela, Rachel sentiu-se como uma bala no tambor de uma arma, esperando apenas que alguém puxasse o gatilho. Quando o piloto empurrou o acelerador, as duas turbinas Lockheed 345 do Tomcat rugiram e tudo em volta se transformou em um borrão. Os freios se soltaram e Rachel foi prensada de encontro à sua cadeira. O jato atravessou velozmente a pista e decolou em poucos segundos. Do lado de fora, o chão ia se distanciando a uma velocidade estonteante.
Rachel fechou os olhos enquanto o avião subia quase verticalmente.
Pensou no que havia de errado com aquela manhã. Supostamente deveria estar em sua mesa escrevendo relatórios de inteligência, mas, em vez disso, estava cavalgando um torpedo movido a testosterona e usando uma máscara de oxigênio.
Quando o F-14 finalmente atingiu sua altitude de cruzeiro, a 45 mil pés, Rachel estava se sentindo enjoada. Fez força para se concentrar em outra coisa. Olhando para o oceano lá embaixo, ela teve saudades de casa.
Na frente do cockpit, o piloto estava falando com alguém pelo rádio.
Assim que a conversa terminou, ele fez uma curva radical à esquerda. O F-14 inclinou-se quase 90 graus, e Rachel sentiu seu estômago dar um nó. Em seguida o piloto voltou à posição normal.
— Obrigada por ter me avisado — resmungou Rachel.
— Peço desculpas, mas acabaram de me enviar as coordenadas para seu encontro com o administrador.
— Deixe-me adivinhar... — disse Rachel. — Vamos para o norte?
O piloto pareceu confuso.
— Como você sabe?
Rachel soltou um suspiro resignado. É preciso ter paciência com esses pilotos treinados em simuladores.
— A esta hora da manhã, com o Sol à sua direita, só podemos estar voando para o norte.
Houve um instante de silêncio no cockpit.
— Sim, senhorita, estamos indo para o norte agora.
— E exatamente quanto ao norte? O piloto verificou as coordenadas.
— Cerca de cinco mil quilômetros.
Rachel ficou paralisada.
— O quê? — Tentou visualizar um mapa, mas não foi capaz de imaginar nada tão ao norte. — São quatro horas de vôo!
— À nossa velocidade atual, sim — disse o piloto. — Segure-se, por favor.
Antes que Rachel pudesse responder, o piloto retraiu as asas do F-14 para a posição de baixo arrasto. Logo em seguida, ela foi novamente jogada contra seu assento e o avião disparou como se antes estivesse parado.
Em um minuto estavam voando a Mach 2, cerca de 2.500 km/h.
Rachel estava ficando tonta agora. Atravessavam os céus com uma velocidade alucinante e ela sentiu uma onda incontrolável de enjôo tomar conta dela. A voz do presidente ecoava vagamente em sua cabeça: Rachel, pode estar certa de que não irá se arrepender de me ajudar.
Gemendo, ela tateou à procura do saco de vômito. Nunca confie em políticos.
O Senador Sedgewick Sexton detestava andar de táxi. Considerava os carros sujos e inadequados para alguém da sua posição, mas havia aprendido a suportar alguns momentos de degradação em sua estrada rumo à glória. O táxi meio nojento que acabara de deixá-lo no subsolo da garagem do Hotel Purdue propiciava-lhe algo que sua luxuosa limusine não permitia: anonimato.
Ficou contente ao ver que todo o nível subterrâneo estava deserto, com alguns poucos automóveis empoeirados espalhados em meio à floresta de pilastras de concreto. Olhou para seu relógio enquanto atravessava a garagem a pé, cortando caminho na diagonal.
Eram 11h15 da manhã. Perfeito.
O homem com quem ia se encontrar era sempre muito sensível em relação à pontualidade. Por outro lado, Sexton pensou que, considerando-se quem aquele homem estava representando, ele poderia ser “sensível” em relação a qualquer maluquice que desejasse.
Sexton viu que a minivan branca, uma Ford Windstar, estava parada exatamente no mesmo lugar dos encontros anteriores — no canto mais discreto da garagem, atrás de uma fileira de latas de lixo. O senador teria preferido conversar com o sujeito em uma suíte do hotel, mas entendia perfeitamente suas precauções. Aqueles homens não teriam chegado aonde chegaram se não fossem desconfiados e cautelosos.
Enquanto se aproximava da van, Sexton tornou a sentir a ligeira tensão que sempre experimentava antes daqueles encontros. Fazendo um esforço para relaxar seus ombros, subiu no compartimento do passageiro e acenou para o homem.
O cavalheiro de cabelos escuros sentado no banco do motorista não sorriu. Ele tinha quase 70 anos, mas sua fisionomia rígida transmitia uma tenacidade adequada a seu posto como testa-de-ferro de um exército de visionários audaciosos e empresários implacáveis.
— Feche a porta — disse o homem friamente.
Sexton obedeceu, tolerando a grosseria sem reclamar. Afinal de contas, aquele sujeito representava um grupo que controlava vultosas somas de dinheiro e que, nos últimos tempos, vinha fazendo grandes investimentos para colocá-lo o mais próximo possível do cargo político mais poderoso do planeta.
O senador não demorou a perceber que o objetivo real daquelas reuniões não era discutir estratégias políticas, mas lembrá-lo mensalmente do quanto devia a seus benfeitores. Aqueles homens estavam esperando um grande retorno sobre seu investimento. O próprio Sexton admitia que o “retorno” era uma exigência bastante ousada. Era, contudo, algo que estaria dentro da sua esfera de influência quando chegasse à presidência.
— Presumo — disse Sexton, já sabendo que aquele homem gostava de ir direto ao assunto — que outro depósito foi feito.
— Sim. E, como sempre, você deverá usar esses fundos apenas para sua campanha. Estamos felizes por ver que as pesquisas têm se mostrado cada vez mais favoráveis à sua candidatura e nos parece que seus coordenadores de campanha têm gasto nosso dinheiro de forma eficaz.
— Estamos ganhando terreno rapidamente.
— Conforme mencionei ao telefone, convenci seis outros a se encontrarem com você esta noite — disse o velho.
— Excelente — confirmou Sexton.
O homem entregou uma pasta ao senador.
— Aqui estão as informações sobre eles. Estude isso. Eles querem ter certeza de que você entende seus interesses específicos. Querem estar seguros de que você os apóia. Sugiro que os receba em sua casa.
— Na minha casa? Mas em geral as reuniões são...
— Senador, esses seis homens dirigem empresas que possuem muito mais recursos do que você imagina, não se comparam aos outros com quem já se encontrou. São peixes grandes e são desconfiados. Há muita coisa em jogo para eles; portanto, também há muito a perder. Tive trabalho para convencê-los a se encontrarem com você. Será preciso lhes dar um tratamento especial. Um toque pessoal, digamos assim.
Sexton assentiu.
— Com toda a certeza. Vou providenciar uma reunião na minha casa.
— É claro que eles exigem total discrição e privacidade.
— Assim como eu.
— Boa sorte — finalizou o velho. — Se tudo correr bem hoje à noite, pode ser sua última reunião. Esse pequeno grupo de homens, por si só, pode lhe fornecer o que ainda for necessário para colocar a campanha Sexton definitivamente em primeiro lugar.
O senador gostou disso. Deu um sorriso confiante para o homem.
— Com sorte, meu amigo, quando chegar a hora da eleição, todos poderemos nos considerar vitoriosos.
— Vitoriosos? — O velho fez uma expressão de desdém e inclinou-se para Sexton com um olhar sinistro. — Senador, colocá-lo na Casa Branca é apenas o primeiro passo em direção à vitória. Espero que você não tenha se esquecido disso.
A casa Branca é uma das menores mansões presidenciais do mundo, tendo apenas 50 metros de comprimento e 26 de largura, em meio a uma área arborizada de sete hectares. Apesar de sua pouca originalidade, a planta do arquiteto James Hoban, que criou uma estrutura de pedra em formato retangular, com colunas na entrada, foi selecionada num concurso público por juizes que elogiaram sua “beleza, dignidade e flexibilidade”.
Embora aquela fosse sua residência oficial há três anos e meio, o presidente Zach Herney raramente se sentia em casa ali, em meio aos candelabros, antiguidades e marines armados. Naquele momento, contudo, enquanto se dirigia para a Ala Oeste, sentia-se animado e bem à vontade, andando como se seus pés flutuassem sobre os carpetes luxuosos.
Diversos membros da equipe da Casa Branca pararam para observá-lo enquanto passava. Herney acenava e cumprimentava todos pelo nome. As respostas, apesar de polidas, não eram das mais animadas e em geral vinham acompanhadas por sorrisos meramente formais.
— Bom dia, senhor presidente.
— Como vai, senhor presidente?
— Bela manhã, senhor.
Enquanto caminhava em direção ao seu escritório, o presidente podia sentir uma onda de sussurros levantando-se atrás dele. Havia um clima de insurreição dentro da Casa Branca. Durante as últimas semanas, a desilusão lá dentro tinha crescido a tal ponto que Herney estava começando a sentir-se como o lendário capitão Bligh — comandando um navio cuja tripulação se prepara para um motim.
Não podia culpá-los. Sua equipe havia trabalhado uma quantidade enorme de horas para lhe dar o apoio necessário para as eleições que se aproximavam, e agora, subitamente, parecia que o presidente estava completamente perdido.
Em breve irão entender, Herney pensou. Em breve me tornarei novamente um herói.
Ele lamentava ter que manter seu pessoal no escuro durante tanto tempo, mas o sigilo era absolutamente necessário. E, no que dizia respeito a guardar segredos, a Casa Branca sempre tinha sido um desastre.
Herney chegou à sala de espera que ficava do lado de fora do Salão Oval e acenou animado para sua secretária.
— Você me parece bem-disposta esta manhã, Dolores.
— O senhor também — respondeu ela, observando as roupas informais do presidente com evidente desaprovação.
Herney abaixou a voz.
— Gostaria que organizasse uma reunião para mim.
— Com quem, senhor?
— Com toda a equipe da Casa Branca.
A secretária olhou para ele, surpresa.
— Toda a equipe, senhor? Todas as 145 pessoas?
— Isso mesmo.
— Certo. E devo marcá-la para... a Sala de Conferências? — perguntou, visivelmente desconfortável com a situação.
Herney balançou a cabeça.
— Não. É melhor usar o meu escritório.
Ela não entendeu.
— O senhor deseja reunir toda a sua equipe no Salão Oval?
— Exato.
— Todos de uma só vez, senhor?
— E por que não? Agende isso para as quatro da tarde.
A secretária assentiu, como se estivesse reconfortando um lunático.
— Muito bem, senhor. E o assunto da reunião é...?
— Tenho um comunicado importante a fazer para o povo norte-americano esta noite. Quero que minha equipe ouça isso primeiro.
A secretária não conseguiu disfarçar um olhar de desalento, como se temesse secretamente aquele momento. Baixou a voz e perguntou:
— O senhor vai desistir da campanha?
Herney começou a rir.
— Mas que diabos! Claro que não, Dolores! Estou me preparando para o combate!
Ela parecia não acreditar muito. Todas as análises da imprensa diziam que Herney estava jogando a toalha. Ele deu uma piscadela amigável.
— Dolores, você tem feito um excelente trabalho nestes últimos três anos e pouco e fará um excelente trabalho nos próximos quatro anos. Vamos ficar na Casa Branca, eu juro.
A secretária adoraria que aquilo fosse verdade, mas tinha sérias dúvidas a respeito.
— Tudo bem, senhor. Vou avisar à equipe. Quatro da tarde.
Zach Herney entrou no Salão Oval. Não pôde deixar de sorrir ao pensar em toda a sua equipe aglomerada naquela sala, bem menor do que as pessoas costumavam imaginá-la.
Aquele escritório tinha algumas peculiaridades arquitetônicas que fizeram com que fosse apelidado de “a armadilha”. Sempre que alguém entrava ali pela primeira vez sentia-se desorientado. A simetria, as paredes levemente recurvadas, as portas de entrada e saída discretamente disfarçadas, tudo contribuía para dar aos visitantes a impressão de que haviam sido vendados e girados pela sala. Muitas vezes, ao final de uma reunião no Salão Oval, um dignitário se levantava, apertava a mão do presidente e saía direto rumo a um armário. Dependendo de como tivesse sido o encontro, Herney decidia se apontava o caminho certo ou apenas observava o visitante fazer papel de tolo.
O presidente sempre achou que o aspecto mais marcante do Salão Oval era a colorida águia americana que adornava o tapete oval da sala. A garra esquerda da águia segurava um ramo de oliveira e a direita, um feixe de flechas. Poucas pessoas de fora sabiam que durante os tempos de paz a águia olhava para a esquerda, na direção dos ramos de oliveira. Contudo, em tempos de guerra, a águia misteriosamente olhava para as flechas, à direita.
O mecanismo por trás desse truque era fonte de discreta especulação entre os membros da equipe da Casa Branca porque, tradicionalmente, apenas o presidente e o chefe da manutenção o conheciam. Quando Herney descobriu o segredo da águia enigmática, ficou desapontado por sua simplicidade. Num depósito no subsolo havia um segundo tapete oval, com a águia olhando na direção oposta à do que ficava no salão. O chefe da manutenção apenas substituía um pelo outro, à noite, sem que ninguém notasse.
Herney estava olhando para a águia “da paz”, voltada para a esquerda, e sorriu pensando que talvez devesse trocar os tapetes em homenagem à pequena guerra que estava prestes a lançar contra o senador Sedgewick Sexton.
A Força Delta é a única tropa de combate norte-americana cujas ações são agraciadas pelo presidente com total imunidade legal.
A Decisão Presidencial 25 (PDD-25) concede aos soldados da Força Delta “isenção de qualquer responsabilidade legal”, inclusive tornando-os imunes ao Posse Comitatus Act, de 1878, um estatuto que impõe penas criminais ao uso do poder militar para ganhos pessoais, proíbe a participação de forças militares em atividades policiais dentro do território americano ou ainda em operações secretas não-autorizadas.
Os membros da Força Delta são selecionados individualmente entre os membros do Grupo de Aplicações de Combate, uma organização secreta dentro do Comando de Operações Especiais, sediado em Fort Bragg, na Carolina do Norte. Os soldados da Força Delta são assassinos bem treinados — especialistas no resgate de reféns, em ataques-surpresa, na eliminação de forças inimigas sob disfarce, além de todo tipo de operações SWAT (Special Weapons And Tactics), que exigem armas e táticas especiais.
Como as missões da Força Delta são cercadas de alto grau de sigilo, a longa hierarquia de comando militar é deixada de lado, sendo substituída por um único controlador com autoridade para liderar a unidade como preferir. Esse controlador costuma ser um “figurão” das forças armadas ou do governo, com patente ou influência suficiente para se responsabilizar pela missão. As missões da Força Delta são classificadas no nível mais alto de segurança e, uma vez que a operação tenha sido executada, os homens envolvidos não podem falar nada a respeito dela. Nenhum comentário interno, nem mesmo para seus superiores de Operações Especiais.
Voar. Combater. Esquecer.
A equipe Delta atualmente estacionada um pouco acima do paralelo 82 não estava nem voando nem combatendo. Estava apenas observando.
Delta-Um achava que aquela era uma das missões mais estranhas das quais já havia participado, mas aprendera a nunca se surpreender com o que lhe pediam para fazer. Nos últimos cinco anos, tinha se envolvido no resgate de reféns no Oriente Médio, no rastreamento e aniquilação de células terroristas dentro dos Estados Unidos e até mesmo na eliminação discreta de homens e mulheres considerados perigosos em diversos locais do planeta.
Há apenas um mês sua equipe Delta havia usado um microrrobô voador para induzir um ataque cardíaco fatal em um chefão de drogas particularmente perverso na América do Sul. Equipado com uma agulha de titânio tão fina quanto um fio de cabelo e contendo um poderoso vaso constritor, o robô foi guiado para o interior da casa do alvo através de uma janela aberta no segundo andar, entrou no seu quarto e picou-o no ombro enquanto dormia. Quando o traficante acordou com dores no peito, o microrrobô já havia saído sem deixar vestígios. No momento em que a mulher do bandido chamava a ambulância, a equipe Delta encarregada da missão voava de volta para sua base.
Nada de arrombamento e invasão de domicílio.
Apenas morte por causas naturais.
Uma ação elegante.
Há pouco tempo, um outro microrrobô que ficava permanentemente no escritório de um proeminente senador para vigiar suas reuniões pessoais havia capturado imagens de um tórrido encontro sexual. A equipe Delta se referia àquela missão, de forma debochada, como “inserção por trás das linhas inimigas”.
Agora, após 10 dias trancado em missão de vigilância dentro de sua tenda, Delta-Um torcia para que aquele serviço terminasse logo.
Permanecer invisível.
Monitorar a estrutura — dentro e fora.
Relatar ao controlador qualquer desenvolvimento inesperado.
Delta-Um havia sido treinado para nunca sentir nenhuma emoção em relação a suas missões. Aquela, porém, fizera seu coração bater mais forte quando ele e seus companheiros receberam as ordens. A reunião de orientação havia sido “anônima”. Delta-Um não se encontrara com o controlador responsável pela missão — tudo tinha sido explicado através de canais eletrônicos seguros.
O soldado estava preparando uma refeição à base de proteínas desidratadas quando seu relógio bipou em uníssono com os dos outros.
Poucos segundos depois, o dispositivo de comunicações CrypTalk atrás dele piscou em sinal de alerta. Delta-Um parou o que estava fazendo e pegou o comunicador portátil. Os outros dois homens observaram em silêncio.
— Delta-Um na escuta — disse ele.
As palavras foram instantaneamente identificadas pelo software de reconhecimento de voz embutido no dispositivo. Cada palavra recebia um número de referência, que era codificado e depois transmitido via satélite para quem fez a chamada. Do outro lado da linha havia um dispositivo similar, no qual os números eram convertidos novamente em palavras usando um decodificador de chave aleatória predeterminado. As palavras, então, eram pronunciadas por uma voz sintetizada. Isso tudo levava apenas 80 milissegundos.
— Controlador falando — disse a pessoa responsável pela operação. O tom robótico do CrypTalk era fantasmagórico, mecânico e andrógino. — Qual a situação da operação?
— Procedendo conforme planejado — respondeu Delta-Um.
— Excelente. Tenho uma atualização quanto à duração da operação. A informação irá a público hoje às oito da noite, hora de Washington.
Delta-Um olhou para seu cronógrafo. Só mais oito horas. Seu trabalho ali estaria terminado em breve. Isso era uma boa notícia.
— Há um novo desdobramento — disse o controlador. — Um novo jogador em campo.
— Qual novo jogador?
Delta-Um ouviu. Uma aposta interessante. Alguém lá fora estava jogando a sério.
— Você acredita que ela seja confiável?
— Ela precisa ser monitorada com atenção.
— Em caso de problemas? Não houve hesitação na linha. — As ordens permanecem inalteradas.
O vôo de Rachel em direção ao norte já passava de uma hora. Além de uma visão rápida da ilha canadense de Terra Nova, não havia visto nada senão água abaixo dela durante todo o trajeto.
Por que tinha que ser justamente água? pensou ela, fazendo uma careta. Rachel havia caído num buraco quando estava patinando sobre um lago congelado aos sete anos de idade. Presa abaixo da superfície, pensou que iria morrer. Foi sua mãe que, puxando-a com força, a trouxe de volta à superfície. Desde então ela passou a sofrer de hidrofobia, ou medo de água, especialmente de água gelada. Naquela manhã, não tendo nada à vista a não ser o Atlântico Norte, os velhos medos retornavam.
Foi só quando o piloto verificou sua posição com a base aérea de Thule, no norte da Groenlândia, que Rachel se deu conta de quão longe eles estavam. Nossa, já passei do Círculo Polar Ártico? Essa revelação a deixou ainda mais tensa. Para onde estão me levando? O que a NASA descobriu? Logo a enorme superfície azul-acinzentada abaixo dela se encheu de pequenos pontos brancos bem delineados.
Icebergs.
Rachel só havia visto icebergs uma vez em sua vida, seis anos atrás, quando sua mãe a havia convencido a juntar-se a ela em um cruzeiro de “mãe e filha” até o Alasca. Rachel havia sugerido uma série de alternativas de viagem em terra firme, mas sua mãe foi insistente.
— Querida, dois terços de nosso planeta são cobertos de água e, mais cedo ou mais tarde, você terá que lidar com isso — disse a senhora Sexton, uma americana jovial, nascida na Nova Inglaterra, determinada a educar a filha para que se tornasse uma mulher forte.
O cruzeiro fora a última viagem que as duas fizeram juntas.
Katherine Wentworth Sexton. Rachel sentiu uma pontada de solidão. Com o vento uivante do lado de fora do avião, as memórias voltaram à sua mente, causando uma enorme tristeza como sempre. A última conversa que tiveram foi por telefone, na manhã do Dia de Ação de Graças.
— Sinto muito, mãe — disse Rachel, ligando para casa do aeroporto de O’Hare, completamente coberto de neve. — Sei que nossa família nunca passou o Dia de Ação de Graças separada. Parece que esta vai ser a primeira vez.
Sua mãe parecia arrasada, do outro lado da linha.
— Eu estava tão ansiosa para ver você novamente.
— Eu também, mãe. Pense só, vou ter que comer essa comida de aeroporto enquanto você e papai se enchem de peru!
A mãe ficou em silêncio por um instante.
— Rachel, eu só ia lhe contar quando você chegasse aqui, mas seu pai falou que tinha trabalho demais e não poderia vir para casa este ano. Ele vai ficar em sua suíte em Washington durante todo o feriado.
— Como? — O sentimento inicial de surpresa logo deu lugar à raiva. — Mas é o feriado de Ação de Graças! O Senado não terá sessões, e ele está a menos de duas horas daí. Ele tinha que se encontrar com você.
— Eu sei. Mas seu pai disse que está exausto, cansado demais até para dirigir. Decidiu passar o feriado debruçado sobre uma pilha de trabalhos atrasados.
Trabalho? Rachel tinha suas dúvidas. Era mais provável que o senador Sexton fosse passar o feriado debruçado sobre outra mulher. Suas infidelidades, ainda que discretas, já duravam anos. Katherine não era tola, mas os casos do marido sempre vinham acompanhados de álibis convincentes e de magoada indignação diante da mera sugestão de que ele poderia estar sendo infiel. No final, a senhora Sexton só podia mesmo esconder sua dor e se fingir de cega. Rachel havia insistido para que a mãe se divorciasse, mas Katherine era uma mulher de palavra. “Até que a morte nos separe”, ela havia dito. “Seu pai me abençoou com você, uma linda filha, por isso eu lhe sou grata. Um dia ele terá que responder por seus atos perante uma força maior.”
Naquele momento, no aeroporto, Rachel fervia de raiva, silenciosamente.
— Mas isso quer dizer que você estará sozinha durante o feriado! – ela sentiu uma dor na boca do estômago. Abandonar a família durante o Dia de Ação de Graças era baixo demais, mesmo para o pai.
Katherine tornou a falar, desapontada, mas com um tom de voz decidido.
— Obviamente não posso deixar que toda essa comida se estrague. Vou pegar o carro e visitar a tia Ann. Ela sempre nos convida para passar o feriado lá. Vou ligar para ela.
Rachel sentiu-se um pouco menos culpada.
— Acho uma boa idéia. Eu chego assim que puder. Amo você, mãe!
— Faça uma boa viagem, querida.
Eram 22h30 daquele mesmo dia quando o táxi de Rachel chegou à pequena estradinha que levava à luxuosa casa da família Sexton. Ela logo percebeu que algo estava errado. Havia três carros de polícia na entrada da casa. Várias vans de televisão, também. Todas as luzes da casa estavam acesas. Rachel entrou correndo, aflita.
Um policial estava na porta. Sua expressão era pesarosa. Ele não precisou dizer nada, Rachel já sabia. Tinha havido um acidente.
— A estrada 25 estava escorregadia porque a chuva formou uma camada de gelo sobre a pista — disse o policial. — Sua mãe perdeu o controle do carro e saiu da estrada, caindo em um barranco com árvores. Eu lamento. Ela morreu com o impacto.
Rachel sentiu seu corpo ficar dormente. Ao receber a notícia, seu pai viera imediatamente para casa e estava agora na sala com um grupo de jornalistas, anunciando estoicamente ao mundo que sua mulher havia morrido em um acidente de carro enquanto voltava do jantar de Ação de Graças com a família.
De pé em um canto, Rachel soluçou durante todo o evento.
— Tudo que eu desejava — seu pai dizia à imprensa, com os olhos cheios de lágrimas — era ter voltado para casa neste fim de semana. Nada disso teria acontecido.
Você deveria ter pensado nisso antes, Rachel disse para si mesma enquanto chorava, seu ódio pelo pai crescendo a cada instante.
Desde então Rachel divorciou-se dele como a mãe nunca tivera coragem de fazer. O senador mal parecia notar. De uma hora para a outra, ele tinha ficado muito ocupado, usando a fortuna deixada pela mulher para buscar a indicação de seu partido para concorrer à presidência. Os votos solidários, é claro, também eram bem-vindos.
Cruelmente agora, três anos depois daquela tragédia, mesmo à distância o senador fazia com que Rachel se sentisse solitária. O fato de o pai ter decidido disputar a Casa Branca fizera Rachel adiar indefinidamente os sonhos de encontrar um homem com quem quisesse constituir uma família. Para ela, tornara-se muito mais fácil deixar de lado a vida social do que lidar com a fila de pretendentes em Washington, sedentos de poder e tentando agarrar uma potencial “primeira-filha” enquanto ainda estava acessível.
Do lado de fora do F-14, o dia tinha começado a escurecer. O Ártico estava em pleno inverno, época de escuridão permanente. Rachel percebeu que voava para uma terra onde só haveria noites.
À medida que os minutos se passavam, o sol foi desaparecendo, até sumir por completo na linha do horizonte. Continuaram rumando para o norte, e uma lua brilhante, de três quartos, surgiu no céu cristalino e glacial. Bem abaixo, as ondas do oceano cintilavam, e os icebergs lembravam diamantes costurados em um tecido negro.
Finalmente Rachel avistou um pedaço de terra, embora não fosse exatamente o que esperava. Uma enorme cadeia de montanhas recobertas por neve surgiu à frente do avião.
— Montanhas? — perguntou Rachel, confusa. — Há montanhas ao norte da Groenlândia?
— Parece que sim — disse o piloto, igualmente surpreso.
O F-14 começou sua descida, e Rachel sentiu uma estranha falta de peso. Em meio ao zumbido em seus ouvidos, ela podia ouvir um sinal agudo repetido no cockpit. O piloto havia travado a rota do avião em um sinalizador direcional e estava seguindo o rumo indicado.
Quando desceram abaixo de três mil pés, Rachel olhou pela janela para o fantástico terreno abaixo deles, iluminado pelo luar. Na base das montanhas abria-se uma extensa planície gelada. O platô se espalhava graciosamente por cerca de 15 quilômetros na direção do oceano, terminando abruptamente em uma escarpa de puro gelo que caía verticalmente até encontrar o mar.
Foi então que ela viu algo completamente inesperado, diferente de tudo o que já vira na face da Terra. Primeiro pensou que fosse o luar refletido, criando uma ilusão de ótica. Olhou atentamente para os campos enevoados, sem conseguir entender o que estava vendo. Quanto mais o avião descia, mais clara a imagem se tornava.
Meu Deus, o que é isso?
O platô abaixo deles era listrado... como se alguém tivesse pintado a neve com três grandes estrias de tinta prateada. As faixas brilhantes corriam paralelas ao penhasco costeiro. Só quando o avião ficou a menos de 500 pés do solo a ilusão se desfez. As três faixas prateadas eram vales profundos, cada um com cerca de 30 metros de largura. Eles haviam se enchido de água que, ao congelar, formara largos canais prateados que se estendiam, paralelos, através do platô. As elevações brancas entre eles eram barragens de neve.
Quando desceram mais na direção do platô, o avião começou a dar solavancos, atravessando uma forte turbulência. Rachel ouviu o trem de pouso travando com um som metálico, mas não estava vendo nenhuma pista de pouso. Enquanto o piloto lutava para manter a aeronave sob controle, ela encostou o rosto no vidro do cockpit e viu duas linhas de luzes piscantes delimitando uma faixa de gelo ao longe. Em pânico, entendeu o que o piloto estava tentando fazer.
— Vamos aterrissar no gelo? — perguntou.
Ele não respondeu. Estava concentrado em controlar o jato. Rachel sentiu suas entranhas se revirarem quando o F-14 desacelerou e desceu em direção ao canal de gelo. De ambos os lados do avião erguiam-se paredes de neve. Ela prendeu a respiração, consciente de que um erro mínimo naquele estreito canal significaria morte certa. Sacudindo bastante, o F-14 desceu mais, até que, subitamente, a turbulência cessou. Protegido do vento dentro do canal, o avião fez uma aterrissagem perfeita.
O piloto reverteu as turbinas do jato, que perdeu velocidade rapidamente. Rachel soltou um suspiro de alívio. O F-14 percorreu cerca de 100 metros e finalmente parou em uma linha vermelha que tinha sido pintada grosseiramente com um spray sobre o gelo.
Olhando à direita, havia apenas uma parede de neve iluminada pelo luar — o lado de uma das barragens. A visão à esquerda era idêntica. Só à frente ela podia ver algo... uma infinita extensão de gelo. Sentia-se como se houvesse descido em um planeta deserto. Tirando a linha traçada sobre o gelo, não havia sinal de vida.
Logo em seguida Rachel ouviu um som. Estava longe ainda, mas era o ruído de outro motor, mais agudo. O som foi ficando mais intenso até que ela avistou uma máquina. Era um largo trator de neve sobre esteiras, movendo-se ruidosamente em meio ao canal de gelo. Alto e longilíneo, parecia-se com um imenso inseto futurista rastejando em direção a eles sobre vorazes pés giratórios. Na parte mais alta do chassi haviam montado uma cabine de plexiglas com uma fileira de holofotes para iluminar o caminho.
A máquina parou ruidosamente bem ao lado do F-14. A porta da cabine se abriu e um homem desceu por uma escada até o gelo. Ele estava envolto, da cabeça aos pés, em um macacão branco e fofo que dava a impressão de ter sido inflado.
O homem fez sinal para que o piloto abrisse o cockpit do F-14.0 piloto obedeceu, e a rajada de ar que atravessou o corpo de Rachel congelou-a imediatamente até os ossos.
— Feche esta droga!
— Senhorita Sexton? — ele falou, com sotaque americano. — Em nome da NASA, eu lhe dou as boas— vindas.
Rachel estava tremendo de frio.
— Mil vezes obrigada.
— Por favor, destrave seu cinto de segurança, deixe seu capacete no avião e desça usando os apoios na lateral da fuselagem. Alguma pergunta?
— Sim — gritou ela de volta. — Onde diabos eu estou?
Marjorie Tench, a Consultora sênior do presidente, era uma criatura extremamente magra e alta — um esqueleto ambulante. Tinha 1,80 metro de altura e parecia ter sido montada a partir de um kit de construção de robôs com juntas e ligas. Pendurado no alto daquele corpo de aparência instável havia um rosto amarelado, cuja pele mais se parecia com uma folha de pergaminho perfurada por dois olhos sem emoção. Com apenas 51 anos de idade, ela aparentava 70.
Tench era respeitada em toda a Washington como uma deusa na arena política. Dizia-se que seu pensamento analítico beirava a clarividência. Uma década no comando do Escritório de Inteligência e Pesquisa do Departamento de Estado tinha contribuído para aguçar ainda mais sua mente perigosamente afiada e crítica. Infelizmente, a sabedoria e o traquejo político de Marjorie eram acompanhados de um temperamento frio que poucos conseguiam tolerar por mais que alguns minutos. Podia-se dizer que seu cérebro possuía a capacidade — e a frieza — de um supercomputador. Ainda assim, o presidente Herney não tinha dificuldade em lidar com ela. O intelecto e a força de trabalho de Tench haviam sido quase inteiramente responsáveis por fazer com que ele chegasse à Casa Branca.
— Marjorie — disse o presidente, levantando-se para recebê-la no Salão Oval. — Em que posso ajudá-la? — Ele não puxou uma cadeira para ela.
Aquele tipo de cortesia não se aplicava a mulheres como Marjorie Tench. Se ela quisesse se sentar, podia muito bem pegar sua própria cadeira.
— Vi que você marcou a reunião com a sua equipe para hoje, às quatro da tarde. — Sua voz soava um pouco áspera por causa do cigarro. — Muito bom.
Tench andou pela sala por um instante, e Herney podia sentir as intrincadas engrenagens de sua mente girarem. Isso o deixava feliz.
Marjorie Tench era um dos poucos eleitos na equipe do presidente a ter total conhecimento da descoberta da NASA, e sua habilidade política ajudara Herney a planejar sua estratégia.
— Esse debate de hoje na CNN — disse ela, tossindo. — Quem vamos enviar para se digladiar com Sexton?
Herney sorriu.
— Um porta-voz de campanha do baixo escalão. — A tática de nunca enviar um peixe grande para deixar o “caçador” frustrado era tão velha quanto os debates em si.
— Tenho uma idéia melhor — disse ela, fitando Herney. — Deixe que eu vá.
Ele levou um choque.
— Você? — Que diabos ela está pensando? — Marjorie, você nunca entra em contato com a mídia. Além disso, é uma transmissão ao vivo no meio da tarde. Se eu mandar minha consultora sênior, como você acha que isso irá soar? Dará a impressão de que estamos entrando em pânico, não é?
— Exatamente.
O presidente observou-a. Fosse qual fosse o intrincado esquema que Marjorie estava arquitetando, por nada neste mundo Herney a deixaria aparecer na CNN. Qualquer um que já tivesse visto a consultora sabia que havia fortes razões para que ela atuasse sempre nos bastidores.
Era uma mulher de aparência assustadora e definitivamente não era o rosto que um presidente gostaria de ver como porta-voz da Casa Branca.
— Esse debate da CNN fica comigo — ela repetiu e, desta vez, não era um pedido.
— Marjorie — disse o presidente, tentando fazer com que mudasse de idéia —, a equipe de campanha de Sexton obviamente irá afirmar que sua presença na CNN é uma prova de que a Casa Branca está se sentindo ameaçada. Atacar com nossas melhores armas muito cedo fará com que achem que estamos desesperados.
Ela assentiu com um gesto curto e acendeu um cigarro.
— Quanto mais desesperados acharem que estamos, melhor.
Durante dois ou três minutos, ela explicou em linhas gerais por que o presidente faria melhor enviando-a para o debate em vez de alguém do escalão inferior. Quando a consultora terminou a explicação, Herney estava olhando para ela, impressionado.
Mais uma vez, Marjorie Tench havia se mostrado um gênio da política.
A plataforma de gelo Ivusne é a maior massa sólida de gelo flutuante no Hemisfério Norte. Situada acima do paralelo 82, no extremo norte da ilha de Ellesmere, no alto Ártico, ela tem seis quilômetros e meio de largura e mais de 90 metros de espessura.
Ao entrar na cabine de plexiglas no topo do trator de neve, Rachel ficou feliz ao encontrar lá dentro uma parca e um par de luvas para ela, e se sentiu reconfortada com o ar quente proveniente das saídas de ventilação da cabine. Do lado de fora, na pista de gelo, as turbinas do F-14 foram acionadas e o avião começou a taxiar para partir.
Rachel olhou assustada.
— Ele vai embora?
Seu novo anfitrião subiu no trator, fazendo sinal que sim.
— Somente os cientistas e uma equipe mínima de suporte da NASA têm permissão para ficar aqui.
Quando o F-14 sumiu no céu escuro, Rachel subitamente sentiu-se abandonada em uma ilha deserta.
— Vamos usar o IceRover a partir de agora — disse o homem. – O administrador está esperando.
Rachel olhou para fora, vendo a listra prateada de gelo se estendendo à sua frente, e tentou imaginar o que o administrador da NASA estava fazendo naquele lugar.
— Segure-se! — gritou o homem enquanto mexia em algumas alavancas. Com um rugido forte, a máquina girou 90 graus sem sair do lugar, como um tanque de guerra. Estava agora de frente para a enorme parede de neve.
Rachel olhou para a subida íngreme e sentiu uma pontada de medo.
Obviamente ele não pretende...
— Vamos nessa! — O motorista soltou a embreagem e o veículo acelerou em direção à subida. Rachel soltou um grito abafado e segurou-se.
Quando se chocaram contra a barragem, os grampos das esteiras rasgaram a neve e o veículo começou a subir. Rachel tinha absoluta certeza de que cairiam para trás, mas a cabine permaneceu surpreendentemente na horizontal enquanto os grampos se cravavam na neve, fazendo o IceRover subir. Quando a enorme máquina surgiu lá em cima, no pico da elevação, o motorista parou e sorriu para sua passageira, pálida de medo.
— Tente fazer isso com um 4x4! Pegamos o projeto do sistema antichoque do Pathfinder de Marte e colocamos neste brinquedo aqui! Funciona maravilhosamente bem.
Rachel concordou com a cabeça, lívida.
— Que bom.
Posicionada agora no topo da barragem de neve, Rachel observou aquela paisagem inconcebível. Havia mais uma grande elevação na frente deles e depois as ondulações cessavam abruptamente. Além daquele ponto, o gelo aplainava-se, formando uma extensão brilhosa com uma ligeira inclinação. Iluminado pelo luar, o manto de gelo estendia-se à distância até que eventualmente se estreitava, contorcendo-se entre as montanhas.
— Aquela é a geleira Milne — disse o motorista, apontando para as montanhas. — Começa lá em cima e depois vem descendo até chegar a este enorme delta onde estamos agora.
O homem acelerou novamente, e Rachel se segurou enquanto o veículo descia o outro lado da rampa íngreme. Quando chegaram lá embaixo, atravessaram outro canal congelado e depois galgaram o próximo paredão de neve. Subindo até o topo e descendo do lado oposto, chegaram a um manto de gelo liso. Começaram a transpor a parte plana da geleira.
— Estamos longe? — Rachel só via gelo diante deles.
— Uns três quilômetros e meio à frente.
Parecia bastante longe para Rachel. O vento do lado de fora se chocava contra o IceRover em fortes rajadas, chacoalhando a cabine como se quisesse arrancá-la.
— Isso é o vento catabático — gritou o motorista. — Melhor ir se acostumando! — Ele explicou, então, que aquela área era constantemente varrida por um vento conhecido como catabático, uma palavra de origem grega que significava “do alto para baixo”. O vento contínuo era, aparentemente, produzido pelo ar frio e pesado que “fluía” para baixo pelas encostas da geleira como se fosse um rio enfurecido descendo montanha abaixo.
— Este é o único lugar na Terra — acrescentou o motorista, rindo — no qual o inferno congela!
Algum tempo depois, Rachel começou a distinguir uma forma vaga ao longe, na direção em que seguiam. Era a silhueta de um enorme domo branco emergindo do gelo. Ela esfregou os olhos.
— Meu Deus, o que é isso?
— Temos uns esquimós bem grandes por aqui, não? — disse o homem, brincando.
Ela tentou compreender a estrutura à sua frente. Parecia-se muito com uma versão reduzida do Astrodomo de Houston.
— A NASA construiu isso aí há uma semana e meia — ele disse. — É um complexo de polissorbato inflável multiestágio. Basta inflar as peças, juntá-las umas às outras e depois fixar a estrutura no gelo usando pítons e cordas. Parece uma grande lona de circo, não? Na verdade é o protótipo da NASA para o habitat portátil que queremos usar em Marte, quando for possível. Nós o chamamos de “habisfera”, uma esfera habitável.
Rachel ficou olhando para a estranha construção no meio daquela planície glacial.
— E, já que a NASA ainda não conseguiu chegar a Marte, vocês todos resolveram passar umas noites por aqui, é isso?
O homem riu.
— Na verdade, eu teria preferido o Taiti, mas o local foi determinado pelo destino.
Rachel continuava examinando aquela construção peculiar. O branco-acinzentado da estrutura fantasmagórica contrastava com o céu escuro. O IceRover aproximou-se do domo, parando ao lado de uma pequena porta, que se abriu no mesmo momento. A luz vinda lá de dentro iluminou a neve. Um homem saiu: era um gigante corpulento usando um suéter de lã preto que exagerava ainda mais o seu tamanho, fazendo com que parecesse um urso. Ele caminhou na direção do IceRover.
Rachel conhecia aquele homem: era Lawrence Ekstrom, o administrador da NASA.
O motorista deu um risinho tranqüilizador e disse:
— Não deixe o tamanho desse cara te enganar. Ele é gentil como um gatinho.
Está mais para um tigre, pensou ela, que conhecia bem a reputação de Ekstrom de arrancar a cabeça de qualquer um que se colocasse no caminho de seus sonhos.
Quando Rachel desceu do IceRover, o vento quase a jogou no chão.
Enrolou-se firme no casaco e andou em direção ao domo. O administrador da NASA encontrou-a no meio do caminho e estendeu sua enorme mão recoberta por uma luva.
— Senhorita Sexton, fico feliz que tenha vindo.
Sorrindo sem muita convicção, ela gritou por cima do barulho do vento:
— Honestamente, senhor, acho que não tive muita escolha.
Um quilômetro acima na geleira, usando binóculos de infravermelho, Delta-Um observava Rachel ser conduzida para dentro do domo pelo administrador da NASA.
Lawrence Ekstrom, administrador da NASA, era um homem enorme, de rosto corado e ar rabugento, como um deus nórdico enraivecido. Seu cabelo louro e espevitado era cortado bem rente, em estilo militar, deixando em evidência sua testa enrugada e seu narigão marcado por pequenas veias. Seus olhos estavam pesados pelas muitas noites sem sono. Ele havia sido um influente estrategista e consultor de operações aeroespaciais no Pentágono antes de ser indicado para a NASA. Seu mau humor era tão famoso quanto sua dedicação inabalável a qualquer missão que lhe fosse confiada.
Ao entrar na habisfera atrás de Ekstrom, Rachel viu-se em meio a um labirinto surreal de corredores translúcidos, que parecia ter sido construído com folhas de plástico opaco penduradas em fios estendidos e tensionados. Não tinham colocado um piso, havia apenas o gelo sólido recoberto por faixas de material emborrachado para que ninguém escorregasse. Passaram por um dormitório rudimentar com beliches e toaletes químicos.
Felizmente o ar na habisfera era aquecido, apesar do cheiro peculiarmente pesado que resultava da combinação de odores indiscerníveis de várias pessoas fechadas em um espaço restrito. Em algum lugar havia o zumbido de um gerador, aparentemente fonte da energia elétrica que alimentava as lâmpadas colocadas em bocais ligados a extensões ao longo da entrada.
— Senhorita Sexton — Ekstrom começou a falar, enquanto guiava sua visitante a passos rápidos rumo a um destino desconhecido —, gostaria de ser sincero com você. — Seu tom de voz deixava claro que não estava feliz em ter Rachel como sua hóspede. — Você está aqui porque o presidente quer. Zach Herney é um amigo pessoal e um fiel defensor da NASA. Eu o respeito e devo muito a ele. Mais que isso, confio nele. Não questiono suas ordens diretas, mesmo quando não me sinto confortável com elas. Só queria deixar bem claro que não partilho do entusiasmo do presidente quanto a envolvê-la neste assunto.
Rachel ficou atônita. Viajei quase cinco mil quilômetros para ser recebida desta forma?
— Com todo o respeito — ela devolveu na mesma hora —, também me encontro sob ordens do presidente. Não me disseram por que estava sendo trazida para cá, mas fiz esta viagem com a melhor das intenções.
— Ótimo — disse Ekstrom. — Então posso ser direto.
— Acho que já começou de forma bem direta, não?
A resposta dura de Rachel aparentemente mexeu com o administrador. Suas passadas se desaceleraram e seus olhos se desanuviaram um pouco enquanto a observava. Depois, como uma cobra se desenrolando, ele suspirou longamente e retomou seu ritmo.
— Você precisa entender que se encontra em meio a um projeto secreto da NASA contra minha própria vontade. Não apenas é uma representante do NRO, cujo diretor tem profundo prazer em desonrar os cientistas da NASA como se fossem crianças linguarudas, mas também é filha do homem que fez de sua vida uma cruzada pessoal para destruir minha agência. Este deveria ser o momento de glória da NASA. Meus homens têm sofrido muito com as críticas recentes e merecem saborear este triunfo. Contudo, devido à enorme corrente de ceticismo liderada por seu pai, a agência se encontra em tal situação política que meu pessoal, apesar do trabalho árduo já realizado, se vê forçado a dividir o brilho dos holofotes com um punhado de cientistas escolhidos ao acaso e com a filha do homem que está tentando nos destruir.
Não sou meu pai —, ela quis gritar, mas aquele obviamente não era o momento para debater questões políticas com Ekstrom.
— Não vim aqui para me fazer de estrela, senhor.
O administrador olhou-a de volta e disse:
— Pode ser que você descubra que não há alternativa.
O comentário pegou-a de surpresa. Ainda que o presidente Herney não houvesse dito especificamente que gostaria que Rachel o ajudasse de forma “pública”, William Pickering certamente mostrara-se desconfiado de que sua agente pudesse se tornar um peão no jogo político.
— Gostaria de saber exatamente o que estou fazendo aqui — disse Rachel enfaticamente.
— Somos dois, então. Eu não tenho essa informação.
— Como?
— O presidente apenas me pediu que lhe explicasse em detalhes nossa descoberta assim que você chegasse. Seja lá qual for o papel que ele deseja que você desempenhe neste circo, isso é entre vocês dois.
— Ele me disse que o EOS, o Sistema de Observação da Terra, havia feito uma descoberta.
Ekstrom olhou-a de cima abaixo.
— Quão familiarizada você está com o projeto EOS?
— EOS é uma constelação de cinco satélites da NASA que examinam a Terra de várias formas; mapeamento dos oceanos, análise das falhas geológicas, observação do degelo polar, localização de reservas de combustíveis fósseis...
— Certo — cortou Ekstrom friamente. — Então você deve ter conhecimento sobre o último acréscimo à constelação do EOS. Chama-se PODS.
Ela assentiu. O PODS (Polar Orbiting Density Scanner), um satélite que faz varreduras de densidade em órbita polar, fora desenhado para medir os efeitos do aquecimento global.
— Se entendi bem sua função, o PODS mede a espessura e a rigidez do gelo da calota polar, certo?
— Exato. Ele usa uma tecnologia de espectrometria para captar composições de varreduras de densidade de grandes regiões e encontrar anomalias no gelo — neve derretida, pontos de degelo interno, grandes fissuras — indicativas de aquecimento global.
Rachel estava bem familiarizada com as varreduras de densidade.
Funcionavam como um ultra— som subterrâneo. Os satélites do NRO usavam tecnologia similar para procurar variações de densidade no solo do Leste Europeu e, assim, encontrar valas comuns, que podiam confirmar que uma limpeza étnica estava em andamento.
— Há duas semanas — prosseguiu Ekstrom — o PODS passou por cima desta geleira e notou uma anomalia de densidade que não se parecia com nada do que esperávamos ver. Sessenta metros abaixo da superfície, perfeitamente envolto em uma matriz de gelo sólido, o PODS viu algo que se parecia com um glóbulo amorfo com cerca de três metros de diâmetro.
— Um bolsão de água?
— Não. Nada líquido. Estranhamente, essa anomalia era mais dura do que o gelo que a cercava.
Rachel pensou um pouco.
— Então... seria uma rocha ou algo assim.
— Essencialmente, sim — disse ele.
Rachel ficou esperando o grande desfecho, mas Ekstrom não disse nada.
Estou aqui só porque a NASA encontrou uma grande rocha no gelo?
— Ficamos realmente animados quando o PODS calculou a densidade dessa rocha. Enviamos imediatamente uma equipe para cá a fim de analisá-la. Como viemos a descobrir, a rocha que está no gelo abaixo de nós é significativamente mais densa do que qualquer outra que possa ser encontrada aqui, na ilha de Ellesmere. Na verdade, é mais densa do que qualquer rocha em um raio de 650 quilômetros.
Rachel olhou para o gelo abaixo de seus pés, imaginando a enorme rocha lá embaixo, em algum lugar.
— Você quer dizer que alguém a trouxe para cá? Ekstrom pareceu se divertir um pouco com essa idéia.
— A rocha pesa mais de oito toneladas e está recoberta por 60 metros de gelo, o que significa que está ali, intocada, por mais de 300 anos.
Rachel sentiu um cansaço se abater sobre ela enquanto seguia o administrador pela entrada de um longo e estreito corredor, passando entre dois guardas armados da NASA que estavam de vigia. Ela olhou para Ekstrom.
— Devo supor que há uma explicação lógica para a presença da pedra aqui... e para todo este segredo?
— Com certeza — respondeu Ekstrom, sem titubear. — A rocha encontrada pelo PODS é um meteorito.
Rachel parou na mesma hora, na passagem, e encarou o administrador.
— Um meteorito?
Uma onda de desapontamento tomou conta dela. Um meteorito era um anticlímax após a enorme expectativa gerada pelo presidente. Esta descoberta sozinha irá justificar todas as despesas e as trapalhadas anteriores da NASA? Em que Herney estava pensando? Meteoritos eram, claro, um dos tipos mais raros de rochas na Terra, mas a NASA descobria meteoritos o tempo todo.
— Este é um dos maiores já encontrados em todo o mundo — disse Ekstrom rispidamente, de pé na frente dela. — Acreditamos que seja um fragmento de um meteorito que, como foi documentado, caiu no oceano Ártico no início do século XVIII. Muito provavelmente essa rocha foi ejetada com o impacto do meteorito no oceano. Deve ter caído aqui, na geleira Milne, e aos poucos foi soterrada pela neve ao longo dos últimos 300 anos.
Rachel fechou a cara. Aquela descoberta não iria mudar nada. Sentiu crescer sua suspeita de que estava testemunhando um golpe publicitário sem proporções armado pela NASA e pela Casa Branca — as duas entidades, em desespero, tentavam elevar uma descoberta casual ao status de uma grande vitória da NASA de projeção mundial.
— Você não parece muito impressionada — disse Ekstrom.
— Acho que eu esperava algo... diferente.
Ele baixou o rosto, encarando-a.
— Um meteorito desse tamanho é uma descoberta muito rara, senhorita Sexton. Em todo o mundo, poucos são maiores que ele.
— Eu entendo que...
— Mas não foi o tamanho do meteorito que nos deixou entusiasmados. Se permitir que eu termine minha explicação, irá compreender que ele possui algumas características impressionantes nunca antes vistas em nenhum outro meteorito, grande ou pequeno. — Ele apontou para o final do corredor. — Se puder me acompanhar, gostaria de apresentá-la a alguém mais qualificado do que eu para lhe explicar essa descoberta.
Rachel não entendeu o que ele quis dizer.
— Alguém mais qualificado do que o administrador da NASA?
Os olhos frios de Ekstrom se fixaram nela.
— Mais qualificado, senhorita Sexton, no sentido de que é um civil. Presumo que, como analista de inteligência, você queira receber os dados de uma fonte imparcial.
Touché. Rachel ficou em silêncio.
Seguiu o administrador até o final do corredor estreito, que acabava em uma pesada e escura cortina. Rachel podia ouvir o murmúrio confuso de muita gente falando do outro lado, as vozes ecoando no espaço.
Sem dizer mais nada, o administrador estendeu o braço e abriu a cortina. Rachel ficou temporariamente cega pela claridade ofuscante.
Quando seus olhos se ajustaram ao ambiente, viu a enorme sala que se abria diante dela e ficou boquiaberta.
— Meu Deus... — sussurrou. Que lugar é este?
O estúdio de gravação da CNN nos arredores de Washington D.C. é um dos 212 espalhados pelo mundo que estão ligados, via satélite, à central do Turner Broadcasting System em Atlanta.
Eram 13h45 quando a limusine do senador Sedgewick Sexton parou no estacionamento. Ele andou em direção à portaria do prédio, sentindo-se bastante confiante. Sexton e Gabrielle foram cumprimentados, ao entrar, por um produtor barrigudo da CNN que tinha um sorriso efusivo estampado no rosto.
— Senador Sexton, seja bem-vindo. Tenho boas notícias. Acabamos de descobrir quem a Casa Branca resolveu enviar para enfrentá-lo no debate. — O produtor deu um sorrisinho malicioso. — Espero que esteja bem preparado. — Apontou para o vidro da cabine de produção que dava para o estúdio.
Ao olhar pelo vidro, o senador quase caiu para trás. Do outro lado, em meio à fumaça de seu cigarro, estava o rosto mais feio de todo o cenário político.
— Marjorie Tench? — disse, perplexa, Gabrielle. — O que ela está fazendo aqui?
Sexton não tinha a menor idéia, mas, independentemente da razão, sua presença ali era uma ótima notícia. Um sinal claro de que o presidente estava completamente desesperado. Que outro motivo ele teria para mandar sua conselheira sênior para a frente de batalha? Zach Herney estava lançando mão de artilharia pesada, e o senador via aquilo como uma ótima oportunidade.
Quanto maior o adversário, maior é a queda.
Ele não tinha dúvida de que Tench seria uma oponente astuciosa, mas, olhando para ela, estava certo de que o presidente cometera um grande erro de julgamento. Marjorie era pavorosamente feia. Lá estava ela, desengonçada em sua cadeira, fumando um cigarro, a mão direita se movendo lentamente, indo e vindo de seus lábios finos como se fosse um gigantesco louva-a-deus se alimentando.
Meu Deus, pensou Sexton, ela devia se limitar a participar de debates em programas de rádio.
Nas poucas vezes em que vira a carranca amarelada da conselheira em algum jornal ou revista, o senador custara a crer que aquela fosse uma das faces mais poderosas de Washington.
— Não estou gostando disso — sussurrou Gabrielle.
Sexton não lhe deu atenção. Quanto mais pensava naquela oportunidade, mais satisfeito ficava. Havia algo de que poderia tirar ainda mais proveito do que do visual inadequado de Marjorie; a conselheira sempre fora uma forte defensora de que o futuro da América como líder mundial dependia de sua superioridade tecnológica. Ela era uma partidária ardorosa dos programas de pesquisa e desenvolvimento de alta tecnologia patrocinados pelo governo e, acima de tudo, pela NASA.
Várias pessoas acreditavam que era por conta da pressão interna exercida por Marjorie que o presidente se mantinha tão firmemente posicionado a favor da decadente agência espacial.
Sexton pensou se Herney não estaria, no fundo, querendo punir Tench por todos os conselhos ruins que ela lhe dera em relação à NASA. Será que ele está jogando sua conselheira sênior aos leões?
Gabrielle Ashe olhou para Marjorie através do vidro e sentiu um profundo incômodo. Aquela mulher era uma víbora astuta e sua presença era inesperada. Os dois fatos juntos faziam os instintos da assessora de Sexton se aguçarem. Considerando-se a postura de Marjorie em relação à NASA, o fato de o presidente enviá-la para enfrentar o senador parecia uma má idéia. O presidente, contudo, não era tolo.
Algo dizia a Gabrielle que aquela entrevista podia terminar mal.
Para piorar a situação, Gabrielle já podia sentir o senador comemorando antecipadamente seu desempenho naquele debate. Sexton tinha o péssimo hábito de passar do ponto quando se tornava presunçoso. A questão da NASA tinha gerado um bom impulso nas pesquisas, mas ele vinha exagerando um pouco no assunto, na opinião dela. Muitos candidatos já haviam perdido campanhas por terem partido para o nocaute quando deveriam apenas esperar pelo final do round.
O produtor parecia animado com a disputa mortal que viria a seguir.
— Vamos prepará-lo para as câmeras, senador.
Quando Sexton foi em direção ao estúdio, Gabrielle puxou-o discretamente.
— Sei o que você está pensando — ela disse bem baixo. — Mas fique atento. Não passe do ponto.
— Passar do ponto? Eu? — respondeu Sexton, com um sorriso malicioso.
— Lembre-se de que essa mulher é boa naquilo que faz.
Sexton deu uma piscadela e disse:
— E eu também.
A imensa câmara principal da habisfera seria uma visão estranha em qualquer lugar do planeta. O fato de estar situada sobre uma plataforma de gelo no Ártico só tornava aquilo ainda mais inacreditável para Rachel.
Olhando para cima, ela via um domo futurístico constituído de blocos triangulares brancos encaixados uns nos outros e sentia-se como se tivesse entrado em um enorme sanatório. As paredes desciam inclinadas até tocar o chão de gelo sólido, onde uma grande quantidade de lâmpadas halógenas parecia montar guarda em torno do perímetro, projetando a luz para cima e conferindo a toda a câmara uma luminosidade efêmera.
Placas de borracha preta foram usadas como revestimento, ziguezagueando sobre o chão de gelo e unindo um emaranhado de estações de pesquisa científica portáteis. Em meio ao equipamento eletrônico, uns 30 ou 40 cientistas da NASA trabalhavam duro, trocando idéias, sorrindo e falando em tom animado. Rachel reconheceu a eletricidade que percorria aquela sala.
Era a excitação diante de uma nova descoberta.
Enquanto ela e o administrador circulavam pela câmara, Rachel notou os olhares de surpresa e de contrariedade no rosto das pessoas que a reconheciam. Seus sussurros podiam ser ouvidos claramente naquele espaço reverberante.
— Aquela não é a filha do senador Sexton?
— Que diabos ELA está fazendo aqui?
— Não acredito que o administrador esteja conversando com ela!
De certa forma, Rachel quase esperava encontrar bonecos de vodu com a imagem de seu pai pendurados pela sala. A hostilidade em torno dela, contudo, não era a única emoção no ar. Ela também podia sentir um orgulho bem nítido, como se a NASA soubesse muito bem quem iria rir por último.
Ekstrom levou Rachel até uma fileira de mesas onde um homem estava sentado sozinho na frente de um computador. Ele usava calça de veludo cotelê, camisa de gola rulê preta e pesadas botas de marinheiro, em vez do uniforme padrão branco que os funcionários da NASA vestiam.
Estava de costas para eles quando se aproximaram.
O administrador pediu a Rachel que esperasse e caminhou na direção do homem. Os dois conversaram brevemente. Em seguida, ele assentiu cordialmente e começou a desligar seu computador. Ekstrom voltou para falar com Rachel.
— O senhor Tolland irá cuidar de você de agora em diante. Ele também foi recrutado pelo presidente, então creio que vocês vão se entender bem.
— Obrigada.
— Suponho que você já tenha ouvido falar de Michael Tolland.
Rachel deu de ombros, seu cérebro ainda tentando compreender aquele lugar incrível.
— O nome não me diz nada.
O homem se aproximou, sorrindo.
— Não lhe diz nada? — Sua voz era profunda e amigável. — Esta é a melhor notícia que tive hoje. Parece que não consigo mais me apresentar por conta própria.
Quando Rachel olhou para ele, congelou. É claro que conhecia aquele rosto bonito. Todo mundo nos Estados Unidos o conhecia.
— Ah — disse ela, corando quando o homem apertou sua mão. — Você é o Michael Tolland.
Quando o presidente contara a Rachel que ele havia recrutado cientistas civis de primeira linha para verificar a autenticidade da descoberta da NASA, ela tinha imaginado um grupo de “nerds” esquisitões, carregando nos bolsos calculadoras com suas iniciais gravadas. Michael Tolland era o contrário de tudo aquilo.
Ele era uma das mais conhecidas “celebridades do mundo científico” dos Estados Unidos, em grande parte por ser o apresentador de um documentário semanal na televisão chamado Maravilhas aos mares, no qual mostrava aos espectadores fenômenos fascinantes dos oceanos, como vulcões submarinos, serpentes marinhas de três metros e tsunamis. A mídia elogiava Tolland, tido como uma mistura de Jacques Cousteau com Carl Sagan, dizendo que seus conhecimentos, seu entusiasmo despretensioso e seu desejo insaciável por novas aventuras eram responsáveis pelo enorme sucesso do programa. E, como os críticos não se cansavam de dizer, o carisma discreto e a virilidade de Tolland também contribuíam fortemente para elevar os índices de audiência, principalmente entre o público feminino.
— Senhor Tolland... — balbuciou Rachel — ...eu sou Rachel Sexton.
Tolland abriu um sorriso simpático.
— Oi, Rachel. Pode me chamar de Mike.
Rachel não sabia o que dizer em seguida, uma situação bem atípica para ela. A sobrecarga de informações estava começando a pesar: a habisfera, o meteorito, todos aqueles segredos, ver-se subitamente diante de uma celebridade da televisão...
— Estou surpresa por encontrá-lo aqui — disse ela, tentando puxar conversa. — Quando o presidente me disse que havia recrutado cientistas civis para averiguar a autenticidade da descoberta da NASA, acho que eu esperava encontrar... — hesitou.
— Cientistas de verdade? — disse Tolland, sorrindo.
Rachel ficou vermelha, envergonhada.
— Não foi isso que eu quis dizer, eu...
— Não se preocupe — prosseguiu Tolland. — É o que mais tenho ouvido desde que cheguei aqui.
Ekstrom pediu licença e disse que voltaria a encontrá-los mais tarde.
Agora era Tolland quem olhava para Rachel com curiosidade.
— O administrador disse que você é filha do senador Sexton.
Rachel fez que sim com a cabeça.
— Infelizmente.
— Uma espiã de Sexton por trás das linhas inimigas?
— As linhas de batalha nem sempre estão onde parecem estar.
Seguiu-se um breve silêncio incômodo.
— Então, conte-me — prosseguiu Rachel rapidamente —, o que um oceanógrafo de fama mundial está fazendo sobre uma geleira com algumas dezenas de cientistas espaciais da NASA?
Tolland soltou um risinho.
— Para dizer a verdade, encontrei um cara que se parecia muito com o presidente. Ele me pediu um favor. Eu abri a boca para dizer “Vá se danar”, mas, curiosamente, o que saiu foi “Sim, senhor”.
Rachel riu pela primeira vez naquela manhã.
— Bom, bem-vinda ao clube.
Apesar de quase todas as celebridades parecerem ser mais baixas fora das telas, Rachel achou que Tolland era ainda mais alto. Seus olhos castanhos eram atentos e exibiam o mesmo brilho vigoroso que tinham na TV, e sua voz também possuía o mesmo tom de modéstia e entusiasmo. Com porte atlético e cabelos negros e espessos caindo em tufos despenteados sobre a testa, Michael Tolland aparentava 45 anos bem vividos. Tinha um queixo quadrado e um jeitão casual que transmitiam confiança. Quando o apresentador apertou a mão de Rachel, ela sentiu a calosidade áspera de suas palmas e lembrou-se de que Tolland não era uma típica celebridade “de estúdio”, mas um veterano dos mares e um pesquisador ativo.
— Para ser franco — admitiu Tolland, meio encabulado —, acho que fui trazido aqui mais por meu valor como figura pública do que por meus conhecimentos científicos. O presidente pediu que eu viesse e preparasse um documentário para ele.
— Um documentário? Sobre um meteorito? Mas você é um oceanógrafo!
— Foi exatamente o que eu respondi. Mas ele disse que não conhecia ninguém que fizesse documentários sobre meteoritos. Depois disse que meu envolvimento ajudaria a dar mais credibilidade a esta descoberta. Aparentemente ele está pensando em transmitir meu documentário como parte da coletiva de imprensa desta noite, quando anunciará a descoberta.
Usar uma celebridade como porta-voz. Rachel viu mais uma vez a habilidade política de Zach Herney em ação. A NASA era muitas vezes acusada de falar coisas que o grande público não podia compreender.
Desta vez seria diferente. Iriam colocar em cena um mestre da comunicação, alguém que o público americano conhecia e em quem confiava quando o assunto era ciência.
Tolland apontou para o lado diametralmente oposto do domo. Em uma parede distante estava sendo preparada uma área para a imprensa. Havia um carpete azul estendido sobre o gelo, câmeras de TV, luzes especiais e uma longa mesa com diversos microfones sobre ela. Como pano de fundo, uma pessoa estava prendendo uma enorme bandeira americana na parede.
— É para hoje à noite — explicou ele. — O administrador da NASA e alguns de seus melhores cientistas estarão em contato, via satélite, com a Casa Branca, de forma que possam participar da transmissão do presidente às oito da noite.
Muito adequado, pensou Rachel, feliz ao saber que Zach Herney não iria deixar a NASA completamente de fora de seu comunicado.
— Então — perguntou Rachel com um suspiro —, será que alguém finalmente vai me dizer o que há de tão especial nesse meteorito?
Tolland levantou as sobrancelhas e sorriu de forma misteriosa.
— Acho que é mais fácil mostrar o que há de tão especial do que apenas explicar. — Fez um sinal para que Rachel o seguisse em direção a uma área de trabalho próxima. — O cara que trabalha aqui tem várias amostras que você vai gostar de ver.
— Amostras? Vocês têm amostras do meteorito?
— Claro! Fizemos algumas perfurações e pegamos várias. Na verdade, foram as amostras iniciais do núcleo que chamaram a atenção da NASA para a importância da descoberta.
Sem saber muito bem o que esperar, Rachel seguiu Tolland até a estação de trabalho. Aparentemente estava vazia. Havia um copo de café sobre uma mesa repleta de amostras de rocha, paquímetros e outros equipamentos para análise. O café ainda estava fumegando.
— Marlinson! — gritou Tolland, olhando em volta. Nenhuma resposta. Ele se virou para Rachel, frustrado, e disse: — Ele provavelmente se perdeu enquanto tentava achar creme para o café. Olha, eu fiz pós-graduação em Harvard com esse cara e ele conseguia se perder dentro do próprio dormitório. Agora lhe deram uma Medalha Nacional de Mérito em Ciência por seu trabalho em astrofísica. Não dá para entender.
Rachel olhou para Tolland, surpresa.
— Marlinson? Você não está falando do famoso Corky Marlinson, está?
Tolland riu.
— Só existe um.
— Corky Marlinson está aqui? — ela perguntou, impressionada. As idéias de Marlinson sobre os campos gravitacionais eram lendárias entre os projetistas de satélites do NRO. — Marlinson é um dos cientistas que o presidente recrutou?
— É, o cara é um dos cientistas de verdade...
Mais verdadeiro, impossível, pensou Rachel. Corky Marlinson era um dos cientistas mais brilhantes e respeitados que conhecia.
— O incrível paradoxo a respeito de Corky — disse Tolland — é que ele pode citar a distância daqui a Alfa Centauro em milímetros, mas não consegue dar um nó na própria gravata.
— Minhas gravatas já vêm com nós! — interveio uma voz anasalada e amistosa ressoando de algum lugar por perto. — A eficiência é mais importante que o estilo, Mike. Mas isso é algo que não entra na cabeça de alguém de Hollywood, não é?
Rachel e Tolland se viraram para ver o homem que tinha acabado de sair de trás de uma alta pilha de equipamento eletrônico. Era baixo, com o corpo ao mesmo tempo largo e gorducho, lembrando um pouco um cão da raça pug com olhos esbugalhados e cabelos ralos penteados para o lado.
Quando viu Rachel ao lado de Tolland, parou abruptamente.
— Meu Deus, Mike! Estamos numa geleira em pleno Pólo Norte, e ainda assim você consegue encontrar uma mulher bonita! Eu sabia que deveria ter ido trabalhar na TV.
Michael Tolland ficou bastante sem jeito.
— Senhorita Sexton, por favor, perdoe o doutor Marlinson. O que ele não tem em termos de tato é mais do que compensado pelos fragmentos aleatórios de conhecimento absolutamente inútil que possui a respeito de nosso universo.
Corky aproximou-se.
— Uma verdadeira honra. Desculpe, não ouvi seu nome...
— Rachel — disse ela. — Rachel Sexton.
— Sexton? — Corky soltou um risinho debochado. — Você não é parente daquele senador depravado e sem a menor visão de futuro, espero!
Tolland coçou a cabeça, olhando para baixo.
— Na verdade, Corky, o senador Sexton é o pai de Rachel.
Corky parou de rir e falou, desanimado:
— Mike, acho que dá para entender por que nunca me dei muito bem com mulheres, não é?
O astrofísico Corky Marlinson levou Rachel e Tolland até sua área de trabalho e começou a remexer em suas ferramentas e amostras de rocha. Ele se movia como uma mola extremamente tensa prestes a explodir.
— OK — disse ele, trêmulo de animação. — Senhorita Sexton, você está prestes a ouvir uma apresentação-relâmpago sobre meteoritos, um curso em 30 segundos de Corky Marlinson.
— Melhor ser um pouco paciente, na verdade ele sempre quis ser um ator — disse Tolland, dando uma piscadela para Rachel.
— Isso, e Mike sempre quis ser um cientista respeitável. — Corky vasculhou uma caixa de sapatos e pegou três amostras de rocha, enfileirando-as em sua mesa. — Estas são as três classes principais de meteoritos existentes no mundo. Rachel olhou para as três amostras. Todas pareciam ser objetos vagamente esféricos do tamanho de bolas de pingue-pongue. Elas tinham sido cortadas ao meio para mostrar a parte central.
— Todos os meteoritos são compostos de uma quantidade variável de ligas de níquel e ferro, silicatos e sulfetos. Nós os classificamos com base nas relações existentes entre a quantidade de metal e de silicato.
Rachel estava com uma forte impressão de que a “apresentação-relâmpago” de Corky iria durar bem mais do que 30 segundos.
— Veja esta primeira amostra — disse Corky, apontando para uma rocha brilhante e absolutamente negra. — É um meteorito com núcleo de ferro. Bem pesado. Esse cara aterrissou na Antártica há alguns anos.
Rachel estudou o meteorito. Certamente se parecia com algo vindo de outro planeta: uma pesada bolha de ferro acinzentada cuja superfície havia sido queimada e escurecida.
— Esta camada externa carbonizada é chamada de crosta de fusão — prosseguiu Corky. — É o resultado do calor extremo enquanto o meteoro cai em nossa atmosfera. Todos os meteoritos possuem essa crosta. — Corky passou rapidamente para a próxima amostra. — Este aqui é o que chamamos de um meteorito rochoso-ferroso.
Rachel observou a nova amostra, notando que ela também estava carbonizada na parte externa. Sua coloração era verde-clara, e a seção interna parecia uma colagem de fragmentos angulares coloridos, como em um caleidoscópio.
— Bonito.
— Você está brincando, isto é lindo! — Corky falou por algum tempo sobre o alto conteúdo de olivina e como isso causava o brilho esverdeado, depois pegou dramaticamente a terceira e última amostra, entregando-a para Rachel.
Ela segurou o último meteorito na palma da mão. Sua coloração era marrom-acinzentada, lembrando granito. Parecia só um pouco mais pesado do que uma pedra terrestre do mesmo tamanho. A única indicação de que não era uma pedra comum era sua crosta de fusão — a superfície externa carbonizada.
— Nós dizemos que este aí é um meteorito rochoso. É a classe mais comum de meteoritos. Mais de 90% dos meteoritos encontrados na Terra pertencem a essa categoria.
Rachel ficou surpresa. Ela sempre tinha pensado nos meteoritos como algo semelhante à primeira amostra: glóbulos metálicos de aparência alienígena. O meteorito em sua mão não tinha nada de excepcional.
Tirando o fato de que havia sido carbonizado por fora, podia ser confundido com uma rocha comum. Os olhos de Corky agora estavam quase pulando fora das órbitas de tanto entusiasmo.
— O meteorito que está enterrado no gelo aqui em Milne é do tipo rochoso, bastante parecido com o que está em suas mãos. Esses meteoritos são quase idênticos às rochas vulcânicas da Terra, o que dificulta sua detecção. Em geral são uma mistura de silicatos leves — feldspato, olivina, piroxênio. Nada muito divertido.
Concordo, pensou Rachel, devolvendo a amostra.
— Ele se parece muito com uma rocha que alguém jogou em uma lareira e deixou queimando.
Corky começou a rir.
— Teria sido uma lareira dos infernos! A fornalha mais poderosa que já conseguimos construir não chega nem perto de reproduzir o calor que um meteorito agüenta quando entra em nossa atmosfera.
Tolland sorriu, condescendente, para Rachel.
— Agora vem a parte boa — disse Tolland.
— Pense nisso — prosseguiu Corky, pegando a amostra de volta. – Vamos imaginar que este garotão aqui é do tamanho de uma casa. — Segurou a amostra bem alto acima de sua cabeça. — OK, ele está no espaço flutuando pelo nosso sistema solar, resfriado pela temperatura do espaço a — 100° Celsius.
Tolland estava rindo para si mesmo, aparentemente por já ter visto a encenação de Corky mostrando a chegada do meteorito na ilha de Ellesmere. Corky começou a baixar a amostra.
— Nosso meteorito está se dirigindo para a Terra e, conforme se aproxima, a gravidade se apodera dele fazendo com que acelere mais e mais.
Rachel observou enquanto ele acelerava a trajetória da amostra em sua mão, simulando a aceleração da gravidade.
— Agora está se movendo muito rapidamente — exclamou o cientista. — Mais de 60 mil quilômetros por hora! Cento e trinta e cinco quilômetros acima da superfície da Terra, o meteorito entra em forte atrito com a atmosfera. — Corky sacudia a amostra violentamente enquanto a abaixava na direção do gelo. — Abaixo de 100 quilômetros já começa a brilhar! O ar em volta do meteorito está se tornando incandescente, e o material da superfície se funde por causa do calor.
— Corky começou a fazer sons engraçados de coisas queimando e fritando. — Agora está cruzando a marca dos 80 quilômetros, e seu exterior atinge mais de 800° Celsius!
Rachel continuava olhando a cena, sem acreditar que o astrofísico ganhador da medalha de honra estivesse chacoalhando vigorosamente o meteorito e fazendo ruídos cômicos como uma criança.
— Sessenta quilômetros! — Corky já estava gritando. — Nosso meteorito encontra a barreira atmosférica. O ar é denso demais! Ele é violentamente desacelerado a uma taxa superior a 300 vezes a força da gravidade! — Corky imitou um som de carro freando e reduziu a velocidade de descida drasticamente. — Instantaneamente, ele esfria e pára de brilhar. Entramos na fase do vôo escuro! A superfície do meteoróide se torna mais dura, passando do estágio fundido até formar a crosta de fusão carbonizada.
Rachel percebeu que Tolland fazia força para não cair na gargalhada. Corky, indiferente, se ajoelhou sobre o gelo para encenar o golpe de misericórdia — o impacto com a Terra.
— E agora nosso enorme meteorito está voando através da camada inferior de nossa atmosfera... — De joelhos, posicionou o meteorito na direção do solo em uma inclinação pequena. — Está se dirigindo para o oceano Ártico... o ângulo é oblíquo... está caindo... parece que vai ricochetear no oceano... está caindo... e... — Ele encostou a amostra no gelo. — BUM!
Rachel deu um pulo.
— O impacto é cataclísmico! O meteorito explode. Fragmentos voam para todos os lados, ricocheteando e rolando sobre o oceano! — Corky entrou no modo de “câmera lenta”, rolando a amostra e fazendo-a quicar através do oceano invisível em direção aos pés de Rachel. — Um dos fragmentos continua se movimentando rumo à ilha de Ellesmere, ricocheteando mais uma vez no oceano e indo parar em terra... – O astrofísico levou a pedra até bem perto do sapato de Rachel, depois moveu-a por cima do sapato dela e rolou-a até parar perto do tornozelo. — Finalmente, ele pára bem alto na geleira Milne, onde a neve e o gelo rapidamente o encobrem, protegendo-o da erosão atmosférica — disse Corky, levantando-se com um sorriso no rosto.
Rachel estava boquiaberta. Deu uma risada simpática, satisfeita com a demonstração.
— Bem, Dr. Marlinson, essa explicação foi excepcionalmente...
— Clara?
— Isso mesmo! — Rachel sorriu.
Corky devolveu-lhe a amostra.
— Observe o corte transversal.
Ela examinou o interior da rocha durante algum tempo, mas não viu nada.
— Coloque-a contra a luz, depois movimente de leve — disse Tolland, com seu tom sempre amigável — e olhe atentamente.
Rachel aproximou a pedra de seus olhos e girou-a devagar contra as fortes luzes que estavam posicionadas acima deles. Agora podia ver algo. Eram pequenos glóbulos metálicos cintilando dentro da pedra.
Dezenas deles estavam salpicados por todo o corte transversal como gotículas de mercúrio, cada uma com cerca de um milímetro de diâmetro.
— Essas pequenas bolhas são chamadas de côndrulos e ocorrem apenas em meteoritos — disse Corky.
— Nunca vi nada igual em uma pedra aqui da Terra.
— Nem irá ver! — declarou Corky. — Os côndrulos são uma estrutura geológica que não existe em nosso planeta. Alguns são incrivelmente antigos, constituídos talvez por materiais datando dos primórdios de nosso universo. Outros são bem mais novos, como os que você está vendo. Estes, especificamente, datam apenas de 190 milhões de anos atrás.
— Você está me dizendo que 190 milhões de anos é novo?
— Claro! Na escala cosmológica, isso foi ontem. Mas o importante aqui, contudo, é que esta amostra contém côndrulos, que são uma evidência conclusiva de que se trata de um meteorito.
— Certo — disse Rachel. — Então os côndrulos são uma evidência conclusiva. Entendi esta parte.
— E, finalmente — disse Corky, soltando um suspiro —, se a crosta de fusão e os côndrulos não forem convincentes o bastante, nós, astrônomos, temos um método infalível para confirmar que um meteorito é autêntico.
— E que método é esse?
Corky fez um gesto vago com as mãos e disse:
— Ah, nós usamos um microscópio petrográfico de polarização, um espectrômetro de fluorescência de raios X, um analisador de ativação de nêutrons ou um espectrômetro de plasma de acoplamento indutivo para medir as relações ferromagnéticas.
— Quanto exibicionismo... — resmungou Tolland. — Olha, o que Corky quer dizer é que podemos provar que uma pedra é um meteorito simplesmente através da análise de seu conteúdo químico.
— Ei, marinheiro! — protestou Corky. — Vamos deixar as questões científicas com os cientistas, certo? — Voltou-se para Rachel e continuou. — Nas pedras da Terra, o mineral níquel irá sempre ocorrer em porcentagens extremamente elevadas ou extremamente baixas, mas nunca no meio disso. Nos meteoritos, contudo, a quantidade de níquel recai em uma gama de valores intermediários. Assim, se analisarmos uma amostra e descobrirmos que a quantidade de níquel reflete valores intermediários, podemos garantir, sem sombra de dúvida, que é um meteorito.
Rachel estava ficando impaciente.
— Cavalheiros, já entendi que crostas de fusão, côndrulos, conteúdo de níquel em níveis intermediários, tudo isso prova que algo veio do espaço. Isso está claro — disse, colocando a amostra de volta sobre a mesa de Corky. — Mas ninguém me explicou ainda o que eu estou fazendo aqui.
Corky soltou um suspiro condescendente.
— Você quer ver uma amostra do meteorito que a NASA encontrou aqui no gelo?
— Antes que eu morra, se possível.
Desta vez Corky procurou em seu bolso, tirando de lá uma pequena pedra em formato de disco. O segmento de rocha tinha o formato de um CD, cerca de 25 mm de espessura e parecia ter uma composição similar à do meteorito rochoso que ela acabara de ver.
— Este corte veio de uma amostra cilíndrica que extraímos ontem — disse Corky, passando o disco para Rachel.
A julgar pela aparência, não havia nada de extraordinário naquele meteorito. Era uma rocha pesada, de um alaranjado-claro. Parte da borda estava carbonizada e escurecida, aparentando ser um segmento da superfície do meteorito.
— Posso ver a crosta de fusão — disse Rachel. Corky concordou.
— É, essa amostra foi tirada da parte mais externa do meteorito, então dá para ver um pouco de crosta nela.
Rachel inclinou o disco contra a luz e pôde ver os pequenos glóbulos metálicos.
— E também posso ver os côndrulos.
— Ótimo! — exclamou Corky, eufórico. — E eu posso completar seu raciocínio dizendo que já analisamos essa amostra usando um microscópio petrográfico de polarização e que seu conteúdo de níquel recai em um nível intermediário. Meus parabéns, você acabou de confirmar com toda a certeza que a rocha em suas mãos veio do espaço.
Rachel olhou para ele, confusa.
— Dr. Marlinson, isso é um meteorito. Supostamente ele tem que vir do espaço, não? Perdi alguma coisa?
Corky e Tolland trocaram um olhar cúmplice. Tolland colocou a mão no ombro de Rachel e disse baixinho:
— Vire-o do outro lado.
Rachel virou o disco. Levou um curto tempo até que seu cérebro assimilasse o que estava vendo. E então a verdade passou por cima dela como um rolo compressor.
Impossível!, pensou, sem ar, enquanto percebia que sua definição de “impossível” havia acabado de mudar para sempre.
Incrustada na pedra havia uma forma que em uma amostra de rocha terrestre seria considerada comum. Em um meteorito, contudo, era completamente inconcebível.
— É um... — Rachel gaguejou, quase incapaz de dizer a palavra. – É um... inseto! Esse meteorito contém o fóssil de um inseto!
Tolland e Corky sorriam, alegres.
— Bem-vinda ao clube.
O enorme fluxo de emoções que tomou conta de Rachel deixou-a sem fala por alguns instantes. Mesmo aturdida pelo que acabara de ver, compreendeu que não havia qualquer dúvida de que aquele fóssil havia sido, em um passado remoto, um organismo vivo. A impressão petrificada tinha cerca de oito centímetros e parecia ser a parte inferior de um enorme besouro ou outro inseto rastejante. Sete pares de pernas articuladas estavam agrupadas sob um exoesqueleto que, por sua vez, parecia ser segmentado em placas, como as de um tatu.
Rachel se sentia estonteada.
— Um inseto espacial...
— É um isópode — disse Corky. — Os insetos têm apenas três pares de pernas, não sete.
Rachel nem mesmo o ouviu. Sua cabeça continuava girando enquanto olhava para o fóssil em suas mãos.
— Você pode ver claramente — prosseguiu Corky — que a carapaça dorsal é segmentada em placas como no tatu-bolinha, embora os dois apêndices salientes, como uma cauda, façam com que se pareça com um inseto.
A mente de Rachel já não registrava mais o que ele dizia. A classificação da espécie era completamente irrelevante. Todas as peças do quebra-cabeça se encaixaram de uma só vez: o segredo guardado pelo presidente, o entusiasmo da NASA...
Há um fóssil neste meteorito! Não apenas vestígios de bactérias ou micróbios, mas uma forma de vida avançada! Prova de que há vida em outros lugares do universo!
Dez minutos depois do início do debate da CNN, o senador Sexton estava pensando que sequer deveria ter se preocupado. Marjorie Tench havia sido superestimada como adversária. Apesar da reputação que tinha de ser cruelmente sagaz, ela não estava se mostrando uma oponente à sua altura.
É verdade que, logo no início do debate, Tench havia jogado com as cartas mais fortes, criticando severamente a plataforma pró-vida do senador como sendo preconceituosa em relação às mulheres, mas justamente quando ela parecia estar cerrando suas garras cometeu um erro tolo. Enquanto questionava como o senador pretendia encontrar fundos para sua proposta de melhorias no sistema educacional sem ter que aumentar os impostos, Tench fez uma alusão depreciativa à forma como Sexton sempre usava a NASA como bode expiatório.
Embora ele só desejasse falar sobre a agência nos minutos finais do debate, Marjorie abrira a porta cedo demais. Idiota!
— Já que estamos falando da NASA — emendou ele casualmente —, será que a senhora teria algo a comentar sobre os rumores que tenho ouvido de que a agência acaba de sofrer outro fracasso recentemente?
— Devo dizer que não estou a par desses rumores — Marjorie respondeu sem piscar. Sua voz de fumante inveterada era áspera como uma lixa.
— Nada a comentar, então?
— Receio que não.
Sexton sorriu de orelha a orelha. No mundo dos clichês da mídia, “Sem comentários” significava, basicamente, “Eu me declaro culpada”.
— Entendo — prosseguiu Sexton. — Algo a dizer, então, sobre os rumores de uma reunião secreta e de caráter emergência! entre o presidente e o administrador da NASA?
Desta vez Tench pareceu surpresa.
— Não sei bem a qual reunião o senhor está se referindo. Há muitos encontros na agenda do presidente.
— Sim, claro que há. — Sexton decidiu pressioná-la. — Senhora Tench, é verdade que apóia fortemente a agência espacial, não é?
A consultora suspirou, como se já estivesse cansada do assunto predileto do adversário.
— Acredito na importância de preservar a dianteira tecnológica dos Estados Unidos, seja no que diz respeito a assuntos militares, industriais, de inteligência ou de telecomunicações. A NASA certamente tem seu papel nesta visão. Sim.
Sexton podia ver os olhos de Gabrielle, do outro lado da cabine da produção, rogando que ele recuasse, mas Sexton estava sentindo o gosto de sangue.
— Há algo que me deixa curioso... É sua a grande influência por trás do persistente apoio do presidente a essa agência problemática?
Tench sacudiu a cabeça.
— Não. O presidente também acredita firmemente na NASA. Ele toma suas próprias decisões.
O senador não podia acreditar no que tinha ouvido. Ele havia acabado de dar a Marjorie uma chance de isentar parcialmente o presidente, aceitando pessoalmente parte da culpa pelos financiamentos à NASA. Em vez disso, ela jogara todo o peso sobre ele. O presidente toma suas próprias decisões. Parecia até que a consultora estava tentando se distanciar de uma campanha com sérios problemas. O que não seria nenhuma surpresa, pois, afinal, quando a poeira assentasse, Marjorie Tench teria que encontrar um novo trabalho.
Durante os minutos seguintes, Sexton e Tench rodaram pelo ringue, trocando golpes leves. Ela fez algumas tentativas vagas de mudar de assunto, enquanto seu oponente continuava pressionando-a quanto ao orçamento da NASA.
— Senador — perguntou Tench —, o senhor deseja reduzir o orçamento da NASA, mas tem alguma idéia do que isso implica em termos da perda de postos de trabalho no setor de alta tecnologia?
Sexton quase riu na cara dela. Esta é afigura tida como a mente mais brilhante de Washington? Tench obviamente tinha uma lição a aprender em relação à distribuição demográfica do país. Os postos de alta tecnologia eram irrelevantes em comparação com os enormes números do operariado americano.
O senador voou sobre ela.
— Estamos falando numa economia de bilhões neste caso, Marjorie. Se o resultado disso for que um punhado de cientistas da NASA terá que pegar seus BMWs e sair distribuindo seus currículos altamente cobiçados pelo mercado, que seja. O meu compromisso é ser duro no controle dos gastos.
Marjorie ficou em silêncio, como se estivesse se recuperando do último golpe. O mediador da CNN perguntou:
— Senhora Tench? Alguma reação?
Ela finalmente limpou a garganta e falou:
— Acho que fiquei um pouco surpresa ao ouvir o senhor Sexton se colocar de forma tão resoluta como um opositor da NASA.
Os olhos do senador afilaram-se. Boa tentativa, Marjorie.
— Não sou um opositor da NASA e me ressinto de tal afirmação. Estou simplesmente dizendo que o orçamento da agência é um indicador do tipo de gastos descontrolados que o presidente advoga. A NASA disse que poderia construir o ônibus espacial por cinco bilhões — ele nos custou 12 bilhões. Disseram que podiam construir a Estação Espacial Internacional por oito bilhões e a conta já está em 100 bilhões.
— Nós, americanos, somos líderes mundiais porque fixamos para nós mesmos metas grandiosas e permanecemos fiéis a elas mesmo em tempos árduos — contra-atacou Tench.
— Esse discurso sobre o orgulho nacional não vai funcionar comigo, cara Marge. A NASA já gastou mais do que três vezes seu orçamento nos últimos dois anos, depois voltou para o presidente, com o rabo entre as pernas, para pedir mais dinheiro a fim de consertar seus erros. Você chama isso de “orgulho nacional”? Se quiser falar de orgulho nacional, vamos falar de boas escolas. Vamos falar de planejamento de saúde para todos. Vamos falar de crianças inteligentes crescendo em um país cheio de oportunidades. É isso que chamo de orgulho nacional!
Os olhos de Tench faiscavam.
— Posso lhe fazer uma pergunta direta, senador? — Sexton não respondeu, apenas esperou. As palavras saíram da boca de Tench calculadamente, com uma aspereza súbita:
— Senador, se eu dissesse que não podemos explorar o espaço por menos do que a NASA gasta atualmente, o senhor estaria pronto a desativar de vez a agência?
A pergunta caiu sobre Sexton como uma rocha. Talvez Tench não fosse assim tão boba, no final das contas. Ela havia acabado de pegar seu adversário com a guarda baixa. Sua pergunta exigia uma resposta direta, do tipo “sim” ou “não”. Era uma armadilha preparada com cuidado para forçá-lo a sair de cima do muro e dizer claramente de que lado estava.
Instintivamente, Sexton tentou evitar a armadilha.
— Não tenho dúvida de que, com um gerenciamento adequado, a NASA poderia explorar o espaço gastando muito menos do que atualmente...
— Senador Sexton, por favor responda à minha pergunta. Explorar o espaço é um negócio de risco. Um pouco como construir um jato comercial. Ou fazemos a coisa direito ou simplesmente a deixamos de lado. Os riscos são grandes demais. Minha pergunta continua de pé: se o senhor se tornasse presidente e tivesse que enfrentar a decisão de continuar a financiar a NASA em seu patamar atual ou sucatear completamente o programa espacial americano, qual seria a sua decisão?
Merda. Sexton olhou rapidamente para Gabrielle através do vidro. A expressão dela transmitia aquilo que ele já sabia. Você assumiu um compromisso. Seja direto. Não tente se desviar do assunto. Ele manteve o prumo.
— Sim, eu transferiria o orçamento atual da NASA diretamente para o ensino público, se tivesse que tomar esta decisão. Meu voto seria em favor de nossas crianças, em detrimento do espaço.
Marjorie deixou transparecer uma expressão de completo espanto.
— Estou chocada. Eu ouvi bem? Como presidente, o senhor agiria no sentido de abolir o programa espacial desta nação?
Sexton sentiu a raiva fervilhando dentro dele. Agora Tench estava colocando palavras em sua boca. Ele tentou se opor, mas a consultora já havia voltado a falar.
— Só para esclarecer, senador, o senhor está dizendo que acabaria com a agência que levou o homem à Lua?
— Estou dizendo que a corrida espacial acabou! Os tempos mudaram. A NASA já não desempenha um papel fundamental na vida cotidiana dos americanos e, ainda assim, continuamos financiando a agência da mesma forma.
— Então o senhor não acha que o futuro está no espaço?
— É claro que o futuro está no espaço, mas a NASA é um dinossauro! Deixemos o setor privado explorar o espaço. Os contribuintes americanos não deveriam ter que tirar dinheiro do bolso toda vez que algum engenheiro em Washington decide tirar uma fotografia de um bilhão de dólares de Júpiter. Os americanos estão cansados de leiloar o futuro de seus filhos para financiar uma agência ultrapassada que nos dá tão pouco em troca de seus custos colossais!
Tench deixou escapar um suspiro dramático.
— Tão pouco? Com exceção talvez do programa SETI, a NASA tem trazido enormes retornos.
Sexton ficou abismado que Tench sequer tivesse deixado escapar aquela menção ao programa SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence).
Enorme tolice. Obrigado por me lembrar. O programa de busca por inteligência extraterrestre era um dos maiores sorvedouros de dinheiro da NASA de todos os tempos. Apesar de terem tentado dar uma cara nova ao projeto mudando seu nome para Origins — Origens — e alterando alguns de seus objetivos, ele continuava sendo uma aposta perdedora.
— Prezada Marjorie — disse Sexton, aproveitando a abertura —, só vou falar do SETI porque a senhora tocou no assunto.
Curiosamente, Tench parecia quase ansiosa por essa resposta. Sexton limpou a garganta.
— Há muitas pessoas que nem sabem que a NASA tem procurado por ETs nos últimos 35 anos. E tem sido uma caçada ao tesouro bem cara: antenas parabólicas, enormes transceivers, milhões gastos nos salários de cientistas que ficam sentados no escuro ouvindo fitas em branco. É um desperdício de recursos inacreditável.
— O senhor quer dizer que não há mais ninguém lá fora?
— Estou dizendo que, se qualquer outra agência do governo tivesse gasto 45 milhões ao longo de 35 anos sem produzir um único resultado, teria sofrido cortes há muito tempo. — Sexton parou para deixar que todo o peso de sua declaração pudesse ser sentido. — Após 35 anos, acho que está bem claro que não vamos encontrar vida extraterrestre.
— E se o senhor estiver errado?
Sexton olhou para cima, com desdém.
— Ah, pelo amor de Deus, senhora Tench, se eu estiver errado, como meu chapéu.
Marjorie Tench cravou seus olhos no senador Sexton.
— Vou me lembrar do que o senhor disse, senador. — Ela sorriu pela primeira vez. — Acho que todos vamos nos lembrar.
A alguns quilômetros dali, no Salão Oval, o presidente Zach Herney desligou a televisão e preparou um drinque. Exatamente como Marjorie tinha prometido, o senador Sexton havia engolido a isca.
Michael Toland percebeu que ele também estava sorrindo ao ver a expressão de silencioso deslumbramento no rosto de Rachel diante do meteorito com fósseis. A beleza delicada do rosto daquela mulher parecia ter se dissolvido em uma expressão de fascínio inocente, como uma garotinha que tivesse visto Papai Noel pela primeira vez.
Sei exatamente como se sente, ele pensou.
Tolland ficara impressionado daquela mesma forma 48 horas atrás. Ele também tinha ficado hipnotizado, em silêncio. Mesmo agora, as implicações científicas e filosóficas do meteorito ainda o deixavam aturdido, forçando-o a repensar tudo aquilo em que havia acreditado sobre a natureza.
Entre as diversas descobertas oceanográficas de Tolland havia muitas espécies de águas profundas antes desconhecidas. Mesmo assim, esse “inseto espacial” pertencia a outro nível de descobertas. Apesar de os filmes de Hollywood invariavelmente mostrarem os ETs como pequenos homens verdes, os astrobiólogos e outros fanáticos por pesquisas espaciais concordavam sempre que, devido ao número e à capacidade de adaptação dos insetos da Terra, era grande a probabilidade de que, se um dia descobrissem uma forma de vida extraterrestre, ela se parecesse com um artrópode.
Os animais da classe Insecta pertencem ao filo Arthropoda — seres que possuem um exoesqueleto rígido e membros articulados. Com mais de 1,25 milhão de espécies conhecidas e uma estimativa de que ainda existam outras 500 mil a serem classificadas, todas as criaturas chamadas de artrópodes ultrapassam, em número, a soma dos outros animais existentes na Terra. Juntas, constituem 95% de todas as espécies do planeta e 40% da sua biomassa.
Não é só sua abundância que impressiona, mas também sua resistência. A exemplo do besouro que vive no gelo da Antártica e do escorpião do Vale da Morte, essas criaturas suportam, tranqüilamente, limites letais de temperatura, falta de umidade e mesmo pressão. Também podem resistir à exposição à força mais mortífera conhecida no universo — a radiação. Após um teste nuclear em 1945, oficiais da força aérea vestiram roupas de proteção contra a radiação e foram examinar o local da explosão, onde encontraram baratas e formigas que sobreviveram, ilesas, à explosão. Os astrônomos compreenderam que, devido a seu exoesqueleto protetor, os artrópodes eram os candidatos ideais a habitar incontáveis planetas banhados por altos níveis de radiação, onde nada mais poderia sobreviver.
Aparentemente os astrobiólogos estavam certos, pensou Tolland. ET é um artrópode.
Rachel sentia suas pernas bambas.
— Eu não posso... não posso acreditar — disse ela, revirando o fóssil em suas mãos. — Eu nunca achei que...
— Deixe que as idéias se assentem lentamente — disse Tolland. — Levou um dia inteiro para eu colocar minha cabeça de volta no lugar.
— Vejo que temos uma recém-chegada — disse um homem alto, de feições asiáticas, que havia andado até eles.
Corky e Tolland fizeram uma cara de desânimo. Aparentemente a mágica do momento havia sido quebrada.
— Sou o Dr. Wailee Ming — disse ele, apresentando-se. — Chefe de Paleontologia da Universidade da Califórnia.
Ele caminhava com a rigidez pomposa da aristocracia renascentista, continuamente mexendo na gravata-borboleta, um tanto deslocada no contexto, que usava por baixo de seu sobretudo de lã de camelo que descia até o joelho. Aparentemente Wailee Ming não era o tipo de pessoa que deixava que um local tão remoto atrapalhasse sua aparência altiva.
— Sou Rachel Sexton — ela ainda estava trêmula quando apertou a palma lisa da mão de Ming. Ele era, obviamente, outro dos cientistas recrutados pelo presidente.
— Terei grande prazer, senhorita Sexton, em lhe dizer tudo o que quiser a respeito desses fósseis — disse o paleontologista.
— E também muitas coisas que você não quer saber — resmungou Corky.
Ming ajeitou sua gravata— borboleta.
— Minha especialidade, em paleontologia, são artrópodes e migalomorfos. Obviamente a característica mais impressionante deste organismo encontrado no meteorito é que...
— ...é que ele vem de um outro planeta! — meteu-se Corky. .
Ming fez uma cara feia para ele, limpou a garganta e prosseguiu:
— A característica mais impressionante desse organismo é que ele se enquadra perfeitamente em nosso sistema darwiniano terrestre de taxonomia e classificação.
Rachel olhou para ele.
— Podem classificar essa coisa?
— Você quer dizer reino, filo, espécie... tudo isso?
— Exato — disse Ming. — Esta espécie, se fosse encontrada na Terra, seria classificada na ordem dos isópodes, um grupo com cerca de duas mil espécies.
— Mas é um bicho enorme!
— A taxonomia não se preocupa com questões de tamanho. Gatos domésticos e tigres são aparentados. A classificação diz respeito à fisiologia. Esta espécie é claramente um isópode: possui um corpo achatado, sete pares de pernas e um marsúpio estruturalmente idêntico aos dos tatuzinhos-de-jardim, tatus bolinha e baratas-da-praia. Os outros fósseis claramente revelam estruturas mais especializadas de...
— Que outros fósseis?
Ming olhou para Corky e Tolland.
— Ela ainda não sabe?
Tolland sacudiu a cabeça.
O rosto de Ming se encheu de alegria.
— Senhorita Sexton, então você ainda não ouviu a parte mais interessante!
— Há mais fósseis — intrometeu-se Corky, claramente tentando puxar o tapete de Ming. — Muitos mais. — O astrofísico correu até um grande tubo circular de papelão e tirou de dentro dele uma enorme folha de papel dobrada. Abriu-a sobre a mesa na frente de Rachel. — Depois de perfurarmos alguns pontos, descemos uma câmera de raios X até o meteorito. Esta é uma representação gráfica da seção central.
Rachel olhou para a impressão da imagem de raios X e logo em seguida teve que sentar-se. A seção transversal tridimensional do meteorito estava cheia, com dúzias desses animais.
— Resquícios paleolíticos — Ming disse — são geralmente encontrados em grande concentração. Muitas vezes, deslizamentos de terra prendem diversos organismos, cobrindo ninhos ou comunidades inteiras.
Corky deu uma risadinha.
— Estamos achando que a coleção dentro do meteorito representa um ninho. — Apontou para um dos espécimes na impressão. — Olha a mamãe aqui...
Rachel olhou para o espécime em questão e arregalou os olhos. O bicho parecia ter cerca de 60 centímetros de comprimento.
— Tatuzinho poderoso, não? — disse Corky.
Rachel assentiu, abismada, imaginando criaturas desse tamanho passeando na superfície de um planeta distante.
— Na Terra — disse Ming — os artrópodes não crescem muito porque a gravidade lhes impõe alguns limites. Não podem crescer mais do que seus exoesqueletos são capazes de suportar. Contudo, em um planeta com uma gravidade menor, eles poderiam crescer bem mais.
— Imagine como seria matar moscas do tamanho de águias — brincou Corky, pegando a amostra da mão de Rachel e colocando-a em seu bolso.
— É melhor não roubar isso! — reclamou Ming.
— Fique tranqüilo — disse Corky. — Temos mais oito toneladas desse material.
A mente de Rachel havia disparado e estava analisando os dados que acabara de receber.
— Mas como é possível que a vida no espaço seja tão similar à vida na Terra? Quero dizer, você falou que essa criatura se enquadra em nossa classificação darwiniana?
— Perfeitamente — disse Corky. — E, por mais incrível que pareça, muitos astrônomos haviam previsto que as formas de vida extraterrestres teriam que ser muito similares às terrestres.
— Mas... por quê? — perguntou Rachel. — Essa espécie vem de um ambiente completamente diferente.
— Panspermia — respondeu Corky, com um grande sorriso.
— Como?
— Panspermia é a teoria segundo a qual a vida foi semeada aqui a partir de um outro planeta.
— Agora você está me deixando perdida — disse Rachel. Corky virou-se para Tolland.
— Mike, você é o cara que gosta de falar sobre os mares primitivos.
Tolland parecia feliz por poder entrar em cena.
— A Terra já foi um planeta sem vida, Rachel. Então, subitamente, como se tivesse ocorrido algo da noite para o dia, a vida explodiu. Muitos biólogos acreditam que essa explosão de vida foi o resultado mágico de uma mistura ideal de elementos nos mares primitivos. Mas como nunca fomos capazes de reproduzir isso em laboratório, os estudiosos que são religiosos interpretam esse fracasso como uma prova da existência de Deus, ou seja, como uma evidência de que a vida não poderia existir a menos que Deus tivesse tocado esses mares primitivos e infundido vida neles.
— Mas nós, astrônomos — declarou Corky —, chegamos a uma outra explicação para a súbita explosão de vida na Terra.
— Panspermia — completou Rachel, que havia entendido a idéia geral. Ela já tinha ouvido falar daquela teoria antes, só não se lembrava de seu nome. — É a tese de que um meteorito caiu dentro da sopa primordial, trazendo as primeiras sementes de vida microscópica para a Terra.
— Exato! — disse Corky. — Onde foram percolados e geraram vida.
— Então, se isso for mesmo verdade — disse Rachel —, os ancestrais das formas de vida terrestres seriam idênticos aos das formas de vida extraterrestres.
— Novamente certo!
Panspermia, pensou Rachel, ainda com alguma dificuldade em compreender todas as implicações da nova descoberta.
— Então, não apenas esse fóssil confirma que existe vida em outro ponto do universo, mas praticamente prova a teoria da panspermia... De que a vida na Terra foi semeada a partir de outro lugar do universo.
— Triplamente correto! — Corky abriu um sorriso entusiasmado. — Tecnicamente, podemos todos ser extraterrestres. — Colocou seus dedos sobre a cabeça, como duas antenas, girou os olhos e balançou a língua, como se fosse algum tipo de inseto.
— E esse cara aí na sua frente é o auge da evolução — disse Tolland, rindo, para Rachel.
Rachel sentia-se como se estivesse imersa numa névoa de sonhos enquanto andava pela habisfera, acompanhada de Tolland. Corky e Ming vinham logo atrás.
— Tudo bem? — perguntou Tolland, olhando para ela.
— Sim, obrigada. É que... é muita novidade ao mesmo tempo — ela respondeu, com um sorriso confuso.
Sua mente retornou à vergonhosa descoberta da NASA em 1996 — ALH84001.
Um meteorito de Marte que a agência espacial dizia conter traços fossilizados de vida bacteriana. Infelizmente, poucas semanas após a triunfal coletiva de imprensa, diversos cientistas apresentaram evidências de que os “sinais de vida” existentes na rocha nada mais eram que querogênio produzido por contaminação terrestre. A credibilidade da NASA sofreu fortemente com aquele golpe.
Naquela mesma ocasião, o paleobiólogo Stephen Jay Gould resumiu os problemas referentes ao ALH84001 dizendo que os indícios divulgados eram químicos e que haviam sido estabelecidos por inferência, ao contrário de uma prova material, como uma concha ou um osso, que não deixariam ambigüidade alguma.
No meteorito da geleira Milne, porém, Rachel viu que a NASA havia encontrado provas irrefutáveis. Nenhum cientista, por mais cético que fosse, poderia pensar em questionar aqueles fósseis. A agência não estava mais tentando vender uma idéia baseada em fotografias borradas e ampliadas de supostas bactérias microscópicas. A NASA tinha agora amostras reais de um meteorito no qual bioorganismos visíveis a olho nu haviam sido aprisionados na pedra. Isópodes com mais de 30 centímetros de comprimento!
Rachel deu uma risadinha ao se lembrar de que, quando era jovem, adorava uma música de David Bowie que se referia a “aranhas de Marte”.
Quem diria que o pop star inglês chegaria tão perto de prever o auge da astrobiologia.
Enquanto uma vaga lembrança da música perpassava a mente de Rachel, Corky aproximou-se dela e perguntou:
— Mike já teve a oportunidade de se vangloriar a respeito de seu documentário?
— Não, mas eu adoraria que vocês me contassem.
Corky teu um tapinha nas costas do amigo.
— Vamos lá, garotão. Diga a ela por que o presidente decidiu que o momento mais importante da história da ciência deveria ser explicado por um astro da TV que passa parte da vida nadando por aí.
Tolland resmungou:
— Corky, dá para ficar quieto um pouco?
— Tudo bem, eu mesmo explico — disse o astrofísico, metendo-se entre os dois. — Como você provavelmente já sabe, senhorita Sexton, o presidente dará uma coletiva hoje à noite para contar a todos sobre o meteorito. Como a vasta maioria do planeta é constituída por pessoas de inteligência limitada, o presidente pediu a Mike que entrasse em cena e simplificasse bastante as coisas para que todos conseguissem entender essa história de meteorito.
— Obrigado pela explicação, Corky — disse Tolland. — Muito gentil de sua parte. — Olhou para Rachel. — O que ele está tentando dizer é que, como há muitos dados científicos que precisam ser explicados, o presidente achou que um pequeno documentário sobre o meteorito, com imagens, ajudaria a tornar a informação mais acessível para o grande público. Curiosamente, Corky, a maior parte das pessoas não possui pós-graduação em astrofísica.
— Você sabia — prosseguiu Corky, zombeteiro — que eu descobri há pouco que o presidente é um admirador secreto de Maravilhas dos mares? — Depois balançou a cabeça, em profundo desgosto. — Zach Herney, soberano do mundo livre, obriga sua secretária a gravar o programa de Mike para que ele possa relaxar após um longo dia de trabalho.
Tolland deu de ombros.
— Fazer o que, se o homem tem bom gosto?
Rachel começava agora a compreender quão astucioso era o plano do presidente. A política era um jogo de mídia, e ela já podia imaginar o entusiasmo e a credibilidade científica que o rosto de Michael Tolland traria àquela coletiva. Zach Herney havia convocado o homem ideal para embasar seu pequeno golpe com a NASA. Os céticos teriam dificuldades em questionar os dados apresentados pelo presidente se fossem anunciados pela maior personalidade em matéria de difusão científica na televisão, assim como por vários cientistas de renome.
— Mike já pegou depoimentos da maioria de nós para o seu documentário, assim como dos principais especialistas da NASA. E eu aposto minha Medalha Nacional de Mérito que você é a próxima na lista — disse Corky.
Rachel virou-se e olhou para ele.
— Eu? Do que você está falando? Não tenho nenhum currículo nessa área. Sou uma agente de ligação que atua na área de inteligência.
— E por que mais o presidente mandaria você para cá?
— Ele ainda não me disse.
Corky deu um sorriso matreiro.
— Você é uma agente de ligação da Casa Branca, da área de inteligência, que lida com a depuração e autenticação de dados, certo?
— Sim, mas nada disso tem a ver com ciência.
— E também é filha do homem que construiu toda a sua campanha em torno das críticas ao dinheiro gasto pela NASA no espaço, não é?
Rachel estava se preparando para o que viria a seguir.
— Você tem que admitir, senhorita Sexton — disse Ming, entrando na conversa —, que um depoimento de sua parte aumentaria substancialmente a credibilidade desse documentário. Se o presidente a enviou até aqui, é porque ele quer que você participe de alguma forma.
Rachel mais uma vez lembrou-se das preocupações de William Pickering de que ela estivesse sendo usada. Tolland olhou para o relógio.
— Melhor irmos para lá — disse ele, apontando para o centro da habisfera. — Devem estar quase terminando.
— Terminando o quê? — ela perguntou.
— A extração. A NASA está trazendo o meteorito para a superfície. Deverá emergir a qualquer momento.
Rachel ficou perplexa.
— Vocês estão mesmo retirando uma rocha de oito toneladas de dentro de 60 metros de gelo sólido?
Corky olhou para ela, radiante.
— Você não acha que a NASA iria deixar uma descoberta de tamanhas proporções enterrada no gelo, não é?
— Bem, não, mas...
Rachel não vira nenhum sinal de equipamentos de escavação de grande porte dentro da habisfera.
— E exatamente como a NASA está pensando em retirar o meteorito?
Corky empertigou-se.
— Isso é fácil. Você está numa sala cheia de cientistas espaciais!
— Tolice — retrucou Ming, olhando para Rachel. — O doutor Marlinson gosta de contar vantagem mesmo que o mérito não seja seu. A verdade é que ninguém sabia como retirar o meteorito. Foi Mangar quem propôs uma solução viável.
— Ainda não encontrei Mangor.
— Glaciologista da Universidade de New Hampshire — disse Tolland. — Quarto e último membro civil da equipe de cientistas convocada pelo presidente. E Ming está certo, foi Mangor quem bolou a solução.
— OK — disse Rachel. — E o que, exatamente, esse cara propôs?
— Essa mulher — corrigiu Ming, soando ressentido. — A doutora Mangor é uma mulher.
— Bastante questionável — murmurou Corky. E, virando-se para Rachel, acrescentou: — E, por falar nisso, ela provavelmente vai odiar você.
Tolland disparou um olhar zangado para Corky.
— Mas é verdade! — defendeu-se. — Ela vai odiar ter uma concorrente.
Rachel estava perdida na conversa.
— Como assim, concorrente?
— Não dê muita bola para esse cara — disse Tolland. — Infelizmente, o fato de que Corky é um retardado completo por algum motivo passou despercebido pelo Comitê Nacional de Ciências. Você e a doutora Mangor vão se dar muito bem. Ela é uma excelente profissional, considerada uma das melhores glaciologistas do planeta. Na verdade, ela foi morar na Antártica durante alguns anos para estudar os movimentos das geleiras.
— Curioso — meteu-se Corky. — Eu tinha ouvido dizer que a universidade dela recebeu uma doação e decidiu enviá-la para lá de forma que pudessem ter um pouco de paz e silêncio no campus.
— Você por acaso se lembra — Ming reagiu, irritado, como se o comentário fosse algo pessoal — de que a doutora Mangor quase morreu por lá? Ela se perdeu em uma tempestade e teve que sobreviver comendo gordura de foca durante cinco semanas antes que fosse resgatada.
Corky sussurrou para Rachel:
— Ouvi dizer que ninguém estava procurando por ela.
O trajeto de Limusine dos estúdios da CNN para o escritório de Sexton pareceu interminável para Gabrielle. O senador estava sentado à sua frente, olhando pela janela, obviamente festejando seu desempenho no debate.
— Mandaram Tench para um programa vespertino de televisão — ele disse, virando-se com um belo sorriso. — A Casa Branca está ficando desesperada.
Gabrielle balançou a cabeça, incerta. Ela entrevira um olhar de satisfação quando Marjorie Tench saiu, e aquilo a deixou apreensiva.
O telefone celular pessoal de Sexton tocou e ele enfiou a mão no bolso para pegá-lo. O senador, como a maioria dos políticos, tinha uma hierarquia de números de telefone através dos quais podia ser contatado, dependendo de quão importante fosse o interlocutor. Quem estava ligando naquele momento ocupava obviamente o topo da lista: a chamada era para a linha pessoal de Sexton, um número para o qual mesmo Gabrielle evitava ligar.
— Senador Sedgewick Sexton — ele disse ao atender, realçando a sonoridade de seu nome.
Gabrielle não podia ouvir quem estava do outro lado da linha em meio aos sons que entravam pela limusine, mas Sexton estava prestando bastante atenção e respondendo de forma animada.
— Excelente. Estou muito feliz por você ter ligado. Podemos marcar às seis? Ótimo. Tenho um apartamento aqui na capital. Discreto e confortável. Você já tem o endereço, não é? Certo. Vai ser bom encontrá-lo. Nos vemos à noite, então.
Sexton desligou, parecendo muito feliz consigo mesmo.
— Um novo fã de Sexton? — perguntou Gabrielle.
— É, estão se multiplicando. Esse cara é um peso pesado.
— Deve ser. Para encontrá-lo em seu próprio apartamento... — Sexton em geral defendia a santa privacidade de seu apartamento como um leão protegendo seu último esconderijo.
Ele deu de ombros.
— É. Achei que valia a pena dar um toque pessoal. Esse cara pode dar uma força na reta final. Preciso continuar com esses encontros pessoais, você sabe. Tudo depende de confiança.
Gabrielle assentiu, pegando a agenda de Sexton.
— Você quer que eu inclua o encontro na sua agenda?
— Não é necessário. Eu já havia planejado ficar em casa à noite de qualquer forma.
Gabrielle encontrou a página referente àquela noite e reparou que já estava rabiscada com a letra do senador. Havia sido marcada com “A.P.” — a abreviatura que ele criara para assuntos pessoais. De tempos em tempos, o senador agendava uma noite de “A.P.” para que pudesse ficar enfurnado em seu apartamento, desligar todos os telefones e fazer aquilo de que mais gostava: tomar alguns copos de conhaque com velhos amigos e fazer de conta que tinha deixado a política de lado durante aquela noite.
Gabrielle olhou para ele, surpresa.
— Nossa. Quer dizer que você está deixando um encontro de negócios entrar em um tempo previamente reservado para seus assuntos pessoais? Estou impressionada.
— Esse cara conseguiu me achar em uma noite na qual tenho algum tempo livre. Queria conversar com ele. Ver o que tem a me dizer.
Gabrielle queria perguntar quem era a pessoa misteriosa ao telefone,mas Sexton estava sendo intencionalmente evasivo, e ela já havia aprendido quando era hora de ficar calada.
O carro saiu do cinturão periférico e entrou nas vias menores, em direção ao escritório de Sexton. A assistente olhou novamente para o tempo destinado a “A.P.” na agenda do senador e teve a estranha sensação de que ele já esperava aquela chamada.
O centro da habisfera da NASA destacava-se uma estrutura com três pés, de pouco mais de cinco metros de altura, constituída de um andaime modular. Parecia uma combinação de torre de exploração de petróleo com um modelo maluco da Torre Eiffel. Rachel observou o dispositivo, mas foi incapaz de imaginar como aquilo poderia ser usado para extrair o enorme meteorito.
Abaixo da torre, diversos guinchos haviam sido aparafusados em folhas de metal que, por sua vez, foram fixadas no gelo com grandes pinos.
Enroscados em volta dos guinchos, cabos de aço subiam por uma série de polias até o alto da torre. De lá, mergulhavam verticalmente em furos estreitos abertos no gelo por perfuratrizes. Vários trabalhadores musculosos da NASA se revezavam na tarefa de girar as manivelas dos guinchos. A cada nova volta, os cabos deslizavam alguns centímetros para cima através dos furos, como se os homens estivessem puxando uma âncora.
Obviamente há algo que não estou entendendo, pensou Rachel, enquanto ela e os outros se aproximavam do local da extração. Os homens da NASA pareciam estar erguendo o meteorito diretamente através do gelo.
— MANTENHAM A TENSÃO CONSTANTE! MAS QUE DROGA! — gritou uma voz feminina por perto, com a suavidade de uma serra elétrica.
Rachel olhou na direção da voz e viu uma mulher baixa usando uma roupa de proteção contra o frio amarela e suja de graxa. Ela estava de costas para Rachel, mas ainda assim não havia a menor dúvida de que estava no comando da operação. Fazendo anotações em uma prancheta, a mulher andava de um lado para o outro, observando, como um treinador agitado.
— Não me digam que as donzelas já estão cansadas! — Corky gritou:
— Ei, Norah, pare de chatear esses pobres coitados e venha aqui para um papo mais íntimo.
A mulher nem se virou.
— É você, Marlinson? Posso reconhecer essa voz fina de longe. Volte quando tiver passado da puberdade.
Corky virou-se para Rachel e disse:
— Norah mantém nosso moral alto com seu charme.
— Eu ouvi o que disse, menino-prodígio — respondeu a doutora Mangor, ainda anotando coisas na prancheta. — E, se você estiver olhando para minha bunda, saiba que estas calças para neve acrescentam uns 15 quilos.
— Sem problemas — respondeu Corky. — Não é seu bumbum de elefante que me enlouquece, é sua personalidade magnética.
— Vá se danar!
Corky riu novamente.
— Tenho boas notícias, Norah. Parece que você não foi a única mulher que o presidente recrutou.
— Não é preciso dizer, sei que ele também chamou você.
Tolland achou melhor intervir.
— Norah? Você tem um instante? Gostaria de lhe apresentar alguém.
Ao ouvir a voz de Tolland, a glaciologista parou no mesmo instante o que estava fazendo e virou— se. Seu jeitão rude mudou rapidamente.
— Mike! — Ela se aproximou depressa, sorrindo efusivamente. — Há horas que não o vejo.
— Eu estava editando o documentário.
— Como ficou minha parte?
— Você está linda e brilhante.
— Ele usou efeitos especiais — meteu-se Corky.
Norah ignorou a piada e virou-se para Rachel, com um sorriso polido mas orgulhoso. Depois, olhou de volta para Tolland.
— Espero que você não esteja me traindo, Mike.
Tolland ficou ligeiramente corado enquanto fazia as apresentações.
— Norah, gostaria de lhe apresentar Rachel Sexton. Ela trabalha para a comunidade de inteligência e está aqui a pedido do presidente. É filha do senador Sedgewick Sexton.
A cientista ficou visivelmente confusa.
— Não vou nem fazer de conta que entendi — disse ela, cumprimentando.Rachel com um aperto de mão frouxo e sem se dar ao trabalho de tirar as luvas. — Bem-vinda ao topo do mundo.
— Obrigada — sorriu Rachel.
Estava surpresa de ver que Norah Mangor, apesar da dureza de sua voz, tinha uma fisionomia simpática e até meio travessa. Seus cabelos, com um corte desfiado, eram castanhos com luzes grisalhas, e seus olhos eram penetrantes e vivazes — dois cristais de gelo. Havia nela uma confiança ferrenha de que Rachel gostava.
— Norah — disse Tolland —, você teria um tempinho para mostrar o que está fazendo para Rachel?
A glaciologista levantou as sobrancelhas, irônica.
— Ora, ora, já estão íntimos assim?
Corky sussurrou:
— Eu te avisei, Mike.
Norah Mangor andou com Rachel em torno da base da torre, enquanto Tolland e os outros seguiam um pouco atrás, conversando entre si.
— Está vendo esses buracos feitos no gelo sob o tripé? — perguntou Norah, apontando. Seu tom de voz inicialmente frio foi se suavizando à medida que falava de seu trabalho.
Rachel assentiu, olhando para baixo pelos furos no gelo. Cada buraco tinha cerca de 30 centímetros de diâmetro e era atravessado por um cabo de metal.
— Fizemos essas perfurações para obter amostras e tirar raios X do meteorito. Depois resolvemos aproveitá-las como pontos de entrada para descer alguns parafusos de anel resistentes através dos poços vazios e atarraxá-los no meteorito. Em seguida descemos algumas centenas de metros de cabo trançado por cada um dos furos, pescamos os anéis com ganchos industriais e agora estamos apenas içando o meteorito. Essas “damas” aí em volta estão levando várias horas para trazê-lo até a superfície, mas está chegando.
— Há uma coisa que não entendo — disse Rachel. — O meteorito está debaixo de milhares de toneladas de gelo. Como estão fazendo para levantá-lo?
Norah apontou para o alto do andaime, onde havia um feixe de luz vermelha brilhante descendo verticalmente na direção do gelo abaixo do tripé. Rachel já havia notado aquilo, mas pensou que era algum tipo de marcador visual, como uma linha mostrando a localização exata do meteorito.
— É um laser semicondutor de arseneto de gálio — disse Norah.
Rachel olhou mais atentamente para o feixe de luz e pôde ver que ele realmente havia feito um fino buraco no gelo e estava brilhando nas profundezas.
— Gera um feixe muito quente. Estamos aquecendo o meteorito enquanto o içamos.
Foi então que Rachel entendeu o quanto o plano traçado por aquela mulher era simples e brilhante. Norah havia apontado o laser para baixo, derretendo o gelo até que atingisse o meteorito. A pedra, densa demais para ser fundida pelo feixe de luz, começou a absorver o calor do laser e eventualmente ficou quente o suficiente para liquefazer o gelo à sua volta. À medida que os homens da NASA puxavam o meteorito, a rocha aquecida, combinada com a pressão para cima, fazia com que o gelo em volta se derretesse, abrindo caminho para trazê-lo à superfície. A água que se acumulava sobre o meteorito escorria pela pedra, mantendo o poço abaixo cheio. Como uma faca quente cortando um pedaço de manteiga congelada.
Norah apontou para os trabalhadores que estavam operando os guinchos.
— Os geradores não agüentam tanta pressão, então estou usando os homens para içar a rocha.
— Isso é mentira! — gritou um deles. — Ela está fazendo isso porque gosta de nos ver suar!
— Relaxe — retrucou Norah. — Vocês estavam reclamando por conta de resfriados. Agora estão todos curados. Vamos lá, mais força!
Os trabalhadores riram.
— E para que servem os cones? — perguntou Rachel, apontando para vários cones laranja do tipo usado em estradas que estavam posicionados em volta da torre em lugares aparentemente aleatórios.
Ela já havia notado outros daqueles cones espalhados por todo o domo.
— Equipamento fundamental para qualquer glaciologista. É um alerta de que pisar aí pode significar um tornozelo ou mesmo um pescoço quebrado. — Ela levantou um dos cones e mostrou a perfuração circular que mergulhava, como um poço sem fundo, nas profundezas da geleira. — Diria que é um lugar bem ruim para alguém pisar. — Recolocou o cone no lugar. — Fizemos perfurações em diversas partes da geleira para testar a continuidade estrutural. Normalmente, nos estudos arqueológicos, o número de anos que um objeto esteve enterrado é indicado pela profundidade em que foi encontrado. Quanto mais profundo estiver, mais antigo será. Então, quando encontramos algo sob o gelo, podemos datar o objeto de acordo com a quantidade de gelo que se acumulou sobre ele. Para termos certeza de que nossa datação do meteorito está correta, verificamos diversas áreas da geleira para confirmar que esta região é constituída por um bloco maciço e não foi perturbada por terremotos, fissuras, avalanches ou qualquer outro fenômeno.
— E qual foi a avaliação desta geleira?
— Perfeita. Está absolutamente inteira, sem nenhuma falha estrutural ou correntes internas de convecção. Dizemos que este meteorito é uma “queda estática”. Ele permaneceu no gelo, intocado e isolado de influências externas, desde que aterrissou aqui, em 1716.
Rachel olhou para ela, incrédula.
— Você sabe o ano exato em que ele caiu? Norah ficou surpresa com a pergunta.
— Claro que sim! Foi por isso que me chamaram. Eu “leio” gelo. — Ela apontou para uma pilha de tubos cilíndricos de gelo próximos a elas.
Cada um se parecia com um poste translúcido e estava marcado com uma etiqueta laranja fosforescente. — Essas amostras são um registro geológico congelado. — Levou Rachel até os tubos. — Se você olhar com atenção, verá as camadas individuais dentro do gelo.
Rachel agachou-se perto de um tubo e pôde perceber que, de fato, ele era feito do que pareciam ser camadas de gelo com diferenças sutis de luminosidade e transparência. As camadas variavam de espessura, indo de algo próximo a uma folha de papel até cerca de meio metro.
— Cada inverno traz uma nova precipitação de gelo à plataforma — explicou Norah —, e cada primavera provoca um degelo parcial. Então vemos uma nova camada de compressão a cada estação. Começamos pelo topo, que indica o inverno mais recente, e vamos contando para trás.
— É como contar anéis em um tronco de árvore, então? — perguntou Rachel.
— Não é assim tão simples, senhorita Sexton. Lembre-se, estamos medindo centenas de metros de camadas. Precisamos ler também os dados climatológicos para usá-los como referência no trabalho: registros de precipitação, poluição do ar, essas coisas.
Tolland e os outros haviam se juntado a elas agora. O oceanógrafo sorriu para Rachel e disse:
— Ela sabe tudo sobre gelo, não é?
Rachel sentiu-se estranhamente feliz ao vê-lo.
— É incrível.
— A datação da doutora Mangor, de 1716, está absolutamente correta. A NASA havia concluído exatamente isso antes que chegássemos aqui. Ela fez suas próprias perfurações, retirou suas amostras, fez seus testes e confirmou o trabalho da agência — disse Tolland.
Rachel estava impressionada.
— Coincidentemente — Norah prosseguiu —, o ano de 1716 é exatamente o mesmo em que alguns exploradores relataram ter visto uma brilhante bola de fogo cruzando os céus sobre o norte do Canadá. O meteoro foi batizado como Jungersol, em homenagem ao líder da exploração.
— Então — acrescentou Corky — o fato de que a datação da amostra e os registros históricos coincidem é uma prova muito forte de que estamos olhando para um fragmento do mesmo meteorito que Jungersol disse ter visto em 1716.
— Doutora Mangor! — gritou um dos trabalhadores da NASA. — Já podemos ver as primeiras amarras!
— A visita acabou, pessoal — disse Norah. — Chegou a hora da verdade. — Pegou uma cadeira dobrável, subiu nela e gritou o mais alto que pôde: — Atenção, todo mundo! O meteorito estará na superfície em cinco minutos.
De todos os pontos do domo, como cachorros de Pavlov respondendo ao sinal para o jantar, os cientistas largaram o que estavam fazendo e se dirigiram para a zona de extração.
Norah Mangor colocou as mãos na cintura e observou seus domínios.
— Muito bem, vamos trazer o Titanic à tona.
— Vamos, afastem-se! — gritou Norah, movendo-se por entre o grupo de pessoas que se amontoavam. Os trabalhadores abriram espaço. Ela assumiu o controle da situação, dando um pequeno show ao examinar a tensão dos cabos e seus alinhamentos.
— Puxem! — gritou um dos homens da NASA. Os outros giraram suas manivelas e os cabos subiram mais 15 centímetros.
Enquanto os cabos continuavam a subir, Rachel percebeu que todos se inclinavam para a frente, antecipando o momento tão esperado. Corky e Tolland estavam ao lado dela, rostos iluminados como se fossem crianças no Natal. Do outro lado do buraco surgiu a enorme figura do administrador da NASA, Lawrence Ekstrom, procurando um bom local para observar a extração.
— Argolas! — gritou um dos homens. — As guias estão visíveis.
Os cabos de aço que saíam dos furos passaram de um metal trançado prateado para uma cor amarelada.
— Mais dois metros! Mantenham o ritmo!
O grupo em torno do andaime manteve um silêncio extasiado, como espectadores em uma sessão espírita aguardando a aparição de um espectro divino, cada um se esforçando para ter o primeiro vislumbre.
Então Rachel pôde vê-lo.
Emergindo da camada cada vez mais fina de gelo, a forma ainda indefinida do meteorito começou a se tornar mais clara. A mancha era retangular e escura, inicialmente borrada, mas se tornando mais nítida conforme se aproximava da superfície.
— Apertem! — gritou um técnico. Os homens forçaram as manivelas e os andaimes rangeram.
— Falta um metro e meio! Mantenham a tensão homogênea!
Rachel já podia ver a protuberância criada no gelo pelo meteorito, como uma besta grávida prestes a dar à luz. Acima da saliência, em volta do ponto de entrada do laser, um pequeno círculo de gelo superficial começou a ceder, dissolvendo-se e abrindo um buraco cada vez maior.
— O colo está se dilatando! — alguém gritou. — Novecentos centímetros!
Uma risada tensa quebrou o silêncio.
— OK, desliguem o laser.
Alguém acionou um controle e o feixe sumiu. Então, finalmente, chegou o momento que todos esperavam.
Como a chegada de um deus paleolítico, a enorme rocha surgiu na superfície com um chiado de vapor. Em meio à névoa, a forma colossal saiu do gelo. Os homens que controlavam as manivelas fizeram mais força, até que finalmente toda a rocha se desprendeu dos últimos vestígios de gelo e oscilou, quente e pingando, sobre um poço aberto de água ainda agitada.
Rachel estava hipnotizada.
Suspenso pelos cabos, com sua superfície rugosa, carbonizada e irregular brilhando sob as luzes halógenas, o meteorito parecia uma ameixa seca e petrificada. A rocha era lisa e arredondada em um dos cantos, aparentemente a parte que fora desbastada pela fricção enquanto ela cruzava a atmosfera.
Olhando para a crosta de fusão carbonizada, Rachel quase podia ver o meteoro rasgando os céus em direção à superfície da Terra em uma furiosa bola de fogo. Inacreditável pensar que isso havia sido há poucos séculos. Agora o gigante capturado pendia ali, dos cabos de aço, a água ainda escorrendo de sua superfície.
A caçada havia terminado.
Foi só naquele momento que Rachel realmente percebeu a dramaticidade do evento. O objeto suspenso diante dela viera de outro mundo, separado da Terra por milhões de quilômetros. E presa em seu interior havia a evidência — não, havia a prova de que o homem não estava sozinho no universo.
A euforia daquele momento pareceu tomar conta de todos ao mesmo tempo, e o grupo ali reunido irrompeu em assobios e aplausos. Até mesmo o administrador estava emocionado. Ele dava tapinhas nas costas dos homens e mulheres da NASA, congratulando-os. Olhando em volta, Rachel sentiu-se feliz pela NASA. A agência havia passado por tempos difíceis, mas as coisas estavam mudando. Eles mereciam aquele momento.
O grande buraco no gelo assemelhava-se agora a uma pequena piscina no meio da habisfera. A superfície dessa “piscina” de 60 metros de profundidade agitou-se por alguns momentos contra as paredes geladas do poço e depois, ao poucos, ficou plácida. A linha-d’água do poço estava a cerca de 1,5 metro abaixo da superfície da geleira, sendo essa diferença causada tanto pela remoção da massa do meteorito quanto pela propriedade que o gelo tem de se encolher ao derreter.
Norah rapidamente espalhou seus cones ao redor do buraco. Apesar de ser claramente visível, qualquer pessoa curiosa que chegasse perto demais e escorregasse acidentalmente dentro dele correria risco de vida. As paredes do poço eram feitas de gelo sólido, sem apoio algum, e sair de lá sem ajuda seria impossível.
Lawrence Ekstrom caminhou através do gelo na direção deles. Foi primeiro até Norah e apertou sua mão, entusiasmado.
— Grande feito, doutora Mangor.
— Espero ler muitos elogios em futuros artigos — respondeu a glaciologista.
— Com certeza! — O administrador virou-se então para Rachel. Parecia mais feliz, aliviado, até. — Então, senhorita Sexton: nossa cética profissional está convencida?
Rachel não pôde deixar de sorrir.
— Diria que estou abismada.
— Ótimo. Então venha comigo.
Rachel seguiu o administrador pela habisfera até chegarem a um grande contêiner de metal, pintado com padrões de camuflagem militar.
— Você poderá falar com o presidente daí de dentro — disse Ekstrom.
Uma cabine de comunicação segura, pensou ela. Era comum em frentes de batalha, mas Rachel não esperava encontrar uma delas numa missão de paz da NASA. Por outro lado, Ekstrom já havia trabalhado no Pentágono, então certamente tinha acesso fácil a instalações daquele tipo.
Olhando para a expressão rígida dos dois guardas armados que estavam a postos à frente da cabine, ela teve a nítida impressão de que o contato com o mundo externo só podia ser feito com a autorização expressa do administrador.
Ekstrom falou rapidamente com um dos guardas do lado de fora do
trailer e depois retornou até onde Rachel estava.
— Boa sorte — disse ele, e depois partiu.
Um dos guardas bateu na porta do trailer e ela foi aberta de dentro.
Um técnico surgiu e fez sinal para que Rachel entrasse. Ela o seguiu.
O interior da cabine era escuro e apertado. A única luz lá dentro vinha de um monitor de computador, e seu brilho azulado permitia que fossem entrevistos equipamentos de telefonia, rádios e dispositivos de telecomunicação por satélite. Rachel já se sentia um pouco claustrofóbica. O ar da cabine era carregado, como o de um porão.
— Por favor, sente-se aqui, senhorita Sexton. — O técnico puxou um banco com rodinhas e colocou Rachel na frente do monitor de LCD.
Depois posicionou um microfone bem na frente dela e colocou um enorme fone de ouvido AKG em sua cabeça. O técnico verificou uma listagem de senhas de encriptação, depois digitou uma longa seqüência de letras e números em um teclado próximo. Um contador surgiu na tela diante de Rachel.
00:60 SEGUNDOS
O técnico pareceu satisfeito com aquilo e disse:
— Um minuto para estabelecimento da conexão. — Virou-se e saiu, batendo a porta atrás dele. Rachel ainda pôde ouvi-lo fechando a tranca do lado de fora.
Ótimo.
Enquanto esperava ali, no escuro, olhando a contagem regressiva de 60 segundos passar lentamente, ela se deu conta de que era o primeiro-momento de privacidade que tinha desde o início daquela manhã. Havia acordado naquele dia sem a menor noção do que iria acontecer. Vida extraterrestre. A partir daquele dia, o mito mais popular dos tempos modernos deixava de ser um mito.
Rachel começou a pensar em quão devastador aquele meteorito seria para a campanha de seu pai. Embora as verbas da NASA não devessem ser colocadas no mesmo plano que a discussão sobre o aborto, a aposentadoria e a saúde pública, seu pai havia transformado aquilo em uma questão política. Agora a bomba iria estourar no colo dele.
Dentro de algumas horas, os americanos sentiriam novamente a emoção de um grande triunfo da NASA. Haveria sonhadores com lágrimas nos olhos. Cientistas boquiabertos. Crianças com sua imaginação fértil funcionando a mil As questões de dólares e centavos iriam parecer migalhas, completamente ofuscadas por aquele evento monumental. O presidente ressurgiria das cinzas como uma fênix, transformando-se em herói. No meio de todas as celebrações, o senador, com sua mentalidade de contador, ficaria com a imagem de um pão-duro morrinha, sem nenhuma compreensão do sentimento de aventura da América.
O computador emitiu um bip, e Rachel voltou a prestar atenção na tela.
00:05 SEGUNDOS
O monitor diante dela piscou brevemente e, em seguida, surgiu uma imagem borrada do selo da Casa Branca. Logo depois a imagem deu lugar à face do presidente Herney.
— Olá, Rachel — disse ele, com um brilho travesso no olhar. — Suponho que você tenha tido uma manhã movimentada, não?
O escritório do Senador Sedgewick Sexton ficava em um edifício de gabinetes do Senado na Rua C, a nordeste do Capitólio. A construção era uma justaposição neomoderna de retângulos brancos que os críticos diziam parecer mais uma prisão do que um prédio de escritórios. Muitos dos que trabalhavam lá sentiam exatamente o mesmo.
No terceiro andar, Gabrielle Ashe andava nervosamente de um lado para o outro em frente de seu terminal de computador. Havia uma nova mensagem de e-mail em sua tela e ela não sabia bem o que pensar a respeito.
As duas primeiras linhas diziam:
SEDGEWICK FOI IMPRESSIONANTE NA CNN. TENHO MAIS INFORMAÇÕES PARA VOCÊ.
Ela vinha recebendo mensagens desse tipo nas últimas semanas. O endereço do remetente era falso, mas ainda assim ela havia conseguido estabelecer um vínculo com o domínio “whitehouse.gov”. Aparentemente, seu misterioso informante era alguém de dentro da Casa Branca e, independentemente de sua real identidade, havia se tornado a fonte de Gabrielle para diversas informações políticas de grande valor nos últimos tempos, como aquela notícia sobre a reunião secreta entre o administrador da NASA e o presidente.
No início, ela havia ficado desconfiada dos e-mails. Porém, à medida que foi verificando a veracidade das dicas, ficou impressionada ao descobrir o quanto as informações eram corretas e úteis. Iam desde informações secretas sobre gastos excessivos da NASA, missões futuras acima do orçamento, dados mostrando que a busca por vida extraterrestre havia recebido verbas incrivelmente exageradas e até mesmo pesquisas de opinião internas demonstrando que a agência espacial era a questão que estava retirando votos do atual presidente.
Para fazer com que o senador achasse que ela tinha um valor ainda maior, Gabrielle nunca lhe contara que estava recebendo e-mails anônimos vindos de dentro da Casa Branca. Apenas repassava as informações dizendo que tinham vindo de “uma de suas fontes”. Sexton se mostrava agradecido e já estava naquele jogo tempo suficiente para não perguntar qual era a fonte. Para Gabrielle, estava claro que ele suspeitava de que ela estava trocando favores sexuais pelas informações. O mais perturbador é que isso não parecia incomodá-lo.
Ela parou de andar e olhou novamente para a mensagem que havia chegado. As conotações de todos os e-mails eram claras: alguém de dentro da Casa Branca queria que o senador Sexton ganhasse aquela eleição e o estava ajudando, fornecendo munição para seu ataque contra a NASA.
Mas quem seria? E por quê?
Um rato abandonando o navio antes do naufrágio, ela concluíra. Em Washington, algumas vezes ocorria que um funcionário da Casa Branca, com medo de que seu presidente estivesse prestes a perder o posto, fizesse alguns favores discretos para o possível sucessor, na esperança de manter seu poder ou obter um cargo após a futura posse.
Aparentemente alguém estava sentindo o cheiro da vitória de Sexton e tinha resolvido investir no mercado de futuros.
Mas, ao ler novamente a mensagem na tela do seu computador, Gabrielle ficou nervosa. Não se parecia com nenhuma outra das que havia recebido. As primeiras linhas não a preocupavam. O problema eram as duas últimas:
PORTÃO DE ENCONTROS DA ALA LESTE, 16h30. VENHA SOZINHA.
Seu informante nunca pedira para encontrá-la pessoalmente. E, mesmo assim, Gabrielle teria esperado um local mais sutil para um encontro pessoal. Até onde ela sabia, só existia um lugar com esse nome em Washington — e ficava do lado de fora da Casa Branca. O que era aquilo, uma piada?
Gabrielle sabia que não podia responder por e-mail, já que as mensagens sempre voltavam com o aviso de que o destinatário não existia. A conta de seu correspondente era anônima, o que não era surpresa alguma, claro.
Devo consultar Sexton? Decidiu rapidamente que não seria uma boa idéia: ele estava em uma reunião. Além disso, se ela lhe contasse sobre aquele e-mail, teria que falar também sobre os outros. Ela concluiu que a oferta de seu informante de encontrá-la em público, em plena luz do dia, deveria ser para que Gabrielle se sentisse segura.
Afinal, tudo o que aquela pessoa fizera nas últimas semanas havia sido para ajudá-la. Fosse lá quem fosse, obviamente era amigável.
Lendo o e-mail uma última vez, Gabrielle olhou para o relógio. Ainda tinha uma hora pela frente.
O administrador da NASA estava se sentindo mais tranqüilo agora que o meteorito havia sido removido do gelo sem maiores problemas. Tudo está se encaixando, pensou consigo mesmo enquanto atravessava o domo em direção à área de trabalho de Tolland. Nada mais pode nos deter.
— Como está indo seu trabalho? — Ekstrom perguntou, colocando-se ao lado do cientista da televisão.
Tolland tirou os olhos do computador, parecendo cansado mas animado.
— A edição está quase pronta. Só estou acrescentando algumas imagens da extração do meteorito que seu pessoal acabou de fazer. Deve estar pronto daqui a pouco.
— Ótimo.
O presidente tinha pedido que Ekstrom enviasse o arquivo com o documentário de Tolland para a Casa Branca tão cedo quanto possível.
Apesar de ter se mostrado inicialmente contrário ao desejo do presidente de chamar Tolland para esse projeto, Ekstrom mudara de idéia depois de ver uma versão preliminar do documentário. Sua narrativa inspiradora, combinada com as entrevistas feitas com os cientistas, havia sido editada para produzir 15 minutos emocionantes e didáticos de informações científicas. Com pouco esforço, Tolland fora bem-sucedido num quesito em que a NASA freqüentemente costumava falhar: descrever uma descoberta científica em um nível que o público comum pudesse entender, mas sem parecer condescendente.
— Quando tiver terminado a edição — disse Ekstrom —, por favor traga a versão final para a área de imprensa. Vou pedir a alguém que transmita uma cópia digital para a Casa Branca.
— Sim, senhor — respondeu Tolland, voltando a trabalhar.
O administrador seguiu em frente. Quando chegou à parede norte, ficou feliz por ver que a “área de imprensa” da habisfera tinha sido concluída a contento. Um grande carpete azul fora colocado sobre o gelo. No centro do carpete havia uma longa mesa de conferências com diversos microfones, um emblema da NASA e uma enorme bandeira norte-americana ao fundo. Para dar o toque final, o meteorito havia sido transportado em um trenó especial até sua posição de honra, bem na frente da mesa de conferências.
Ekstrom também ficou feliz em ver que o clima na área de imprensa era de celebração. Muitos dos membros de sua equipe estavam agora reunidos em torno do meteorito, estendendo as mãos sobre aquela massa ainda quente como se estivessem em volta de uma fogueira de acampamento.
Este é o momento, decidiu Ekstrom. Andou até várias caixas que estavam sobre o gelo atrás da área de imprensa. Ele havia pedido que trouxessem aquela encomenda da Groenlândia pela manhã.
— Pessoal, bebidas por minha conta! — gritou, passando latas de cerveja para sua animada equipe.
— Ei, chefe! — gritou alguém. — Obrigado! Elas estão até geladas!
Ekstrom abriu um sorriso, algo bem raro.
— É que elas estavam no gelo. Todos riram.
— Mas espere aí! — alguém gritou em seguida, dando um olhar de desprezo bem-humorado para sua lata. — Esta coisa é canadense! Onde está seu patriotismo?
— Vocês sabem que tivemos cortes orçamentários. Foi o mais barato que pude encontrar.
Mais risos.
— Atenção, pessoal! — gritou alguém da equipe de transmissão de TV da NASA, usando um megafone. — Vamos ligar a iluminação para a filmagem. Vocês podem ficar temporariamente cegos.
— E nada de beijinhos no escuro — berrou outra pessoa. — Este é um horário “família”.
Ekstrom deu uma risadinha, divertindo-se com as brincadeiras enquanto sua equipe fazia os ajustes finais nos spots e nas luzes de reforço.
— OK, vamos ligar a iluminação de filmagem em 5, 4, 3, 2...
O interior do domo escureceu rapidamente quando as lâmpadas halógenas foram desligadas. Em poucos segundos não havia mais luz alguma e uma escuridão impenetrável tomou conta do local.
— Ei, quem beliscou minha bunda? — alguém gritou, rindo.
A escuridão durou apenas um instante antes de dar lugar à claridade ofuscante dos spots para as câmeras de televisão. Todos apertaram os olhos. A transformação estava completa. O quadrante norte da habisfera da NASA tinha se transformado em um estúdio de televisão. O restante do domo agora se parecia com um galpão de portas escancaradas à noite.
A única luz no restante do domo vinha dos reflexos das luzes de TV que batiam no teto em formato de abóbada criando longas sombras ao longo das estações de trabalho agora desertas.
Ekstrom voltou às sombras, feliz por ver sua equipe festejando em torno do meteorito iluminado. Sentia-se como um pai na noite de Natal olhando as crianças se divertirem em volta da árvore.
Só Deus sabe o quanto merecem isso, pensou, sem jamais suspeitar da calamidade que viria dentro em breve.
O tempo estava mudando. Como um arauto pesaroso de um conflito iminente, o vento catabático soltava um uivo melancólico e chocava-se com força contra o abrigo da Força Delta. Delta-Um terminou de fixar a cobertura contra tempestades e voltou para dentro, onde estavam seus dois parceiros. Isso já havia acontecido antes e logo passaria.
Delta-Dois estava olhando para imagens ao vivo do microrrobô.
— É melhor você ver isso — disse para Delta-Um.
O outro aproximou-se. O interior da habisfera estava em total escuridão, tirando a luz brilhante na face norte do domo, em torno da área de imprensa. O restante dela podia ser visto apenas como contornos sombrios.
— Nada demais, estão apenas testando a luz de TV para hoje à noite — respondeu Delta-Um.
— O problema não é a luz — disse Delta-Dois apontando para a mancha escura no meio do gelo: o buraco cheio de água do qual o meteorito havia sido retirado. — Este é o problema.
Delta-Um olhou para o buraco. Continuava cercado pelos cones e a superfície da água parecia calma.
— Não estou vendo nada.
— Olhe com atenção. — Ele mexeu no joystick, fazendo com o que microrrobô descesse em espiral na direção da superfície do buraco.
Delta-Um estudou a poça de água dissolvida cuidadosamente e finalmente viu algo que o fez se contrair, surpreso.
— Mas que droga...
Delta-Três aproximou-se e olhou. Também ficou abalado.
— Meu Deus. Este é o poço de extração? A água deveria estar assim?
— Não — disse Delta-Um. — Pode ter certeza que não.
Apesar de estar sentada dentro de um contêiner de metal a cinco mil quilômetros de Washington, Rachel estava tão tensa como se tivesse sido chamada à Casa Branca. O monitor do videofone à sua frente exibia uma imagem absolutamente perfeita do presidente Zach Herney sentado na sala de comunicações da Casa Branca à frente do selo presidencial. A conexão de áudio digital também era excelente e, se não fosse pelo pequeno atraso no sinal, ele poderia muito bem estar sentado na sala ao lado.
A conversa estava fluindo bem, num tom animado. O presidente parecia estar feliz, embora não surpreso, que Rachel tivesse um parecer favorável sobre a descoberta da NASA e também sobre sua escolha quanto a usar a personalidade cativante de Michael Tolland como porta-voz. O presidente estava amigável e bem-humorado.
— Estou certo de que você irá concordar — disse ele, um pouco mais sério — que, em um mundo perfeito, as implicações dessa descoberta seriam apenas científicas por sua própria natureza. — Fez uma pausa e inclinou-se para a frente. Sua face preencheu toda a tela. — Infelizmente, nosso mundo não é perfeito, e esse triunfo da NASA irá se tornar uma bomba política assim que eu o anunciar.
— Considerando-se as provas conclusivas e as pessoas que o senhor recrutou para apoiá-las, não posso imaginar como o público ou qualquer um de seus opositores possa fazer algo além de aceitar essa descoberta como um fato indiscutível.
Herney deu um risinho quase triste.
— Meus opositores políticos acreditarão no que irão ver, Rachel. Minha grande preocupação é que não vão gostar disso.
Rachel notou como o presidente estava sendo cuidadoso ao não mencionar seu pai diretamente. Ele falava apenas em termos de “meus opositores” ou “opositores políticos”.
— E o senhor acha que a oposição irá levantar a hipótese de uma conspiração por motivos meramente políticos?
— É assim que o jogo funciona. Basta que alguém lance uma dúvida vaga, dizendo que essa descoberta é uma espécie de fraude política preparada pela NASA e pela Casa Branca, e, subitamente, eu me verei diante de uma comissão de inquérito. Os jornais logo se esquecem de que a NASA possui provas de vida extraterrestre, e a mídia passa a se esforçar para encontrar provas de uma armação. É triste, porque qualquer insinuação de conspiração em relação a essa descoberta será ruim para a ciência, ruim para a Casa Branca, ruim para a NASA e, muito sinceramente, ruim para o nosso país.
— Foi por isso que o senhor adiou o anúncio até ter uma confirmação completa e o apoio de alguns cientistas de grande reputação.
— Meu objetivo é apresentar esses dados de forma tão incontestável que qualquer cinismo seja cortado pela raiz. Quero que a descoberta seja celebrada com a plena dignidade que ela merece. É algo que devemos à NASA.
A intuição de Rachel já estava emitindo sinais de alerta. E o que ele quer de mim?
— É claro que você se encontra em uma posição especial para me ajudar. Sua experiência como analista, assim como seus laços óbvios com meu oponente lhe dão uma enorme credibilidade em relação a essa descoberta — prosseguiu o presidente.
Rachel sentiu-se desiludida. Ele quer me usar, exatamente como Pickering disse que faria!
— Tendo dito isso, eu queria lhe pedir que endossasse essa descoberta pessoalmente, como minha ligação de inteligência na Casa Branca... e como filha de meu oponente.
Lá estava o pedido, preto sobre branco. Herney quer meu apoio pessoal Rachel havia pensado, sinceramente, que Zach Herney estivesse acima desse tipo lamentável de politicagem. Uma confirmação pública de Rachel iria transformar o meteorito em uma questão pessoal para seu pai, deixando o senador sem nenhuma capacidade de questionar a credibilidade da descoberta sem atacar a credibilidade da própria filha. O que seria, claro, uma sentença de morte para um candidato que proclamava que “a família vinha sempre em primeiro lugar”.
— Francamente, senhor — disse Rachel, olhando para o monitor —, estou surpresa que me peça para exercer esse papel.
O presidente pareceu espantado.
— Achei que você ficaria animada por estar ajudando.
— Animada? Senhor, deixando de lado minhas questões pessoais com meu pai, esse pedido me deixa numa posição insustentável. Já tenho um bom número de problemas com meu pai sem me confrontar com ele em um duelo político de vida ou morte. Embora possa admitir que não gosto dele, ainda assim é meu pai, e colocar-me contra ele em um fórum público me parece, com toda a sinceridade, abaixo do seu nível.
— Espere aí! — Herney disse, levantando suas mãos em sinal de “paz”. — Eu não disse nada a respeito de um fórum público!
Depois de um breve silêncio, Rachel falou:
— Presumi que o senhor quisesse que eu me juntasse ao administrador da NASA na mesa para a coletiva desta noite.
A gargalhada de Herney fez tremer os alto-falantes.
— Rachel, quem você acha que eu sou? Realmente acredita que eu iria pedir a alguém para dar uma facada nas costas do próprio pai em cadeia nacional de televisão?
— Mas... o senhor disse...
— E você acha que eu iria fazer com que o administrador da NASA dividisse os louros dessa vitória com a filha de seu arquiinimigo? Sem nenhuma ofensa, Rachel, essa coletiva é uma apresentação científica. Não tenho idéia de qual seja o seu conhecimento de meteoritos, fósseis ou estrutura dos icebergs, mas acho que não iria acrescentar muito à credibilidade da apresentação.
Rachel sentiu-se corar.
— Mas, então... que tipo de endosso o senhor deseja de mim?
— Um que está bem mais de acordo com sua posição.
— Senhor?
— Você é uma agente de ligação do NRO com a Casa Branca. Queria que você apresentasse dados de importância nacional para minha equipe.
— O senhor quer que eu confirme essa descoberta para sua própria equipe?
Herney parecia ainda estar se divertindo com o mal-entendido.
— Sim, é claro. O ceticismo que vou enfrentar fora da Casa Branca não é nada comparado ao que estou enfrentando aqui dentro neste exato momento. Estamos em meio a um completo motim. Minha credibilidade junto à equipe está a zero. Todos têm me pedido sucessivas vezes para cortar os fundos da NASA. Eu os ignorei e isso foi suicídio político.
— Até agora.
— Exatamente. Como conversamos esta manhã, o timing dessa descoberta irá parecer suspeito para os cínicos da área política, e não há pessoas mais cínicas do que minha própria equipe neste momento. Portanto, quando ouvirem as informações pela primeira vez, queria que a fonte fosse...
— O senhor não contou à sua equipe sobre o meteorito?
— Apenas alguns assessores de alto escalão sabem da descoberta.
Rachel ficou chocada. Não é surpresa que ele esteja às voltas com um motim.
— Mas essa não é minha área normal de atuação. Um meteorito dificilmente poderia ser considerado como um relatório de inteligência.
— De fato, não no sentido tradicional, mas ele tem, com certeza, todos os elementos de seu trabalho habitual: dados complexos que precisam ser depurados e resumidos, implicações políticas importantes...
— Não sou especialista em meteoritos, senhor. Sua equipe não deveria receber um comunicado de alguém como o administrador da NASA?
— Você está brincando? Todos aqui odeiam o homem. Do ponto de vista deles, Ekstrom é um vendedor trapaceiro que me fez entrar em uma infinidade de maus negócios.
Rachel tinha que concordar com essa visão.
— E que tal Corky Marlinson, Medalha Nacional de Astrofísica? Ele tem.muito mais credibilidade do que eu.
— Minha equipe é composta por políticos, não por cientistas. Você já conversou com o doutor Marlinson. Acho que é um sujeito brilhante, mas, se eu soltar um astrofísico em meio aos meus articuladores políticos acostumados a pensar dentro de padrões e conjuntos de regras, vou terminar com uma sala cheia de pessoas atônitas com olhos fixados no infinito. Preciso de alguém que seja acessível. Preciso de você, Rachel. Meu pessoal conhece seu trabalho, e, considerando— se o seu sobrenome, você é a porta-voz mais neutra que eles poderiam desejar.
Rachel sentiu-se atraída pelo estilo amistoso do presidente.
— Pelo menos o senhor admite que ser a filha de seu oponente tem algo a ver com esse pedido.
O presidente deu uma risadinha envergonhada.
— Claro que sim. Mas, como pode imaginar, minha equipe será informada de alguma maneira, não importa qual seja a sua decisão. Você não é o prato principal, Rachel, apenas a cereja do bolo. É a pessoa mais qualificada para apresentar esse relatório e por acaso também é uma parente direta do homem que quer expulsar meus funcionários da Casa Branca nas próximas eleições. Você tem, portanto, uma dupla credibilidade.
— O senhor deveria trabalhar em vendas.
— Na verdade, já trabalho. Assim como seu pai. E, sendo muito franco, gostaria de levar a melhor desta vez. — O presidente tirou os óculos e olhou diretamente para os olhos de Rachel. Ela sentiu um pouco do poder de seu próprio pai naquele olhar. — Estou lhe pedindo isso como.um favor, mas também porque acredito que é parte de seu trabalho. Então, qual é a sua decisão? Sim ou não?
Rachel sentiu-se acuada dentro do pequeno trailer. Nada como um pouco de pressão. Mesmo a cinco mil quilômetros de distância, ela podia sentir a força do presidente através da tela. Também sabia que era um pedido perfeitamente razoável, quer ela gostasse ou não.
— Tenho minhas condições — respondeu por fim.
Herney levantou uma sobrancelha.
— Tais como?
— Vou me encontrar com sua equipe em um local privado. Sem repórteres. Farei um relatório interno e não uma aparição pública.
— Você tem minha palavra quanto a isso. Sua reunião já está marcada para um local completamente privado.
Rachel suspirou e, por fim, concordou. O presidente sorriu.
— Excelente.
Ela olhou para o relógio e ficou surpresa ao perceber que já passava das quatro da tarde.
— Mas... se o senhor irá entrar no ar, ao vivo, às oito da noite, não teremos tempo. Mesmo usando aquela “coisa” odiosa que me trouxe até aqui, não teria como estar de volta à Casa Branca a tempo. Precisaria preparar minhas observações e...
O presidente apenas sacudiu a cabeça.
— Perdão, acho que não fui claro. Você transmitirá o relatório exatamente de onde está, através de uma videoconferência.
— Ah... — Rachel hesitou. — E a que horas isso seria?
— Vejamos... — disse Herney, com um sorriso sagaz. — Que tal agora mesmo? Todos já estão reunidos e olhando para uma grande tela em branco no momento. Estão esperando por você.
O corpo de Rachel se retesou.
— Mas, senhor, estou totalmente despreparada, eu não poderia...
— Apenas lhes diga a verdade. É tão difícil assim?
— Mas...
— Rachel — disse o presidente, inclinando-se em direção à tela —, lembre-se, você resume e retransmite dados diariamente. É seu trabalho. Apenas fale do que está acontecendo por aí. — Ele estendeu a mão para apertar um botão em seu painel de transmissão de vídeo, mas fez uma breve pausa antes. — Acho que você irá gostar de saber que eu a coloquei em uma posição de poder.
Rachel não entendeu bem o que ele quis dizer, mas já era tarde para perguntar. O presidente apertou o botão.
A tela diante de Rachel ficou em branco por um instante. Quando voltou a transmitir, ela se viu em uma das situações mais perturbadoras de sua vida. Estava olhando para o Salão Oval da Casa Branca. A sala estava lotada de gente, todos de pé. Aparentemente toda a equipe da Casa Branca estava lá, olhando para ela. Rachel percebeu, então, que seu ponto de vista era de alguém situado acima da mesa do presidente.
Falando de uma posição de poder.
Rachel estava suando frio. Pelas expressões das pessoas, os membros da equipe da Casa Branca estavam tão surpresos quanto ela.
— Senhorita Sexton? — disse uma voz rouca.
Rachel procurou em meio ao mar de rostos e encontrou quem havia falado. Era uma mulher magricela que acabara de tomar lugar na primeira fila. Marjorie Tench. A figura era inconfundível, mesmo no meio de uma multidão.
— Obrigada por juntar-se a nós, senhorita Sexton — disse Marjorie. — O presidente falou que você teria algumas informações interessantes a nos transmitir.
Aproveitando a escuridão o paleontologista Wailee Ming estava sentado, sozinho em sua estação de trabalho, tomado por pensamentos. Sentia-se eletrizado imaginando o evento daquela noite. Em breve serei o paleontologista mais famoso do mundo. Esperava que Michael Tolland tivesse sido generoso com ele, dando bastante destaque às suas declarações no documentário. Enquanto se deleitava com a fama iminente, uma leve vibração fez estremecer o gelo sob seus pés, fazendo com que desse um pulo da cadeira. Como morador de Los Angeles, área sempre propensa a tremores e terremotos, ele tinha instintos aguçados em relação ao assunto, sendo hipersensível até mesmo aos menores movimentos do chão. Naquele momento, contudo, Ming sentiu-se meio tolo pensando que a vibração era perfeitamente normal. É apenas a geleira se fragmentando, pensou, soltando um suspiro. Ele ainda não tinha se acostumado com aquilo. De tantas em tantas horas, uma explosão distante retumbava pela noite, enquanto em algum lugar da costa da geleira um enorme bloco rachava e caía no mar. Norah Mangor tinha uma maneira poética de encarar aquilo. Bebês-iceberg nascendo...
Ainda de pé, Ming esticou os braços. Olhou em volta da habisfera e viu, ao longe, uma celebração em andamento sob as luzes fulgurantes da televisão. Como não gostava muito de festas, resolveu caminhar na direção oposta.
O labirinto deserto de estações de trabalho se parecia agora com uma cidade-fantasma, e todo o domo tinha um ar quase sepulcral. Um vento frio soprava pelo salão, e Ming abotoou seu sobretudo de lã de camelo.
Mais à frente viu o poço de extração, o ponto do qual o mais magnífico de todos os fósseis da história havia sido retirado. O gigantesco tripé de metal já tinha sido desmontado e a poça d’água permanecia ali, solitária, cercada pelos cones, como uma espécie de buraco no asfalto em um vasto estacionamento de gelo. Ming dirigiu-se para o fosso, mantendo uma distância segura da piscina de água gélida. Em breve ela iria congelar novamente, apagando qualquer traço de que alguém já estivera lá.
Era uma bela visão, pensou Ming. Mesmo no escuro.
Principalmente no escuro.
Ming achou aquilo estranho. Então percebeu.
Há algo de errado.
Ao examinar com mais atenção a água, sentiu seu contentamento anterior dar lugar a uma súbita confusão de pensamentos conflitantes. Piscou os olhos, olhou de novo e então virou-se rapidamente para o outro lado do domo... em direção às pessoas que estavam comemorando na área de imprensa, a 50 metros dali. Ele sabia que não podiam vê-lo de tão longe, no escuro.
Eu deveria contar a alguém sobre isso, não?
Ming observou novamente a água, pensando no que iria dizer aos outros.
Seria uma ilusão de ótica? Algum tipo de reflexo bizarro?
Em dúvida, resolveu passar dos cones e ficou agachado próximo à borda do fosso. A água estava a um metro e meio do nível do gelo, mais ou menos, e ele se inclinou para ver melhor. Sim, de fato havia algo estranho ali. Era impossível não ver e, ainda assim, ninguém havia percebido até que as luzes do domo fossem apagadas.
Ming levantou-se. Definitivamente era preciso contar aquilo para alguém. Começou a andar rápido na direção da área de imprensa. Deu alguns passos e parou. Meu Deus! Voltou para o buraco, seus olhos se arregalaram com o que havia acabado de imaginar.
Impossível!, pensou em voz alta.
Ainda assim, sabia que era a única explicação. Analise cuidadosamente, disse a si mesmo. Deve haver uma explicação mais razoável. No entanto, quanto mais pensava, mais convencido ficava quanto ao que estava vendo. Não havia outra justificativa! Ele não podia acreditar que a NASA e Corky Marlinson tivessem deixado passar algo tão incrível, mas não iria reclamar por causa disso.
Esta é uma descoberta de Wailee Ming agora!
Tremendo de excitação, correu até uma estação de trabalho próxima e pegou uma proveta. Tudo de que precisava era uma amostra da água.
Ninguém iria acreditar naquilo!
— Como agente de ligação com a Casa Branca — dizia Rachel Sexton, tentando manter a voz firme enquanto se dirigia ao grupo de pessoas na tela à sua frente —, minhas tarefas incluem eventuais viagens para locais de importância política ao redor do globo, a análise das situações e posterior elaboração de relatórios para o presidente e para a equipe da Casa Branca.
Uma gota de suor se formou no alto de sua testa e Rachel removeu-a de maneira sutil, amaldiçoando o presidente mentalmente por tê-la colocado naquela situação sem nenhum aviso prévio.
— Nenhuma de minhas viagens anteriores havia sido para um lugar tão exótico — disse Rachel, apontando o trailer cheio de equipamentos em torno dela. — Inacreditavelmente, estou falando com vocês, neste momento, de uma geleira com 90 metros de espessura situada acima do Círculo Ártico.
Ela pôde sentir a expectativa e a perplexidade se espalhando nas faces das pessoas. Todos sabiam, é claro, que haviam sido espremidos dentro do Salão Oval por um bom motivo, mas certamente não esperavam que estivesse relacionado a eventos ocorrendo acima do Círculo Ártico.
O suor começou a escorrer novamente. Concentre-se, Rachel. Isso é só parte do que você faz diariamente.
— Estou perante vocês, nesta tarde, com grande honra, orgulho e, acima de tudo, muita emoção.
Olhares vagos na tela.
Que se dane, pensou ela, raivosamente secando o suor. Eu não pedi para estar aqui. Em uma situação daquelas, sua mãe provavelmente diria:
“Quando não souber bem o que dizer, apenas diga!” A frase continha uma das crenças básicas de sua mãe, a de que qualquer desafio pode ser superado quando se fala a verdade, não importa qual seja.
Respirando fundo, Rachel endireitou-se na cadeira e olhou firme para a câmera.
— Pessoal, mil desculpas. Vocês não devem entender como posso estar suando em bicas numa geleira... Bem, estou um pouco nervosa.
As pessoas se mexeram um pouco. Houve risadas contidas.
— Além disso, seu chefe só me avisou com 10 segundos de antecedência que eu iria me deparar com toda a sua equipe reunida. Esse batismo de fogo não é exatamente o que eu esperava em minha primeira visita ao Salão Oval.
Mais risadas desta vez.
— E — disse ela, olhando para baixo da tela — eu certamente não imaginei que estaria sentada na mesa do presidente... muito menos sobre ela.
Essa última tirada provocou gargalhadas e sorrisos abertos. Rachel sentiu sua musculatura relaxar. Basta ir direto ao assunto agora.
— Vou lhes explicar a situação. — Ela podia reconhecer a própria voz agora. Clara e serena. — O presidente Herney tem estado fora da mídia durante esta última semana não por falta de interesse em sua própria campanha, mas porque esteve profundamente envolvido com um outro assunto. Uma questão que lhe pareceu muito mais importante.
Rachel fez uma pausa, percorrendo sua audiência com o olhar.
— Uma grande descoberta científica foi feita aqui, neste lugar chamado geleira Mune, no Ártico. O presidente irá informar o mundo inteiro a esse respeito durante a coletiva de imprensa hoje, às oito da noite. A descoberta foi feita por um esforçado grupo de americanos que tem sofrido uma série de reveses nos últimos tempos e merece algo de bom. Estou me referindo à NASA. Vocês podem sentir-se orgulhosos sabendo que seu presidente, aparentemente com uma clarividente confiança, fez questão de apoiar a NASA durante este período difícil. Agora parece que sua lealdade foi recompensada.
Foi só então que Rachel percebeu o quanto aquele momento era histórico. Sentiu sua garganta se contraindo, mas abstraiu-se da tensão e seguiu em frente.
— Como uma agente de inteligência especializada na análise e verificação de dados, sou uma dentre diversas pessoas que o presidente chamou para verificar e corroborar os dados da NASA. Examinei-os pessoalmente e também conversei com diversos especialistas tanto do governo quanto civis, cientistas cuja reputação está acima de qualquer dúvida e cuja magnitude está além de influências políticas. É minha opinião profissional que os dados que irei lhes mostrar em seguida são inteiramente factuais em sua origem e imparciais em sua forma de apresentação. Além disso, é minha opinião pessoal que o presidente está agindo de boa-fé e fazendo jus às responsabilidades de seu cargo e à confiança depositada nele pelo público norte-americano. Ele mostrou cuidado e prudência admiráveis ao retardar esta declaração que certamente gostaria de ter feito na semana passada.
Rachel viu as pessoas trocarem olhares surpresos antes de voltarem toda a sua atenção para ela.
— Senhoras e senhores, vocês estão prestes a ouvir aquilo que, tenho certeza, será uma das mais interessantes informações já divulgadas nesta sala.
A imagem transmitida para a Força Delta pelo microrrobô que circulava no interior da habisfera poderia certamente ganhar um prêmio num festival de filmes de arte. As luzes eram fracas, o poço de extração reluzia e havia um asiático bem vestido deitado sobre o gelo, com um casaco estendido em volta dele como se fosse uma grande asa. Ele estava tentando obter uma amostra de água.
— Temos que impedi-lo — disse Delta-Três.
Delta-Um concordou. A plataforma de gelo Milne escondia segredos que sua equipe tinha que proteger usando a força se necessário.
— Como vamos detê-lo? — perguntou Delta-Dois, ainda segurando o joystick. — Esse microrrobô não está equipado para ataque.
Delta-Um deixou transparecer sua raiva. O microrrobô que estava no interior da habisfera era um modelo de reconhecimento, com o peso reduzido ao mínimo para ganhar maior autonomia de vôo. Era tão mortífero quanto uma mosca.
— Devemos chamar o controlador — declarou Delta-Três.
Delta-Um observou atentamente a imagem de Wailee Ming, sozinho e precariamente debruçado sobre o poço de extração. Não havia ninguém por perto e aquela água quase congelada não lhe daria muito tempo para gritar.
— Me passa os controles.
— O que você vai fazer? — perguntou Delta-Dois, entregando-lhe o joystick.
— Aquilo que fomos treinados para fazer — respondeu Delta-Um com rispidez, assumindo o comando. — Improvisar.
Wailee Ming estava deitado sobre seu estômago ao lado do buraco de extração, com o braço direito estendido por cima da borda tentando pegar uma amostra de água. Não havia ilusão de ótica nenhuma. A poucos palmos da água, ele podia ver tudo claramente. Isto é incrível!
Alongando-se mais um pouco, Ming passou a proveta entre seus dedos, tentando encostá-la na superfície da água. Só precisava de mais alguns centímetros.
Não conseguindo estender seu braço além daquele ponto, ele decidiu posicionar-se mais perto do poço. Pressionou a ponta das botas contra o gelo e recolocou firmemente a mão esquerda na borda. Mais uma vez, estendeu o braço direito o máximo que pôde. Quase lá. Chegou um pouco mais perto. Isso! A borda da proveta desceu abaixo da superfície da água e, enquanto o tubo se enchia, ele olhava admirado.
Então, sem aviso algum, algo inexplicável aconteceu. Do nada, saindo da escuridão, como uma bala disparada de uma arma, uma pequena ponta de metal atingiu seu olho direito.
O instinto humano de proteger o olho está tão profundamente arraigado que, apesar do cérebro de Ming lhe avisar que qualquer movimento rápido poria em risco seu equilíbrio, ele estremeceu. Foi uma reação rápida, mais pela surpresa do que pela dor. A mão esquerda, mais próxima de seu rosto, lançou-se instintivamente para proteger o globo ocular atingido. Sua mão ainda estava em movimento quando ele percebeu que cometera um erro.
Como todo o seu peso estava lançado para a frente, ao remover seu único ponto de apoio Wailee Ming se desequilibrou. Quando se recompôs já era tarde. Deixou cair a proveta e tentou segurar-se no gelo liso para evitar a queda, mas não conseguiu. O paleontologista escorregou e caiu na escuridão do poço.
A queda foi rápida, mas, assim que sua cabeça mergulhou na água gélida, pareceu que tinha se chocado contra concreto a 80 quilômetros por hora. O líquido em volta era tão frio que dava a mesma sensação de ácido corroendo a pele. Provocou um espasmo de pânico instantâneo.
De cabeça para baixo na escuridão, ele ficou temporariamente desorientado, sem saber para onde se virar em direção à superfície. O casaco grosso protegeu seu corpo do choque térmico, mas apenas durante um ou dois segundos. Quando conseguiu se ajeitar e colocar a cabeça para fora, tentando respirar, a água já havia chegado às suas costas e ao seu peito, engolfando todo o corpo em um torniquete de gelo que esmagava seus pulmões.
— Só...corro — tentou gritar, mas sua voz saiu engasgada. Mal conseguia puxar ar suficiente para soltar um gemido. Sentia-se como se todo o ar houvesse sido sugado dele.
— Sooo...coor... — Seus gritos eram tão fracos que nem ele mesmo conseguia ouvi-los. Ming lutou para chegar à extremidade do poço e tentou puxar seu corpo para fora. A parede à sua frente era de gelo vertical. Não havia onde se segurar. Debaixo da água, chutava o gelo com as botas, tentando encontrar um ponto de apoio. Nada. Estendeu o braço para cima, tentando alcançar a borda, mas ela estava uns 30 centímetros além de seu alcance.
Seus músculos estavam começando a não responder. Mexeu as pernas com mais força, tentando levantar-se um pouco para conseguir alcançar a borda. Seu corpo parecia feito de chumbo e seus pulmões pareciam ter se contraído a zero, como se esmagados por uma jibóia. Seu casaco encharcado estava ficando cada vez mais pesado, puxando-o para baixo. Ming tentou tirá-lo, mas sentiu o tecido grudado no corpo.
— Socorro...
O medo tomou conta dele.
Ming havia lido uma vez que a morte por afogamento era a pior que se podia imaginar. Nunca imaginara que estaria tão próximo de passar por essa experiência. Seus músculos se recusavam a cooperar com sua mente, e o esforço para manter a cabeça fora da água parecia sobre-humano.
Suas roupas encharcadas o puxavam para baixo e seus dedos dormentes arranhavam as paredes de gelo.
Seus gritos só podiam ser ouvidos em sua mente. Ele já não tinha mais voz.
Então, finalmente, submergiu. Estar consciente da proximidade da própria morte era algo terrível. No entanto, ele estava ali, afundando lentamente em um buraco de 60 metros de profundidade no gelo. Milhares de pensamentos cruzavam sua mente. Lembranças da infância. Sua carreira. Pensou se o encontrariam flutuando na água ou se iria afundar até o fim do poço e ficar congelado. Uma tumba eterna nas profundidades da geleira.
Seus pulmões gritavam por oxigênio. Segurou a respiração, ainda tentando subir à superfície. Respire! Lutou contra o reflexo, trincando os dentes para manter os lábios cerrados. Respire! Tentava em vão nadar para cima. Respire! Naquele momento, numa luta mortal entre instinto e razão, a necessidade de respirar ultrapassou sua capacidade de manter a boca fechada.
Wailee Ming inalou.
A água que invadiu seus pulmões parecia óleo fervendo e ele sentiu-se como se estivesse sendo queimado de dentro para fora. A água é cruel, não mata instantaneamente. Ming passou sete pavorosos segundos inalando a água gélida, de forma cada vez mais dolorosa, sem que seu corpo pudesse extrair dali o ar de que desesperadamente necessitava.
No final, quando deslizou rumo às profundezas escuras, sentiu sua consciência se esvaindo. Em torno dele, na água, pôde ver pequenos traços reluzentes.
A visão mais bela de toda a sua vida.
O portão de encontros da Ala Leste da Casa Branca fica localizado na Avenida Executiva Leste, entre o Departamento do Tesouro e o Parque Leste. A cerca reforçada e os blocos de concreto faziam com que essa entrada tivesse um ar quase intimidador.
Do lado de fora do portão, Gabrielle Ashe olhou para o relógio, sentindo-se cada vez mais nervosa. Eram 16h45 e ninguém havia feito contato ainda.
PORTÃO DE ENCONTROS DA ALA LESTE, 16h30. VENHA SOZINHA.
Aqui estou, pensou ela. Cadê você?
Gabrielle analisava os rostos dos turistas que passavam, esperando alguma reação. Alguns homens olhavam para ela e depois continuavam andando. Ela estava começando a pensar se aquilo tinha sido uma idéia sensata quando percebeu que o agente do serviço secreto dentro da guarita estava observando-a. Olhando uma última vez para a Casa Branca através da grande cerca, Gabrielle suspirou e virou-se, decidida a partir.
— Gabrielle Ashe? — chamou o agente do serviço secreto atrás dela.
Gabrielle virou-se, seu coração aos saltos.
O homem fez sinal para que ela se aproximasse. Era magro e tinha um rosto sem expressão.
— Seu contato já pode recebê-la. — Ele destrancou o portão principal para que entrasse.
Os pés de Gabrielle ficaram colados ao chão.
— Devo entrar?
O guarda assentiu.
— Disseram-me que lhe pedisse desculpas por fazê-la esperar.
Ela olhou para a porta aberta e ainda assim não conseguia se mover. O-que está acontecendo? Aquilo certamente não era o que ela esperava.
— Você é Gabrielle Ashe, não é? — perguntou o guarda, com ar de impaciência.
— Sim, senhor, mas...
— Então sugiro que me acompanhe.
Gabrielle achou que não tinha muita alternativa. Assim que passou pelo portão, ele fechou-se atrás dela.
Dois dias sem ver a luz do sol haviam reajustado o relógio biológico de Tolland. Apesar de ser apenas fim de tarde, seu corpo insistia em lhe dizer que já estavam no meio da noite. Tolland já fizera os últimos ajustes em seu documentário, transferira todo o arquivo digital para um DVD e estava atravessando o domo. Quando chegou à área iluminada onde iria ocorrer a coletiva, entregou o disco para o técnico de mídia da NASA encarregado de supervisionar a apresentação.
— Obrigado, Mike — disse o técnico, piscando enquanto olhava o DVD em suas mãos. — Acho que isso vai redefinir o que chamamos de “imperdível” na TV, não é?
Tolland deu um risinho cansado.
— Espero que o presidente também pense assim.
— Não tenho dúvida. De qualquer forma, seu trabalho está feito, então sente-se, relaxe e aproveite o espetáculo.
— Obrigado! — Tolland estava de pé na área de imprensa, observando a animação do pessoal da NASA, que continuava celebrando a descoberta do meteorito com latas e mais latas de cerveja canadense. Por mais que desejasse se juntar a eles, sentia-se física e emocionalmente exausto.
Olhou em volta para ver se encontrava Rachel, mas aparentemente ela ainda estava conversando com o presidente.
Ele quer colocá-la no ar, pensou Tolland. Não tinha razões para censurá-lo: Rachel seria a pessoa ideal para completar o elenco da apresentação do meteorito. Além de ser bonita, ela emanava uma autoconfiança e um equilíbrio que Tolland poucas vezes sentira nas mulheres que encontrava. Por outro lado, é claro, muitas das mulheres que conhecia eram de televisão, o que significava que eram dominadoras sedentas de poder ou então belas apresentadoras, “personalidades” a quem faltava justamente personalidade própria.
O apresentador afastou-se em silêncio da comemoração e foi andando em meio à teia de caminhos estendida pelo domo, pensando onde estariam os outros cientistas civis. Se estivessem tão cansados quanto ele, certamente estariam na área de repouso, tirando uma soneca antes do grande momento. Mais à frente, ele viu o círculo de cones colocados em volta do poço de extração. O espaço vazio do domo acima dele parecia ecoar vozes de memórias distantes. Tolland tentou não lhes dar ouvidos.
Não dê atenção aos fantasmas, pensou consigo mesmo. Muitas vezes eles voltavam, em momentos como aquele, em que estava cansado ou sozinho — momentos de triunfo ou celebração pessoal. Ela deveria estar com você agora, ouviu a voz dizer-lhe. Sozinho na escuridão, sentiu-se puxado em direção às lembranças que queria esquecer.
Célia Birch tinha sido sua namorada na época da faculdade. Num Dia dos Namorados, Tolland a levou ao restaurante predileto dela. Conforme o combinado, na hora da sobremesa, o garçom trouxe numa bandeja uma rosa e um anel de diamantes para Célia. Com lágrimas nos olhos, ela disse uma única palavra que deixou Tolland imensamente feliz: “Sim.”
Os dois compraram uma casa pequena, perto de Pasadena, onde Célia tinha arrumado emprego como professora de ciências. Apesar do salário modesto, já era um começo. A casa também era próxima ao Instituto Scripps de Oceanografia, em San Diego, onde Tolland conseguira o trabalho de seus sonhos a bordo de um navio de pesquisas geológicas.
Por conta disso, Tolland precisava passar dias longe de casa, mas seus reencontros com Célia eram sempre apaixonados e empolgantes.
Enquanto estava longe, no mar, ele começou a fazer vídeos de suas aventuras para Célia, criando minidocumentários de seu trabalho. Após uma determinada viagem, ele voltou com um vídeo caseiro granulado que gravara de dentro de um submersível de pesquisa em águas profundas.
Era a primeira filmagem já feita de uma estranha lula quimiotrópica até então desconhecida. Enquanto narrava as imagens que filmava, Tolland quase não cabia dentro daquele pequeno submarino, tamanha era sua animação.
“Literalmente milhares de espécies desconhecidas vivem nestas profundezas! Nós apenas começamos a investigar. Há mistérios aqui que nenhum de nós sequer consegue imaginar”, dizia ele, entusiasmado, no vídeo.
Célia ficou encantada com a empolgação do marido e também com sua explicação científica didática. Decidiu mostrar o vídeo para sua turma de ciências e o minidocumentário tornou-se um sucesso imediato. Os outros professores queriam usá-lo também. Os pais dos alunos queriam fazer cópias. De um momento para outro, todos passaram a aguardar ansiosamente a próxima aventura de Michael. Foi então que Célia teve uma idéia. Ligou para uma amiga que trabalhava para a cadeia de televisão NBC e enviou-lhe a fita.
Dois meses depois, Michael Tolland chamou Célia para dar uma volta com ele na praia de Kingman. Era o lugar preferido deles, aonde sempre iam para compartilhar seus sonhos e desejos.
— Há algo que quero lhe contar — disse Tolland.
— O que é? — perguntou Célia. .
Tolland mal podia se conter.
— Recebi um telefonema da NBC semana passada. Eles acham que eu poderia ser o apresentador de uma série de documentários sobre os oceanos. Isso é perfeito! Querem fazer um piloto para o próximo ano. Não é inacreditável?
— É ótimo! Você vai se sair muito bem — ela o beijou, feliz.
Seis meses depois, o casal estava velejando perto de Catalina quando Célia se queixou de uma dor na lateral do corpo. Nenhum dos dois deu muita atenção ao assunto durante algumas semanas, mas a dor piorou.
Célia resolveu ir ao médico e fazer exames.
De repente, a vida de Tolland desmoronou, tornando-se um pesadelo horrível. Célia estava gravemente doente. “Estágios avançados de um linfoma”, disse o médico. “É raro em alguém tão jovem, mas pode acontecer.”
Célia e Tolland foram a várias clínicas e hospitais, consultaram especialistas, mas a resposta era sempre a mesma: não havia cura.
Não vou aceitar isso! Tolland largou seu trabalho no Instituto Scripps, deixou de lado o documentário da NBC e concentrou sua energia e seu amor para ajudar Célia a se restabelecer. Ela lutou bravamente, suportando as dores com uma graça que só fazia aumentar o amor que o marido sentia por ela.
Michael traçava planos para quando ela melhorasse. Mas não era isso que o destino lhes reservava. Sete meses depois, ele se viu sentado ao lado da mulher, já em estado terminal, numa enfermaria sombria de hospital. Já nem reconhecia mais seu rosto. A brutalidade do câncer só encontrava paralelo na brutalidade da quimioterapia. Sobrara apenas um corpo devastado. As horas finais foram as piores.
Célia morreu num domingo de céu azul em junho. Tolland sentiu-se como um navio arrancado de suas amarras e jogado sem rumo num mar tempestuoso, seu compasso destruído. Passou semanas completamente fora de controle. Os amigos tentaram ajudar, mas ele não podia aceitar que sentissem pena dele.
Preciso tomar uma decisão, ele finalmente se conscientizou. Trabalhar ou morrer.
Obstinadamente, lançou-se de volta ao trabalho. O programa Maravilhas dos mares literalmente salvou sua vida. Nos quatro anos que se seguiram, o documentário se tornou um sucesso. Apesar dos esforços bem-intencionados dos amigos, Tolland não conseguia iniciar nenhum novo relacionamento. Todos os encontros com mulheres terminavam em decepção mútua ou em completo fracasso, até que ele finalmente desistiu e culpou suas constantes viagens por seu isolamento. Seus melhores amigos, porém, sabiam que no fundo Michael ainda não estava pronto.
Sem perceber, Tolland havia caminhado até chegar perto do poço de extração do meteorito. De repente, algo chamou sua atenção, tirando-o de seus devaneios. Ele afastou sua mente dos antigos fantasmas e aproximou-se do buraco. Sob o domo escurecido, a água do poço tinha adquirido uma beleza mágica, quase surreal. A superfície estava reluzindo como se fosse um lago enluarado. O olhar de Tolland foi atraído por pequenos fios de luz na camada superior da água, como se alguém houvesse salpicado faíscas azul-esverdeadas sobre ela. Olhou durante um bom tempo para aquela cintilação.
Algo ali lhe parecia peculiar.
À primeira vista, achou que a água estava apenas refletindo o brilho dos focos de luz do outro lado do domo. Depois, percebeu que não era nada disso. As cintilações possuíam uma coloração esverdeada e pulsavam com um ritmo definido, como se a superfície da água estivesse viva e iluminada de dentro.
Preocupado, Tolland ultrapassou a área demarcada pelos cones para olhar mais de perto.
Do outro lado da habisfera, Rachel Sexton saiu de dentro do trailer e mergulhou na escuridão. Ela parou por um instante, procurando alguma referência ao seu redor. A habisfera era agora uma enorme caverna, iluminada apenas pelo fulgor incidental que se espalhava, vindo das fortes luzes projetadas contra a parede norte. Como o escuro a deixava um pouco tensa, dirigiu-se para a área de imprensa.
Rachel tinha ficado feliz com o resultado de sua apresentação para a equipe da Casa Branca. Depois que retomara o controle após a manobra inesperada do presidente, tinha conseguido transmitir de forma direta tudo o que sabia sobre o meteorito. Enquanto estava falando, via as expressões no rosto da equipe presidencial passando da completa incredulidade para uma crença esperançosa, até chegar, finalmente, a uma aceitação repleta de espanto.
— Vida extraterrestre? — tinha ouvido um deles dizer. — Você sabe o que isso significa?
— Sim — respondeu um outro. — Significa que vamos ganhar a eleição.
Rachel aproximou-se da área de imprensa pensando no anúncio que viria em breve. Não pôde deixar de pensar se seu pai realmente merecia o rolo compressor que estava prestes a passar por cima dele, esmagando sua campanha com um único golpe.
A resposta, claro, era sim.
Todas as vezes que Rachel sentia algum tipo de piedade por seu pai, tudo o que tinha a fazer era lembrar-se da mãe, Katherine. A dor e a vergonha que Sedgewick Sexton causara à esposa — chegando tarde em casa todas as noites, com um ar feliz e cheiro de perfume — eram imperdoáveis, assim como o pretenso zelo religioso atrás do qual ele se ocultava, enquanto mentia e traía Katherine, sabendo que ela jamais o deixaria.
Sim, ela concluiu, o senador Sexton vai receber aquilo que realmente merece.
Na área de imprensa, as pessoas continuavam a comemorar alegremente, latas de cerveja em punho. Rachel passou entre as pessoas como alguém de fora que estivesse em meio a uma grande festa de família. Estava procurando Tolland.
Corky apareceu subitamente ao lado dela.
— Procurando Mike? Rachel se surpreendeu.
— Ah, bem, mais ou menos...
Corky balançou a cabeça, desapontado.
— Eu sabia. Ele acabou de sair daqui. Achei que tinha ido descansar. — Corky percorreu o domo com o olhar. — Ainda assim, acho que vai ser fácil alcançá-lo. — Ele sorriu e apontou. — Mike fica absolutamente fascinado toda vez que vê água.
Rachel olhou na direção em que Corky estava apontando, para o centro do domo, onde podia ver a silhueta de Michael Tolland de pé, olhando para o poço de extração.
— Mas o que ele está fazendo? — perguntou ela. — É perigoso ficar assim tão perto.
Corky deu outro sorrisinho.
— Provavelmente fazendo pipi. Vamos dar um empurrão nele.
Rachel e Corky atravessaram o domo em direção ao poço. Quando chegaram mais perto, Corky gritou:
— Ei, Aquaman, esqueceu a roupa de mergulho?
Tolland virou-se. Mesmo na penumbra, Rachel percebeu que ele estava com uma cara séria. Parecia também que seu rosto estava estranhamente iluminado, como se houvesse luz vindo de baixo.
— Tudo bem, Mike? — ela perguntou.
— Na verdade, não — respondeu Tolland, apontando para a água.
Corky passou pelos cones e juntou-se a Tolland próximo à beira do poço. Seu humor jovial pareceu dissipar-se assim que olhou para a água. Rachel juntou-se a eles e ficou surpresa de ver os pequenos filetes de luz azul-esverdeada cintilando na superfície. Como se fossem partículas de poeira de néon flutuando na água. Pareciam pulsar em um tom de verde. O efeito era lindo.
Tolland pegou uma lasca de gelo do chão e atirou-a no poço. A água ficou fosforescente no ponto de impacto, espirrando com um brilho esverdeado.
— Mike — disse Corky, agitado —, por favor, me diga que você sabe o que é isso. Tolland franziu a testa.
— Sei exatamente o que é. Minha pergunta é: que diabos está fazendo aqui?
— Há flagelados aqui — disse Tolland, olhando para a água. — Não sei como isso pode ter acontecido, mas essa água contém dinoflagelados bioluminescentes.
— Contém o que bioluminescentes? — perguntou Rachel. — Me diga algo simples...
— Plâncton unicelular capaz de oxidar um catalisador luminescente chamado luciferina.
— Isso foi a versão simples?
Tolland suspirou e voltou-se para o amigo.
— Corky, alguma possibilidade de que o meteorito retirado do poço contivesse organismos vivos?
Corky começou a rir.
— Mike, não brinque!
— Não estou brincando.
— Não há a menor possibilidade! Acredite, se a NASA tivesse a mais vaga suspeita de que havia organismos extraterrestres vivos nessa rocha, você pode estar absolutamente certo de que jamais a teriam retirado em um ambiente aberto.
Tolland não ficou completamente convencido com a explicação. Havia algo misterioso ali que ainda o perturbava.
— Não posso afirmar nada sem um microscópio, mas me parece que isso é um plâncton bioluminescente do filo Pyrrophyta — disse ele. — O nome significa “planta de fogo”. O oceano Ártico está cheio disso.
Corky ficou confuso.
— Então por que você está me perguntando se eles vieram do espaço?
— Porque o meteorito estava soterrado em gelo glacial, ou seja, água doce resultante de neve precipitada. A água que está neste buraco é gelo derretido que esteve congelado durante três séculos. Como essas criaturas do oceano poderiam ter ido parar aí dentro?
O argumento de Tolland deixou Corky em silêncio durante algum tempo.
Rachel estava de pé na borda do poço, tentando entender o que estava vendo. Plâncton bioluminescente no poço de extração. O que aquilo significava?
— Tem que haver uma rachadura lá embaixo em algum lugar — disse Tolland.
— É a única explicação possível. O plâncton deve ter entrado no poço através de uma fissura no gelo que permitiu à água do oceano se infiltrar aí.
Rachel não entendeu aquela última parte.
— Como assim, se infiltrar? Vindo de onde? — Ela se lembrava de sua longa viagem no IceRover, a partir da costa. — O mar fica a quase três quilômetros daqui.
Tanto Corky quanto Tolland olharam para Rachel com um ar condescendente.
— Na verdade — disse Corky —, o oceano está bem abaixo de nós. Essa placa de gelo está flutuando.
Rachel olhou espantada para os dois.
— Flutuando? Mas... estamos em uma geleira!
— É verdade, estamos em uma geleira — disse Tolland —, mas não em terra firme. As geleiras muitas vezes se desprendem de uma massa de terra e deslizam para o oceano. Como o gelo é mais leve do que a água, a geleira continua flutuando tranqüilamente sobre o oceano, como uma enorme balsa de gelo. Esta é exatamente a definição de uma plataforma de gelo: a seção flutuante de uma geleira. — Fez uma pausa antes de continuar. — Na verdade, no momento estamos cerca de um quilômetro e meio oceano adentro.
Rachel ficou surpresa com essa revelação e também desconfiada.
Enquanto ajustava sua imagem mental do ambiente à sua volta, a idéia de estar flutuando sobre o oceano Ártico deixou-a com medo.
Tolland percebeu seu desconforto e bateu com o pé fortemente sobre o chão para acalmá-la.
— Não se preocupe. Este gelo tem 90 metros de espessura, sendo que 60 metros estão embaixo d’água, flutuando como um cubo de gelo em um copo. Isso faz com que a plataforma seja muito estável. Você poderia até construir um arranha-céu aqui.
Rachel balançou ligeiramente a cabeça, mas não parecia estar totalmente convencida. Pelo menos, agora ela entendia a teoria de Tolland sobre as origens do plâncton. Ele acha que há uma rachadura indo até o oceano, lá no fundo, que permitiria ao plâncton subir pela fenda. Era possível, concluiu ela, mas ainda assim envolvia um paradoxo que a perturbava. Norah Mangor confirmou explicitamente a integridade da geleira e disse ter feito dezenas de testes com amostras para confirmar sua solidez.
Ela perguntou para Tolland:
— Achei que a perfeita integridade da geleira era um dos dados fundamentais para todos os registros de datação de camadas. A doutora Mangor afirmou que a geleira não possuía nenhuma rachadura ou fissura,não é?
Corky fez uma careta.
— Parece que a rainha do gelo errou feio nessa.
Não diga isso muito alto, pensou Rachel, ou você vai acabar levando um furador de gelo nas costas.
Tolland coçou o queixo enquanto observava os organismos fosforescentes.
— Não vejo nenhuma outra explicação. Tem que haver uma fissura. O peso da plataforma de gelo acima do oceano deve estar sugando água do mar rica em plâncton para dentro da rachadura.
Deve ser uma rachadura e tanto, pensou Rachel. Se o gelo tinha 90 metros e o buraco à frente deles 60, então essa fissura hipotética tinha que atravessar 30 metros de gelo sólido. Os testes de Mangor não encontraram nenhuma fissura.
— Corky, por favor, vá procurar Norah. Vamos rezar para que ela saiba algo sobre esta geleira que ainda não tenha nos contado. Encontre Ming também, talvez ele nos diga exatamente o que são essas coisas na água.
Corky saiu à procura dos outros.
— Melhor correr — gritou Tolland, olhando novamente para o buraco. — Posso jurar que a bioluminescência está desaparecendo.
Rachel olhou para dentro do poço. Realmente, o brilho verde já não estava tão intenso agora.
Michael tirou sua parca e deitou-se no gelo ao lado do poço. Rachel-olhou, confusa.
— Mike?
— Quero descobrir se há água salgada entrando.
— E pretende fazer isso se deitando no gelo sem um casaco?
— Exato.
Tolland escorregou aos poucos, apoiado na barriga, até a borda do
buraco. Segurando uma das mangas do casaco sobre a abertura, deixou a outra manga descer no poço até tocar a água.
— Este é um teste altamente preciso de salinidade usado pelos melhores oceanógrafos do planeta. Chama-se “lambendo um casaco molhado”.
Do lado de fora, sobre o platô, Delta-Um brigava com os controles, tentando manter o microrrobô, danificado pelo impacto, sobre o grupo que estava reunido em torno do poço de extração. Pelo tom das conversas lá embaixo, sabia que as coisas estavam se desenrolando rapidamente.
— Chame o controlador — disse. — Temos um problema sério.
Gabrielle Ashe havia participado das visitas públicas à Casa Branca várias vezes quando era jovem, sonhando secretamente que um dia iria trabalhar na mansão presidencial e tornar-se parte da equipe de elite que traçava os rumos da nação. Naquele exato momento, porém, ela teria preferido estar em qualquer outro lugar do mundo.
O agente do serviço secreto levou Gabrielle para um saguão ricamente ornamentado. Olhando em volta, ela tentava entender exatamente o que seu informante anônimo queria provar. Convidar Gabrielle a entrar na Casa Branca era loucura. E se me virem? Ela se tornara uma figurinha fácil na mídia por ser o braço-direito do senador Sexton. Certamente seria reconhecida.
— Senhorita Ashe? — disse o vigia de aparência cordial, dando-lhe um sorriso de boas-vindas.
— Olhe para cá, por favor — apontou.
Gabrielle olhou na direção indicada e um flash foi disparado.
— Obrigado, senhora. — O sentinela a levou até uma mesa e entregou-lhe uma caneta. — Queira assinar o registro de entradas — disse ele, empurrando um pesado fichário de couro na direção dela.
Gabrielle olhou para o registro. A página estava em branco. Ela se lembrou de ter ouvido alguém dizer que todos os visitantes da Casa Branca assinavam em uma página separada, sempre em branco, para preservar seu anonimato. Ela assinou.
Bem, lá se foi o encontro secreto.
Gabrielle passou por um detector de metais e foi revistada rapidamente. O vigia sorriu.
— Aproveite a visita, senhorita Ashe.
A assessora de Sexton seguiu o agente ao longo de uns 15 metros de corredor ladrilhado até chegar a um segundo posto de segurança. Lá, outro vigia estava dando os toques finais em um crachá de visitante que tinha acabado de ser plastificado. Ele fez um buraco no passe, colocou um cordão para pendurá-lo no pescoço e colocou-o por sobre a cabeça de Gabrielle. O plástico ainda estava quente. A foto na identificação era a mesma que havia sido tirada segundos antes no hall.
Gabrielle ficou impressionada. Quem é que diz que o governo não é eficiente?
Prosseguiram, com o agente do serviço secreto levando-a cada vez mais para dentro do complexo da Casa Branca. Ela se sentia mais insegura a cada passo. Fosse lá quem fosse que lhe fizera o misterioso convite, certamente não estava nem um pouco preocupado em manter o encontro privado. Gabrielle havia recebido um passe oficial, assinado o livro de visitantes e agora estava sendo conduzida à vista de todos através do primeiro andar da mansão presidencial, onde as visitas públicas começam.
— Este aqui é o Salão das Porcelanas — um guia estava explicando a um grupo de turistas. — Cada uma destas peças com detalhes vermelhos custa 955 dólares. Elas foram compradas por Nancy Reagan, o que gerou um longo debate sobre gastos excessivos do governo em 1981.
O agente passou com Gabrielle pelos visitantes e conduziu-a até uma enorme escadaria de mármore, por onde outro grupo de visitantes subia.
— Agora vamos entrar no Salão Leste, que tem 300 metros quadrados — narrava o guia. — Foi aqui que Abigail Adams pendurou, certa vez, a roupa lavada de John Adams. Depois iremos passar pelo Salão Vermelho, onde Dolley Madison embriagava os chefes de estado visitantes antes que entrassem para negociar com James Madison.
Os turistas riram.
Gabrielle seguiu em frente deixando a escadaria para trás e atravessando uma série de cordões e barreiras em direção a uma parte mais privada do prédio. Entraram em uma sala que, até então, ela só vira em livros e na televisão. Ela quase perdeu o fôlego.
Este é o Salão dos Mapas!
Nenhuma visita guiada entrava ali. Os painéis embutidos na parede daquela sala podiam girar para mostrar diversas camadas de mapas de todo o mundo. Foi ali que Roosevelt traçou os cursos da Segunda Guerra Mundial. Estranhamente, tinha sido também a sala na qual Clinton havia admitido seu caso com Monica Lewinsky. Gabrielle achou melhor apagar esse fato de sua mente. Mais importante do que tudo isso, o Salão dos Mapas era a passagem para a Ala Oeste, a área da Casa Branca onde os verdadeiros senhores do poder trabalhavam. Aquele era o último lugar para o qual a assistente de Sexton esperava ser levada. Havia imaginado que seus e-mails vinham de algum ousado jovem estagiário ou de uma secretária que trabalhasse em uma das salas menos importantes do complexo. Aparentemente estava errada.
Estou entrando na Ala Oeste...
O agente do serviço secreto conduziu-a até o fim de um corredor e parou na frente de uma porta sem nenhuma identificação. Bateu. O coração de Gabrielle dava saltos.
— Está aberta — disse alguém lá de dentro.
O homem abriu a porta e fez sinal para que ela entrasse, depois fechou a porta e se afastou.
As cortinas estavam abaixadas e a sala, escurecida. Ela podia ver a silhueta de uma pessoa sentada em uma mesa na penumbra.
— Senhorita Ashe? — A voz veio de trás de uma nuvem de fumaça de cigarro. — Seja bem-vinda.
Quando os olhos de Gabrielle se acostumaram à pouca luminosidade, ela conseguiu discernir um rosto inesperadamente familiar e ficou paralisada com a surpresa. Foi ELA quem me mandou os e-mails?
— Obrigada por ter vindo — disse Marjorie Tench com uma voz seca.
— Senhora... Tench? — Gabrielle balbuciou, a respiração suspensa diante daquela revelação.
— Pode me chamar de Marjorie — disse a pavorosa mulher, levantando-se e soltando fumaça pelo nariz, como um dragão. — Você e eu estamos prestes a nos tornarmos grandes amigas.
Norah Major estava de pé, próxima ao poço de extração, ao lado de Tolland, Rachel e Corky. Ela olhava para o buraco escuro de onde tinha saído o meteorito.
— Mike, você tem um lindo rosto, mas está maluco. Não há luminescência alguma aqui.
Tolland lamentava não ter se lembrado de filmar aquilo. Enquanto Corky tinha ido buscar Norah e Ming, a bioluminescência começara a desaparecer bem rápido. Em poucos minutos havia sumido completamente.
Tolland jogou outro pedaço de gelo no poço, mas nada aconteceu. Nenhum brilho esverdeado na água.
— Mas aonde eles foram? — perguntou Corky.
O oceanógrafo tinha uma tese. Bioluminescência — um dos mecanismos de defesa natural mais engenhosos — era uma resposta do plâncton quando estava em apuros. Ao sentir que corria o perigo de ser engolido por um organismo maior, o plâncton começava a piscar, na esperança de atrair predadores ainda maiores que afugentassem aquele que os ameaçava. Neste caso, o plâncton, tendo penetrado no poço através de uma fenda, viu-se em um ambiente composto sobretudo por água doce e gerou a bioluminescência por pânico, enquanto a água doce lentamente o matava.
— Creio que morreram — disse Tolland.
— É, foram assassinados — disse Norah, desdenhosa. — O coelhinho da Páscoa entrou aí e comeu todos eles.
Corky olhou para ela, irritado.
— Norah, também vi a luminescência.
— Isso foi antes ou depois de tomar LSD?
— Por que mentiríamos para você? — perguntou Corky.
— Sei lá. Homens mentem.
— Sim, tudo bem, mentimos a respeito de outras mulheres, mas nunca sobre plâncton bioluminescente.
Tolland suspirou.
— Norah, você certamente sabe que há plâncton vivo sob o gelo.
— Mike — respondeu ela, perdendo a paciência —, não tente ensinar o padre a rezar a missa. Para seu conhecimento, há mais de 200 espécies de diatomáceas que vivem sob as plataformas de gelo do Ártico. Quatorze espécies de nanoflagelados autotróficos, 20 flagelados heterotróficos, 40 dinoflagelados heterotróficos e muitos metazoários, incluindo poliquetas, anfípodes, copépodes, eufausiáceos e peixes. Alguma dúvida?
Tolland fechou a cara.
— Você certamente conhece bem melhor que eu a fauna do Ártico, e ambos concordamos que há uma grande abundância de vida abaixo de nós. Então por que você é tão cética a respeito de termos visto plâncton bioluminescente?
— Por um motivo simples, Mike: este poço está selado. É um ambiente fechado de água doce. Seria impossível encontrar plâncton marinho aí dentro.
— Eu senti gosto de sal na água — insistiu Tolland. — Leve, mas definitivamente presente. A água marinha de alguma forma entrou aí.
— Certo — respondeu Norah, cética. — Então vamos dizer que você tenha mesmo sentido gosto de sal. Você lambeu o punho de uma velha parca suada e depois disso concluiu que as varreduras de densidade do PODS e 15 diferentes amostras do núcleo estão incorretas.
Tolland levantou a manga molhada de sua parca como prova.
— Olha, eu não vou lamber sua maldita jaqueta. — Ela olhou para o poço. — Posso perguntar por que uma súbita multidão de suposto plâncton decidiu vir nadar aqui dentro através da suposta fenda?
— Calor? — especulou Tolland. — Muitas criaturas marinhas são atraídas pelo calor. Quando extraímos o meteorito, nós o esquentamos. O plâncton pode ter sido atraído instintivamente na direção do ambiente temporariamente mais quente do poço.
Corky concordou.
— Isso me parece lógico.
— Lógico? — Norah olhou para cima, com desdém. — Você sabe, para um físico premiado e um oceanógrafo de fama mundial, vocês dois formam uma dupla bastante obtusa. Já ocorreu a vocês que, mesmo que haja uma fissura — e eu posso garantir-lhes que não há —, é fisicamente impossível que a água do mar esteja entrando no poço? — Olhou para os dois com desdém.
— Mas, Norah... — Corky ia dizer algo, mas foi interrompido.
— Cavalheiros! Estamos acima do nível do mar, não é? — Ela bateu o pé no gelo. — Então? Esta plataforma está algumas dezenas de metros acima do mar. Vocês se lembram do grande penhasco no final da plataforma, não lembram? Estamos muito acima do nível do mar. Se houvesse uma fissura nesse poço, a água estaria saindo do poço e não entrando. O nome disso é “gravidade”.
Tolland e Corky olharam um para o outro.
— Droga! — disse Corky. — Me esqueci completamente disso.
Norah apontou para o poço cheio de água.
— Talvez vocês tenham notado que o nível de água também não está mudando.
Tolland sentiu-se um idiota completo. Norah tinha toda a razão. Se houvesse uma fenda, a água estaria saindo e não entrando. Ele ficou em silêncio durante algum tempo, pensando sobre o que dizer em seguida.
— Certo — suspirou Tolland. — Aparentemente, a teoria da fissura não faz sentido. Mas vimos bioluminescência na água. A única conclusão é que este não é um ambiente fechado, no fim das contas. Eu compreendo que seus dados relativos à datação das amostras são baseados no pressuposto de que a geleira é um bloco sólido, mas...
— Pressuposto? — Norah estava ficando visivelmente irritada. — Lembre-se, Mike, de que não são só os meus dados. A NASA chegou à mesma conclusão. Todos nós confirmamos que esta geleira é sólida. Não há rachaduras.
Mike olhou para o outro lado do domo, em direção à área de imprensa.
— Não sei o que está ocorrendo, mas acho com toda a honestidade que precisamos informar o administrador e...
— Isso é uma grande besteira! — protestou Norah, indignada. – Estou afirmando que esta geleira é completamente pura. Não vou permitir que os dados que extraí das amostras sejam questionados por uma lambida na manga do casaco e um punhado de alucinações absurdas. — Ela andou até uma estação de trabalho próxima e começou a pegar alguns instrumentos.
— Vou pegar uma amostra real dessa água e provar que ela não contém nenhum plâncton de água marinha — vivo ou morto!
Rachel e os outros ficaram observando enquanto Norah usava uma pipeta estéril presa a um fio para recolher uma amostra da água do poço. Em seguida, ela colocou diversas gotas em um pequeno dispositivo que se parecia com um telescópio em miniatura. Então observou pela ocular, apontando o dispositivo em direção à luz que vinha do outro lado do domo. Pouco depois ela estava xingando, irritada.
— Não é possível! — Norah sacudiu o dispositivo e olhou novamente. — Mas que diabos! Tem que haver algo de errado com esse refratômetro.
— Água salgada? — provocou Corky.
Norah franziu o rosto.
— Parcialmente. Está indicando 3% de salinidade — o que é totalmente impossível. Esta geleira é uma pilha de neve, feita inteiramente de água doce. Não poderia haver sal algum.
Ela levou a amostra até um microscópio próximo e examinou-a. Soltou um grunhido.
— Plâncton? — foi a vez de Tolland perguntar.
— G. polyhedra — respondeu ela, agora com uma voz séria. — É um dos tipos de plâncton que nós, glaciologistas, encontramos com freqüência nos oceanos sob as plataformas de gelo. — Norah olhou para Tolland. — Estão mortos agora. Obviamente não sobreviveram durante muito tempo num ambiente com apenas 3% de água salgada.
Os quatro ficaram em silêncio diante do poço.
Rachel estava refletindo sobre quais eram exatamente as implicações daquele paradoxo em relação à descoberta como um todo. O dilema parecia ser algo pequeno quando comparado à questão maior do meteorito. Ainda assim, como analista de inteligência, ela já havia presenciado situações em que teorias inteiras haviam desmoronado por conta de problemas menores do que aquele.
— O que está acontecendo aqui? — disse uma voz grave.
Todos olharam para trás. O corpulento administrador da NASA surgiu do meio da escuridão.
— Uma pequena questão em relação à água no poço — disse Tolland. — Estamos tentando chegar a uma conclusão.
Corky falou quase feliz:
— Os dados de Norah sobre o gelo estão furados.
— Você me paga! — respondeu ela em voz baixa.
O administrador aproximou-se, olhando para eles com uma cara preocupada.
— E o que há de errado com os dados sobre o gelo? .
Tolland suspirou, ainda em dúvida, e disse:
— Encontramos 3% de água salina dentro do poço do meteorito, o que contradiz o relatório da glaciologia de que o meteorito estava completamente isolado em uma geleira totalmente formada por água doce. — Fez uma pausa. — Também encontramos plâncton.
Ekstrom parecia estar quase zangado.
— É óbvio que isso é impossível. Não há fissura nesta geleira. As varreduras do PODS confirmaram isto. O meteorito estava confinado em uma matriz sólida de gelo.
Rachel concordava com o ponto de vista de Ekstrom. De acordo com as varreduras de densidade feitas pela NASA, a plataforma de gelo era sólida. Dezenas de metros de gelo se estendendo para todos os lados em torno do meteorito. Sem rachaduras. Ainda assim, quando Rachel começou a pensar em como as varreduras de densidade eram feitas, uma idéia estranha lhe ocorreu...
— Além disso, as amostras da doutora Mangor confirmaram a integridade do gelo — Ekstrom continuou.
— Exatamente! — disse Norah, jogando o refratômetro sobre uma mesa. — Os dados foram duplamente corroborados. Não havia indicação de linhas de falha no gelo. O que não nos deixa nenhuma explicação para o sal e o plâncton.
— Eu estive pensando — disse Rachel, surpreendendo-se com a própria ousadia — e há uma outra possibilidade. — A sucessão de idéias lhe havia ocorrido a partir de uma lembrança bem peculiar.
Todos olharam para ela, obviamente céticos. Rachel sorriu.
— Há um outro raciocínio para explicar a presença de sal e plâncton. — Deu um sorrisinho malicioso para Tolland antes de acrescentar: — E francamente, Mike, estou surpresa que você não tenha pensado nisso.
— Plâncton congelado na geladeira — Corky não parecia nem um pouco convencido da explicação de Rachel. — Não quero ser grosseiro, mas em geral as coisas morrem quando congelam, e o que vimos estava piscando na nossa cara, lembra-se?
— É possível, no entanto — interrompeu Tolland, olhando para Rachel com admiração —, que a teoria dela faça sentido. Há muitas espécies que entram em “animação suspensa” quando seu meio ambiente as obriga a isso. Eu fiz um episódio sobre esse fenômeno uma vez.
— Isso. Você mostrou o lúcio, um peixe que fica congelado em lagos e espera o degelo para poder nadar novamente. Também falou sobre microorganismos conhecidos como “tardígrados”, que se desidratam completamente no deserto e podem permanecer assim durante décadas, voltando ao normal quando há chuva — disse Rachel.
Tolland deu uma risada.
— Então você realmente é fã do meu programa, não é?
Rachel sacudiu os ombros, um pouco envergonhada.
— O que exatamente você está querendo dizer, senhorita Sexton? — perguntou Norah.
— Ela está dizendo algo em que eu deveria ter pensado antes. Uma das espécies que mencionei nesse episódio era um tipo de plâncton que fica congelado na calota polar todo o inverno, hiberna no gelo e depois volta a nadar no verão, quando a calota se torna menos espessa. — Tolland fez uma pausa. — É verdade que a espécie que eu mostrei na TV não era a mesma que vimos, mas não deixa de ser uma possibilidade.
— Se o plâncton estivesse congelado — prosseguiu Rachel, feliz porque Michael tinha gostado de sua idéia —, isso explicaria o que descobrimos aqui. Em algum momento do passado, fissuras poderiam ter se aberto na geleira, permitindo a penetração de água marinha rica em plâncton, e depois congelado novamente. E se houvesse bolsões de água marinha congelada dentro da geleira? Especificamente, água contendo plâncton congelado? Vamos supor que, enquanto vocês estavam içando o meteorito aquecido, ele tenha passado por um desses bolsões. O gelo formado por água do mar congelada teria se dissolvido, liberando o plâncton da hibernação e resultando em uma pequena porcentagem de sal misturada à água doce.
— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Norah, resmungando de forma visivelmente irritada. — Agora todo mundo virou glaciologista aqui?
Corky continuava cético.
— Mas, neste caso, o PODS não teria mapeado os bolsões de gelo salinizado ao fazer suas varreduras? Afinal, o gelo salinizado e o gelo de água doce têm densidades diferentes.
— Minimamente diferentes — disse Rachel.
— Quatro por cento é uma diferença substancial — contrapôs Norah.
— Sim, em um laboratório — respondeu Rachel. — Mas o PODS faz suas medidas a uma altitude de 200 quilômetros no espaço. Seus computadores foram projetados para diferenciar coisas óbvias: gelo e neve derretida, granito e calcário. — Virou-se para o administrador. – O senhor concorda com minha suposição de que, ao medir densidades lá de cima, o PODS não possui resolução suficiente para distinguir gelo marinho de gelo de água doce?
O administrador concordou.
— Você está certa. Um diferencial de apenas 3% está abaixo do limite de tolerância do PODS. O satélite veria os dois tipos de gelo como sendo iguais.
Tolland agora estava curioso.
— Isso também explicaria o nível de água estático no poço. — Virou-se novamente para Norah e perguntou: — Você disse que a espécie de plâncton que encontrou no poço de extração se chamava...
— G. polyhedra — declarou Norah. — E sua próxima pergunta, claro, é se G. polyhedra é capaz de hibernar no gelo. Você ficará feliz em saber que sim. Com toda a certeza. A espécie é encontrada em abundância em torno de plataformas de gelo, é bioluminescente e pode hibernar dentro do gelo. Alguém tem mais alguma pergunta?
Trocaram olhares. Pelo tom de voz de Norah, obviamente havia um “porém”. Mas ela parecia ter confirmado a teoria de Rachel.
— Então — arriscou Tolland — você está dizendo que isso seria possível? A teoria faz sentido?
— Claro — disse Norah. — Desde que você seja um idiota completo.
Rachel olhou para ela, furiosa.
— O que você disse?
Norah Mangor olhou fixamente para Rachel.
— Suponho que, em sua área, ter informações parciais seja perigoso, não? Pois é. A mesma coisa vale em glaciologia. — Norah desviou o olhar, examinando as outras três pessoas ao seu redor. — Permitam-me deixar algo bem claro de uma vez por todas. As concentrações de gelo salinizado que a senhorita Sexton propôs de fato ocorrem. Em minha área, são chamadas de “interstícios”. Os interstícios, porém, não se formam como bolsões de água salgada, mas como vastas redes de gelo salinizado cujas ramificações têm a espessura de um fio de cabelo humano. Aquele meteorito teria que ter passado através de uma série incrivelmente densa desses interstícios para liberar uma quantidade de água salgada suficiente para criar uma mistura de 3% em um poço tão profundo.
Ekstrom ainda estava com uma cara fechada.
— Afinal, é possível ou não?
— De jeito nenhum — respondeu Norah, seca. — É completamente impossível. Eu teria me deparado com essas redes de gelo salinizado ao analisar minhas amostras.
— As amostras foram retiradas de locais escolhidos aleatoriamente, não? — perguntou Rachel. — Haveria alguma possibilidade de os locais de coleta das amostras, por mero azar, não terem esbarrado em nenhum bolsão de água marinha?
— Perfurei exatamente acima do meteorito. Depois peguei amostras de vários outros locais a poucos metros do meteorito, nos dois lados. Não daria para chegar mais perto.
— Estava só perguntando...
— Não há o que discutir — disse Norah. — Os interstícios de gelo marinho ocorrem apenas quando o gelo é sazonal — ou seja, quando ele se forma e se dissolve a cada estação. A plataforma Milne é constituída de gelo de formação rápida: gelo que se forma nas montanhas e fica lá até migrar para a zona de fragmentação e cair no mar. Por mais que a teoria do plâncton congelado seja conveniente para explicar esse fenômeno, posso lhes garantir que não há nenhuma rede de plâncton congelado escondida nesta geleira.
O grupo ficou novamente em silêncio.
Apesar de sua teoria ter sido cabalmente refutada, o método de análise sistemática de dados que Rachel sempre empregava não a deixava aceitar essa contestação. Instintivamente, ela sabia que a presença de plâncton congelado na geleira abaixo deles era a solução mais simples para aquela charada. A Lei da Parcimônia, pensou ela. Algo que seus instrutores no NRO haviam implantado bem no fundo de sua consciência.
Quando houver mais de uma explicação, a mais simples em geral é a certa.
A reputação de Norah Mangor obviamente estava em jogo, e ela tinha muito a perder se seus dados estivessem errados. Rachel estava pensando se Norah teria visto o plâncton, percebido que cometera um erro ao dizer que a geleira era um bloco maciço e agora estava tentando encobri-lo.
— Tudo o que sei — disse Rachel — é que acabo de fazer uma exposição para toda a equipe da Casa Branca afirmando que este meteorito foi descoberto em uma matriz intacta de gelo e depois selado dentro dela, ficando sem nenhum contato com o exterior desde 1716. Parece que este fato está sendo questionado agora.
O administrador da NASA ficou em silêncio, com uma expressão preocupada.
Tolland limpou a garganta.
— Tenho que concordar com Rachel. Havia água marinha e plâncton no poço. Não importa qual seja a explicação, obviamente não se trata de um ambiente inteiramente fechado. Não podemos afirmar isso. Corky estava se sentindo incomodado.
— Ei, pessoal, será que essa confusão a respeito do plâncton e da mistura com água do mar é realmente tão importante assim? Quero dizer, a perfeição do gelo em torno do meteorito não afeta em nada o meteorito em si, não é? Ainda temos os fósseis. Ninguém está questionando sua autenticidade. Se por acaso concluirmos que cometemos um erro ao analisar as amostras de gelo, ninguém vai se importar. As pessoas vão se concentrar nas provas que encontramos de que há vida em outro planeta.
Rachel foi categórica.
— Lamento dizer isso, doutor Marlinson, mas tenho que discordar do seu ponto de vista. Como profissional da área de análise de dados, posso dizer que qualquer erro mínimo nos dados que a NASA apresentar esta noite tem o potencial de gerar dúvidas sobre a credibilidade de toda a descoberta. Até mesmo sobre a autenticidade dos fósseis.
Corky olhou para ela, espantado.
— Como assim? Aqueles fósseis são irrefutáveis!
— Eu sei disso e você também. Mas, se surgirem boatos de que a NASA conscientemente apresentou dados questionáveis a respeito das amostras de gelo, acredite, o público irá começar imediatamente a pensar sobre o que mais a agência mentiu.
Norah deu um passo na direção dela, fulminando-a com o olhar.
— Meus dados sobre o gelo não estão em questão! — Virou-se para o administrador. — Posso provar, categoricamente, que não há gelo salinizado preso em lugar algum desta plataforma.
O administrador olhou para ela durante algum tempo.
— Como?
Norah explicou seu plano. Quando acabou, Rachel teve que admitir que a idéia parecia razoável. Ekstrom, porém, não estava tão seguro assim.
— E seus resultados serão definitivos?
— Você terá 100% de garantia. Se houver um maldito grama de água do mar congelada em qualquer ponto próximo ao poço do meteorito, você será capaz de vê-la. Mesmo algumas gotas isoladas aparecerão iluminadas em meus instrumentos como se fossem um outdoor de néon. O administrador concordou:
— Não temos muito tempo. A coletiva vai ao ar dentro de poucas horas.
— Estarei de volta em 20 minutos.
— Até que ponto da geleira você disse que precisará ir?
— Não muito longe. Duzentos metros devem bastar.
— E você tem certeza de que é seguro?
— Levarei foguetes sinalizadores — respondeu Norah. — E Mike irá comigo.
Tolland olhou para ela, surpreso.
— Vou?
— Mas que droga, Mike, claro que vai! Vamos estar unidos por cordas. Vou precisar de um par de braços fortes lá fora se houver uma rajada de vento.
— Mas...
— Ela está certa — disse o administrador, virando-se para Tolland. — Se ela for, alguém deve ir junto. Eu mandaria alguns de meus homens, mas, francamente, preferia manter essa história toda entre nós até concluirmos se é ou não um problema real.
Tolland não teve outra saída senão aceitar.
— Quero ir também — disse Rachel.
Norah virou-se para ela como uma cobra dando um bote.
— De jeito nenhum! Você fica!
— Pensando bem — disse o administrador —, eu me sentiria mais seguro se usássemos o grupo-padrão de quatro pessoas amarradas. Se forem em dupla e Mike escorregar, você não será capaz de segurá-lo. Quatro pessoas estarão mais seguras que duas. — Fez uma pausa, olhando para Corky. — Isso significa que o quarto neste grupo será você ou o doutor Ming. — Ekstrom olhou em volta na habisfera. — Aliás, onde está ele?
— Faz algum tempo que não o vejo — respondeu Tolland. — Talvez esteja tirando uma soneca.
Ekstrom virou-se novamente para Corky.
— Doutor Marlinson, não posso exigir que vá com eles, mas...
— Bom, fazer o quê? — disse Corky. — Já que estamos todos nos dando tão bem...
— Não! — protestou Norah. — Um grupo de quatro irá nos atrasar. Mike e eu vamos sozinhos.
— Vocês não vão sozinhos — ordenou o administrador. — Há um motivo pelo qual os grupos são sempre de quatro e vamos trabalhar da forma mais segura possível. A última coisa que quero é um acidente poucas horas antes da maior coletiva de imprensa em toda a história da NASA.
Gabrielle Ashe sentia-se insegura e assustada, sentada ali, no ar esfumaçado do escritório de Marjorie Tench. O que esta mulher quer comigo? Do outro lado da única mesa da sala, Tench estava recostada em sua cadeira, aparentemente sentindo um certo prazer com a situação desconfortável de Gabrielle.
— A fumaça está incomodando? — perguntou Tench, pegando mais um cigarro em seu maço.
— Não — mentiu Gabrielle.
Tench já estava acendendo outro cigarro, sem se importar com a resposta.
— Você e seu candidato parecem ter se interessado bastante pela NASA durante esta campanha.
— Sim — respondeu Gabrielle, seca, sem fazer nenhum esforço para esconder sua raiva —, graças a um estímulo criativo que recebemos. Você poderia me explicar o que está havendo?
Tench fez uma cara de inocência calculada.
— Você quer saber por que eu tenho lhe enviado munição por e-mail para seus ataques à NASA?
— A informação que você me enviou prejudicou o seu presidente.
— A curto prazo, sim.
O tom de voz arrogante de Tench deixava Gabrielle nervosa.
— O que você quer dizer com isso?
— Relaxe, Gabrielle. Meus e-mails não mudaram muita coisa. O senador Sexton já estava ridicularizando a NASA muito antes que eu entrasse em cena. Eu só o ajudei a esclarecer sua mensagem. Solidificar sua posição.
— Solidificar sua posição?
— Exatamente — Tench sorriu, mostrando os dentes amarelados. — Coisa que, devo dizer, ele fez de forma muito eficaz esta tarde na CNN.
Gabrielle lembrou-se da resposta do senador à questão provocadora de Tench. Ele havia deixado claro que, se necessário, não hesitaria em abolir a agência espacial. Sexton tinha ficado imprensado contra a parede, mas saiu daquela posição difícil com determinação e firmeza.
Tinha feito a coisa certa, não tinha? Pela aparência feliz de Marjorie Tench, Gabrielle sentia que algo estava sendo ocultado.
A consultora do presidente levantou-se subitamente. Com o cigarro entre os lábios, foi até um cofre na parede, pegou um grande envelope de papel pardo, retornou à mesa e sentou-se novamente. Gabrielle ficou olhando para o envelope.
Tench sorria, acariciando o papel pardo como um jogador de pôquer com um royal straightflush nas mãos. Ficou passando um de seus dedos amarelados na ponta do envelope, fazendo um som agudo e desagradável, como se estivesse saboreando a expectativa.
Gabrielle sabia que era apenas sua consciência pesada, mas a primeira coisa que lhe veio à mente era que o envelope continha algum tipo de prova sobre sua relação sexual com o senador. Ridículo, pensou em seguida. O encontro havia ocorrido no escritório de Sexton, a portas fechadas, após o expediente. Sem falar que, se a Casa Branca tivesse alguma prova concreta, já teria exposto ao público.
Podem ter suspeitas, pensou ela, mas não têm provas.
Tench pegou outro cigarro.
— Senhorita Ashe, você provavelmente não sabe disso, mas foi parar no meio de uma batalha que está se desenrolando por trás dos panos em Washington desde 1996.
Isso não era o que Gabrielle esperava ouvir.
— O que você quer dizer?
Marjorie acendeu outro cigarro. Seus lábios finos se comprimiram em torno dele.
— O que você sabe a respeito do Space Commercialization Promotions Act?
Gabrielle nunca tinha ouvido falar naquilo. Deu de ombros, sem ter o que dizer.
— É mesmo? Mas que surpresa, considerando-se a plataforma de seu candidato. O projeto de promoção da comercialização do espaço foi proposto em 1996 pelo então senador Walker. O projeto, resumindo muito, cita a incapacidade da NASA de fazer qualquer coisa de útil desde que levou o homem à Lua. Pede que a NASA seja privatizada imediatamente, vendendo todos os seus ativos para as companhias privadas do setor aeroespacial e permitindo que o sistema de mercado aberto explore o espaço de forma mais eficiente, removendo assim o custo que a agência espacial representa hoje no orçamento e, claro, nos impostos.
Gabrielle tinha ouvido os críticos da NASA sugerirem a privatização como solução para as dificuldades da agência, mas não tinha a menor idéia de que a coisa havia chegado ao ponto de se tornar oficial.
— Esse projeto de lei — prosseguiu Tench — já foi apresentado ao Congresso quatro vezes ao todo. É bastante similar a outras leis que privatizaram, com sucesso, indústrias estratégicas, como a da produção de urânio. O Congresso aprovou o projeto nas quatro vezes em que ele foi colocado em votação. Felizmente, a Casa Branca vetou-o todas as vezes. Zach Herney já teve que vetá-lo duas vezes.
— Aonde você quer chegar?
— Simples. O senador Sexton certamente dará apoio a um projeto desse tipo, caso se torne presidente. Me parece que Sexton não teria o menor escrúpulo de vender os ativos da NASA ao setor privado na primeira oportunidade. Em outras palavras, seu candidato iria preferir apoiar a privatização a manter o financiamento governamental para a exploração do espaço.
— Até onde sei, o senador jamais comentou em público sua posição em relação a esse projeto de lei para promoção da comercialização do espaço.
— É verdade. Ainda assim, conhecendo seu pensamento político, creio que você não ficaria muito surpresa se ele o fizesse, não?
— Sistemas baseados em livre competição e regras de mercado tendem a estimular a eficiência.
— Vou entender isso como um “sim”. Infelizmente, privatizar a NASA é uma idéia abominável e há um sem-número de razões pelas quais todos os ocupantes da Casa Branca vetaram essa lei desde que ela foi proposta inicialmente.
— Já ouvi os argumentos contra a privatização do espaço — respondeu Gabrielle — e entendo sua preocupação com o assunto.
— Entende mesmo? — Tench inclinou-se, chegando mais perto. — E quais foram esses argumentos que você ouviu?
Gabrielle mexeu-se, intimidada.
— Ouvi as tradicionais reclamações dos acadêmicos. Eles temem que, se privatizarmos a NASA, nossas atuais pesquisas para obter conhecimento sobre o espaço sejam rapidamente substituídas por empreitadas mais lucrativas.
— Com certeza. As ciências ligadas ao espaço iriam morrer em pouquíssimo tempo. Em vez de gastar dinheiro explorando nosso universo, as companhias aeroespaciais iriam buscar formas de minerar asteróides, construir hotéis no espaço e oferecer serviços comerciais de lançamento de satélites. Afinal, por que empresas privadas se preocupariam com o estudo das origens de nosso universo quando isso iria custar-lhes bilhões e não traria qualquer retorno financeiro?
— Provavelmente abandonariam as pesquisas, de fato. Mas certamente poderíamos criar um Fundo Nacional para as Ciências do Espaço, a fim de custear as missões acadêmicas, não?
— Ah. Já temos isso. Chama-se NASA.
Gabrielle ficou em silêncio.
— Abandonar a ciência em busca de lucros não é a questão central. Na verdade, isso é quase irrelevante quando comparado ao completo caos que iria resultar da permissão para que o setor privado atuasse livremente no espaço. Teríamos uma nova corrida do ouro, um outro “Velho Oeste”, com pioneiros reivindicando posses na Lua e em asteróides, assim como o direito de proteger suas posses por meio da força. Já soube de pedidos de companhias que pretendem construir outdoors em néon para piscar anúncios no céu à noite. Também soube de pedidos para hotéis no espaço e atrações turísticas cujos planos de implementação envolvem ejetar o lixo gerado no vazio do espaço, criando depósitos de lixo em órbita. Na verdade, ontem mesmo eu li uma proposta de uma companhia que deseja transformar uma parte do espaço em um mausoléu, lançando os cadáveres em órbita. Você pode imaginar o que aconteceria com nossos satélites de comunicações, que iriam passar a colidir com caixões espaciais? Semana passada, um bilionário, presidente de uma grande corporação, esteve em meu escritório pedindo permissão para lançar uma missão a um asteróide próximo, a fim de trazê-lo para mais perto da Terra e minerá-lo, buscando metais preciosos. Eu tive que lembrar a esse cidadão que alterar a órbita de asteróides pode causar uma catástrofe planetária sem precedentes! Senhorita Ashe, pode ter certeza de que, se esse projeto for aprovado, a multidão de empreendedores nessa corrida ao espaço não será composta por cientistas. Serão investidores com vastos recursos e pouca inteligência.
— Seus argumentos são convincentes — disse Gabrielle. — E estou certa de que o senador avaliaria essas questões cuidadosamente se estivesse em posição de votar a emenda. Mas o que isso tudo tem a ver comigo?
O olhar de Tench se fixou nela através da fumaça do cigarro.
— Há muita gente querendo ganhar muito dinheiro no espaço, e o lobby político está crescendo no sentido de remover todas as restrições e abrir as comportas. O poder de veto presidencial é a única barreira que resta contra a privatização... contra a anarquia completa no espaço.
— Então devo congratular Zach Herney por ter vetado a emenda.
— Meu medo é que seu candidato não teria tantos escrúpulos se fosse eleito.
— Devo dizer, novamente, que o senador com certeza iria avaliar essas questões se estivesse na posição de decidir sobre a emenda.
Tench não parecia nada convencida.
— Você tem alguma idéia de quanto o senador vem gastando em propaganda?
A questão surgiu do nada, pegando Gabrielle desprevenida.
— Esses números são públicos — respondeu ela.
— Mais de três milhões de dólares por mês.
Gabrielle deu de ombros.
— Se é o que você diz... — O valor estava bem próximo do real.
— É uma quantia considerável para se gastar.
— Ele tem uma quantia considerável para gastar.
— Sim, acho que ele planejou bem as coisas. Ou melhor, casou-se bem. — Tench fez uma pausa para dar uma longa tragada. — Eu sinto pela morte da mulher dele, Katherine. Foi muito duro para o senador — disse, com um suspiro trágico e irônico. — Não faz muito tempo que ela morreu, não é mesmo?
— Diga o que você quer ou vou me retirar.
Tench tossiu forte e depois pegou o envelope pardo. Tirou de dentro dele um pequeno bloco de papéis grampeados e passou-os para a assessora do senador.
— São os registros financeiros de Sexton.
Gabrielle analisou os documentos, espantada. Os registros cobriam vários anos. Ainda que ela não tivesse acesso direto aos detalhes das finanças de Sexton, percebeu que os dados eram autênticos: contas de banco, cartões de crédito, empréstimos, carteira de ações, imóveis, dívidas, ganhos e perdas de capital.
— Estes dados são pessoais. Onde conseguiu isto?
— Minha fonte não importa. Contudo, se você passar algum tempo analisando os números, verá que o senador Sexton não possui a quantidade de dinheiro que tem gasto atualmente. Depois da morte de Katherine, ele desperdiçou quase toda sua herança em investimentos malsucedidos, luxos pessoais e na compra do que parecia ser uma vitória certa nas primárias. Há cerca de seis meses, seu candidato estava falido.
Gabrielle achou que aquilo era um blefe. Se Sexton estava falido, certamente não estava agindo como tal. A cada semana ele comprava blocos maiores de tempo para sua propaganda na TV.
— Seu candidato — prosseguiu Tench — está atualmente gastando quatro vezes mais do que o presidente. E ele não tem mais recursos próprios.
— Nós recebemos muitas doações.
— Sim. Algumas delas são até mesmo legais.
Gabrielle olhou para ela, irritada.
— O que você disse?
Tench inclinou-se sobre a mesa, exalando seu bafo de fumante sobre Gabrielle.
— Gabrielle Ashe, vou lhe fazer uma pergunta e sugiro que pense bem antes de responder. Sua resposta pode decidir se você irá ou não passar os próximos anos na cadeia. Você está ciente de que o senador Sexton tem recebido dinheiro ilegal para a sua campanha, enormes subornos de companhias do setor aeroespacial que têm bilhões a ganhar com a privatização da NASA?
Gabrielle olhou para ela, confusa.
— Essa alegação é absurda!
— Você está me dizendo que não sabe nada a respeito dessas atividades?
— Eu acho que saberia se o senador estivesse aceitando subornos da magnitude que você está sugerindo.
Tench deu um sorriso sarcástico.
— Gabrielle, eu sei que o senador já compartilhou muitas coisas com você, mas ainda assim há muito sobre ele que você desconhece.
— Chega! Esta reunião está encerrada — disse a assessora, levantando-se.
— Pelo contrário — disse Tench, tirando o restante do conteúdo do envelope e espalhando-o sobre a mesa. — A reunião está apenas começando.
Dentro da sala de preparação da habisfera, Rachel estava se sentindo como um astronauta, vestindo um dos macacões Mark IX da NASA para sobrevivência em microclimas. O macacão preto com capuz de proteção, totalmente vedado, parecia uma roupa de mergulho inflada.
Era feito com duas camadas de viscoelástico e equipado com tubos ocos, através dos quais um gel denso era bombeado para manter a temperatura do corpo de seu usuário estável em ambientes quentes ou frios.
Rachel estava ajustando seu capuz apertado sobre a cabeça e viu o administrador da NASA como um sentinela silencioso na porta, claramente incomodado com a necessidade daquela pequena missão.
Norah Mangor andava de um lado para o outro, murmurando palavrões enquanto verificava o equipamento de cada um. Tolland já estava quase acabando de se vestir.
Quando Rachel terminou de fechar os zíperes, Norah pegou a válvula do lado de seu macacão e conectou-a a um tubo injetor que saía de um cilindro prateado, similar a um grande tanque de oxigênio.
— Encha bem os pulmões — disse Norah, abrindo a válvula.
Rachel ouviu um som sibilante e sentiu o gel sendo injetado dentro da veste. O tecido de viscoelástico se expandiu e o macacão se comprimiu em torno de seu corpo, pressionando a camada interna de roupas. Era como mergulhar a mão na água usando uma luva de borracha. Quando o capuz se inflou ao redor da cabeça, ele pressionou seus ouvidos, fazendo com que tudo soasse meio abafado. Estou dentro de um casulo.
— A melhor coisa dos Mark IX — disse Norah — é que são acolchoados. Você pode cair com a bunda no chão sem sentir nada.
Rachel estava certa que sim. Parecia que estava presa dentro de um colchão. Norah passou-lhe diversas ferramentas — uma piqueta de gelo, fitas tubulares e mosquetões —, prendendo-as ao cinturão de Rachel.
— Tudo isso? — perguntou Rachel, observando o equipamento. — Para percorrer 200 metros?
Norah olhou para ela, seca, e perguntou:
— Você quer vir ou não?
Tolland deu uma olhada para Rachel e disse:
— Norah está apenas sendo precavida.
Corky conectou seu traje ao tanque de infusão e inflou-o, achando aquilo bem divertido.
— Ei, parece que estou dentro de uma camisinha gigante!
A glaciologista resmungou:
— Como se você já tivesse experimentado...
Com um sorriso amigável, Tolland sentou-se ao lado de Rachel enquanto ela vestia suas pesadas botas e crampons.
— Tem certeza de que quer vir conosco?
Nos olhos de Tolland havia uma preocupação carinhosa e aconchegante.
Rachel assentiu, esperando que o gesto confiante não tivesse deixado transparecer seu medo crescente. Duzentos metros... é logo ali.
— E você pensava que só poderia encontrar aventuras em alto-mar...
Tolland riu. Continuou a conversa enquanto ajustava seus crampons:
— Cheguei à conclusão de que gosto de água em estado líquido bem mais do que dessa coisa congelada.
— Nunca tive uma grande atração por ela, nem de um jeito, nem de outro. Eu caí em um buraco no gelo quando era garota e, desde então, fico nervosa perto de água.
Tolland lançou-lhe um olhar compreensivo.
— Sinto muito. Quando essa história acabar, você tem que ir me visitar no Goya. Vou mudar sua forma de ver a água. Prometo.
O convite pegou-a de surpresa. O Goya era o navio de pesquisas de Tolland, bem conhecido por sua presença constante em Maravilhas dos mares, assim como por sua reputação como um dos barcos mais estranhos a cruzar os oceanos. Ainda que uma visita ao Goya não fosse exatamente o programa ideal para Rachel, era um convite difícil de recusar.
— Ele está ancorado a 12 milhas da costa de Nova Jersey agora — prosseguiu Tolland, brigando com as travas de seus crampons.
— Me parece um lugar meio estranho.
— Nem tanto. A costa do Atlântico é um lugar fantástico. Estávamos nos preparando para filmar um novo documentário quando fui interrompido pelo presidente.
Rachel riu.
— E sobre o que era o documentário?
— Sphyrna mokarran e megaplumas.
Rachel fez uma cara de quem não estava entendendo nada.
— Que bom que eu perguntei.
Tolland conseguiu, finalmente, travar os crampons e olhou para ela.
— Sério, eu vou passar umas duas semanas filmando por lá. Washington não é tão longe assim da costa de Jersey. Vá me visitar quando você voltar para casa. Não há nenhum motivo para passar o resto da vida com medo da água. Minha equipe certamente irá lhe estender um tapete vermelho de boas-vindas.
A voz de Norah Mangor soou como uma trombeta.
— Então, vamos sair ou vocês preferem que eu traga velas e champanhe?
Gabrielle não tinha a menor idéia de como reagir diante dos documentos que Marjorie havia espalhado na mesa à sua frente. A pilha de papéis incluía fotocópias de cartas, faxes, transcrições de conversas telefônicas, e tudo parecia corroborar a afirmação de que o senador Sexton estava mantendo um diálogo secreto com companhias privadas do setor espacial.
Tench empurrou algumas fotos granuladas, em preto e branco, na direção de Gabrielle.
— Suponho que isto também seja novidade para você.
Gabrielle olhou as fotos. A primeira delas mostrava o senador saindo de um táxi numa garagem subterrânea desconhecida. Sexton nunca anda de táxi. A segunda era uma foto tirada com uma teleobjetiva, mostrando Sexton entrando numa van branca estacionada num canto da garagem.
Aparentemente havia um homem idoso esperando por ele no carro.
— Quem é este? — perguntou Gabrielle, suspeitando que as fotos podiam ter sido forjadas.
— Alguém muito importante na SFF.
— A Space Frontier Foundation?
A SFF era como uma “entidade de classe” agregando as companhias particulares do setor espacial. Representava indústrias aeroespaciais, empreendedores, investidores... Qualquer um que tivesse interesses no espaço. Eram grandes críticos da NASA e argumentavam que o programa espacial americano se valia de práticas de mercado injustas a fim de impedir que a iniciativa privada pudesse lançar suas próprias missões ao espaço.
— A SFF — disse Tench — representa hoje mais de 100 grandes corporações, algumas das quais são empresas muito ricas que estão esperando ansiosamente que o Space Commercialization Promotions Act seja sancionado.
Gabrielle pensou a respeito. Por motivos óbvios, a SFF estava apoiando a campanha de Sexton, ainda que o senador tivesse sempre o cuidado de manter uma distância adequada devido às práticas de lobby bastante controvertidas usadas pela fundação. Recentemente, a entidade havia publicado uma crítica explosiva acusando a NASA de ser, na prática, um “monopólio ilegal”, cuja capacidade de operar em constante prejuízo e ainda assim se manter funcionando representava uma competição injusta com as empresas privadas.
De acordo com a SFF, sempre que a AT&T precisava que um novo satélite de telecomunicações fosse lançado, recebia ofertas de diversas empresas do setor privado para executar o serviço pela quantia razoável de 50 milhões de dólares. Mas, antes que o negócio fosse fechado, a NASA sempre aparecia e oferecia-se para lançar o satélite por míseros 25 milhões, ainda que a operação custasse cinco vezes mais do que isso. Os advogados da SFF acusavam a agência de operar no vermelho como uma das formas de manter-se no controle do espaço. A conta restante era paga pelos impostos dos contribuintes.
— Esta foto deixa claro — disse Tench — que seu candidato tem se encontrado às escondidas com uma organização que representa empresas privadas do setor espacial. — A consultora de Zach Herney apontou então para diversos outros documentos sobre a mesa. — Temos ainda vários memorandos internos da SFF pedindo que grandes quantias sejam coletadas das empresas pertencentes ao grupo, proporcionalmente ao valor de mercado de cada uma delas, e transferidas para contas controladas por Sexton. Na prática, essas companhias privadas estão pagando para colocar o senador na Casa Branca. A conclusão natural é que ele tenha concordado em aprovar o projeto de lei de comercialização do espaço e também em privatizar a NASA se for eleito.
Gabrielle olhou para a pilha de papéis, em dúvida.
— Você quer que eu acredite que a Casa Branca possui evidências de que seu oponente está envolvido com um financiamento de campanha profundamente ilegal, mas, mesmo assim, decidiu manter tudo em segredo?
— O que você me diria, então?
— Francamente, levando em conta sua capacidade de manipular as pessoas, seria mais lógico pensar que você preparou uma armadilha para mim, reunindo documentos falsos e algumas fotos adulteradas por uma pessoa, digamos, “criativa” da Casa Branca. Algo simples de fazer com um computador e um programa de manipulação de imagens.
— É uma possibilidade, devo admitir. Pena que não seja verdade.
— Não? Então como você teve acesso a toda essa documentação interna das corporações? Os recursos necessários para roubar todas as provas que estão nesta mesa estão além até mesmo da Casa Branca.
— Você está certa neste ponto. Todas essas informações chegaram aqui como um presente inesperado.
Gabrielle ficou em silêncio, surpresa com a resposta.
— Pois é — prosseguiu Tench —, recebemos muitas coisas desse tipo. O presidente possui muitos aliados políticos poderosos que desejam que ele seja reeleito. Lembre-se, também, de que seu candidato tem proposto cortes em diversos orçamentos, muitos dos quais afetam diretamente setores do governo sediados em Washington. O senador Sexton nunca teve qualquer pudor em citar o orçamento inchado do FBI como um exemplo dos excessos do governo. Creio que ele andou atacando a Receita Federal também. Talvez alguém de alguma dessas áreas tenha ficado um pouco magoado com ele.
Gabrielle percebeu aonde ela queria chegar. Funcionários do FBI e da Receita não teriam a menor dificuldade em obter aquelas informações. Poderiam, então, enviá-las à Casa Branca como um favor discreto para auxiliar a reeleição do presidente. Mas o que Gabrielle não podia acreditar era que o senador Sexton estivesse envolvido em financiamentos ilegais para sua campanha.
— Se os seus dados estão mesmo corretos — respondeu ela, em tom de desafio —, e eu duvido muito que estejam, por que vocês simplesmente não divulgam isso tudo?
— O que você acha?
— Porque obtiveram todos os dados ilegalmente.
— A forma como foram obtidos não faz a menor diferença.
— Mas claro que faz! Seriam inadmissíveis como provas em um inquérito.
— Inquérito? Quem falou em inquérito? Nós simplesmente deixaríamos isso vazar para a imprensa, que publicaria a história como sendo procedente de “fontes anônimas”, incluindo as fotos e a documentação. Sexton passaria a ser culpado até provar sua inocência. Sua forte posição anti-NASA subitamente se tornaria uma evidência clara de que vinha aceitando subornos.
Gabrielle não tinha o que responder.
— Está bem — disse ela, sem se deixar intimidar. — É sua vez, então, de me dizer por que vocês não deixaram vazar a informação.
— Simples: porque é publicidade negativa. O presidente prometeu não usar publicidade negativa na campanha, e ele vai se manter fiel a esse princípio enquanto for possível.
— Ah, deixa disso! Não venha me dizer que o presidente é tão “certinho” a ponto de não querer revelar essas informações porque seriam vistas como publicidade negativa!
— A questão é que seria negativo para o país. Há dezenas de empresas privadas envolvidas, muitas das quais são gerenciadas por pessoas honestas. Um escândalo assim denigre a imagem do Senado norte-americano, além de ser ruim para o moral do país. Políticos desonestos afetam negativamente toda a classe política, e os americanos precisam confiar em seus líderes. Revelar as informações iria desencadear uma investigação muito dura e provavelmente levaria à cadeia um senador, além de vários executivos importantes do setor aeroespacial.
O raciocínio tinha uma certa lógica, mas ainda assim Gabrielle duvidava que as acusações fossem verdadeiras.
— E o que isso tem a ver comigo?
— Colocando a coisa toda de forma bem simples, senhorita Ashe, se esses documentos vierem a público, seu candidato será indiciado pelo financiamento ilegal de sua campanha, terá seu mandato cassado e, muito provavelmente, terminará na cadeia. — Tench fez uma pausa. — A menos, é claro...
Gabrielle viu um brilho traiçoeiro no olhar da consultora.
— A menos quê...
Marjorie deu uma longa tragada em seu cigarro.
— A menos que você nos ajude a resolver as coisas de outra maneira.
Um silêncio pesado envolveu a sala. Tench tossiu.
— Gabrielle, preste atenção. Há três razões pelas quais decidi compartilhar essas informações desagradáveis com você. A primeira foi para lhe mostrar que Zach Herney é um homem decente, que coloca o bem-estar do governo acima de seus ganhos pessoais. A segunda foi para lhe informar que seu candidato não é tão confiável quanto você poderia estar pensando. E, por último, para convencê-la a aceitar a proposta que tenho a lhe fazer.
— Que é...?
— Gostaria de lhe dar uma chance de agir da forma correta. Da forma patriótica. Quer perceba ou não, você está numa posição única, que lhe permite evitar diversos escândalos desagradáveis aqui em Washington. Se puder fazer o que vou lhe pedir, talvez até consiga um lugar na equipe do presidente.
Um lugar na equipe do presidente? Ela está brincando.
— Senhora Tench, seja lá o que for que tem em mente, não gosto de ser chantageada, ameaçada ou coagida. Trabalho na campanha do senador porque acredito em seus princípios políticos. E, se isso que você está me mostrando é uma indicação clara de como Zach Herney costuma conduzir suas negociações políticas, não tenho o menor interesse em me associar a ele! Se você tem algo contra o senador Sexton, eu sugiro que deixe vazar para a imprensa. Sinceramente, acredito que tudo não passa de uma grande armação.
Tench soltou um suspiro pesaroso.
— Gabrielle, o financiamento ilegal de seu candidato é um fato. Lamento, pois sei que você confia nele. — Ela baixou o tom de voz. — Olhe, deixe-me simplificar isso. O presidente e eu levaremos a questão do financiamento a público se formos obrigados a tal, mas vai ser um escândalo de grandes proporções, envolvendo diversas empresas que estão agindo ilegalmente. Muitas pessoas inocentes terão que pagar por isso. — Tragou novamente seu cigarro e soprou a fumaça. — O que eu e o presidente estamos tentando é... encontrar uma outra maneira de desacreditar a ética do senador. Uma solução mais... contida, digamos. Algo que não cause problemas para os inocentes. — Ela apagou o cigarro e cruzou os braços. — De forma bem direta, gostaríamos que você admitisse publicamente que teve um caso com o senador.
Gabrielle congelou. Tench parecia absolutamente segura do que dizia.
Impossível. Gabrielle sabia que era impossível. Não havia provas. Só tinham feito sexo uma vez, atrás das portas trancadas do escritório do senador. Ela não tem provas. Está blefando. Gabrielle lutou para manter um tom firme na voz.
— Você presume muitas coisas, senhora Tench.
— É? Em relação ao seu caso com Sexton? Ou quanto a abandonar seu candidato?
— Ambos.
Tench deu um sorrisinho irônico e levantou-se.
— Bem, acho que é melhor esclarecermos pelo menos uma dessas hipóteses agora, não é? — Andou novamente até o cofre na parede e retornou com um envelope vermelho. Trazia impresso o selo da Casa Branca. Ela abriu o fecho, virou o envelope e deixou o conteúdo cair sobre a mesa, na frente de Gabrielle.
Dúzias de fotos coloridas se espalharam pela mesa, e Gabrielle viu toda a sua breve carreira indo por água abaixo na frente de seus olhos.
Do lado de fora da habisfera o vento catabático que descia furiosamente pela geleira era bem diferente dos ventos que Tolland estava acostumado a enfrentar. No oceano, o vento era uma função das marés e de frentes de pressão, batendo em rajadas, com fluxos e refluxos. O vento catabático, contudo, obedecia a uma física mais simples: ar frio e pesado descendo por uma inclinação na geleira como uma enorme onda. Era a tempestade mais violenta que o oceanógrafo já havia enfrentado. Se estivesse descendo a 20 nós, seria o sonho de qualquer velejador. Em sua velocidade atual de 80 nós, podia facilmente tornar-se um pesadelo até mesmo para alguém em solo firme.
Michael percebeu que, se ficasse parado e se inclinasse para trás, a força da ventania poderia facilmente jogá-lo para cima.
O vento se tornava ainda pior, deixando Tolland mais preocupado, porque o terreno onde estavam era ligeiramente inclinado. A plataforma descia lentamente em direção ao oceano, cerca de três quilômetros abaixo. Apesar dos crampons afiados presos às suas botas, ele tinha a desagradável sensação de que qualquer passo em falso poderia fazer com que fosse derrubado por uma lufada de vento e escorregasse pela ladeira de gelo sem fim. O curso-relâmpago de Norah Mangor sobre segurança em geleiras agora parecia ter sido perigosamente breve.
Piqueta de gelo, ela havia dito, amarrando uma ferramenta leve em formato de T no cinto de cada um deles enquanto se preparavam na habisfera. Tudo de que precisam se lembrar é que, se alguém escorregar ou for pego de surpresa por uma rajada de vento, segurem a piqueta com as duas mãos — uma na cabeça e a outra no cabo —, depois enfiem a lâmina no gelo e caiam sobre ela, plantando seus crampons na neve.
Após dizer essas palavras tranqüilizadoras, Norah havia amarrado um cinturão de segurança em cada um deles. Usando óculos protetores, todos saíram para a escuridão da tarde.
Naquele momento, os quatro percorriam seu caminho geleira abaixo em linha reta, com 10 metros de corda entre cada um deles. Norah liderava a equipe, seguida por Corky, depois vinha Rachel, e Tolland, no final, como âncora.
À medida que foram se afastando da habisfera, Tolland sentiu uma ansiedade crescente. Em seu traje inflado, apesar de estar confortavelmente aquecido, sentia-se como um astronauta desajeitado andando por um planeta distante. A Lua havia desaparecido por trás de nuvens de tempestade grossas e ameaçadoras, mergulhando toda a plataforma numa escuridão impenetrável. O vento catabático parecia se tornar mais forte a cada minuto, fazendo uma pressão constante nas suas costas. Forçando a vista através de seus óculos de proteção para distinguir as formas na imensidão deserta que os cercava, Michael começou a compreender o quanto aquele lugar era de fato perigoso.
Mesmo levando em conta as precauções redundantes da NASA, ele estava um pouco surpreso com a decisão do administrador de arriscar quatro vidas lá fora em vez de apenas duas. Especialmente quando as outras duas pessoas envolvidas eram a filha de um senador e um famoso astrofísico. Tolland preocupava-se com Rachel e Corky, o que era normal para alguém que, como capitão de um navio, estava acostumado a sentir-se responsável por aqueles que o cercavam.
— Fiquem atrás de mim — Norah gritou, sua voz imediatamente engolida pelo vento. — Deixem que o trenó nos conduza.
O trenó de alumínio no qual Norah estava transportando seu equipamento de testes parecia-se com um trenó para crianças em maior escala. Nele haviam sido colocados equipamentos de diagnóstico e acessórios de segurança que ela usara na geleira durante aqueles últimos dias. Toda a parafernália — incluindo a bateria, os sinalizadores de segurança e um poderoso farol acoplado à frente do trenó — estava amarrada sob uma cobertura plástica forte e impermeável. Apesar da carga pesada, o trenó deslizava montanha abaixo por conta própria. Norah apenas o segurava ligeiramente, quase deixando que ele os conduzisse.
Tolland sentiu que a distância entre eles e a habisfera estava crescendo. Olhou para trás, por sobre os ombros. Tinham percorrido apenas 50 metros, mas a curvatura pálida do domo estava quase sumindo na escuridão tempestuosa.
— Alguém mais está preocupado em achar o caminho de volta? — gritou Tolland. — A habisfera está quase invisí... — Suas palavras foram cortadas pelo som alto e sibilante de um sinalizador que Norah acabara de acender. O brilho avermelhado iluminou um círculo com uns 10 metros de raio ao redor deles. Norah usou seu calcanhar para cavar um pequeno buraco no gelo da superfície, fazendo uma pilha protetora de neve do lado que estava soprando o vento. Em seguida enfiou o sinalizador ali dentro.
— São migalhas high-tech — ela gritou.
— Migalhas? — perguntou Rachel, protegendo os olhos da luz forte.
— João e Maria — gritou Norah. — Os sinalizadores duram cerca de uma hora, o que nos dará tempo para encontrar o caminho de volta.
Ela virou-se e continuou andando, levando-os cada vez mais fundo na escuridão da geleira.
Gabriele Ashe saiu furiosa do escritório de Marjorie Tench e quase derrubou uma secretária que estava passando. Humilhada, tudo o que podia ver eram as imagens nas fotos: braços e pernas enroscados, rostos em pleno êxtase.
Ela não tinha a menor idéia de como aquelas fotos tinham sido tiradas, mas sabia muito bem que eram reais. Devia haver uma câmera oculta dentro do escritório do senador, em algum lugar acima deles. Que Deus me proteja. Uma das fotos mostrava Gabrielle e Sexton transando em cima da mesa, seus corpos entrelaçados sobre diversos documentos oficiais.
Marjorie alcançou Gabrielle antes que ela entrasse no Salão dos Mapas. Ela trazia nas mãos o envelope vermelho com as fotos.
— Devo presumir, por sua reação, que desta vez as fotos são autênticas? — Ela parecia estar se divertindo com aquilo. — Espero que elas possam convencê-la de que nossos outros dados também são verídicos. Vieram da mesma fonte.
Gabrielle podia sentir seu rosto vermelho e todo o seu corpo pulsando enquanto andava pelo corredor a passos rápidos. Onde diabos fica a saída?
Com suas longas pernas, Tench não tinha a menor dificuldade para acompanhar a jovem assessora.
— O senador Sexton jurou para o mundo que vocês dois mantêm apenas uma relação platônica. Sua declaração na televisão foi bem convincente. — Tench fez um gesto rápido, apontando para trás, e disse: — Na verdade, tenho uma cópia em VHS na minha sala, caso você queira refrescar sua memória.
Gabrielle não tinha se esquecido de nada. Lembrava-se muito bem da entrevista coletiva. As palavras de Sexton negando o ocorrido foram tão firmes quanto emocionadas.
— Eu realmente sinto muito por isso — continuou a consultora, com ironia —, mas o senador Sexton olhou para os americanos através das câmeras e disse uma mentira nua e crua. O público tem o direito de saber. E vai saber. Vou cuidar disso pessoalmente. A única questão agora é de que forma o público descobrirá. Achamos que a melhor maneira é que você mesma conte tudo.
Gabrielle estava furiosa.
— Você realmente acredita que vou ajudá-la a crucificar meu próprio candidato?
O rosto de Tench se endureceu.
— Estou lhe dando uma chance de sair disso com a cabeça erguida, Gabrielle. Uma chance de poupar muita gente de uma grande humilhação, sendo honesta e dizendo a verdade. Tudo de que preciso é que você assine uma declaração admitindo que teve um caso com Sexton.
Gabrielle encarou-a, espantada.
— O quê?
— Só isso. Uma declaração assinada nos daria aquilo de que precisamos para lidar com o senador de forma discreta, evitando que todo o país seja envolvido nessa confusão desagradável. Minha oferta é bem simples: assine uma declaração e ninguém jamais verá as fotos.
— Você quer uma declaração?
— Tecnicamente, eu precisaria de um depoimento com testemunhas, mas temos um tabelião aqui no prédio que poderia...
— Você é louca — disse Gabrielle, continuando a andar.
Tench não saiu do lado dela, soando mais agressiva agora.
— O senador Sexton vai ser jogado aos leões de uma forma ou de outra, Gabrielle, e estou lhe dando uma chance de sair disso sem ter que ver seu belo traseiro nu na primeira página dos jornais! O presidente é um homem íntegro e não gostaria de publicar essas fotos. Basta me dar uma declaração oficial, confessando o caso com suas próprias palavras, para que todos nós possamos manter um pouco de dignidade.
— Não estou à venda.
— Talvez não, mas parece que seu candidato está. Ele é um homem perigoso e está agindo de forma ilegal.
— Ele está agindo de forma ilegal? Foram vocês que entraram ilegalmente em um escritório no prédio do Senado e tiraram fotos usando câmeras ocultas! Já ouviu falar em Watergate?
— Ah, mas não temos nada a ver com essa sujeirada. As fotos vieram da mesma fonte que nos entregou as informações sobre o financiamento da SFF para a campanha de Sexton. Alguém tem prestado muita atenção em vocês dois.
Gabrielle passou como uma flecha pela mesa do segurança que lhe entregara a identificação. Ela arrancou o crachá e jogou-o sobre o vigia, que assistia à cena espantado. Tench continuou atrás dela.
— Não lhe resta muito tempo, senhorita Ashe — disse ela quando chegaram perto da saída. — Ou me traz uma declaração assinada admitindo ter dormido com o senador ou então hoje, às oito da noite, o presidente será forçado a expor tudo em público: as propinas que Sexton recebeu, suas fotos, as conexões ilícitas. E, acredite, quando o público souber que você não abriu a boca enquanto Sexton mentia descaradamente sobre o que aconteceu entre vocês, seu nome será jogado na lama junto com o dele.
Gabrielle finalmente encontrou a porta e foi em sua direção.
— Na minha mesa, até às oito. Seja esperta — disse Tench pouco antes de Gabrielle sair, colocando nas mãos dela o envelope com as fotografias. — Pode guardá-las como recordação, querida. Tenho muitas outras.
Rachel sentiu um arrepio de medo enquanto descia a plataforma de gelo em direção à noite que se adensava. Imagens inquietantes percorriam sua mente — o meteorito, o poço de extração, o plâncton fosforescente.
Quais seriam as implicações se Norah tivesse cometido um erro na análise das amostras de gelo?
Uma matriz sólida de água doce, insistira a glaciologista, argumentando que tinha perfurado e retirado amostras em volta de toda a área do poço, assim como da camada que ficava diretamente acima do meteorito. Se a geleira contivesse interstícios de água salgada cheios de plâncton, ela os teria visto. Teria mesmo? De qualquer forma, a intuição de Rachel continuava retornando para a solução mais simples.
Há plâncton congelado nesta geleira.
Dez minutos e quatro sinalizadores mais tarde, Rachel e os outros estavam a uns 250 metros da habisfera. Sem nenhum aviso, Norah parou subitamente.
— É aqui — disse ela, como se fosse uma daquelas pessoas supostamente mágicas que dizem “sentir” o local ideal para cavar um poço.
Rachel virou-se e olhou para a subida atrás deles. A habisfera já havia desaparecido há muito na noite fracamente iluminada pela Lua pálida, mas a linha de sinalizadores podia ser vista claramente, o mais distante deles piscando de forma tranqüilizadora, como uma estrela longínqua. Os sinalizadores estavam em uma linha perfeitamente reta, como uma pista de pouso cuidadosamente calculada. Rachel estava impressionada com a habilidade de Norah.
— Esse foi outro motivo para usarmos o trenó — ela explicou quando notou que Rachel estava observando os sinalizadores. — As lâminas são paralelas. Se deixarmos a gravidade conduzi-lo sem interferirmos, temos a garantia de que estamos andando em linha reta.
— Um bom truque — gritou Tolland. — Eu queria que tivéssemos algo assim em mar aberto.
Nós ESTAMOS em mar aberto, pensou Rachel, lembrando-se do oceano abaixo deles. Por um curto segundo a chama mais distante chamou sua atenção. Ela havia desaparecido, como se a luz tivesse sido tapada por uma forma passando na frente dela, mas reapareceu logo em seguida.
Rachel ficou preocupada.
— Norah — bradou sobre o ruído do vento —, você disse que havia ursos polares aqui?
A glaciologista estava preparando o último sinalizador e não ouviu o que Rachel disse ou preferiu ignorá-la.
— Os ursos polares — gritou Tolland — se alimentam de focas. Só atacam humanos quando invadimos seu espaço.
— Mas estamos na terra dos ursos polares, não estamos? — Rachel nunca conseguia se lembrar em qual pólo havia ursos e em qual havia pingüins.
— Estamos. O Ártico se chama assim por causa dos ursos: Arktos é “urso” em grego — Tolland respondeu.
Que ótimo! Rachel olhou nervosamente para a escuridão em torno dela.
— A Antártica não tem ursos polares — prosseguiu Tolland. — Então é chamada de Anti-arktos.
— Obrigada, Mike — gritou Rachel. — Chega dessa conversa sobre ursos.
Ele riu.
— Tudo bem. Desculpe.
Norah enfiou um último sinalizador na neve. Mais uma vez os quatro se viram engolfados em um brilho avermelhado, parecendo balões inflados dentro de seus trajes pretos de proteção. Além do círculo de luz projetado pelo sinalizador, o resto do mundo se tornou completamente invisível, um manto de escuridão que os envolvia.
Rachel e os outros observaram enquanto Norah plantou os pés no gelo e puxou com cuidado o trenó para trazê-lo até onde eles estavam, alguns metros acima. Então, mantendo a corda tensionada, ajoelhou-se e ativou manualmente as garras que serviam de freio para o trenó: quatro pontas curvas que penetravam no gelo para imobilizá-lo. Feito isso, levantou-se e tirou a neve do corpo, deixando a corda em torno de sua cintura se afrouxar.
— Vamos lá — disse ela. — Mãos à obra.
A glaciologista andou até o lado do trenó que estava protegido do vento e começou a abrir os ilhoses que mantinham a cobertura protetora sobre o equipamento. Rachel, achando que havia sido muito dura com Norah, aproximou-se para ajudar a abrir a parte traseira da cobertura.
— Por Deus, NÃO! — gritou Norah, levantando a cabeça. — Jamais faça isso! — Rachel ficou rígida, sem entender. — Jamais abra o lado que está contra o vento! Você iria criar um bolsão de ar e este trenó sairia voando como se fosse um guarda-chuva em um túnel de vento.
Rachel afastou-se.
— Perdão, eu...
Norah fulminou-a com os olhos.
— Você e o menino-prodígio não deveriam estar aqui fora.
Nenhum de nós deveria, pensou Rachel.
Amadores, Norah pensou, irritada, xingando o administrador por sua insistência em mandar Corky e Sexton com ela. Esses idiotas vão acabar fazendo com que alguém morra aqui fora. A última coisa que ela desejava naquele momento era ter que bancar a babá.
— Mike, preciso de ajuda para retirar o GPR do trenó.
Tolland ajudou-a a remover o GPR, um radar de penetração do solo, e a posicioná-lo sobre o gelo. O instrumento se parecia com três pequenas pás de trator que tivessem sido fixadas em paralelo a uma armação de alumínio. O dispositivo inteiro não ocupava mais que um metro de comprimento e era conectado através de cabos a um transformador e a uma bateria marinha que estavam no trenó.
— Isso é um radar? — perguntou Corky, gritando em meio ao vento.
Norah balançou a cabeça, em silêncio. O GPR era muito mais adequado para visualizar gelo salinizado do que o PODS. O transmissor do GPR emitia pulsos eletromagnéticos através do gelo, e esses pulsos eram refletidos de forma diferenciada por substâncias com estruturas cristalinas distintas. A água doce pura congelava numa estrutura plana e estratificada. Mas a água marinha congelava numa estrutura contendo mais tramas ou ramos, por conta de seu conteúdo de sódio, fazendo com que os pulsos do GPR retornassem de forma irregular, reduzindo muito o número de reflexões.
Norah ligou a máquina.
— Isto vai me dar um corte transversal da geleira a partir do eco da camada de gelo em torno do poço de extração — ela gritou. — O software interno da máquina irá desenhar a imagem conforme o modelo tridimensional e depois imprimi-la. Qualquer gelo resultante de água marinha será visto como uma sombra.
— Você vai imprimir? — Tolland estava surpreso. — Você tem como imprimir aqui?
Ela apontou para um cabo saindo do GPR e indo até um dispositivo ainda protegido dentro da cobertura do trenó.
— Nesses casos, não temos muita escolha. As telas de computador consomem muita energia da bateria, sempre preciosa; então os glaciologistas que fazem pesquisa de campo imprimem os dados usando impressoras térmicas. As cores não ficam muito boas, mas o toner de uma laser se solidifica em temperaturas de — 20°. Aprendi isso da pior forma no Alasca.
Norah pediu que todos ficassem num plano mais baixo que o GPR, enquanto se preparava para alinhar o transmissor de forma que ele fizesse uma varredura da área onde estava o buraco do meteorito, a duas centenas de metros deles. Mas, quando Norah olhou na direção de onde haviam vindo, não conseguiu ver nada.
— Mike, preciso alinhar o transmissor do GPR com o local onde estava o meteorito, mas este sinalizador está me cegando. Vou subir um pouco a encosta, só o suficiente para sair da luz. Então levantarei as mãos em linha com os sinalizadores e você completará o alinhamento no GPR.
Tolland assentiu, ajoelhando-se ao lado do dispositivo.
Norah firmou seus crampons no gelo e curvou-se contra o vento, subindo o aclive em direção à habisfera. O vento catabático naquele dia estava muito pior do que imaginara, e ela podia sentir que uma tempestade estava se aproximando. Não importava. Terminariam aquilo em poucos minutos. Eles vão ver que estou certa. Ela andou 10 metros de volta, na direção da habisfera. Chegou ao limite da escuridão exatamente quando sua corda ficou esticada ao máximo.
Olhou na direção de onde vieram. Quando seus olhos se acostumaram com o escuro, a linha de sinalizadores apareceu lentamente, alguns graus à sua esquerda. Ela ajustou sua própria posição até ficar perfeitamente alinhada com eles. Então estendeu os braços como um compasso, virando o corpo e indicando o vetor exato.
— Estou alinhada agora!
Tolland ajustou o GPR e acenou.
— Tudo pronto!
Norah deu uma última olhada para a colina, feliz por ter uma linha iluminada indicando o caminho de casa. De repente, uma coisa estranha aconteceu. Por um instante, um dos sinalizadores mais próximos desapareceu totalmente. Antes mesmo que ela tivesse tempo de pensar que ele se apagara, o sinalizador reapareceu. Se ela não tivesse certeza de que era completamente impossível, pensaria que alguma coisa havia passado entre o sinalizador e sua posição. Certamente não havia mais ninguém lá fora... a menos, claro, que o administrador tivesse começado a se sentir culpado e enviado uma equipe da NASA atrás deles.
Norah não achava que ele fosse fazer isso. Provavelmente não foi nada, concluiu. Uma rajada de vento deve ter levado a chama temporariamente.
Norah voltou para o GPR.
— Está alinhado?
— Creio que sim — disse Tolland.
Ela foi até o dispositivo de controle que estava no trenó e apertou um botão. O GPR emitiu um zunido estridente e depois parou.
— É isso, acabou.
— Só isso? — perguntou Corky.
— O trabalho todo está na configuração adequada. O disparo em si só demora um segundo.
Dentro do trenó, a impressora térmica já tinha começado a traçar a imagem. Ela estava coberta por um plástico transparente e, aos poucos, ejetava um papel denso e enrolado. Norah esperou até que a impressão houvesse terminado, depois colocou a mão por baixo do plástico e pegou a folha impressa. Eles vão ver, pensou ela, levando a impressão até bem perto do sinalizador para que todos pudessem examiná-la. Não vai ter nenhuma água salinizada.
Todos se juntaram em torno de Norah enquanto ela se posicionava perto do sinalizador, agarrando firmemente a impressão com suas luvas. Ela respirou fundo e desenrolou o papel para examinar os dados. A imagem impressa, contudo, fez com que tremesse, horrorizada.
— Meu Deus!
Norah olhou para a folha, sem acreditar no que estava vendo. Como era esperado, a impressão revelou uma seção transversal bastante nítida do poço de extração cheio d’água. O que ela jamais teria imaginado ver, contudo, eram os contornos acinzentados e pouco nítidos de uma forma humanóide flutuando a meio caminho do fundo do poço. Seu sangue gelou.
— Meu Deus, há um corpo dentro do poço.
Todos olharam assustados, sem dizer uma palavra.
Como um fantasma, o corpo flutuava de cabeça para baixo no poço estreito. Envolvendo-o, como uma espécie de capa, havia uma estranha aura. Norah entendeu, então, o que era aquilo. O GPR capturara um traço vago do pesado casaco da vítima: um grosso, longo e familiar casaco de lã de camelo.
— É o Ming — sussurrou. — Ele deve ter escorregado...
Norah Mangor nunca pensou que ver o corpo de Ming dentro do poço seria o menor dos dois choques que aquela impressão iria revelar, mas, quando seus olhos continuaram descendo em direção ao fundo do poço, ela viu algo mais.
O gelo sob o poço de extração...
Norah observou, pensativa. Sua primeira idéia era de que algo tinha dado errado na varredura. Depois, conforme estudou a imagem mais atentamente, uma compreensão perturbadora começou a crescer dentro dela, como a tempestade se formando em torno deles. As pontas do papel sacudiam-se fortemente ao vento enquanto ela virava a folha e olhava mais intensamente para aquele ponto.
Mas... isto é impossível!
A verdade atravessou-a como um raio. E o que ela descobriu parecia querer devorá-la, a tal ponto que se esqueceu completamente de Ming.
A glaciologista compreendeu de onde vinha a água salgada no poço. Caiu de joelhos na neve, ao lado do sinalizador. Mal podia respirar.
Segurando o papel em suas mãos, começou a tremer.
Meu Deus, isso nem passou pela minha cabeça.
Em um súbito ataque de raiva, ela virou-se na direção da habisfera da NASA.
— Seus calhordas! — gritou, sua voz sumindo no vento. — Seus calhordas filhos-da-mãe!
Na escuridão, a apenas 15 metros dali, Delta-Um aproximou seu dispositivo CrypTalk da boca e disse apenas duas palavras para seu controlador: “Eles descobriram.”
Norah Mangor continuou ajoelhada no gelo quando Michael Tolland, sem entender o que tinha acontecido, pegou a impressão do GPR que ela estava segurando, trêmula. Ainda abalado com a descoberta do corpo de Ming flutuando no poço, Tolland tentou concentrar-se para decifrar a imagem. Viu o corte transversal do poço do meteorito descendo da superfície por 60 metros dentro do gelo. Viu também o corpo de Ming flutuando no poço. Depois seus olhos foram descendo pelo papel e ele sentiu que algo estava incorreto. Diretamente abaixo do poço de extração, uma coluna negra de água do mar congelada se estendia para baixo até atingir o oceano. O diâmetro da coluna de gelo marinho era grande. Na verdade, era o mesmo diâmetro do poço em si.
— Minha nossa! — Rachel gritou, olhando por cima dos ombros de Tolland. — Parece que o poço do meteorito atravessa a plataforma de gelo até atingir o oceano!
Tolland permaneceu em silêncio, estarrecido, incapaz de aceitar aquilo que sabia ser a única explicação possível. Corky parecia igualmente inquieto. Norah gritou:
— Alguém cavou um buraco sob a plataforma! — Seus olhos estavam dilatados de raiva. — Alguém inseriu intencionalmente essa rocha por baixo do gelo!
Apesar do lado idealista de Tolland querer rejeitar as palavras de Norah, seu pragmatismo científico indicava que provavelmente ela estava certa. A plataforma de gelo Milne estava flutuando sobre o oceano a uma distância suficiente para permitir a passagem de um submarino. Uma vez que as coisas são bem mais leves sob a água, mesmo um pequeno submarino, não muito maior do que o submersível de pesquisa Triton de Michael, que carregava apenas um homem, poderia ter transportado o meteorito em suas garras de transporte de carga. O submarino poderia ter vindo pelo oceano, submergido abaixo da plataforma e perfurado o gelo em direção à superfície. Depois, teria usado um braço extensível ou balões infláveis para empurrar o meteorito para cima no poço. Quando o meteorito estivesse posicionado, a água do oceano, que teria preenchido novamente o poço por trás do meteorito, iria começar a congelar. Assim que o poço se fechasse o suficiente para manter o meteorito firme, o submarino poderia retrair seu braço mecânico e sumir, deixando que a Mãe Natureza se encarregasse de fechar o restante do túnel e apagar todos os traços da armação.
— Mas por quê? — perguntou Rachel, tirando a impressão da mão de Tolland e olhando para ela. — Por que alguém faria isso? Você tem certeza de que o GPR está funcionando bem?
— Claro que está! E essa impressão explica perfeitamente a presença de bactérias fosforescentes na água!
Tolland tinha de admitir que a lógica de Norah era assustadoramente impecável. Dinoflagelados fosforescentes teriam nadado para cima, por instinto, para dentro do poço do meteorito, ficando depois presos sob o meteorito e congelando. Mais tarde, quando Norah esquentou o meteorito, o gelo imediatamente abaixo dele derreteu, libertando o plâncton. Mais uma vez, os dinoflagelados teriam nadado para cima, desta vez chegando até à superfície dentro da habisfera, onde acabariam morrendo por falta de água salgada.
— Isso é completamente absurdo! — gritou Corky. — A NASA tem um meteorito com fósseis extraterrestres dentro dele. Quem se importaria com o local onde foi encontrado? Por que se dariam ao trabalho de enterrá-lo sob uma geleira?
— Isso é algo que eu não sei — retrucou Norah —, mas a impressão do GPR é clara. Fomos enganados. Aquele meteorito não é um fragmento do que Jungersol avistou em 1716. Foi inserido aqui recentemente, há cerca de um ano, talvez. Do contrário o plâncton já teria morrido! — Ela já começara a recolocar seu equipamento de GPR de volta no trenó e a amarrá-lo. — Temos que voltar e contar a alguém! O presidente está prestes a dar uma coletiva de imprensa com dados totalmente errados! A NASA o enganou!
— Espere! — gritou Rachel. — Não deveríamos fazer ao menos uma segunda varredura para confirmar isso? Nada do que descobrimos faz sentido. Quem irá acreditar em nós?
— Todo mundo — disse Norah. — Quando eu entrar na habisfera, coletar uma amostra do fundo do poço do meteorito e constatar que é gelo marinho, posso lhe garantir que todos vão acreditar!
Norah soltou os freios do trenó com o equipamento e virou-o na direção do domo. Começou a subir a colina, enterrando seus crampons no gelo e puxando o trenó com uma facilidade surpreendente. Agora ela era uma mulher com uma missão.
— Vamos! — anunciou em voz alta, liderando a cordada em direção ao perímetro do círculo iluminado. — Não sei o que a NASA está aprontando aqui, mas com certeza não gosto nem um pouco de ser usada como um peão em seu...
O pescoço de Norah curvou-se violentamente para trás, como se ela tivesse sido atingida na testa por um objeto invisível. Ela soltou um grito gutural de dor, cambaleou e caiu para trás no gelo. Quase no mesmo instante, Corky deu um berro e girou de lado como se seu ombro tivesse sido impulsionado para trás. Caiu no gelo, também gritando de dor.
Rachel se esqueceu imediatamente da impressão que estava em suas mãos, de Ming, do meteorito e daquele túnel peculiar sob o gelo. Havia sentido um projétil passar por sua orelha, errando por pouco sua têmpora. Instintivamente, jogou-se de joelhos no chão, puxando Tolland para baixo com ela.
— O que está acontecendo? — gritou Tolland.
Rachel pensou que fosse uma tempestade de granizo. Mesmo assim, pela força com que Corky e Norah haviam sido atingidos, ela estimou que a velocidade do granizo teria que ser de centenas de quilômetros por hora. Misteriosamente, aquela súbita saraivada de objetos do tamanho de bolas de gude parecia estar direcionada para Rachel e Tolland, caindo ao redor deles por toda parte, levantando pequenos jatos de gelo. Ela rolou o corpo por cima do estômago, enfiou os crampons frontais de suas botas no gelo e se lançou na direção da única proteção disponível: o trenó. Tolland chegou em seguida, arrastando-se e agachando-se ao lado dela.
Ele olhou para Norah e Corky, que estavam desprotegidos sobre o gelo.
— Puxe-os pela corda! — gritou, fazendo força para puxá-los. De nada adiantou, pois a corda estava emaranhada em torno do trenó.
Rachel enfiou o papel impresso no bolso de velcro de seu macacão Mark IX, depois engatinhou ao redor do trenó, tentando desembaraçar a corda de suas lâminas. Tolland foi logo atrás.
A tempestade subitamente caiu sobre o trenó, como se a Mãe Natureza houvesse abandonado Corky e Norah e agora tivesse decidido mirar em Rachel e Tolland. Um dos projéteis bateu no topo da cobertura do trenó, afundando parcialmente, e depois ricocheteou, indo cair na manga do macacão de Rachel.
Quando ela viu o que era, entrou em pânico. Em um instante a perplexidade que estava sentindo transformou-se em terror. Aquelas “pedras de granizo” haviam sido fabricadas pelo homem. A bola de gelo que caíra em sua manga era uma esfera perfeita do tamanho de uma grande cereja. A superfície era polida e lisa, marcada apenas por um sulco linear ao redor da circunferência, como uma velha bala de mosquetão torneada em uma prensa. Aqueles projéteis de gelo haviam sido sem dúvida alguma manufaturados.
Balas de gelo...
Como tinha acesso a documentos militares, Rachel estava a par dos novos armamentos que utilizavam munições improvisadas, conhecidas pela sigla IM. Iam desde rifles que compactavam a neve em balas de gelo até rifles para o deserto capazes de transformar a areia em projéteis de vidro, sem falar nas armas com jatos d’água capazes de atirar pulsos de líquido com tanta força que podiam quebrar ossos. As armas IM tinham uma grande vantagem sobre as tradicionais, pois dispunham de recursos em abundância e literalmente fabricavam seus próprios projéteis no campo de batalha, fornecendo aos soldados uma quantidade infinita de munição sem que eles tivessem que transportar muito peso.
Rachel sabia que aquelas bolas de gelo atiradas contra eles estavam sendo comprimidas na hora, usando neve colocada na coronha do rifle.
Como ocorria freqüentemente no mundo da inteligência, quanto mais alguém sabia sobre um assunto, mais terrível o cenário ficava. Aquele caso não era uma exceção. Rachel teria preferido um estado de ignorância tranqüilo, mas seus conhecimentos de armamentos IM apontavam para um fato estarrecedor: eles estavam sendo atacados por uma das forças de Operações Especiais dos Estados Unidos, as únicas no país que tinham permissão, naquele momento, para usar aquelas armas experimentais em campo.
A presença de uma força militar secreta trazia consigo uma segunda conclusão ainda pior: a probabilidade de sobreviver àquele ataque era quase nula. O pensamento mórbido foi interrompido quando um dos projéteis de gelo encontrou uma passagem por entre a parede de equipamentos no trenó e bateu direto em seu estômago. Mesmo dentro do acolchoamento de seu Mark IX, Rachel sentiu-se como se um peso-pesado invisível houvesse acertado um soco em seu estômago. Sua visão periférica ficou borrada e ela balançou para trás, agarrando o trenó para manter o equilíbrio.
Michael Tolland largou a corda que o prendia a Norah e pulou para segurar Rachel, mas chegou tarde. Ela caiu para trás, puxando uma pilha de equipamentos consigo. Ela e Tolland caíram sobre o gelo junto com os aparelhos eletrônicos.
— São... balas... — ela disse, com a voz entrecortada, tentando respirar em meio à dor. — Corra!
O metrô ganhou velocidade ao sair da estação Federal Triangle, mas Gabrielle gostaria de poder se afastar ainda mais rápido da Casa Branca. Sentou em um canto vazio do vagão, rígida como uma estátua, observando as sombras escuras passarem como um borrão veloz do lado de fora. O envelope vermelho que Marjorie Tench lhe dera estava em seu colo, pesando como se tivesse 10 toneladas.
Tenho que falar com Sexton!, pensou enquanto o trem avançava na direção do prédio onde ficava o escritório do senador. Imediatamente!
Na luz fria e entrecruzada por sombras do vagão, Gabrielle sentia-se como se houvesse tomado alucinógenos e estivesse no meio de uma grande viagem química. Luzes difusas corriam pelo teto como estroboscópios piscando em câmera lenta em uma discoteca. O grande túnel subia por todos os lados como um cânion cada vez mais profundo.
Isso não pode estar acontecendo.
Olhou para o envelope em seu colo. Abriu o fecho, colocou a mão lá dentro e pegou uma das fotos. As luzes internas do trem piscaram brevemente, iluminando com sua tonalidade fria uma imagem escandalizante — Sedgewick Sexton deitado, nu, em seu gabinete, seu rosto extasiado virado diretamente para a câmera, com Gabrielle deitada, também nua, a seu lado.
Ela estremeceu, jogou a foto de volta para dentro do envelope e rapidamente fechou-o.
Está tudo acabado.
Assim que o trem saiu do túnel e passou para um trecho na superfície, perto da L’Enfant Plaza, Gabrielle pegou o celular e ligou para o número pessoal do senador. A ligação caiu na caixa postal. Confusa, ela telefonou para o escritório. A secretária atendeu.
— Oi, é Gabrielle. Ele está aí?
A secretária parecia irritada.
— Onde você se meteu? Ele esteve procurando você.
— Tive uma reunião que demorou bem mais do que eu pretendia. Preciso falar com ele, é urgente.
— Você vai ter que esperar até amanhã. Ele está em Westbrooke.
Westbrooke Place Luxury Apartments era o prédio onde Sextom residia quando estava em Washington.
— Ele não está atendendo a linha pessoal — disse Gabrielle.
— A noite de hoje foi bloqueada como A.P. — lembrou a secretária. — Ele saiu daqui mais cedo.
Gabrielle fez uma careta. Assuntos pessoais. No meio de toda a confusão, ela havia se esquecido completamente de que Sexton tinha agendado aquela noite para ficar sozinho em casa. Ele fazia muita questão de não ser perturbado durante os horários que bloqueava como A.P. “Só batam na minha porta se o prédio estiver pegando fogo”, costumava dizer. “Qualquer outra coisa pode esperar até a manhã seguinte.” Gabrielle decidiu que o prédio de Sexton definitivamente estava pegando fogo.
— Preciso que você entre em contato com ele.
— Impossível.
— Isso é muito sério, eu realmente...
— O que eu quis dizer é que é literalmente impossível. Ele deixou o pager em cima da minha mesa ao sair e pediu que ninguém o perturbasse esta noite. Foi bastante enfático — ela fez uma pausa antes de prosseguir. — Mais do que o normal.
Merda.
— Tudo bem, obrigada. — Gabrielle desligou o telefone.
“L’Enfant Plaza”, uma voz gravada anunciou no alto-falante. “Conexões para todas as linhas.”
Fechando os olhos, Gabrielle tentou clarear as idéias, mas imagens terríveis não paravam de atormentá-la... aquelas fotos tórridas com o senador... a pilha de documentos mostrando que Sexton estava recebendo propinas. Ela ainda podia ouvir as exigências ríspidas de Tench martelando em sua mente. Faça a coisa certa. Assine a declaração. Admita que tiveram um caso.
O barulho dos freios encheu o vagão enquanto o trem parava na estação.
Gabrielle tentava imaginar o que o senador faria se as fotos fossem publicadas. A primeira coisa que cruzou seus pensamentos deixou-a ao mesmo tempo chocada e envergonhada.
Sexton mentiria.
Era realmente este o seu primeiro instinto em relação ao seu candidato?
Sim. Ele iria mentir de forma brilhante.
Se aquelas fotos chegassem à mídia sem que Gabrielle tivesse admitido o caso entre os dois, o senador iria declarar que eram uma falsificação abominável. Não havia nada de surpreendente na edição digital de imagens. Qualquer um que tivesse navegado por mais de 15 minutos pela internet já teria visto uma das muitas fotos perfeitamente retocadas onde se viam cabeças de celebridades digitalmente montadas no corpo de outras pessoas, em geral atrizes ou atores de filmes pornôs cometendo atos obscenos. Gabrielle já tinha presenciado a habilidade do senador de olhar para uma câmera de TV e mentir convincentemente sobre o caso que tiveram. Não tinha dúvidas, agora, de que ele poderia persuadir todo mundo de que aquelas fotos eram um golpe baixo para tentar deturpar sua carreira. Sexton iria se revoltar diante daquele ultraje repugnante e talvez chegasse mesmo a insinuar que o próprio presidente estava por trás daquela falsificação.
Não era de espantar que a Casa Branca não tivesse levado nada a público. As fotos, pensou Gabrielle, poderiam ser outro tiro pela culatra, assim como a acusação inicial havia sido. Por mais que parecessem reais, não constituíam de forma alguma uma prova conclusiva.
Sentiu sua esperança renovar-se. A Casa Branca não pode provar nada disso!
O golpe de Tench para cima de Gabrielle tinha sido simples, porém brutal: admitir o caso ou ver o senador indo para a prisão.
Agora tudo fazia sentido. A Casa Branca precisava que ela admitisse o caso, do contrário as fotos de nada valeriam. Ao recobrar sua autoconfiança, Gabrielle ficou subitamente animada.
O trem parou e as portas se abriram. Ao mesmo tempo, uma outra porta se abriu na mente de Gabrielle, mostrando-lhe de imediato uma possibilidade encorajadora.
Talvez tudo o que Tench me disse sobre o suborno tenha sido uma mentira.
Afinal, o que exatamente ela tinha visto? Mais uma vez, nenhuma prova conclusiva: algumas fotocópias de documentos bancários, uma foto granulada de Sexton em uma garagem. Tudo aquilo podia perfeitamente ser falsificado. Usando uma tática perspicaz, a consultora de Zach Herney teria mostrado os documentos falsos e, ao mesmo tempo, as fotos reais de Gabrielle com o senador, esperando que ela “engolisse” o pacote inteiro como verdade. Era algo que os políticos chamavam de “autenticação por associação” e que usavam o tempo todo para fazer com que conceitos duvidosos parecessem verdadeiros.
Sexton é inocente, Gabrielle disse para si mesma. A Casa Branca estava desesperada e tinha decidido tentar uma jogada arriscada, assustando-a com a possibilidade de tornar público o caso com o senador. Precisavam que ela denunciasse Sexton publicamente, escandalosamente. Saia enquanto é tempo, Tench havia dito. Você tem até oito da noite. O velho truque de pressionar para convencer. Tudo se encaixa perfeitamente, ela pensou.
Exceto por uma coisa...
A única peça que não se encaixava bem nesse quebra-cabeça era que Tench estivera mandando e-mails para Gabrielle com conteúdo prejudicial à NASA. Aquilo claramente sugeria que o governo queria que Sexton consolidasse sua posição contra a agência de forma que pudesse usar isso contra ele. Ou não? Gabrielle concluiu que havia uma explicação perfeitamente lógica até mesmo para os e-mails.
E se não viessem de Tench?
Era possível que Marjorie tivesse descoberto que havia um traidor em sua equipe mandando dados para Gabrielle por e-mail. Ela teria demitido o traidor e assumido seu papel, enviando aquela última mensagem chamando a assessora de Sexton para uma reunião. Tench poderia, então, fazer de conta que deixara vazar todas as informações da NASA de propósito, preparando uma cilada para ela.
O sistema hidráulico do metrô começou a emitir um silvo agudo, preparando o fechamento das portas em L’Enfant Plaza. Gabrielle olhou para a plataforma, do lado de fora, sua mente girando a mil. Não sabia se suas suspeitas faziam sentido ou se eram apenas uma grande justificativa que havia montado. Fosse como fosse, tinha que falar com o senador imediatamente, não importando se era uma noite A.P. ou não.
Segurando firme o envelope com as fotografias, Gabrielle saiu correndo do vagão, com as portas se fechando atrás dela. Ela tinha um novo destino.
Westbrooke Place Apartments.
Lutar ou fugir. Como biólogo Tolland conhecia bem as enormes mudanças fisiológicas que ocorriam quando um organismo sentia que estava em perigo. A adrenalina inundava o córtex cerebral, aumentando os batimentos cardíacos e ordenando ao cérebro que tomasse a mais antiga e mais profundamente enraizada de todas as decisões biológicas: lutar ou fugir.
O instinto de Tolland lhe dizia para fugir, mas a lógica o lembrava de que ainda estava amarrado a Norah Mangor. De qualquer forma, não havia para onde fugir. O único abrigo possível seria a habisfera, e os agressores tinham se posicionado na parte mais alta do terreno, eliminando essa possibilidade. Atrás dele, o terreno de gelo aberto abria-se numa planície de três quilômetros que terminava em uma queda abrupta no mar glacial. Fugir naquela direção significava morte por exposição ao frio. Independentemente de todas as barreiras práticas à fuga, Tolland sabia que não podia deixar os outros para trás. Norah e Corky ainda estavam em terreno aberto, unidos pela cordada a Rachel e a ele mesmo.
Tolland ficou abaixado próximo a Rachel enquanto os projéteis de gelo continuavam a bater na lateral do trenó de equipamento que havia virado. Ele remexeu o conteúdo espalhado, tentando encontrar alguma arma, um sinalizador, um rádio... qualquer coisa.
— Corra! — gritou Rachel, ainda com dificuldades para respirar.
Naquele momento a saraivada de projéteis de gelo cessou sem razão aparente. Mesmo com o vento cortante, a noite agora parecia calma — como se uma tempestade houvesse se dissipado.
Espreitando com cuidado pelo canto do trenó, Tolland presenciou uma terrível cena.
Saindo do perímetro externo de escuridão para a zona iluminada surgiram três figuras fantasmagóricas, deslizando sem nenhum esforço sobre esquis. Os homens usavam roupas térmicas completamente brancas.
Não carregavam bastões de esqui, e sim grandes rifles que não se pareciam com nenhuma arma que Tolland já tivesse visto. Mesmo seus esquis eram estranhos: futurísticos e curtos, pareciam-se mais com rollerblades alongados do que com esquis.
Com tranqüilidade, como se já soubessem que haviam vencido aquela batalha, as figuras pararam ao lado da vítima mais próxima, Norah Mangor, que jazia inconsciente na neve. Tremendo, Tolland apoiou-se nos joelhos e olhou por cima do trenó para os agressores. Eles o olharam de volta através de seus complexos óculos eletrônicos. Não pareciam estar muito preocupados com ele.
Pelo menos não naquele momento.
Delta-Um não sentia o menor remorso ao olhar para a mulher inconsciente no gelo à sua frente. Havia sido treinado para obedecer ordens e não para questionar motivos.
A mulher vestia um macacão grosso e preto, de proteção térmica. Tinha uma marca de impacto em seu rosto, e sua respiração era curta e penosa. Um dos rifles de gelo IM a tinha acertado em cheio, deixando-a inconsciente.
Hora de terminar o trabalho.
Delta-Um se ajoelhou ao lado da mulher inconsciente enquanto seus dois companheiros de equipe mantinham os outros alvos sob a mira de seus rifles.
Um deles apontava para o homem baixo e inconsciente estirado sobre o gelo próximo a eles; e o outro, para o trenó virado onde se escondiam mais duas pessoas. Eles podiam se mover facilmente e terminar logo o trabalho, mas as três vítimas restantes estavam desarmadas e não tinham como escapar. Apressar-se para matá-las seria um descuido.
Nunca disperse o foco a menos que seja absolutamente necessário. Enfrente um adversário de cada vez. Seguindo o mote de seu treinamento, a Força Delta mataria aquelas pessoas uma de cada vez. O mais impressionante era que não deixaria nenhum rastro que revelasse como elas haviam morrido.
Agachado ao lado da mulher, Delta-Um tirou suas luvas térmicas e juntou um montinho de neve. Comprimindo a neve com as mãos, abriu a boca da mulher e começou a enfiar a neve garganta abaixo. Encheu toda a boca, empurrando a neve o mais fundo que podia. Ela estaria morta em menos de três minutos.
Aquela técnica, inventada pela máfia russa, era chamada de byelaya smert, a morte branca. A vítima sufocava muito antes que a neve em sua garganta se dissolvesse. E, depois que morria, o corpo se mantinha quente durante tempo suficiente para que o gelo derretesse. Mesmo que alguém suspeitasse de algo, não haveria uma arma ou qualquer evidência de violência imediatamente perceptível. Após um exame mais detalhado, alguém iria entender o que havia acontecido, mas isso lhes daria algum tempo. As balas de gelo, por sua vez, iriam se misturar ao restante da neve e sumir, e a ferida no rosto da mulher daria a impressão de que ela havia levado um grande tombo no gelo, o que não seria improvável naquela ventania.
As outras três pessoas seriam incapacitadas e mortas da mesma forma. Então Delta-Um iria colocá-las todas no trenó, arrastá-las algumas centenas de metros para fora de sua rota original, reatar as cordas de segurança e arrumar os corpos de forma adequada. Algumas horas mais tarde, os quatro seriam encontrados congelados na neve, aparentemente vítimas de superexposição e hipotermia. Quem descobrisse os corpos provavelmente se perguntaria o que estavam fazendo fora da rota, mas ninguém ficaria surpreso por estarem mortos. Afinal, seus sinalizadores haviam se apagado, as condições atmosféricas eram ruins e ficar perdido na plataforma de gelo Milne era morte certa.
Delta-Um havia acabado de enfiar a neve na garganta da mulher. Antes de passar à próxima vítima, ele desatou o mosquetão do boldrié dela. Iria reconectá-lo mais tarde. Contudo, por enquanto, não queria que as duas pessoas escondidas atrás do trenó tentassem puxar Norah para um local seguro.
Michael Tolland havia acabado de assistir a um assassinato grotesco.
Nem sua imaginação mais sombria poderia ter inventado algo tão sórdido. E o pior é que, depois de soltar a corda de Norah Mangor, os três agressores se voltaram para Corky.
Tenho que fazer algo!
Corky havia recobrado os sentidos e estava gemendo, tentando sentar-se, mas um dos soldados empurrou-o de volta para o gelo, subiu em cima dele e manteve seus braços presos ao chão ajoelhando-se sobre eles. O astrofísico soltou um grito de dor que foi imediatamente engolfado pelo vento raivoso.
Tomado por um terror enlouquecido, Tolland começou a revirar todo o material do trenó que estava espalhado à sua volta. Tenho que encontrar algo aqui! Uma arma! Qualquer coisa! Tudo o que via, entretanto, era equipamento de análise do gelo, sendo que a maior parte dele fora destruída quase completamente pelos projéteis de neve.
Ao lado dele, ainda grogue, Rachel tentava sentar-se, usando sua piqueta de gelo para apoiar-se.
— Fuja, Mike...
Tolland olhou para a piqueta amarrada ao cinturão de Rachel e lembrou-se de que Norah também lhe dera uma daquelas. Poderia ser usada como uma arma. Ou quase. Tolland pensou rapidamente quais seriam suas chances de atacar três homens armados com aquele pequeno martelo.
Suicídio.
Rachel virou-se de lado e sentou-se. Foi então que Tolland viu uma coisa ao lado dela. Uma grande bolsa de plástico. Rezando para que, contra todas as possibilidades, houvesse uma arma de sinalização ou um rádio lá dentro, ele se arrastou até a bolsa e a pegou. Dentro encontrou uma grande folha de tecido Mylar, cuidadosamente dobrada.
Inútil. Ele tinha algo similar em seu navio. Era um pequeno balão de observação atmosférica, projetado para levantar pequenas cargas de equipamento não muito mais pesadas do que um computador pessoal. O balão de Norah não iria ajudar em nada, especialmente sem um tanque de hélio por perto.
Ouvindo Corky se debater sem ter como escapar, Tolland foi tomado por uma sensação de impotência que há muito não sentia. Completo desespero. Completo senso de inutilidade. Como no clichê segundo o qual as pessoas vêem a vida passar perante seus olhos antes da morte, Tolland começou a se lembrar de imagens de sua infância. Por um breve momento, lá estava ele, velejando em San Pedro, aprendendo um divertido esporte náutico, o parasail — puxado por uma corda amarrada a um barco, elevando-se sobre o mar, mergulhando risonho na água, subindo e descendo como uma criança suspensa por uma corda de sino de igreja, seu destino determinado por um pára-quedas ondulante e os ensejos da brisa oceânica.
Os olhos de Tolland voltaram-se imediatamente para o balão de Mylar em suas mãos. Ele compreendeu que sua mente não estava divagando, e sim tentando lhe fornecer uma saída! Parasail.
Corky ainda estava lutando contra o homem que o atacava quando Tolland rasgou a bolsa protetora em volta do balão. Michael não tinha muitas dúvidas de que seu plano era completamente insano, mas permanecer ali seria morte certa para todos. Ele agarrou o balão de Mylar dobrado. No grampo destinado à carga havia um aviso: CUIDADO! NÃO USAR COM VENTOS ACIMA DE 10 NÓS.
Que se dane! Segurando o balão firmemente para impedir que se abrisse, Tolland arrastou-se até Rachel, que estava apoiada de lado no chão. Quando ele chegou bem perto, gritando: “Segure isto!”, ela o olhou confusa, sem entender o que pretendia fazer. Tolland lhe entregou o tecido dobrado e, com as mãos livres, prendeu a garra de carga do balão em um dos mosquetões de seu boldrié. Em seguida, rolando para o lado, prendeu a garra em um dos mosquetões de Rachel também.
Agora os dois formavam um só corpo, unidos pela cintura.
Entre eles, a cordada solta seguia pela neve até Corky, que ainda estava se debatendo... e mais 10 metros até o mosquetão solto ao lado do corpo de Norah Mangor.
Tarde demais para salvar Norah, pensou Tolland. Não há nada que eu possa fazer.
Os soldados estavam agachados ao lado de Corky, que se contorcia desesperadamente. Um deles havia juntado um montinho de neve e preparava-se para enfiá-lo na garganta do cientista. Tolland sabia que não lhe restava muito tempo. Pegou o balão dobrado que estava com Rachel. O tecido era leve como papel, mas indestrutível. Lá vamos nós.
— Segure-se!
— Mike? O que você está...
Tolland jogou o Mylar dobrado no ar, acima de suas cabeças. O vento abriu-o como um pára— quedas em um ciclone, inflando o tecido na mesma hora com um estalido alto.
Michael sentiu um puxão violento em seu cinturão e percebeu rapidamente que havia subestimado — e muito — a força do vento catabático. Em menos de um segundo, ele e Rachel estavam deslizando um pouco acima do gelo, sendo arrastados geleira abaixo. Um instante depois, Tolland sentiu sua corda de segurança tensionar-se ao puxar Corky Marlinson. Dez metros atrás, seu amigo apavorado foi arrancado de baixo de seus agressores perplexos, fazendo com que um deles saísse rolando pelo gelo. Corky soltou um grito horripilante quando ganhou velocidade sobre a neve quase acertando o trenó derrubado e depois debatendo— se para os lados. Um segundo pedaço de corda frouxa foi puxado atrás de Corky... a corda que antes estava conectada a Norah Mangor.
Nada a fazer, Tolland repetiu para si mesmo.
Como uma massa embolada de marionetes humanas, os três corpos deslizavam pela geleira, descendo em direção ao oceano. Alguns projéteis de gelo passaram por perto, mas Tolland sabia que os agressores tinham perdido sua oportunidade. Atrás dele, os soldados vestidos de branco foram aos poucos sumindo na distância, reduzindo-se a manchas fracamente iluminadas pelo brilho do sinalizador.
Tolland agora podia sentir o gelo correndo por baixo de seu macacão acolchoado cada vez mais rápido. O alívio de ter escapado dissipou-se rapidamente. À sua frente, a menos de três quilômetros de distância, a plataforma de gelo Mune terminava abruptamente em um precipício. Logo depois havia uma queda de 30 metros e o impacto letal das ondas do oceano Ártico.
Marjorie Tench sorria consigo mesma ao descer as escadas em direção ao Setor de Comunicações da Casa Branca, a sala de transmissões toda informatizada que era usada para distribuir releases elaborados no andar de cima, no Gabinete de Imprensa. A reunião com Gabrielle Ashe tinha corrido bem. Ela não estava certa se a assessora ficara apavorada o bastante para entregar uma declaração admitindo seu caso com o senador, mas com certeza tinha sido uma boa tentativa.
Seria sensato da parte dela pular fora da campanha, pensou Tench. Aquela garota não tinha idéia do tombo que seu candidato estava prestes a levar.
Dentro de poucas horas, a meteórica coletiva de imprensa do presidente iria deixar seu adversário de joelhos. Aquilo já era um fato. Se a jovem assessora cooperasse, seria a humilhação final, o golpe mortal na candidatura de Sexton. Pela manhã, Tench poderia liberar a confissão assinada por Gabrielle para a imprensa, junto com a fita da entrevista em que o senador negava tudo.
Um golpe duplo.
Política, afinal, não se limitava a ganhar uma eleição. Era preciso vencer de forma esmagadora a fim de ter poder suficiente para levar adiante a sua visão. Historicamente, qualquer presidente que chegava ao cargo com uma margem apertada de votos não conseguia realizar grandes projetos, pois já começava o mandato enfraquecido, e isso era algo que o Congresso parecia não perdoar.
Idealmente, a destruição da campanha do senador Sexton deveria ser abrangente: um ataque por duas vertentes que o destruísse política e eticamente ao mesmo tempo. Uma estratégia clássica da arte da guerra.
Force o inimigo a lutar em duas frentes simultâneas. Quando um candidato conhecia algum detalhe negativo a respeito de seu oponente, muitas vezes esperava até que tivesse um segundo fato para ir a público apresentar os dois. Investir em duas frentes era sempre mais eficaz do que mirar em um único ponto, particularmente se o ataque duplo incorporasse aspectos diversos da campanha: um primeiro contra a atuação política, um segundo contra o caráter do candidato. Negar um ataque político requer lógica, ao passo que negar um ataque ao caráter requer uma reação emocional. Contrapor-se simultaneamente aos dois era um ato de equilíbrio quase impossível.
Naquela noite, o senador Sexton teria que pensar desesperadamente sobre como sair do pesadelo político de um impressionante triunfo da NASA. Seus problemas, contudo, seriam bem maiores se fosse forçado a defender sua posição contra a NASA enquanto estivesse sendo chamado de mentiroso por uma mulher importante de sua equipe.
Tench cruzou a entrada do Setor de Comunicações, eletrizada pela proximidade da batalha. Política era guerra. Ela respirou fundo e olhou seu relógio: 18h15. A primeira rajada seria disparada em breve.
Entrou.
O Setor de Comunicações era pequeno não por falta de espaço, mas simplesmente porque não havia necessidade de uma estrutura maior. Era uma das estações de comunicação em massa mais eficientes do planeta, mas sua equipe contava com apenas cinco pessoas. Naquele momento, todas estavam de pé na frente de seus equipamentos eletrônicos, como nadadores e preparando para o tiro de largada.
Tench sentiu a expectativa da equipe. Eles estão prontos, pensou.
Era impressionante que, a partir daquela pequena sala, com apenas duas horas de antecedência, fosse possível entrar em contato com mais de um terço da população do mundo. O Setor de Comunicações da Casa Branca tinha conexões eletrônicas com literalmente dezenas de milhares de veículos de comunicação do planeta, desde os maiores conglomerados de televisão até os menores jornais de cidades do interior. Com o equipamento que havia lá, era possível atingir o mundo inteiro simplesmente pressionando alguns botões.
Computadores cuspiam releases nas caixas de entrada de jornais, revistas, empresas de rádio, televisão e notícias via internet do Maine até Moscou. Sistemas de discagem telefônica automática ligavam para milhares de gerentes de conteúdo de empresas jornalísticas e tocavam anúncios de voz previamente gravados. Uma página na web com “últimas notícias” fornecia atualizações constantes e conteúdo pré-formatado. As redes de televisão com capacidade para receber imagens em tempo real — CNN, NBC, ABC, CBS e outras empresas estrangeiras — eram bombardeadas de todas as formas a fim de lhes garantir tempo de transmissão gratuito na TV, ao vivo. Seja lá o que for que essas cadeias estivessem transmitindo, num dado momento seria interrompido para um pronunciamento presidencial urgente.
Como um general inspecionando suas tropas, Tench caminhou em silêncio até à mesa de edição e pegou uma cópia impressa do “comunicado urgente” que seria disparado por todos os equipamentos disponíveis. Quando Tench terminou de ler, riu para si mesma. Pelos padrões habituais, o release era um tanto ou quanto exagerado — parecia-se mais com um anúncio do que com um pronunciamento —, mas o presidente havia ordenado ao Setor de Comunicações que fosse o mais veemente possível. E foi exatamente o que fizeram. Aquele texto estava perfeito: muitas palavras-chave e pouco conteúdo. Uma combinação que sempre funcionava. Até mesmo as agências de notícias que usavam programas capazes de detectar palavras-chave nos e-mails que recebiam iriam marcar diversos pontos relevantes naquele texto.
De: Setor de Comunicações da Casa Branca
Assunto: Comunicado Urgente do Presidente
O Presidente dos Estados Unidos fará um pronunciamento urgente à imprensa hoje, às 20h00, horário-padrão de Washington, a partir da Sala de Imprensa da Casa Branca. O assunto a ser abordado é, até o momento, secreto. Transmissões ao vivo de áudio e vídeo estarão disponíveis pelos canais habituais.
Colocando o papel de volta na mesa, Marjorie Tench olhou ao redor da sala e acenou levemente com a cabeça para a equipe, demonstrando que estava satisfeita.
Acendeu um cigarro e deu uma tragada, deixando o suspense crescer. Então deu um pequeno sorriso e disse: “Senhoras e senhores, podem ligar os motores.”
Rachel já não era capaz de mais nenhum raciocínio lógico. Não estava mais pensando no meteorito, na misteriosa impressão de GPR que carregava no bolso, em Ming ou no terrível ataque que tinham acabado de sofrer. Só havia um pensamento em sua mente.
Sobrevivência.
Escorregando sobre o gelo como se estivesse numa estrada lisa e sem fim, ela não sabia se seu corpo estava dormente por causa do medo ou se havia simplesmente sido protegido pelo macacão, mas de toda forma não sentia dor. Não sentia nada. Ainda.
Deslizando sobre a lateral de seu corpo, unida a Tolland pela cintura, Rachel estava frente a frente com ele num abraço inusitado. Um pouco mais adiante, o balão agitava-se, inflado pelo vento, como um pára-quedas na traseira de um carro de corrida. Corky estava sendo puxado logo atrás, ziguezagueando abruptamente, como um trailer fora de controle. O sinalizador que marcava o ponto onde tinham sido atacados estava quase sumindo ao longe.
O chiado de seus macacões Mark IX roçando contra o gelo ficava cada vez mais agudo conforme aceleravam. Ela não tinha idéia de quão rápido estavam indo agora, mas aquele vento estava soprando a pelo menos 90 km/h, e a neve sem atrito abaixo deles parecia estar passando mais rapidamente a cada segundo. O indestrutível balão de Mylar não estava dando nenhum sinal de que fosse se rasgar ou abandonar sua carga.
Precisamos nos soltar, ela pensou. Estavam fugindo a toda de uma força mortífera e indo diretamente para outra. Provavelmente estamos a menos de dois quilômetros do oceano agora! A água gelada lhe trazia lembranças terríveis.
O vento começou a soprar ainda mais forte e a velocidade aumentou. Em algum lugar atrás deles, ela ouviu Corky gritando apavorado. Se continuassem àquela velocidade, Rachel calculou que tinham apenas mais alguns minutos antes que caíssem do penhasco nas águas do oceano gélido.
Tolland parecia estar pensando na mesma coisa, porque lutava bravamente contra o fecho de carga amarrado a seus corpos.
— Não estou conseguindo nos soltar! — ele gritou. — A tensão é forte demais.
Rachel esperava que uma pequena redução na força do vento fosse dar alguma chance a Tolland, mas o catabático os arrastava com uma violência constante. Tentando ajudar, ela girou seu corpo e enfiou a trava da ponta de um de seus crampons na neve, espirrando um jato de gelo fino no ar.
— Agora! — gritou ela, levantando o pé.
Por um breve instante, a corda que os unia ao balão afrouxou-se ligeiramente. Tolland puxou-a com força para baixo, tentando tirar proveito da redução da tensão para remover a presilha de carga de seus mosquetões. Não chegou nem perto.
— De novo! — gritou ele.
Desta vez os dois giraram um contra o outro e enfiaram as pontas de metal de seus crampons no gelo, espirrando dois jatos de fragmentos no ar. O efeito foi mais forte e desaceleraram um pouco.
— Agora!
Ao comando de Tolland, os dois soltaram os pés. Quando o balão começou a acelerar de novo, ele enfiou seu polegar no fecho do mosquetão e girou o gancho, tentando liberar a presilha. Apesar de ter sido melhor desta vez, ainda precisavam que a corda ficasse mais frouxa. Os mosquetões, como Norah havia afirmado presunçosamente, eram de excelente qualidade, presilhas de alta segurança projetadas especificamente com uma volta dupla de metal de tal forma que nunca se desprendessem enquanto houvesse qualquer tensão aplicada sobre elas.
Mortos por causa de ganchos de segurança, pensou Rachel, não achando graça alguma na ironia.
— Mais uma vez! — gritou Tolland.
Reunindo suas forças e esperanças, Rachel girou o corpo o máximo que pôde e enfiou as duas pontas das botas no gelo. Arqueando as costas, tentou colocar todo o seu peso sobre a ponta dos pés. Tolland repetiu o movimento, até que os dois se curvaram ao máximo e a conexão em suas cinturas tensionou os boldriés. Tolland enfiou a ponta da bota com mais força ainda no gelo e Rachel arqueou-se ainda mais. A vibração causada pelo esforço fazia com que suas pernas tremessem. Parecia que seus tornozelos iam quebrar.
— Segure... mais um pouco... — Tolland contorceu-se para soltar o mosquetão assim que a velocidade deles diminuiu. — Estou quase conseguindo...
Os crampons de Rachel se soltaram. Os grampos de metal foram arrancados da bota e saíram quicando na escuridão, batendo em Corky. O balão projetou-se para a frente no mesmo instante, fazendo com que Rachel e Tolland girassem para o lado. Michael não conseguiu segurar o mosquetão.
— Merda!
O balão de Mylar, como se estivesse enraivecido por ter sido refreado durante aquele tempo, puxou-os com força ainda maior geleira abaixo, na direção do mar. Estavam se aproximando rapidamente do precipício, mas havia um outro perigo antes da queda de 30 metros até o oceano Ártico. Teriam que transpor as três grandes barragens de neve em seu caminho. Mesmo contando com a proteção do enchimento de gel do Mark IX, a idéia de serem projetados em alta velocidade sobre aquelas elevações era apavorante.
Rachel estava lutando desesperadamente com os boldriés, tentando encontrar uma forma de soltar o balão, quando ouviu o ruído rítmico de algo batendo contra o gelo. Uma pulsação seca de metal leve chocando-se contra a superfície da neve.
A piqueta de gelo.
Em meio ao pânico, esquecera-se da piqueta que estava amarrada por uma corda a seu cinturão. A ferramenta de alumínio leve estava quicando ao lado de sua perna. Olhou para o cabo de carga que os prendia ao balão.
Era feito de nylon grosso e trançado, de alta resistência. Estendendo a mão, agarrou a piqueta pelo cabo e puxou-a em sua direção, esticando a corda elástica que a mantinha presa ao cinto. Ainda virada de lado, Rachel esforçou-se para elevar seus braços acima da cabeça, posicionando a ponta serrilhada contra a corda grossa.
Desajeitadamente, começou a serrar o cabo tensionado.
— É isso! — gritou Tolland, mexendo-se para pegar também a sua piqueta. Deslizando de lado, Rachel estava toda esticada, seus braços acima do corpo, cortando o cabo grosso e resistente. O nylon trançado estava se esfiapando lentamente. Depois de pegar sua piqueta, Tolland também virou, levantou os braços e tentou serrar o cabo no mesmo ponto, pegando-o por baixo. As duas lâminas se chocavam enquanto eles trabalhavam juntos como lenhadores. A corda começou a esfiapar-se de ambos os lados.
Nós vamos conseguir, pensou Rachel. Vamos romper a corda!
De repente a bolha prateada de Mylar na frente deles descreveu uma curva e subiu, como se o balão tivesse sido puxado por uma corrente de ar vertical. Rachel percebeu rapidamente, horrorizada, que ele estava apenas seguindo o contorno do terreno.
Tinham chegado às barragens de neve.
A parede branca agigantou-se à sua frente e, logo em seguida, já estavam sendo puxados para cima. A pancada na lateral do corpo de Rachel, quando se chocaram contra a rampa, fez com que ela ficasse sem ar e arrancou a piqueta de sua mão. Sentiu seu corpo ser puxado pela face da barragem de gelo e depois jogado no ar. Ela e Tolland foram subitamente cuspidos para cima, em um salto vertiginoso. O vale entre as duas elevações se abria bem abaixo deles, mas o cabo esfiapado que os unia ao balão continuava firme, levantando seus corpos, puxando-os para cima, fazendo com que sobrevoassem o primeiro canal. Em meio à confusão daquele momento, ela viu que os outros dois paredões de gelo se erguiam logo a seguir. Depois havia um curto platô e, então, a queda livre até o oceano.
Aterrorizada com aquela visão, Rachel ouviu o grito agudo de Corky Marlinson cortando o ar. Em algum lugar atrás deles, Corky também voava acima da primeira elevação. Naquele momento, todos os três estavam no ar, o balão subindo ferrenhamente, como um animal selvagem tentando romper as correntes que o aprisionam.
De repente, um forte estalo, como um tiro, ecoou acima deles. A corda esfiapada finalmente se rompeu e o pedaço rasgado bateu no rosto de Rachel. No mesmo instante começaram a cair. Acima deles, o balão de Mylar, solto, ziguezagueava sem controle em direção ao mar.
Envoltos num emaranhado de mosquetões e boldriés, Rachel e Tolland caíram. Rachel viu de relance o cume da segunda barragem aproximando-se e preparou-se para o choque. Passando perto do topo, caíram do outro lado, com o impacto parcialmente reduzido por suas roupas e pelo contorno de descida do terreno. O mundo em volta de Rachel girava, numa confusão de braços e pernas e gelo, enquanto ela descia a inclinação a toda a velocidade em direção ao canal central.
Instintivamente, ela afastou os braços e as pernas, tentando diminuir sua velocidade antes de chegar à próxima elevação. Notou que estava escorregando um pouco mais devagar, mas só um pouco, e, numa questão de segundos, ela e Tolland começaram a subir a rampa da última barragem. No topo, ficaram suspensos no ar por um instante enquanto passavam para o outro lado. Em pânico, Rachel sentiu que começavam sua descida mortífera rumo ao platô final — os últimos 25 metros da geleira Mune.
Escorregaram em direção ao penhasco, sentindo o peso de Corky sendo arrastado pela corda. A velocidade estava diminuindo, mas não o suficiente para pará-los. Era tarde demais. O final da geleira estava se aproximando velozmente, e Rachel soltou um grito de desespero.
Logo depois o inevitável aconteceu.
A borda do gelo escorregou por baixo deles. A última lembrança de Rachel foi a sensação da queda.
O Edifício Westbrooke Place Apartments fica num dos endereços mais badalados de Washington. Gabrielle entrou correndo pela porta giratória de metal dourado e chegou no saguão todo de mármore, onde uma cascata ensurdecedora ressoava.
O porteiro que estava de serviço pareceu surpreso ao vê-la.
— Senhorita Ashe? Não sabia que viria aqui esta noite.
— Já estou atrasada. — Gabrielle falou rapidamente, olhando para o relógio acima do porteiro, que marcava 18h22.
O homem coçou a cabeça.
— O senador deixou uma lista, mas você não está...
— Ah, eles vivem esquecendo as pessoas que mais ajudam. — Deu um sorriso tristonho e saiu andando em direção ao elevador.
O porteiro não sabia bem como agir.
— Acho melhor eu ligar para ele.
— Obrigada — disse Gabrielle entrando no elevador e apertando o botão para subir. O telefone do senador está fora do gancho.
O elevador parou no nono andar. Gabrielle saiu e andou pelo corredor elegante. Do lado de fora da porta de Sexton, ela viu um de seus enormes “acompanhantes para segurança pessoal” — um nome bonito para guarda-costas — sentado com ar entediado. Gabrielle ficou surpresa de encontrar um segurança de plantão, mas aparentemente ele estava ainda mais admirado com sua presença. O homem levantou-se imediatamente quando ela se aproximou.
— Eu sei — Gabrielle foi logo dizendo, ainda no meio do corredor. — É uma noite de A.P. Ele não quer ser interrompido.
O segurança assentiu enfaticamente.
— Ele me deu ordens bastante estritas de que nenhum visitante...
— É uma emergência.
— Ele está em uma reunião privada — respondeu o homem, bloqueando fisicamente a porta.
— É mesmo? — Gabrielle tirou o envelope vermelho debaixo do braço. Mostrou rapidamente o selo da Casa Branca ao segurança. — Acabei de chegar do Salão Oval. Preciso entregar estes papéis ao senador. Seja lá quais forem os velhos amigos com os quais ele está se divertindo esta noite, ele vai precisar deixá-los sozinhos por alguns minutos. Agora, deixe-me entrar.
O guarda-costas hesitou um pouco ao ver o selo da Casa Branca no envelope.
Não me faça abrir isto, pensou Gabrielle.
— Deixe o envelope comigo — respondeu o segurança. — Eu o levo até ele.
— De jeito nenhum! Tenho ordens diretas da Casa Branca para entregar isto pessoalmente. Se eu não conseguir falar com Sexton imediatamente, estaremos todos procurando um novo trabalho amanhã pela manhã. Entende?
O homem parecia estar em profundo conflito, e Gabrielle sentiu que o senador devia ter sido muito enfático a respeito de não receber visitas naquela noite.
Ela resolveu desferir o golpe fatal. Segurando o envelope da Casa Branca bem na frente da cara dele, a assessora disse quase num sussurro a frase que todos os seguranças de Washington mais temiam.
— Você não entende a situação.
Os seguranças que trabalhavam para políticos nunca entendiam a situação e odiavam esse fato. Eram meros peões, a quem ninguém contava nada, sempre indecisos entre obedecer firmemente suas ordens ou arriscar-se a perder o emprego pela teimosia em ignorar uma crise óbvia.
Ele engoliu em seco, olhando mais uma vez para o envelope da Casa Branca.
— Tudo bem, você vai entrar, mas eu direi ao senador que você exigiu isso.
O guarda-costas destrancou a porta e Gabrielle entrou rapidamente, antes que ele mudasse de idéia. Dentro do apartamento, ela fechou silenciosamente a porta, trancando-a logo em seguida.
Na ante-sala, ela podia ouvir vozes abafadas que vinham do escritório de Sexton, um pouco à frente no corredor. Eram vozes de homens conversando. A noite de A.P. obviamente não era o encontro pessoal que a chamada pelo celular, mais cedo, parecia indicar.
Andando pelo corredor em direção ao escritório, Gabrielle passou por um armário aberto, dentro do qual estavam pendurados uns seis casacos masculinos, todos visivelmente caros. Diversas maletas estavam no.chão. Aparentemente os papéis de trabalho também tinham sido deixados na entrada. Ela teria passado direto pelas malas, mas uma delas chamou sua atenção. A plaqueta de metal afixada à mala mostrava uma logomarca conhecida. Um foguete em tom vermelho reluzente.
Ela parou e ajoelhou-se para ler o que estava escrito.
SPACE AMERICA, INC.
Intrigada, olhou as outras maletas.
BEAL AEROSPACE. MICROCOSM, INC. ROTARY ROCKET COMPANY. KISTLER
AEROSPACE.
A voz rouca de Marjorie Tench ecoou em sua mente. Você está ciente de que Sexton tem recebido enormes subornos de companhias privadas do setor aeroespacial?
Gabrielle sentiu seu coração bater mais rápido quando olhou, através do corredor apagado, na direção da passagem em arco que levava ao escritório do senador. Ela deveria dizer algo para anunciar sua presença, mas, em vez disso, aproximou-se pé ante pé do local onde o grupo estava reunido. Chegou o mais perto possível da passagem, parou no escuro, em silêncio, e ficou ouvindo a conversa.
Delta-três ficou para trás, a fim de recolher o corpo de Norah Mangor e o trenó, enquanto os outros dois soldados aceleraram geleira abaixo em direção às suas presas.
Eles estavam usando esquis motorizados, um modelo secreto criado pela ElektroTread que era essencialmente um esqui de neve com esteiras miniaturizadas acopladas, como jet-skis de neve colocados sob os pés.
A velocidade era controlada por dois contatos de pressão que ficavam dentro da luva da mão direita. Eram acionados por um pequeno movimento em conjunto do polegar e do indicador. Uma poderosa bateria de gel ficava em torno dos pés, servindo de isolamento térmico e, ao mesmo tempo, fornecendo energia para o funcionamento silencioso dos esquis.
Uma solução perspicaz fazia com que a energia cinética gerada pela gravidade quando o usuário dos esquis descia um terreno fosse reaproveitada para alimentar as baterias para vencer a próxima subida.
Com o vento nas suas costas, Delta-Um esquiava agachado, deslizando em direção ao mar enquanto examinava o terreno ao seu redor. Seu sistema de visão noturna era muito superior ao modelo Patriot usado pelos marines. O visor acoplado à sua face podia ser operado sem o uso das mãos, era composto por lentes 40 x 90 mm de seis elementos, com um zoom de três elementos e um dispositivo infravermelho de distância ultralonga. Do outro lado do visor eletrônico, o mundo tinha uma coloração translúcida de azul suave em vez do verde habitual. Aquele esquema de cores havia sido especialmente projetado para terrenos com alta reflexividade, como o solo ártico.
Quando se aproximou da primeira barragem, o visor de infravermelho lhe mostrou várias linhas na neve recentemente remexida subindo como setas brilhantes na noite. Aparentemente os três fugitivos ou não tinham pensado em desenganchar o balão improvisado ou não tinham sido capazes de fazê-lo. De qualquer forma, se não tivessem se soltado até à última elevação, teriam caído no oceano. Delta-Um calculou que as roupas protetoras que usavam iriam aumentar um pouco sua expectativa de vida no mar gelado, mas as fortes correntes iriam levá-los para mar aberto.
A morte por afogamento seria inevitável.
Apesar da lógica da situação, o soldado havia sido treinado para nunca presumir nada. Precisava ver os corpos. Agachou-se e pressionou os dedos da mão direita, acelerando e subindo o primeiro aclive.
Michael Tolland estava imóvel, tentando verificar a extensão de seus ferimentos. Sentia dor em vários pontos do corpo, mas não parecia ter nenhuma fratura. Aparentemente o enchimento de gel do Mark IX evitara ferimentos mais graves. Abriu os olhos. Sua mente estava confusa pelo choque e ele levou algum tempo para se localizar. Tudo parecia mais calmo ali, mais silencioso. O vento continuava uivando, mas de forma menos violenta.
Nós caímos do penhasco... não caímos?
Olhando em volta, Tolland percebeu que estava deitado no gelo, jogado por cima de Rachel, quase na transversal, seus mosquetões retorcidos ainda presos um ao outro. Podia sentir que ela respirava, mas não podia ver seu rosto. Rolou para sair de cima dela, sua musculatura mal respondendo.
— Rachel...? — ele disse, sem saber muito bem se estava emitindo algum som.
Michael lembrou-se dos últimos segundos daquele apavorante passeio: o balão sendo puxado para cima, o cabo se partindo com um estalo, seus corpos descendo vertiginosamente a rampa da segunda barragem, escorregando por cima do último monte e finalmente deslizando pela borda da plataforma, precipício abaixo. Tolland e Rachel haviam despencado, mas a queda tinha sido inesperadamente rápida e curta. Em vez do esperado mergulho no mar, caíram apenas uns três metros, sendo aparados por outra placa de gelo. Finalmente pararam, com o peso morto de Corky a reboque.
Tolland levantou a cabeça e olhou para o mar. Não muito longe dali, a placa de gelo terminava num despenhadeiro, e podia-se ouvir o ruído da água vindo lá de baixo. Virando-se para a geleira, Michael tentava discernir algo em meio à escuridão. Cerca de 20 metros atrás, viu uma alta parede de gelo, que parecia suspensa acima deles. Então compreendeu o que acontecera. Eles haviam deslizado da geleira e caído em um terraço de gelo situado um pouco abaixo. Aquele pedaço liso, mais ou menos do tamanho de uma quadra de basquete, tinha desabado parcialmente e estava pronto para desprender-se da plataforma principal e cair no oceano a qualquer momento.
Fragmentação da geleira, pensou ele, olhando em volta do precário bloco de gelo sobre o qual estavam agora. A enorme placa estava pendurada na geleira, como uma monumental varanda, abrindo-se em três lados para precipícios que iam dar no oceano. Só havia uma ligação com a geleira principal na parte posterior, e Tolland podia ver que essa conexão não era exatamente confiável. A borda que unia aquele terraço à plataforma de gelo Milne estava marcada por uma fissura, causada pela pressão, de quase um metro e meio de largura. A gravidade estava bem perto de vencer aquela batalha.
Quase tão apavorante quanto a visão da rachadura era o corpo inerte de Corky Marlinson espatifado sobre o gelo. Ele estava a cerca de 10 metros de distância, com a corda esticada ao máximo ainda amarrada a seu corpo.
Tolland tentou levantar-se, mas estava preso a Rachel. Mudou de posição para desconectar os dois mosquetões entrelaçados. Rachel parecia enfraquecida, mas tentou sentar.
— Nós não caímos? — perguntou, espantada.
— Caímos em outro bloco de gelo, um pouco abaixo — disse Tolland, conseguindo finalmente se desvencilhar dela. — Tenho que ver como Corky está.
Dolorosamente, ele tentou colocar-se de pé, mas suas pernas doíam demais e estavam sem força. Michael pegou a corda de segurança e começou a puxar. Corky foi deslizando pelo gelo na direção deles até ficar a poucos centímetros de distância dos dois.
O astrofísico parecia em mau estado. Havia perdido os óculos protetores, tinha um grande corte na bochecha e seu nariz estava sangrando. Porém, a preocupação de Tolland de que o amigo estivesse morto foi rapidamente dissipada quando Corky se virou para ele com uma cara feia.
— Deus — balbuciou. — Que maluquice foi aquela que você inventou?
Tolland sentiu-se aliviado. Rachel, por sua vez, já havia conseguido sentar e estava olhando em volta.
— Nós precisamos sair daqui. Este bloco de gelo parece prestes a cair.
Tolland concordava plenamente. O único problema era saber como. Não tiveram muito tempo para pensar numa solução. Um zumbido agudo característico se fez ouvir, vindo da geleira acima deles. Tolland olhou rapidamente para o alto e viu duas figuras de branco esquiarem sem esforço até a borda e pararem em perfeita sincronia. Os dois homens ficaram imóveis durante alguns instantes, olhando para suas presas como dois mestres do xadrez saboreando o xeque-mate antes da jogada final.
Delta-Um ficou impressionado ao ver que os três fugitivos ainda estavam vivos. Essa era, é claro, apenas uma situação temporária. As vítimas tinham caído em um bloco da geleira que já começara seu inevitável mergulho em direção ao mar. Elas poderiam ser neutralizadas e mortas exatamente como a outra mulher, mas havia surgido uma opção muito mais limpa. Uma solução que não deixaria qualquer vestígio – os corpos nunca seriam encontrados.
Espiando pela borda, Delta-Um centrou seu olhar na rachadura que estava se abrindo entre a plataforma e a placa de gelo ainda grudada a ela. A parte do gelo na qual os três fugitivos estavam sentados debruçava-se perigosamente sobre o oceano, pronta para rachar de vez e cair no mar a qualquer momento.
E por que não agora?
Na plataforma, a noite permanente era perturbada periodicamente por estouros ensurdecedores — o som do gelo se quebrando em diferentes partes da geleira e caindo no oceano. Quem iria notar?
Sentindo a descarga de adrenalina que sempre acompanhava a preparação de um assassinato, Delta-Um abriu sua mochila de equipamentos e pegou um objeto pesado em formato de limão. Era um item-padrão para equipes militares de ataque e chamava-se “granada explosiva de luz e som” — uma granada de concussão, geralmente não letal, que desorientava temporariamente o inimigo gerando um flash de luz ofuscante e uma onda de choque ensurdecedora. Naquela noite, contudo, Delta-Um estava pensando que sua granada seria letal.
Posicionou-se na beirada do precipício e pensou o quanto a falha descia antes de juntar-se à parede principal da geleira. Cinco metros? Quinze metros? Não importava muito. Seu plano funcionaria de qualquer forma.
Com a calma de quem já levou a cabo muitas execuções, Delta-Um programou um retardo de 10 segundos no controle giratório da granada, puxou o pino e jogou-a na rachadura. O explosivo caiu na escuridão e desapareceu.
Delta-Um e seu parceiro correram até o topo da última barragem. Seria um espetáculo imperdível.
Mesmo completamente desnorteada, Rachel tinha uma idéia bastante razoável do que seus agressores haviam acabado de jogar dentro da fissura. Ela não estava certa se Michael também sabia ou se apenas estava refletindo o medo que via nos olhos dela, mas ele ficou pálido, olhando horrorizado para o gigantesco bloco de gelo em que estavam ilhados, percebendo com clareza o inevitável.
Como uma nuvem de tempestade iluminada por um raio, o gelo abaixo de Rachel se acendeu, propagando um branco translúcido e cinematográfico em todas as direções. Num raio de 100 metros ao redor deles, a geleira irradiou aquele flash de luz. A concussão veio a seguir. Não um ruído surdo como num terremoto, mas uma onda de choque avassaladora cuja força era capaz de revirar as entranhas. Rachel sentiu o impacto rasgando o gelo e invadindo seu corpo.
Instantaneamente, como se uma cunha tivesse sido enfiada entre a geleira e o bloco onde estavam, o gelo começou a desprender-se com um grande estrondo. Os olhos de Rachel procuraram os de Tolland, paralisados de terror. Perto deles, Corky gritou. A placa se soltou e começou a cair.
Rachel flutuou no ar por um instante, pairando acima do bloco de gelo de milhões de toneladas. Então o grupo despencou junto com o iceberg rumo ao mar gélido.
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