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Porque Não Sou Cristão / Bertrand Russel
Porque Não Sou Cristão / Bertrand Russel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

“Porque Não Sou Cristão”

e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos

 

INTRODUÇÃO

Bertrand Russell tem sido, durante toda a sua vida, um escritor fecundo, e alguns de seus melhores trabalhos se encontram em pequenos opúsculos e em artigos publicados em diversos periódicos. Isto é particularmente verdade quanto ao que se refere às suas discussões acerca da religião, muitas das quais pouco conhecidas, fora de certos círculos racionalistas. Neste volume, reuni vários desses ensaios sobre religião, bem como outros escritos, entre eles “A Liberdade e os Colleges” e “A Nossa Ética Sexual”, temas que ainda hoje apresentam grande interesse.

Embora sumamente acatado pelas suas contribuições a assuntos puramente abstratos, tais como a lógica e a teoria do conhecimento, pode-se bem supor que Russell será igualmente lembrado, em anos vindouros, como um dos maiores heréticos em questões de moral e de religião. Jamais foi filósofo puramente técnico. Interessou-se sempre profundamente pelas questões fundamentais a que as religiões deram suas respectivas respostas: questões relativas ao lugar do homem no universo e à vida virtuosa. Tratou dessas questões com a penetração, a graça e a eloqüência de sempre, exprimindo-se na mesma prosa cintilante que tormou famosos os seus outros trabalhos. Tais qualidades transformam, talvez, os ensaios incluídos neste livro na mais comovente e encantadora exposição do ponto de vista do livre-pensador, desde os tempos de Hume e Voltaire.

Um livro de Bertrand Russell sobre religião seria, em qualquer ocasião, digno de ser publicado. No momento atual, em que presenciamos uma campanha em favor do renascimento da religião, efetuada com todas as facilidades proporcionadas pelas modernas técnicas de propaganda, uma nova exposição do caso dos incrédulos parece-nos particularmente desejável. De todos os lados e em todos os níveis intelectuais, altos, baixos e médios, vimos sendo bombardeados, há muitos anos, pela propaganda ideológica. A revista Life assegura-nos, num de seus editoriais, que, “salvo quanto ao que se refere a materialistas e fundamentalistas dogmáticos”, a guerra entre a evolução e a fé cristã “já terminou há muitos anos”, e que a própria ciência... “desaprova a idéia de que o universo, a vida ou o homem pudessem haver evoluído por puro acaso”. O Prof. Toynbee, um de seus mais dignos apologistas, diz-nos que “não podemos enfrentar o desafio comunista numa base secular”. Norman Vincent Peale, Monsenhor Sheen e outros professores de psiquiatria religiosa, exaltam as bênçãos da fé em colunas de jornais lidas por milhões de pessoas, em livros que são best-sellers e em programas semanais de rádio e televisão de âmbito nacional. Políticos de todos os partidos, muitos dos quais não se distinguiam de modo algum por sua piedade antes de concorrer a cargos públicos, fazem questão de ser conhecidos como zelosos freqüentadores de igreja e não deixam jamais de referir-se a Deus em seus eruditos discursos. Fora das salas de aula dos melhores colégios, o lado negativo desta questão quase nunca é apresentado.

Um livro como este, com sua inflexível afirmação do ponto de vista secularista, é hoje tanto mais oportuno quanto é verdade que a ofensiva religiosa não se restringiu à propaganda em grande escala. Nos Estados Unidos, assumiu também a forma de numerosas tentativas, muitas das quais bem sucedidas, no sentido de solapar a separação existente entre a Igreja e o Estado, como o prevê a Constituição. Tais tentativas são em número demasiado elevado para que aqui as pormenorizemos; mas talvez duas ou três ilustrações indiquem suficientemente tal tendência perturbadora, que, caso não seja refreada, converterá em cidadãos de segunda classe aqueles que se opõem à religião tradicional. Há poucos meses, por exemplo, um subcomitê do Congresso incluiu, numa Resolução Conjunta, a surpreendente proposição de que a “lealdade a Deus” seja qualificação essencial para um melhor serviço governamental. “O serviço de qualquer pessoa, em qualquer capacidade, no governo ou sob as ordens do mesmo”, afirmam, oficialmente, os legisladores, “deveria caracterizar-se por devoção a Deus”. Esta resolução não é ainda lei, mas poderá vir a sê-lo dentro em pouco, se não encontrar enérgica oposição. Outra resolução, fazendo de “In God We Trust” o lema nacional dos Estados Unidos, foi aprovada por ambas as Câmaras e hoje vigora no país por força de lei. O Prof. George Axtelle, da Universidade de Nova York, um dos poucos críticos a abordar sem rebuços esses e outros atos semelhantes, referiu-se muito justamente a eles, ao depor perante um comitê do Senado, como constituindo “diminutas, mas significativas erosões” no princípio de separação entre a Igreja e o Estado.

As tentativas no sentido de introduzir a religião onde a Constituição expressamente o proíbe, não se limitam, de modo algum, apenas à legislação federal. Assim, na cidade de Nova York, para tomarmos apenas um exemplo particularmente manifesto, a Junta de Superintendentes do Conselho de Educação preparou, em 1952, um “Guiding Statement for Supervisors and Teachers”, em que afirmava, sem meias palavras, que “as escolas públicas deviam encorajar a crença em Deus, reconhecendo o simples fato de que o nosso país é uma nação religiosa”, e, ainda, que as escolas públicas “identificassem Deus como sendo a origem suprema da lei natural e moral”. Se tal declaração houvesse sido adotada, dificilmente qualquer uma das matérias do curriculum escolar da cidade de Nova York teria permanecido livre de intrusão teológica. Mesmo estudos aparentemente seculares, como ciência e matemática, deveriam ser ensinados numa linguagem sugestivamente rica de significado religioso. “Cientistas e matemáticos”, afirmava a declaração, “concebem o universo como sendo um lugar predizível, bem ordenado, lógico. Suas considerações sobre a vastidão e o esplendor dos céus, as maravilhas do corpo e do espírito humano, a beleza da natureza, o mistério da fotossíntese, a estrutura matemática do universo ou a idéia de infinito,. não podem senão levar à humildade ante a obra de Deus”. Não nos resta senão dizer: “Quando penso nos Céus, obra de Tuas Mãos!”. Nem sequer um assunto tão inofensivo como as “Artes Industriais” foi deixado em paz. “Nas artes industriais”, afirmaram os filósofos da Junta de Superintendentes, “a observação das maravilhas da composição dos metais, o trigo e a beleza das matas, as utilizações da eletricidade e as propriedades características dos materiais empregados suscitam, invariavelmente, reflexões quanto ao planejamento e organização do mundo natural, bem como acerca da maravilhosa obra de um Poder Supremo”. Esse relatório despertou tal indignação por parte de grupos cívicos e de vários círculos religiosos mais liberais, que se tomou impossível a sua adoção pelo Conselho de Educação. Uma versão modificada, na qual foram eliminados os trechos mais contestáveis. foi, posteriormente, adotada. Todavia, mesmo a versão revista contém linguagem teológica suficiente para fazer com que um secularista estremeça – e é de esperar-se que a sua constitucionalidade seja impugnada perante os tribunais.

É de surpreender que tenha havido tão pouca oposição contra os abusos praticados a favor de interesses eclesiásticos. Uma das razões para isso parece ser a crença generalizada de que a religião, hoje em dia, é suave e tolerante e que as perseguições são coisa do passado. Esta é uma ilusão perigosa. Embora muitos líderes religiosos sejam, indubitavelmente, amigos verdadeiros da liberdade e da tolerância e, ainda, partidários comprovados da separação entre a Igreja e o Estado, há, infelizmente, muitos outros que, se pudessem, se entregariam a perseguições e que, de fato, o fazem, quando podem.

Na Grã-Bretanha, a situação é um tanto diferente. Há igrejas estabelecidas e a instrução religiosa é legalmente sancionada em todas as escolas públicas. Não obstante, a índole do país é muito mais tolerante e os homens, em sua vida pública, hesitam menos em ser abertamente conhecidos como incrédulos. Mas também na Grã-Bretanha a propaganda vulgar a favor da religião é desabusada, e os grupos religiosos mais agressivos estão fazendo todo o possível para impedir que os livre-pensadores exponham as suas razões. O recente relatório Beveridge, por exemplo, recomendou que a B.B.C. desse aos representantes do ponto de vista racionalista uma oportunidade de expor suas opiniões. A B.B.C. aceitou oficialmente essa recomendação, mas quase nada fez para pô-la em prática. As palestras de Margaret Knight, sobre “Moral Sem Religião”, foram apenas uma das pouquíssimas tentativas no sentido de apresentar a opinião dos incrédulos sobre tão importante tema. As palestras de Mrs. Knight despertaram violentas explosões de indignação por parte de toda a sorte de fanáticos, os quais, parece, assustaram tanto a B.B.C. a ponto de fazer com que a mesma voltasse à sua antiga subserviência ante interesses religiosos.

A fim de ajudar a dissipar a complacência sobre este assunto, incluí neste livro, como apêndice, amplo relato da maneira pela qual Bertrand Russell foi impedido de tomar-se professor de filosofia do Colégio da Cidade de Nova York. Os fatos referentes a esse caso merecem ser mais amplamente conhecidos, quando mais não seja para mostrar as incríveis deturpações e os abusos de poder que os fanáticos estão dispostos a empregar quando se dispõem a derrotar um inimigo. As pessoas que conseguiram anular a designação de Russell são as mesmas que agora destruiriam de bom grado o caráter secular dos Estados Unidos. Esses indivíduos e os seus sósias britânicos são hoje, de um modo geral, mais poderosos do que em 1940.

O caso do “City College” deveria ser exposto pormenorizadamente, ao menos como simples ato de justiça para com Bertrand Russell, que, na ocasião, teve sua reputação perversamente denegrida, não só pelo juiz encarregado da petição, como por grande parte da imprensa. As opiniões e a conduta de Russell foram alvo de desenfreadas deturpações, e as pessoas que não estavam familiarizadas com os seus livros devem ter tido uma impressão inteiramente errônea quanto às suas verdadeiras convicções. Espero que a história, aqui repetida, bem como a reprodução da verdadeira maneira pela qual Russell tratou dos temas “ofensivos”, ajudem a colocar as coisas em seu devido lugar.

Vários dos ensaios incluídos neste volume são reimpressos coma amável permissão de seus editores originais. Gostaria, pois, de agradecer à firma Watts and Co., que é a editora de Porque Não Sou Cristão e de Fez a Religião Contribuições úteis à Civilização?; aos senhores Routledge e Kegan Paul, que publicaram Aquilo Em Que Creio; à editora Hutchinson and Co., que publicou Sobrevivemos à Morte?; aos senhores Nicholson e Watson, que são os editores originais de O Destino de Thomas Paine, e ao American Mercury, em cujas páginas A Nossa Ética Sexual e A Liberdade e os “Colleges” primeiro apareceram. Desejo, ainda, agradecer aos meus amigos Prof. Antony Flew, Ruth Hoffman, Sheila Meyer e aos meus alunos Marilyn Chamey, Sara Kilian e John Viscide, que me ajudaram de muitas maneiras na preparação deste livro.

Finalmente, desejo expressar minha gratidão ao próprio Bertrand Russell, que, desde o começo, favoreceu este plano e cujo vivo interesse foi para mim, de todos os modos, grande fonte de inspiração.

Cidade de Nova York, outubro de 1956.

Paul Edwards

 

PREFÁCIO

A reimpressão, pelo Prof. Edwards, de vários de meus ensaios acerca de assuntos teológicos é, para mim, motivo de gratidão, principalmente diante das observações que tece em seu admirável prefácio. Sinto-me particularmente satisfeito com a oportunidade que me apresenta de reafirmar, deste modo, minhas convicções quanto aos temas de que tratam esses vários ensaios.

Correram, em anos recentes, rumores de que eu me opunha menos à ortodoxia religiosa do que antigamente. Tais rumores são inteiramente destituídos de fundamento. Considero todas as grandes religiões do mundo – budismo, cristianismo, islamismo e comunismo – não só falsas, como prejudiciais. É evidente, como questão de lógica, que, já que elas diferem entre si, apenas uma delas pode ser verdadeira. Com pouquíssimas exceções, a religião que um homem aceita é aquela da comunidade em que vive, o que torna óbvio que a influência do meio foi o que o levou a aceitar a referida religião. É verdade que os escolásticos inventaram o que declaravam ser argumentos lógicos provando a existência de Deus, e que tais argumentos, ou outros de teor semelhante, foram aceitos por muitos filósofos eminentes, mas a lógica a que esses argumentos tradicionais apelavam é um tipo de lógica aristotélica antiquada, hoje rejeitada, praticamente, por todos os lógicos, exceto os que são católicos. Entre esses argumentos, existe um que não é puramente lógico. Refiro-me ao argumento da prova teológica da existência de Deus. Tal argumento, porém, foi destruído por Darwin – e, de qualquer modo, só poderia tornar-se logicamente respeitável se se abandonasse a crença na onipotência de Deus. À parte a força lógica, há, para mim, algo estranho na apreciação ética daqueles que pensam que uma Deidade onipotente, onisciente e benevolente, após preparar o terreno, durante muitos milhões de anos de inanimadas nebulosas, se sentiria adequadamente recompensada com o aparecimento final de Hitler, Stalin e da bomba H.

A questão da verdade de uma religião é uma coisa, mas a questão de sua utilidade é outra, diferente. Estou tão firmemente persuadido de que as religiões são nocivas, como o estou de que são falsas.

O mal causado pela religião é de duas espécies: uma, dependendo da sorte de crença que se julga deve ser dada à mesma, e, a outra, das doutrinas particulares em que se crê.

Quanto à espécie de crença, considera-se virtude ter fé, isto é, ter-se uma convicção que não pode ser abalada por prova contrária. Ou, se a prova contrária poder levar à dúvida, afirma-se que a prova contrária deve ser suprimida. Por essa razão, não se permite aos jovens ouvir argumentos na Rússia, a favor do capitalismo ou, nos Estados Unidos, a favor do comunismo. Isso conserva a fé em ambos intacta e pronta para uma guerra de extermínio. A convicção de que é importante crer-se nisto ou naquilo, mesmo que uma investigação livre não apoie a crença em apreço, é comum a quase todas as religiões e inspira todos os sistemas de educação estatais. O resultado disso é que o espírito dos jovens fica tolhido e cheio de hostilidade fanática tanto contra aqueles que possuem outros fanatismos, como, de maneira ainda mais virulenta, contra os que são contrários a todos os fanatismos. O hábito de basear as convicções em provas, conferindo-lhes apenas o grau de certeza que a prova justifique, curaria, se tornasse geral, a maior parte dos males de que o mundo sofre.

Mas, no momento, em quase todos os países, a educação tem por objetivo impedir o desenvolvimento de tal hábito, e os homens que se recusam a professar crença em algum sistema de dogmas infundados não são considerados em condições de ensinar os jovens.

Os males acima são independentes do credo particular em questão e existem igualmente em todos os credos defendidos de maneira dogmática. Mas também existem, na maioria das religiões, doutrinas éticas específicas que causam dano definido. A condenação, pelos católicos, do controle da natalidade, tornaria impossíveis a diminuição da pobreza e a abolição da guerra. As crenças hindus de que a vaca é um animal sagrado e de que é imoral às viúvas tornar a casar, causam muito sofrimento desnecessário. A crença comunista na ditadura de uma minoria de Crentes Verdadeiros produziu farta colheita.

Dizem-nos, às vezes, que somente o fanatismo pode tornar eficiente um grupo social. Penso que isso é inteiramente contrário às lições da história. Mas, seja como for, só os que adoram abjetamente o êxito podem considerar admirável a eficiência sem levar em consideração aquilo que é realizado. Quanto a mim, acho que é melhor fazer-se um pouco de bem do que muito mal. O mundo que eu gostaria de ver seria um mundo livre da virulência das hostilidades de grupo, capaz de compreender que a felicidade de todos deve antes derivar-se da cooperação do que da luta. Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por objetivo antes a liberdade mental do que o encarceramento do espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas, que tem em vista protegê-los, através da vida, contra os dardos das provas imparciais. O mundo precisa de corações e de cérebros francos, e não é mediante sistemas rígidos, quer sejam velhos ou novos, que isso pode ser conseguido.

 

POR QUE NÃO SOU CRISTÃO

Esta palestra foi proferida, a 6 de março de 1927, na Prefeitura Municipal de Battersea, sob os auspícios da Secção do Sul de Londres da National Secular Society.

Como vosso presidente vos disse, o assunto sobre que vou falar-vos esta noite se intitula: “Porque não sou cristão”. Talvez fosse bom, antes de mais nada, procurássemos formular o que se entende pela palavra “cristão”. É ela usada, hoje em dia, por um grande número de pessoas, num sentido muito impreciso. Para alguns, não significa senão uma pessoa que procura viver uma vida virtuosa. Neste sentido, creio que haveria cristãos em todas as seitas e em todos os credos; mas não me parece que esse seja o sentido próprio da palavra, quando mais não fosse porque isso implicaria que todas as pessoas que não são cristãs – todos os budistas, confucianos, maometanos e assim por diante – não estão procurando viver uma vida virtuosa. Não considero cristã qualquer pessoa que tente viver decentemente de acordo com sua razão. Penso que se deve ter uma certa dose de crença definida, antes que a gente tenha o direito de se considerar cristão. Essa palavra não tem hoje o mesmo sentido vigoroso que tinha ao tempo de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino. Então, quando um homem se dizia cristão, sabia-se o que é que ele queria significar. As pessoas aceitavam toda uma série de crenças estabelecida com grande precisão, e acreditavam, com toda a força de suas convicções, em cada sílaba de tais crenças.

QUE É UM CRISTÃO?

Hoje em dia não é bem assim. Tem-se de ser um pouco mais vago quanto ao sentido de cristianismo. Penso, porém, que há dois itens diferentes e essenciais para que alguém se intitule cristão. O primeiro é de natureza dogmática – isto é, tem-se de acreditar em Deus e na imortalidade. Se não se acredita nessas duas coisas, não creio que alguém possa chamar-se, apropriadamente, cristão. Além disso, como o próprio nome o indica, deve-se ter alguma espécie de crença acerca de Cristo. Os maometanos, por exemplo, também acreditam em Deus e na imortalidade e, no entanto, dificilmente poderiam chamar-se cristãos. Acho que se precisa ter, no mínimo, a crença de que Cristo era, senão divino, pelo menos o melhor e o mais sábio dos homens. Se não tiverdes ao menos essa crença quanto a Cristo, não creio que tenhais qualquer direito de intitular-vos cristãos. Existe, naturalmente, um outro sentido, que poderá ser encontrado no Whitaker’s Almanack e em livros de geografia, nos quais se diz que a população do mundo se divide em cristãos, maometanos, budistas, adoradores de fetiches e assim por diante – e, nesse sentido, somos todos cristãos. Os livros de geografia incluem-nos a todos, mas isso num sentido puramente geográfico, que, parece-me, podemos ignorar. Por conseguinte, julgo que, ao dizer-vos que não sou cristão, tenho de contar-vos duas coisas diferentes: primeiro, por que motivo não acredito em Deus e na imortalidade e, segundo, porque não acho que Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens, embora eu Lhe conceda um grau muito elevado de bondade moral.

Mas, quanto aos esforços bem sucedidos dos incrédulos, no passado, não poderia valer-me de uma definição de cristianismo tão elástica como essa. Como disse antes, antigamente possuía ela um sentido muito mais vigoroso. Incluía, por exemplo, a crença no inferno. A crença no fogo eterno do inferno era cláusula essencial da fé cristã até tempos bastante recentes. Neste país, como sabeis, deixou de ser item essencial devido a uma decisão do Conselho Privado e, por causa dessa decisão, houve uma dissensão entre o Arcebispo de Cantuária e o Arcebispo de York – mas, neste país, a nossa religião é estabelecida por ato do Parlamento e, por conseguinte, o Conselho Privado pôde sobrepor-se a Suas Excelências Reverendíssimas e o inferno deixou de ser coisa necessária a um cristão. Não insistirei, portanto, em que um cristão deva acreditar no inferno.

A EXISTÊNCIA DE DEUS

Esta questão da existência de Deus é assunto longo e sério e, se eu tentasse tratar do tema de maneira adequada, teria de reter-vos aqui até o advento do Reino dos Céus, de modo que me perdoareis se o abordar de maneira um tanto sumária. Sabeis, certamente, que a Igreja Católica estabeleceu como dogma que a existência de Deus pode ser provada sem ajuda da razão. É esse um dogma um tanto curioso, mas constitui um de seus dogmas. Tiveram de introduzi-lo porque, em certa ocasião, os livre-pensadores adotaram o hábito de dizer que havia tais e tais argumentos que a simples razão poderia levantar contra a existência de Deus, mas eles certamente sabiam, como uma questão de fé, que Deus existia. Tais argumentos e razões foram minuciosamente expostos, e a Igreja Católica achou que devia acabar com aquilo. Estabeleceu, por conseguinte, que a existência de Deus pode ser provada sem ajuda da razão, e seus dirigentes tiveram de estabelecer o que consideravam argumentos capazes de prová-lo. Há, por certo, muitos deles, mas tomarei apenas alguns.

O ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA

Talvez o mais simples e o mais fácil de compreender-se seja o argumento da Causa Primeira. (Afirma-se que tudo o que vemos neste mundo tem uma causa e que, se retrocedermos cada vez mais na cadeia de tais causas, acabaremos por chegar a uma Causa Primeira, e que a essa Causa Primeira se dá o nome de Deus). Esse argumento, creio eu, não tem muito peso hoje em dia, em primeiro lugar porque causa já não é bem o que costumava ser. Os filósofos e os homens de ciência têm martelado muito a questão de causa, e ela não possui hoje nada que se assemelhe à vitalidade que tinha antes; mas, à parte tal fato, pode-se ver que o argumento de que deve haver uma Causa Primeira é um argumento que não pode ter qualquer validade. Posso dizer que quando era jovem e debatia muito seriamente em meu espírito tais questões, eu, durante longo tempo, aceitei o argumento da Causa Primeira, até que certo dia, aos dezoito anos de idade, li a Autobiografia de John Stuart Mill, lá encontrando a seguinte sentença: “Meu pai ensinou-me que a pergunta ‘Quem me fez?’ não pode ser respondida, já que sugere imediatamente a pergunta imediata: ‘Quem fez Deus?’” Essa simples sentença me mostrou, como ainda hoje penso, a falácia do argumento da Causa Primeira. Se tudo tem de ter uma causa, então Deus deve ter uma causa. Se pode haver alguma coisa sem uma causa, pode muito bem ser tanto o mundo como Deus, de modo que não pode haver validade alguma em tal argumento. Este, é exatamente da mesma natureza que o ponto de vista hindu, de que o mundo se apoiava sobre um elefante e o elefante sobre uma tartaruga, e quando alguém perguntava: “E a tartaruga?”, o indiano respondia: “Que tal se mudássemos de assunto?”. O argumento, na verdade, não é melhor do que este. Não há razão pela qual o mundo não pudesse vir a ser sem uma causa; por outro lado, tampouco há qualquer razão pela qual o mesmo não devesse ter sempre existido. Não há razão, de modo algum, para se supor que o mundo teve um começo. A idéia de que as coisas devem ter um começo é devido, realmente, à pobreza de nossa imaginação. Por conseguinte, eu talvez não precise desperdiçar mais tempo com o argumento acerca da Causa Primeira.

O ARGUMENTO DA LEI NATURAL

Há, a seguir, um argumento muito comum relativo à lei natural. Foi esse um argumento predileto durante todo o século XVIII, principalmente devido à influência de Sir Isaac Newton e de sua cosmogonia. As pessoas observavam os planetas girar em tomo do sol segundo a lei da gravitação e pensavam que Deus dera uma ordem a tais planetas para que se movessem desse modo particular – e que era por isso que eles assim o faziam. Essa era, certamente, uma explicação simples e conveniente, que lhes poupava o trabalho de procurar quaisquer novas explicações para a lei da gravitação. Hoje em dia, explicamos a lei da gravitação de um modo um tanto complicado, apresentado por Einstein. Não me proponho fazer aqui uma palestra sobre a lei da gravitação tal como foi interpretada por Einstein, pois que também isso exigiria algum tempo; seja como for, já não temos a mesma espécie de lei natural que tínhamos no sistema newtoniano, onde, por alguma razão que ninguém podia compreender, a natureza agia de maneira uniforme. Vemos, agora, que muitas coisas que considerávamos como leis naturais não passam, na verdade, de convenções humanas. Sabeis que mesmo nas mais remotas profundezas do sistema estelar uma jarda tem ainda três pés de comprimento. Isso constitui, sem dúvida, fato notabilíssimo, mas dificilmente poderíamos chamá-lo de lei da natureza. E, assim, muitíssimas outras coisas antes encaradas como leis da natureza são dessa espécie. Por outro lado, qualquer que seja o conhecimento a que possamos chegar sobre a maneira de agir dos átomos, veremos que eles estão muito menos sujeitos a leis do que as pessoas julgam, e que as leis a que a gente chega são médias estatísticas exatamente da mesma classe das que ocorreriam por acaso. Há, como todos nós sabemos, uma lei segundo a qual, no jogo de dados, só obteremos dois seis apenas uma vez em cerca de trinta e seis lances, e não encaramos tal fato como uma prova de que a queda dos dados é regulada por um desígnio; se, pelo contrário, os dois seis saíssem todas as vezes, deveríamos pensar que havia um desígnio. As leis da natureza são dessa espécie, quanto ao que se refere a muitíssimas delas. São médias estatísticas como as que surgiriam das leis do acaso – e isso toma todo este assunto das leis naturais muito menos impressionante do que em outros tempos. Inteiramente à parte disso, que representa um estado momentâneo da ciência que poderá mudar amanhã, toda a idéia de que as leis naturais subentendem um legislador é devida à confusão entre as leis naturais e humanas. As leis humanas são ordens para que procedamos de certa maneira, permitindo-nos escolher se procedemos ou não da maneira indicada; mas as leis naturais são uma descrição de como as coisas de fato procedem e, não sendo senão uma mera descrição do que elas de fato fazem, não se pode argüir que deve haver alguém que lhes disse para que assim agissem, porque, mesmo supondo-se que houvesse, estaríamos diante da pergunta: “Por que Deus lançou justamente essas leis naturais e – não outras?” Se dissermos que Ele o fez por Seu próprio prazer, e sem qualquer razão para tal, verificaremos, então, que há algo que não está sujeito à lei e, desse modo, se interrompe a nossa cadeia de leis naturais. Se dissermos, como o fazem os teólogos mais ortodoxos, que em todas as leis feitas por Deus Ele tinha uma razão para dar tais leis em lugar de outras – sendo que a razão, naturalmente, seria a de criar o melhor universo, embora a gente jamais pensasse nisso ao olhar o mundo – se havia uma razão para as leis ministradas por Deus, então o Próprio Deus estava sujeito à lei e, por conseguinte, não há nenhuma vantagem em se apresentar Deus como intermediário. Temos aí realmente uma lei exterior e anterior aos editos divinos, e Deus não serve então ao nosso propósito, pois que ele não é o legislador supremo. Em suma todo esse argumento acerca da lei natural já não possui nada que se pareça com o seu vigor de antigamente. Estou viajando no tempo em meu exame dos argumentos. Os argumentos quanto à existência de Deus mudam de caráter à medida que o tempo passa. Eram, a princípio, argumentos intelectuais, rígidos, encerrando certas idéias errôneas, bastante definidas. Ao chegarmos aos tempos modernos, essas idéias se tornam intelectualmente menos respeitáveis e cada vez mais afetadas por uma espécie de moralizadora imprecisão.

O ARGUMENTO DA PROVA TEOLÓGICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS

O passo seguinte nos conduz ao argumento da prova teológica da existência de Deus. Vós todos conheceis tal argumento: tudo no mundo é feito justamente de modo a que possamos nele viver, e se ele fosse, algum dia, um pouco diferente, não conseguiríamos viver nele. Eis aí o argumento da prova teológica da existência de Deus. Toma ele, às vezes, uma forma um tanto curiosa; afirma-se, por exemplo, que as lebres têm rabos brancos a fim de que possam ser facilmente atingidas por um tiro. Não sei o que as lebres pensariam desse destino. É um argumento fácil para paródia. Todos vós conheceis a observação de Voltaire, de que o nariz foi, evidentemente, destinado ao uso dos óculos. Essa espécie de gracejo acabou por não estar tão fora do alvo como poderia ter parecido no século XVIII, pois que, desde o tempo de Darwin, compreendemos muito melhor por que os seres vivos são adaptados ao meio em que vivem. Não é o seu meio que se foi ajustando aos mesmos, mas eles é que foram se ajustando ao meio, e isso é que constitui a base da adaptação. Não há nisso prova alguma de desígnio divino.

Quando se chega a analisar o argumento teológico de prova da existência de Deus, é sumamente surpreendente que as pessoas possam acreditar que este mundo, com todas as coisas que nele existem, com todos os seus defeitos, deva ser o melhor mundo que a onipotência e a onisciência tenham podido produzir em milhões de anos. Achais, acaso, que, se vos fossem concedidas onipotência e onisciência, além de milhões de anos para que pudésseis aperfeiçoar o vosso mundo, não teríeis podido produzir nada melhor do que a Ku-Klux-Klan ou os fascistas?

Ademais, se aceitais as leis ordinárias da ciência, tereis de supor que não só a vida humana como a vida em geral neste planeta se extinguirão em seu devido curso: isso constitui uma fase da decadência do sistema solar. Em certa fase de decadência, teremos a espécie de condições de temperatura, etc., adequadas ao protoplasma, e haverá vida, durante breve tempo, na vida do sistema solar. Podeis ver na lua a espécie de coisa a que a terra tende: algo morto, frio e inanimado.

Dizem-me que tal opinião é depressiva e, às vezes, há pessoas que nos confessam que, se acreditassem nisso, não poderiam continuar vivendo. Não acrediteis nisso, pois que não passa de tolice. Na verdade, ninguém se preocupa muito com o que irá acontecer daqui a milhões de anos. Mesmo que pensem que estão se preocupando muito com isso, não estão, na realidade, fazendo outra coisa senão enganar a si próprias.

Estão preocupadas com algo muito mais mundano – talvez mesmo apenas com a sua má digestão. Na verdade, ninguém se torna realmente infeliz ante a idéia de algo que irá acontecer a este mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por conseguinte, embora seja melancólico supor-se que a vida irá se extinguir (suponho, ao menos, que se possa dizer tal coisa, embora, às vezes, quando observo o que as pessoas fazem de suas vidas, isso me pareça quase um consolo) isso não é coisa que tome a vida miserável. Faz apenas com que a gente volte a atenção para outras coisas.

OS ARGUMENTOS MORAIS A FAVOR DA DEIDADE

Chegamos, agora, a uma nova fase, na qual nos referiremos ao que os teístas fizeram, intelectualmente, com os seus argumentos, e topamos com aquilo a que se chama de os argumentos morais quanto à existência de Deus. Vós todos sabeis, por certo, que costumava haver, antigamente, três argumentos intelectuais a favor da existência de Deus, os quais foram todos utilizados por Immanuel Kant em sua Crítica da Razão Pura; mas, logo depois de haver utilizado tais argumentos, inventou ele um novo, um argumento moral, e isso o convenceu inteiramente. Kant era como muita gente: em questões intelectuais, mostrava-se cético, mas, em questões morais, acreditava implicitamente nas máximas hauridas no colo de sua mãe. Eis aí um exemplo daquilo que os psicanalistas tanto ressaltam: a influência imensamente mais forte de nossas primeiras associações do que das que se verificam mais tarde.

Kant, como digo, inventou um novo argumento moral quanto à existência de Deus, e o mesmo, em formas várias, se tornou grandemente popular durante o século XIX. Tem hoje toda a espécie de formas. Uma delas é a que afirma que não haveria o bem e o mal a menos que Deus existisse. Não estou, no momento, interessado em saber se há ou não uma diferença entre o bem e o mal. Isso é outra questão. O ponto em que estou interessado é que, se estamos tão certos de que existe uma diferença entre o bem e o mal, nos achamos, então, na seguinte situação: é essa diferença devida ao fiat de Deus ou não? Se é devida ao fiat de Deus, então não existe, para o Próprio Deus, diferença entre o bem e o mal, e não constitui mais uma afirmação significativa o dizer-se que Deus é bom. Se dissermos, como o fazem os teólogos, que Deus é bom, teremos então de dizer que o bem e o mal possuem algum sentido independente do fiat de Deus, porque os fiats de Deus são bons e não maus independentemente do mero fato de ele os haver feito. Se dissermos tal coisa, teremos então de dizer que não foi apenas através de Deus que o bem e o mal passaram a existir, mas que são, em sua essência, logicamente anteriores a Deus. Poderíamos, por certo, se assim o desejássemos, dizer que havia uma deidade superior que dava ordens ao Deus que fez este mundo, ou, então, poderíamos adotar o curso seguido por certos agnósticos – curso que me pareceu, com freqüência, bastante plausível segundo o qual, na verdade, o mundo que conhecemos foi feito pelo diabo num momento em que Deus não estava olhando. Há muito que se dizer a favor disso, e não estou interessado em refutá-lo.

O ARGUMENTO QUANTO À REPARAÇÃO DA INJUSTIÇA

Há uma outra forma muito curiosa de argumento moral, que é a seguinte: dizem que a existência de Deus é necessária a fim de que haja justiça no mundo. Na parte do universo que conhecemos há grande injustiça e, não raro, os bons sofrem e os maus prosperam, e a gente mal sabe qual dessas coisas é mais molesta; mas, para que haja justiça no universo como um todo, temos de supor a existência de uma vida futura para reparar a vida aqui na terra. Assim, dizem que deve haver um Deus, e que deve haver céu e inferno, a fim de que, no fim, possa haver justiça. É esse um argumento muito curioso.

Se encarássemos o assunto de um ponto de vista científico, diríamos: “Afinal de contas, conheço apenas este mundo. Nada sei do resto do universo, mas, tanto quanto se pode raciocinar acerca das probabilidades, dir-se-ia que este mundo constitui uma bela amostra e, se há aqui injustiça, é bastante provável que também haja injustiça em outras partes”. Suponhamos que recebeis um engradado de laranjas e que, ao abri-lo, verificais que todas as laranjas de cima estão estragadas. Não diríeis, em tal caso: “As de baixo devem estar boas, para compensar as de cima”. Diríeis: “É provável que todas elas estejam estragadas”. E é precisamente isso que uma pessoa de espírito científico diria acerca do universo. Diria: “Encontramos neste mundo muita injustiça e, quanto ao que a isso se refere, há razão para se supor que o mundo não é governado pela justiça. Por conseguinte, tanto quanto posso perceber, isso fornece um argumento moral contra a deidade e não a seu favor”. Sei, certamente, que os argumentos intelectuais sobre os quais vos estou falando não são, na verdade, de molde a estimular as pessoas. O que realmente leva os indivíduos a acreditar em Deus não é nenhum argumento intelectual. A maioria das pessoas acredita em Deus porque lhes ensinaram, desde tenra infância, a fazê-lo, e essa é a principal razão.

Penso, ainda, que a seguinte e mais poderosa razão disso é o desejo de segurança, uma espécie de impressão de que há um irmão mais velho a olhar pela gente. Isso desempenha um papel muito profundo, influenciando o desejo das pessoas quanto a uma crença em Deus.

O CARÁTER DE CRISTO

Desejo agora dizer algumas palavras sobre um tema que, penso com freqüência, não foi tratado suficientemente pelos racionalistas, e que é a questão de saber-se se Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens. É geralmente aceito como coisa assente que deveríamos todos concordar em que assim é. Não penso desse modo. Acho que há muitíssimos pontos em que concordo com Cristo muito mais do que o fazem os cristãos professos. Não sei se poderia concordar com Ele em tudo, mas posso concordar muito mais do que a maioria dos cristãos professos o faz. Lembrar-vos- eis que Ele disse: “Não resistais ao mau, mas, se alguém te ferir em tua face direita, apresenta-lhe também a outra”. Isto não era um preceito novo, nem um princípio novo. Foi usado por Lao-Tse e por Buda cerca de quinhentos ou seiscentos anos antes de Cristo, mas não é um princípio que, na verdade, os cristãos aceitem. Não tenho dúvida de que o Primeiro-Ministro (Stanley Baldwin), por exemplo, seja um cristão sumamente sincero, mas não aconselharia a nenhum de vós que o ferisse na face. Penso que, então, poderíeis descobrir que ele considerava esse texto como algo que devesse ser empregado em sentido figurado.

Há um outro ponto que julgo excelente. Lembrar-vos eis, por certo, de que Cristo disse: “Não julgueis, para que não sejais julgados”. Não creio que vós considerásseis tal princípio como sendo popular nos tribunais dos países cristãos. Conheci, em outros tempos, muitos juízes que eram cristãos sumamente convictos, e nenhum deles achavam que estava agindo, no que fazia, de maneira contrária aos princípios cristãos. Cristo também disse: “Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes”. É este um princípio muito bom.

Vosso Presidente vos lembrou que não estamos aqui para falar de política, mas não posso deixar de observar que as últimas eleições gerais foram disputadas baseadas na questão de quão desejável seria voltar as costas ao que desejava lhe emprestássemos, de modo que devemos presumir que os liberais e os conservadores deste país são constituídos de pessoas que não concordam com os ensinamentos de Cristo, pois que, certamente, naquela ocasião, voltaram as costas de maneira bastante enfática.

Há ainda uma máxima de Cristo que, penso, contém nela muita coisa, mas não me parece seja muito popular entre os nossos amigos cristãos. Diz Ele: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, e dá-o aos pobres”. Eis aí uma máxima excelente, mas, como digo, não é muito praticada. Todas estas, penso, são boas máximas, embora seja um pouco difícil viver-se de acordo com elas. Quanto a mim, não afirmo que o faça – mas, afinal de contas, isso não é bem o mesmo que o seria tratando-se de um cristão.

DEFEITOS NOS ENSINAMENTOS DE CRISTO

Tendo admitido a excelência de tais máximas, chego a certos pontos em que não acredito se possa concordar, nem com a sabedoria superlativa, nem com a bondade superlativa de Cristo, tal como são descritas nos Evangelhos – e posso dizer aqui que não estou interessado na questão histórica. Historicamente, é muito duvidoso que Cristo haja jamais existido e, se existiu, nada sabemos a respeito d’Ele, de modo que não estou interessado na questão histórica, que é uma questão muito difícil. Estou interessado em Cristo tal como me aparece nos Evangelhos, tomando a narrativa bíblica tal como ela se nos apresenta – e nela encontramos algumas coisas que não parecem muito sábias. Por um lado, Ele certamente pensou que o Seu segundo advento ocorreria em nuvens de glória antes da morte de toda a gente que estava vivendo naquela época. Há muitos textos que o provam. Diz Ele, por exemplo: “Não acabareis de correr as cidades de Israel, sem que venha o Filho do Homem”. E adiante: “Entre aqueles que estão aqui presentes, há alguns que não morrerão, antes que vejam o Filho do Homem no seu reino” – e há uma porção de lugares em que é bastante claro que me acreditava que a Sua segunda vinda ocorreria durante a vida dos que então viviam. Essa era a crença de seus primeiros adeptos, constituindo a base de uma grande parte de Seus ensinamentos morais. Quando Ele disse: “Não andeis inquietos pelo dia de amanhã” e outras coisas semelhantes, foi, em grande parte, porque julgava que a sua segunda vinda seria muito breve e que, por isso, não tinham importância os assuntos mundanos. Conheci, na verdade, cristãos que acreditavam que o segundo advento era iminente. Conheci um pároco que assustou terrivelmente a sua congregação, dizendo-lhe que o segundo advento estava, com efeito, sumamente próximo, mas os membros de seu rebanho se sentiram muito consolados quando viram que ele estava plantando árvores em seu jardim. Os primeiros cristãos acreditaram realmente nisso, e abstinha-se de coisas tais como plantar árvores em seus jardins, pois que aceitaram de Cristo a crença de que o segundo advento estava iminente. Não foi tão sábio como alguns outros o foram – e, certamente, não se mostrou superlativamente sábio.

O PROBLEMA MORAL

Chega-se, a seguir, às questões morais. Há, a meu ver, um defeito muito sério no caráter moral de Cristo, e isso por que Ele acreditava no inferno. Quanto a mim, não acho que qualquer pessoa que seja, na realidade, profundamente humana, possa acreditar no castigo eterno. Cristo, certamente, tal como é descrito nos Evangelhos, acreditava no castigo eterno, e a gente encontra, repetidamente, uma fúria vinditiva contra os que não davam ouvidos aos seus ensinamentos – atitude essa nada incomum entre pregadores, mas que, de certo modo, se afasta da excelência superlativa. Não encontrareis, por exemplo, tal atitude em Sócrates. Encontramo-la bastante suave e cortês para com aqueles que não queriam ouvi-lo – e, na minha opinião, é muito mais digno de um sábio adotar tal atitude do que mostrar-se indignado. Provavelmente vos lembrareis das coisas que Sócrates disse quando estava agonizando, bem como das coisas que em geral dizia às pessoas que não concordavam com ele.

Vereis que, nos Evangelhos, Cristo disse: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação ao inferno?”. Isso foi dito a gente que não gostava de seus ensinamentos. Esse não é, realmente, na minha opinião, o melhor tom, e há muitas dessas coisas acerca do inferno. Há, por certo, o texto familiar acerca do pecado contra o Espírito Santo:

“Quem falar contra o Espírito Santo não será perdoado, nem neste século nem no futuro”. Este texto causou indizível infelicidade no mundo, pois que toda a espécie de criatura imaginava haver pecado contra o Espírito Santo e achava que não seria perdoada nem neste mundo, nem no outro. Não me parece, realmente, que uma pessoa dotada de um grau adequado de bondade em sua natureza teria posto no mundo receios e terrores dessa espécie.

Diz Cristo, ainda: “O Filho do homem enviará os seus anjos, e tirarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade. E lançá-los-ão na fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger de dentes”. E continua a referir-se aos lamentos e ao ranger de dentes. Isso aparece em versículo e fica bastante evidente ao leitor que há um certo prazer na contemplação dos lamentos e do ranger de dentes, pois que, do contrário, isso não ocorreria com tanta freqüência. Vós todos vos lembrais, certamente, da passagem acerca das ovelhas e das cabras; de como, na segunda vinda, a fim de separar as ovelhas das cabras, irá Ele dizer às cabras: “Afastai-vos de mim, ó amaldiçoadas, e lançai-vos ao fogo eterno”. E prossegue: “E estas mergulharão no fogo eterno”. Depois, torna a dizer: “Se a tua mão direita te serve de escândalo, corta-a, e lança-a para longe de ti; porque é melhor para ti que se perca um de teus membros, do que todo teu corpo seja lançado no inferno, no fogo que não será jamais aplacado, onde os vermes não morrem e o fogo não é aplacado”. Repete também isso muitas e muitas vezes. Devo dizer que considero toda esta doutrina – a de que o fogo do inferno é um castigo para o pecado – como uma doutrina de crueldade. É uma doutrina que pôs a crueldade no mundo e submeteu gerações a uma tortura cruel – e o Cristo dos Evangelhos, se pudermos aceitá-lO como os seus cronistas O representam, teria, certamente, de ser considerado, em parte, responsável por isso.

Há outras coisas de menor importância. Há, por exemplo, a expulsão dos demônios de Gerasa, onde, certamente, não foi muito bondoso para com os porcos, fazendo com que os demônios neles entrassem e se precipitassem ao mar pelo despenhadeiro. Deveis lembrar-vos de que Ele era onipotente e teria podido simplesmente fazer com que os demônios fossem embora. Mas Ele prefere fazer com que entrem nos porcos. Há, ainda, a curiosa história da figueira, que sempre me deixa um tanto intrigado. Vós vos lembrais do que aconteceu com a figueira. “Pela manhã, quando voltava para a cidade, teve fome. E, vendo uma figueira junto do caminho, aproximou-se dela; e não encontrou nela senão folhas, e disse-lhe: Nunca mais nasça fruto de ti”. E Pedro disse- Lhe: “Vê, Mestre: a figueira que amaldiçoaste secou”. Essa é uma história muito curiosa, pois que aquela não era a estação dos figos e, realmente, não se podia censurar a árvore. Quanto a mim, não me é possível achar que, em questão de sabedoria ou em questão de virtude, Cristo permaneça tão alto como certas outras figuras históricas que conheço. Nesses sentidos, eu colocaria Buda e Sócrates acima dele.

O FATOR EMOCIONAL

Como já disse, não creio que a verdadeira razão pela qual as pessoas aceitam a religião tenha algo que ver com argumentação. Aceitam a religião por motivos emocionais. Dizem-nos com freqüência que é muito mau atacar-se a religião, pois que a religião toma os homens virtuosos. Isso é o que me dizem; eu jamais o percebi. Conheceis, por certo, a paródia desse argumento, tal como é apresentado no livro Erewhom Revisited, de Samuel Butler. Vós vos lembrais de que, em Erewhom, há um certo Higgs que chega a um país remoto e que, após passar lá algum tempo, foge do país num balão. Vinte anos depois, volta ao mesmo país e encontra uma nova religião, na qual é ele adorado sob o nome de “Filho do Sol”, e na qual se afirma que ele subiu ao céu. Verifica que a Festa da Ascensão está prestes a ser celebrada, e ouve os Professores Hanky e Panky dizer entre si que jamais puseram os olhos no tal Higgs e que esperam não o fazer jamais – mas eles são os altos sacerdotes da religião do Filho do Sol. Higgs sente-se muito indignado e, aproximando-se deles, diz- lhes : “Vou desmascarar todo este embuste e dizer ao povo de Erewhom que se tratava apenas de mim, Higgs, e que subi num balão”. Responderam-lhe: “Não deve fazer isso, pois toda a moral deste país gira em torno desse mito e, se souberem que você não subiu ao céu, todos os seus habitantes se tomarão maus”. Persuadido disso, Higgs afasta-se do país silenciosamente.

Eis aí a idéia – a de que todos nós seríamos maus se não nos apegássemos à religião cristã. Parece-me que as pessoas que se apegaram a ela foram, em sua maioria, extremamente más. Tendes este fato curioso: quanto mais intensa a religião em qualquer época, e quanto mais profunda a crença dogmática, tanto maior a crueldade e tanto pior o estado de coisas. Nas chamadas idades da fé, quando os homens realmente acreditavam na religião cristã em toda a sua inteireza, houve a Inquisição, com as suas torturas; houve milhares de infelizes mulheres queimadas como feiticeiras – e houve toda a espécie de crueldade praticada sobre toda a espécie de gente em nome da religião.

Constatareis, se lançardes um olhar pelo mundo, que cada pequenino progresso verificado nos sentimentos humanos, cada melhoria no direito penal, cada passo no sentido da diminuição da guerra, cada passo no sentido de um melhor tratamento das raças de cor, e que toda diminuição da escravidão, todo o progresso moral havido no mundo, foram coisas combatidas sistematicamente pelas Igrejas estabelecidas do mundo. Digo, com toda convicção, que a religião cristã, tal como se acha organizada em suas Igrejas, foi e ainda é a principal inimiga do progresso no mundo.

DE QUE FORMA AS IGREJAS RETARDARAM O PROGRESSO

Talvez julgueis que estou indo demasiado longe, quando digo que ainda assim é. Não julgo que esteja. Tomemos apenas um fato. Concordareis comigo, se eu o citar. Não é um fato agradável, mas as Igrejas nos obrigam a referir-nos a fatos que não são agradáveis. Suponhamos que, neste mundo em que hoje vivemos, uma jovem inexperiente case com um homem sifilítico. Neste caso, a Igreja Católica diz: “Esse é um sacramento indissolúvel. Devem permanecer juntos por toda a vida”. E nenhum passo deve ser dado por essa mulher no sentido de evitar que dê à luz filhos sifilíticos. Isso é o que diz a Igreja Católica. Quanto a mim, digo que isso constitui uma crueldade diabólica, e ninguém cujas simpatias naturais não tenham sido embotadas pelo dogma, ou cuja natureza moral não esteja inteiramente morta a todo sentido de sofrimento, poderia afirmar que é justo e certo que tal estado de coisas deva continuar.

Este é apenas um dos exemplos. Há muitas outras maneiras pela qual a Igreja, no momento, com sua insistência sobre o que prefere chamar moralidade, inflige a toda a espécie de pessoas sofrimentos imerecidos e desnecessários. E, naturalmente, como todos nós sabemos, é ainda, em grande parte, contrária ao progresso e ao aperfeiçoamento de todos os meios tendentes a diminuir o sofrimento no mundo, pois que costuma rotular de moralidade certas acanhadas regras de conduta que nada tem a ver com a felicidade humana – e quando se diz isto ou aquilo deve ser feito, pois que contribuiria para a felicidade humana, eles acham que nada têm a ver, absolutamente, com tal assunto. “Que é que a felicidade tem a ver com a moral? O objetivo da moral não é tornar as pessoas felizes”.

O MEDO – A BASE DA RELIGIÃO

A religião baseia-se, penso eu, principalmente e antes de tudo, no medo. É, em parte, o terror de desconhecido e, em parte, como já o disse, o desejo de sentir que se tem uma espécie de irmão mais velho que se porá de nosso lado em todas as nossas dificuldades e disputas. O medo é a base de toda essa questão: o medo do mistério, o medo da derrota, o medo da morte. O medo é a fonte da crueldade e, por conseguinte, não é de estranhar que a crueldade e a religião tenham andado de mãos dadas. Isso por que o medo é a base dessas duas coisas. Neste mundo, podemos agora começar a compreender um pouco as coisas e a dominá-las com a ajuda da ciência, que abriu caminho, passo a passo, contra a religião cristã, contra as Igrejas e contra a oposição de todos os antigos preceitos.

A ciência pode ajudar-nos a superar esse medo pusilânime em que a humanidade viveu durante tantas gerações. A ciência pode ensinar-nos, e penso que também os nossos corações podem fazê-lo, a não mais procurar apoios imaginários, a não mais inventar aliados no céu, mas a contar antes com os nossos próprios esforços aqui embaixo para tornar este mundo um lugar adequado para se viver, ao invés da espécie de lugar a que as igrejas, durante todos estes séculos, o converteram.

O QUE DEVEMOS FAZER

Devemos apoiar-nos em nossos próprios pés e olhar o mundo honestamente – as coisas boas, as coisas más, suas belezas e suas fealdades; ver o mundo como ele é, e não temê-lo. Conquistar o mundo por meio da inteligência, e não apenas abjetamente subjugados pelo terror que ele nos desperta. Toda a concepção de Deus é uma concepção derivada dos antigos despotismos orientais. É uma concepção inteiramente indigna de homens livres. Quando vemos na igreja pessoas a menosprezar a si próprias e a dizer que são miseráveis pecadores e tudo o mais, tal coisa nos parece desprezível e indigna de criaturas humanas que se respeitem. Devemos levantar-nos e encarar o mundo de frente, honestamente. Devemos fazer do mundo o melhor que nos seja possível, e se o mesmo não é tão bom quanto desejamos, será, afinal de contas, ainda melhor do que esses outros fizeram dele durante todos estes séculos. Um mundo bom necessita de conhecimento, bondade e coragem; não precisa de nenhum anseio saudoso pelo passado, nem do encarceramento das inteligências livres por meio de palavras proferidas há muito tempo por homens ignorantes. Necessita de esperança para o futuro, e não de passar o tempo todo voltado para trás, para um passado morto, que, assim o confiamos, será ultrapassado de muito pelo futuro que a nossa inteligência pode criar.

 

TROUXE A RELIGIÃO CONTRIBUIÇÕES ÚTEIS À CIVILIZAÇÃO?

Publicado originalmente em 1930

Minha opinião acerca da religião é a mesma que a de Lucrécio. Considero-a como uma doença nascida do medo e como uma fonte de indizível sofrimento para a raça humana. Não posso, porém, negar que ela trouxe certas contribuições à civilização. Ajudou, nos primeiros tempos, a fixar o calendário, e levou os sacerdotes egípcios a registrar os eclipses com tal cuidado que, com o tempo, foram capazes de predizê-los. Estou pronto a reconhecer esses dois serviços, mas não tenho conhecimento de quaisquer outros.

A palavra “religião” é hoje usada num sentido muito livre. Certas pessoas, sob a influência de um protestantismo extremo, empregam essa palavra para denotar todas as convicções pessoais sérias relativas à moral ou à natureza do universo. Esse emprego da palavra é inteiramente anti- histórico. A religião é, antes de mais nada, um fenômeno social. É possível que as Igrejas devam sua origem a mestres dotados de fortes convicções individuais, mas tais mestres raramente tiveram muita influência sobre as Igrejas que fundaram, enquanto que as Igrejas tiveram enorme influência sobre as comunidades em que floresceram. Para tomarmos um caso de sumo interesse para os membros da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo, tais como aparecem nos Evangelhos, tiveram, extraordinariamente, pouco que ver com a ética dos cristãos. A coisa mais importante sobre o Cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo, mas a Igreja, e, se quisermos considerar o Cristianismo como uma força social, não é nos Evangelhos que devemos procurar o nosso material; Cristo ensinou que deveríamos dar os nossos bens aos pobres, que não deveríamos lutar, que não deveríamos ir à igreja e que não deveríamos punir o adultério. Nem os católicos, nem os protestantes, demonstraram qualquer desejo forte de seguir os Seus ensinamentos a qualquer desses respeitos. Certos franciscanos, é verdade, tentaram ensinar a doutrina da pobreza franciscana, mas o Papa os condenou, e suas doutrinas foram declaradas heréticas. Ou, então, consideremos um texto como o de “Não julgueis para que não sejais julgados”, e perguntemos a nós próprios que influência tal texto teve sobre a Inquisição e a Ku-Klux-Klan.

O que é verdade com respeito ao Cristianismo, também o é com respeito ao Budismo. Buda era amável e esclarecido: em seu leito de morte, riu de seus discípulos, que o consideravam imortal. Mas o sacerdócio budista – tal como existe, por exemplo, no Tibet – sempre foi obscurantista, tirânico e cruel no mais alto grau.

Nada há de acidental quanto a essa diferença entre uma Igreja e o seu fundador. Logo que se supõe que a palavra de certos homens contém a verdade absoluta, surge um corpo de especialistas para interpretar seus ensinamentos, e tais especialistas adquirem, infalivelmente, poder, já que possuem a chave da verdade. Como qualquer outra casta privilegiada, usam de seu poder em seu próprio benefício. São, porém, em certo sentido, piores do que qualquer outra casta privilegiada, pois que sua função consiste em expor uma verdade imutável, revelada uma vez por todas em sua suprema perfeição, de modo que se tomam, necessariamente, adversários de todo progresso intelectual e moral. A Igreja opôs-se a Galileu e a Darwin; em nossos dias, opõe-se a Freud. Na época de seu maior poder, foi ainda mais longe, em sua oposição à vida intelectual. O Papa Gregório, o Grande, escreveu a um certo bispo uma carta que começava assim: “Chegou ao nosso conhecimento uma informação a que não podemos nos referir sem corar: a de que ensinas a gramática a certos amigos”. O bispo foi obrigado, pela autoridade pontifícia, a desistir desse pecaminoso trabalho, e a Latinidade não se refez até a Renascença. Não é apenas intelectualmente, mas moralmente, que a religião é perniciosa. Quero dizer, com isto, que ela ensina preceitos éticos que não conduzem à felicidade humana. Quando, há poucos anos, se realizou na Alemanha um plebiscito para se saber se as casas reais depostas deviam ainda ter o privilégio de gozar de suas propriedades privadas, as Igrejas, na Alemanha, declararam oficialmente que seria contrário aos ensinamentos do cristianismo privá-las disso. As Igrejas, como todos sabem, opuseram-se, enquanto ousaram fazê-lo, à abolição da escravidão e, salvo algumas poucas exceções bastante anunciadas, opõem-se, no presente, a todos os movimentos que têm por objetivo a justiça econômica. O Papa condenou oficialmente o socialismo.

CRISTIANISMO E SEXO

O pior característico da religião cristã, porém, é a sua atitude para com o sexo – uma atitude tão mórbida e tão contrária à natureza que só pode ser compreendida quando considerada em relação com a enfermidade do mundo civilizado ao tempo em que o Império Romano estava em decadência. Ouvimos dizer, às vezes, que o cristianismo melhorou a condição social das mulheres. Esta é uma das mais grosseiras deturpações da história que se possa fazer. As mulheres não podem desfrutar de uma posição tolerável numa sociedade em que se considere da máxima importância os fatos de elas não deverem infringir um código moral muito rígido. As monjas sempre consideraram a mulher, antes de mais nada, como a tentadora; sempre pensaram nela como a inspiradora de desejos impuros. A Igreja ensinou, e ainda hoje ensina, que o melhor é a virgindade, mas que é permissível o casamento àqueles que a julgam impossível. “É melhor casar do que abrasar”, diz, brutalmente, São Paulo. Tornando o casamento indissolúvel e eliminando todo o conhecimento da ars amandi, a Igreja fez o que pôde no sentido de assegurar que a única forma de relação sexual permitida causasse muito pouco prazer e muitíssimo sofrimento. A oposição ao controle da natalidade tem, na verdade, o mesmo motivo: se uma mulher tem um filho por ano, até morrer de exaustão, não é de se supor que encontre muito prazer em sua vida de casada. Por conseguinte, o controle da natalidade deve ser desaconselhado.

A concepção de Pecado estreitamente ligada à ética cristã é uma concepção que causa enorme dano, pois que proporciona aos indivíduos uma saída para o seu sadismo, a qual é por eles considerada não só legítima como, até mesmo, nobre. Tomemos, por exemplo, a questão da prevenção da sífilis. Sabe-se que, mediante precauções tomadas com antecedência, o perigo de contrair-se tal enfermidade pode tornar-se insignificante. Os cristãos, porém, fazem objeções à divulgação do conhecimento desse fato, uma vez que afirmam que é bom que os pecadores sejam castigados. Afirmam ser isso tão bom, que estão mesmo dispostos a permitir que o castigo se estenda às esposas e aos filhos dos pecadores. Há no mundo, no momento atual, muitos milhares de crianças que sofrem de sífilis congênita, as quais jamais teriam nascido não fosse o desejo dos cristãos de fazer com que os pecadores paguem pelos seus pecados. Não posso compreender como é que doutrinas conducentes a tão diabólica crueldade possam ser consideradas como tendo qualquer efeito benéfico sobre a moral.

Não é somente quanto ao que se refere ao procedimento sexual, mas também quanto ao que diz respeito ao conhecimento relativo aos assuntos sexuais, que a atitude dos cristãos é perigosa para o bem-estar humano. Toda pessoa que se deu ao trabalho de estudar a questão com espírito imparcial sabe que a ignorância artificial quanto a assuntos sexuais, que os cristãos ortodoxos tentam impor aos jovens, é extremamente perigosa para a saúde física e mental, causando aos que colhem o seu conhecimento por meio de uma conversa “imprópria”, como acontece com a maioria das crianças, a convicção de que o sexo é, por si próprio, algo indecente e ridículo. Não creio possa haver qualquer defesa para a opinião de que o conhecimento seja, de algum modo, indesejável. Eu não poria barreiras quanto à aquisição de conhecimentos por parte de alguém em qualquer idade. Mas, no caso do conhecimento de assuntos sexuais, há argumentos muito mais poderosos a seu favor do que no caso da maior parte dos outros conhecimentos. É muito menos provável que uma pessoa aja sensatamente sendo ignorante do que sendo instruída, e é ridículo dar-se aos jovens um sentimento de pecado apenas porque sentem uma curiosidade natural por uma questão importante.

Todo menino se interessa por trens. Suponhamos lhe disséssemos que é pecado sentir interesse por trens; suponhamos mantivéssemos os seus olhos vendados sempre que ele estivesse num trem ou numa estação ferroviária; suponhamos que a palavra “trem” fosse proferida em sua presença e guardássemos um mistério impenetrável quanto aos meios pelos quais era ele transportado de um lugar para outro. O resultado não seria que ele deixasse de se interessar por trens; ficaria, pelo contrário, mais interessado do que nunca, mas experimentaria um mórbido sentimento de pecado, pois que tal interesse lhe havia sido apresentado como impróprio. Qualquer menino de inteligência ativa poderia, desse modo, ser transformado, em maior ou menor grau, num neurastênico. É precisamente isso que se faz quanto ao que se refere ao sexo; mas, como o sexo é mais interessante do que trens, os resultados são muito piores. Quase todo adulto, numa comunidade cristã, é mais ou menos um doente dos nervos, em conseqüência do tabu acerca do conhecimento sexual quando ele ou ela eram jovens. E o senso de pecado, assim artificialmente implantado, é, mais tarde, na vida adulta, uma das causas de crueldade, timidez e estupidez. Não há base racional de espécie alguma para se conservar uma criança ignorante do que quer que ela possa desejar saber, sobre o sexo ou sobre qualquer outro assunto. E jamais teremos uma população sã enquanto não se reconhecer tal fato na educação infantil, o que é impossível enquanto as Igrejas puderem controlar a política educacional. .

Deixando-se de lado estas objeções relativamente pormenorizadas, é claro que as doutrinas fundamentais do cristianismo exigem, antes de ser aceitas, uma grande dose de perversão moral. O mundo, segundo nos dizem, foi criado por um Deus não só bom, como onipotente. Antes de ele haver criado o mundo, previu toda dor e toda a miséria que o mesmo iria conter. E ele, pois, responsável por tudo isso. É inútil argumentar-se que o sofrimento, no mundo, é devido ao pecado.

Em primeiro lugar, isso não é verdade: não é o pecado que faz com que os rios transbordem ou que os vulcões entrem em erupção. Mas, mesmo que fosse verdade, isso não faria diferença. Se eu fosse gerar uma criança sabendo que essa criança iria ser um homicida maníaco, eu seria responsável pelos seus crimes. Se Deus sabia de antemão os pecados de que cada homem seria culpado, Ele foi claramente responsável por todas as conseqüências de tais pecados, ao resolver criar o homem. O argumento cristão habitual é que o sofrimento, neste mundo, constitui uma purificação do pecado, sendo, assim, uma boa coisa. Tal argumento não passa, naturalmente, de uma racionalização do sadismo; seja, porém, como for, é um argumento muito fraco. Eu convidaria qualquer cristão a que me acompanhasse ao pavilhão infantil de um hospital, a fim de observar o sofrimento que é lá suportado, para ver se continuaria a afirmar que aquelas crianças eram tão corruptas, moralmente, a ponto de merecer o que estavam sofrendo. Para que possa dizer tal coisa, um homem tem de destruir em si mesmo todos os sentimentos de misericórdia e de compaixão. Deve, em suma, tornar-se tão cruel como o Deus em que crê. Homem algum que acredite ser para o bem tudo o que acontece neste mundo de sofrimento poderá manter intactos os seus valores morais, já que está sempre encontrando escusas para a dor e a miséria.

AS OBJEÇÕES À RELIGIÃO

As objeções que se fazem à religião são de duas espécies: intelectuais e morais. A objeção intelectual é que não há razão para se supor que alguma religião seja verdadeira; a objeção moral é que os preceitos religiosos datam de um tempo em que os homens eram mais cruéis do que agora e que, por conseguinte, tendem a perpetuar desumanidades que a consciência moral de nossa época teria, de outro modo, superado.

Tomemos, primeiro, a objeção intelectual. Há uma certa tendência, na época prática em que vivemos, para se achar que não importa muito saber-se se os ensinamentos religiosos são ou não verdadeiros, já que a questão importante é saber se são úteis. Uma questão, porém, não pode ser bem decidida sem a outra. Se acreditamos na religião cristã, nossas noções acerca do bem são diferentes do que seriam se não acreditássemos. Por conseguinte, para os cristãos, os efeitos do cristianismo podem parecer bons, enquanto que para os incrédulos podem parecer maus. Ademais, a atitude de que se deve acreditar nesta ou naquela proposição, independentemente da questão de se saber se há provas a seu favor, é uma atitude que produz hostilidade diante da evidência e que nos faz fechar o espírito a qualquer fato que não se adapte aos nossos preconceitos.

Uma certa espécie de imparcialidade científica é qualidade muito importante, sendo qualidade que dificilmente pode existir num homem que imagina haver coisas nas quais é seu dever acreditar. Não podemos, pois, decidir realmente se a religião produz o bem sem que investiguemos se a religião é verdadeira. Para os cristãos, maometanos e judeus, a questão mais fundamental que a verdade da religião implica é a da existência de Deus. Nos dias em que a religião ainda se mostrava triunfante, a palavra “Deus” tinha um sentido perfeitamente definido; mas, em conseqüência das arremetidas dos racionalistas, a palavra se tomou cada vez mais vaga, até ficar difícil saber-se o que as pessoas querem dizer quando afirmam que acreditam em Deus. Tomemos, à guisa de argumento, a definição de Matthew Arnold: “Um poder independente de nós que tende para a justiça”. Talvez pudéssemos tomar isso ainda mais vago, perguntando a nós próprios se temos alguma prova de finalidade no universo, à parte as finalidades dos seres vivos sobre a superfície deste planeta.

O argumento usual das pessoas religiosas sobre este assunto é, mais ou menos, o seguinte: “Eu e meus amigos somos pessoas de inteligência e virtude surpreendentes. Dificilmente se concebe que uma tal inteligência e uma tal virtude fossem produzidas por acaso. Deve haver, por conseguinte, alguém pelo menos tão inteligente e virtuoso como nós, que pôs em funcionamento a maquinaria cósmica tendo em vista produzir-nos”. Lamento dizer que não acho esse argumento tão impressionante como parece aos que o usam. O universo é vasto; não obstante, se é que acreditamos em Eddington, não há, provavelmente, em parte alguma do universo, seres tão inteligentes quanto os homens. Se considerarmos a quantidade total de matéria existente no mundo e a compararmos com a quantidade que forma os corpos dos seres inteligentes, veremos que estes últimos constituem uma proporção quase infinitesimal comparada à primeira. Por conseguinte, mesmo sendo enormemente improvável que as leis do acaso produzam um organismo capaz de inteligência, partindo de uma seleção casual de átomos, é, não obstante, provável que haja no universo esse número insignificante de organismos, como os que de fato encontramos. Mesmo assim considerados como o clímax de um tão vasto processo, não me parece que sejamos, na verdade, suficientemente maravilhosos. Percebo, claro, que muitos sacerdotes são muito mais maravilhosos do que eu, e que não me é possível apreciar devidamente méritos que ultrapassam em muito os meus. Contudo, mesmo depois de fazer concessões nesse sentido, não me é possível deixar de pensar que a Onipotência, agindo durante toda a eternidade, poderia ter produzido algo melhor. Ademais, temos ainda de refletir que mesmo este resultado não tem importância alguma. A terra não será sempre habitável; a raça humana se extinguirá, e, se o processo cósmico tiver de justificar- se no futuro, terá de fazê-la em outra parte, e não na superfície de nosso planeta. E, mesmo que isso ocorra, terá de terminar mais cedo ou mais tarde. A segunda lei da termodinâmica faz com que dificilmente possamos duvidar de que o universo está se deteriorando, e de que, finalmente, não será possível, em parte alguma, nada que represente o mínimo interesse. Claro que podemos dizer que, quando chegar esse tempo, Deus dará de novo corda à maquinaria; mas, se o dissermos, só poderemos basear a nossa afirmativa na fé, e não numa partícula sequer de evidência científica. Quanto ao que concerne à evidência científica, sabemos que o universo se arrastou, através de lentas etapas, até um resultado um tanto lamentável quanto a esta terra, e que irá arrastar-se, através de fases ainda mais deploráveis, até chegar a uma condição de morte universal. Se isto puder ser encarado como uma prova do desígnio divino, não me resta senão dizer que tal desígnio não tem para mim a menor sedução. Não vejo, pois, razão para acreditar em qualquer espécie de Deus, por mais vago e por mais atenuado que seja. Deixo de lado os velhos argumentos metafísicos, uma vez que os próprios apologistas religiosos já os abandonaram.

A ALMA E A IMORTALIDADE

A ênfase cristã quanto à alma individual teve profunda influência sobre a moral das comunidades cristãs. É uma doutrina fundamentalmente aparentada com a dos estóicos, surgindo, como a deles surgiu, em comunidades que não mais podiam alimentar esperanças políticas. O impulso natural dos indivíduos vigorosos, de caráter decente, é no sentido de procurar fazer o bem, mas, se tais indivíduos são privados de todo poder político e de toda a oportunidade de influir nos acontecimentos, desviar-se-ão de seu curso natural e decidirão que o importante é serem bons. Foi o que aconteceu com os primitivos cristãos: tal impulso os levou a uma concepção de santidade pessoal como algo inteiramente independente da ação benéfica, já que a santidade tinha de ser algo que podia ser conseguido por pessoas impotentes quanto à ação. A virtude social, por conseguinte, veio a ser excluída da moral cristã. Até hoje, os cristãos convencionais consideram o adultério como sendo pior do que um político que aceita suborno, embora este último, provavelmente, cause mil vezes mais dano do que o primeiro. A concepção medieval de virtude, como a gente vê em suas pinturas, era algo aguado, débil e sentimental. O homem mais virtuoso era aquele que se afastava do mundo; os únicos homens de ação considerados como santos, eram aqueles que desperdiçavam a vida e os haveres de seus súditos em luta contra os turcos, como São Luís. A Igreja jamais consideraria um homem como santo por haver o mesmo reformado as finanças; o direito criminal ou o poder judiciário. Simples contribuições como essas ao bem-estar humano seriam consideradas como coisas sem importância. Não creio que haja um único santo em todo o calendário cuja santidade seja devida a uma obra de utilidade pública. Com essa separação entre a pessoa moral e a pessoa social, verificou-se uma crescente separação entre a alma e o corpo, a qual sobreviveu na metafísica cristã e nos sistemas derivados de Descartes. Poder-se-ia dizer, falando-se de um modo geral, que o corpo representa a parte social e pública de um homem, enquanto que a alma representa a parte privada. Ao dar ênfase à alma, a moral cristã tomou-se completamente individualista. Penso que o resultado claro e líquido de todos estes séculos de cristianismo foi tomar os homens mais egoístas, mais fechados em si mesmos, do que a natureza os fez – pois que os impulsos que naturalmente tiram o homem para fora das paredes de seu ego são os do sexo, a paternidade, o patriotismo e o instinto de rebanho. O sexo, a Igreja tudo fez para desacreditar e denegrir; o afeto de família foi desacreditado pelo Próprio Cristo e pelo grosso de Seus adeptos, e o patriotismo não pôde encontrar lugar entre as populações sujeitas ao Império Romano. A polêmica contra a família, nos Evangelhos, é um assunto que não recebeu a atenção que merece. A Igreja trata a Mãe de Cristo com reverência, mas Ele Próprio pouco revelou dessa atitude. “Mulher, que tenho eu contigo?” (João II. 4) é a Sua maneira de falar-lhe. Também diz que veio “separar o filho do seu pai, e a filha da sua mãe, e a nora da sua sogra – e que aquele que ama o pai ou a mãe mais do que a Ele não é digno d’Ele” (Mateus x. 35-7). Tudo isso significa uma ruptura no laço biológico da família a bem da fé – uma atitude que muito teve que ver com a intolerância que surgiu no mundo com a expansão do cristianismo.

Esse individualismo culminou na doutrina da imortalidade da alma individual, que deveria gozar, numa vida futura, de eterna bem-aventurança ou de eterna aflição, segundo as circunstâncias. As circunstâncias de que dependia essa grave diferença eram um tanto curiosas. Se se morria, por exemplo, imediatamente após haver um sacerdote espargido água sobre a gente, ao mesmo tempo em que pronunciava certas palavras, herdava-se a bem-aventurança eterna; mas se, depois de uma longa e virtuosa vida, acontecesse de a gente ser fulminado por um raio, num momento em que se estivesse proferindo palavras feias, por se haver rompido o cordão de um sapato, herdava-se o suplício eterno. Não digo que o cristão protestante moderno acredite nisso, nem mesmo, talvez, o cristão católico moderno que não haja sido adequadamente instruído em teologia, mas digo que isto faz parte da doutrina ortodoxa e que se acreditou nisso até tempos bastante recentes. No México e no Peru, os espanhóis costumavam batizar as criancinhas indígenas e esmigalhar-lhes imediatamente o cérebro: asseguravam, por esse meio, o ingresso de tais criancinhas no céu. Nenhum cristão ortodoxo poderá encontrar qualquer razão lógica para condenar tal ação, embora todos hoje em dia o façam. São incontáveis as maneiras pela qual a doutrina da imortalidade pessoal, em sua forma cristã, teve efeitos desastrosos sobre a moral, sendo que a separação metafísica da alma e do corpo teve efeitos desastrosos sobre a filosofia.

FONTES DE INTOLERÂNCIA

A intolerância que se estendeu pelo mundo com o advento do cristianismo constitui um de seus traços mais curiosos, devido, penso eu, à crença judaica na justiça e na realidade exclusiva do Deus judeu. Por que razão os judeus deviam possuir tais peculiaridades, é coisa que ignoro. Parecem ter-se desenvolvido durante o cativeiro como uma reação contra de se absorver os judeus nas populações estrangeiras. Seja como for, os judeus, e mais especialmente os profetas, inventaram essa ênfase quanto à virtude pessoal, bem como a idéia de que é pecado tolerar-se qualquer religião, exceto uma. Essas duas idéias tiveram efeitos extraordinariamente desastrosos sobre a história ocidental. A Igreja fez muito barulho em torno da perseguição dos cristãos pelo Estado romano antes do tempo de Constantino. Tal perseguição, porém, foi ligeira e intermitente, e de caráter inteiramente político. Em todas as outras épocas, desde o tempo de Constantino até o fim do século XVII, os cristãos foram muito mais ferozmente perseguidos por outros cristãos do que jamais o foram pelos imperadores romanos. Antes do advento do cristianismo, essa atitude de perseguição era desconhecida no mundo antigo, salvo entre os judeus. Se lermos, por exemplo, Heródoto, encontraremos suave e tolerante descrição dos hábitos das nações estrangeiras por ele visitadas. Às vezes, é verdade, um costume particularmente bárbaro pode chocá-lo, mas, de um modo geral, é hospitaleiro quanto aos deuses e costumes estrangeiros. Não se mostra ansioso por provar que as pessoas que chamam a Zeus por algum outro nome sofrerão castigo eterno e devem ser mortas, a fim de que o seu castigo possa começar o mais cedo possível.

Essa atitude foi reservada aos cristãos. O cristão moderno, é verdade, é menos robusto, mas isso não se deve ao cristianismo: deve-se às gerações de livres-pensadores que, desde a Renascença até os nossos dias, fizeram com que os cristãos se envergonhassem de muitas de suas crenças tradicionais. É divertido ouvir-se o cristão moderno dizer quão suave e racionalista é o cristianismo, ignorando o fato de que toda a sua suavidade e racionalismo é devido aos ensinamentos de homens que, em sua época, foram perseguidos pelos cristãos ortodoxos. Ninguém acredita, hoje em dia, que o mundo foi criado no ano 4004 a.C.; não obstante, não faz ainda muito tempo, o ceticismo quanto a este ponto era considerado crime abominável. Meu tataravô, após observar a profundidade da lava nas encostas do Etna, chegou à conclusão de que o mundo devia ser mais velho do que os ortodoxos supunham, e publicou num livro esta sua opinião. Devido a essa ofensa, foi posto para fora de seu condado e esquecido pela sociedade. Fosse ele homem de posição mais humilde, e seu castigo teria sido, sem dúvida, mais severo. Não constitui nenhum crédito para os ortodoxos o fato de que ainda creiam em todos os absurdos em que se acreditava há 150 anos. A debilitação gradual da doutrina cristã verificou-se apesar da mais vigorosa resistência, e isso apenas como resultado das arremetidas de livre-pensadores.

A DOUTRINA DO LIVRE-ARBÍTRIO

A atitude dos cristãos quanto à questão da lei natural tem sido curiosamente vacilante e incerta. Havia, de um lado, a doutrina do livre-arbítrio, na qual a grande maioria dos cristãos acreditava – e essa doutrina requeria que os atos dos seres humanos, pelo menos, não deviam estar sujeitos à lei natural. Havia, por outro lado, principalmente nos séculos XVIII e XIX, a crença em Deus como Legislador e, na lei natural, como constituindo a prova principal da existência de um Criador. Em tempos recentes, a objeção ao reino da lei no interesse do livre-arbítrio começou a fazer-se sentir mais fortemente do que a crença na lei natural como fornecendo prova da existência de um Legislador. Os materialistas valeram-se das leis da física para demonstrar, ou tentar demonstrar, que os movimentos dos corpos humanos são determinados mecanicamente e que, por conseguinte, tudo o que dizemos e toda mudança de posição que efetuamos se acham fora da esfera de qualquer possível livre arbítrio. Se assim é, o que quer que possa sobrar para as nossas livres volições é de pouco valor. Se, quando um homem escreve um poema ou comete um assassínio, os movimentos corporais envolvidos em seu ato resultam unicamente de causas físicas, pareceria absurdo erguer-lhe, num caso, uma estátua e enforcá-lo no outro. Talvez pudesse haver, em certos sistemas metafísicos, uma região de pensamento puro em que a vontade fosse livre; mas, já que isso não pode ser comunicado aos outros senão por meio de movimentos corporais, o reino da liberdade seria um reino que não poderia ser jamais passível de comunicação e que não poderia ter jamais qualquer importância social.

A evolução exerceu, ademais, considerável influência sobre os cristãos que a aceitaram. Viram que não adiantava fazer para o homem reivindicações totalmente diferentes das que são feitas em favor de outras formas de vida. Por conseguinte, a fim de salvaguardar no homem o livre- arbítrio, fizeram objeções a todas as tentativas no sentido de se explicar o procedimento da matéria viva segundo as leis físicas e químicas. A posição de Descartes, ao afirmar que todos os animais inferiores são autômatos, já não encontra acolhida entre os teólogos liberais. A doutrina da continuidade faz com que se mostrem inclinados a ir um passo além e afirmar que mesmo o que é chamado de matéria inanimada não se acha rigidamente governado em seu procedimento por leis inalteráveis. Parece não perceberem o fato de que, se abolirmos o reino da lei, também aboliremos a possibilidade de milagres, já que os milagres são atos de Deus que contrariam as leis que regem os fenômenos ordinários. Posso, porém, imaginar um teólogo liberal moderno afirmando, com ar de quem diz algo profundo, que toda a criação é miraculosa, de modo que não há mais necessidade de que nos apeguemos a certas ocorrências como constituindo evidência especial da intervenção divina.

Sob a influência dessa reação contra a lei natural, certos apologistas cristãos deitaram mão às mais recentes doutrinas do átomo, as quais procuram mostrar que as leis físicas em que até agora acreditávamos possuem apenas uma média aproximada de verdade, quanto ao que se refere a um grande número de átomos, enquanto que o elétron individual age de maneira bastante independente. Quanto a mim, creio que se trata de uma fase temporária e que os físicos, com o tempo, descobrirão as leis que regem os mínimos fenômenos, embora tais leis possam diferir muitíssimo das leis da física tradicional. Seja lá como for, vale a pena observar que as doutrinas modernas relativas aos fenômenos (minute phenomena) nada tem a ver com coisa alguma que seja de importância prática. Os movimentos visíveis e, com efeito, todos os movimentos que fazem qualquer diferença a alguém, envolvem um número tão grande de átomos, que estes se enquadram perfeitamente dentro do escopo das antigas leis. Para se escrever um poema ou cometer um assassínio (voltando à nossa ilustração anterior), é necessário movimentar uma massa apreciável de tinta ou de chumbo. Os elétrons que compõem a tinta poderão estar dançando livremente em torno de seu pequeno salão de baile, mas o salão de baile, como um todo, está se movendo de acordo com as velhas leis da física, e é unicamente isso o que interessa ao poeta e ao seu editor. As doutrinas modernas, por conseguinte, não têm nenhuma relação apreciável com esses problemas de interesse humano de que se ocupam os teólogos.

A questão do livre-arbítrio, por conseguinte, permanece exatamente no mesmo pé em que estava. Pense-se o que se quiser a respeito dela como questão de metafísica fundamental, o que é bastante claro é que ninguém acredita nela na prática. Toda a gente sempre acreditou ser possível disciplinar caráter; toda a gente sempre soube que o álcool ou o ópio terá um certo efeito sobre a conduta. O apóstolo do livre-arbítrio afirma que o homem pode, pela força de vontade, evitar embriagar-se, mas não afirma que, quando bêbedo, possa dizer “British Constitution” tão claramente como se estivesse sóbrio. E todos aqueles que alguma vez já lidaram com crianças sabem que uma dieta adequada contribui mais para torná-las virtuosas do que o mais eloqüente sermão do mundo. O único efeito que a doutrina do livre-arbítrio tem na prática é impedir que as pessoas sigam até a sua conclusão racional qualquer conhecimento ditado pelo senso comum. Quando alguém age de uma maneira que nos desagrada, temos vontade de considerar a esse alguém como sendo um mau indivíduo, e recusamo-nos a encarar o fato de que a sua conduta molesta é resultado de causas anteriores que, se seguidas até uma ponte bastante distante, nos levarão para além do momento de seu nascimento, conduzindo-nos, por conseguinte, a acontecimentos pelos quais ele não poderá, por maior que seja a nossa imaginação, ser considerado responsável.

Homem algum trata um automóvel tão estupidamente como trata um outro ser humano. Quando o automóvel não quer funcionar, não atribui ao pecado a sua aborrecida conduta. Não diz: “Você é um automóvel mau, e não lhe darei mais gasolina enquanto não funcionar”. Procurará descobrir qual a falha e concertá-la. Uma maneira análoga de tratar as criaturas humanas é, no entanto, considerada contrária às verdades de nossa santa religião. E isso se aplica até mesmo ao tratamento de criancinhas. Muitas crianças têm maus hábitos que se tornam permanentes devido ao castigo, mas que provavelmente se dissipariam se não lhes chamássemos a atenção. Não obstante, as preceptoras, com pouquíssimas exceções, acham direito infligir castigos, embora assim procedendo corram o risco de causar insanidade. Uma vez causada a insanidade, é ela citada, nas cortes de justiça, como prova da nocividade do hábito. (Aludo aqui a um processo recente, por obscenidade, no Estado de Nova York.)

As reformas, no campo da educação, verificaram-se principalmente devido ao estudo dos insanos e dos débeis mentais, pois que estes não eram considerados moralmente responsáveis por suas falhas, sendo tratados, assim, de maneira mais científica do que as crianças normais. Afirmava-se, até muito recentemente, que, se um menino não era capaz de aprender as suas lições, o tratamento adequado seria a bengala ou o açoite. Essa opinião está quase extinta quanto ao que concerne ao tratamento de crianças, mas sobrevive no direito criminal. É evidente que um homem com propensão para o crime deve ser contido, mas o mesmo deve acontecer quanto a um homem atacado de hidrofobia que deseje morder os outros, embora ninguém o considere moralmente responsável. Um homem atacado de doença infecciosa tem de ser internado até que se cure, embora ninguém o considere mal por isso. O mesmo deveria ser feito com alguém que tivesse propensão para a falsificação – mas não deveria haver mais idéia de culpa nunca num caso do que noutro. E isto não passa de bom senso, embora seja uma forma de bom senso a que a ética e a metafísica cristãs se opõem.

Para se julgar a influência moral de qualquer instituição sobre uma comunidade, temos de considerar a espécie de impulso contido na referida instituição, bem como o grau em que aumenta a eficácia do impulso na comunidade em apreço. Às vezes, tal impulso é bastante evidente; outras vezes, é mais oculto. Um clube de alpinismo, por exemplo, encerra, evidentemente, um impulso para a aventura, e uma sociedade de cultura um impulso no sentido do saber. A família, como instituição, encerra o ciúme e sentimentos maternos e paternos; um clube de futebol ou um partido político encerram um impulso para os jogos competitivos – mas as duas maiores instituições sociais

– isto é, a Igreja e o Estado – são mais complexas em sua motivação psicológica. O propósito primordial do Estado é, claramente, a segurança contra os criminosos internos e os inimigos externos. As raízes disso estão na tendência que as crianças têm de reunir-se umas às outras quando se sentem amedrontadas e de procurar uma pessoa adulta, que lhes dê uma sensação de segurança. A Igreja possui origens mais complexas. Indubitavelmente, a fonte mais importante da religião é o medo; isso pode ser visto em nossos dias, quando tudo que causa alarma faz com que o pensamento das pessoas se volte para Deus. As batalhas, as epidemias, os naufrágios – tudo isso tende a tornar as pessoas religiosas. A religião, porém, possui outros chamamentos, além do terror; apela, principalmente, para o amor-próprio humano. Se o cristianismo é verdadeiro, as criaturas humanas não são os vermes insignificantes que parecem ser; interessam ao Criador do universo, que se dá ao trabalho de ficar satisfeito quando elas procedem bem e de mostrar-se aborrecido quando procedem mal. Isto constitui um grande cumprimento. Nós não pensaríamos em estudar um formigueiro para ver quais das formigas cumpriram o seu dever na formação do mesmo, nem nos ocorreria nunca a idéia de apanhar as formigas negligentes e lançá-las a uma fogueira. Se Deus o faz, isso constitui um cumprimento quanto a nós – cumprimento tanto mais agradável se Ele se dignar conceder aos que são bons uma felicidade eterna no céu. Há, ainda, a idéia relativamente moderna de que a evolução cósmica se destina a produzir a espécie de resultados que consideramos bons – isto é, resultados que nos causam prazer. Aqui, ainda, é lisonjeiro supor-se que o universo é controlado por um Ser que compartilha de nossos gostos e preconceitos.

A IDÉIA DA VIRTUDE

Um terceiro impulso psicológico contido na religião é aquele que levou à concepção da virtude. Sei que muitos livres-pensadores encaram tal concepção com grande respeito, afirmando que a mesma deveria ser preservada apesar da decadência da religião dogmática. Não posso concordar com este ponto de vista. A análise psicológica da idéia de virtude parece mostrar-me que a mesma tem suas raízes em paixões indesejáveis, e que não deveria ser fortalecida pelo imprima tur da razão. A virtude e a falta de virtude devem ser consideradas conjuntamente: é impossível salientar-se uma coisa sem que se saliente também a outra. Mas, o que é a “falta de virtude” na prática? É, na prática, uma conduta que não agrada ao rebanho. Chamando-a de “falta de virtude” e elaborando um sistema moral complicado em torno de tal conceito, o rebanho se justifica aos seus próprios olhos ao infligir castigo aos objetos de seu próprio desagrado, ao mesmo tempo em que, já que o rebanho é virtuoso por definição, isso exalta também o seu amor-próprio, no momento mesmo em que liberta o seu impulso para a crueldade. Eis aí a psicologia do linchamento, bem como das outras maneiras pelas quais os criminosos são punidos. A essência da concepção da virtude, por conseguinte, é proporcionar uma saída para o sadismo, apresentando a crueldade sob o manto da justiça.

Mas, dir-se-á, a descrição que vindes fazendo da virtude não se aplica, de modo algum, aos profetas hebreus, os quais, afinal de contas, segundo vossas próprias palavras, inventaram tal idéia. Há verdade nisso: a virtude, na boca dos profetas hebreus, significava aquilo que era aprovado por eles e por Jeová. Encontramos essa mesma atitude expressa no Ato dos Apóstolos, onde os Apóstolos começam um pronunciamento com as palavras: “Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (Atos XV, 28). Esta espécie de certeza individual quanto aos gostos e opiniões de Deus não pode, porém, constituir a base de nenhuma instituição. E essa sempre foi a dificuldade que o protestantismo teve de enfrentar: um novo profeta podia afirmar que a sua revelação era mais autêntica que a de seus predecessores, e nada havia, no panorama geral do protestantismo, que mostrasse que tal reivindicação não era válida. Por conseguinte, o protestantismo dividiu-se em inumeráveis seitas, que enfraqueciam umas às outras – e há razão para se supor que, daqui a cem anos, o catolicismo será o único credo a representar efetivamente a fé cristã. Na Igreja Católica, a inspiração, tal como era desfrutada pelos profetas, tem o seu lugar; mas, reconhece-se, certos fenômenos que se assemelham a verdadeiras inspirações divinas podem ser inspirados pelo diabo e, assim, cabe à Igreja descriminá-los, exatamente como compete a um conhecedor de arte distinguir um Leonardo autêntico de uma falsificação. Desse modo, a revelação se torna, ao mesmo tempo, uma coisa de instituição. Certo é aquilo que a Igreja aprova e, errado, o que desaprova. Assim, a parte efetiva da concepção daquilo que é certo não passa de uma justificação de antipatia por parte do rebanho.

Dir-se-ia, pois, que os três impulsos humanos contidos na religião são o medo, a presunção e o ódio. O propósito da religião, poder-se-ia dizer, é dar um ar de respeitabilidade a essas paixões, contanto que elas sigam por determinados canais. E porque tais paixões contribuem para a infelicidade geral, é que a religião é uma força para o mal, já que permite aos homens entregarem-se a essas paixões sem restrição alguma, quando, não fosse pela sua sanção, poderiam, pelo menos, até certo grau, refreá-las.

Posso bem imaginar, a esta altura, uma objeção, talvez não por parte dos crentes mais ortodoxos, mas, não obstante, digna de ser examinada. O ódio e o medo, poder-se-ia dizer, são características humanas essenciais: a humanidade sempre os sentiu e sempre os sentirá. O melhor que se pode fazer a respeito, poderão dizer-me, é dirigi-las para certos canais, nos quais são menos prejudiciais do que em outros. Um teólogo cristão poderia afirmar que a Igreja trata desse problema de maneira análoga àquela com que encara o impulso sexual, que é por ela deplorado. Procura tornar a concupiscência inócua, confinando-a aos limites do matrimônio. Assim, poder-se-ia dizer, se a humanidade deve, inevitavelmente, sentir o ódio, é melhor dirigir tal ódio contra aqueles que são realmente nocivos, e é precisamente isso que a Igreja faz por meio de sua concepção de virtude.

Quanto a essa alegação, há duas respostas: uma, relativamente superficial; outra, que atinge o âmago da questão. A resposta superficial é a de que a concepção da Igreja, quanto à virtude, não é a melhor possível; a resposta fundamental é a de que o ódio e o medo podem, com o nosso conhecimento psicológico atual e com a técnica industrial de hoje, ser inteiramente eliminados da vida humana.

Tomemos, primeiramente, o primeiro desses pontos. A concepção da Igreja, quanto à virtude, é, sob vários aspectos, socialmente indesejável: em primeiro lugar e antes de mais nada, por menosprezar a inteligência e a ciência. Este defeito é herdado dos Evangelhos. Cristo diz que devemos ser como as criancinhas, mas as criancinhas não podem compreender o cálculo 30 diferencial, os princípios monetários ou os métodos modernos de combate às enfermidades. Adquirir tais conhecimentos não faz partir de nosso dever, segundo a Igreja. A Igreja não mais afirma que o conhecimento, em si, seja pecado, embora o haja feito em suas épocas de triunfo; mas a aquisição do conhecimento. E embora não constitua pecado, é perigosa, já que pode conduzir ao orgulho do intelecto e, daí, a indagações quanto ao dogma cristão. Tomemos, por exemplo, dois homens, um dos quais haja exterminado a febre amarela em grandes regiões tropicais, mas que, no decurso de seu trabalho, haja tido relações ocasionais com mulheres com as quais não era casado, enquanto que o outro permaneceu ocioso e inútil, gerando um filho por ano até matar a esposa de exaustão e revelando tão pouco cuidado com os filhos que a metade deles morreu devido a causas evitáveis, mas que jamais se entregou a qualquer relação sexual ilícita. Todo cristão deve afirmar que o segundo desses homens é mais virtuoso que o primeiro. Tal atitude é, por certo, supersticiosa e inteiramente contrária à razão. Não obstante, algo deste absurdo é inevitável, enquanto o ato de evitar-se o pecado for considerado mais importante do que o mérito positivo, e enquanto a importância do conhecimento como ajuda a uma vida útil não for reconhecida.

A segunda e mais fundamental objeção à utilização do medo e do ódio, tal como é praticada pela Igreja, é que tais emoções podem hoje ser quase que inteiramente eliminadas da natureza humana mediante reformas políticas, econômicas e educacionais. As reformas educacionais devem constituir a base, pois que os homens que sentem ódio e medo também admirarão essas emoções e desejarão perpetuá-las, embora essa admiração e esse desejo sejam, provavelmente, inconscientes, como ocorre com o comum dos cristãos. Um plano educacional destinado a eliminar o medo não é, de modo algum, difícil de criar-se. Basta apenas que se trate a criança com bondade, que a coloquemos num ambiente em que seja possível a iniciativa sem resultados desastrosos, evitando que a mesma tenha contacto com adultos que sintam terrores irracionais, como o terror da escuridão, de camundongos ou da revolução social. A criança tampouco deve estar sujeita a castigos severos, ameaças ou censuras graves e excessivas. Livrar-se a criança do ódio é algo um tanto mais complicado. Devem ser cuidadosamente evitadas as situações que despertem inveja, mediante exata e escrupulosa justiça entre crianças diferentes. A criança deve sentir-se objeto de carinhoso afeto por parte ao menos de alguns dos adultos com os quais tem contato, e não deve ver frustradas suas atividades e curiosidades naturais, salvo quando isso constituir perigo para a sua vida ou a sua saúde. Não deve, em particular, existir qualquer tabu quanto ao conhecimento sexual, ou quanto à conversação sobre assuntos que as pessoas convencionais consideram impróprios. Se tais preceitos forem observados desde o começo, a criança será destemida e cordial.

Ao entrar na vida adulta, porém, a criança assim educada, quer seja menino ou menina, ver- se-á mergulhada num mundo cheio de injustiça, de crueldade e de evitável sofrimento. A injustiça, a crueldade e o sofrimento existentes no mundo moderno são heranças do passado, sendo de caráter econômico a sua fonte básica, pois que a competição de vida e morte quanto aos meios de subsistência era, em outros tempos, inevitável. Mas não é inevitável em nossa época. Com a técnica industrial moderna podemos, se assim o desejarmos, proporcionar a todos uma subsistência tolerável. Poderíamos, ainda, fazer com que a população do mundo se mantivesse estacionária, se não fôssemos impedidos pelas influências políticas das Igrejas que, ao controle da natalidade, preferem a guerra, as pestes e a fome. Existe o conhecimento segundo o qual se poderia assegurar a felicidade universal; o principal obstáculo à sua utilização nesse sentido são os ensinamentos religiosos. A religião impede que as nossas crianças tenham uma educação racional; a religião impede afastemos as causas fundamentais de guerra; a religião impede ensinemos a ética de cooperação científica, em lugar das antigas e ferozes doutrinas do pecado e do castigo. É possível que a humanidade se ache no limiar de uma idade de ouro; mas, se assim é, será primeiro necessário matar o dragão que monta guarda à porta – e esse dragão é a religião.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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