Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PRAZER DE MATAR
1º Parte
Alguns assassinos nascem assim de raiz, enquanto outros se vão fazendo com o tempo. E por vezes, a origem do desejo homicida perde-se no emaranhado de raizes que forma uma infância escabrosa, ao que se junta uma juventude perigosa, estando assim criadas as condições para que nunca se venha a saber se o impulso maléfico é inato ou induzido.
Ele ergue o corpo da traseira da Blazer, como se fosse um rolo de alcatifa velha destinada ao lixo. As solas das botas que tem calçadas arrastam-se pelo pavimento alcatroado do parque de estacionamento, mas pouco depois os passos são quase silenciosos quando começa a pisar as ervas secas no piso endurecido de terra. Para o mês de Novembro em Minneapolis, a noite está bastante amena. A brisa rodopiante agita as folhas caídas. As ramagens despidas das árvores entrechocam-se quais sacas cheias de ossos.
Ele sabe que está inserido na categoria dos assassinos. Foram muitas as horas, dias, meses e até mesmo anos que passou a estudar a obsessão que se apoderou de si, bem como as suas origens. Tem a percepção daquilo que é, abraçando essa verdade de alma e coração. Jamais sentiu quaisquer remorsos ou foi assolado por sentimentos de culpa. Acredita firmemente que o facto de ter consciência, obedecer a regras e leis, não tem qualquer sentido prático para o indivíduo, servindo apenas para limitar as capacidades humanas.
O Homem entra no mundo da ética movido pelo medo e não pelo amor.» - Paul Ricoeur, La Symbolique du Mal. o seu «verdadeiro eu» adere somente ao seu próprio código: subjugação, manipulação e domínio.
Um raio de luar, fugaz, ilumina a cena, deixando ver a sua luminosidade fraca através da teia de ramos. Ajeita o corpo até se dar por satisfeito, traçando dois X que se interceptam por cima da região superior esquerda do peito. Imbuído de uma noção de cerimonial, verte o catalisador. A unção dos mortos. O simbolismo do mal. O seu verdadeiro eu acalenta fervorosamente o conceito do mal como símbolo de poder. O combustível do fogo que arde no seu íntimo.
Do pó vieste e ao pó hás-de voltar.
Os sons são ordenados e específicos, maximizados pela excitação que o invade. O riscar do fósforo contra o segmento de lixa, o estralejar da chama acompanhado do sibilar da combustão que adquire vida, consumindo aquilo em que toca. Enquanto as labaredas deflagram, ele revive em pensamento os sons do medo e da dor que testemunhou ainda não há muito. Recorda-se do tremor que lhe adivinhou na voz quando ela lhe implorou que lhe poupasse a vida, a singularidade do timbre e entoação de cada grito enquanto a torturava. O requinte aberrante da música que representa a vida e a morte.
Durante breves momentos de deleite, permite-se admirar o drama que se desenrola no palco. Entrega-se ao prazer de sentir o calor das labaredas que lhe acariciam a face, quais línguas de desejos ardentes. Fecha os olhos para melhor ouvir o crepitar e o sibilar, inalando profundamente o cheiro a carne queimada.
Em êxtase, sentindo-se sexualmente excitado, retira o órgão erecto pela braguilha, acariciando-se com violência. Está prestes a atingir o clímax do orgasmo, mas tem o cuidado de não ejacular. Reserva esse prazer para mais tarde, quando puder celebrá-lo em toda a sua plenitude.
O seu objectivo está à vista. Formulou um plano, meticulosamente delineado, que será executado até à perfeição. O seu nome viverá na infâmia acompanhado de todos os outros de maior notoriedade Bundy1, Kemper2, o Estrangulador de Boston, o Assassino do Rio Verde. A imprensa local já lhe atribuiu uma alcunha: o Cremador.
Os seus lábios desenham o esboço de um sorriso perante
1, 2 Assassinos em série que ao longo de vários anos assassinaram muitas mulheres, o número exacto nunca chegou a ser apurado, semeando terror pelos Estados Unidos. O segundo matou a própria mãe. (N da T)
aquele pensamento. Sente-se orgulhoso dos seus feitos. Acende outro fósforo que eleva à altura do rosto imobilizando-o, observando a chama, adorando a ondulação sensual e sinuosa. Aproxima-a ainda mais da face, abre a boca e come-a. A seguir, vira costas e começa a afastar-se. Já começou a pensar na próxima vez.
Assassínio.
Aquela visão grava-se indelevelmente no mais profundo das suas recordações, por detrás do globo ocular, de forma a poder vê-la sempre que pestanejar para afastar as lágrimas. O corpo que se contorcia numa agonia lenta, revoltando-se contra o seu horrível destino. As labaredas alaranjadas, o pano de fundo que servirá de cenário àquele pesadelo.
Em combustão.
Ela desatou a correr, sentindo os pulmões a arder, as pernas a arder, os olhos a arder, a garganta a arder. Num qualquer canto abstracto da sua mente, ela própria era o cadáver. Talvez aquilo fosse a expressão da morte. Talvez fosse o seu próprio corpo que ardia, e aquela percepção fosse a sua alma a tentar escapar ao fogo do inferno. Haviam-lhe dito repetidamente que esse seria o seu destino final.
Começou a ouvir o som da sirena a pouca distância, avistando os clarões aberrantes vermelhos e azuis que desfaziam as trevas da noite. Correu para a rua num passo cambaleante, chorando convulsivamente. Sentiu que o joelho direito batia contra o solo de superfície endurecida, mas obrigou os pés a não pararem de caminhar.
Corre, corre, corre, corre, corre, corre...
Alto aí! Polícia!
O carro-patrulha ainda não tinha parado por completo quando encostou ao lancil do passeio. Abriu-se uma porta. O agente de polícia saiu para a rua de arma em riste, apontada para ela.
Preciso de ajuda! gritou ela numa voz que lhe arranhava a garganta. Ajudem-me! acrescentou num tom arquejante por entre lágrimas que lhe obscureciam a visão.
Sentiu as pernas que fraquejavam sob o peso do seu corpo acrescido do fardo do medo, e do peso do seu coração que batia violentamente como se fosse um objecto inchado, de grandes proporções, a querer saltar-lhe do peito.
Numa fracção de segundos, o polícia colocou-se ao seu lado, guardando a arma no coldre e ajoelhando-se de imediato para lhe prestar assistência. Vagamente, ela apercebeu-se de que ele devia ser um novato. Conhecia garotos de catorze anos que tinham instintos de rua bastante mais apurados do que aquele homem. Não lhe teria sido difícil apoderar-se da arma dele. Caso possuísse uma arma branca, teria sido possível erguer-se do chão e esfaqueá-lo.
O agente policial ajudou-a a sentar-se, erguendo-a pelos ombros. O grito das sirenas ouvia-se à distância.
O que é que aconteceu? Está a sentir-se bem? perguntou ele num tom autoritário. Tinha uma fisionomia angelical.
Eu vi-o! afirmou ela quase sem respiração, a tremer, sentindo que a bílis ameaçava assomar-lhe à garganta. Eu estava ali. Oh... Jesus!. Oh... que grande merda! Eu vi-o!
Viu quem?
O Cremador.
Porque será que sou sempre eu quem está no lugar errado à hora menos adequada? resmungava Kate Conlan para consigo própria.
No primeiro dia depois de ter regressado daquilo que, tecnicamente, fora um período de férias, uma viagem forçada por um sentimento de culpa, cujo objectivo fora visitar os pais no parque de diversões do inferno que era Las Vegas, chegou atrasada ao emprego; sentia dores de cabeça e uma vontade enorme de estrangular um determinado sargento, da Brigada de Atentados ao Pudor, que havia amedrontado uma das suas «clientes, uma alhada que ela acabaria por ter de resolver com o promotor público. Tudo isso mais o salto grosso, último grito da moda, de um par de sapatos de camurça acabados de comprar, que ameaçava partir-se graças às escadas da rampa de estacionamento que dava para a Quarta Avenida.
E agora aquilo. Um homem cheio de tiques.
Aparentemente, além de ela própria, ninguém dera pela presença do homem, a deambular furtivamente pelo perímetro do espaçoso átrio do Centro Governamental de Hennepin County, como se fosse um gato nervoso. Kate calculou que o fulano teria trinta e muitos anos, com uma altura que não seria superior em dez centímetros ao seu quase metro e oitenta, sendo de constituição mediana, mais para o magro. Mostrava-se tenso de mais. Muito plausivelmente, teria sofrido qualquer revés de ordem pessoal ou emocional, o que lhe teria sucedido nos últimos tempos, a perda de uma namorada ou mesmo do emprego. Das duas uma: ou era separado ou divorciado; devia viver sozinho, embora não fosse um sem-abrigo. Apesar de usar roupas bastante amarrotadas via-se que não tinham vindo de nenhuma instituição de beneficência, além de que os sapatos eram bons de mais para pertencerem a um vagabundo. Transpirava profusamente, como um homem gordo numa sauna, mas mesmo assim não despira o sobretudo enquanto passeava em redor da nova peça de escultura que em nada embelezava o átrio, uma obra pretensiosa de estatuária esculpida com armas de fogo previamente fundidas. O homem resmungava entre dentes, mantendo uma mão na abertura das lapelas de um pesado blusão de um tecido encerado. Um blusão de caçador. A tensão emocional que o atingia bem no íntimo contraía-lhe os músculos faciais.
Sem tirar os olhos do indivíduo, Kate descalçou o sapato com o salto solto, equilibrando-se sobre o outro. Do interior da sua mala de mão tirou um telemóvel. No mesmo instante, o homem cheio de tiques conseguiu chamar a atenção da mulher que trabalhava no quiosque de informações, situado a cerca de seis metros.
«Raios!»
Em movimentos lentos, Kate endireitou-se, começando a marcar um número de telefone. Não conseguia ligar para os serviços de segurança através de um telefone que não fizesse parte da rede telefónica interna. O guarda mais próximo encontrava-se no extremo oposto do átrio, embrenhado numa conversa com o carteiro em que intercalava sorrisos e gargalhadas. A senhora de serviço no quiosque de informações voltou-se para o homem com tiques, mantendo a cabeça de lado, como se os seus cabelos louros com um penteado cónico, semelhante a algodão doce, fossem demasiado pesados.
«Raios partam isto!»
O telefone no escritório tocou uma vez... duas vezes. Num passo vagaroso, Kate começou a avançar com o telefone numa mão e o sapato na outra.
Em que é que lhe posso ser útil? perguntou atenciosamente a mulher das informações, dirigindo-se ao homem que ainda estava a uma distância de aproximadamente três metros. O sangue não tardaria a destruir-lhe a blusa de seda de um branco de marfim.
O indivíduo cheio de tiques faciais voltou-se manifestamente agitado.
Em que é que lhe posso ser útil? perguntou a mulher uma vez mais.
quarto toque de telefone
Entretanto, uma mulher de ascendência latina, com uma criança pela mão que mal começara a andar, percorreu a distância entre Kate e o homem com os tiques. Kate pensou estar prestes a ver o início dos tremores. O corpo do homem a esforçar-se por conter a raiva ou o desespero, ou o que quer que fosse que o impelia, consumimdo-o em vida
quinto toque
Gabinete do promotor público de Hennepm County
Porra para isto.
O movimento era inequívoco. O firmar de pés, o levar a mão ao interior do casaco, os olhos cada vez mais abertos
Baixe-se’ gritou Kate deixando cair o telefone portátil no chão
A mulher do balcão de informações ficou estarrecida
Que se foda, alguém terá de pagar’ vociferou o homem dos tiques atirando-se na direcção da mulher e agarrando-a por um braço. Com a mão que tinha livre. Com um safanão, puxou-a para junto de si, apontando a arma diante do corpo dela. A explosão do disparo foi ampliada pelo elevado pé direito do átrio, ensurdecendo todos os ouvidos para os gritos de pânico que provocou Naquele momento, toda a gente se apercebera da presença do indivíduo
Kate acercou-se do homem, aproximou-se por detrás e bateu-lhe com o salto do sapato, atingindo-o na fronte, como se fosse um martelo O indivíduo soltou um grito de dor acompanhado de um sobressalto de choque, após o que recuou o cotovelo direito, tanto quanto lhe foi possível, dando um murro nas costelas de Kate
A mulher das informações não parava de berrar. Pouco depois perdeu o equilíbrio ou a consciência, e o peso do seu corpo, que tombou desamparado, fez com que o agressor perdesse o equilíbrio. Este deixou-se cair sobre um joelho, gritando obscenidades enquanto disparava outra bala que fez ricochete no chão duro, indo perder-se Deus sabia onde
Kate caiu juntamente com ele, a sua mão esquerda não largava a gola do sobretudo do homem. Não podia arriscar-se a largá-lo. Qualquer que fosse a besta encurralada que ele tinha dentro de si, naquele momento, andava à solta. Caso ele conseguisse escapar a Kate, haveria muito mais com que teria de se preocupar alem de uns quantos projecteis perdidos
As meias de vidro não permitiam que se firmasse no piso escorregadio; Kate reuniu todos os seus esforços, tentando colocar os pés debaixo do corpo ao mesmo tempo que se agarrava firmemente ao homem, que se debatia num esforço para se pôr de pé. Uma vez mais, desferiu o salto do sapato atingindo-o numa orelha. O homem girou sobre si mesmo, tentando bater-lhe com a coronha da arma. Kate agarrou-o pelo braço que se esforçou por erguer, sem perder de vista o revólver que ele disparou de novo, tendo bem a noção de que acima de si existiam mais de vinte andares de gabinetes e salas de tribunal.
Enquanto ele fazia tudo o que lhe era possível para se apoderar da arma de fogo, ela enganchou uma perna em redor de uma das pernas dele, projectando todo o peso do seu corpo; de súbito, sentiu que os dois caíam numa queda que parecia não ter fim, rebolando um por cima do outro enquanto batiam contra as extremidades metálicas da escada rolante que os levaria ao piso térreo onde foram recebidos com meia dúzia de gritos de «Alto! Polícia!»
Kate soergueu o olhar fitando os rostos de expressão carrancuda por entre a névoa de dores que lhe desfocava a visão, resmungando:
Ora bem, já não era sem tempo!
Ei, vejam quem ali vem! gritou do seu gabinete um dos assistentes do promotor público. É a nossa Dirty Harrieti!
Muito engraçadinho, Logan retorquiu Kate continuando a percorrer o corredor que a levaria ao gabinete do promotor público. Leste isso nalgum livro, não é verdade?
Têm de contratar a Renee Russo para interpretar a tua personagem num filme.
Não me esquecerei de lhes dizer que a ideia foi tua. Kate sentia dores nas costas e na anca. Recusara a boleia que alguém lhe tinha oferecido até ao serviço de urgência do hospital. Ao invés, optara por ir a coxear até à casa de banho das senhoras onde penteou a farta cabeleira de cabelos louros com matizes acobreados, prendendo-os num rabo
1 Alusão no feminino à personagem interpretada por Chrint Eastvvood, «Dirty Harry», em vários filmes policiais IN ela T)
de cavalo, após o que lavou o sangue, descalçou as meias pretas de vidro que haviam ficado num estado lastimoso, e só então é que regressou ao seu gabinete. Não tinha nenhum ferimento que precisasse de ser radiografado, nem que necessitasse de ser suturado, alem de que a manhã já ia a meio. Aquele era o preço de ser uma mulher dura. Mais tarde, à noite, teria de tratar das suas maleitas com Tilenol, acompanhando os comprimidos com um gim bem gelado e um banho bem quente, em lugar de analgésicos a sério. Já tinha começado a prever que viria a arrepender-se
Ocorreu-lhe à mente que já estava velha de mais para andar a imobilizar doidos, caindo com eles aos trambolhões por escadas rolantes, contudo, numa atitude obstinada, resistia Á noção de que quarenta e dois anos constituísse uma idade demasiado avançada para o que quer que fosse. Alem do mais, só haviam passado cinco anos desde que entrara naquilo que classificara como sendo a sua «segunda fase da idade adulta. A segunda carreira, a par da segunda tentativa de levar uma vida estável e rotineira
Tudo o que desejara a caminho de casa, depois de ter deixado as aberrações de uma vida em Las Vegas, era o retorno a uma existência agradável, normal e relativamente sadia, que estabelecera para si mesma. Paz e sossego. Os aspectos meandrosos, que tão familiares lhe eram, de uma profissão como defensora dos interesses de vitimas e testemunhas. O curso de culinária que estava firmemente decidida a frequentar com regularidade
Mas não tinha de ser ela a estar no local, no preciso momento em que o homem dos tiques decidira entrar em acção
Depois de informado pela sua secretária, foi o próprio procurador público quem lhe abrira a porta do seu gabinete. Ted Sabin era um homem de estatura elevada e bem-parecido, senhor de uma presença que impunha respeito, com uma madeixa de cabelos grisalhos que penteava para trás, dando realce às entradas acentuadas. Usava um par de óculos com armações em aço de aros redondos que assentavam num nariz aquilino, os quais lhe emprestavam uma expressão solene, ajudando a camuflar o facto de os seus olhos azuis serem fundos e pouco distanciados entre si
Tendo ele próprio sido um assistente de alto gabarito do promotor público, actualmente só os casos ocasionais de grande notoriedade pública é que mereciam a sua atenção pessoal. O cargo que ocupava, num organismo em que representava a autoridade máxima, era em grande parte de natureza política e administrativa. Supervisionava um gabinete cheio de advogados que tentavam, como que por artes de malabarismo, fazer face a uma crescente carga de trabalho no sistema judicial de Hennepin County. Era frequente encontrá-lo à hora do almoço e ao serão entre os membros da elite que detinha o poder em Minneapolis, recorrendo às suas influências e cobrando os favores que os privilegiados lhe deviam, sendo do conhecimento geral que ele tinha em vista um lugar no Senado dos Estados Unidos.
Kate, entre convidou ele, mostrando nas suas feições vincos profundos de preocupação. Colocou uma das suas grandes mãos no ombro de Kate e conduziu-a a uma cadeira no seu gabinete. Como é que se sente? Fui imediatamente posto ao corrente do que aconteceu esta manhã lá em baixo. Meu Deus, você arriscou a sua própria vida! Foi um extraordinário acto de bravura da sua parte!
Não, não foi protestou Kate tentando afastar-se dele, mas não querendo fazê-lo ostensivamente. Apressou-se a sentar-se no cadeirão reservado aos visitantes, sentindo de imediato o olhar dele que se fixou nas suas coxas desnudadas quando cruzou as pernas. Discretamente, puxou a bainha da saia preta mais para baixo, desejando ardentemente ter encontrado o par de reserva de meias de vidro que pensara ter guardado numa das gavetas da sua mesa de trabalho. Limitei-me a reagir perante uma situação, mais nada. Mistress Sabin está de boa saúde?
Óptima respondeu ele com uma expressão abstracta. Concentrou-se em Kate, puxando as calças de risca fina para cima e empoleirando-se num canto da secretária. Limitou-se a reagir?! Da maneira como a ensinaram no FBI?
O homem sentia-se obcecado pelo facto de ela ter sido uma agente especial naquilo que, presentemente, considerava ser uma parte da vida dela que pertencera ao passado. Kate mal conseguia imaginar o tipo de fantasias lascivas que rastejariam como lesmas pela mente do homem. Jogos de submissão, roupas e acessórios de couro negro, algemas, maus tratos. Nojento!
Contudo, Kate concentrou toda a sua atenção no seu superior hierárquico, o director do departamento forense, que entretanto se sentara no cadeirão próximo dela. Rob Marshall, o oposto da imagem de Sabin, atarracado, rechonchudo e com as roupas todas amarrotadas. Tinha uma cabeça tão redonda como uma abóbora, coroada por uma cabeleira muito rala de cabelos quase à escovinha, que dava a impressão de ser mais uma mancha ferruginosa do que cabelos muito curtos. As suas feições eram grosseiras e com muitas cicatrizes de acne que lhe tinham ficado da adolescência, enquanto o nariz era demasiado pequeno
Havia mais ou menos dezoito meses que ele era o seu chefe, tendo sido destacado para Minneapolis onde ocupava um cargo similar ao anterior que desempenhara em Madison, no Wisconsin. Durante esse período de tempo, ambos haviam tentado, com um grau de êxito bastante limitado, encontrar um equilíbrio onde a personalidade de cada um se coadunasse com a do outro, aplicando a mesma regra aos estilos de trabalho. Se a verdade fosse dita, a realidade é que Kate não gostava do homem. Rob era um lambe-botas sem a mínima personalidade, mostrando tendência para um estilo de gestão centralizada que colidia com o sentido de autonomia característico de Kate. Por seu lado, ele considerava-a excessivamente autoritária e impertinente, uma pessoa que nunca perdia uma oportunidade de dar a sua opinião. Tudo facetas de carácter, que, na óptica dela, eram elogios. Todavia, Kate tentava fazer com que a preocupação que ele demonstrava na defesa dos interesses das vitimas atenuasse os seus defeitos Em acréscimo às suas responsabilidades administrativas, era frequente Rob participar em reuniões com as vitimas, partilhando o seu tempo com o grupo de apoio à vitima
Naquele momento, fitava-a através de olhos semicerrados por detrás de uns óculos de lentes sem aros. mantendo os lábios fechados como se tivesse acabado de morder a língua
Podias ter morrido. Por que motivo é que não chamaste o pessoal da segurança
Não houve tempo para isso
O instinto, Rob’ atalhou Sabin mostrando uns dentes de um branco resplandecente. Tenho a certeza de que tanto você como eu jamais conseguiremos compreender uma pessoa com o tipo de instintos acutilantes que alguém com o historial profissional da Kate aperfeiçoou Kate teve de se refrear para não lhe recordar, uma vez mais, que ao longo da maior parte dos anos em que trabalhara no FBI estivera sentada a uma secretária na Unidade de Ciências Comportamentais, secção adstrita ao Centro Nacional de Análise do Crime Violento. Os anos que passara em trabalho de campo haviam sido há mais tempo do que lhe interessava recordar-se.
A presidente da Câmara vai querer condecorá-la adiantou Sabin com uma expressão radiante, sabendo de antemão que teria oportunidade de aparecer nas fotografias que fossem tiradas nessa ocasião.
Publicidade era a última coisa que Kate desejava. Na qualidade de defensora, a sua função era dar todo o apoio às testemunhas e vítimas de actos criminosos, orientando essas pessoas através dos meandros do sistema judicial e instilando-lhes confiança. A perspectiva de ser objecto da atenção voraz dos meios de comunicação social amedrontaria certamente algumas das pessoas por cujos interesses era responsável.
Prefiro que ela não faça isso. Não me parece que seja muito boa ideia para uma pessoa que exerça a minha profissão. Não te parece, Rob?
A Kate tem razão, Mister Sabin concordou ele mostrando o seu sorriso obsequioso, uma expressão que por vezes se assenhoreava de toda a sua fisionomia, principalmente quando se sentia enervado. Kate apelidava aquele esgar fisionómico, como um sorriso exagerado, de «lambe-botas». Os olhos do homem quase se sumiam do rosto. Se levarmos tudo em linha de conta... não me parece que queiramos ver a fotografia da Kate em todos os jornais.
Suponho que tenha razão concordou Sabin, ainda que a contragosto. Seja como for, não foi pelo que sucedeu esta manhã que a chamámos aqui, Kate. Vamos incumbi-la de uma testemunha.
E qual a razão de toda esta fanfarra? A maior parte das vítimas e testemunhas eram automaticamente distribuídas a um defensor ao acaso. Kate trabalhava em cooperação com seis advogados de acusação, tendo a seu cargo todos os processos que eles tivessem em mãos com a única excepção dos casos de homicídio; no entanto, nenhuma dessas incumbências exigia mais do que um simples telefonema ou uma curta visita ao seu gabinete. Era muito raro Sabin envolver-se pessoalmente em qualquer dos processos
Está familiarizada com os pormenores dos assassínios de duas prostitutas que tiveram lugar no ultimo Outono? perguntou Sabin. Aqueles em que os cadáveres ficaram carbonizados?
Sim, claro que sim
Pois bem, alguém cometeu outro crime com as mesmas características Ontem à noite Kate olhou de uma fisionomia ensombrada para a outra Por trás de Sabin, desfrutava de uma vista panorâmica da baixa de Minneapolis, vista de uma altura de vinte e dois andares.
Mas esta ultima não era uma prostituta adiantou Kate
Como é que soube isso?
Porque jamais perderias o teu tempo se fosse esse o caso
Um simples palpite em que acertei
Não ouviu falar deste assunto por aí?
Por aí? Como se estivessem a falar de um filme de malfeitores cuja acção se desenrolasse nas ruas da cidade. Não, Nem sequer tinha conhecimento de que tivesse ocorrido qualquer assassínio
Mostrando-se subitamente inquieto, Sabin contornou a sua mesa de trabalho
Há fortes probabilidades de esta vitima ser a Jilhan Bondurant. O pai é o Peter Bondurant
Oh, ’ exclamou Kate numa entoação de voz cheia de significado. Não, de facto aquela morte não tinha nada a ver com a de uma mera prostituta, ainda que se levasse em consideração o facto de as outras duas mulheres assassinadas também terem pais que viveriam algures. O pai desta era uma pessoa muito importante
Sentado no seu cadeirão, Rob agitou-se, pouco á vontade, embora não se soubesse bem se o desconforto se devia ao caso em questão, ou ao facto de as calças que ele insistia em usar lhe estarem demasiado apertadas na cintura
A carta de condução dela foi encontrada perto do corpo
E está confirmado que ela foi dada como desaparecida.
Ela jantou com o pai, em casa deste, na noite de sexta-feira. Desde então, ninguém lhe pôs a vista em cima.
Isso não quer dizer, necessariamente, que seja ela a vítima.
Não, mas foi assim que se descobriu a identidade das outras duas atalhou Sabin. -Os documentos de identificação deixados junto do cadáver das duas provaram corresponder a elas.
Pelo pensamento de Kate desfilaram velozmente uma centena de perguntas, questões relativas ao local dos crimes e às informações que a Polícia dera a conhecer com referência aos dois primeiros homicídios, bem como aquilo que não fora revelado. Era a primeira vez que Kate ouvia falar dos documentos de identificação deixados próximo dos cadáveres. Qual seria o significado desse pormenor? O que é que levaria o assassino a queimar os corpos deixando-os irreconhecíveis, para depois deixar premeditadamente provas da sua identificação?
Deduzo que já tenham começado a averiguar os registos dentários... comentou ela.
Os dois homens trocaram olhares.
Receio ter de reconhecer que isso não é uma opção de que possamos dispor retorquiu Rob cautelosamente.
Temos apenas um corpo, sem cabeça.
Jesus! exclamou Kate com a respiração suspensa, sentindo o corpo atravessado por um calafrio. Ele não decapitou as outras. Não ouvi dizer nada a esse respeito.
Não, não decapitou confirmou Rob. Voltou a semicerrar os olhos inclinando a cabeça ligeiramente de lado.
Que opinião é que já formaste, Kate? Tu tens experiência neste tipo de casos.
É por de mais evidente que o grau de violência com que ele age está a aumentar. O que pode querer dizer que está a preparar-se para algo que terá muito mais impacto. No caso dos outros assassínios, descobriram-se mutilações de natureza sexual, não é verdade?
A causa da morte das outras duas vítimas foi determinada como tendo sido estrangulamento por atadura disse Sabin. Tenho a certeza de que não preciso de lhe dizer, Kate, que apesar de o estrangulamento ser, sem sombra de dúvida, um método suficientemente violento de assassínio, a prática de decapitação irá provocar uma vaga de pânico por toda a cidade. Particularmente tendo em vista que a vítima é uma mulher jovem de boa conduta que nunca infringiu a lei. Meu Deus, a filha de um dos cidadãos mais proeminentes deste estado. Temos de descobrir muito rapidamente o paradeiro deste assassino. O que depende de nós tornar realidade. Temos uma testemunha.
E é aí que eu entro em acção adiantou Kate. Qual é a história?
O nome dela é Angie DiMarco informou Rob. Ela saía a correr do parque onde o corpo foi encontrado precisamente quando chegou o primeiro carro-patrulha.
Quem é que chamou as autoridades?
Um indivíduo anónimo que fez o telefonema através de um telemóvel, de acordo com o que me informaram adiantou Sabin. Apertava e contorcia os lábios como se sugasse um dente que lhe doesse. O Peter Bondurant é amigo da presidente da Câmara. Eu também o conheço. Suspeitar que a vítima é a filha Jillian provoca-lhe um sofrimento atroz; ele quer ver este caso resolvido o mais depressa possível. Enquanto estamos aqui a falar já começou a ser organizado um grupo de trabalho. Também se pediu a intervenção dos seus velhos amigos do FBI. Vão enviar-nos alguém da Brigada de Apoio à Investigação. Não nos resta a mínima dúvida de que temos em mãos um assassino em série.
E um homem de negócios proeminente pelo rabo acima.
Os rumores já começaram a propagar-se resmungou Sabin com cara de poucos amigos. As fugas de informação do departamento da polícia, se fossem água, seriam suficientes para drenar o Mississipi. A luz indicadora do telefone estava a piscar como se fosse a central telefónica de uma qualquer campanha televisiva bastante alongada, em que se solicitasse apoio para uma obra de caridade, embora sem se anunciar de forma audível. Já falei com o comandante Greer e com a presidente da Câmara prosseguiu ele. A partir deste momento, não vamos largar este assunto dê por onde der.
Foi por esse motivo que te chamámos, Kate atalhou Rob, voltando a agitar-se no seu assento. Não podemos esperar até que haja uma detenção para então incumbirmos alguém desta testemunha. Ela é o único elo de ligação que temos com o homicida. Queremos ter alguém que faça parte da brigada em contacto com ela de imediato. Uma pessoa que a acompanhe durante os inquéritos policiais. Alguém que a advirta de que não deve falar com os membros da imprensa. Alguém que estabeleça o contacto entre ela e o gabinete do promotor público. Alguém que a mantenha discretamente sob vigilância.
Está a parecer-me que aquilo de que vocês precisam é de uma ama-seca. Acontece que eu tenho outros casos em mãos.
Tencionamos passar alguns dos seus processos para outras pessoas.
Não o do Willis disse Kate fazendo uma careta. Por muito que me agradasse descartar-me desse caso. E quanto ao da Melanie Hessler nem pensar, de maneira nenhuma.
Eu próprio posso encarregar-me do caso da Hessler, Kate sugeriu Rob com muita veemência. Estive presente aquando das averiguações preliminares. O caso não me é desconhecido.
Não recusou Kate terminantemente.
Já tive oportunidade de trabalhar com muitas vítimas de crime de estupro.
Nem pensar continuou Kate obstinada, como se o chefe fosse ela, cabendo-lhe, em última análise, qualquer decisão a ser tomada.
De que caso é que estão a falar? perguntou Sabin sem ocultar a irritação que sentia.
Da Melanie Hessler. Foi violada por dois homens no beco por detrás da livraria onde trabalha na baixa, um estabelecimento que se dedica à literatura pornográfica explicou Kate. Trata-se de uma pessoa extremamente vulnerável e sente-se aterrorizada perante a perspectiva do julgamento. Não conseguiria aguentar-se se eu a abandonasse... especialmente se fosse um homem que se encarregasse do seu caso. Ela precisa de mim. Recuso-me terminantemente a abandonar esse caso.
Rob soltou um suspiro de contrariedade.
De acordo cedeu Sabin denotando alguma impaciência. Com a certeza, porém, de que este caso é o mais prioritário. Não me interessa quais os meios que seja necessário utilizar. Quero este psicopata fora de circulação quanto antes. Agora!
Agora que a vítima mereceria mais de um minuto e trinta segundos nos noticiários televisivos da noite. Kate perguntou a si mesma quantas prostitutas é que teriam de morrer para que Ted Sabin sentisse o mesmo grau de urgência. Mas guardou essa pergunta para si, limitando-se a um acenar de cabeça e tentando ignorar um pressentimento, muito pouco auspicioso, que se lhe instalara na boca do estômago como se fosse chumbo.
Disse a si mesma que a jovem era apenas outra testemunha. O caso era somente um de entre muitos. De volta ao trabalho, nos moldes habituais e meandrosos que tão familiares lhe eram.
O tanas!
A filha de um multimilionário, um caso onde a política imperaria, um assassino em série, e a participação de alguém que viria directamente de Quântico. Alguém que fazia parte da UNIDADE DE APOIO à INVESTIGAÇÃO. Kate tinha esperança de que fosse uma pessoa que há cinco anos ainda não trabalhasse no FBI embora soubesse de antemão que essa esperança era muito ténue.
De súbito, Las Vegas não lhe pareceu ser uma cidade tão má quanto pensara ainda não havia muito tempo.
A ocorrência teve lugar à noite. Estava escuro. O que é que ela poderá ter visto? perguntava Kate.
Os três percorriam a via subterrânea que se estendia abaixo da Rua 5, e que ligava o centro governamental à monstruosidade de pedra num deprimente estilo gótico onde estavam sediadas as instalações municipais da cidade de Minneapolis, bem como o departamento da polícia da cidade. O corredor subterrâneo tinha muito movimento. Ninguém estava na disposição de sair voluntariamente para a rua. A manhã sombria tornara-se tristonha, dando a impressão de que o céu plúmbeo se abatia sobre a cidade com uma chuva constante de enregelar os ossos. Novembro: um mês encantador no Minnesota.
Ela disse à Polícia que o tinha visto afirmou Rob caminhando ao lado de Kate. Para o tamanho do torso, tinha as pernas demasiado curtas e aquele caminhar apressado emprestava-lhe a postura de um anão, apesar de ser um homem de estatura mediana. Só nos resta esperar que ela o tenha visto com clareza suficiente para poder identificá-lo.
Gostaria de ter um retrato-robô a tempo da conferência de imprensa anunciou Sabin.
Kate rilhou os molares. Sem dúvida alguma, aquele caso estava a desenhar-se à maneira!
É preciso tempo para se poder esboçar um bom retrato-robô, Ted. Compensa elaborá-lo como deve ser.
De acordo, mas quanto mais depressa tornarmos pública uma descrição provável do assassino, mais teremos a ganhar.
Na sua imaginação, Kate visualizava Sabin a extorquir todos os resquícios de informações da testemunha, após o que se descartaria dela como se fosse um trapo sem utilidade.
Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para resolvermos esta situação sem muitas delongas, Mister Sabin prometeu Rob. Kate lançou-lhe um olhar de poucos amigos.
O edifício da Câmara Municipal fora, em tempos idos, o tribunal de Hennepin County, tendo sido construído de molde a proporcionar uma aparência de grandiosidade sóbria que impressionasse qualquer visitante. A entrada que dava para a Rua 4, a qual só muito raramente é que Kate transpunha, era de uma traça tão impressionante como a fachada de um palácio, com uma escadaria dupla em mármore de grande imponência, onde se viam vitrais de rara beleza, e a grandiosa escultura que tinha o nome de Pai das Águas. O átrio principal do edifício sempre lhe trouxera à recordação um hospital antigo com o seu piso lajeado com lambris de mármore. No interior reinava um ambiente de vazio que se vinha perpetuando ao longo dos tempos, se bem que Kate soubesse que estava a rebentar pelas costuras dado o movimento de agentes de polícia e malfeitores, funcionários municipais, repórteres e cidadãos comuns que procuravam justiça ou a obtenção de um favor.
A secção de investigação criminal do departamento da polícia fora relegada para uma espécie de coelheira apinhada, de ambiente sombrio, instalações situadas ao fundo de um corredor cavernoso, enquanto decorriam obras de remodelação nos gabinetes que a polícia normalmente ocupava. A área de recepção fora separada por divisórias temporárias. Por toda a parte só se viam pastas de arquivo e caixas empilhadas, armários de arquivo de metal cinzento em muito mau estado, os quais haviam sido colocados em todos os cantos disponíveis. Afixado na parede ao lado da porta do armário onde se guardavam as vassouras e as esfregonas, que entretanto fora convertido no gabinete de trabalho dos investigadores dos crimes de natureza sexual, via-se um cartaz que anunciava:
VELÓRIO DO PERU!
27 DE NOVEMBRO
ÀS 16.00 HORAS
NO PATRICK
Sabin fez um acenar vago de saudação na direcção da recepcionista, virando à direita e encaminhando-se para os gabinetes da brigada de homicídios. Nessas instalações via-se um autêntico labirinto de secretárias de metal, de linhas muito feias, da cor de massa de vidraceiro cheia de impurezas. Algumas das mesas estavam ocupadas, não sendo o caso na maior parte delas. Havia umas quantas onde reinava a organização, enquanto a maior parte quase não se conseguia ver debaixo da papelada que as atulhava. Presos às paredes com fita-cola, e na superfície dos armários de arquivo, viam-se vários apontamentos e fotografias juntamente com desenhos. Havia um aviso colado ao lado da ombreira da porta onde se ordenava: «HOMICÍDIO. FECHEM AS VOSSAS ARMAS à CHAVE!»
Com o auscultador de um telefone como que colado à orelha, Sam Kovac avistou-os, acenando-lhes para que se aproximassem. Um veterano com vinte e dois anos de carreira, Kovac exibia aquela aparência universal de agente de polícia, com o bigode imprescindível e corte de cabelo feito numa barbearia de categoria inferior, uma cabeleira castanha amplamente intercalada com fios grisalhos.
Sim, fiquei a saber que andavas a sair com a irmã da minha segunda mulher, Sid dizia ele retirando um maço de cigarros Salem de um volume acabado de abrir que estava em cima da sua secretária, mostrando alguma dificuldade em retirar o invólucro de celofane. Já tinha despido o casaco do seu fato castanho, bastante amarrotado, tendo alargado o nó da gravata. Isso não te dá o direito a teres acesso a informações confidenciais sobre este assassínio. Tudo aquilo que podes esperar de mini é a minha simpatia. Sim? Sim? Ela disse o quê? Pois bem, porque é que pensas que eu a deixei? Há ha. Há ha... De verdade?
Mordeu a cinta que selava o invólucro do maço de cigarros que acabou a abrir à dentada.
Estás a ouvir este barulho, Sid? É o som de eu a fazer-te em frangalhos, caso decidas publicar uma só palavra sobre esse assunto. Estás a perceber o que te digo? Queres informações? Vem à conferência de imprensa como todos os teus colegas de profissão. Sim? Pois bem, o mesmo para ti!
Bateu com o auscultador no descanso, fitando o advogado do promotor público com o cenho carregado. Os seus olhos, de um verde-acastanhado com matizes de casca de árvore molhada, raiados de vermelho, reflectiam a inteligência de que era dotado.
Malditos sejam estes tipos dos jornais. Isto está a ficar mais feio do que a minha tia Selma, e ela tem uma carantonha capaz de fazer com que um buldogue vomite.
Eles já têm conhecimento do nome do Bondurant? perguntou Sabin.
Claro que sim respondeu enquanto tirava um cigarro do maço que suspendeu dos lábios, ao mesmo tempo que remexia na confusão que reinava na sua mesa de trabalho. Os jornalistas andam em cima deste assunto como se fossem moscas em cima de caca de cão replicou Kovac lançando um olhar a Kate por cima do ombro. Olá, Kate... Jesus! O que é que te aconteceu?
É uma história muito comprida. Tenho a certeza de que a ouvirás no Patrick hoje à noite. Onde é que está a nossa testemunha?
Ao fundo do corredor.
Ela já começou a dar a descrição do assassino ao desenhador que está a fazer o retrato-robô? perguntou Sabin.
Kovac expeliu uma baforada de fumo por entre os lábios, emitindo um som que se assemelhava bastante ao relinchar de um cavalo desdenhoso.
Ainda nem sequer começou a colaborar connosco. A nossa cidadã não se sente exactamente cheia de júbilo por ser o centro das atenções por aqui.
Ela não está a dar-nos problemas, pois não? perguntou Rob Marshall, mostrando-se alarmado. Brindou Sabin com o seu melhor sorriso de lambe-botas. Suponho que esteja apenas um pouco abalada, Mister Sabin. Mas aqui a Kate há-de saber como acalmá-la.
Qual é a sua opinião em relação a esta testemunha, detective Kovac? perguntou Sabin.
Kovac pegou num isqueiro Bic e numa pasta de cartolina com os papéis todos desorganizados, dirigindo-se para a porta. Saturado do mundo e marcado pela vida, tinha uma constituição simultaneamente robusta e esguia, a par de uma postura mais utilitária do que ornamental. As suas calças castanhas eram um tudo-nada largas e um pouco compridas de mais, com a dobra da bainha que caía sobre a parte superior dos sapatos, de modelo clássico, com tacões desgastados pelo uso.
Oh, sim, ela é uma rica prenda replicou Kovac com sarcasmo. Apresentou-nos uma carta de condução emitida por outro estado que só pode ser roubada. Diz-nos que vive num apartamento nas proximidades de Phillips, mas não tem chave nenhuma dessa casa, com a agravante de não saber dizer-nos quem é que a terá. Se ela não tiver cadastro criminal, estou disposto a barbear o cu e a pintá-lo de azul.
Portanto, já a investigaste; e qual foi o resultado? perguntou Kate, acompanhando a passada do detective com alguma dificuldade, de forma a que Sabin e Rob tivessem de ficar para trás. Há muito que aprendera a cultivar a amizade dos agentes de polícia que trabalhavam nos seus casos. Tê-los por aliados só lhe trazia vantagens, ao invés de os ter por adversários. Para não mencionar que gostava dos bons polícias, como Kovac. O seu trabalho era bastante duro e pouco reconhecido, auferindo um salário que não correspondia ao empenho com que realizavam a sua missão, o que faziam pela razão à moda antiga de acreditarem na necessidade desse mesmo trabalho. Ao longo de cinco anos, ela e Kovac tinham estabelecido um bom relacionamento profissional.
Já tentei averiguar o nome de que ela hoje está a servir-se explicou o detective, mas o cabrão do computador foi-se abaixo. Vai ser um dia e pêras. Esta semana cabe-me o turno da noite. Detesto esta trampa do conceito de trabalho em equipa. Porra, dêem-me um parceiro e deixem-me em paz! Percebes o que quero dizer? Estou cá a pensar em pedir transferência para a secção dos crimes sexuais.
E virar costas a toda esta vida de fama e fascínio? perguntou Kate na brincadeira dando-lhe uma pequena cotovelada de cumplicidade.
Kovac lançou-lhe um olhar de conspiração, inclinando a cabeça de lado. Os seus olhos iluminaram-se com uma centelha de um humor um tanto macabro.
Merda, Ruiva. Sabes... eu gosto dos meus defuntos sem complicações de maior.
Já ouvi dizer isso a teu respeito, Sam gracejou Kate, sabendo bem de mais que ele era o melhor investigador criminal do departamento da polícia; era um homem de carácter que vivia para o trabalho e que detestava os aspectos políticos que o envolviam.
Kovac abafou uma gargalhada abrindo a porta que dava acesso a uma pequena sala de onde se podia ver para outra contígua através de um vidro baço, que permitia a visão apenas do exterior. Do outro lado do vidro, Nikki Liska, outra detective, estava encostada a uma parede, mantendo os olhos presos nos de uma rapariga que se sentava à cabeceira de uma mesa, cujo tampo imitava a raiz de uma madeira qualquer. Aquilo não augurava nada de bom. A situação já era de antagonismo. Sobre a mesa viam-se várias latas de refrigerantes e copos de cartão que haviam contido café, bem como migalhas e bocados de bolos.
A sensação de apreensão que Kate sentia na boca do estômago passou a pesar mais meio quilo enquanto observava através do vidro a meio da parede. Calculou que a jovem teria uns quinze ou dezasseis anos. Era pálida e magra, tinha um nariz que mais parecia um botão e uma boca de lábios carnudos e vermelhos, daquelas que se viam nas acompanhantes de preço elevado do sexo masculino. O seu rosto de feições miúdas tinha um formato oval, com um queixo um tudo-nada comprido de mais, o que provavelmente lhe emprestaria uma expressão de desafio sem que tentasse afivelá-la. Os seus olhos exibiam um rasgado exótico, como que eslavo, reflectindo mais vinte anos do que ela tinha.
Ela é apenas uma garota declarou Kate num timbre de voz desprovido de qualquer emoção, fitando Rob com uma expressão confusa e reprovadora. Tu sabes muito bem que eu não trabalho com miúdos.
Porquê? perguntou ela num tom de exigência. Tens uma secção juvenil inteiramente à tua disposição. Deus sabe que a miudagem se envolve em homicídios com bastante regularidade.
Mas isto é diferente. Ela não faz parte de nenhum desses bandos de delinquentes juvenis que andam por aí aos tiros acrescentou Rob numa atitude em que, aparentemente, relegava alguns dos crimes mais violentos que ocorriam na cidade para a mesma categoria das infracções ao código da estrada e furtos em estabelecimentos comerciais. É preciso não esquecer que estamos a lidar com um assassino em série.
Até mesmo numa profissão em que quotidianamente se lidava com homicídios, as palavras assassino em série atingiam um ponto nevrálgico. Kate perguntava-se se o criminoso teria a percepção desse aspecto, se se deleitaria com essa noção ou se, pelo contrário, andaria completamente embrenhado no seu pequeno mundo de caça e morte à presa. Kate já lidara com os dois tipos de homicidas. As vítimas, quer de um quer do outro, acabavam sempre irremediável e igualmente mortas.
Virou costas ao director do seu departamento, voltando a concentrar a sua atenção na rapariga cujo destino a levara a cruzar-se com aquele predador que recentemente chegara ao conhecimento da Polícia. Angie DiMarco olhou fixamente para o vidro; da sua postura emanavam vagas invisíveis de ressentimento. Pegou numa caneta preta e grossa que estava em cima da mesa e com a tampa começou a delinear lentamente o contorno do lábio inferior, bastante carnudo, gesto que repetiu de uma comissura à outra, num movimento que era simultaneamente de impaciência e sensualidade.
Sabin brindou Kate com o seu perfil, como se estivesse a fazer pose para um artista de cunhagem de moeda.
Já te passaram pelas mãos casos com estas características, Kate. Quando trabalhavas no FBI. Por conseguinte, tens alguns pontos de referência que te permitem começar a trabalhar. Estás bem ciente do que se espera em termos de investigação criminal e dos meios de comunicação social. É muito possível que conheças o agente especial que eles tencionam enviar da Unidade de Apoio à Investigação. O que poderá ser uma vantagem bastante útil. Precisamos de tudo o que nos possa ajudar a levar a cabo o nosso trabalho.
Tive oportunidade de estudar algumas vítimas. Lido regularmente com gente morta. A ansiedade que começava a adquirir vida dentro de si não lhe agradava em nada. Não gostava de sentir aquilo, tão-pouco desejava investigar a origem desse sentimento. Existe uma grande diferença entre trabalhar com uma pessoa morta e com um adolescente. Da última vez que ouvi falar sobre este assunto, fiquei com a impressão de que os mortos são muito mais cooperantes do que os adolescentes.
És uma defensora que zela pelo interesse de vítimas e testemunhas disse Rob num tom de voz de onde transparecia algum queixume. Ela é uma testemunha.
Kovac, que entretanto se encostara à parede, observando de parte aquela troca de palavras, sorriu a Kate com uma expressão onde se lia algum desalento.
- Não temos voto na matéria quanto à escolha dos nossos familiares nem das testemunhas que nos cabem, Ruiva. Bem gostaria eu que tivesse sido a Madre Teresa quem saiu a correr desse parque ontem à noite.
Não, não gostarias coisa nenhuma retrucou Kate. O advogado de defesa afirmaria que ela sofria de cataratas ou da doença de Alzheimer, alegando que uma pessoa que crê que um homem tenha ressuscitado dos mortos três dias depois de ter falecido, é uma testemunha que não merece um mínimo de credibilidade.
Advogados reles atalhou Kovac com contorções no bigode.
A Madre Teresa já morreu contrapôs Rob mostrando-se apalermado.
Ao mesmo tempo, Kate e Kovac puseram os olhos em alvo.
Temos de andar com este assunto para a frente interveio Sabin, olhando ostensivamente para o seu relógio de pulso depois de ter pigarreado. Quero ouvir o que ela tem a dizer-nos.
E você está convencido de que ela, assim sem mais nem menos, vai dizer-nos tudo o que queremos saber? perguntou Kate soerguendo um sobrolho. Está a parecer-me que você não sai o suficiente do seu gabinete, Ted.
No interesse dela, é melhor que nos diga tudo o que sabe retorquiu ele com cara de poucos amigos e encaminhando-se para a porta.
Kate lançou um último olhar através do vidro; os seus olhos foram ao encontro dos da testemunha, apesar de saber que a jovem não podia vê-la. Uma adolescente. Jesus Cristo, se a tivessem incumbido de um marciano, o resultado teria sido o mesmo. Ela não era mãe de ninguém. E ali estava uma lembrança disso mesmo, de algo que não precisava nem tão-pouco queria.
Observou o rosto pálido da jovem onde leu cólera e desafio, a par de uma experiência de vida que nenhuma miúda daquela idade devia ter. Também viu medo. Um sentimento oculto debaixo de tudo o mais, bem preso dentro dela, como se aquele medo fosse um segredo. Kate não se permitiu a percepção desse mesmo medo dentro da sua própria alma, não lhe sendo difícil reconhecê-lo.
Na sala de interrogatórios, Angie DiMarco lançou um olhar de relance a Liska, que via as horas no seu relógio. Concentrou a sua atenção no vidro que não lhe permitia ver do seu lado, enfiando a caneta que surripiara furtivamente pela gola da camisola de lã que trazia vestida.
Uma garota repetiu Kate num resmungo quando Sabin e Rob Marshall já saíam para o corredor passando à sua frente. Eu nem sequer consegui ser uma miúda como deve ser.
O que é perfeito disse Kovac mantendo a porta aberta para que ela passasse.
Nem ela o é.
Liska era uma mulher loura e baixa, com um corpo atlético e um corte de cabelo arrapazado; quando entraram na sala de interrogatórios, afastou-se da parede, brindando-os com um sorriso um tanto deprimido. Tinha o aspecto de uma Tinker Bell que andasse a tomar corticosteróides o que Kovac declarara quando lhe dera a alcunha de Tinks.
Bem-vindos à casa dos divertimentos saudou ela, jovial. Alguém quer tomar café?
Para mim um descafeinado e outro para a nossa amiga que está sentada à mesa, por favor, Nikki respondeu Kate numa voz suave sem nunca desviar os olhos da rapariga, tentando estabelecer uma estratégia de actuação.
Kovac deixou-se cair numa cadeira, debruçando-se e apoiando um braço sobre a mesa; com as pontas dos dedos grossos começou a raspar as lascas de chocolate que se tinham agarrado ao tampo, espalhadas como se fossem caganitas de ratos.
Kate, esta é a Angie DiMarco apresentou ela de maneira casual. Angie, esta é a Kate Conlan que trabalha no Programa de Protecção à Vítima e à Testemunha. Ela é a pessoa incumbida do teu caso.
Eu não sou nenhum caso ripostou a rapariga com brusquidão. Quem são estes?
O promotor público, Mister Ted Sabin, e Mister Rob Marshall, que também é dos serviços de vítimas e testemunhas. Kovac indicou respectivamente cada um dos homens; os dois sentaram-se à mesa no lado oposto, defronte daquela testemunha que era tão importante.
Sabin concedeu-lhe a sua melhor expressão ao estilo de Ward Cleaver.
1 Personalidade muito popular de um programa de televisão nos Estados Unidos, Leave it to Reaver, entre 1957 e 1963 (N da T)
Estamos extremamente interessados no que tem a dizer-nos, Angie. Este criminoso de que andamos à procura é um homem muito perigoso.
A sério?! A rapariga concentrou-se em Kovac. O olhar deste dirigiu-se logo para a sua boca. Posso fumar um cigarro?
Kovac tirou o cigarro que tinha entre os lábios, observando-o atentamente.
Que diabo, nem sequer eu posso fumar confessou ele. Neste edifício é proibido fumar. A minha intenção era ir fumar este cigarro lá para fora.
Grande porra! Passei metade da noite enfiada na merda desta sala e nem sequer posso fumar a merda de um cigarro
disse Angie mal-humorada, recostando-se toda para trás e cruzando os braços à frente do peito. O cabelo castanho, que penteava com risco ao meio, estava bastante oleoso, caindo-lhe solto até aos ombros. Usava rímel a mais e já estava esborratado por baixo dos olhos; vestia um blusão de ganga desbotada Calvin Klein que em tempos pertencera a alguém de nome Rick. O nome fora escrito com tinta indelével acima do bolso esquerdo do peito. Apesar de a sala estar aquecida, ela não despira o blusão. Talvez porque a peça de vestuário lhe proporcionasse uma sensação de segurança, ou talvez se destinasse a ocultar marcas de picadas de agulhas hipodérmicas nos braços, deduziu Kate.
Ora, por amor de Deus, Sam, dá-lhe o cigarro disse Kate arregaçando as mangas da sua camisola de lã. Sentou-se na cadeira desocupada ao lado da rapariga. E já que estás com a mão na massa, dá-me também um cigarro. Se os nazis nos apanharem, tombaremos juntos. O que é que eles nos poderão fazer? Pedir-nos que saiamos deste buraco de ratos?
Pelo canto do olho, não perdia pitada das reacções da rapariga, enquanto Kovac sacudia o maço de cigarros para tirar mais dois. Angie tinha as unhas pintadas de um azul metalizado de uma tonalidade fria, apesar de as ter roído até ao sabugo. Aceitou o cigarro com mãos que tremiam. Usava uma grande variedade de anéis prateados, bijutaria ordinária; a sua pele pálida estava desfigurada por duas pequenas tatuagens feitas de forma grosseira uma cruz junto de um polegar e a letra «A» atravessada por uma linha horizontal no topo. Também tinha outra, esta obra de um profissional, que lhe rodeava um dos pulsos, uma pulseira com espinhos a tinta de um azul delicado.
Estiveste aqui toda a noite, Angie? perguntou Kate inspirando uma baforada de fumo. O cigarro sabia-lhe a merda ressequida. Não era capaz de compreender por que motivo é que apanhara o vício de fumar nos seus tempos de universitária. Imaginou que seria o preço a pagar por ter querido fazer parte do grupo das fixes. E agora estava a pagar o preço da sujeição ao vício.
Sim confirmou Angie, lançando uma espessa baforada em direcção ao tecto. E eles recusaram-se a arranjar-me um advogado.
Tu não precisas de nenhum advogado, Angie interveio Kovac mostrando afabilidade. Não estás a ser acusada de crime nenhum.
Sendo assim, porque é que não posso pôr-me a andar, sair deste atoleiro de merda?
Temos uma data de complicações que precisamos de deslindar. Por exemplo, a pequena questão da tua identificação.
Eu já lhe entreguei o meu documento de identificação.
Kovac retirou o dito documento de uma pasta de cartolina entregando-o a Kate, ao mesmo tempo que soerguia os sobrolhos num gesto cheio de significado.
Tens vinte e um anos leu Kate com cara de pau, sacudindo a cinza do cigarro para dentro de um copo que contivera café.
É o que diz aí.
Também diz que és de Milwaukce...
Era. Já não vivo lá.
Tens alguns familiares que continuem a viver lá?
Morreram todos.
Lamento.
Do que eu duvido muito.
E aqui, tens alguém de família? Tias, tios, primos, aberrações do circo que sejam teus familiares por afinidade? Alguém, seja quem for, que fique do teu lado... que te ajude a ultrapassar esta situação?
Não. Sou órfã. Coitada de mim... Soltou uma risada de sarcasmo, se bem que denotasse alguma jovialidade. Acredite no que lhe digo: não preciso de nenhum familiar.
Não tens um endereço permanente, Angie atalhou Kovac. é necessário que compreendas perfeitamente o que se está a passar. Tu és a única pessoa capaz de identificar um assassino. Precisamos de saber qual é a tua posição no meio de tudo isto
Angie revirou os olhos de uma maneira que só as adolescentes conseguem fazer, reflectindo uma amalgama de incredulidade e impaciência
Mas eu já lhe dei a minha morada
Deste-me a morada de um apartamento de que não possuis chaves, e não és capaz de me dizer o nome das pessoas com quem estás a viver.
Mas eu já lhe disse isso tudo.
Angie levantou-se da cadeira virando costas a Kovac, do cigarro que tinha na mão caiam cinzas que ia espalhando no chão por onde passava. A camisola de lã azul que usava por baixo do blusão tinha encolhido, ou estava-lhe pequena, deixando ver um umbigo perfurado por uma argola e outra tatuagem. três gotas de sangue que caiam para o cós das calças de ganga bastante encardidas
Ela chama-se Molly continuou a jovem. Conheci-a numa festa e ofereceu-me o apartamento, dizendo que eu podia ficar lá até arranjar a minha própria casa
Kate reparou no ligeiro tremor na voz da rapariga, na linguagem corporal indicadora de que ela assumira uma atitude defensiva fechando-se em si própria e distanciando-se deles. No outro extremo da sala, a porta abriu-se, dando entrada a Liska que trazia o café
Angie, ninguém está a tentar manter-te encafuada aqui acrescentou Kate. A nossa preocupação principal é velar pela tua segurança
A rapariga assestou nela um par de olhos de um azul -escuro que reflectiam a fúria que sentia
A vossa preocupação é que eu testemunhe contra esse psicopata, o Cremador. Vocês pensam que eu estou doida? Ele havia de me descobrir para me matar também.
A sua cooperação é imperativa, Angie atalhou Sabin num tom autoritário. O homem que comandava as tropas. Você é a única testemunha que temos. Tanto quanto nos é dado saber, este homem já matou três mulheres
Kate lançou um olhar ao promotor público que se fosse uma adaga tê-lo-ia esfaqueado
Parte das minhas funções é assegurar-me de que a tua vida não seja posta em perigo, Angie explicou ela tendo o cuidado de manter uma voz calma e neutra. Vais precisar de um sítio para viver, do que nós poderemos encarregar-nos. Tens algum emprego?
Não respondeu a rapariga desviando o olhar uma vez mais. Tenho andado à procura de trabalho acrescentou quase como se estivesse na defensiva. Dirigiu-se para um canto da sala onde se encontrava a mochila suja que tinha deixado no chão. Kate estava disposta a apostar tudo o que tinha em como todos os pertences que a jovem possuía estariam naquela mochila.
É sempre difícil quando nos mudamos para uma nova cidade continuou Kate numa voz serena. Passamos a vida a perder-nos, e não conhecemos ninguém. É difícil instalarmo-nos, encetar uma vida nova.
A jovem baixou a cabeça roendo a unha do polegar; os cabelos soltos ocultavam-lhe as feições.
É preciso dinheiro para nos instalarmos prosseguiu Kate. Dinheiro para comer. Dinheiro para a renda de uma casa. Dinheiro para se poder comprar roupa. É preciso dinheiro para tudo e mais alguma coisa.
Cá me vou arranjando.
Kate era capaz de imaginar de que maneira. Ela sabia bem como é que as coisas se passavam com miúdos de rua. Faziam tudo o que tinham a fazer para conseguir sobreviver. Pediam esmola. Roubavam. Vendiam alguns estupefacientes. Esfolavam um ou dois cabritos, ou até mesmo dez. No mundo não havia escassez de escumalha humana do mais depravado que se pudesse conceber, gente sempre disposta a aproveitar-se de jovens que não tinham casa nem projectos de vida.
Liska colocou as canecas de café fumegante sobre a mesa, inclinando-se para segredar qualquer coisa ao ouvido de Kovac.
O Elwood conseguiu descobrir o paradeiro do porteiro do prédio. Diz que o apartamento tem estado desocupado, e que, se esta miúda tem estado a viver lá, então quer quinhentos dólares de caução, caso contrário irá para tribunal com um processo por intrusão em propriedade alheia.
Que grande humanitário.
Mas o Elwood disse-lhe: «Quinhentos dólares? Que conta é essa? Um dólar por cada barata?»
Kate ouvia os comentários feitos em vozes segredadas, mantendo o olhar fixo em Angie.
A tua vida nesta altura já é suficientemente difícil, sem teres de vir a ser citada como testemunha de um assassínio.
Continuando de cabeça baixa, a jovem fungou levando o cigarro aos lábios.
Eu não o vi a matar a mulher.
Afinal, o que é que você viu? perguntou Sabin irritado, num tom que exigia resposta. Precisamos de saber, Miss DiMarco. Cada minuto que passa é crucial para o processo de investigação criminal. Este homem é um assassino em série.
Estou em crer que todos estamos bem cientes desse facto, Ted atalhou Kate num timbre de voz manifestamente de frieza. Na verdade, não há necessidade de nos chamar a atenção para isso de dois em dois minutos.
As feições de Rob Marshall contorceram-se acentuadamente. Sabin ficou a olhar para ela sem tentar ocultar a impaciência que sentia. Queria inteirar-se de algo de concreto antes de ir para a reunião que tinha marcada com a presidente da Câmara Municipal. Queria poder apresentar-se à frente das câmaras durante a conferência de imprensa, atribuindo um nome e um rosto ao monstro que andava à solta entre os cidadãos de bem, anunciando que a qualquer momento tencionavam proceder a uma detenção.
A Angie dá-me a impressão de estar a sentir algumas dificuldades em decidir se irá cooperar connosco ou não acrescentou Sabin. Parece-me que é da maior importância que ela se aperceba da gravidade desta situação.
Ela teve oportunidade de ver alguém que lançou fogo a um corpo humano. Pelo que me atrevo a dizer que ela compreende perfeitamente a gravidade da situação.
Pelo canto do olho, Kate viu que tinha conseguido despertar a atenção da rapariga. Talvez pudessem tornar-se amigas; ambas a viverem na rua depois de Sabin a ter despedido por se ter atrevido a desafiar a sua autoridade na presença de terceiros. Em que é que ela estaria a pensar? Para começar, nem sequer quisera ter em mãos aquela grande trapalhada.
Angie, o que é que andavas a fazer pelo parque àquela hora da noite? perguntou Rob, limpando o suor da testa com um lenço de assoar.
A tratar da porra de assuntos que só a mim dizem respeito! ripostou a rapariga, olhando-o frontalmente.
Se quiseres, podes despir o blusão continuou ele com um sorriso forçado.
Não me apetece despi-lo.
O homem cerrou as mandíbulas e o sorriso forçado deu lugar a um quase esgar de cólera.
Se é isso que queres, por mim não existe qualquer problema. Só sugeri que o despisses porque aqui dentro está muito quente. Porque é que não nos dizes, por palavras tuas, o que é que te levou a esse parque a noite passada, Angie?
Ela olhou-o fixamente com um olhar venenoso.
Quase me apetece dizer-lhe que me dê um beijo no cu, mas você é um cabrão tão feio que teria de o obrigar a pagar-me adiantadamente.
As faces do homem ficaram vermelhas que nem um tomate.
Entretanto, ouviu-se o apitar de um beeper que fez com que todos os presentes na sala levassem a mão ao seu, com a excepção da testemunha. Sabin franziu o cenho numa expressão sombria ao ler a mensagem no mostrador do seu aparelho. Voltou a ver as horas.
Conseguiste ver o rosto do homem com clareza, Angie? prosseguiu Rob numa voz que deixava adivinhar o mal-estar que sentia. Nem imaginas o quanto podes ajudar-nos a resolver este assunto. Eu compreendo que foste forçada a passar por uma situação terrível, mas...
Você não sabe porra nenhuma! interrompeu Angie, desabrida.
Uma veia na têmpora esquerda de Rob inchou perigosamente e o suor começou a perlar-lhe a pele luzidia da testa.
É por isso mesmo que estamos a fazer-te todas estas perguntas, miúda interveio Kate com uma grande calma. Soprou uma coluna de fumo que se evolou vagarosamente. Dispunham de todo o tempo do mundo. Conseguiste ver bem a cara do sujeito?
Angie ficou a observá-la durante alguns momentos; o tempo e o silêncio arrastavam-se, após o que concentrou a sua atenção em Sabin, passando a Liska e a Kovac, voltando a fitar Rob Marshall. Aferindo e avaliando a situação.
Vi-o por entre as chamas admitiu ela por fim, baixando o olhar até ao chão. Ele incendiou o corpo enquanto dizia: «Do pó vieste e ao pó hás-de voltar.»
Se voltasse a vê-lo, acha que seria capaz de o reconhecer? inquiriu Sabin num tom autoritário.
Com certeza respondeu a adolescente numa voz murmurada, levando o cigarro aos lábios para uma última passa. A ponta incandescente ficou rubra como um tição do inferno, destacando-se contra a palidez do seu rosto. Quando Angie voltou a falar, fê-lo por entre uma baforada de fumo. Ele é o demónio.
Que diabo é que se passou ali dentro? perguntou Kate na defensiva, um segundo depois de terem saído da sala de interrogatórios para o corredor.
Era precisamente isso o que eu ia perguntar-lhe, Kate! replicou Sabin, passando ao contra-ataque com uma expressão furibunda. Precisamos desesperadamente da cooperação da rapariga.
E você pensa que vai conseguir isso falando-lhe como se a quisesse arrasar? Para o caso de não ter reparado, devo dizer-lhe que ela não lhe deu respostas nenhumas.
Como é que ela poderia responder às minhas perguntas consigo sempre a meter o bedelho, a interferir de cada vez que eu estava a fazer progressos?
A força encontra sempre resistência pela frente, Ted. E intrometer-me faz parte das minhas funções... Ao fim e ao cabo, não esqueçamos que sou uma defensora dos direitos das testemunhas ripostou Kate apercebendo-se de que estava a desencadear a cólera de um homem muito poderoso. Ele possuía poder para a afastar do caso.
«E eu havia de ter essa sorte!», pensou Kate para consigo mesma. Aquela investigação já tinha começado a adquirir os contornos de uma grande salganhada que ninguém conseguiria deslindar. Decerto ela não havia de querer ser apanhada no meio de uma situação daquelas.
Foi você quem me arrastou para este assunto recordou ela. Já se esqueceu que queria que eu fizesse amizade com esta rapariga? O que por si só já é bastante difícil, quanto mais com você a organizar um grupo de trabalho que, aparentemente, está contra ela acrescentou Kate. Ela tem de querer partilhar connosco tudo o que viu. É forçoso que acredite que tomaremos conta dela. Está sinceramente convencido de que ela confiará em si, achando que não se limitará a extorquir as informações que ela lhe puder dar e depois descartando-se dela sem estar com contemplações? Como é que lhe parece que uma miúda como a Angie, para começar, acaba por se envolver numa alhada destas?
Você disse que não queria tratar deste caso porque ela era uma miúda retorquiu Sabin, irritado. Agora, sem mais nem menos, passou a ser uma autoridade na matéria.
Mas você queria que eu me encarregasse do caso devido aos meus conhecimentos especializados, pelas referências por que poderei orientar-me recordou-lhe ela. Face a isso, só lhe resta a alternativa de confiar no meu trabalho. Eu sei como interrogar uma testemunha.
Você disse que a rapariga foi detida quando se preparava para fugir do local do crime? continuou Sabin, dirigindo-se a Kovac como se não tivesse ouvido o que Kate lhe dissera.
Não foi exactamente isso o que eu disse.
Mas ela ia a fugir do parque quando o primeiro carro-patrulha chegou ao local insistiu Sabin com mostras de impaciência. Por conseguinte, preparava-se para fugir de um cadáver em chamas. O que a transforma numa suspeita. Abane-a um bocado. Aperte com ela. Se for preciso, ameace-a. Assuste-a até que ela deite toda a verdade cá para fora. Não me interessam quais os meios a que tenha de recorrer. Dentro de dois minutos vou ter uma reunião com o comandante da polícia e com a presidente da Câmara Municipal. A conferência de imprensa está marcada para as dezassete horas. Até lá, quero ter na mão uma descrição do assassino. Ditas estas palavras, começou a afastar-se dos outros, endireitando o casaco e movimentando os ombros como se fosse um pugilista que tivesse acabado cinco assaltos num combate de boxe especialmente renhido.
Kate olhou para Kovac, que lhe mostrou uma fisionomia ensombrada.
Estás a ver as merdas que eu tenho de aturar? lamentou-se o detective.
Tu, retorquiu Kate, desdenhosa. Ele tem poder para me despedir sem mais nem menos. Mas isso não me incomoda; cá por mim ele até podia ter sido convocado pela Janet Renol. O poder não lhe confere o direito de
1 A primeira mulher a ocupar o cargo de procurador-geral dos Estados Unidos, foi nomeada por Bill Clinton em 1993 (N da T)
importunar uma testemunha... nem tão-pouco para que tu o faças por ele. Se a tua intenção é fazer gato-sapato desta garota, Sam, garanto-te que transformarei a tua vida num verdadeiro inferno.
Jesus, Kate, o manda-chuva diz que ela é para deitar no caixote do lixo. O que é que eu posso fazer? perguntou Kovac com uma careta. Fazer-lhe um manguito? Ele não hesitará em me agarrar pelos cojones, quebrando-os com um quebra-nozes no próximo Natal.
Quanto a mim, podes crer que me servirei deles para bolas de ténis.
Lamento muito, Kate. Vozes mais altas se levantam. O Sabin tem poder para me castrar e à minha reforma. Mas tenta ver as coisas de uma perspectiva mais optimista: a choça será como uma estância de férias para esta garina.
Kate voltou-se para o seu chefe, procurando apoio. Numa atitude de um certo mal-estar, Rob ora apoiava o peso do corpo sobre um pé, ora sobre o outro.
Estas circunstâncias são extraordinárias, Kate.
Eu compreendo isso. Também me apercebo de que se esta garota tivesse visto o nosso psicopata a incinerar o corpo de uma rameira, nunca se realizaria nenhuma conferência de imprensa, e o Ted Sabin nem sequer ouviria falar do nome dela. Mas isso não altera em nada aquilo que a rapariga presenciou, Rob. Tal como não altera aquilo que ela é, ou a maneira como é necessário lidar com ela. A garota já está à espera de ser tratada com dureza. O que, aliás, lhe dará uma boa justificação para não cooperar connosco.
A expressão que se estampava no rosto do homem era um misto de desdém perverso e desânimo.
Pensei que tu não querias ser incumbida deste caso.
E não quero declarou Kate numa voz que não traía qualquer emoção. Não tenho nenhum desejo pessoal de me enfiar num tanque com crocodilos até ao pescoço, mas, uma vez que estou metida nisto, tenciono ir até ao fim. Só quero que me deixem cumprir as minhas funções junto dela, ou que me ponham a trabalhar com outra pessoa qualquer. Recuso-me a ser uma marioneta e que me impeçam de trabalhar. Nem sequer por ele, apesar de se comportar como se fosse todo-poderoso.
Claro que tudo o que ela havia acabado de dizer não passava de fanfarronada. Era muito possível que não tivesse desejado aquela tarefa, mas a verdade é que era a melhor defensora para aquele caso ou pelo menos era o que Ted Sabin pensava. Sabin a quem a ideia de ela ter sido uma agente especial do FBI parecia excitar sexualmente. Por muito que aquela obsessão a enojasse, Kate sabia que isso lhe concedia uma certa vantagem no seu relacionamento com ele e, consequentemente, no que se referia a Rob.
A verdadeira questão era esta: o que iria aquilo custar-lhe? E por que razão o assunto a interessaria ao ponto de estar disposta a pagar o preço? Mesmo à distância de um quarteirão, já lhe chegava ao nariz o fedor a que aquele caso tresandava, quase sentia o emaranhado que muito provavelmente a envolveria como os tentáculos de um polvo. Ela devia ter cortado com o assunto de uma vez por todas. Isto é, se tivesse tido um mínimo de bom senso. Se não tivesse penetrado as defesas de Angie DiMarco, o que lhe dera a oportunidade de ver, ainda que fugazmente, o medo que ela sentia.
O que é que o Sabin tenciona fazer, Rob? perguntou Kate. Cortar-nos a cabeça e lançar-nos fogo?
Isso não tem qualquer graça.
Não foi meu intuito que tivesse. Mostra alguma garra, não hesites em lhe fazer frente, por amor de Deus!
Rob suspirou e, de maneira discreta, meteu o polegar pelo interior do cós das calças.
Vou falar com ele e logo verei o que posso fazer. Talvez a rapariga consiga identificar alguém que conste do nosso arquivo fotográfico, até às cinco da tarde retorquiu ele, mas sem mostrar grandes esperanças.
Com certeza que continuas a ter alguns conhecimentos no Wisconsin acrescentou Kate. Talvez consigas descobrir alguma coisa do passado dela, o que te permitirá tentar averiguar qual a sua verdadeira identidade.
Vou fazer alguns telefonemas. Mais alguma coisa? perguntou ele, sendo óbvio que queria dar a conversa por encerrada.
Kate fez-se despercebida. Tinha bem a noção da sua tendência para reger a orquestra, do que não se arrependia em nada no tocante ao seu superior hierárquico. Ele jamais fora uma figura que a inspirasse a segui-lo.
Rob começou a afastar-se com a derrota bem patente na sua atitude.
O teu chefe, um fulano sempre fiel a si mesmo: o autêntico homem de acção comentou Kovac com ironia.
Está-me cá a parecer que o Sabin guarda os cojones dele num boião dentro do armário de medicamentos que tem em casa.
Pois bem, não desejo ver os meus acrescidos a essa colecção. Vê lá se consegues arrancar alguma coisa à miúda, além de mentiras e sarcasmos, antes das cinco da tarde disse Kovac pousando uma mão firme no ombro de Kate, num gesto de parabéns e consolação. É assim mesmo, Ruiva. A tarefa é toda tua.
Kate franziu as sobrancelhas enquanto o observava a encaminhar-se para os lavabos dos homens.
E pergunto uma vez mais: porque é que tenho de ser sempre eu quem está no local errado à hora menos adequada?
O agente especial John Quinn, que também exercia funções de supervisão, saiu pela manga de ligação directa com o terminal do Aeroporto de Saint Paul em Minneapolis. Era um aeroporto com as mesmas características de todos os outros onde estivera: em tons de cinzento e com uma atmosfera tristonha; o único indício de emoção vinha da parte de uma risonha família que dava as boas-vindas a um rapaz cansado da viagem, o qual tinha um corte de cabelo quase à escovinha e usava um uniforme azul da força aérea.
Sentiu um baque de inveja, um sentimento que lhe dava a impressão de ter tanta idade quanto ele próprio quarenta e quatro anos. A sua família era adepta da contenção emocional, não havendo lugar a incitamentos para manifestações de júbilo. Havia vários anos que não os via. Sempre demasiado ocupado, muito distante, excessivamente desinteressado. Sentindo-se demasiado envergonhado por ser visto com eles, tal como diria o pai... e teria tido toda a razão.
Avistou o agente de campo Vince Walsh, o qual se encontrava junto da área das portas de embarque. De acordo com o seu historial profissional, tinha cinquenta e dois anos e gozava de uma sólida reputação. Estava previsto que se aposentasse em Junho. Tinha o aspecto de alguém pouco saudável que já tivesse atingido os sessenta e dois. O tom da pele era a do barro de modelagem, e uma atitude de austeridade deixara-lhe umas feições secas, com os consequentes vincos bem profundos nas faces e à largura da testa. A sua aparência era a de um homem cuja vida estava permanentemente sujeita a um elevado grau de tensão, sugerindo como única saída um ataque cardíaco. Na sua postura podia ler-se que preferiria de longe estar a fazer outra coisa em vez de se encontrar no aeroporto à espera de um qualquer manda-chuva vindo de Quântico.
Com as comissuras da boca, Quinn forçou a elevação do seu nível de energia. Havia que reagir de acordo com a situação: apresentar um aspecto de quem lamentava o incómodo que causava, mostrando uma postura sem traços de agressividade e nada ameaçadora; apenas um toque de cordialidade, mas nada de demasiado familiar. Naturalmente, os seus ombros descaíam um pouco devido à fadiga; não se deu ao trabalho de os endireitar.
Deduzo que seja o Walsh?
E você só pode ser o Quinn declarou o interpelado numa voz neutra enquanto Quinn retirava o seu crachá de dentro da algibeira do forro do casaco. Trouxe alguma bagagem que precise de ser levantada?
Só o que está a ver. Referia-se a um saco maleável a abarrotar que não obedecia aos regulamentos a que as bagagens de mão deviam obedecer, assim como uma pasta, muito pesada, onde trazia o computador portátil e uma resma de papel A4. Walsh não se ofereceu para o ajudar a levar a bagagem.
Agradeço muito a boleia disse Quinn quando saíram do terminal. É a maneira mais rápida de eu poder começar a entrar imediatamente no jogo. Elimina logo à partida a hipótese de eu andar perdido de automóvel pela cidade.
Óptimo.
Óptimo. Como começo de relacionamento não era nada por aí além, mas era o que se podia arranjar. Tentaria colher algumas informações durante o percurso. O mais importante ali era chegar ao local onde a acção se desenrolava. A grande prioridade era o caso em questão. Era sempre o caso. Uns a seguir aos outros, um após outro, com outro a espreitar ao virar da esquina... A fadiga posta de lado como se um estremecimento lhe percorresse o corpo, dando-lhe um pontapé no estômago quando partia.
Caminharam em silêncio em direcção ao terminal principal, meteram-se no elevador que os levou ao andar de cima, saindo para a rua que atravessaram até ao parque de estacionamento, onde Walsh deixara o seu Taurus que estacionara legalmente num lugar reservado a deficientes. Quinn colocou o saco e a pasta dentro do porta-bagagens, sentando-se para a viagem pela auto-estrada. O fumo dos cigarros entranhara-se no interior do automóvel, dando aos estofos beges a mesma tonalidade acinzentada da pele do condutor.
Walsh estendeu a mão para um maço de Chesterfield quando chegaram à auto-estrada estadual. Prendeu o maço entre os lábios puxando um dos cigarros.
Importa-se que eu fume? perguntou acendendo o isqueiro sem esperar pela resposta.
O carro é seu replicou Quinn abrindo uma fresta da janela.
Por mais sete meses. Acendeu o cigarro e encheu os pulmões de alcatrão e nicotina, contendo um ataque de tosse.
Cristo, parece que não sou capaz de me livrar desta maldita constipação.
Está um tempo asqueroso comentou Quinn mostrando simpatia. Ou cancro do pulmão.
O firmamento dava a impressão de se querer abater sobre Minneapolis como se fosse uma bigorna. Chuva e cerca de seis graus centígrados. Toda a vegetação estava como que adormecida ou tinha definhado, permanecendo sem alteração até à chegada da Primavera o que Quinn desconfiava encontrar-se deprimentemente longe naquela cidade. Pelo menos na Virgínia já se avistavam alguns sinais de vida por volta de Março.
Podia ser pior disse Walsh. Podia ser um raio de uma tempestade de neve. Aqui há uns anos tivemos uma tremenda por ocasião da Noite das Bruxas. Foi uma grande confusão. Nesse Inverno, devemos ter tido uma queda de neve que atingiu uma altura de cerca de três metros, que só desapareceu por completo em Maio. Odeio esta cidade.
Quinn não lhe perguntou por que motivo é que continuava a viver ali. Não estava na disposição de ouvir a litania habitual de queixas contra o Bureau, ou os queixumes comuns num homem que se sentia infeliz com o seu casamento por ter os sogros a viverem por perto, ou qualquer outra razão por que um indivíduo como Walsh odiava a sua vida. Ele também tinha os seus próprios problemas dos quais Vince Walsh também não queria ouvir falar.
Vince, não existe nenhum local chamado Utopia.
Sim, mas a verdade é que Scottsdale se aproxima bastante. Enquanto viver, nunca mais quero voltar a sentir frio. Em Junho, tenciono pôr-me a andar daqui para fora. Partir desta terra. Abandonar este trabalho onde ninguém reconhece os nossos méritos. Lançou a Quinn um olhar de desconfiança, como se tivesse concluído que ele era um bufo do FBI que se poria imediatamente ao telefone, falando com o agente especial administrativo logo que se encontrasse sozinho.
Esta profissão é capaz de desgastar qualquer pessoa replicou Quinn com uma expressão de comiseração.
As politiquices é que me deitam abaixo continuou, acertando em cheio num nervo em carne viva. O trabalho de campo afecta uma pessoa pelos dois extremos... as condições locais e o Bureau.
Isso é uma realidade. Quem me dera poder ter-me posto ao fresco ontem e de uma vez por todas. Este caso vai ser uma sucessão de tremendos pontapés no cu.
E isso já começou a acontecer?
Você está aqui, não é verdade?
Walsh pegou numa pasta de cartolina que fora colocada no assento entre os dois, entregando-a a Quinn.
Tem aqui as fotografias tiradas no local do crime. São capazes de deixar qualquer pessoa de rastos.
Quinn aceitou a pasta sem desviar o olhar dos olhos escuros de Walsh.
A minha presença aqui incomoda-o, Vince? perguntou sem estar com meias palavras, mas suavizando a pergunta com uma expressão que em parte se traduzia num sorriso que dizia «Estou do seu lado, compincha», e um sentimento de confusão que efectivamente não sentia. Já se tinha visto naquela situação inúmeras vezes, pelo que todas as reacções à sua entrada em cena eram possíveis: umas boas-vindas genuínas, as boas-vindas expressas com hipocrisia, irritação encoberta, hostilidade aberta. Walsh enquadrava-se na terceira hipótese, um homem que não teria hesitado em afirmar que dizia sempre exactamente aquilo que pensava.
Que diabo, nem pensar respondeu por fim. Caso não consigamos apanhar este monte de esterco o mais rapidamente possível, passaremos todos a andar de um lado para o outro com uns belos alvos desenhados nas costas. No que me diz respeito, não há problema nenhum em trabalhar com alguém que tenha uma posição hierárquica superior à minha.
O caso continua a ser seu. Eu só estou aqui para lhe dar todo o apoio que estiver ao meu alcance.
Engraçado. Eu disse precisamente isso ao tenente da secção de homicídios.
Quinn não fez qualquer comentário; em pensamento, não perdeu tempo em arquitectar uma estratégia de equipa Pelo andar das coisas, estava a parecer-lhe que teria de trabalhar à margem de Walsh, embora lhe parecesse pouco provável que o assessor do agente especial administrativo tivesse destacado para a investigação daquele caso alguém que não fosse extremamente competente. Se Peter Bondurant tinha poder para fazer com que pessoas de grande proeminência em Washington se mexessem, certamente que a gente local não quereria antagonizar o homem. A fazer fé nos faxes que lhe tinham chegado às mãos, Walsh tinha uma folha profissional sem nada a apontar e que abrangia um grande número de anos. Talvez mesmo uns quantos anos a mais, uns quantos casos a mais, uns quantos jogos de política a mais.
Quinn já delineara o quadro da situação política que iria encontrar naquela cidade. Os cadáveres já se cifravam em três número que ia ao encontro do padrão oficial para que se passasse a considerar que o homicida era um assassino em série. Em circunstâncias normais, naquela fase das averiguações, Quinn teria sido consultado por via telefónica se é que se dariam ao trabalho de o consultar. Os seus muitos anos de experiência profissional diziam-lhe que os agentes locais tentariam, regra geral, resolver por si sós aquele tipo de situação, pelo menos até começarem a ocorrer mais assassínios. Dado que ele estava com uma carga de trabalho de oitenta e cinco casos, via-se obrigado a estabelecer prioridades. Uma situação em que tivessem ocorrido três homicídios, só muito raramente é que faria com que viajasse. Tinha a impressão de que a sua presença física naquele local era absolutamente desnecessária o que agravava ainda mais a frustração e cansaço que sentia. Fechou os olhos por dois segundos, voltando a recolher os seus sentimentos.
O vosso Mister Bondurant tem amigos que ocupam cargos muito elevados disse Quinn. O que é que se passa com ele?
É o gorila característico que se impõe a toda a gente.
Tem uma empresa de informática... a Paragon; são-lhe adjudicados muitos contratos de companhias que se dedicam ao armamento. Tem andado para aí a ameaçar que tenciona mudar a sede das suas instalações para outro estado, o que faz com que o governador e todos os outros políticos formem fila para lhe lamber as botas. Diz-se para aí que ele vale mil milhões de dólares, ou mesmo mais.
Já lhe foi apresentado?
Não. Ele nem sequer se deu ao incómodo de passar pelos nossos escritórios para chegar até si. Ouvi dizer que foi directamente ao topo da escala hierárquica.
E numa questão de apenas algumas horas, o FBI colocara Quinn a bordo de um avião a caminho de Minneapolis. Ninguém estivera com considerações em seguir a forma habitual como os casos eram distribuídos por região. Também lhes tinha sido indiferente que os casos que ele tinha entre mãos fossem resolvidos ou não. Nada das habituais burocracias de trampa, que dificultavam muito as autorizações de viagens de serviço.
Mal-humorado, Quinn perguntou a si mesmo se Bondurant teria pedido especificamente que ele fosse incumbido do caso. Ao longo do último ano encarregara-se de casos que haviam alcançado grande notoriedade pública. Publicidade que não se devera em nada à sua vontade. A imprensa gostava da sua imagem. Enquadrava-se no perfil daquilo que, na óptica deles, deveria ser um agente especial da Unidade de Apoio à Investigação: tinha uma constituição atlética, queixo quadrado, pele trigueira e olhar penetrante. Ficava bem nas fotografias, bem como em televisão; George Clooney interpretaria bem a sua personagem. Havia dias em que essa imagem lhe era útil. Noutras ocasiões até achava que a situação era divertida. Mas, cada vez mais, era apenas uma grande maçada.
Ele não perdeu muito tempo prosseguiu Walsh. O corpo da rapariga ainda nem sequer arrefeceu. Até agora, não se tem a certeza absoluta de que seja a filha dele... dado que a cabeça desapareceu e tudo o mais. Mas você sabe como é que as coisas são com gente que tem muito dinheiro... Não perdem tempo. Não são obrigados a isso.
E com respeito à identificação da vítima; em que Ponto é que estamos?
Encontraram a carta de condução dela. Vão tentar tirar-lhe as impressões digitais, embora as mãos tenham ficado muito queimadas, a julgar pelo que me disseram. O médico legista pediu o historial clínico da Jillian Bondurant. Querem saber se ela tem algumas marcas que a identifiquem, ou ossos que tenha fracturado. Só assim é que conseguirão saber se o corpo é realmente o dela. Sabemos que é da mesma altura e constituição. Também sabemos que a Jillian Bondurant jantou com o pai na noite de sexta-feira. Saiu de casa dele por volta da meia-noite e desde então ninguém a viu.
E quanto ao carro dela?
Ainda não foi encontrado. A autópsia está marcada para esta noite. Talvez tenham sorte e sejam capazes de concluir que o conteúdo do estômago corresponde à refeição que partilhou com o pai nessa noite, mas tenho as minhas dúvidas. Para isso, ela teria de ter sido assassinada quase de imediato. Esse não é o modo de operar deste psicopata
«A conferência de imprensa está marcada para as cinco da tarde... não que os repórteres estejam à espera de mais notícias para trabalharem continuou Walsh. A notícia tem sido amplamente difundida por todos os meios de comunicação social. Até já deram uma alcunha ao monte de esterco: o Cremador. Apropriado, não lhe parece?
Informaram-me que estão a tentar estabelecer quaisquer correlações com alguns homicídios que tiveram lugar há dois anos. Já descobriram alguns paralelos?
Os assassínios no Parque Wirth. Não estabeleceram nenhuma relação, além de umas duas similaridades. Essas vítimas eram mulheres de raça negra... e um travesti de origem asiática que o assassino matou por engano. Prostitutas ou supostas prostitutas... e as duas primeiras vítimas deste fulano também eram mulheres da vida. Mas há sempre alguém que anda por aí a matar mulheres que se dedicam a essa actividade. São alvos fáceis. Essas vítimas de que lhe falei eram, na sua maioria, de raça negra, enquanto estas são brancas. O que, por si só, nos indica um homicida diferente... não lhe parece?
Sim, os assassinos em série que cometem crimes de natureza sexual têm tendência, de uma maneira geral, a cingirem-se ao seu próprio grupo étnico.
Seja como for, eles indiciaram alguém que acabou por ser sentenciado por esses dois assassínios no Parque Wirth, após o que arquivaram os outros casos. Apanharam o homicida, mas acontece que não dispunham de provas concretas em número suficiente para poderem levar os outros casos a tribunal. Além do mais, quantas penas de prisão perpétua é que um sujeito pode cumprir?
«Esta manhã falei com um dos fulanos dos homicídios acrescentou Walsh, esmagando a ponta do cigarro dentro do cinzeiro que não era despejado há muito tempo. Disse-me que não existe a mínima dúvida: este criminoso é definitivamente um monte de esterco diferente. Mas para lhe dizer a verdade, não tenho muito mais informações sobre estes homicídios do que você próprio. Até esta manhã, tudo o que eles possuíam limitava-se aos corpos das duas rameiras. Li a notícia nos jornais, tal como toda a gente. O que sei é que o outro tipo nunca cortou o pescoço de ninguém. O que é uma nova moda nesta pasmaceira.
Só então é que Walsh se apercebeu do jogo de palavras, emitindo um som abafado com um abanar de cabeça ao aperceber-se do humor negro.
Quinn observava a chuva e o dia cinzento pela janela do automóvel, as árvores mortas pelos rigores do Inverno, escuras e de aspecto sombrio, como se houvessem sido carbonizadas, e por uns momentos lamentou a má sorte das vítimas sem rosto e sem nome, cuja importância na ordem das coisas se resumia a merecerem uma etiqueta e nada mais. Enquanto vivas tinham sentido alegrias e tristezas. A caminho da morte, teriam experimentado terror e sofrimento. Todas haviam tido famílias e amigos que certamente chorariam as suas mortes e que sentiriam saudades da sua presença. Mas a imprensa e a sociedade, de uma maneira geral, tinham reduzido as suas vidas e mortes ao denominador comum mais baixo, à inferioridade máxima: duas prostitutas mortas. Quinn já tivera oportunidade de ver uma centena... e não se tinha esquecido de uma única que fosse.
Suspirando, esfregou os lóbulos frontais, numa tentativa para afastar a dor de cabeça, semelhante a uma moinha, que aí estabelecera residência semipermanente. Sentia-se
Trocadilho impossível de traduzir para português com a palavra pesCo (neck): «neck ofthe woods», literalmente, «pescoço dos bosques», expressão que significa «lugarejo, pasmaceira» (N da T)
demasiado exausto para pôr em prática o tipo de diplomacia necessária na primeira fase das investigações de qualquer caso. Era o género de cansaço que se entranhava na medula dos ossos e que lhe pesava que nem chumbo. Ao longo dos anos mais recentes, o número de cadáveres fora excessivo. Os seus nomes desfilavam-lhe pela mente à noite quando tentava conciliar o sono. A contagem de cadáveres, como ele chamava a esse exercício. Não se podia dizer que fosse o género de coisa que inspirasse bons sonhos.
Quer ir primeiro para o hotel ou ao escritório? perguntou Walsh.
Como se o que ele queria tivesse alguma coisa a ver com o assunto. O que Quinn desejava da vida há muito que se perdera, tendo saído do seu horizonte.
Tenho de ir ao local do crime respondeu abrindo a pasta que continha as fotografias, e que sentia tão pesada nos seus joelhos como se fosse uma chapa de aço. Preciso de ver o local onde ele a deixou.
Aquela área do parque tinha o aspecto de um acampamento depois de uma reunião de escuteiros entre os nove e os onze anos. O solo carbonizado onde a pira fora erguida, a fita amarela presa às árvores que servia para interditar a zona; as ervas secas todas espezinhadas, as folhas mortas calcadas contra o chão quais recortes molhados de papéis. Os copos amachucados de cartão por onde se bebera café, que haviam voado do caixote do lixo, colocado na berma do trilho alcatroado na encosta da colina, e que se espalhavam pelo solo.
Walsh estacionou o carro; os dois homens saíram para o caminho alcatroado. Num só olhar, Quinn abrangeu toda a extensão da área de norte a sul. O local do crime situava-se ligeiramente abaixo do sítio onde ambos se encontravam, numa depressão de terreno pouco funda e de contornos redondos, o que proporcionara ao assassino uma cobertura excelente. O parque tinha uma grande densidade de árvores, quer decíduas quer perenes. Pela calada da noite, aquele seria um pequeno mundo muito peculiar. As residências mais próximas vivendas bem cuidadas que pertenceriam a famílias da classe média ficavam bastante distantes do local do crime, enquanto para norte se avistavam os arranha-céus da baixa de Minneapolis a vários quilómetros de distância. Até mesmo o pequeno anexo dos serviços de manutenção do parque, onde os dois homens haviam estacionado ficava semioculto pelas árvores e por um maciço do que pareciam ser lilases, que na Primavera seriam maravilhosos depois de florescerem camuflagem que servia para ocultar o anexo da vista de quem passava, agora fechado à chave e os veículos do pessoal de manutenção que iam e vinham de acordo com as necessidades.
O seu «sujeito desconhecido» teria plausivelmente estacionado ali tendo transportado o corpo pela colina abaixo para a pequena cerimónia levada a cabo por ele. Quinn olhou para a lâmpada de vapor de sódio da luz de segurança que encimava o poste escurecido perto do anexo de manutenção. O vidro do candeeiro estava quebrado, embora não se vissem estilhaços pelo chão.
Sabemos há quanto tempo é que este candeeiro tem a lâmpada quebrada?
Vamos ter de perguntar aos agentes de polícia respondeu Walsh erguendo o olhar e pestanejando; fez caretas quando a chuva começou a cair-lhe no rosto.
Quinn apostaria talvez nuns dois dias. O que não era tempo suficiente para que os serviços do parque tivessem tido oportunidade de a arranjar. Se o estrago fosse obra do homem que procuravam, numa preparação para a sua visita da meia-noite... se ele tivesse ido ali antecipadamente com o fito de danificar a luz, tendo apanhado do chão os fragmentos de vidro para que o seu acto de vandalismo passasse despercebido, aumentando, consequentemente, as hipóteses de a lâmpada do candeeiro de rua não vir a ser substituída rapidamente... Se todas aquelas conjecturas correspondessem à verdade, encontrava-se perante alguém que pusera em prática um elevado grau de planeamento e premeditação. Assim como experiência. O modo de operar era um comportamento de aprendizagem. Qualquer criminoso aprendia com os erros e experiências do passado, o que fazer e o que não fazer na execução dos seus actos criminosos. Ia aperfeiçoando os seus métodos com o tempo e prática.
Ignorando a chuva que caía implacavelmente sobre a sua cabeça desprotegida, Quinn curvou os ombros envolto na sua gabardina de corte militar, começando a descer a encosta da colina, consciente de que o assassino teria percorrido o mesmo caminho com o corpo da sua vítima nos braços. Era uma distância razoável, aproximadamente uns cinquenta ou sessenta metros. A brigada pericial de recolha de provas que estivera no local do crime saberia qual a distância exacta. Era preciso força física para transportar um peso morto ao longo desse caminho. A hora da morte teria determinado a forma como ele transportara a vítima. A maneira mais fácil teria sido colocá-la sobre o ombro caso a rigidez da morte ainda não se fizesse sentir, ou na hipótese de esse estado já ter surgido e desaparecido. Se de facto tivesse tido possibilidades de a levar ao ombro, isso significava que a sua estatura poderia variar ainda mais; qualquer homem baixo poderia levar essa tarefa a cabo. Mas se tivesse sido forçado a levá-la nos braços, então teria de ter uma constituição mais robusta. A esperança de Quinn era que depois da autópsia passariam a ter mais informações.
Qual foi a área que a equipa de recolha de provas cobriu? perguntou; as palavras saíam-lhe da boca por entre uma baforada de vapor.
Walsh caminhava apressado três passos atrás dele, tossindo com o esforço.
Passaram toda esta zona do parque a pente fino, incluindo o parque de estacionamento e o anexo dos serviços de manutenção. Os tipos da secção de homicídios chamaram a sua própria gente da investigação pericial, assim como o laboratório móvel do Departamento de Perícia Criminal do Minnesota. Todos trabalharam meticulosamente.
Quando é que começou a chover?
Esta manhã.
Merda! resmungou Quinn. Ontem à noite... parece-lhe que o solo estaria endurecido ou macio?
Duro que nem uma pedra. Não conseguiram encontrar nenhuma pegada. Recolheram algum lixo... bocados de papel, beatas de cigarros, coisas do género. Mas que diabo, estamos num parque público. Os detritos que encontraram podem ter sido deixados por qualquer pessoa que aqui tenha estado.
Nos locais onde ocorreram os dois primeiros assassínios ficou alguma coisa digna de nota?
As cartas de condução das duas vítimas. Além disso, mais nada de que eu tenha conhecimento.
Quem é que está a proceder ao trabalho laboratorial?
O Departamento de Perícia Criminal. O laboratório deles é excelente.
Foi o que ouvi dizer.
Estão cientes de que podem contactar o laboratório do FBI se precisarem de clarificar alguma coisa mais complicada adiantou Quinn, colocando-se muito próximo do local onde o solo ficara carbonizado debaixo do corpo; uma tremenda sensação de opressão parecia apertar-lhe o peito, o que acontecia sempre que se aproximava do local onde ocorrera um crime de morte. Nunca tentara discernir se aquela sensação tinha alguma coisa a ver com misticismo ou romantismo, como uma noção fugidia que o levasse a pressentir a existência de algo demoníaco, ou algo de psicologicamente tão profundo como um sentimento de culpa desajustado. Era uma sensação que fazia parte do seu ser. Considerava que devia sentir-se agradecido, dado que num certo sentido era prova da sua humanidade. Depois de todos os cadáveres que tivera ocasião de ver, ainda não tinha ficado completamente empedernido.
Por outro lado, talvez tivesse sido preferível ter endurecido.
Pela primeira vez, Quinn abriu a pasta de cartolina que Walsh lhe dera, começando a examinar as fotografias que alguém tomara a precaução de proteger em invólucros de plástico transparente. O quadro que se lhe apresentava teria feito com que qualquer pessoa normal ficasse arrepiada. De maneira estratégica, haviam sido colocadas algumas lâmpadas de halogéneo perto do corpo, que iluminavam tanto a noite como o cadáver, emprestando às fotografias um cunho artístico até certo ponto aberrante. O que também se aplicava à carne carbonizada e à roupa desfeita em frangalhos que a mulher usara. Cor contra a ausência de cor; o imaginário vibrante de um triângulo intacto de saia vermelha, em paralelo com a realidade macabra da morte violenta da mulher que usara essa peça de vestuário.
As outras também estavam vestidas?
Não sei respondeu Walsh.
Mais tarde, também quero ver essas fotografias. Tenciono examinar todas as provas que foram recolhidas. Tem a minha lista?
Já enviei uma cópia por fax aos detectives da secção de^homicídios. Vão tentar coligir tudo o que têm para a reunião de trabalho. Uma cena dantesca, não acha? Walsh indicou uma das fotografias. É o suficiente para fazer que uma pessoa passe a detestar churrascos.
Continuando a examinar atentamente a fotografia, Quinn não ofereceu qualquer comentário. Devido ao calor do fogo, os músculos e os tendões dos membros da vítima tinham ficado contraídos, repuxando-lhe os braços e as pernas de maneira a que o corpo tivesse adquirido uma postura tecnicamente conhecida pelo termo «de pugilista» uma posição que sugeria locomoção motora. Uma sugestão que se tornava mais macabra pela ausência da cabeça.
Quinn pensou que aquela cena tinha aspectos surrealistas. O seu cérebro queria acreditar que observava um manequim que alguém tivesse deitado para o lixo, algo que fora retirado demasiado tarde da incineradora das lojas Macy’s Todavia, tinha bem a percepção de que aquilo que se encontrava defronte de si havia sido carne e ossos, e não matéria plástica, um ser que apenas três dias antes vivera e andara de um lado para o outro. Uma mulher que comera refeições, ouvira música, falara com os amigos, tratara das tarefas maçadoras que faziam parte da vida quotidiana, sem nunca imaginar que a sua estaria prestes a terminar.
O corpo fora posicionado com os pés apontados na direcção da baixa da cidade, pormenor que Quinn pensou poder ter tido mais significado se a cabeça também se encontrasse por perto, ou estivesse enterrada nas proximidades. Um dos casos mais perversos que tinha estudado, havia já alguns anos, relacionara-se com a decapitação de duas vítimas. O assassino, Ed Kemper, enterrara as cabeças no quintal das traseiras da casa onde vivia com a família, por baixo da janela do quarto da mãe. Uma brincadeira macabra do foro íntimo do homicida que, posteriormente, admitira isso mesmo. A mãe, que submetera o filho a maus tratos de ordem psicológica desde a infância, quisera sempre que «as pessoas elevassem o olhar até à sua pessoa», de acordo com as palavras dele.
A cabeça da vítima mais recente ainda não tinha sido encontrada, e o solo estava demasiado endurecido para que o assassino a tivesse enterrado no local do crime.
Existe um grande número de teorias sobre o motivo que o leva a incinerar as suas vítimas acrescentou Walsh. Balouçou-se um pouco sobre a parte dianteira da planta dos pés, tentando, sem grandes resultados, impedir que o frio se lhe entranhasse nos ossos. Há algumas pessoas que são da opinião de que ele se limita a imitar os assassínios que ocorreram no Parque Wirth. Alguns pensam que as suas acções se revestem de um certo simbolismo: «Putas do mundo haveis de perecer nas chamas do inferno...» Esse tipo de radicalismo. Há outros que acreditam que ele tenta encobrir as provas de natureza forense, assim como a identidade da vítima, tudo ao mesmo tempo.
Nesse caso, porque deixaria as cartas de condução junto dos cadáveres se, de acordo com essa teoria, não quer que sejam identificadas? perguntou Quinn. E agora decide fazer desaparecer a cabeça da última vítima. O que, como é evidente, dificulta bastante o processo de identificação... Não estou a ver qual a necessidade de lhes queimar o corpo. Mas, mesmo assim, deixa a carta de condução.
Por conseguinte, está convencido de que ele está a tentar eliminar quaisquer provas físicas?
Talvez sim. O que é que ele utilizou como catalisador?
Um tipo de álcool. Uma substância qualquer composta por vodca muito forte, ou algo no género.
Sendo assim, podemos concluir que o fogo é muito provavelmente um elemento que lhe serve de assinatura, um aspecto que terá menos a ver com o seu modo de operar acrescentou Quinn. De facto, até é muito possível que esteja a tentar descartar-se de qualquer prova física, mas, se é isso o que pretende, por que diabo é que não se serve de gasolina? Seria bastante mais barato, além de ser mais fácil obter sem a intervenção de outra pessoa. Ele opta pelo álcool por uma razão de carácter emocional, e não por motivos práticos.
Ou talvez ele beba muito alvitrou Walsh.
Não. Uma pessoa que goste de beber não desperdiça bebidas de boa qualidade. Ora é precisamente isso que ele chamaria a isto: um desperdício de boas bebidas. É muito plausível que beba antes de iniciar a caçada. Possivelmente beberá enquanto está a torturar as suas vítimas e na fase em que comete o assassínio. Mas não é um bêbedo. Uma pessoa embriagada, inevitavelmente, cometeria erros. Ao que tudo indica, este sujeito ainda não cometeu um único erro.
Pelo menos, nenhum que tivesse despertado a atenção de qualquer das pessoas que investigavam os casos. Quinn voltou a pensar nas duas prostitutas cujas mortes haviam precedido a da última mulher, perguntando a si mesmo quem é que teria sido incumbido dessas averiguações: um polícia competente ou um que o não fosse. Todas as forças policiais tinham o seu quinhão de ambos. Tivera oportunidade de ver agentes de polícia que se limitavam a um encolher de ombros de indiferença, dando a impressão de estarem num estado de sonambulismo durante os processos de investigação, caso lhes parecesse que a vítima em questão não era merecedora do seu tempo. Também vira polícias experimentados que se iam abaixo, chorando por causa da morte violenta de uma pessoa junto da qual a maior parte dos contribuintes do país não se sentaria num autocarro.
Fechou a pasta de cartolina. Os pingos de chuva caíam-lhe sobre a testa escorrendo-lhe pela ponta do nariz.
Não foi aqui que ele deixou as outras, pois não?
Não. O corpo de uma delas foi encontrado no Parque Minnehaha, e o outro no Parque Powderhorn. Cada um numa zona diferente da cidade.
Quinn teria de consultar mapas da cidade para se inteirar da localização de cada um dos locais em relação aos outros, além de ter de se informar quanto ao local em que os sequestros haviam ocorrido o que talvez lhe permitisse determinar um território de caça, em relação às zonas onde as vítimas teriam sido assassinadas e/ou largadas. A equipa que trabalhava na investigação criminal estaria de posse de mapas no seu centro de operações, os quais estariam afixados e assinalados com pequenas bandeiras vermelhas. Um modo de operar padronizado. Não era necessário fazer perguntas quanto a isso. A sua mente já estava completamente preenchida com mapas pontilhados de pequenos alfinetes com cabeças coloridas. Caçadas ao homem que tinham lugar como se fossem eventos desportivos disputados aos pares, centros de operações e gabinetes de crise em que todos tinham o mesmo cheiro e o mesmo aspecto, assim como polícias que tendiam a ter todos a mesma aparência, falando com as mesmas entoações, gente de onde emanava o mesmo cheiro a cigarros e a fragrância da mesma água-de-colónia ordinária. Quinn chegara a um ponto em que não era capaz de distinguir as cidades umas das outras, embora recordasse distintamente todas aquelas onde as vítimas tinham morrido.
A exaustão voltou a apoderar-se dele, só lhe apetecendo deitar-se ao comprido ali mesmo, na terra.
Lançou um olhar de relance a Walsh, na altura em que este sucumbia com outro ataque espasmódico de tosse e expectoração, de uma violência que lhe estremecia todo o corpo.
Vamo-nos embora disse Quinn. Por agora, já vi o que tinha a ver por aqui. Já vira o suficiente, ponto final. E contudo, precisou de alguns momentos para deslocar os pés, seguindo Vince Walsh até ao automóvel.
A tensão que pairava no gabinete da presidente da Câmara Municipal era elevada e cheia de electricidade. No ar sentia-se um empolgamento soturno, expectativa, ansiedade, poder latente. Existiam sempre aqueles para quem um assassínio era uma tragédia, a par de outros que, pelo contrário, achavam que era uma boa oportunidade de carreira. A hora seguinte destrinçaria uns dos outros, estabelecendo a ordem de poderes de cada uma das personalidades envolvidas. Enquanto a reunião durasse, Quinn teria de tentar estudar os presentes, trabalhá-los, decidir como é que se iria servir deles e enquadrá-los no lugar onde pertenciam no seu próprio esquema das coisas.
Endireitou as costas e ombros doridos, ergueu o queixo e fez a sua entrada. Chegara a hora de iniciar o espectáculo. As cabeças de todos os presentes voltaram-se imediatamente quando ele entrou na sala. Durante a viagem de avião aproveitara para memorizar os nomes de algumas das principais personagens que se encontravam ali, recolhendo os faxes chegados ao escritório antes de ter deixado o estado da Virgínia. Naquele momento, esforçou-se por recordar esses nomes, tentando diferenciá-los de centenas de outros que conhecera em centenas de outras salas de reunião por todo o país.
A presidente da Câmara Municipal de Minneapolis destacou-se dos demais quando o avistou, encaminhando-se para ele com determinação, arrastando consigo políticos de menos envergadura. Grace Noble assemelhava-se bastante a uma valquíria de ópera. Teria cinquenta e tal anos e era uma mulher corpulenta, senhora de uma constituição que trazia à mente um tronco de árvore, com uma cabeleira loura que se assemelhava a uma touca tesa com goma. Quase não possuía lábio superior, embora tivesse tido o cuidado de desenhar um que enchera com bâton vermelho que se coadunava com a cor do fato que usava.
Agente especial Quinn disse à guisa de saudação estendendo uma mão larga bastante enrugada, cujos dedos terminavam em unhas pintadas de vermelho. Tenho estado a ler as informações que recebi sobre a sua pessoa. Assim que o director do FBI nos informou da sua chegada, mandei a Cynthia à biblioteca pesquisar todos os artigos de jornais em que o senhor é mencionado.
Quinn brindou-a com o sorriso mais radiante que era capaz de esboçar confiante, atraente, encantador, mas com um traço inconfundível de inflexibilidade que se adivinhava facilmente.
Presidente Noble. Devo acautelá-la para que não acredite em tudo o que lê nos jornais, mas tenho de admitir que para mim é uma vantagem quando as pessoas pensam que consigo ler-lhes o que lhes vai pela mente.
Tenho a certeza de que não precisa de ler mentes para saber como estamos gratos por se encontrar nesta sala connosco.
Tenciono fazer tudo o que estiver ao meu alcance para vos ajudar. Disse que tinha falado com o director?
Grace Noble deu-lhe uma palmadinha amigável no braço. Numa atitude maternal.
Não, meu querido. Quem falou com ele foi o Peter. OPeter Bondurant. Acontece que são velhos amigos.
Mister Bondurant está aqui?
Não. Não se encontra em condições de enfrentar a imprensa. Pelo menos para já. Quando ainda não se sabe... Os ombros dela descaíram momentaneamente, como que esmagados pelo peso daquela situação trágica. Meu Deus, nem quero pensar no que isto lhe fará se de facto for a Jillie...
Entretanto, um afro-americano de estatura baixa, com a constituição física de um halterofilista, que usava um fato cinzento feito por medida, colocou-se ao lado dela mantendo os olhos fixos em Quinn.
Dick Greer, comandante da polícia apresentou-se. muito expedito, estendendo a mão. Estou muito satisfeito por o termos a bordo, John. Estamos prontos para apanharmos esse pervertido.
Como se ele viesse a ter alguma coisa a ver com o assunto. Em qualquer departamento da polícia metropolitana, o comandante da força policial era um administrador, além de político, um porta-voz e um homem de ideias. Muito plausivelmente, os efectivos diriam que o comandante Greer nem sequer era capaz de encontrar a sua própria pixa numa sala às escuras.
Quinn ouvia a lista de nomes e títulos de cargos à medida que as apresentações eram feitas. Um assessor do comandante da polícia, um vice-presidente da Câmara, um assessor do promotor público, um director estadual dos serviços de protecção civil, dois secretários para a imprensa... resumindo, políticos a mais. Entre os presentes, também se contava o xerife de Hennepin County, um detective do gabinete deste, um agente especial administrativo do Departamento de Perícia Criminal do Minnesota, acompanhado de um dos seus agentes, o tenente da brigada de homicídios do departamento da polícia e representantes de três agências governamentais; todos formariam um grupo de trabalho.
Quinn dava um aperto de mão firme a todas as pessoas que lhe eram apresentadas, assumindo uma atitude bastante discreta. Os naturais do Midwest tendiam a ser gente reservada que não confiava nos de fora. Se estivesse mais a norte e a leste, teria mostrado uma atitude mais inflexível. Mas se por acaso se encontrasse na costa oeste, teria dado largas ao seu encanto, transformando-se na personificação da afabilidade e do espírito de cooperação. Havia que recorrer a cavalos diferentes para pistas diferentes, tal como o seu pai costumava dizer. E qual seria o verdadeiro John Quinn? Até mesmo ele próprio já não saberia responder a essa pergunta
É o meu marido, Edwyn Noble concluiu a presidente da Câmara dando as apresentações por terminadas
A minha presença aqui é de ordem profissional, agente Quinn explicou Edwyn Noble. Além de um bom amigo, o Peter Bondurant é um dos meus clientes.
A atenção de Quinn concentrou-se inteiramente no homem que tinha à sua frente. Com uma estatura de mais ou menos dois metros, Noble era todo articulações e tendões, o esqueleto exagerado de um homem com um sorriso perfeitamente rectilíneo e demasiado rasgado para o seu rosto. Tinha uma aparência ligeiramente mais jovem do que a mulher. Os cabelos grisalhos cingiam-se às entradas na região das fontes.
Mister Bondurant fez-se representar pelo seu advogado? perguntou Quinn.
De facto, eu sou o advogado do Peter Bondurant. Estou aqui em sua representação.
E por que motivo?
Ele sofreu um choque tremendo.
Estou certo que sim. Sabe se Mister Bondurant já apresentou o seu depoimento à polícia?
Noble inclinou-se para trás, sendo óbvio que a pergunta o tinha afectado fisicamente.
Um depoimento em relação a quê?
Quinn encolheu os ombros manifestando desinteresse.
O habitual. Quando é que viu a filha pela última vez. Qual era o estado de espírito dela na altura. Que tipo de relacionamento é que pai e filha mantinham.
Os malares elevados e salientes do advogado coraram.
Por acaso está a sugerir que Mister Bondurant seja suspeito da morte da própria filha? perguntou ele num timbre de voz ríspido e baixo, abrangendo toda a sala num olhar para se certificar de que não havia ouvidos indiscretos por perto.
De maneira nenhuma replicou Quinn com uma expressão de grande inocência. Lamento que me tenha interpretado mal. Precisamos de ter todas as peças deste quebra-cabeças, a fim de podermos ter uma imagem clara da situação, mais nada. Certamente que compreenderá o que quero dizer.
Noble não ocultava o constrangimento que sentia.
A experiência de Quinn lembrava-lhe que os progenitores de vítimas de assassínios tinham tendência para acampar nas instalações da polícia, exigindo respostas e sempre a obstruir os movimentos dos detectives. Depois da descrição que Walsh lhe fizera de Bondurant, Quinn esperava ter visto um homem que não hesitasse em exercer a sua influência na Câmara Municipal, como um touro enfurecido. Mas Peter Bondurant tinha optado por recorrer ao director do FBI, após o que ligara para o seu advogado e decidira ficar em casa.
Nos Estados Unidos, as forças policiais metropolitanas estão sob a lei das autoridades municipais (N da T)
O Peter Bondurant é um dos homens com mais carácter que conheço declarou Noble.
Tenho a certeza de que o agente especial Quinn não teve a intenção de insinuar outra coisa, Edwyn disse a presidente da Câmara pousando a mão no braço do marido
Todavia, a atenção do advogado continuava concentrada em Quinn.
Garantiram ao Peter que você era o melhor homem para esta tarefa.
Sem falsas modéstias, admito que sou muito competente no meu trabalho, doutor Noble replicou Quinn. Uma das razões por que desempenho eficientemente as minhas funções deve-se ao facto de não ter receio de as desempenhar. Tenho a certeza de que Mister Bondurant se sentirá satisfeito ao ouvir isto.
Quinn deixou o assunto por ali. Não desejava fazer inimigos entre a gente de Bondurant. Se ofendesse um homem como Bondurant ver-se-ia chamado à pedra perante o Gabinete de Responsabilidade Profissional do FBI... no mínimo dos mínimos. Por outro lado, depois de Peter Bondurant ter feito sentir que o manteria pela trela como se fosse um cãozinho, queria deixar bem claro que se recusava a permitir que alguém o manipulasse.
Meus senhores, estamos a ficar com pouco tempo Sugiro que nos sentemos e iniciemos a reunião anunciou a presidente da Câmara, juntando os homens e conduzindo-os em direcção à mesa de conferências, como se fosse uma professora da primeira classe a reunir um grupo de garotinhos.
Mantendo-se à cabeceira, enquanto os outros se sentavam em redor da mesa, Grace Noble preparava-se para falar quando a porta se abriu novamente, dando entrada a mais quatro pessoas.
Ted, estávamos quase a começar sem si. A face de uma lividez pastosa da presidente da Câmara enrugou-se numa expressão de reprovação por aquela falta de pontualidade.
Esbarrámos com algumas dificuldades justifícou-se Sabin caminhando numa passada larga e atravessando a sala em direcção a Quinn. Agente especial Quinn, permita que me apresente: Ted Sabin, promotor público de Hennepin Country. Tenho muito prazer em conhecê-lo.
Em movimentos pouco firmes, Quinn levantou-se da cadeira. O seu olhar focou-se num ponto atrás do ombro do homem, concentrando-se numa mulher que vinha atrás dele com mostras de alguma relutância. Tartamudeou uma réplica adequada às palavras de Sabin, trocando um aperto de mão com o homem. Também foi abordado por um detective da polícia com bigode que se apresentou. Era Kovac. O nome trouxe-lhe qualquer coisa à recordação. O fulano gorducho que o acompanhava disse algo a respeito de ter ouvido um discurso de Quinn algures.
... e esta é Kate Conlan que trabalha no nosso programa de apoio às vítimas e testemunhas disse Sabin.
Pode...
Já nos conhecemos disseram ambos em uníssono. Kate olhou Quinn bem de frente durante uma fracção de segundos porque lhe pareceu importante fazê-lo, dar-lhe a saber que o reconhecera, que se dava conta da sua presença, mas sem manifestar qualquer outra reacção. Logo de seguida desviou o olhar, abafando a vontade enorme que sentia em suspirar, praguejar ou sair imediatamente da sala.
Não podia dizer que ficara surpreendida ao deparar-se-lhe. Existiam apenas dezoito agentes especiais que trabalhavam na Brigada para o Sequestro Infantil e Assassínio Múltiplo. De momento, Quinn era o rapaz do cartaz da BSIAM, e o homicídio de natureza sexual era a sua especialidade. A sorte não estivera do lado de Kate, transformando aquele dia numa merda. Que diabo, ela deveria ter estado à espera de o encontrar ali, na sala de reuniões da presidente da Câmara. Mas a realidade é que não contara com isso.
Já trabalharam juntos? perguntou Sabin, sem saber bem se devia sentir-se satisfeito ou decepcionado.
Durante um ou dois segundos reinou um silêncio feito de constrangimento. Kate deixou-se cair numa cadeira.
Bem... sim admitiu. Mas isso aconteceu há muito tempo.
Quinn olhou-a fixamente. Ninguém conseguia apanhá-lo de surpresa. Jamais. Passara toda a sua vida a cimentar esse nível de domínio sobre a sua pessoa. O facto de Kate Conlan ter transposto aquela porta, tendo o poder para fazer oscilar o chão que ele pisava depois de ter passado tanto temPO, era algo que não lhe assentava bem. Quinn baixou a cabeça aclarando a garganta.
Sim. As pessoas sentem a tua falta, Kate. Quem, apeteceu-lhe perguntar, mas limitou-se a dizer-
Duvido muito. O Bureau é como o Exército chinês, os efectivos poderiam marchar pelo mar adentro durante um ano, continuando a haver um número suficiente de corpos quentes para preencher as vagas.
Sem se aperceber do mal-estar que reinava na outra extremidade da mesa, a presidente da Câmara deu início aos trabalhos. Faltava menos de uma hora para o começo da conferência de imprensa. Os políticos precisavam de afinar todos pelo mesmo diapasão. Tinham de decidir quem é que falaria em primeiro lugar. Onde é que cada um se colocaria Quem diria o quê. Os polícias cofiavam os bigodes, tamborilando impacientemente sobre o tampo da mesa, fartos daquelas formalidades.
É necessário que façamos declarações com um impacto muito forte dizia o comandante Greer, aquecendo a sua voz de orador. Temos de dar a saber a esse pervertido que não descansaremos até conseguirmos apanhá-lo. Ele tem de tomar conhecimento, desde o princípio, que temos connosco o melhor especialista do FBI em perfis psicológicos, além de podermos contar com a conjugação dos recursos de quatro departamentos governamentais que estão a trabalhar neste caso dia e noite.
Edwyn Noble fez um acenar de cabeça num gesto de assentimento.
Mister Bondurant decidiu oferecer uma recompensa de cento e cinquenta mil dólares a quem der informações que conduzam à detenção do criminoso.
Na verdade, senhor comandante começou Qinn levantando-se da cadeira e desviando a sua atenção até então concentrada em Kate, para já, eu não aconselharia nenhuma dessas medidas.
As feições de Greer contraíram-se. Edwyn Noble lançou um olhar furioso ao agente especial. A expressão colectiva que se via nos rostos dos políticos sentados à outra cabeceira da mesa era de reprovação.
Ainda não tive oportunidade de estudar aprofundadamente este caso continuou Quinn, o que para mim é razão que baste para que se proceda com cautela. Primeiro devemos ter uma noção de quem este assassino possa ser, conhecer os mecanismos de raciocínio da sua mente. Nesta fase das investigações, qualquer demonstração aleatória de força poderá provar ser uma medida na direcção que menos nos convém.
E o que está a dizer-nos terá por base o quê? perguntou Greer, com os seus ombros entroncados contraídos sob o peso de uma atitude de desafio. Foi você mesmo quem disse que o caso ainda não tinha sido examinado ao pormenor.
Temos um assassino que anda a encenar um espectáculo. Já vi as fotografias que foram tiradas no local onde a vítima do último crime foi encontrada. Ele levou o corpo para um lugar público, com a intenção óbvia de chocar. Chamou a atenção para o local incinerando o cadáver. Esta maneira de agir significa provavelmente que ele quer a presença de uma plateia, e, se for isso o que ele de facto pretende, temos de ter cuidado quanto à maneira como satisfaremos os seus desejos.
«O meu conselho é que por hoje não tomemos nenhuma iniciativa. Devemos minimizar o impacto da conferência de imprensa. Assegurar ao público que estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance para identificar e deter o homicida, se bem que não devamos entrar em pormenores. Reduzir o número de pessoas que têm assento à mesa da conferência de imprensa, ao comandante Greer, a Mistress Noble, à presidente da Câmara, a Mister Sabin e mais ninguém. Não devemos entrar em minúcias quanto à composição do grupo de trabalho. Também é preferível que não se aluda ao nome de Mister Bondurant, a exemplo do que se deve fazer em relação ao FBI. Tão-pouco se deve mencionar o meu nome. E, para concluir, não devem responder a quaisquer perguntas.
Como seria de prever, os sobrolhos soergueram-se em redor de toda a mesa. A experiência dizia a Quinn que alguns dos presentes tinham esperado que ele procurasse ter uma posição de destaque: o fanfarrão-mor do FBI que chegava para açambarcar os cabeçalhos de todos os jornais, k, sem dúvida alguma, alguns deles queriam exibi-lo, qual trofeu, na conferência de imprensa. Vejam quem temos do nosso lado: É o Superagente. Ninguém esperara que ele se relegasse para um plano secundário. Nesta fase do jogo não queremos dar origem a uma situação de antagonismo, em que ele me veja como sendo um desafio directo que lhe é lançado acrescentou Quinn, levando as mãos à cintura, como se estivesse a preparar-se para a inevitável controvérsia que as suas palavras suscitavam. Tenciono manter-me num plano secundário enquanto me for possível. O meu intuito é não dar muito nas vistas no tocante aos meios de comunicação social, durante tanto tempo quanto me for permitido, ou até considerar vantajoso fazer o contrário.
Os políticos pareceram ter ficado cabisbaixos. Nada lhes agradava mais do que um fórum público e toda a atenção dos meios de comunicação social, consequentemente, a atenção das massas. Era óbvio que Greer ficara abespinhado por o terem impedido de brilhar numa situação de protagonismo. Os músculos das mandíbulas contraíam-se quase impercepti velmente.
As pessoas desta cidade estão prestes a entrar num estado de pânico adiantou o comandante da polícia. Temos três mulheres mortas, uma delas foi decapitada. Os telefones no meu gabinete não param de tocar. É imprescindível elaborar um comunicado para a imprensa. As pessoas precisam de saber que andamos em perseguição deste animal utilizando todos os nossos recursos.
Sinto-me inclinado a concordar com o Dick disse a presidente da Câmara com um acenar de assentimento. Não esqueçamos que temos congressos empresariais que se realizam na cidade, turistas que vêm aos teatros, aos concertos, fazem as suas compras de férias...
Para já não mencionar o grau de ansiedade que reina entre a população em geral, o que se deve ao Índice crescente de criminalidade que tem vindo a verificar-se na cidade acrescentou o assessor da presidente da Câmara.
A situação já era bastante grave devido ao assassínio das duas prostitutas, ocorrências que fizeram as primeiras páginas dos jornais interveio o secretário para a imprensa. E agora temos a morte da filha de um cidadão proeminente. As pessoas começam a pensar que, se foi possível acontecer uma coisa destas a alguém como ela, então, poderá acontecer a qualquer um. As notícias deste género dão origem a uma atmosfera de medo.
Se fizerem com que este fulano adquira um sentido de importância e poder, podem crer que esta cidade terá razões de sobejo para ficar em pânico afirmou Quinn sem estar com rodeios.
Mas, por outro lado, não lhe parece que ao minimizarmos o caso junto dos meios de comunicação social faremos com que ele se sinta enraivecido? questionou Greer. Como é que sabe que se optarmos por uma ofensiva forte e pública não o assustaremos, fazendo com que cometa um deslize que o ponha a descoberto?
Não lhe posso responder. Não sei qual será a reacção deste indivíduo... tal como você também não sabe. Precisamos de tempo para tentar aclarar esses pontos. Tanto quanto sabemos, ele já assassinou três pessoas, e cada vez se mostra mais arrojado e mais bombástico. Posso dizer-vos desde já que não se assusta com facilidade. É possível que eventualmente sejamos capazes de o atrair às nossas investigações... podemos ter a certeza de que observa os nossos movimentos, mas precisamos de manter um controlo apertado, ao mesmo tempo que as nossas opções devem continuar em aberto. Quinn voltou-se para Édwyn Noble. Além do mais, o montante da recompensa é excessivo. O meu conselho é que seja reduzido para não mais de cinquenta mil dólares, isto para começar.
Com todo o respeito que o senhor me merece, agente Quinn retorquiu o advogado tenso, essa é uma decisão que cabe inteiramente a Mister Bondurant.
Sim, de facto assim é, e estou seguro de que ele sente que qualquer informação a respeito do assassino da filha vale qualquer preço. O meu raciocínio faz-se da seguinte maneira, doutor Noble: As pessoas apresentar-se-ão por muito menos dinheiro do que os cento e cinquenta mil dólares. Um montante tão exorbitante atrairá um grande número de tarados e oportunistas com sede de dinheiro, gente que está disposta a vender as próprias mães no mercado. Ele que comece por cinquenta mil. É provável que numa fase posterior, por razões de estratégia, venhamos a querer aumentar o montante em jogo.
Noble respirou fundo, um suspiro medido, afastando a cadeira para trás.
. Vou ter de falar com o Peter a esse respeito. Endireitou o corpo alongado antes de atravessar a sala, dirigindo-se para uma mesa encostada à parede onde havia um telefone.
Tenho a impressão de que todos os repórteres do país estão presentes nas Twin Cities, acampados na escadaria do edifício da Câmara Municipal realçou a presidente da Câmara. Mantêm-se na expectativa de lhes ser oferecido mais do que um simples comunicado.
Isso é problema deles redarguiu Quinn. Terá de pensar neles como sendo instrumentos de informação e não convidados da cidade. Eles não têm direito a quaisquer pormenores relativos a um processo de investigação em curso A senhora limitou-se a convocar uma conferência de imprensa sem lhes ter prometido nada.
A fisionomia da presidente da Câmara dava a entender o contrário. Quinn reforçou o aperto com que continha a impaciência que lhe punha os nervos em franja. Brinca aos diplomatas. Vai com calma. Não percas a cabeça. Jesus, como ele estava cansado daqueles jogos de diplomacia.
Prometeu-lhes mais alguma coisa? perguntou o agente especial.
Estávamos a contar ter um retrato-robô... começou Grace Noble, hesitante, depois de ter olhado para Sabin
Não se pode dizer que a nossa testemunha tenha sido um modelo de cooperação ripostou Sabin lançando a Kate um olhar de poucos amigos.
A nossa testemunha é uma garota assustada que teve o azar de ter visto o psicopata deitar fogo a um cadáver decapitado interveio Kate com rispidez. A última coisa que neste momento ela tem em mente é conciliar as suas prioridades... sir.
Ela conseguiu ver bem o rosto do assassino? perguntou Quinn.
Ela diz que o viu replicou Kate estendendo as mãos com a palma para cima. A miúda está cansada, tem medo, sente-se encolerizada... e tem todo o direito a isso, tendo em consideração o tratamento que lhe tem sido dispensado. Estes factores tendem a não incentivar um espírito de cooperação.
Sabin começou a preparar-se para refutar aquelas afirmações. Quinn cerceou-lhe os argumentos.
Resumindo e concluindo: não temos nenhum retrato-robô.
1 Literalmente, «Cidades Gémeas», termo que abrange Samt Paul Mmneapolis no estado do Minnesota (N da T)
Não temos nenhum retrato-robô secundou Kate.
Sendo assim, não se fala mais no assunto acrescentou Quinn virando-se para a presidente da Câmara. Terá de desviar a atenção dos repórteres para outro assunto. Dê-lhes uma fotografia da Jillian Bondurant e outra do automóvel dela. Peça-lhes que publiquem um apelo, indicando um número de telefone especial para onde as pessoas que a tenham visto, ou ao carro, desde sexta-feira à noite possam telefonar. Não diga nada com referência à testemunha. A sua primeira preocupação, no tocante a este assunto, terá de ser a maneira como as suas acções e reacções serão avaliadas pelo assassino, e não as ilações que os meios de comunicação possam tirar das suas palavras.
Agente Quinn... começou Grace Noble depois de ter respirado fundo.
Regra geral, não costumo intervir em nenhum caso de investigação numa fase tão prematura como esta interrompeu o interpelado, sentindo que estava a perder um pouco mais de paciência. Mas uma vez que estou aqui, quero fazer tudo o que estiver ao meu alcance, dando o meu contributo para que esta situação não se exacerbe, com vista a que a investigação se conclua de forma satisfatória e atempadamente. O que significa aconselhá-la em todas as estratégias de investigação «proactiva, assim como a melhor maneira de apresentar o caso junto da imprensa. Não é obrigada a dar-me ouvidos, mas devo acrescentar que estou a agir com base na minha experiência que, diga-se de passagem, não é pouca. O director do FBI, escolheu-me pessoalmente para trabalhar neste caso. Antes de fazer tábua rasa das minhas sugestões, talvez seja aconselhável avaliar o porquê desta escolha.
Kate observava Quinn quando este se afastou da mesa retrocedendo dois passos, dando aquela troca de palavras por encerrada, e virando-se de forma a que ela o visse apenas de perfil, fingindo que olhava através da janela. Uma ameaça implícita pouco perceptível. Quinn tinha acabado de afirmar a importância da sua pessoa, lançando-lhes o repto
Aportuguesamento, que daqui em diante será utilizado, da palavra mg esa proactive, que significa «agir em conformidade com experiências e conhecimentos anteriores em antecipação de problemas que possam surgir no futuro» (N da T)
para que a contestassem. Associara o director do FBI à sua tomada de posição e, indirectamente, lançara-lhes o desafio de o contestarem.
O mesmo Quinn de sempre. Kate conhecera-o bem, se é que alguma pessoa conseguia conhecer bem John Quinn. Era um manipulador de grande mestria. Era capaz de fazer a leitura de qualquer pessoa numa fracção de segundos, conseguindo mudar de cor como um camaleão. Manipulava tanto os adversários como os colegas com o mesmo brilhantismo de Mozart ao piano, fazendo com que tomassem o seu partido no decurso de uma discussão, recorrendo ao encanto, intimidação, astúcia ou ainda à força bruta da sua inteligência. Era um homem esperto, manhoso e implacável, consoante as exigências de uma determinada situação. Mas aquilo que ele realmente era, por detrás de todas aquelas fachadas de grande argúcia e estratégias implacáveis, constituía algo que Kate perguntava a si mesma se ele próprio saberia. Em tempos idos, ela tivera a veleidade de pensar que sabia.
Fisicamente, ele mudara ligeiramente ao longo dos últimos cinco anos. O cabelo farto e escuro estava salpicado de fios grisalhos, tendo adoptado um corte de estilo militar. Dava a impressão de estar mais magro, desgastado pelo trabalho. Sempre amante do vestuário de boa qualidade, usava um fato de corte italiano que devia ter custado bom dinheiro. Mas o casaco ficava-lhe um pouco folgado nos ombros largos, e as calças também lhe estavam um tudo-nada folgadas. No entanto, o aspecto denotava elegância ao invés de declínio na presença física. Os traços e ângulos das suas feições eram bastante acentuados. Abaixo dos olhos castanhos tinha olheiras profundas. Em seu redor pairava uma vibração de impaciência, o que a levava a perguntar-se se tal seria verdadeiro ou simulado para o momento.
Ora bem, Kate, o que é que pensa de tudo isto? perguntou Sabin virando-se subitamente para ela.
Eu...?
Você já trabalhou na mesma brigada do agente especial Quinn. Qual é a sua opinião?
Kate sentia os olhos de Quinn presos em si, a exemplo do olhar de todos os que se encontravam na sala.
Isso não tem relevância. Estou aqui apenas na capacidade de defensora dos interesses da testemunha. Nem sequer sei qual o motivo da minha presença nesta reunião. O John é que é o perito em...
Não atalhou o visado, ele tem toda a razão, Kate. Firmou as mãos sobre o tampo da mesa inclinando-se para ela; os seus olhos escuros pareciam carvões incandescentes. Kate imaginou que sentia na face o calor que irradiava daquele olhar. Tu fizeste parte do pessoal que trabalhou na antiga Unidade de Ciências Comportamentais. Tens mais experiência neste tipo de casos de investigação do que qualquer outra pessoa a esta mesa, com excepção da minha pessoa. Qual é a tua opinião?
Kate olhou-o com fixidez, sabendo de antemão que os seus olhos espelhariam inequivocamente o ressentimento que sentia. Já era suficientemente mau que Sabin tivesse feito dela o centro das atenções, mas o facto de Quinn ter adoptado o mesmo procedimento parecia-lhe ser uma traição. Todavia, por outro lado, por que razão se sentiria ela surpreendida com essa atitude, uma vez que seria de esperar?
Com relação a este caso, não tenho fundamentos que me permitam formar uma opinião abalizada começou Kate, sem deixar adivinhar qualquer emoção. No entanto, conheço bem as qualificações e especialização profissional do agente especial Quinn. Em termos pessoais, creio que estariam a laborar em erro caso não seguissem os seus conselhos.
Quinn fitou a presidente da Câmara e o comandante da polícia.
Não se pode remediar um mal que está feito continuou ela numa voz serena. Se agora dermos informações a mais, não será possível desfazer posteriormente o que está feito. Caso haja necessidade, amanhã mesmo poder-se-á convocar outra conferência de imprensa. Acho que devemos dar à força de trabalho a oportunidade de reunir todos os seus recursos, proporcionando-lhe à partida uma boa base de trabalho.
Edwyn Noble terminou o seu telefonema, aproximando-se da mesa com uma expressão solene.Bondurant diz que fará o que o agente especial Kinn sugerir. Vamos estabelecer a recompensa em cinquenta mil dólares.
A reunião foi dada por encerrada às dezasseis e quarenta e oito minutos. Os políticos dirigiram-se para o gabinete da presidente da Câmara, a fim de tratar dos últimos preparativos antes da conferência de imprensa. Os membros das forças policiais reuniram-se em grupo no extremo mais afastado da sala de reuniões, discutindo a melhor maneira de organizar o grupo de trabalho.
O Sabin não está nada satisfeito com a tua actuação Kate disse Rob num tom confidencial, como se todos os que se encontravam na sala estivessem interessados no que tinha a dizer.
A isso só teria a dizer que o Ted Sabin podia beijar-me o cu, se não soubesse que ele se poria de joelhos enquanto o diabo esfrega um olho.
Kate... exclamou Rob, escandalizado, corando e franzindo o cenho.
Foi ele que me arrastou para este assunto, portanto, terá de se haver com as consequências atalhou Kate encaminhando-se para a porta. Vou ver como é que a Angie está. Talvez ela tenha encontrado alguma coisa de interesse no arquivo fotográfico. Tencionas assistir à conferência de imprensa?
Tenciono.
Esplêndido. Poderia trabalhar a sua testemunha enquanto os outros estavam ocupados noutro lugar. O local onde alojar a rapariga era de momento o problema mais premente De acordo com os regulamentos, devia ficar restrita a um estabelecimento para adolescentes, mas ainda lhes faltava provar que ela fosse uma adolescente.
Portanto, tu já trabalhaste com o Quinn dizia Rob continuando a falar numa voz de conspiração, seguindo-a a caminho da porta. Em tempos, tive oportunidade de o ouvir falar numa conferência. Ele é um homem impressionante. Acredito que a importância que ele dá ao tema da vitima é de uma grande actualidade.
Esse termo ajusta-se que nem uma luva à personalidade do John concordou Kate. Impressionante é o seu segundo nome.
Do outro lado da sala, Quinn abandonou a conversa que travava com o tenente da secção de homicídios, olhando para ela, como se dentro de si houvesse um radar que tivesse apanhado o comentário de Kate. No mesmo instante, o pa’ ger de Rob Marshall começou a tocar; pediu licença para ’ telefonar, dando a impressão de se sentir decepcionado por perder aquela oportunidade de voltar a falar com Quinn. Quanto a Kate, esta não desejava essa oportunidade. Virou costas recomeçando a encaminhar-se para a porta quando Quinn se aproximou dela.
Kate!
Ela fitou-o com um olhar feroz, afastando o braço com brusquidão quando ele fez menção de a agarrar.
Quero agradecer-te a ajuda que me deste disse Quinn numa voz suave, inclinando a cabeça de lado de uma maneira que lhe emprestava sempre uma aparência arrapazada, com uma expressão contrita, quando nenhuma daquelas facetas correspondia à sua personalidade.
Sim, sim. E amanhã posso ir à pesca quando tu marchares por aqui dentro, para lhes dizeres que desafiem o filho da puta a fim de poderes encurralá-lo?
Não sei o que é que queres dizer com isso, Kate retorquiu Quinn com uma expressão de inocência. Sabes tão bem como eu até que ponto é que é importante ser-se «proactivo» numa situação com estas características... quando a altura é a mais adequada.
Desejava perguntar-lhe se ele estava a referir-se ao assassino ou aos políticos, mas conteve-se. As teorias da «proactividade» de Quinn alargavam-se a todos os aspectos da sua vida.
Não te ponhas com os teus pequenos jogos psicológicos comigo, John murmurou ela com amargura. Não tive a intenção de te ajudar. Não te ofereci nada. Foste tu que te apossaste, o que não me agrada em nada. Tu pensas que podes manipular as pessoas a teu bel-prazer, como se fossem peões num tabuleiro de xadrez.
O fim justifica os meios.
Para ti, sempre, não é verdade? Sabes bem que a razão estava do meu lado.. Engraçado, mas isso não faz com que aos meus olhos sejas menos mentecapto do que penso que és. Kate deu um passo atrás na direcção da porta. Peço desculpa, mas o trabalho espera-me. Se quiseres continuar com os teus joguinhos de poder, agradeço-te muito que me deixes de fora do teu plano de jogos.
Também fico muito satisfeito por te ter visto, Kate murmurou Quinn ironicamente enquanto ela se afastava, com os seus cabelos de um louro-avermelhado agitando-se suavemente à largura das costas
Só posteriormente é que Qimn teve a percepção de ter visto uma equimose com mau aspecto numa das faces de Kate e um corte num dos lábios. Tinha-a visto como sempre se recordava dela, como a mulher de um ex-amigo, a única mulher que ele amara verdadeiramente
Depara-se-lhe uma grande multidão. As Twin Cities estão a abarrotar com repórteres de dois diários de grande tiragem, meia dúzia de estações de televisão e representantes de várias estações de rádio, um número excessivo de membros dos meios de comunicação social para que alguém pudesse manter-se a par das respectivas identidades. Para não mencionar que a história atraíra ainda mais jornalistas vindos de outras localidades.
Ele prendeu a atenção de todos. Deleita-se com a sensação de poder que aquilo lhe proporciona. Mas são os sons que o excitam muito em particular a urgência que adivinha nas vozes, as vozes encolerizadas, os pés que se arrastam, as câmaras de filmar com motores eléctricos.
Só desejou não ter esperado tanto tempo para se apresentar em público. Os seus primeiros assassínios eram um assunto do seu foro pessoal, ocultos, muito espaçados quer em termos de tempo quer de distância entre si, em que os corpos haviam sido enterrados em sepulturas pouco profundas. Aquilo era muito melhor.
Os repórteres procuravam arranjar boas posições. Os operadores de vídeo e os fotógrafos delimitavam o perímetro daquele aglomerado de gente. As luzes artificiais, de uma intensidade capaz de cegar, imprimiam ao cenário uma luminescência esbranquiçada que parecia extraída de um outro mundo. Ele mantém-se logo atrás do agrupamento de profissionais dos meios de comunicação social, próximo de outros espectadores, apanhado na margem das manchetes.
A presidente da Câmara sobe ao estrado. A porta-voz da Comunidade está a expressar o sentimento de ultraje que reflecte a moral colectiva, falando contra os actos de violência sem o mínimo sentido. Os paus-mandados do gabinete do promotor público, os comentários da presidente da Câmara e as promessas de castigo. O comandante da polícia anuncia a formação de um grupo de trabalho.
Não respondem a perguntas, apesar de os repórteres se insurgirem, exigindo a confirmação da identidade da última vítima, querendo saber todos os pormenores mais macabros do assassínio, quais abutres babados perante a oportunidade de depenicarem a carniça da carcaça depois de o predador se ter banqueteado. Davam a impressão de ladrar as perguntas, gritando a palavra decapitação. Correm rumores da existência de uma testemunha.
A ideia de alguém poder ter observado a intimidade dos seus actos deixa-o excitado. Acredita que qualquer testemunha das suas acções ter-se-ia sentido sexualmente estimulada em face desses mesmos actos, tal como acontecia com ele próprio. Uma excitação sexual para além de qualquer grau de compreensão, tal como lhe acontecera em criança quando era fechado num armário, ouvindo a mãe ter relações sexuais com homens que ele não conhecia. Um estímulo sexual que, instintivamente, ele sabia ser proibido, mas que todavia era irreprimível.
Perguntas e mais perguntas por parte dos meios de comunicação social.
Observa John Quinn que se havia colocado de lado junto de um grupo de polícias, sentindo-se invadido por uma vaga de orgulho. Está familiarizado com a reputação de que Quinn goza, conhece as suas teorias. Já o vira na televisão, tendo lido artigos a seu respeito. O FBI enviara o que tinha de melhor para descobrir o rasto do Cremador.
Quer que o agente especial vá para o estrado, deseja ouvir a sua voz e conhecer os seus pensamentos, mas Quinn não faz qualquer movimento. Os repórteres dão a impressão de não o terem reconhecido; mantém-se à margem, fora da luz dos projectores. Pouco depois, as personagens principais começam a abandonar o estrado, escoltadas por agentes de polícia em uniforme. A conferência de imprensa terminou
O peso da desilusão abate-se sobre ele. Tinha esperado mais, quisera mais qualquer coisa. Precisa de algo mais. Havia previsto que eles necessitariam de mais qualquer coisa
Com um baque, apercebe-se de que tem estado à espera para reagir, tem a noção de que por escassos momentos permitiu que os seus sentimentos dependessem das decisões de outros. Um comportamento inaceitável. Ele é «proactivo», e nunca reactivo.
Os repórteres desistem caminhando apressadamente em direcção às portas. Têm de escrever as suas reportagens, de recorrer às suas fontes de informação. A pequena multidão que o rodeia começa a dispersar. Desloca-se com as pessoas, um rosto entre muitos.
Vamos, miúda. Vamos pôr-nos daqui para fora.
Angie ergueu o olhar que mantivera nos álbuns de fotografias sobre a mesa, mostrando-se cansada, com o cabelo emaranhado a ocultar-lhe metade do rosto. O seu olhar foi de Kate a Liska enquanto se levantava da cadeira, como se esperasse que a detective sacasse da sua arma impedindo que ela escapasse. A atenção de Liska focava-se em Kate.
Tem autorização para a levar? Onde é que está o Kovac?
Kate olhou Angie bem de frente.
Sim... Hum, o Kovac está a falar com o tenente, ambos estão na conferência de imprensa. Estão a tratar da formação do grupo de trabalho.
Eu quero fazer parte desse grupo retorquiu Liska com determinação.
E deve querer. Um caso como este faz carreiras. «E também as desfaz», pensou Kate para consigo, perguntando a si mesma que tipo de problemas é que estaria a arranjar para si própria, levando Angie DiMarco sem mais nem menos... até que ponto é que estaria a pôr Liska em xeque.
O fim justifica os meios. Pensou em Quinn. Pelo menos, o seu objectivo era nobre, e não uma manipulação que só aproveitava o manipulador.
Racionalização: a chave para uma consciência limpa. AS câmaras já começaram a filmar? - perguntou Liska
Neste preciso momento respondeu Kate que observava pelo canto do olho a sua testemunha a palmar um isqueiro Bic que alguém deixara por descuido em cima da mesa, enfiando-o furtivamente na algibeira do blusão de ganga. Deus lhe valesse. Além de ser uma garota, também era uma cleptomaníaca. Parece-me que esta é uma boa ocasião para me pôr a andar.
Fuja enquanto pode aconselhou Liska. Você hoje constitui um bónus a dobrar. Ouvi o seu nome mencionado em associação com um determinado acto de loucura heróica, que teve lugar no centro governamental esta manhã. Se a malta das notícias não a apanhar por uma coisa, apanhá-la-ão por outra.
A minha vida é uma excitação que nunca acaba.
Para onde é que tenciona levar-me? perguntou Angie num tom de exigência quando se aproximavam da porta, colocando a correia da mochila por cima do ombro
Vamos jantar. Estou esfaimada, e quanto a ti, eu diria que há já algum tempo que andas a passar fome.
Mas o seu chefe disse...
Ele que se vá lixar. O meu maior desejo era que alguém fechasse o Ted Sabin à chave numa sala, deixando-o lá durante um dia ou dois. Talvez depois disso ele começasse a criar um pouco de empatia com as pessoas. Vamos embora.
Angie lançou um último olhar a Liska, saindo apressadamente porta fora com a sua mochila ao ombro, seguindo no encalço de Kate.
Você vai ter problemas por causa de mim?
E tu importas-te se for esse o caso?
Se você for despedida, o problema não é meu.
Assim é que é. Ouve uma coisa... Temos de ir até lá acima, ao meu gabinete. Se alguém nos vir pelo caminho, faz-me um favor: finge que não estamos juntas. Não quero que os jornalistas somem dois mais dois, e tu não queres que eles saibam quem tu és. Acredita em mim com respeito a este assunto.
Acha que posso aparecer na Hard Copyl perguntou Angie com uma expressão matreira. Ouvi dizer que eles pagam.
Se tu lixares este assunto, em relação ao Sabin, podes crer que passarás a constar dos Mais Procurados da América. Isto é, se primeiro o nosso assassino em série local não te colocar à cabeça dos Mistérios por Resolver. Ainda que não dês ouvidos a mais nada do que eu te possa dizer, miuda, pelo menos ouve isto: Tu não queres aparecer na televisão, não queres ver a tua fotografia nas páginas dos jornais
Está a tentar assustar-me? perguntou Angie.
Limito-me a dizer-te como é que as coisas são ’ respondeu Kate quando começaram a percorrer a passagem subterrânea que as levaria ao centro governamental.
Kate afivelou a sua expressão de «não tentem foder-me a vida», caminhando tão depressa quanto lhe era possível, levando’ em linha de conta as dores e rigidez que sentia no corpo devido à sessão de luta greco-romana em que se envolvera nessa manhã, cujos efeitos começavam a fazer-se sentir em toda a sua extensão. O tempo estava a escassear. Se os políticos decidissem seguir os conselhos de John, e conseguissem de uma maneira ou de outra conter-se a si próprios, a conferência de imprensa terminaria dentro em pouco. Alguns dos repórteres haveriam de encurralar o comandante Greer, mas a maior parte acabaria por se dividir entre a presidente da Câmara e Ted Sabin, partindo do princípio de que teriam mais sorte com figuras eleitas directamente pelo município do que com um polícia. A qualquer momento, aquela passagem estaria apinhada de gente dos meios da comunicação social.
Se optassem por seguir Sabin até à passagem subterrânea, avistando-a por acaso, se alguém chamasse pelo seu nome ou apontasse para ela, e isso não passasse despercebido à matilha raivosa, o mais certo seria ficar entre a espada e a parede sob a metralha de perguntas a respeito do atirador que ela manietara no centro governamental. Mais cedo ou mais tarde, alguém haveria de dar o salto mental que a associaria aos rumores sobre a existência de uma testemunha do homicídio mais recente, e seria então que as últimas horas passariam a merecer honras, de pleno direito, nos anais dos dias mais merdosos de sempre. Uma entrada que seria inserida no terço mais inferior da lista, deduziu ela, deixando espaço mais que suficiente acima para a sucessão de dias ainda mais merdosos que sem dúvida se avizinhariam.
Contudo, hoje a sorte estava do seu lado. Só encontrou três pessoas que tentaram interceptá-la quando se dirigiam para o vigésimo segundo piso do edifício. Todos disseram piadas e fizeram comentários sobre as heroicidades de Kate nessa manhã. Livrou-se dessas pessoas, mostrando-lhes uma expressão de desagrado que acompanhava de um comentário e humor duvidoso, sem nunca se deter.
De que é que eles estão a falar? perguntou Angie quando saíram do elevador; a curiosidade sobrepusera-se à ^diferença que tentava aparentar.
Nada de especial.
Ele chamou-lhe «Exterminador». O que é que você fez? Matou alguém? A pergunta era acompanhada de uma expressão que era um misto de descrença e prudência, com uma pequena centelha de admiração, ainda que misturada com algum ressentimento.
Não foi nada tão dramático como isso. Não que eu hoje não me tenha sentido tentada a isso. Kate marcou o código no painel de segurança ao lado da ombreira da porta, ganhando acesso ao departamento de serviços jurídicos Abriu a porta do seu gabinete e com um gesto convidou Angie a entrar.
Não sei se sabe, mas não precisa de me levar a todo o lado onde tem de ir disse a rapariga deixando-se cair em cima da primeira cadeira que lhe apareceu à frente. Eu sei tomar conta de mim própria. Estamos num país livre e eu não sou nenhuma criminosa... nem nenhuma criança acrescentou um tanto tardiamente.
De momento, sugiro que nem sequer aludamos a esse assunto sugeriu Kate, passando uma vista de olhos pela sua correspondência por abrir. Estás bem a par da situação que estamos a viver, Angie. Precisas de um lugar seguro onde possas ficar.
Posso ficar em casa da minha amiga Michele...
Pensei que ela se chamava Molly.
Angie cerrou os lábios, que formaram uma linha recta, semicerrando os olhos.
Nem sequer tentes enganar-me com merdas dessas advertiu Kate, apesar de estar convencida de que não adiantaria grande coisa. Não existe nenhuma amiga, e tu não tens nenhum lugar onde possas ficar na vizinhança de Phillips. No entanto, tenho de admitir que foi uma boa tentativa teres escolhido uma das áreas mais degradadas da cidade. Quem é que afirmaria viver lá, caso isso não fosse verdade!
Está a chamar-me mentirosa?
Penso que já delineaste os teus próprios planos continuou Kate com muita calma, concentrando a sua atenção num memorando interno onde se lia: Falei com o Sabin. A testemunha deve ficar hospedada na Casa Phoenix R. M. Autorização. O velho Rob não tinha mencionado aquele assunto no gabinete da presidente da Câmara. A mensagem fora escrita pela recepcionista. Não indicava a hora a que havia sido feita. Provavelmente, essa decisão só fora tomada momentos antes do início da conferência de imprensa. Tantos subterfúgios da parte dele para nada. Pois bem...
Um plano de vida em que certamente te esforçarás por te manteres fora da prisão, ou de um estabelecimento para delinquentes juvenis prosseguiu Kate.
Eu não sou nenhuma...
Poupa-te.
Kate premiu o botão do atendedor de chamadas, começando a ouvir as vozes dos impacientes e dos desamparados que haviam tentado contactá-la durante a tarde. Repórteres que não queriam largar a heroína do tiroteio ocorrido no centro governamental. Premia o botão que fazia avançar a fita depois de ouvir as primeiras palavras de cada mensagem. Juntamente com os farejadores de notícias havia a variedade habitual de telefonemas. David Willis, a vítima por cujos interesses lhe cabia acautelar, um homem maçador ao máximo. Um coordenador de um grupo que se batia pelos direitos das vítimas. O marido de uma mulher que, alegadamente, fora atacada, apesar de o sexto sentido de Kate lhe dizer que aquilo era um embuste, que o casal andaria na mira de receber a indemnização de qualquer companhia de seguros. O cadastro do marido já registava uma sucessão de detenções por venda de pequenas porções de droga.
Kate... A voz roufenha de um homem que começou a ouvir no gravador fez com que se retraísse. Fala o Quinn... Hum... o John. Eu... estou alojado no Radisson.
Como se estivesse à espera que ela lhe telefonasse. Assim, sem mais nem menos.
Quem é esse? perguntou Angie. Um namorado?
Não... não respondeu Kate com alguma hesitação tentando recuperar a compostura. Vamos pôr-nos a andar daqui para fora. Estou cheia de fome.
Kate respirou fundo pondo-se de pé, sentindo que fora apanhada de surpresa, uma coisa que sempre se esforçara afincadamente para que nunca sucedesse. Outro agravo a acrescentar à longa lista que já tinha contra Quinn. Não podia permitir que ele a afectasse emocionalmente. A sua estada era temporária, após o que partiria. Ficaria na cidade dois dias no máximo, calculou ela. O FBI enviara-o porque Peter Bondurant tinha amigos muito influentes. Tratava-se de uma manifestação de boa-fé ou de bajulação, dependendo do ponto de vista de cada um.
Não havia necessidade para a sua presença ali. A permanência seria certamente de curta duração. Kate não seria obrigada a manter qualquer contacto com ele enquanto ali estivesse. Ela já não trabalhava para o FBI. Também não fazia parte daquele grupo de trabalho. Ele não poderia exercer qualquer poder sobre ela.
«Meu Deus, Kate, até parece que estás com medo dele», pensou Kate sentindo desdém por si própria enquanto manobrava o seu Toyota 4Runner, saindo pela rampa da garagem que a levaria à Quarta Avenida. Qimn fazia parte do seu passado e ela era uma mulher adulta, e não nenhuma adolescente que houvesse rompido o romance com o rapaz mais popular da turma, não sendo capaz de o enfrentar quando se reuniam todos antes do início das aulas.
Onde é que vamos? perguntou Angie sintonizando o rádio numa estação que transmitia música rock alternativa Alanis Morissette começou a entoar uma canção em que se lamuriava, falando com um antigo namorado, ouvindo-se o som de bongos como música de fundo.
Vamos à parte alta da cidade. O que é que te apetece comer? Tens o aspecto de quem está a precisar de alimentos com gordura e colesterol. Costeletas de porco? Piza? Hambúrgueres? Massa?
A rapariga mostrou a mesma expressão desdenhosa que tem levado os progenitores, desde os tempos de Adão, a reconsiderarem os prós e os contras de matarem os seus filhos.
Qualquer coisa. Desde que o restaurante sirva bebidas alcoólicas. Estou a precisar de uma bebida.
Não abuses, miúda.
O que é que se passa consigo? Tenho uma carta de condução válida ripostou Angie, recostando-se toda para trás e colocando os pés sobre o painel de instrumentos. Dá-me um cigarro?
Não tenho cigarros. Deixei de fumar.
Desde quando?
Desde mil novecentos e oitenta e um. De vez em
1 Nos Estados Unidos, os restaurantes que servem bebidas alcoólicas precisam de ter uma licença especial (N da T)
quando vou-me abaixo e recomeço. Tira os pés do meu painel de instrumentos.
Ouviu-se um grande suspiro enquanto Angie se acomodava de lado no assento baixo.
Por que razão é que me convidou para jantar? Você até nem gosta de mim. Não preferia ir para casa, para junto do seu marido?
Sou divorciada.
Era casada com o fulano que lhe deixou a mensagem no atendedor de chamadas? O Quinn?
Não. E esse assunto não te diz respeito.
Tem filhos?
Kate fez uma pausa antes de lhe responder. Perguntava-se se alguma vez seria capaz de ultrapassar essa hesitação, ou o sentimento de culpa que a inspirava.
Tenho um gato.
Com que então vive na parte alta da cidade, é isso? Kate olhou-a de esguelha, desviando por uns instantes o olhar do muito trânsito da hora de ponta.
Falemos antes de ti. Quem é o Rick?
Quem...?
Rick... o nome que tens no blusão.
Quando chegou às minhas mãos já vinha com este nome.
Tradução: o nome do tipo a quem ela o roubara.
Há quanto tempo é que estás em Minneapolis?
Há algum tempo.
Que idade tinhas quando os teus pais morreram?
Treze anos.
Portanto, há quanto tempo é que vives sozinha?
Há oito anos respondeu a rapariga lançando-lhe um breve olhar de fúria. A resposta fora pouco convincente.
Kate encolheu os ombros. Valera a pena tentar.
O que é que lhes sucedeu? Um acidente?
Sim anuiu Angie em voz baixa, olhando fixamente em frente. Foi um acidente.
Algures no que ela dizia teria de haver uma história, concluiu Kate enquanto manobrava o jipe de forma a sair da Estrada 94 para entrar na Avenida Hennepin. Muito possivelmente era capaz de adivinhar alguns dos ingredientes principais daquele enredo de vida; álcool, maus tratos físicos, um ciclo de circunstâncias infelizes, numa palavra, uma família disfuncional. Virtualmente, todos os miúdos que viviam na rua tinham levado uma vida onde entrava alguma variante dessa história. À semelhança do que acontecia com todos os homens que cumpriam penas de cadeia O seio da família era um solo fértil para o desenvolvimento do tipo de bactérias psicológicas que deformavam mentes e devoravam as esperanças. Mas também havia o inverso desse cenário: Kate conhecia muitas pessoas que faziam parte das forças da lei, e outras que trabalhavam nos serviços sociais, gente que vinha de famílias nas mesmas circunstâncias, e que tinham chegado à mesma encruzilhada na estrada da vida, mas que haviam optado por enveredar por outro caminho totalmente diverso.
A imagem de Quinn voltou a ocorrer-lhe ao pensamento, apesar de não querer pensar nele.
A chuva adensara-se num manto cerrado de nevoeiro tristonho. Os passeios estavam desertos. A parte alta da cidade, ao contrário do que o nome indicava, situava-se a alguma distância para sul da baixa de Minneapolis. Uma área maioritariamente da classe média com várias lojas, restaurantes, cafés e cinemas onde eram exibidos filmes estrangeiros, concentrada na zona compreendida entre as ruas Lake e Hennepin. À distância do arremesso de uma pedra mas a um mundo de distância, a ocidente do Bairro Whittier, uma área degradada que, nos anos mais recentes, se transformara no território de bandos de malfeitores de raça negra, onde eram frequentes os tiroteios a partir de carros em andamento e as batidas da polícia que procurava estupefacientes
A parte alta da cidade situava-se entre a zona oeste nas margens dos lagos Calhoun e das Ilhas, sendo actualmente habitada por jovens com carreiras profissionais e pela classe média e alta. A casa onde Kate crescera, e de que presentemente era proprietária, ficava apenas a dois quarteirões do lago Calhoun, uma vivenda de madeira sólida, ao estilo das da pradaria de tempos passados, que os pais haviam comprado décadas antes de aquela área ter passado a estar na moda
Kate escolheu o La Loon, um pub afastado da movimentada Praça Calhoun, estacionando numa rua lateral quase vazia. Kate não estava com disposição para lugares barulhentos ou com muita gente, sabendo de antemão que esses dois pormenores poderiam ser aproveitados pela sua convidada como uma espécie de escudo, que lhe permitiria fechar-se em si mesma. O facto de ela ser uma adolescente, já constituía uma barreira suficientemente difícil que Kate teria de transpor.
O interior do La Loon estava agradavelmente aquecido e a luz era difusa; tinha uma decoração onde abundavam as madeiras e os metais amarelos, tendo como nota predominante um balcão comprido, à moda antiga, que separava o bar do restaurante, onde se viam alguns clientes. Kate optou por uma mesa de canto em vez de uma das compartimentadas, sentando-se na cadeira mais próxima do canto, o que lhe permitia ter uma panorâmica de todo o interior da sala de refeições. O lugar do paranóico. Um hábito que Angie DiMarco já tinha adoptado. Não se sentou em frente de Kate, lugar em que ficaria de costas para a sala de jantar; optou por uma cadeira em que ficava de costas para a parede, de forma a poder ver todos os que eventualmente se aproximassem da mesa.
A empregada levou-lhes as ementas, anotando o que ambas queriam beber. Kate ansiava por um copo alto cheio de gim, mas contentou-se com um copo de chardonnay. Angie mandou vir um rum com Coca-Cola.
A empregada de mesa olhou para Kate que se limitou a um encolher de ombros dizendo:
Ela tem um documento de identificação que diz ter mais de dezoito anos.
Pelo rosto de Angie passou uma expressão matreira quando a empregada de mesa se afastou.
Pensei que não queria que eu bebesse nada alcoólico.
Ora bem, que se lixe disse Kate tirando da mala de mão um frasco com comprimidos Tylenol. Não é que eu esteja a tentar corromper-te.
Era por de mais evidente que a rapariga estivera à espera de encontrar oposição da parte dela. Recostou-se para trás, um tanto estupefacta e com alguma desilusão.
Você não é como as outras assistentes sociais que eu conheci.
Quantas é que já conheceste?
Umas quantas. Das duas uma: ou eram umas autênticas cabras, ou tão boazinhas que só me davam vontade de vomitar.
Pois bem, há muito boa gente que não hesitará em te dizer
que me enquadro na perfeição numa dessas categorias.
Mas você é diferente. Não sei explicar disse a garota esforçando-se por encontrar a expressão que achava enquadrar-se melhor. É como se você tivesse experiência daquilo por que já passei, ou qualquer coisa assim.
Digamos apenas que não comecei a trabalhar no que actualmente faço pelas vias habituais.
O que é que quer dizer com isso?
Quero dizer que os pormenores de pouca monta não me interessam, e não admito que ninguém me ponha o pé no pescoço.
Se isso é verdade, quem é que lhe deu uma tareia?
Tudo em nome do dever e muito para lá deste retorquiu Kate metendo o comprimido na boca e engolindo-o com um gole de água. Devias ter visto o tipo que me fez isto. Mas mudemos de assunto. Viste alguma cara que te parecesse familiar nas fotografias que a polícia te mostrou hoje?
Com a mudança de assunto, o estado de espírito de Angie também mudou; as comissuras dos lábios, que pareciam fazer permanentemente beicinho, vincaram-se para baixo, enquanto o olhar se prendia no tampo da mesa.
Por mim, diria que não.
A sério? resmungou Kate suscitando um olhar amuado. Eles vão querer que amanhã de manhã colabores com o desenhador que fará o retrato-robô. Como é que te parece que isso vai correr? Conseguiste vê-lo com clareza suficiente para poderes descrevê-lo?
Vi-o por detrás das chamas da fogueira respondeu Angie num murmúrio.
A que distância é que estavas dele?
Sobre o tampo da mesa, Angie desenhou uma meia-cana com uma unha roída.
Não sei calcular. Não estava muito longe. Eu decidi atalhar caminho pelo parque e senti vontade de fazer chichi. escondi-me por detrás de uns arbustos. E foi então que o vi a descer pela encosta da colina... e ele trazia esse... O rosto de Angie contraiu-se, mordeu os lábios e baixou a cabeça, obviamente na esperança de que os cabelos lhe ocultassem a emoção que transpareceu da sua fisionomia. Kate aguardava, paciente, apercebendo-se inequivocamente da tensão crescente que se apoderava da adolescente. Até mesmo para uma garota como Angie, endurecida por uma vida de rua» ver o que tinha visto deveria ter sido um choque difícil de imaginar. A tensão que essa cena lhe teria provocado, aliada à por que passara na esquadra de polícia, ao que se juntava a exaustão, teria de, mais cedo ou mais tarde, ter as suas consequências.
«E eu quero estar presente quando esta pobre miúda se for abaixo», pensou Kate; era uma faceta do seu trabalho que sempre lhe desagradara profundamente. Em princípio, o sistema devia favorecer a vítima, mas era muito frequente que voltassem a ser vitimadas ao longo do processo. E a defensora era apanhada no meio, uma funcionária do sistema no exercício das suas funções cujo objectivo, por pressuposto, era zelar pelos interesses do cidadão que se via arrastado para o interior da engrenagem da máquina da justiça.
Entretanto, a empregada de mesa regressou com as bebidas. Kate mandou vir hambúrgueres com queijo e batatas fritas para as duas, devolvendo as ementas à empregada do restaurante.
Eu... eu não sabia o que é que ele levava nos braços sussurrou Angie depois de se certificar de que a empregada de mesa não podia ouvi-la. Só soube que havia alguém que se aproximava e que eu tinha de me esconder.
Como se fosse um animal que sabia bem de mais que a noite trazia os predadores consigo, quer estes fossem de uma espécie ou de outra.
Suponho que qualquer parque seja bastante assustador à noite disse Kate numa voz suave, fazendo girar o copo pelo pé. Todos gostam de passear nos parques durante o dia. Pensamos que é tão bonito, um lugar tão agradável para se fugir à azáfama da cidade. Mas, então, a noite começa a chegar, e de repente aquele ambiente de serenidade transforma-se numa espécie da floresta demoníaca d’O Feiticeiro de Oz. Ninguém quer estar nos parques quando a noite já vai adiantada. Por conseguinte, o que é que estavas a fazer lá, Angie, a essa hora?
Já lhe disse, estava só a atalhar caminho... A atalhar de onde para onde, a essa hora da noite? insistiu Kate mantendo um timbre de voz casual., Angie debruçou-se sobre o copo com rum e Coca-Cola, bebendo um grande gole pela palhinha. Estava tensa. Obrigando a cólera a vir à superfície para mascarar o medo.
Angie, eu tenho experiência de vida. Já assisti a coisas em que tu nem serias capaz de acreditar disse Kate. Não existe nada que tu possas dizer-me que me choque.
A rapariga soltou um arremedo de gargalhada desprovida de qualquer sentido de humor, olhando na direcção do televisor suspenso acima do balcão do bar. O apresentador do noticiário local, Paul Magers, tinha um aspecto solene, embora fosse um homem bem-parecido, enquanto relatava a história de um homem possuído de uma fúria assassina que andara desvairado pelo centro governamental. Mostraram uma fotografia, tipo passe, do homem, acrescentando que o casamento dele se tinha desfeito recentemente. A mulher saíra de casa com os filhos, tendo fugido para um abrigo de mulheres havia uma semana.
«Factores que precipitam um estado de tensão agravada», pensou Kate sem se sentir surpreendida com a reacção do homem.
Ninguém se interessa caso estivesses a fazer qualquer coisa que infringisse a lei, Angie. Um caso de assassínio suplanta todas as outras infracções... incluindo o roubo, a prostituição e a caça ilegal aos esquilos, mas pessoalmente penso que esta última infracção é um serviço prestado à comunidade acrescentou Kate. No mês passado apareceu-me um esquilo no sótão. São uma ameaça verminosa. Não passam de ratos com caudas muito peludas.
Não obteve qualquer reacção. Nem sequer um sorriso. Tão-pouco a atitude muito descabida, mas comum entre os adolescentes, de ultraje pela falta de consideração que Kate mostrava pela vida animal.
Angie, quero que saibas que não estou a tentar pressionar-te. Estou a falar contigo na qualidade de defensora dos teus interesses. Quanto mais cedo tu te mostrares franca em relação ao que se passou ontem à noite, melhor será para todos os intervenientes... incluindo para ti própria. O promotor público não descansará enquanto não vir este assunto resolvido. Chegou ao ponto de dar a entender ao sargento Kovac que ele devia tratar-te como se fosses uma suspeita
Ele que se vá foder! vociferou Angie com uma expressão de alarme nos olhos arregalados. Eu não fiz nada de mal!
O Kovac acredita em ti, razão por que neste momento não estás metida numa cela. Por isso e pelo facto de eu nunca vir a permitir uma coisa dessas. Mas esta merda é um caso muito sério, Angie. O assassino passou à categoria de inimigo público número um, e tu és a única pessoa que o viu e que continua viva para contar o que viu. Estás entre a espada e a parede.
Com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a rapariga deixou cair o rosto em cima das mãos, tartamudeando por entre os dedos.
Meu Deus, tudo isto mete nojo!
Agora é que falaste bem, minha doçura redarguiu Kate em voz baixa. Mas de uma maneira simples e sem floreados, o caso é este: este tarado vai continuar a matar até que haja alguém que o impeça. Talvez tu possas ajudar a impedi-lo de continuar acrescentou Kate, aguardando.
Estava a forçar a rapariga, sem lhe deixar qualquer alternativa. Conseguia observar Angie por entre os dedos que ela mantinha abertos; a força que ela fazia para conter as suas emoções era tal que o sangue lhe afluíra ao rosto. Kate detectava a tensão nos ombros franzinos, sentindo a expectativa que adensava o ar à volta da rapariga.
Mas nada naquela situação seria simples ou de pouca monta, reflectia Kate quando o seu beeper começou a emitir um som agudo dentro da mala de mão. O momento, a oportunidade, desvaneceu-se. Em silêncio, começou a praguejar procurando dentro da bolsa, amaldiçoando as desvantagens das conveniências modernas.
Pensa no que acabei de te dizer, Angie acrescentou Kate levantando-se da cadeira. Tu és tudo o que nós temos, e não te esqueças de que estou aqui para te ajudar.
«O que, por um processo de associação, me torna parte do TUDO», pensou ela dirigindo-se para o telefone público numa reentrância na parede junto dos lavabos.
Não. Nada que estivesse relacionado com aquele assunto seria simples ou de pouca monta.
O que raio é que fizeste com a minha testemunha, Ruiva”? perguntava Kovac encostado à parede da sala de autópsias, com o auscultador do telefone preso entre o ombro e o ouvido. Meteu uma mão por baixo da bata branca que usava por cima das suas roupas, tirando da algibeira do casaco um pequeno frasco que continha um líquido mentolado que aplicou à volta das narinas.
Ocorreu-me que seria simpático tratá-la como se tratam os seres humanos, convidando-a para uma refeição a sério, em vez de ela comer a porcaria que vocês servem às pessoas no estaminé da polícia replicou Kate com ironia
Isso quer dizer que não gostas de donuts, Que tipo de norte-americana és tu?
Do tipo que tem algumas noções, pelo menos em parte, sobre o conceito dos direitos dos cidadãos.
Sim, sim; muito bem, estou a perceber. Tapou o buraco da orelha livre com um dedo quando o zunido da lâmina de uma serra eléctrica para ossos começou a ser amolada. Se o Sabin perguntar alguma coisa, vou dizer-lhe que a açambarcaste antes de eu ter tido tempo de a meter na choça... o que corresponde à verdade. Antes quero ver as tuas lindas mamas num rolo compressor do que o meu coiso.
Não te preocupes com o Sabin. Tenho a autorização dele num memorando interno.
Tens alguma fotografia dele quando o assinou? Está reconhecida a assinatura?
Meu Deus, tu estás paranóico de todo.
Como é que te parece que me tenho aguentado neste emprego durante tanto tempo?
Não foi a lamber botas nem a obedecer a ordens. Do que tenho a certeza absoluta.
Kovac foi obrigado a rir-se. Kate era uma pessoa que dizia o que tinha a dizer, sem estar com meias-tintas. E tinha toda a razão. Ele tratava dos seus casos da maneira que pensava ser a melhor, e nunca com um olho na notoriedade que lhe pudessem trazer, ou numa possível promoção. E então para onde é que tencionas levar o nosso pequeno anjo depois desse grande banquete? Para a Casa Phoenix, de acordo com as instruções que recebi. Ela devia ir para uma instituição juvenil, mas as coisas são assim mesmo. Vou ter de a pôr num lugar qualquer, e os documentos de identificação que ela tem dizem que já é uma pessoa adulta. Tiraste-lhe alguma fotografia?
Tirei. Tenciono fazê-la circular pela secção que trata da delinquência juvenil. Talvez haja alguém que a conheça. Também tenho a intenção de dar uma cópia à Brigada de Costumes.
Se me arranjares uma cópia dessa fotografia farei o mesmo entre a minha gente.
Podes contar com isso. Não te esqueças de me manteres informado. Quero essa garina com rédea curta. Kovac elevou momentaneamente o tom de voz quando a água começou a jorrar para um lavatório de aço inoxidável. Tenho de me ir embora. A «doutora Morte» está prestes a abrir a nossa criatura toda tostadinha.
Jesus, Sam, és um homem com tanta sensibilidade!
Ei... é preciso aguentar. Sabes bem o que quero dizer.
Sim, eu sei. Só tens de ter cuidado para que as pessoas erradas não te ouçam dizer esse género de coisas. O grupo de trabalho já está organizado?
Já. Assim que os manda-chuvas nos largarem a braguilha, estamos prontos para avançar. Kovac lançou um olhar para o outro extremo da sala onde Quinn conversava com a médica legista e com Hamill do Departamento de Perícia Criminal; todos os que ali se encontravam usavam roupas de cirurgia e botas de tecido esterilizado. Qual é a história entre ti e o bonzão de Quântico?
Do outro lado da linha houve uma pequeníssima hesitação.
O que é que queres dizer com isso?
O que é que queres dizer com isso ao perguntares o que é que eu quero dizer com isso? O que é que se passa’’ Que história é essa? Que história é essa? Fez-se outra pausa, muito breve.
Conheci-o em tempos, mais nada. Na altura, eu trabalhava na secção de pesquisa na Unidade de Ciências Comportamentais. A gente da UCC e a da Unidade de Apoio a Investigação cruzam-se com regularidade. Além do mais, ele era amigo do Steven... o meu ex-marido.
Aquelas últimas palavras atiradas no fim da frase, dando a entender que fora uma reflexão tardia. Kovac arquivou aquele assunto na sua mente, deixando-o para congeminações posteriores. «Era amigo do Steven.» Havia mais naquela história que não estava a ser contado, reflectia Kovac quando Liska se aproximou, afastando-se dos que rodeavam o cadáver; tinha uma expressão de repugnância e de impaciência. Kovac deu a Kate o número do seu pager, pedindo-lhe que lhe telefonasse, após o que desligou.
Estão prontos para dar início ao baile disse Liska, jocosa, tirando uma embalagem, tamanho familiar, de Vicks VapoRub do bolso do casaco tamanho extralargo. Enfiou o tubo nas narinas inalando profundamente.
Meu Deus, o cheirete! murmurou ela, voltando-se e começando a acompanhar a passada de Kovac que se dirigia para a mesa operatória. Já me apareceram afogados Bêbedos encontrados nos contentores do lixo. Numa ocasião até mesmo um fulano que foi deixado no porta-bagagens de um Chrysler durante o fim-de-semana com ponte do quatro de Julho. Mas nunca cheirei nada como isto.
O fedor era uma entidade, uma presença. Como um punho invisível que forçava a sua entrada na boca de todos os presentes, que envolvia as línguas e que se alojava bem no fundo da garganta. Na sala fazia frio, mas nem sequer os jactos constantes de ar frígido e limpo que saía do sistema de ventilação, ou o perfume enjoativo dos refrescantes químicos de ambiente, conseguiam obliterar o cheiro a carne e órgãos humanos queimados.
Não há nada como umas torradinhas gracejou Kovac, trocista.
Nada de piadas sobre os órgãos internos, ou vomito em cima dos teus sapatos retorquiu Liska apontando-lhe um dedo e semicerrando os olhos.
És uma fracalhota, mais tarde tenciono dar-te um pontapé no cu por me teres chamado isso.
Na sala de autópsias havia três mesas; as dos extremos estavam ocupadas. Passaram por uma delas quando um assistente colocava um saco de plástico, cheio de órgãos internos dentro da cavidade abdominal do cadáver de um homem que tinha umas unhas dos pés muito grossas e amareladas. Suspensa acima de cada mesa havia uma balança do mesmo tipo que era utilizado para pesar uvas ou pimentos no supermercado. Aquelas serviam para pesar corações e cérebros.
Queriam que eu tivesse começado a festa sem vocês? perguntou a médica legista arqueando as sobrancelhas.
De uma maneira geral, os que trabalhavam com Maggie Stone pensavam que a médica tinha uns quantos parafusos mal apertados na máquina do pensamento. Desconfiava de toda a gente e de tudo; quando fazia bom tempo, transportava-se numa Harley Hog, sabendo-se que em determinadas ocasiões estivera armada. Mas quando o assunto era trabalho, era considerada como sendo a melhor na sua especialidade clínica.
As pessoas que a haviam conhecido no passado, nos anos em que era mais calma, afirmavam que a cor natural do seu cabelo era de um castanho cor de pelagem de ratazana. Sam nunca tinha tido capacidade para se recordar desses pormenores durante muito tempo, o que era uma das muitas razões para ter duas ex-mulheres. No entanto, reparou que a Dra. Stone, já com quarenta e muitos, recentemente passara de um vermelho flamejante para uma tonalidade platinada. Tinha os cabelos curtos, com um penteado que dava a impressão de ter acabado de se levantar da cama, tendo sofrido um susto enorme.
Ficou a olhar para Kovac enquanto ajustava o microfone de mola na gola da bata branca. Os seus olhos eram de um verde espectral, translúcido.
Têm de apanhar o sacana que fez isto! disse ela como se estivesse a dar uma ordem, apontando um bisturi na direcção dele; a implicação que se lia no seu timbre de voz indicava que se ele não o fizesse, ela própria se encarregaria do assunto. Em seguida, concentrou a sua atenção no corpo carbonizado em cima da mesa de aço inoxidável, com os membros encaracolados qual louva-a-deus em oração. A médica ficou como que envolta numa profunda serenidade.
Muito bem, Lars, vamos lá a ver se conseguimos endireitá-la um pouco. Deslocou-se até uma das extremidades da mesa e agarrou o cadáver com firmeza, embora não o fizesse à bruta, enquanto o seu assistente, um sueco muito corpulento, agarrava os tornozelos; os dois começaram a puxar devagar. O som que resultou dos esforços conjuntos assemelhava-se ao estalar das asas de uma galinha frita.
Com a mão a cobrir-lhe a boca, Liska afastou-se. Kovac deixou-se ficar onde estava. Do outro lado da mesa, a expressão de Quinn parecia de granito, com os olhos presos no corpo que ainda não revelara os seus segredos. Hamill, o agente do Departamento de Perícia Criminal que fora destacado para integrar o grupo de trabalho, fixou o olhar no tecto. Era um homem de estatura baixa, de aspecto cuidado e com o corpo emagrecido de um corredor de fundo, cujo cabelo acima da testa alta, todo penteado para trás, mostrava umas entradas acentuadas.
A Dra. Stone afastou-se um pouco da mesa pegando num gráfico preso a uma prancheta.
Doutora Maggie Stone disse ela numa voz calma falando para um gravador, se bem que desse a impressão de estar a dirigir-se à falecida. Caso número onze, travessão, sete mil oitocentos e vinte, identidade desconhecida. Indivíduo do sexo feminino de raça branca. A cabeça foi separada do corpo, desconhecendo-se o seu paradeiro. O corpo mede aproximadamente um metro e quarenta centímetros e pesa pouco menos de sessenta e um quilogramas.
A medida e o peso haviam sido achados algum tempo antes. Também haviam tirado um conjunto de radiografias e fotografias muito pormenorizadas, além dos exames minuciosos ao cadáver efectuados pela Dra. Stone, iluminando-o com um feixe de laser, com o objectivo de recolher quaisquer provas físicas. Agora inspeccionava o corpo visualmente, milímetro a milímetro, descrevendo ao pormenor tudo o que via, todos os ferimentos, todas as marcas.
As roupas queimadas continuavam no cadáver. Derretidas e fundidas com a massa de carne, consequência das chamas. Uma advertência para quem usava tecidos sintéticos
A Dra. Stone registava no gravador as «contusões graves» que a vítima sofrera no pescoço, especulando que as lesões teriam sido infligidas com uma lâmina serrilhada
E quanto ao resultado da autópsia? perguntou Quinn.
Maggie Stone ficou a olhar para a incisão aberta como se tentasse ver através do coração da mulher morta.
Sim.-- disse ela por fim.
Na região abaixo da garganta viam-se várias marcas de ataduras, nem um único vergão avermelhado, mas sim riscos indicadores de que a corda havia sido alargada e apertada ao longo do sofrimento por que a vítima passara. Provavelmente, seria essa a causa da morte, asfixia devido a aperto com estrangulamento, embora fosse difícil provar devido à decapitação. O indicador mais consistente de morte por estrangulamento era o esmagamento do osso hióide na base da língua, na região superior da traqueia acima do ponto onde o corte da decapitação fora efectuado. Também não havia a mínima hipótese de estudar os olhos para ver se ocorrera alguma hemorragia petequial, um outro indício seguro de estrangulamento.
Ele fez o mesmo às outras vítimas? perguntou Quinn referindo-se às marcas múltiplas de estrangulamento que se viam na garganta.
A Dra. Stone fez um acenar de cabeça aproximando-se da parte inferior do corpo.
Os outros cadáveres tinham mais ou menos os mesmos danos provocados pelo fogo?
Sim, tinham.
E as outras estavam vestidas?
Sim. Estamos em crer que foram vestidas depois de terem morrido. Havia ferimentos no corpo que não correspondiam a rasgões nas peças de vestuário... isto é, as roupas que não foram destruídas pelas chamas.
- E não estamos a falar das roupas pessoais das vítimas adiantou Kovac. São peças de vestuário que o assassino arranjou especialmente para elas. Sempre de tecidos sintéticos. O fogo derrete este tipo de tecidos, o que elimina quaisquer provas que pudessem ser encontradas nos cadáveres.
Decerto essa particularidade também teria outro significado na mente do predador, pensou ele com um trejeito de inpaciência. Independentemente da importância que os perfis psicológicos de homicidas pudessem ter, o agente de polícia básico que existia dentro dele não conseguia libertar-se
As reservas que tinha em relação aos maníacos que acreditavam cegamente em características cerebrais, os quais, por vezes, atribuíam a esses monstros um crédito excessivo às suas avaliações. Havia ocasiões em que os assassinos faziam coisas apenas por fazê-las, gratuitamente. por vezes, isso acontecia por uma questão de curiosidade, ou por puro espírito maléfico, ou ainda porque sabiam que constituiriam obstáculos às investigações.
- Vamos conseguir obter alguma impressão digital? perguntou ele.
-Nem pensar - respondeu a Dra. Stone examinando, as costas da mão esquerda do cadáver. A camada superior da pele tinha adquirido um tom de marfim, um branco-sujo e já começara a escamar. A outra camada mostrava-se avermelhada. Os ossos dos nós dos dedos estavam de um branco brilhante donde a pele fora totalmente removida.
- Pelo menos que sirvam para alguma coisa - acrescentou a médica. - Na minha opinião, ele colocou as mãos cruzadas em cima do peito ou do estômago. Assim que o fogo foi ateado derreteu o tecido da blusa, e a substância li quefeita que daí resultou derreteu-se juntamente com a ponta dos dedos, antes mesmo que os tendões dos braços começassem a contrair-se, puxando as mãos de forma a que ficassem afastadas do torso.
- Existe alguma possibilidade de retirar as impressões digitais dos resíduos dos tecidos? - perguntou Quinn. - É muito possível que o próprio tecido tenha ficado, devido a ao atrito, com uma impressão da configuração da ponta dos dedos. - Não dispomos de equipamento que nos permita fazer isso - respondeu a médica legista. - No entanto, a nossa agente em Washington, possivelmente, disporá de meios técnicos para esse tipo de exame. Podemos seccionar as mãos e] metê-las num saco e enviá-las. - Vou pedir ao Walsh que telefone antes de passarmos a essa fase. A tossir, como se estivesse a morrer de tuberculose
Walsh tinha implorado a Quinn que o dispensasse de assistir à autópsia. Não havia nenhuma necessidade para que todos os membros do grupo de trabalho estivessem presentes. Na manhã seguinte, todos seriam postos ao corrente dos últimos acontecimentos, além de terem acesso aos relatórios e fotografias.
Metodicamente, a Dra. Stone deslocava-se ao longo do corpo. As pernas da vítima estavam desnudadas; tinha a pele queimada e cheia de bolhas que formavam um padrão irregular nas zonas onde o catalisador queimara a carne num ápice.
- Existem marcas de atadura nos dois tornozelos continuou a médica, percorrendo suavemente a parte de cima dos pés da vítima com as suas mãos pequenas, que estavam enluvadas, mostrando um cuidado que era quase ternura com o mesmo grau de emoção que manifestaria ao longo de todo aquele processo.
Kovac examinava o aspecto dos ferimentos que as ataduras haviam deixado em redor dos tornozelos do cadáver, esforçando-se ao máximo para não visualizar aquela mulher amarrada a uma cama, na câmara de horrores de um maníaco qualquer, debatendo-se com tal frenesim, numa tentativa desesperada para se libertar, que as ataduras tinham rasgado sulcos na carne.
-As fibras dos tecidos já foram enviadas para o laboratório do Departamento de Perícia Criminal - disse a Dra. Stone. - À primeira vista pareciam consistentes com as outras: um entrelaçamento de fios brancos de polipropileno especificou a médica para benefício de Quinn e Hamill. Resistente até dizer chega. Pode ser adquirido em qualquer estabelecimento de material de escritório. As autoridades adquirem o suficiente, todos os meses, para envolver o perímetro da Lua. É impossível encontrar vestígios depois de entrar em combustão.
«Lacerações profundas que formam um desenho com «X» duplos na planta dos pés. - A médica legista continuou a apresentar o resultado do exame patológico. Mediu e classificou cada corte, após o que começou a descrever o que pareciam ser queimaduras, feitas com a ponta incandescente de cigarros, na região inferior de todos os dedos dos pés.
- Tortura ou desfiguração com o objectivo de eliminar qualquer elemento que permitisse a identificação do corpo?
- interrogou-se Hamill falando em voz alta.
- Ou as duas hipóteses - adiantou Liska.
- Eu diria que todas estas sevícias tiveram lugar enquanto ela ainda estava viva - acrescentou a Dra. Stone.
- Um sacana do mais perverso que se possa conceber - comentou Kovac entre dentes.
Ainda que ela tivesse conseguido soltar-se, estaria impossibilitada de correr disse Quinn. Há uns anos atrás, ocorreu um caso no Canadá, em que os tendões de Aquiles da vítima foram seccionados pela mesma razão. As outras vítimas apresentavam lesões semelhantes?
Ambas foram sujeitas a vários métodos de tortura. respondeu Maggie Stone. Nenhum deles foi exactamente igual aos outros. Posso arranjar-vos cópias dos relatórios das autópsias.
Obrigado, mas isso já está a ser tratado retrucou Quinn.
Não havia a mais pequena esperança em se conseguir remover o vestuário da vítima sem que a pele viesse agarrada às roupas. A médica e o seu assistente aparavam e despelavam, retirando com o maior cuidado, com o uso de pinças, fragmentos de fibras derretidas. A intervalos regulares, a Dra. Stone praguejava entre dentes.
Devido à expectativa, Kovac sentia nós no estômago enquanto ela destruía o que restava da blusa, retirando cautelosamente uma camada de carne da região do lado esquerdo do peito.
Aqui está disse a médica legista fitando Kovac do outro lado do cadáver.
O quê? perguntou Quinn abeirando-se da cabeceira da mesa.
Kovac também se aproximou, observando a obra macabra do assassino.
O pormenor que conseguimos ocultar do conhecimento dos jornalistas, gente cuja persistência fede. Este padrão de golpes feitos com uma arma branca... Está a ver?
Via-se um aglomerado cerrado de oito marcas, cada uma com um comprimento entre cerca de centímetro e meio e três centímetros, os quais perfuravam o peito da mulher morta próximo da zona do coração.
As duas primeiras vítimas também tinham estes cortes adiantou Kovac, olhando Quinn de relance. Ambas foram estranguladas e só depois é que estes golpes foram feitos.
Obedeciam ao mesmo padrão?
Sim. Com a forma de uma estrela. Estão a ver? ” perguntou mantendo a mão a uma altura de mais ou menos sete centímetros acima do cadáver, começando a delinear o padrão dos ferimentos no ar com o dedo indicador. Os golpes mais extensos formam um X. Os mais curtos formam outro mais pequeno. O Joe «Fumacento» volta a atacar
Mas existem outras semelhanças acrescentou
Maggie Stone. Vejam aqui, temos a amputação do mamilo e da areola
Feita depois da morte? perguntou Qimn
Não, respondeu a médica olhando para o seu assistente Lars, vamos virá-la de costas para cima. Vejamos o que encontramos no outro lado
Antes de ter sido carbonizado, o corpo fora deitado de costas. Consequentemente, as lesões provocadas pelo fogo restringiam-se à parte da frente do corpo. A médica legista começou a retirar os pedaços de tecido que continuavam intactos, metendo-os dentro de sacos de plástico transparente a fim de serem enviados para o laboratório. Um fragmento da saia, de um tecido vermelho extremamente elástico, assim como um bocado da blusa de um tecido de um verde-amarelado. Não havia nenhuma peça de roupa interior
Hum, hum murmurou a Dra Stone para si própria, pouco depois. olhou para Kovac. Falta uma secção de carne da nádega direita
Ele também mutilou as outras desta maneira? perguntou Quinn. Sim! À primeira vitima cortou um naco de carne do seio direito. Quanto à segunda, fez o mesmo mas na nádega direita
Seria para eliminar a marca deixada por uma dentada? especulou Hamill em voz alta
É possível que sim, admitiu Quinn. Sem dúvida que as dentadas não são imvulgares neste género de assassino. Existe algum indício de hematoma nos tecidos? Normalmente, quando estes tipos decidem abocanhar, não são mordidelas de amor
A Dra Stone pegou na sua pequena régua para medir os ferimentos com toda a precisão
Se existiu alguma nódoa negra, ele teve o cuidado de a remover por completo. Temos uma falta considerável de massa muscular. Jesus! resmungou Kovac em voz baixa numa manifestação de repugnância, olhando fixamente para o quadrado luzidio de um vermelho-escuro no corpo da vítima. a secção de carne tinha sido cortada com uma precisão cirúrgica, com uma pequena faca de lâmina bem afiada. - Quem é que este estupor pensará que é? O Hannibal «Maldito» Lecter?
Quinn lançou-lhe um olhar do extremo do corpo sem cabeça.
Toda a gente tem o seu herói.
O caso número 11-7820, identidade desconhecida, indivíduo do sexo feminino de raça branca, não apresentava qualquer motivo de natureza orgânica para ter falecido. Tinha sido uma mulher saudável sob todos os aspectos. Alimentara-se como devia ser e, à semelhança da maior parte das pessoas, pesava uns cinco ou sete quilos a mais. Contudo, o conteúdo da sua última refeição era uma coisa que a Dra. Stone não fora capaz de determinar. Se aquela mulher fosse Jillian, digerira o jantar que comera na companhia do pai antes de morrer. O seu corpo não indicava sintomas de quaisquer doenças nem tão-pouco defeitos de nascença. A médica legista calculava que devia ter entre vinte e dois e vinte e cinco anos. Uma mulher jovem que tivera toda uma vida à sua frente até o seu caminho se ter cruzado com o do homem errado.
Aquele tipo de assassino raramente escolhia uma vítima que estivesse prestes a morrer por doença.
Quinn reflectia naquela realidade quando já estava no pavimento molhado da zona de entregas da morgue. O frio carregado de humidade da noite trespassava-lhe o fato entrando-lhe nos músculos. O nevoeiro pairava no ar como se fosse uma fina mortalha branca que cobrisse toda a cidade
Existia um número excessivo de vítimas que eram mulheres jovens: mulheres jovens e bonitas, mulheres jovens sem nada que as distinguisse das outras, mulheres que tinham tudo a seu favor, e outras sem nada nas suas vidas além de um raio de esperança por algo melhor. Todas destruídas e esfrangalhadas como se fossem bonecas, maltratadas e descartadas como se a sua vida não tivesse tido o mínimo significado.
Só espero que não seja muito apegado a esse fato disse Kovac aproximando-se, enquanto tirava um cigarro de um maço de Salem Mentol.
Quinn baixou o olhar fitando-se a si próprio, sabendo que o fedor da morte violenta se entranhara a em todas as fibras do seu vestuário
. Ossos do ofício, disse. Não tive tempo para mudar de roupa
Nem eu. É uma coisa que costumava dar com as minhas ex-mulheres em doidas
Mulheres no plural?
Consecutivas e não em simultâneo. Duas. Sabe como é, o trabalho e tudo o mais. Mas, seja como for, a minha segunda mulher costumava dizer que eram roupas de cadáver. Era assim que classificava todas as peças que eu usava quando ia a um local onde tinha ocorrido qualquer crime francamente sangrento, ou tinha de assistir a uma autópsia, ou algo do género. Obrigava-me a despir na garagem, e depois seria de imaginar que ela queimaria imediatamente essas roupas, ou que as deitaria no lixo, ou algo parecido, uma vez que não havia maneira nenhuma de ela permitir que eu voltasse a usá-las. Mas não. Metia-as dentro de caixas que levava a instituições de caridade alegando que ainda poderiam ser usadas. Kovac abanou a cabeça sem esconder uma expressão de perplexidade. Por toda a cidade de Minneapolis existem pessoas muito carenciadas que se passeiam por aí a cheirarem a corpos mortos, graças a ela Você é casado?
Quinn respondeu que não com um abanar de cabeça
Divorciado.
Uma vez Há já muito tempo.
Acontecera há tanto tempo que aquele breve arremedo de casamento lhe parecia mais ter sido um sonho mau de que se lembrava vagamente do que uma recordação. Falar do assunto era o mesmo que dar um pontapé a um monte de cinzas, agitando flocos antigos de resíduos emocionais dentro de si, sentimentos de frustração e fracasso, a par de arrependimentos, que há muito haviam arrefecido. Sentimentos que lhe invadiam a alma com mais intensidade semPre que pensava em Kate
Toda a gente passou pelo mesmo observou Kovac
Ossos do ofício acrescentou, oferecendo o maço de cigarros que Quinn não aceitou. Meu Deus, parece que ainda tenho esse cheiro na boca. Kovac encheu os pulmões, absorvendo o máximo de alcatrão e nicotina antes de exalar, deixando que o fumo lhe envolvesse a língua e se dissipasse em seguida, misturando-se com o nevoeiro.
Portanto, acha que a mulher que ali está é a Jilian Bondurant?
Pode ser que sim, mas também me parece que existe uma possibilidade de não ser. Até dá a impressão que este indivíduo fez os possíveis e impossíveis para se assegurar de que não poderíamos obter nenhumas pistas. No entanto, deixou a carta de condução da Bondurant no local do crime. Por conseguinte, podemos deduzir que ele a tenha apanhado, mas só depois é que percebeu quem ela era, decidindo não a matar para pedir um resgate especulou Kovac. Entretanto, apanha outra mulher qualquer e manda-a desta para melhor, deixa a carta de condução da Bondurant junto do corpo com o objectivo de mostrar ao papá o que é que pode vir a acontecer se ele não largar o taco. Kovac semicerrou os olhos como se estivesse a rever mentalmente a sua teoria. Tanto quanto sabemos, ainda não foi pedido nenhum resgate e desde sexta-feira à noite que ela foi dada como desaparecida. Mesmo assim, talvez... Mas você não está de acordo.
Nunca tive um caso em que as coisas se passassem assim, mais nada justificou Quinn. Regra geral, com este tipo de homicídio encontra-se um assassino que só tem uma coisa em mente: concretizar as suas fantasias que não têm nada a ver com o dinheiro... de uma maneira geral. Quinn virou-se um pouco mais para Kovac, tendo a percepção de que ele era um dos membros do grupo de trabalho que mais precisava de conquistar para o seu campo. Kovac era o chefe das averiguações. O conhecimento que tinha de casos com aquelas características da cidade e do tipo de criminosos que viviam no submundo do crime, seria de um valor incalculável. O problema era Quinn não pensar que continuava a ter energia para recorrer à rotina do sou apenas um polícia como tu». Ao invés, contentou-se com a verdade.
A particularidade em relação à elaboração de perfis psicológicos é o facto de ser um instrumento «proactivo» com base na utilização reactiva dos conhecimentos obtidos em eventos passados. Não é uma ciência perfeita. Cada caso tem o potencial de nos pôr perante um aspecto que nunca se nos deparou.
Ouvi dizer que você é bastante bom admitiu o detective. Conseguiu identificar o assassino de crianças no Colorado até ao pormenor da gaguez.
Às vezes, as peças encaixam-se todas replicou Quinn com um encolher de ombros. Daqui a quanto tempo é que acha que poderá ter nas mãos os registos clínicos para podermos proceder à comparação com o corpo?
Eu devia mudar de nome, passar a chamar-me Murphy’ disse Kovac, pondo os olhos em alvo. A lei de Murphy: nada é fácil. Acontece que a maior parte dos registos médicos dela estão em França acrescentou, como se França fosse um país num qualquer planeta obscuro situado numa outra galáxia. A mãe dela divorciou-se do Peter Bondurant há onze anos, tendo voltado a casar com um fulano que tem uma empresa internacional de construção. Viviam em França. A mãe faleceu, mas o padrasto continua a residir nesse país. A Jillian regressou aos Estados Unidos há uns dois anos. Inscreveu-se na Universidade do Minnesota.
O FBI pode ajudar-nos a conseguir esses registos através do adido jurídico dos nossos escritórios em Paris.
^Eu sei. O Walsh já começou a tratar disso. Entretanto, proponho que tentemos falar com quem tenha conhecido bem a Jillian. Veja se consegue descobrir se ela tinha alguns sinais particulares, cicatrizes, marcas de nascimento, tatuagens, etc. Temos de arranjar algumas fotografias. Ainda não conseguimos encontrar nenhuns amigos chegados. Que alguém saiba, ela não tinha namorado. Imagino que não fosse exactamente uma figura conhecida no meio da alta sociedade.
E quanto ao pai?
O homem sente-se demasiado desgostoso para falar connosco respondeu Kovac imprimindo um trejeito à boca. «Demasiado desgostoso», pelo menos é o que o advogado dele alega. Se eu pensasse que alguém tinha mandado um filho meu desta para melhor com certeza que me sentiria «fodidamente» desgostoso. Mas pode crer que não deixaria os xuis em paz. Havia de passar a viver colado a eles, fazendo tudo o que estivesse ao meu alcance para
1Alusão ao princípio da autoria de Edward A. Murphy, engenheiro norte-americano, segundo o qual tudo o que poderá correr mal, virá a correr mal (N da T)
apanhar o filho da puta. Soergueu um sobrolho, fitando Quinn. Você não faria o mesmo?
Se fosse eu, não descansava enquanto não virasse o mundo do avesso, sacudindo-o pelos calcanhares.
Pode apostar! Quando fui a casa do Bondurant para lhe dar a notícia de que a vítima talvez fosse a Jillian, ele ficou com uma expressão como se eu lhe tivesse batido na cabeça com um bastão de basebol. «Oh, meu Deus, oh, meu Deus», dizia ele numa atitude que me levou a crer que ia vomitar. Portanto, quando ele pediu desculpa por ter de sair da sala, não dei muita importância a essa ausência. Mas o filho da puta decidiu telefonar imediatamente para o advogado, e não voltou a sair do escritório. Passei a hora seguinte a falar com o Bondurant via Edwyn Noble.
E o que é que ele lhe disse?
Que a Jillian tinha jantado lá em casa na sexta-feira à noite e que não voltara a vê-la desde então. Que saíra por volta da meia-noite, o que é corroborado por um vizinho. O casal que vive na casa em frente tinha acabado de chegar de uma festa. O Saab da Jillian estava a sair para a rua quando eles contornaram o quarteirão às vinte e três e cinquenta minutos.
«Peter Bondurant, ”O Cabrão Podre de Rico” acrescentou num resmungo. Com a sorte que tenho, vou acabar a passar multas de estacionamento quando este caso chegar ao fim. Acabou de fumar o cigarro, deixando cair a beata no piso alcatroado e esmagando-a com a biqueira do sapato. É uma pena que as análises ao ADN levem tanto tempo acrescentou, passando a focar o assunto da identificação. De seis a oito semanas. É tempo de mais, uma grande gaita.
Já investigaram as participações de pessoas desaparecidas?
No Minnesota, Wisconsin, lowa e no Dacota do Sul e Norte. Até ligámos para o Canadá. Ainda não descobrimos nada de relevante. Talvez surja alguma coisa continuou numa nota de optimismo semelhante ao que sentiria se esperasse vir a encontrar um par de óculos ou uma carteira que tivesse perdido.
Talvez...
Ora bem, por esta noite já chega de tanto falar sobre este assunto. Estou a morrer de fome acrescentou Kovac abruptamente, abotoando o sobretudo como se tivesse confundido a fome com o frio. Conheço um sítio que vende comida mexicana para fora que é uma delícia. Tão apimentada que elimina o sabor a cadáver que temos na boca. Podemos passar por lá, dado que fica a caminho do seu hotel. Começaram a afastar-se do local de entregas na morgue no momento em que uma ambulância estava a chegar. Nada de luzes intermitentes nem de sirena. Outro cliente. Kovac tirou as chaves do carro de uma das algibeiras, observando Quinn pelo canto do olho.
Com que então, você conhecia a nossa Kate?
Conheci admitiu Quinn, ficando com o olhar perdido no nevoeiro e interrogando-se sobre onde ela estaria naquele momento. Perguntando a si mesmo se ela pensaria nele. Numa outra vida.
Kate mergulhou suavemente o corpo dorido na banheira com pés à moda antiga, tentando libertar-se da tensão que se fora acumulando ao longo do dia. Sentia que saía do seu âmago atravessando-lhe os músculos sob a forma de dores. Visionou essa tensão a elevar-se da água juntamente com o vapor e a fragrância a alfazema. Na armação de arame em cobre a toda a largura à sua frente colocara um copo cheio de água tónica com gim Bomhay Sapphire, do tamanho daqueles que se bebiam numa segunda-feira de ressaca. Bebeu um gole bastante generoso, recostou-se toda para trás e fechou os olhos.
As pessoas que tratavam dos problemas de tensão psicológica franziam o nariz às bebidas alcoólicas como solução para os estados de tensão, pregando que essa solução conduziria as pessoas ao caminho do alcoolismo e da desgraça. Kate já percorrera os altos e baixos desse trilho da desgraça. Chegara à conclusão de que, se alguma vez correra o risco de vir a ser alcoólica, isso já teria acontecido há muitos anos. Cinco anos atrás. Nunca acontecera; assim, naquela noite, bebeu o seu gim esperando pelo agradável torpor que o álcool lhe proporcionaria.
Durante uma fracção de segundos, destilou pelo seu pensamento uma breve montagem de rostos desse período sombrio da sua vida: a face em mudança de Steven ao longo da passagem desse ano terrível distante, frio, irado, azedo; a expressão de pesar do médico, desgastada e impessoal devido a um número excessivo de tragédias; o rosto cheio de doçura da filha, presente e ausente numa única e dolorosa pulsação do coração; o semblante de Quinn intenso, cheio de compaixão, apaixonado... encolerizado, desapaixonado, indiferente, uma mera recordação.
Nunca falhava: a intensidade repentina dessa dor enquanto a esfaqueava através da passagem do tempo, como se trespassasse algodão em rama, nunca deixava de a espantar. Parte de si desejava ardentemente que essa dor se atenuasse, enquanto outra parte ansiava porque isso nunca viesse a acontecer. O ciclo infinito dos sentimentos de culpa: a necessidade de lhe escapar em simultâneo com a necessidade, igualmente desesperada, de se agarrar a ela.
Kate abriu os olhos fixando o olhar na janela ao fundo da banheira. Um rectângulo de noite que a espreitava acima da cortina a meia altura, a escuridão por detrás do vidro embaciado.
Pelo menos à superfície, os antigos ferimentos haviam sarado, permitindo-lhe dar continuidade à vida, o máximo que, com toda a franqueza, alguém poderia esperar. No entanto os tecidos dessa antiga cicatriz na alma abriam com muita facilidade. Verificava que a realidade de não ter conseguido ultrapassar essa dor, associada à recordação de John Qinn, lhe deixava um sentimento de grande humildade. Sentia-se como se fosse uma idiota, uma criancinha, culpabilizando o elemento surpresa.
Amanhã, portar-se-ia melhor. As ideias estariam mais claras, permitindo que se concentrasse. Não toleraria mais surpresas. Não fazia o mínimo sentido estar a desenterrar o passado quando o presente exigia toda a sua atenção. E Kate Conlan sempre fora um paradigma da sensatez... exceptuando um breve período de alguns meses durante o pior ano de toda a sua vida.
Ela e Steven tinham começado a distanciar-se um do outro cada vez mais. Uma situação tolerável, caso não tivesse sofrido qualquer alteração. Mas fora então que Emily contraíra uma estirpe muito virulenta de gripe, e numa mera questão de alguns dias a doce e amorosa filha do casal deixara de viver. Steven assacara as culpas a Kate, convicto de que ela teria tido a obrigação de se aperceber mais cedo da gravidade da doença. Não obstante as afirmações dos médicos, garantindo que a culpa não era dela, que nunca poderia ter sabido, Kate também se culpabilizara. Sentira tanta necessidade de alguém que a abraçasse, alguém que lhe oferecesse conforto e apoio, que a absolvesse...
Puxou a toalha do toalheiro atrás de si e colocou-a por cima dos ombros; com a ponta limpou os olhos e o nariz, bebendo outro gole de gim. O passado era algo fora do seu controlo. Contudo, no mínimo, poderia iludir-se acreditando que detinha algum domínio sobre o seu presente.
Dirigiu os pensamentos para a sua cliente. Uma palavra absolutamente idiota: cliente. Implicava que a pessoa a tivesse escolhido, contratando os seus serviços. Angie DiMarco não teria feito nada disso. Aquela miúda saíra-lhe uma rica prenda. Devendo acrescentar-se que Kate tinha uma vasta experiência dos caminhos do mundo real para acreditar que existiria um coração de ouro por baixo de toda aquela dureza. Bastante mais provavelmente, existiria, isso sim, qualquer coisa deformada e em mutação por influência de uma vida menos generosa do que a de um gato vadio. Como é que as pessoas tinham coragem de trazer uma criança ao mundo, permitindo que chegasse àquele ponto... Aquela reflexão provocou-lhe indignação e um baque indesejado de ciúme.
Na verdade, descobrir o que Angie DiMarco era no seu íntimo, ou as razões por que se transformara numa jovem de vida tão conturbada, constituíam aspectos que não faziam parte das suas funções. Porém, quanto mais se inteirava da maneira de ser de uma vítima ou testemunha, em melhor posição estaria para compreender essa mesma pessoa, o que lhe permitiria agir e reagir em conformidade. Manipular. Para obter o que Sabin desejava de uma testemunha.
Enquanto a água da banheira se escoava, Kate secou-se envolvendo-se num felpudo roupão turco, levando o que lhe restava da bebida para a pequena escrivaninha antiga do seu quarto. O santuário da sua feminilidade. Os tons em pêssego e de um verde carregado e quente emprestavam ao aposento uma atmosfera acolhedora e cálida. A voz um pouco água e doce de Nancy Griffith era difundida pelos altifalantes da pequena aparelhagem estereofónica colocada numa prateleira da estante. Thor, um gato-da-floresta-norueguesa, amo e senhor de toda a casa, reivindicara a cama de Kate como seu trono de direito, tendo-se estirado com todo o esplendor da sua pelagem real mesmo no meio do edredão. Lançou-lhe um olhar do alto da supremacia entediada de um príncipe coroado.
Kate dobrou uma perna debaixo do corpo sentando-se na cadeira; tirou uma folha de papel de uma pequena gaveta e começou a escrever.
Angie DiMarco
Nome? Provavelmente falso. Pertence a uma mulher qualquer de Wisconsin. Contactar alguém que averigúe junto da Polícia de Viação e Trânsito de Wisconsin.
Familiares, mortos - em sentido figurado ou literal? Maltratada? Plausivelmente. Abusos sexuais? Forte probabilidade.
Tatuagens: múltiplas -feitas por profissionais e amadores.
Significado? Significado dos motivos individuais?
Perfurações corporais: ditames da moda ou algo mais?
Comportamentos compulsivos: Roer as unhas. Fuma. Bebida.- Em que quantidade? Com que frequência? Drogas? Possivelmente. Magra, pálida e desmazelada.
Mas dá a impressão de se concentrar no seu comportamento.
Os elementos que possuía permitiam-lhe apenas fazer o esboço da personalidade de Angie. o tempo que haviam estado juntas fora demasiado escasso, tendo sido fortemente influenciado pela tensão que permeava a situação. Kate detestaria pensar nas conclusões a que um estranho qualquer chegaria sobre ela própria, caso se visse numa situação similar. A tensão psicológica desencadeava os instintos natos de fuga ou luta que toda a gente possuía. Mas o facto de ter uma percepção clara das circunstâncias não fazia com que o trato com a miúda fosse mais agradável.
Felizmente, a mulher que supervisionava a Casa Phoenix estava acostumada a toda uma variedade de atitudes reprováveis. As residentes da casa eram mulheres que tinham optado, ou haviam sido forçadas, por trilhar alguns dos caminhos mais duros da vida e que agora queriam enveredar por outras sendas menos funestas.
Não se podia dizer, nem com muito boa vontade, que Angie se tivesse mostrado agradecida por ter um tecto onde se abrigar. Comportara-se com uma rudeza perante Kate que esta classificara de absolutamente desproporcionada.
E se eu não quiser ficar aqui?
Angie, não tens outro lugar para onde possas ir.
Você não sabe nada a esse respeito.
Não me obrigues a repisar o assunto replicara-lhe Kate com um suspiro de impaciência.
Toni Urskine, a directora da Phoenix, deixara-se ficar na ombreira da porta durante grande parte daquela troca de palavras, observando com o sobrolho franzido. Pouco depois deixara-as para que continuassem a discutir no pequeno escritório, de paredes forradas com painéis baratos e peças de mobiliário que mais ninguém desejaria, e onde, além das duas, não havia mais ninguém. A miscelânea de pretensos objectos de arte, nada condizentes, pendurados nas paredes davam à sala um ambiente característico das pensões que mais pareciam pardieiros.
Tu não tens nenhuma morada permanente continuara Kate. Disseste-me que todos os teus familiares tinham morrido. Não me indicaste o nome de nenhuma pessoa de família que te aceitasse em sua casa. Precisas de um lugar onde ficar. Este é um lugar onde podes ficar alojada. Terás três refeições completas ao dia, cama e banho. Qual é o teu problema?
Angie esmurrou uma almofada manchada que se encontrava sobre o sofá forrado de tecido axadrezado.
É uma merda de uma pocilga, o problema é esse.
Oh! Peço muita desculpa; tens estado a viver no Hilton? O endereço falso que me deste não corresponde a uma zona tão boa como esta.
Se lhe agrada assim tanto, porque é que não fica cá!
Eu não sou obrigada a ficar aqui. Não sou uma testemunha sem casa que tenha presenciado um homicídio.
Pois bem, vá-se foder! Eu também não quero ser! vociferara a rapariga com uns olhos que brilhavam com um fulgor cristalino; as lágrimas que de repente lhe haviam assomado aos olhos preparavam-se para começar a correr-lhe pelas faces. Virou costas a Kate, afastando-se e esfregara os olhos com os punhos. O seu corpo franzino contorceu-se como se fosse uma vírgula.
Não, não, não gemia para si própria em voz baixa. Agora não...
Aquela súbita manifestação de emoções apanhou Kate desprevenida. Mas aquilo era o que tinha desejado, certo?
Ver uma fenda na carapaça dura. Agora que os seus desejos se tinham realizado não sabia bem como proceder. Nunca esperara que a jovem se tivesse ido abaixo naquelas circunstâncias, sobretudo por aquele motivo.
Pouco segura de si, aproximara-se da rapariga, sentindo-se pouco à vontade e com remorsos pela sua atitude.
Angie...
Não murmurou a jovem mais para si mesma do que para Kate. Agora não. Por favor... por favor.
Não tens razão para te sentires constrangida, Angie -replicara Kate com suavidade, aproximando-se mais mas sem tentar tocar-lhe. Tiveste um dia terrível. Na tua situação, eu também choraria. Tenho a certeza de que chorarei mais tarde. Não sou muito boa a chorar... fico com o nariz a pingar, é nojento.
Porque é que eu n... não posso f... ficar consigo? Aquela pergunta surgira de tal maneira inesperada que deixou Kate completamente perplexa, sem saber o que dizer. Como se a rapariga nunca tivesse vivido fora de casa. Como se nunca tivesse estado entre estranhos. O mais provável seria ela ter andado a viver pelas ruas da cidade Deus sabia há quanto tempo, fazendo só Deus sabia o quê para conseguir sobreviver, e, de repente, toda aquela manifestação de dependência. Nada daquilo fazia o mínimo sentido.
Antes que Kate tivesse oportunidade de responder, Angie abanara a cabeça ao de leve, limpando as lágrimas das faces com a manga do blusão e inspirara com a respiração entrecortada. Com a mesma rapidez, aquela janela aberta tinha-se encerrado e a máscara de aço retomara o seu lugar.
Não tem importância. Como se você se importasse com o que possa acontecer comigo.
Angie, preocupo-me com o que te possa acontecer, caso contrário não teria este trabalho.
Sim, sim... O seu trabalho.
Olha uma coisa... atalhou Kate de maneira pouco convincente. É muito melhor do que dormir numa caixa de cartão. Tenta ficar aqui uns dois dias. Se achares que odeias esta casa, verei o que é que se pode arranjar. Tens o número do meu telemóvel. Se precisares de mim, não hesites em ligar, nem que seja só para falares comigo. Podes telefonar a qualquer hora. O que disse há pouco foi a sério... Estou do teu lado. Venho buscar-te logo de manhã.
Angie não lhe dera resposta, limitando-se a ficar no mesmo sítio com uma expressão amuada, franzina no blusão de ganga demasiado largo para o seu tamanho e que pertencera a outra pessoa.
Tenta dormir alguma coisa, miúda dissera Kate numa voz suave quando se despediu.
Deixara a garota de pé no pequeno escritório, olhando através da janela, com uma expressão abstracta, para as luzes da casa ao lado. Aquela imagem pungente despertara em Kate um sentimento de simpatia. O simbolismo de uma jovem solitária a olhar para uma família. Uma garota sem ninguém.
É por este motivo que não trabalho com miúdos disse Kate falando para o gato. Arruinariam a minha reputação de mulher dura.
Thor emitiu um ronronar vindo do fundo da garganta rolando e deitando-se sobre o dorso, oferecendo a barriga peluda para que ela o afagasse. Kate fez-lhe a vontade, desfrutando do contacto físico com outro ser vivo que, à sua maneira, a amava e apreciava. Pensou em Angie DiMarco deitada no escuro sem conseguir conciliar o sono, numa casa cheia de estranhos; a única ligação na sua vida que tinha algum significado para alguém era a que a ligava ao assassino.
Uma mensagem, sob a forma de uma luz intermitente, saudou Quinn quando entrou no seu quarto no Hotel Madisson Plaza. Atirou o saco com a comida mexicana para dentro do cesto dos papéis debaixo da mesa, ligou para o serviço de quartos, pedindo uma sopa de arroz e uma sandes de perú que, muito provavelmente, também não comeria. Mas a verdade é que o seu estômago não estava capaz de aguentar mais culinária mexicana.
Despiu-se, colocando todas as peças de vestuário, excep tuando os sapatos, num saco de plástico a que puxou o atilho e deu um nó, colocando-o à porta do quarto. Uma das pessoas que trabalhava na lavandaria num dos pisos inferiores teria uma surpresa desagradável.
A água jorrava do chuveiro com o impacto de uma saraivada de balas, tão quente quanto ele era capaz de suportar. Lavou o cabelo e o corpo escrupulosamente, deixara que a água quente desfizesse os nós que sentia nos músculos dos ombros, e depois voltou-se deixando que lhe caísse sobre o rosto e peito. As imagens do que acontecera ao longo do dia passavam-lhe desordenadamente pelo pensamento: a reunião, o advogado de Bondurant, a corrida até ao aeroporto, a fita de plástico que delimitava o local do crime adejando dos troncos sólidos dos bordos, Kate.
Kate. Cinco anos era muito tempo. No espaço de cinco anos, ela estabelecera-se numa nova carreira, arranjara uma vida nova do que era muito merecedora depois de tudo o que lhe tinha corrido mal no estado da Virgínia.
E o que é que ele teria construído em cinco anos para além da sua reputação e muito tempo de férias que não gozara?
Nada. Era proprietário de uma casa na cidade e de um Porsche, assim como de um guarda-fatos cheio de roupa de marca. Poupava o dinheiro que conseguia pôr de lado para uma aposentação que, provavelmente, culminaria num ataque fulminante das coronárias dois meses depois de ter abandonado o FBI, porque não havia mais nada na sua vida. Isto é, se o trabalho não o matasse antes de se reformar.
Fechou a torneira do chuveiro e começou a secar-se com atoalha. Tinha o corpo de um atleta, sólido e muito musculoso, mais magro do que em tempos fora o reverso do que costumava suceder aos homens de quarenta e tal anos. Não se recordava do momento em que aquilo que comia passara a ser-lhe completamente indiferente. Em tempos muito recuados, tinha-se considerado um bom cozinheiro. Agora comia porque a isso era obrigado. O exercício físico a que recorria para eliminar a tensão também lhe queimava todas as calorias.
O cheiro apimentado e gorduroso que vinha da comida mexicana que deitara fora entranhara-se por todo o quarto. Era preferível ao cheiro que emanava de um cadáver incinerado, embora soubesse por experiência que seria ainda mais desagradável quando começasse a azedar, um cheiro que o despertaria por volta das três da madrugada.
Aquele pensamento trouxe-lhe à mente um turbilhão de recordações desagradáveis de outros quartos de hotel, em outras cidades, e outros jantares ingeridos para afastar o sabor e cheiro que a morte lhe deixava na boca. Recordou-se das ocasiões em que ficava deitado no escuro, sem conseguir dormir, numa cama estranha a meio da noite, a suar que nem um cavalo devido aos pesadelos que lhe aceleravam as batidas do coração.
Sentiu o ataque de pânico em cheio no estômago como se fosse um martelo numa forja; sentou-se na beira da cama com as calças de um fato de treino e uma T-shirt cinzenta com o logotipo da Academia do FBI. Por uns momentos, pôs a cabeça nas mãos, receando a eminência de um ataque, o vazio, as tonturas; os temores que tinham início no mais fundo da sua pessoa e que o agitavam até saírem, percorrendo-lhe os braços e as pernas; a sensação de que não lhe restava nada da pessoa que realmente era, o medo de não ser capaz de distinguir essa diferença.
Invectivou-se a si próprio, socorrendo-se de tudo o que havia no seu âmago a fim de reunir as forças necessárias para resistir a essa sensação, tal como fizera em inúmeras ocasiões ao longo do último ano. Ou já teriam passado dois? Quinn media o tempo servindo-se dos casos como ponto de referência; por seu turno, estes eram aferidos através do número de corpos. Tinha um sonho que se repetia continuamente, em que se encontrava encerrado num quarto branco. puxando os cabelos um a um, dando a cada fio de cabelo o nome das vítimas e colando-os às paredes com a sua própria saliva.
Ligou o televisor apenas para ter algum barulho no quarto que abafasse a voz do medo que lhe soava na cabeça; em seguida, efectuou a ligação que lhe permitia ouvir as mensagens no seu telefone via voice mail.
Sete telefonemas relacionados com outros casos que arrastara consigo até ali: uma série de assassínios ligados a furtos e tortura de homossexuais em Miami; a morte por envenenamento de cinco senhoras de idade avançada em Charlotte, na Carolina do Norte; o caso do rapto de uma criança em Blacksburg, na Virgínia, que se transformara num caso de homicídio a partir das vinte horas e dezanove minutos. fuso horário da costa leste, dado que o corpo da garotinha fora descoberto numa ravina densamente arborizada.
Ficou fulo, devia ter estado presente. Ou talvez devesse ter estado na região rural da Jórgia, onde uma mulher, mãe de quatro filhos, fora morta à pancada com um martelo, crime cometido de uma maneira que lhe trouxe à recordação outros três assassínios que haviam ocorrido ao longo dos últimos cinco anos. Ou ainda, talvez devesse ter estado em Inglaterra onde procederia a consultas junto dos seus colegas da Scotland Yard sobre um caso em que tinham sido encontrados nove cadáveres mutilados, deixados ao abandono nos terrenos de um matadouro, os olhos tinham sido extraídos das órbitas de todos, enquanto os lábios tinham sido cosidos com uma linha encerada
Agente especial Quinn, fala Edwyn Noble
E como é que conseguiu saber este número? perguntou em voz alta, falando consigo mesmo e continuando a ouvir a mensagem
Não se sentia minimamente entusiasmado com a participação de Noble naquela investigação
O facto de o homem ser casado com a presidente da Camara Municipal dava-lhe uma vantagem de que nenhum outro advogado na cidade teria gozado. Mas o facto de ele ser o advogado de Peter Bondurant abria-lhe todas as portas de par em par
Estou a telefonar em representação de Mister Bondurant. O Peter teria muito prazer em encontrar-se consigo amanhã de manhã, se possível. Por favor, telefone-me ainda esta noite. Deixou um número de telefone, após o que a gravação de uma voz sedutora informou Quinn que não recebera mais telefonemas
Quinn pousou o auscultador no descanso, com a intenção de voltar a levantá-lo para ligar a Noble Mas decidiu que ia deixá-lo sofrer um pouco. Caso o advogado tivesse alguma informação pertinente para o caso, teria a possibilidade de falar com Kovac ou Fowler, o tenente da secção de homicídios. Quinn não retribuiu nenhum dos telefonemas, preferindo esperar até depois de não ter comido o seu jantar
O noticiário das vinte e duas horas abriu com uma reportagem relativa ao ultimo homicídio, com a transmissão de imagens da equipa pericial que trabalhara no local onde o cadáver fora encontrado, passando a lixeira no parque a pen te fino, a noticia seguinte concenttava-se na conferência de imprensa. Também mostraram uma fotografia de Jilhan Bondurant e outra do seu Saab vermelho. Ao todo, uns bons três minutos e meio de cobertura. O tempo de duração média das notícias daquele tipo era menos de metade
Quinn procurou no interior da sua pasta os processos referentes aos dois primeiros homicídios, colocando-os em cima da escrivaninha, um em cima do outro. Eram compostos por cópias dos relatórios de investigação e fotografias tiradas no local onde os dois cadáveres haviam sido encontrados. Assim como relatórios das autópsias, resultados dos exames laboratoriais, e relatórios das averiguações iniciais e de acompanhamento do caso. A toda aquela documentação tinham sido acrescidos recortes de artigos publicados nos jornais Minneapolis Star Tribune e o St. Paul Pioneer Press,
Descrições e fotografias dos locais dos crimes.
Quinn deixara bem claro que não queria que lhe facultassem quaisquer informações sobre possíveis suspeitos, caso houvesse algum, pelo que esse tipo de informação não constava dos dossiers. Não podia permitir que as especulações de uma pessoa qualquer com relação a um possível suspeito toldassem o seu julgamento, ou o levassem a dirigir as suas análises numa determinada direcção. Outra razão para ter preferido elaborar um perfil psicológico a partir do seu gabinete em Quântico. Ali, sentia-se demasiado próximo dos acontecimentos; o caso envolvia-o por todos os lados. As personalidades que intervinham, fosse de que maneira fosse, podiam dar origem a reacções que ele nunca teria tido se estivesse em presença de uma série de adjectivos e factos lineares. Existiam muitos dados que não possuíam o mínimo valor, demasiadas distracções.
Distracções a mais... como Kate. Que não lhe telefonara uma vez que não tinha motivo nenhum para o fazer. Exceptuando o facto de em tempos terem partilhado qualquer coisa de muito especial... a que viraram costas... permitindo que essa relação morresse com o afastamento...
Nada na vida de um homem possuía um poder tão perturbador quanto um passado irreparável. A única cura que tinha encontrado para o passado consistia em tentar controlar o presente, o que significava que se dedicava de alma e coração à investigação dos casos criminais de que era incumbido. Concentrando-se intensamente em manter o controlo sobre o presente. Além de se esforçar por manter o domínio sobre a sua sanidade mental. E quando as noites pareciam eternizar-se como acontecia com todas, alturas em que lhe desfilavam velozmente pelo pensamento todos os pormenores respeitantes a uma centena de assassínios, sentia-se prestes a perder as suas capacidades de domínio.
Angie estava sentada na beira da cabeceira comum às duas camas duras de pessoa só, com as costas contra a quina, sentindo as irregularidades do estuque da parede através da flanela da camisa axadrezada que escolhera para dormir. Mantinha-se sentada com os joelhos junto do queixo, numa posição em que os braços enlaçavam firmemente as pernas. A porta do quarto estava fechada; Angie encontrava-se sozinha. A única luz que se filtrava através da janela vinha de um candeeiro de rua distante.
A Casa Phoenix destinava-se a mulheres que se «erguiam para uma nova vida». Pelo menos, era o que a tabuleta no relvado da frente anunciava. Era uma construção espaçosa e antiga, de aspecto pouco agradável, com os seus soalhos rangentes e sem o mínimo requinte. Kate levara-a para ali, deixando-a sozinha entre as ex-prostitutas e extoxicodependentes, juntamente com mulheres que tentavam escapar às sevícias de amantes que lhes davam porrada de criar bicho.
Angie espreitara para dentro de uma sala de estar, cheia de um mobiliário muito fanado, onde algumas dessas mulheres viam televisão, pensando até que ponto é que seriam estúpidas. Se havia alguma coisa que a vida lhe ensinara era que se podia escapar às circunstâncias, embora nunca fosse possível fugir-se à pessoa que se era. A verdade pessoal de cada um era como que uma sombra: não havia maneira de ser rejeitada, ou mudada, tal como era impossível descartarmonos de nós mesmos.
Naquele momento, sentia que essa sombra se abatia sobre si, fria e escura. O corpo tremia-lhe e as lágrimas assomavam-lhe aos olhos. Ao longo de todo o dia esforçara-se por resistir às suas emoções, o que se arrastara pela noite dentro. Ocorreu-lhe que iriam tragar todo o seu ser, mesmo defronte de Kate um pensamento que só servia para lhe instilar uma sensação de pânico. Não podia dar-se ao luxo de se descontrolar em frente fosse de quem fosse. As pessoas pensariam que estava louca, que sofreria de uma anomalia qualquer. Remetê-la-iam imediatamente para um hospício de doidos. Então, ficaria só e abandonada.
Naquele momento sentia-se só e abandonada.
Os tremores tinham origem no mais fundo do seu íntimo, espraiando-se cada vez mais intensamente, provocando-lhe a sensação de um vazio enorme. Ao mesmo tempo, tinha a impressão de que a sua consciência mirrava progressivamente, até começar a sentir-se como se o seu corpo não passasse de uma mera carapaça que aprisionava um ser de tamanho ínfimo no seu interior, correndo o risco de se despenhar pelo precipício, caindo num qualquer abismo sombrio, sem nunca mais conseguir sair dele.
Classificava esta sensação de «Zona.» A Zona era a sua velha inimiga. Tinha plena consciência de que aquele estado de espírito a aterrorizava sempre que se fazia sentir. Sabia de antemão que, se não lhe desse luta, arriscar-se-ia a perder o domínio das suas emoções, e esse domínio era tudo o que lhe restava. Se não lhe oferecesse resistência, poderia vira perder segmentos inteiros de tempo. Era capaz de se perder nesse imenso vazio, e depois o que é que poderia suceder-lhe?
Naquele momento, sentia-se de tal maneira abalada que começou a chorar. Um pranto silencioso. Sempre em silêncio.
Não podia permitir que alguém pudesse ouvi-la, não poderia revelar a ninguém até que ponto é que se sentia atemorizada. A boca abriu-se num esgar, mas estrangulou os soluços de pranto até que a garganta começou a doer-lhe. Premiu as faces contra os joelhos, cerrando os olhos com toda a sua força. Sentia as lágrimas escaldantes que lhe corriam pela coxa nua.
Em pensamento, via o cadáver a arder. Desatara a correr, fugindo-lhe. Correra sem parar e sem destino certo. Na sua mente, o cadáver tornou-se a sua pessoa; todavia, não sentia as labaredas. As dores teriam sido bem-vindas, mas não era capaz de as evocar apenas com a força da sua mente. Tinha a sensação de que cada vez estava a ficar mais pequena dentro da carapaça que era o seu corpo.
Pára com isso! Pára com isso! Beliscou a coxa com toda a força, enterrando na pele as unhas roídas. Mas isso não impediu que Angie continuasse a sentir-se sugada para as profundezas da Zona.
Sabes o que é que tens a fazer, dizia-lhe a voz que se desfraldava qual faixa negra no seu pensamento. Em resposta, sentiu o corpo atravessado por um arrepio gélido. Era uma fita que se enredava nas suas partes vitais, uma estranha matriz de medo e carência.
Sabes o que tens a fazer.
Com frenesim, puxou a mochila para junto de si, tentando desajeitadamente correr o fecho, procurando na bolsa interior aquilo de que tão necessitada estava. Os dedos rodearam o pequeno cabo em cujo interior se encontrava uma lâmina retráctil, um instrumento cortante dissimulado sob a forma de uma chave de plástico.
Com as mãos a tremer, estrangulando o choro na garganta, aproximou-se mais da luz fixa na parede acima da cabeceira da cama e arregaçou a manga esquerda da camisa de flanela, expondo um braço magro de pele muito branca onde se via uma correnteza de pequenas cicatrizes estreitas, umas ao lado das outras, cobrindo-lhe os braços como se fossem barras num gradeamento de ferro. De dentro do pequeno cabo surgiu uma lâmina, qual língua de uma serpente, com que golpeou a pele tenra próxima do cotovelo.
A dor provocou-lhe um misto de dor e doçura, dando-lhe a sensação de um curto-circuito de pânico que lhe electrificou o cérebro. O sangue começou a brotar do golpe, umagotícula escura e cintilante sob a luz do luar. Como que hipnotizada, Angie ficou a olhar para o sangue, sentindo-se invadida por uma enorme sensação de calma.
Controlo. Tudo na vida tinha a ver com o poder de autodomínio. Dor e controlo. Havia muito tempo que ela aprendera essa lição.
Estou a pensar em mudar de nome diz ele. O que é que achas de Elvis? Elvis Nagel?
A companhia não lhe dá réplica. De um amontoado de coisas dentro de uma caixa, ele retira um par de cuequinhas premindo-as contra o rosto, mergulhando o nariz na junção entre pernas, cheirando profundamente o odor a vagina. Agradável. Na sua opinião, o cheiro não era um estimulante tão intenso como o som, mas mesmo assim...
Estás a perceber? pergunta. É um anagrama. Elvis Nagel Evils Angel’.
Como som de fundo, ouviam-se três televisores que transmitiam as gravações em cassetes de vídeo dos noticiários locais das dezoito horas. As vozes misturavam-se numa
1 Anjo do Demónio. (N. da T.)
amálgama discordante, uma cacofonia que ele considera ser estimulante. Todas as vozes deixam transparecer uma entoação de premência. A premência dá origem ao medo. O medo deixa-o excitado. Muito em especial, gosta do som do medo. A tensão cerrada e fremente subjacente a uma voz controlada. As alterações erráticas no timbre e entoação era voz de uma pessoa francamente atemorizada.
A imagem da presidente da Câmara surge em dois dos ecrãs. A vaca feia. Observa-a a falar, perguntando a si mesmo qual seria a sensação que teria ao cortar-lhe os lábios, removendo-os da boca, enquanto ela estivesse viva. Talvez até a obrigasse a comê-los. Aquela fantasia excita-o sexualmente, como acontecia sempre com todas as suas fantasias
Aumenta o volume do som dos três televisores, o qual é transmitido através do sistema estereofónico, cujas colunas estão na estante, e começa a seleccionar uma cassete do expositor, inserindo-a no aparelho. Coloca-se no centro da sala na cave, olhando fixamente para os ecrãs, enquanto os sobrolhos carregados dos apresentadores televisivos e a expressão no rosto das pessoas presentes na conferência de imprensa lhe surgem de três ângulos diferenciados, deixando-se banhar pelos sons, as vozes dos repórteres, o som de fundo no recinto cavernoso, a entoação de premência Em simultâneo, das colunas estereofónicas é difundida a voz de um medo cru em toda a sua nudez. Suplicante. Invocando o nome de Deus. Implorando a morte. O seu momento de triunfo.
Encontra-se no centro daquela situação apocalíptica O regente daquela ópera macabra. A sensação de excitação começa a acumular-se dentro de si, uma enorme excitação sexual, quente e tumefacta, que atinge níveis de crescendo, exigindo ser libertada. Olha para a sua companhia daquela noite, mostrando uma expressão de quem está a reflectir em algo, mas consegue controlar a necessidade.
O controlo é tudo. O controlo é poder. Ele é a acção, Eles são a reacção. Deseja ver o medo em todos os semblantes, adivinhando-o nas suas vozes, a Polícia, o grupo de trabalho. John Quinn. Especialmente, na voz de Quinn a qual nem sequer se tinha dado ao incómodo de falar durantt a conferência de imprensa, como se quisesse que o Cremador pensasse que não era merecedor da sua atenção pessoal
Mas há-de conseguir despertar a atenção de Quim
O dia em que será merecedor do seu respeito não está longe. Terá tudo o que quiser porque é o detentor do controlo. Reduz o som dos televisores até que se ouve apenas uma mistura ensurdecida de sons, embora não os desligue para que o silêncio não regresse. O silêncio é algo que ele detesta, Desliga o sistema estereofónico, mas mete no bolso um leitor portátil de cassetes depois de lhe ter inserido uma cassete.
Vou sair diz ele. Estou farto de ti. Estás a aborrecer-me.
Encaminha-se para o manequim, o objecto da sua macabra brincadeira, experimentando várias combinações de roupas das suas vítimas.
Não que eu não te dê valor acrescenta numa voz serena. Inclina-se para a frente beijando-a, metendo a língua na boca entreaberta. Em seguida, ergue a cabeça da sua última vítima que retira de cima do tronco do manequim, voltando a colocá-la dentro do saco de plástico, após o que a leva para o frigorífico na casa das lavagens onde pousa o saco cuidadosamente em cima de uma prateleira.
O ar da noite é pesado dado o nevoeiro cerrado e ao orvalho; as ruas estão mergulhadas em escuridão e os pavimentos molhados brilham, reflectindo a pouca luz dos candeeiros de rua. Uma noite que traz à memória a recordação de Jack, o Estripador, na cidade de Londres da sua época. Uma noite boa para a caça.
Sorri perante aquele pensamento enquanto conduz o automóvel em direcção ao lago. O seu sorriso rasga-se ao carregar no botão que liga o leitor de cassetes, encostando o aparelho ao ouvido, escutando os gritos lancinantes numa metamorfose de palavras segredadas por uma amante. O afecto e o desejo desfigurados no ódio e medo. Duas faces das mesmas emoções. A diferença é o controlo.
Se a gente dos jornais conseguir descobrir-nos aqui. prometo que como as minhas cuecas declarou Kouc, descrevendo um círculo completo no centro do soalho.
Numa das paredes via-se uma montagem com várias fotografias de mulheres nuas que se entregavam às mais diversificadas práticas eróticas, enquanto as outras três haviam sido revestidas de um papel de parede vermelho, ordinário e em muito mau estado que mais se assemelhava a um veludo comido pelas traças.
Há qualquer coisa que me diz que não teria sido difícil que lhe fizessem isso aqui comentou Quinn com secura. Começou a fungar, como se cheirasse o ar, identificando o fedor a ratazanas, perfume ordinário e roupa interior com cheiro a bafio. E por um preço que seria uma autêntica pechincha.
Se os repórteres abelhudos nos encontram aqui, as nossas carreiras irão por água abaixo declarou Elwod Knutson. O gigantesco sargento da secção de homicídios retirou de uma gaveta, na parte de dentro de uma bancada, um enorme pénis de cerâmica, erguendo-o para que todos pudessem observá-lo.
Jesus, Sam! exclamou Liska com uma expressão de desagrado. Não há dúvida de que sabes como escolhê-los.
Não olhes para mim! Pensas que passo a vida nos salões de massagens?
Sim, sim...
Muito engraçado. Estes aposentos encantadores foram-nos cortesmente cedidos pelo detective Adler, do gabinete do xerife de Hennepin County. Chunk, faz uma vénia de agradecimento.
Adler, um naco de músculos revestidos por uma pele cor de ébano e uma cabeleira encarapinhada com fios de cabelo de um grisalho metálico, brindou os outros membros do grupo de trabalho com uma careta sorridente que expressava timidez, acompanhada de um aceno de mão
A minha irmã trabalha no Banco Norwest. Eles procederam à execução da hipoteca do prédio, depois de a brigada de costumes o ter selado no Verão passado. A localização é perfeita e o preço bastante apetecível, quer dizer, de borla ao que se acrescenta o facto de a imprensa ter perdido o interesse no local depois de as prostitutas se terem mudado. Ninguém desconfiará que este é o local onde nos reunimos
O que era a vantagem principal, pensou Quinn seguindo Kovac pelo corredor estreito, enquanto o detective ligava sucessivamente os interruptores da luz de quatro salas mais pequenas duas em cada um dos lados do corredor. Era essencial que fosse permitido ao grupo de trabalho o desempenho das suas funções sem quaisquer interrupções ou distracções, sem que fossem forçados a ver-se a braços com uma falange de repórteres. Um local onde as investigações relativas ao caso pudessem ser mantidas em sigilo e as fugas de informação reduzidas ao mínimo
E caso essas fugas persistissem, a razão estaria do lado de Elwood. A imprensa encarregar-se-ia de destruir as suas carreiras numa fogueira na praça pública
Adoro este lugar. declarou Kovac percorrendo o corredor em passos largos no sentido contrário, regressando á sala principal. Proponho que nos instalemos sem demoras
Achas que podemos desinfectar as instalações primeiro’’ perguntou Liska, franzindo o nariz
Com certeza, Tinks. Até podes renovar a decoração enquanto o resto do pessoal resolve estes assassínios
Vai-te foder, Kovak Só espero que sejas o primeiro a apanhar chatos na tampa da sanita
Não... Esse é o Cu Sentado que costuma ler a Reader’s Digest quando vai à retrete. Os chatos vêem-lhe o olho do cu peludo e vêm a correr. O mais certo é ele ter toda uma colónia de chatos a viver no coiro cheio de pêlos
’Em inglês tink alcunha que é dada a esta personagem ao longo do texto N da T)
Elwood, o qual tinha mais ou menos a constituição de um pequeno urso-pardo, ergueu a cabeça, exibindo uma postura cheia de dignidade.
Em nome dos peludos de todo o mundo, quero expressar o quanto me sinto melindrado.
Ah, sim?! exclamou Kovac. Pois bem, leva os melindres até lá fora quando fores buscar algumas das coisas cá para dentro. Estamos a desperdiçar a luz do dia,
Havia duas carrinhas estacionadas no beco, sem nada que as identificasse como fazendo parte da frota automóvel do departamento da polícia. Nelas encontrava-se todo o mobiliário e demais equipamento de escritório. Tudo aquilo fora levado para o interior do antigo Salão de Massagens Toque de Amor, juntamente com caixotes cheios de artigos de escritório, uma cafeteira eléctrica e, muito importante, as caixas que continham toda a documentação referente aos três homicídios; entre si, os detectives atribuíam ao assassino a alcunha de Joe «Fumacento».
Quinn trabalhava ao lado dos colegas. Não se destacava dos outros. Esforçava-se por se integrar no grupo, como qualquer futebolista com liberdade para negociar o seu contrato com o clube que mais vantagens lhe oferecesse, e cujo presidente o utilizaria para ganhar o campeonato, após o que o desvincularia. As piadas eram um tanto ou quanto forçadas, e as tentativas de camaradagem soavam a falso. Quando o caso estivesse resolvido, algumas daquelas pessoas ficariam com a impressão de que o conheciam. Mas a verdade é que não o conheceriam de todo.
Mesmo assim, Quinn comportava-se como sempre, apresentando esse simulacro de integração, sabendo antecipadamente que nenhum dos que estavam à sua volta seriam capazes de reparar na diferença da mesma maneira que as pessoas que certamente trabalhavam todos os dias ao lado do assassino em série não saberiam, nem tão-pouco suspeitariam, de nada. De uma maneira geral, as pessoas possuíam uma visão um tanto restrita dos seus pequenos mundos. Focavam-se apenas naquilo que para eles era importante. A alma em putrefacção do fulano que trabalhava no cubículo ao lado do seu era assunto que não lhes dizia respeito até que a doença dele afectasse directamente as suas vidas.
Qual refeição rápida, o Toque de Amor tinha-se transformado de um bordel num gabinete de crise. Por volta das nove horas, todos os que compunham o grupo de trabalho já estavam reunidos, seis detectives do Departamento da polícia de Minneapolis, três do Gabinete do Xerife, dois do Departamento de Perícia Criminal Estadual do FBI, Quinn. Este ultimo dava a impressão de sofrer de malária. Kovac pô-los ao corrente dos últimos aspectos relativos aos três assassínios, concluindo com o relatório da autópsia da vitima por identificar, informações que completou com fotografias que haviam sido reveladas e ampliadas no laboratório da polícia num tempo recorde
Estou a contar receber ainda hoje alguns resultados preliminares do laboratório - disse enquanto circulava as fotografias macabras pelos que se sentavam à mesa. Já temos um tipo sanguíneo, O positivo, que por acaso é o da Jilhan Bondurant, assim como de muitos milhares de outras pessoas
«Quero que reparem nas fotografias que mostram os ferimentos no corpo de onde foram removidas várias secções de tecidos. As duas primeiras vitimas também apresentavam mutilações semelhantes. Estamos a especular que o homicida deve ter cortado as marcas de dentadas Mas no que diz respeito à mais recente, é possível que ele tenha removido quaisquer marcas de identificação que pudessem provar, ou refutar, a identidade da vitima, cicatrizes, sinais, etc
E tatuagens sugeriu alguém
O pai da Bondurant não se recorda de a filha ter alguma tatuagem. De acordo com o que o advogado dele nos disse, não é capaz de se lembrar de nenhuma marca especial que possa assinalar. Durante metade da vida dela, a Jillian não viveu com o pai, pelo que a ignorância dele não me surpreende. Estamos a tentar arranjar fotografias em que esteja de fato de banho ou com pouca roupa, mas até agora não tivemos sorte nenhuma
«Estamos a proceder partindo do princípio de que esta ultima vitima é de facto a Jillian Bondurant acrescentou, embora nos mantenhamos receptivos a outras possibilidades. Recebemos alguns telefonemas através da linha especial que indicámos para esta investigação, pessoas que afirmam tê-la visto desde sexta-feira passada, mas nenhuma dessas informações foi confirmada até à data
Tenciona abordar o assunto do resgate? Perguntou Mary Moss do Departamento de Perícia Criminal. Parecia uma mãe de família dos subúrbios com uma camisola de gola alta e um casaco axadrezado. As suas feições eram dominadas por uns óculos de tamanho exagerado. O cabelo farto de um louro-acinzentado, com um corte à pajem, estava desesperadamente necessitado de ser desbastado.
Até agora, que nós saibamos, ainda não foi apresentado qualquer pedido de resgate interveio Kovac, mas não é uma hipótese descabida.
O papá Bondurant ainda não se apressou a admitir a hipótese de rapto comentou Adler. Além de mim, há mais alguém que ache isso estranho?
Ele ouviu falar da carta de condução que foi encontrada junto do corpo, e aceitou a probabilidade de o corpo poder ser o da filha concluiu Hamill.
Volto a perguntar: há alguém que ache esse pormenor estranho, além de mim repetiu Adler abrindo uma màc de tamanho gigantesco. Quem é que está disposto a aceitar, assim sem mais nem menos, que a sua própria filha é a vítima decapitada de um homicida maníaco? Não seria lógico que um homem tão rico quanto o Bondurant pensasse em primeiro lugar, numa hipótese de rapto antes de admitir um assassínio?
Ele já se decidiu a falar? perguntou Elwood, comendo um pãozinho integral com manteiga enquanto passava uma vista de olhos pelas fotografias da autópsia.
Comigo, não respondeu Kovac.
Isso também não me está a agradar nada.
O advogado dele telefonou-me ontem à noite e deixou uma mensagem atalhou Quinn. O Bondurant quer encontrar-se comigo esta manhã.
A sério?! retorquiu Kovac, recostando-se para trás com uma expressão de perplexidade. O que é que disse?
Nada. Deixei-o na expectativa durante toda a noite. Nesta fase do jogo, não estou particularmente interessado em encontrar-me com ele, mas se isto puder ajudá-lo a metter um pé na porta...
Você precisa de uma boleia até casa do Bondurant replicou Kovac com um sorriso de tubarão, não é verdade, John?
Acham que tenho tempo para telefonar? Quero actualizar o meu seguro de vida respondeu Quinn, mordaz, rindo-se, com a cabeça de lado.
Em redor da mesa ouviu-se uma explosão de gargalhadas. Kovac fez uma careta.
A noite passada deu-me boleia quando saímos da morgue explicou Quinn. Cheguei a pensar que acabaria por voltar para lá metido num saco preto para cadáveres.
Ei rosnou Kovac, fingindo-se irritado. Prometo-lhe que sou capaz de o levar inteiro.
Na verdade, estou em crer que o meu baço ficou perdido algures em Marquette. Talvez possamos apanhá-lo durante o caminho.
Ele só chegou há um dia, mas já te conhece de ginjeira, Sam disse Liska na brincadeira.
Sim, sim... olha quem fala, Tinks acrescentou alguém.
Eu só conduzo como o Kovac quando atravesso uma das minhas crises de síndroma pré-menstrual.
Muito bem, já chega; voltemos ao que interessa atalhou Kovac, erguendo a mão. Regressemos às marcas das dentadas. Quando investigámos o primeiro homicídio, inserimos esse pormenor no nosso banco de dados, tendo como referência assassínios ou crimes de natureza sexual, procurando criminosos que tivessem mordido ou canibalizado as suas vítimas; o computador forneceu-nos uma lista. Também investigámos junto de outros serviços e ficámos com outra lista. Ergueu um maço de folhas unidas pelo picotado de computador.
Daqui a quanto tempo é que podemos ter a certeza se este corpo é da Bondurant ou não?
Gary «Charm» Yurek, do departamento da polícia, fora designado como representante do grupo de trabalho junto dos meios de comunicação social, tendo a incumbência de fornecer diariamente as patranhas oficiais habituais. Era senhor de umas feições que não envergonhariam qualquer estrela de telenovelas. Os seus interlocutores tinham tendência para se distraírem ao concentrarem-se na perfeição do seu sorriso, passando-lhes despercebido que ele, na realidade, não dissera nada de substancial.
- Vince - chamou Kovac, fitando Walsh -, há alguma novidade em relação aos registos clínicos da rapariga?
- Os nossos escritórios em Paris estão a tentar consegui-los - respondeu Walsh por entre uma tosse de fumador, abanando a cabeça. - Têm-se esforçado por entrar em contacto com o padrasto, mas acontece que está numa das obras entre a Hungria e a Eslováquia.
- Aparentemente, desde que regressou aos Estados Unidos, ela tem sido a imagem de uma saúde perfeita adiantou Liska. - Não sofreu nenhumas lesões ou doença grave, nada que necessitasse de radiografias... excepto os dentes.
-Não há dúvida de que ele nos trocou as voltas muito bem quando levou a cabeça - queixou-se Elwood.
- Tem alguma ideia a esse respeito, John? - perguntou Kovac.
- Pode ser que ele tenha tido a intenção de atrapalhar as averiguações. Também é possível que o corpo não seja o da Jillian Bondurant, pelo que ele nos estaria a tentar enviar uma mensagem, ou então tem uma jogada qualquer em vista
- sugeriu Quinn. - Talvez a vítima fosse alguém que ele conhecia... quem quer que ela seja, tendo decidido decapitá-la com o fito de a despersonalizar. Por outro lado, talvez a decapitação seja um novo passo numa escalada de violência nas suas fantasias macabras, tornando-as realidade. Também pode ser que tenha ficado com a cabeça como se fosse uma espécie de troféu, É possível que esteja a servir-se dessa parte do corpo na concretização das suas fantasias sexuais.
- Judas - resmungou Chunk.
- Não se pode dizer que você esteja a reduzir as possibilidades - adiantou Tippen, outro dos detectives do xerife, mostrando um semblante carregado.
- As informações que tenho a respeito dele não me permitem conhecer a sua maneira de ser - replicou Quinn numa voz calma. - o que é que você sabe? O básico.
-Tal como?
Quinn olhou para Kovac, que, com um gesto, lhe indicou a cabeceira da mesa.
- Isto não é, de maneira nenhuma, uma análise completa. Quero que este aspecto fique bem claro. Ontem à noite
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fiz uma leitura rápida aos relatórios, mas são precisas mais de duas horas para se poder estabelecer um perfil psicológico sólido e acurado
Muito bem, você está a acautelar a sua posição retorquiu Tippen com mostras de impaciência. Com base naquilo de que se inteirou, de quem é que lhe parece que andamos à procura?
Quinn fez um esforço para se manter calmo. Para ele, não era novidade nenhuma deparar-se-lhe um céptico entre as pessoas com quem trabalhava. Há muito que aprendera a lidar com pessoas daquele género, como devia agir, até certo ponto, dando-lhes a volta com a sua lógica e sentido prático. Fixou o olhar em Tippen, um homem magro, despretensioso e com uma fisionomia que tinha algumas parecenças com um wolfhound-irlandês umas feições onde o nariz e o bigode predominavam, a par de uns sobrolhos hirsutos acima de uns olhos escuros de expressão penetrante
O vosso «sujeito desconhecido» é um indivíduo de raça branca do sexo masculino, muito provavelmente entre a faixa etária dos trinta e os trinta e cinco anos. Regra geral, os assassinos em série que manifestam tendências sádicas caçam em grupo entre gente da sua própria etnia. Apontando para os grandes planos das fotografias que mostravam os ferimentos, tiradas no local dos crimes, acrescentou. Temos um padrão muito específico de ferimentos, cuidadosamente repetido em todas as vitimas. Levou muito tempo até aperfeiçoar esta fantasia. Quando o encontrarmos descobriremos uma colecção de artigos pornográficos de natureza sado-masochista. Há muito tempo que ele se dedica a esta aberração. A sofisticação que imprime aos crimes que comete, o cuidado que tem para não deixar nenhuma prova física que pudéssemos utilizar, sugere um elevado grau de maturidade e experiência. É possível que tenha um cadastro antigo por atentados ao pudor. Mas registo criminal ou não, tem vindo a trilhar esta senda desde os seus vinte anos, mais ano menos ano
«O mais plausível será ter começado a espreitar furtivamente, ou a cometer pequenos furtos relacionados com os seus fetichismos roubando peças de roupa interior feminina e coisas do género. É possível que essas práticas continuem a fazer parte das suas fantasias. Não sabemos que destino é que dá às roupas das vitimas. As indumentárias com que as veste depois de as matar são escolhidas entre as que ele possui, especialmente seleccionadas para cada uma 4 mulheres
Imagina que ele terá brincado com bonecas Barbie quando era miúdo? perguntou Tippen, dirigindo-se a Adler
Se tiver sido esse o caso, pode apostar que elas acabaram por ficar sem alguns membros, apressou-se Quim a dizer
Jesus! Eu só estava a brincar
Não se trata de brincadeira nenhuma, detective. As fantasias aberrantes podem começar numa fase precoce entre os cinco e os seis anos de uma criança Principalmente no seio de uma família onde existam abusos de natureza sexual, ou a prática aberta de actos de promiscuidade, o que eu me atreveria a apostar ser o caso nesta situação
«Não se deve pôr de parte a hipótese de ele ter assassi nado muito antes da nossa primeira vitima, sem nunca ter sido apanhado. O facto de o crime não ter sido descoberto terá feito com que se sinta mais ousado, instilando-lhe uma sensação de invulnerabilidade. Por outro lado, o pormenor de abandonar os cadáveres em zonas públicas, onde podem ter sido vistos, e onde não teria a mínima dúvida de que os corpos seriam encontrados, indica-nos a atitude arriscada que nos sugere arrogância. Também nos dá indicadores do tipo de assassino que teremos de investigar. Quer ser alvo de atenção, mantem-se a par das notícias, recortara dos jornais os artigos que falam dele
Portanto, o comandante Greer ontem tinha razão quando alvitrou que se fizesse uma declaração dirigida a esse bandalho adiantou Kovac
Ele teve tanta razão ontem como terá hoje ou ama nhã, quando estivermos preparados para esse tipo de acção
E ao que tudo indica, é ideia sua resmungou Tippen
Terei todo o prazer em lhe permitir que a sugira aos manda-chuvas, detective replicou Quinn. Estou-me nas tintas se for outra pessoa a ficar com os louros. Não quero ver o meu nome nos jornais. Também não pretendo ver a minha imagem na televisão. Que diabo, se a escolha fosse minha, preferia fazer este trabalho no meu gabinete cerca de vinte metros abaixo da superfície do solo em Quântico. Nesta situação, só tenho um objectivo, ajudar-vos a caçar este filho da puta, retirando-o da sociedade de uma vez por todas e amen. No que me diz respeito, esta investigação resume se a isso
Tippen baixou o olhar para o bloco de apontamentos, continuando a mostrar cepticismo
Sabem começou Kovac com um pequeno suspiro, não temos tempo para estar com concursos para ver quem é que consegue mijar mais longe. Tenho a certeza de que ninguém de entre o público, de uma maneira generalizada está interessado em ver qual de nós é que tem a pixa maior
Tenho eu apressou-se Liska a dizer numa vozinha aguda, pegando no gigantesco pénis de cerâmica que colocara na mesa a fazer de centro. Ergueu o objecto como que a apresentar a prova do que dizia
Um coro de gargalhadas quebrou a tensão que se fazia sentir
Seja como for prosseguiu Quinn, metendo as mãos nas algibeiras das calças e sentando-se sobre uma perna, dando a entender subtilmente a Tippen que não estava disposto a arredar pé dali, estando-se positivamente marimbando para as opiniões do outro. Temos de ser muito cautelosos na maneira como vamos atraí-lo. Sugiro que comecemos por uma reunião com membros da comunidade local, amplamente divulgada, que terá lugar num ponto central entre os locais onde os corpos foram abandonados. Isto indicará que estamos a pedir ajuda, que queremos a participação da comunidade. É uma medida que não tem nada de agressiva e que não é ameaçadora. Ele poderá participar, sentindo-se em segurança dado o anonimato que a presença de outros lhe proporcionará
«Não será fácil enganá-lo com um truque desses, a menos que a sua arrogância lhe leve a melhor. Ele é uma pessoa organizada. Possui um nível de inteligência acima da média. Tem um emprego, embora este possa ser inferior às suas capacidades. Conhece bem o sistema de gestão dos parques da cidade, portanto, se ainda não o fizeram, talvez seja melhor elaborarem um rol de onde constem todos os funcionários que trabalham nos parques, para descobrir se algum deles tem cadastro criminal
Isso já está a ser feito adiantou Kovac
Como é que pode saber se ele tem algum emprego’ perguntou Tippen com um ar de desafio. Como é que pode estar tão seguro de que ele não é nenhum vagabundo que, por isso, estaria familiarizado com os parques, uma vez que o seu pouso habitual seria aí?
Ele não é nenhum vagabundo retorquiu Quinn com muita firmeza. Tem uma casa. Os sítios onde os corpos foram deixados não são os mesmos onde os crimes foram perpetrados. As mulheres foram sequestradas e levadas para um lugar qualquer, onde foram mantidas sob cativeiro. Ele precisa de privacidade, um lugar onde possa torturar as vítimas sem ter a preocupação de haver alguém que possa ouvi-las.
«Além do mais, talvez tenha mais de um veículo. Muito provavelmente, terá acesso a uma carrinha ou a outro tipo de utilitário. Uma viatura que não fuja aos moldes habituais, já antiga, de uma cor escura e bem mantida. Qualquer coisa em que possa transportar os cadáveres, um tipo de viatura que não destoaria no parque de estacionamento entre uma frota de viaturas dos serviços municipalizados. Embora talvez não seja neste género de veículo que ele as aborda, porque uma viatura com essas dimensões despertaria a atenção de qualquer possível testemunha.
Como é que você pode saber que ele tem um emprego abaixo das suas capacidades? perguntou Frank Hamill
Porque essa é uma característica deste tipo de assassinos. Têm um emprego porque necessitam dele. Mas as suas energias, os seus talentos, são inteiramente aplicados no seu passatempo. Ocupam grande parte do tempo a fantasiar as suas façanhas. Vivem em função da próxima matança. Um presidente de administração não disporia de tanto tempo livre.
Apesar de serem, em grande parte, perfeitos psicopatas atalhou alguém na brincadeira.
Dê-se por muito feliz por alguns deles gostarem das suas carreiras diurnas replicou Quinn, brindando-o com um sorriso feroz.
E que mais? inquiriu Liska. Alguém tem algum palpite em relação ao aspecto físico?
Quanto a isso, tenho de admitir que estou com as ideias um bocado baralhadas, dada a divergência que existe no tipo de vítimas.
As prostitutas são movidas pelo dinheiro e não pelo deslumbramento profissional adiantou Elwood.
Se as três vítimas se tivessem dedicado todas à prostituição, eu diria que procuramos um sujeito que não seja fisicamente atraente, com algum tipo de problema como, por exemplo, gaguez ou uma cicatriz na fisionomia, qualquer coisa que dificultaria o seu relacionamento com mulheres. Mas... e se vier a provar-se que a nossa terceira vítima é filha de um multimilionário? aventou Quinn arqueando uma sobrancelha.
Quem sabe em que é que ela terá andado metida...
Existe alguma razão que nos leve a pensar que ela estivesse envolvida em práticas de prostituição? perguntou Quinn. À primeira vista, não me parece que ela pudesse ter tido muito em comum com as duas primeiras vítimas.
Ela não tem cadastro policial adiantou Liska. Mas convém não esquecer que o pai dela é o Peter Bondurant.
Preciso de informações mais pormenorizadas com relação às características do tipo de vítimas em que se englobem as três acrescentou Quinn. Se houver algum elo de ligação comum às três, isso será um excelente ponto de partida para poderem começar a delinear o perfil de um suspeito.
Duas putas e a filha de um multimilionário... o que é que elas poderiam ter em comum? perguntou Yurek.
Drogas respondeu Liska.
Um homem sugeriu Mary Moss.
Vocês duas querem trabalhar esse ângulo? perguntou Kovac.
Ambas concordaram com um aceno de cabeça.
Mas talvez o tipo as tenha apanhado por detrás sugeriu Tippen. É possível que não tenha sido preciso estar com muita lábia para as engatar. Também pode ser que as tenha engatado porque estavam no lugar errado à hora errada.
É possível que sim. Só que não é isso o que os meus instintos me dizem replicou Quinn. Ele age de forma muito suave. Estas mulheres como que se evaporaram. Ninguém viu quaisquer indícios de resistência. Ninguém as ouviu gritar. A lógica diz-me que elas foram com ele de sua livre vontade.
Sendo assim, onde é que pára o carro da Bondurant’ perguntou Adler. O Saab vermelho de Jillian ainda não havia sido localizado.
Talvez tenha sido ela que o engatou sugeriu Liska
Não nos esqueçamos de que estamos na década de noventa. Até pode ser que ainda esteja de posse do automóvel dela.
Isso quer dizer que andamos à procura de um assassino que tenha uma garagem para três carros? atalhou Adler. Porra, estou a ver que o meu ramo de actividade não é o mais vantajoso.
Tens de começar a limpar o sebo às tuas ex-mulheres para poderes ter um meio de vida mais adequado. Assim já podias encher a porra da garagem com Porsches gracejou Kovac.
Ei! Eu sou uma ex-mulher interveio Liska, dando-lhe um soco amigável no braço.
As presentes ficam excluídas.
Quinn bebeu um grande gole do seu café enquanto o grupo trocava piadas. O sentido de humor era uma válvula de escape segura para todos os xuis, que permitia a libertação de fluxos de tensão, ainda que com conta, peso e medida acumulados dentro deles devido às pressões da profissão. Os membros daquela equipa de trabalho encontravam-se na fase inicial do que viria a ser inquestionavelmente uma longa batalha contra o crime e que se revestiria de aspectos deveras desagradáveis. Sempre que tivessem oportunidade para tal, era essencial que dissessem uma piada. Quanto mais unidos estivessem nos seus esforços, melhor seria para o desenrolar do trabalho de investigação. Ele próprio costumava atirar algumas piadas com a finalidade de quebrar o gelo que a imagem do agente da lei perfeito lhe emprestava.
Em termos de altura prosseguiu Quinn, o indivíduo será provavelmente de estatura mediana e constituição média... com força suficiente para poder carregar um cadáver de um lado para o outro, embora não deva ter a corpulência bastante para se mostrar uma ameaça física quando aborda as suas vítimas. De momento, acho que é tudo o que vos posso adiantar.
Como assim? Não é capaz de fechar os olhos, fazendo aparecer por artes mágicas uma fotografia psíquica, ou qualquer coisa do género? perguntou Adler, meio na brincadeira
Lamento muito, detective respondeu Quinn com uma careta risonha e um encolher de ombros. Se eu fosse psíquico andaria a ganhar a vida nas pistas de corrida de cavalos Mas, infelizmente, tenho de admitir que no meu corpo não existe uma única célula psíquica
Mas teria se trabalhasse na televisão
Se trabalhássemos na televisão, teríamos resolvido estes homicídios no espaço de uma hora - retorquiu Elwood. A televisão é o motivo por que o público se impacienta perante uma investigação criminal que se arraste por mais de dois dias. A porra do país inteiro vive grudado aos televisores
A propósito de televisão disse Hamill erguendo uma cassete de vídeo. Tenho aqui a cassete com o filme da conferência de imprensa
Junto da cabeceira da mesa fora colocado um carrinho metálico onde havia um televisor com um aparelho de vídeo. Hamill inseriu a cassete e todos se instalaram para ver o filme. A pedido de Quinn, um dos técnicos de vídeo das operações especiais do Departamento de Perícia Criminal colocara-se discretamente entre os operadores de câmara das estações televisivas locais, tendo recebido instruções para filmar não a conferência de imprensa, mas sim as pessoas que se encontravam presentes
As vozes da presidente da Câmara do comandante de polícia Greer e a do promotor público ouviam-se formando sons de fundo monocórdicos, enquanto as câmaras de filmar focavam o rosto dos repórteres e polícias, assim como os fotógrafos da imprensa. Quinn olhava fixamente para o ecrã, tentando detectar as mais pequenas nuances em todas as fisionomias. um vislumbre fugaz que lhe desse a saber, na expressão de um par de olhos, que a pessoa saberia alguma coisa que os outros desconheciam, um trejeito de sobranceria nas comissuras de uma boca. A sua atenção concentrava-se nas pessoas que se encontravam na periferia da multidão, indivíduos que aparentemente estariam ali acidentalmente ou por mera coincidência
Procurava o intangível, qualquer coisa quase imperceptível que despertasse os seus instintos de detective. O facto de saber que o assassino que procuravam talvez tivesse estado entre as pessoas que não suspeitariam de nada, que talvez estivessem a olhar para o rosto de um homicida sem o saberem, suscitou-lhe um profundo sentimento de frustração. Aquele criminoso não se distinguiria da generalidade das pessoas. Não manifestaria quaisquer indícios de nervosismo. Os seus olhos não reflectiriam a loucura frenética que o denunciaria, tal como era frequente acontecer entre os criminosos com pouco controlo das suas emoções. Ele tinha morto pelo menos três mulheres sem ter sido apanhado pelas autoridades. A polícia não possuía qualquer pista que fosse credível. O homicida não tinha motivos para preocupação, do que ele estava bem ciente.
Pois bem disse Tippen com secura, não estou a ver ninguém que se distinga em particular da multidão.
É muito possível que neste preciso momento estejamos a olhar para ele sem o sabermos comentou Kovac premindo o botão que desligava o televisor através do comando à distância. Mas se conseguirmos desencantar um possível suspeito, podemos voltar a ver este vídeo em qualquer altura.
Já conseguiram fazer algum retrato-robô, Sam? perguntou Adler.
Espero bem que sim - respondeu Kovac com um pequeno trejeito nos lábios. Já recebi telefonemas do chefe e de Sabin sobre esse assunto. E sabia que eles não o largariam até terem alguma coisa. Ele era o elemento primário. Era ele quem chefiava as investigações, portanto, ele é que teria de os aguentar. - - Entretanto, vamos distribuir tarefas e voltar ao trabalho antes que o Joe «Fumacento» decida acender a tocha outra vez.
A casa de Peter Bondurant era uma mansão no antigo estilo Tudor, com vista para o lago e ilhas, que lhe teria custado uma fortuna, protegida por uma vedação alta de barras de ferro que a tornava inacessível. No relvado viam-se numerosas árvores de grande porte. Era circundada por um muro largo coberto de trepadeiras que, nessa altura do ano, tinham um tom acastanhado e estavam ressequidas. Situada a apenas alguns quilómetros do centro de Minneapolis, revelava discretamente os sinais da paranóia da vida citadina ao longo da vedação e nos portões cerrados do caminho particular de acesso à casa, sob a forma de pequenas tabuletas com o logotipo a azul e branco da empresa responsável pela segurança.
Quinn tentou abarcar tudo aquilo visualmente, ao mesmo tempo que prestava atenção ao telefonema feito para o seu telemóvel. Tinha sido detido um suspeito com relação ao caso do sequestro de uma criança em Blacksburg, Virgínia. O agente da Brigada para o Sequestro Infantil e Assassínio Múltiplo no local queria confirmar uma estratégia com referência ao interrogatório. Na entoação de voz de Quinn adivinhava-se tédio e paternalismo. Ouviu, concordou e fez uma sugestão, desligando assim que lhe foi possível, querendo concentrar toda a sua atenção no assunto que no momento tinha em mãos.
O homem que todos querem comentou Kovac quando manobrou o carro de modo a entrar no caminho de acesso, o que fez com excesso de velocidade, tendo de meter travões a fundo e detendo-se com um solavanco junto do painel do intercomunicador. O seu olhar foi de Quinn aos carros de exteriores das estações televisivas estacionados junto dos dois passeios da rua. Os ocupantes dos veículos retribuíram-lhe o olhar fixo.
Uns abutres asquerosos.
Entretanto, ouviu-se uma voz distorcida através do intercomunicador. -Sim?
John Quinn, do FBI anunciou Kovac dramaticamente, lançando a Quinn um olhar cómico.
Os portões abriram-se automaticamente, fechando-se logo depois de os dois agentes da autoridade terem entrado. Os repórteres não fizeram menção de quererem aproveitar a oportunidade para entrar. As boas maneiras naquela região do interior do país, pensou Quinn, tendo bem a percepção de que havia outras zonas do país onde a imprensa teria corrido imediatamente para os portões, exigindo resposta às suas perguntas, como se lhes assistisse todo o direito de se intrometerem no desgosto a que a família da vítima devia poder entregar-se na privacidade das suas casas. Já tivera ocasião de presenciar situações dessas. Situações em que vira repórteres tão ansiosos por serem promovidos que chegavam ao ponto de passar a pente fino o caixote do lixo das pessoas, à procura de qualquer coisa que lhes desse uma informação com que pudessem fazer os cabeçalhos dos jornais. Até já os vira em funerais em que não havia qualquer razão para estarem presentes. Próximo da entrada da casa encontrava-se um Lincoln preto extremamente bem polido. Kovac aproximou-se com o seu Caprice de um castanho bastante sujo, estacionando ao lado do carro de luxo e desligando a ignição. O motor ficou a chocalhar pateticamente durante cerca de meio minuto.
Uma trampa do mais ordinário que existe resmungou o detective. Há vinte e dois anos que tenho esta profissão e calhou-me a merda do pior automóvel de toda a frota. E quer saber porquê?
Porque não está disposto a beijar o cu da pessoa indicada? aventurou-se Quinn a perguntar.
Porque não estou disposto a beijar nada que do outro lado tenha uma pixa respondeu Kovac abafando uma gargalhada. Continuou a rir-se à socapa para si mesmo, enquanto remexia no amontoado de coisas deixadas ao acaso em cima do assento, até que finalmente encontrou um gra vador portátil que entregou a Quinn.
Não vá dar-se o caso de ele continuar a não querer falar comigo... De acordo com o que as leis do Minnesota estipulam, apenas um dos participantes numa conversa tem de ter permissão para gravar essa mesma conversa.
É um raio de uma lei para um estado cheio de democratas.
Nós somos gente muito prática. Não esqueçamos que temos de apanhar um assassino. Talvez o Bondurant saiba qualquer coisa que lhe tenha passado despercebida. Ou talvez diga algo que para si tenha significado, por não ser dês tas bandas.
Os fins justificam os meios afirmou Quinn guardando o pequeno gravador no bolso do casaco.
E você sabe isso!
Melhor do que a maioria.
Há alguma ocasião em que se sinta afectado? perguntou Kovac quando saíam do automóvel. Por trabalhar continuamente em casos de assassínios múltiplos e sequestro de crianças durante as vinte e quatro horas dos sete dias da semana? Parece-me que é uma coisa que viria a afectar-me. A verdade é que alguns dos mortos que vêm parar-me às mãos mereciam ser despachados. Como é que consegue aguentar?
Não aguento. A resposta era automática tendo ficado da mesma maneira automática por articular. Ele não conseguia aguentar. Nunca tinha sido capaz. Limitava-se a enterrar tudo num profundo fosso sombrio que tinha dentro de si, esperando ansiosamente que o fosso nunca chegasse a transbordar.
Concentro-me na coluna dos ganhos retorquiu simplesmente.
O vento varria a superfície do lago, encapelando as águas de cristas brancas que pareciam mercúrio, e empurrava as folhas mortas para cima do relvado de aspecto ressequido. As rajadas brincavam com a orla das gabardinas de corte militar que Quinn e Kovac usavam. O firmamento tinha o aspecto de algodão sujo em pasta, dando a impressão de estar prestes a abater-se sobre a cidade.
Bebo confessou Quinn com uma expressão cordial Fumo e bebo.
E anda atrás de mulheres? retrucou Kovac com um sorriso malicioso.
Não, desisti disso. É um mau hábito.
Foi Edwyn Noble quem lhes abriu a porta. Um vigarista com uma licenciatura em direito. O seu semblante ficou tenso ao deparar-se-lhe Kovac.
Agente especial Quinn começou a dizer quando os dois agentes da autoridade passaram por si, entrando no vestíbulo cujas paredes eram revestidas com painéis de mogno entalhado. Suspenso do tecto do primeiro andar da casa via-se um lustre de ferro forjado. Não me recordo de o ouvir mencionar o nome do sargento Kovac quando telefonou.
Não falei? retorquiu Quinn lançando-lhe um olhar cheio de candura. Ora bem, o Sam ofereceu-se para me trazer e como eu não conheço bem as ruas da cidade, então..
Seja como for, eu próprio tenho andado a querer falar com Mister Bondurant adiantou Kovac numa atitude casual, lançando uma vista de olhos de fugida pelas peças de arte que decoravam o vestíbulo e mantendo as mãos enfiadas nos bolsos, como se receasse quebrar algum objecto.
As orelhas do advogado ficaram vermelhas nas extremidades Sargento, o Peter acabou de perder a sua única filha. Ele gostaria de poder ter um pouco de tempo para se recuperar desta perda, antes de ser sujeito a qualquer tipo de interrogatório.
Interrogatório?! exclamou Kovac arqueando os sobrolhos e baixando o olhar que mantivera na estatueta de um cavalo de corridas. Trocou um olhar com Quinn. Como se fosse um suspeito? Por acaso, Mister Bondurant pensará que o consideramos um suspeito? Não sei onde é que ele terá podido ir buscar uma ideia dessas. O senhor sabe doutor Noble?
Entrevista, depoimento. O que lhe quiserem chamar replicou Noble corado que nem um tomate.
Eu gostaria de lhe chamar apenas uma conversa, cá por mim, chame-lhe o que bem lhe apetecer.
Aquilo que me apetece disse uma voz tranquila que vinha de uma ombreira encimada por um arco, é ter a minha filha junto de mim.
O homem que surgiu de um corredor interior fracamente iluminado tinha uma altura de pouco menos de metro e oitenta, era magro e tinha uma aparência muito cuidada, apesar de envergar um banal par de calças e uma camisola de lã. O cabelo escuro cortado rente ao crânio dava a impressão de ser uma fina camada de limalhas. Com uns olhos de expressão austera, fitou Quinn através das lentes de formato oval numas armações metálicas.
É o que todos queremos, Mister Bondurant disse Quinn. Pode ser que ainda exista uma possibilidade de isso vir a concretizar-se, mas vamos precisar de toda a ajuda que pudermos obter.
As sobrancelhas a direito uniram-se num semblante que reflectia confusão.
Acha possível que a Jillian possa estar viva?
Ainda não conseguimos determinar conclusivamentt o contrário -- redarguiu Kovac. - - Até que possamos identificar a vítima de modo positivo, existe a probabilidade de não ser a sua filha. Temos algumas informações substanciais de pessoas que afirmam tê-la visto...
Não, não me parece interrompeu Bondurant em voz baixa abanando a cabeça num gesto de descrença. A Jillie está morta.
Como é que pode ter a certeza de uma coisa dessas? perguntou Quinn. A expressão que se reflectia no rosto de Bondurant era sombria, a de alguém que se sentia derrotado e atormentado. O seu olhar desviou-se para um ponto impreciso à esquerda de Quinn
Porque ela era minha filha respondeu por fim. Não sou capaz de lhe explicar melhor do que isto. Tenho uma intuição como se fosse uma pedra no estômago, como se uma parte de mim tivesse morrido com ela. Ela já não está entre nós. Tem filhos, agente Quinn? perguntou Bondurant
Não Mas conheci muitos pais que perderam os seus filhos. É uma situação horrível. Se eu estivesse no seu lugar, não teria pressa nenhuma em me ver nessas circunstâncias
Bondurant baixou o olhar até aos sapatos de Quinn , suspirando fundo
Venha até ao meu escritório, agente Quinn convidou Virando-se em seguida para Kovac, a sua boca apertou-se ligeiramente. Edwyn, e que tal se você e o sargento Kovac esperassem por nós na sala de estar?
Kovac soltou um som de insatisfação
Talvez fosse melhor eu assistir à vossa conversa, Peter. Eu atalhou o advogado cujas feições ficaram tensas
Não, Peçam à Helen que vos sirva um café. Claramente pouco satisfeito, Noble inclinou-se na direcção do seu cliente que se mantinha no outro extremo do vestíbulo, qual marioneta presa nos seus cordões. Bondurant deu meia volta começando a afastar-se
Quinn foi atrás dele. O barulho dos passos dos dois homens era amortecido pela lã fina da espessa passadeira oriental. Perguntava a si mesmo qual seria a estratégia de Bondurant. Recusava-se a falar com a polícia, contudo, impedia o seu advogado de estar presente durante uma conversa com um agente do FBI. Se estivesse a tentar proteger-se, aquela maneira de agir não fazia o mínimo sentido. Mas por outro lado, caso ele dissesse qualquer coisa que pudesse vir a incriminá-lo, isso não teria o mínimo valor perante um tribunal, houvesse ou não gravação
Tanto quanto sei, vocês têm uma testemunha. Ela é capaz de identificar o homem que cometeu este crime?
Não me é permitido discutir esse assunto respondeu Quinn. Gostaria de falar sobre si e a sua filha, da relação que existia entre os dois. Peço-lhe que desculpe a minha franqueza, mas a sua falta de cooperação com a Polícia até agora é algo que, para dizer o mínimo, me deixa intrigado.
Você pensa que eu não estou a reagir da maneira típica de um pai que perdeu um filho? Mas existirá uma reacção típica?
Típica talvez não seja a palavra mais adequada. Algumas reacções são mais comuns do que outras.
- Não tenho conhecimento de nada que possa ser pertinente em relação a este caso. Consequentemente, não tenho mais nada a acrescentar em termos da Polícia. Houve um desconhecido que sequestrou e assassinou a minha filha. Como é que poderiam esperar que eu tivesse qualquer informação relevante em relação a um acto que não tem a mínima razão de ser?
Bondurant seguia à frente em direcção a um escritório espaçoso, fechando a porta depois de terem entrado. A sala era dominada por uma mesa em mogno maciço em forma de ferradura, em que uma das partes estava reservada ao equipamento computorizado, enquanto a outra era para a papelada. A secção do centro encontrava-se impecavelmente arrumada, com um mata-borrão onde não se via uma única mancha de tinta, e onde todas as canetas e acessórios estavam no seu lugar.
Ponha-se à vontade, agente Quinn, dispa a gabardina e faça o favor de se sentar. Convidou com um gesto de uma mão delicada indicando um par de cadeirões de couro cor de sangue de boi, enquanto ele próprio contornava a mesa sentando-se na sua cadeira de espaldar alto, o trono do administrador.
Certificava-se de que entre os dois havia distanciamento e autoridade, reflectia Quinn enquanto com um encolher de ombros despia a gabardina. «A pôr-me no meu lugar.» Instalou-se num dos cadeirões, apercebendo-se imediatamente de que era um tudo-nada baixo de mais, apenas o suficiente para que o seu ocupante se sentisse vagamente inferiorizado
Houve um tarado qualquer que assassinou a minha filha repetiu Bondurant numa voz serena. Face a isso, tenho de admitir com toda a franqueza que me estou rigorosamente nas tintas para o que as pessoas possam pensar quanto ao meu comportamento. Além do mais, estou a contribuir para as investigações: sou o responsável pela sua presença aqui.
Outra chamada de atenção para o equilíbrio de poderes, expressa em palavras muito calmas.
E está na disposição de falar comigo? perguntou Quinn.
O Bob Brewster disse-me que você era o melhor agente especial que ele tinha.
Da próxima vez que falar com o director, transmita-lhe os meus agradecimentos. Os nossos caminhos não se cruzam com muita frequência retorquiu Quinn, mostrando-se deliberadamente pouco impressionado com a familiaridade cordial que, segundo parecia, o homem tinha com o director do FBI, o que estava implícito nas suas palavras.
Ele diz que este tipo de assassínio é a sua especialidade
De facto, assim è. Mas não sou o género de perito que se contrata. Quero que isto fique bem claro. Tenciono fazer tudo o que estiver ao meu alcance no sentido de estabelecer um perfil psicológico, assim como aconselharei as melhores técnicas de investigação. Caso se detenha algum suspeito, também indicarei a estratégia a ser utilizada aquando do interrogatório. Na hipótese de se realizar algum julgamento, prestarei o meu depoimento na qualidade de testemunha especializada, oferecendo à acusação os meus conhecimentos periciais com respeito às perguntas que forem feitas às testemunhas. Cumprirei as minhas funções, o que farei da melhor maneira que sei, mas a verdade é que não estou a trabalhar para si, Mister Bondurant.
Este registou aquela informação na sua mente com uma expressão que não traía a mais pequena emoção. O seu rosto exibia umas feições tão ossudas e severas como as do seu advogado, mas sem a brandura de um sorriso exageradamente rasgado. Uma máscara de dureza impossível de penetrar.
Eu só quero que o assassino da Jillian seja apanhado. Tenciono tratar consigo porque você é o melhor, e também porque me disseram que podia confiar em si, no sentido de que não se venderá.
Vender?! Sob que aspecto?
Aos meios de comunicação social. Eu sou um homem de vida muito privada numa posição demasiado pública.
Abomino a ideia de poder haver milhões de estranhos que venham a tomar conhecimento dos pormenores mais íntimos relacionados com a morte da minha filha. O fim de uma vida... na minha perspectiva, devia ser um acontecimento muito pessoal e privado.
Assim devia ser. É o ceifar de uma vida que não pode ser mantido em segredo... para bem de toda a gente
Suponho que aquilo que mais me inspira receio não é tanto o facto de as pessoas virem a saber da morte da Jillie, mas sim o seu desejo voraz de despedaçarem a sua vida Assim como a minha... o que não me custa nada admitir. Quinn agitou-se no seu cadeirão, cruzando as pernas num gesto descontraído e oferecendo um sorriso de simpatia muitíssimo vago. Insinuando-se. À guisa do «eu até podia ser seu amigo».
Essa atitude é bastante compreensível. A imprensa tem andado a assediá-lo? Fiquei com a impressão de que decidiram acampar defronte da sua casa.
Recuso-me a falar com os jornalistas. Chamei o meu coordenador de relações públicas da Paragon para que ele se encarregue desse assunto. Aquilo que me deixa mais encolerizado é o direito que eles se arrogam. Porque sou uma pessoa abastada, porque sou um homem proeminente, eles acham que, até certo ponto, têm o direito de invadir a minha privacidade, retirando-me o direito ao desgosto. Pensa que eles estacionaram os seus carros de exteriores defronte dascasas dos pais das duas prostitutas que o maníaco matou? Posso assegurar-lhe que não.
Vivemos numa sociedade viciada no sensacional» retorquiu Quinn. Algumas pessoas são consideradas como motivo de notícia, havendo umas quantas que não mostram nenhuma relutância face à notoriedade pública. Não sei qual a pior das duas faces da moeda. Só lhe posso garantir que os pais dessas duas primeiras vítimas se encontram em casa, perguntando a si mesmos por que motivo é que os carros de exteriores da televisão não estão estacionados à frente das casas deles.
Acha que eles gostariam que as pessoas soubessem até que ponto é que falharam como pais? perguntou Bondurant; da sua voz transparecia uma vaga entoação de cólera. Parece-lhe que eles gostariam que os outros soubessem por que motivo as filhas enveredaram pela prostituição e pela toxicodependência?
Sentimentos de culpa e remorsos. Em que medida é que ele estaria a deixar adivinhar a sua própria mágoa?, perguntava-se Quinn.
-Voltando ao assunto dessa testemunha - insistiu Bondurant, aparentando ter ficado um pouco abalado pela sua quase revelação. Deslocou ligeiramente um bloco de apontamentos que se encontrava sobre a mesa. - Acha que ela será capaz de identificar o assassino? Pelo que sei dela, não me parece que seja muito de fiar.
-Não sei - redarguiu Quinn, sabendo exactamente onde é que Bondurant conseguira aquela informação. Kovac teria de fazer o seu melhor para pôr cobro àquela fuga de informações, o que significaria ter de pisar os calos muito sensíveis de gente com influência. A família da vítima tinha direito a determinadas cortesias, todavia, era imprescindível que aquela investigação se revestisse do maior sigilo possível. Não poderia ser permitido que Peter Bondurant tivesse tanto acesso a informações sigilosas. De facto, ele ainda nem sequer fora posto de parte como possível suspeito.
- Bem... só nos resta ter esperança... - murmurou Bondurant.
o seu olhar ficou preso numa parede onde estavam penduradas várias fotografias emolduradas, muitas de si próprio junto de homens que Quinn só podia imaginar serem sócios de negócios, rivais ou figuras públicas. Entre aquela multidão de homens, reconheceu uma fotografia de Bob Brewster, mas foi então que descobriu o que prendia a atenção de Bondurant: um pequeno conjunto de fotografias no canto inferior esquerdo.
Quinn levantou-se do cadeirão e encaminhou-se para a parede a fim de poder vê-las mais de perto. Jillian em várias fases da sua vida. Reconheceu-a das fotografias que faziam parte da documentação relativa às averiguações. o seu olhar foi atraído em particular por uma fotografia: a de uma mulher jovem, desenquadrada das restantes, que usava um vestido preto formal com gola e punhos de orlas arredondadas. Tinha um corte de cabelo à rapaz, num louro quase platinado, em contraste nítido com as raizes e sobrancelhas. Numa das orelhas tinha meia dúzia de brincos; numa das narinas via-se um pequeno rubi. Não era minimamente parecida com o pai. o seu corpo e físionomia tinham traços suaves, arredondados. Os olhos eram grandes e tristes; a câmara conseguira retratar a vulnerabilidade que ela sentia por não ser a criatura educadamente feminina, o que lhe teria permitido ir ao encontro das expectativas de outra pessoa.
- Uma rapariga bonita - comentou Quinn automaticamente. Não interessava que o seu comentário não correspondesse inteiramente à verdade. Tivera outro objectivo para além da lisonja. - Ela deve ter-se sentido muito próxima de si, caso contrário não teria regressado aqui para frequentar a faculdade.
- o nosso relacionamento era complicado - replicou Bondurant levantando-se da cadeira, mas sem se afastar, denotando algum mal-estar, tenso e inseguro, como se parte dele quisesse aproximar-se mais das fotografias, havendo outra parte, mais forte, que o retinha no mesmo lugar. Quando era mais nova, havia entre nós um relacionamento muito chegado. Mas quando ainda estava numa idade muito vulnerável, a mãe e eu decidimos divorciar-nos. Para a Gilian foi uma fase muito difícil... devido ao antagonismo que existia entre a Sophie e eu. Mas pouco depois apareceu o Serge, o último marido da Sophie. E há que mencionar a doença dela, estou a referir-me à minha ex-mulher, sempre a entrar e a sair de clínicas por causa das depressões nervosas de que sofria. - Ficou em silêncio durante algum tempo.
Quinn sentia o peso de tudo o que Bondurant omitia na história que lhe contava. o que teria precipitado aquele divórcio? o que teria desencadeado a doença mental de Sophie? Seria desprezo o que adivinhava na voz de Bondurant, ao referir-se ao seu sucessor, motivado por um sentimento de amargura, ou algo mais?
- Que curso universitário é que ela frequentava? perguntou o agente do FBI sabendo que não lhe valeria a pena procurar respostas directas a outras perguntas que queria ver respondidas. Peter Bondurant não estaria disposto a abrir mão dos seus segredos assim sem mais nem menos, se é que alguma vez estaria disposto a revelá-los.
- Psicologia - respondeu com um leve traço de ironia no seu timbre de voz, olhando fixamente para a fotografia da filha vestida de preto, cabelo curto platinado, vários brincos e o nariz perfurado com uns olhos que reflectiam tristeza.
- Costumava vê-la com frequência?
- Todas as sextas-feiras. Era o dia em que vinha jantar cá em casa.
Quantas pessoas é que estavam a par dessas visitas?
Não sei. A minha governanta, a minha assistente particular, alguns amigos mais chegados. Suponho que também alguns dos amigos da Jillian.
Tem mais algum pessoal doméstico permanente além da governanta?
A Helen trabalha a tempo inteiro. Uma vez por semana, vem cá uma rapariga para a ajudar nas limpezas. Também há uma equipa de jardineiros, são três, que vêm semanalmente. Mais ninguém. Devido à privacidade que desejo ter. prefiro contar apenas com a governanta. As minhas necessidades não são assim tão extravagantes.
Regra geral, as noites de sexta-feira na cidade são muito importantes para os estudantes universitários. A Jillian não se interessava por essas saídas nocturnas?
Não. Ela já tinha ultrapassado essa fase.
Ela tinha muitos amigos chegados?
Não que ela os mencionasse quando falava comigo. Era uma pessoa muito reservada. A única a que ela aludia com alguma regularidade era empregada de mesa num café. Uma Michele qualquer coisa. Nunca cheguei a conhecê-la.
Ela tinha algum namorado?
Não respondeu Bondurant afastando-se de Quinn. As portas corrediças de vidro, por detrás da secretária, davam acesso a um alpendre lajeado onde se viam bancos corridos e canteiros vazios. Bondurant ficou a olhar através do vidro como se fitasse um portal de outros tempos. Os rapazes não lhe interessavam. Ela não queria relações temporárias. Já tinha passado por tanta coisa... Os seus lábios finos foram percorridos por um ligeiro tremor; nos seus olhos lia-se uma mágoa muito profunda. O sinal mais forte de emoção interior que mostrara até ao momento. Tinha tanta vida à sua frente murmurou. Quem me dera que isto não tivesse acontecido.
Em passos silenciosos, Quinn aproximou-se dele. Falava num tom de voz baixo e suave, a voz de experiências tristes e compreensão de vida.
Quando alguém jovem nos morre, ficamos perante uma situação penosamente difícil de suportar... muito em especial se essa pessoa foi assassinada. Os sonhos por cumprir, o potencial que nunca se concretizou. As pessoas que lheram chegadas... a família, os amigos, gente que pensava que a jovem que morreu dessa maneira teria tanto tempo para compensar os erros cometidos, tempo mais do que suficiente para poderem expressar junto da pessoa em questão que a amavam. De súbito, esse tempo dissipa-se sem que ninguém espere.
Quinn via os músculos do rosto de Bondurant contraído numa defesa contra um sentimento de dor. Descortinava sofrimento nos seus olhos, os traços de desespero ao aperceber-se da chegada da vaga de emoção, o receio de não possuir forças suficientes para a conter.
Pelo menos passou esse último serão junto dela murmurou Quinn. Isso deve servir-lhe de algum conforto.
No entanto, também podia ser uma última chamada de atenção amarga para todos os assuntos que não haviam sido resolvidos entre pai e filha. A ferida aberta da oportunidade perdida. Quinn quase sentia no ar o sabor dos remorsos
Como é que ela esteve nessa noite? perguntou num tom de voz tranquilo. Pareceu-lhe animada ou desanimada?
Ela estava... Bondurant engoliu em seco procurando a palavra apropriada. Estava igual a ela própria. AJillian mostrava-se sempre muito animada num momento, para se ir abaixo no seguinte. Era uma pessoa muito instável
A filha de uma mulher que passara a vida dentro e fora de clínicas por causa dos seus problemas do foro psiquiátrico.
Mostrou qualquer indício de que houvesse alguma coisa que a preocupasse, algo que a incomodasse?
Não respondeu Bondurant. !
Discutiram sobre algum assunto em particular, ou falaram acerca de...
A explosão de Bondurant foi repentina, cheia de veemência e surpreendente. Meu Deus, se eu tivesse pensado que havia alguma coisa fora do normal, se acreditasse que talvez pudesse acontecer qualquer coisa de mal, não lhe parece que teria impedido que ela se fosse embora? Não acha que a teria obrigado a ficar aqui?
Tenho a certeza que sim, que teria feito isso respondeu Quinn em voz baixa, a voz da compaixão e de confiança no outro, emoções que continha dentro de si em toda a sua extensão havia muito tempo, porque essa manifestação de emoção teria exigido demasiado de si, não existindo ninguém por perto que o pudesse ter ajudado a suprir esse dispêndio emocional. Quinn tentou manter-se focado no motivo prioritário que o levara àquela casa e que era, simplesmente, obter informações. Manipular, induzir com lisonja, apanhar de surpresa, extorquir a verdade a pouco e pouco. Conseguir as informações que lhe permitissem apanhar o assassino. Não podia esquecer-se de que a primeira pessoa a ter direito à sua lealdade era a vítima.
Na noite desse último jantar, de que é que falaram? perguntou afavelmente enquanto Bondurant se esforçava visivelmente por se recompor.
Dos temas habituais respondeu com impaciência voltando a olhar pelo vidro da porta do alpendre. Das aulas dela. Dos meus negócios. Nada em especial.
O tratamento dela?
Não, a minha filha... Bondurant ficou tenso voltando-se para Quinn e lançando-lhe um olhar feroz.
Mister Bondurant, temos de tomar conhecimento dessas coisas disse Quinn sem tentar justificar-se. Qualquer que seja a vítima de um crime, temos de admitir a possibilidade de qualquer área da sua vida estar relacionada com a sua morte. É possível que seja um elo de ligação extremamente fraco que ligue uma coisa a outra. Pode ser algo que se pense não ter a mínima importância para o caso. Mas, por vezes, é a única coisa que nos falta, e outras, a única coisa de que dispomos. Não compreende o que tenho estado a dizer-lhe? acrescentou Quinn depois de uma breve pausa. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para manter este assunto na mais estrita confidencialidade, mas, caso deseje ver esse assassino detido, vai ter de cooperar connosco, quer isso lhe agrade quer não.
Aquela explicação não contribuiu em nada para amansar a cólera que se apossara de Bondurant. Abruptamente, regressou à secretária, retirando um cartão do Rolodex.
Aqui tem a ficha do doutor Lucas Brande. Não que lhe vá servir de muito. Tenho a certeza de que não é preciso dizer-lhe que tudo o que a Jillian, na qualidade de sua paciente
Pequeno arquivo de mesa, que rola sobre si mesmo, contendo fichas onde se registam endereços, números de telefone, etc. (N da T.)
possa ter dito ao doutor Lucas é estritamente confidencial.
E quanto a qualquer coisa que ela lhe tenha dito, a si, na qualidade de pai?
Se eu soubesse alguma coisa, fosse o que fosse, que pudesse levá-lo ao assassino da minha filha, não lhe parece que já lhe teria dito? ripostou Bondurant, mostrando de novo, ainda que de fugida, um temperamento que ameaçava extravasar, fugindo do rígido domínio que mantinha sobre as suas emoções.
Quinn remeteu-se ao silêncio, mantendo o olhar. Fixou» rosto de Peter Bondurant, observando a veia tumefacta que lhe atravessava a testa alta na vertical, qual raio no meio de uma trovoada. Com brusquidão, colocou a ficha do Roldex na mão de Quinn.
Espero que sim, Mister Bondurant retorquiu este por fim. É possível que a vida de outra jovem qualquer dependa disso.
O que é que conseguiu? perguntou Kovac quando já se afastavam da casa. Acendeu um cigarro começando a fumar tanto quanto lhe foi possível até chegarem ao automóvel.
Com o olhar, Quinn percorreu o caminho particular de acesso, olhando para lá dos portões e observando dois operadores de câmara com os olhos colados às teleobjectivas. À primeira vista, não se via nenhum equipamento de audio de captação à distância, mas as objectivas acopladas às câmaras eram longas e de lentes espessas. O seu período de anonimato entrara em contagem decrescente.
Sim... disse Quinn finalmente. Um pressentimento que não augura nada de bom.
Credo, desde o princípio deste caso que sinto o mesmo. Sabe o que é que um homem como o Bondurant pode fazer a qualquer carreira?
A minha pergunta é esta: por que razão ele havia de querer fazer alguma coisa?
Porque é rico e neste momento está a sofrer. É como o tipo armado que esteve ontem no centro governamental. Quer que mais alguém sofra como ele. Pretende que haja alguém que pague as favas. É possível que, se conseguir fazer| com que outra pessoa sofra tanto como ele, a sua dor não seja tão intensa. Sabe como é acrescentou Kovac da maneira brusca que lhe era peculiar, as pessoas são taradas. Portanto, o que é que ele disse? Por que razão se recusa a falar connosco, a polícia local?
Não confia em vocês
Pois bem, ele que se vá foder! ripostou Kovac endireitando-se, era notório que se sentia afrontado, arremessando o cigarro para o caminho particular
O homem está absolutamente paranóico, receando que os pormenores mais íntimos cheguem ao conhecimento da comunicação social.
Mas que tipo de pormenores? O que é que ele tem a esconder?
Essa é a sua função, Sherlock replicou Quinn, encolhendo os ombros. Mas já lhe arranjei um ponto de partida
Entraram no Caprice. Quinn tirou da algibeira o pequeno gravador portátil, colocando-o no assento entre os dois com a ficha do Rolodex por cima.
Um psiquiatra comentou Kovac, franzindo o cenho depois de ter pegado na ficha. O que é que eu lhe disse? As pessoas são taradas. Especialmente, a gente rica.. São os únicos que têm dinheiro para poderem fazer qualquer coisa a esse respeito. Ir ao psiquiatra, para eles, é como se fosse um passatempo
Quinn ficou a olhar para a mansão, como se esperasse avistar um rosto que assomasse a uma das janelas, mas não viu ninguém. Naquela manhã sombria, todas as janelas reflectiam o tom pardacento do dia
Houve algum meio da comunicação social que tenha aludido à toxicodependência em relação a alguma das duas primeiras vitimas? perguntou Quinn
Não respondeu Kovac Uma delas drogou-se em tempos, mas não divulgámos essa informação. A Lila White «Lily» White. A primeira vítima. Durante algum tempo comportou-se estouvadamente, mas depois conseguiu endireitar-se. Passou por uma instituição governamental, tendo vivido algum tempo numa casa de acolhimento para prostitutas mas imagino que esse retiro não tenha produzido efeitos quanto a esse modo de vida. Seja como for, o aspecto da toxicodependência não teve continuidade. Porque é que pergunta?
Porque o Bondurant fez referência a esse assunto. É possível que tenha sido apenas uma suposição da parte dele, mas não estou em crer. Acho que ele sabia alguma coisa a respeito das outras vítimas, ou algo a respeito da Jillian
Se ela andava a consumir alguma coisa antes da morte, isso será revelado quando se fizerem as análises a esse tipo de substâncias. Quando passei busca à vivenda onde ela vivia na cidade não encontrei nada mais forte do que Tylenol.
Mas se fosse uma toxicodependente, você passaria a ter qualquer coisa que lhe permitisse estabelecer uma relação com as outras duas vítimas. Consequentemente, um possível elo de ligação que levaria a um traficante, ou a outro viciado, que pudesse vir a ser um suspeito do crime.
O sorriso feroz do caçador que farejara uma pista fresca ergueu as pontas do bigode de Kovac.
A rede em acção. Adoro. A América corporativa pensa ter encontrado algo de novo. Desde a época em que Judas vendeu Jesus Cristo aos infiéis que os malfeitores começaram a estender a sua rede. Vou telefonar à Liska para lhe pedir que juntamente com a Moss vejam o que conseguem descobrir por aí. Depois vamos ver o que é que este Sigmund Freud tem para nos dizer a respeito do preço de parafusos mal apertados. Bateu com a ficha do Rolodex contra o volante. O consultório dele fica do outro lado do lago.
Então, com que opinião é que ficaste do Quinn? perguntou Liska.
Mary Moss ia sentada no lugar do passageiro da frente, observando o Mississipi através da janela do carro. O tráfego de barcaças fora suspenso até ao fim do ano. Ao longo daquele trecho, o rio acompanhava uma extensão deserta de uma tonalidade entre o acastanhado e a cor de rato, quarteirões de edifícios industriais e armazéns semiabandonados.
Eles dizem que é do melhor que existe. Está a transformar-se numa verdadeira lenda.
Trabalhaste com ele alguma vez?
Não. Habitualmente, o responsável em Quântico por esta zona da cidade é o Roger Emerson. Por outro lado, em geral, a vítima não é filha de um multimilionário, um capitão da indústria com contactos em Washington.
Gostei da maneira como ele lidou com o Tippen prosseguiu Moss. Não é homem para fanfarronadas estilo «eu sou o agente federal e tu és um pacóvio da treta». Acho que é um observador rápido e arguto de pessoas. Talvez inteligente. O que é que te parece?
Um belo rabo redarguiu Liska brindando a colega com um sorriso lascivo.
Meu Deus! Aqui estou eu a tentar mostrar uma atitude profissional e séria, enquanto tu só pensas no rabo dele!
Bem, quando ele está a falar, não! Mas admite, Mary, o homem é um belo pedaço. Não gostarias de ter um naco dele se pudesses?
Não me faças perguntas dessas retorquiu Moss mostrando-se atrapalhada. Sou uma velhota casada! Uma velhota casada e católica!
Desde que a palavra morta não conste dessa descrição, tens licença para olhar.
De facto, um belo rabo repetiu Moss entre dentes tentando conter as risadas à socapa.
Aqueles olhos enormes e castanhos, aquele queixo de granito, a boca de lábios sensuais. Estou em crer que era capaz de sentir um orgasmo só de o ouvir a teorizar sobre estratégias «proactivas».
Nikki!
Oh, é verdade; já me esquecia de que és uma mulher casada atazanou Liska. Não tens autorização para sentires orgasmos.
Quando vais no carro com o Kovac costumas ter este tipo de conversas?
Só quando quero que ele fique em brasa. Contorce-se como se fosse um sapo grotesco. Diz-me que não quer ovir nada sobre os meus orgasmos e que o ponto mais erógeno de uma mulher devia continuar a ser um mistério. Eu costumo dizer-lhe que foi por causa disso que já se divorciou por duas vezes. Devias ver como ele cora. Adoro o Kovac. É um tipo formidável.
Já chegámos... Edgewater indicou Moss apontando pelo pára-brisas.
As vivendas em Edgewater formavam um conjunto de residências de traça esmerada, semelhantes às graciosas construções das vilas piscatórias da Nova Inglaterra, sarrafos acinzentados com caixilhos pintados de branco e telhados inclinados de cedro, janelas com dois metros por dois. As casas estavam dispostas de modo a formarem um conjunto semelhante a cogumelos silvestres, ligados entre si por estreitos caminhos impecavelmente ajardinados. A fachada de todas as residências dava para o rio.
Tenho a chave da casa da Bondurant disse Liska estacionando o automóvel à entrada do complexo residencial, mas mesmo assim telefonei ao guarda. Diz que viu a Jillian sair na sexta-feira à tarde. Imagino que não será má ideia falarmos com ele outra vez.
Parou perto da primeira residência; ela e Moss mostraram os crachás ao homem que se encontrava no alpendre. Liska calculou que Gil Vanlees rondaria os trinta e cinco anos. Era louro e tinha um bigode fininho e ralo, cerca de um metro e oitenta de altura e uma aparência física bonacheirona. O blusão Timberwolves estava aberto por cima da camisa azul do uniforme de segurança. Tinha o aspecto de um antigo atleta liceal que se permitira perder a boa forma física. Horas a mais passadas a ver desportos profissionais com uma lata de cerveja na mão e um pacote de batatas fritas ao seu lado.
Portanto, vocês são detectives? afirmou mais do que perguntou fitando Liska com um brilho de quase excitação sexual nos olhos. Um deles era azul, enquanto o outro era de uma estranha tonalidade opaca de topázio fumado.
É isso mesmo concordou Liska sorrindo-lhe.
Acho que é magnífico ver mulheres nesse tipo de trabalho. Não sei se sabem, mas eu trabalho como segurança no Centro Target informou ele dando-se ares de gente importante. Timberwolves, concertos, camionistas e tudo o mais. Até temos um par de raparigas. Acho que é fantástico. Mais poder para vocês.
Liska estava disposta a apostar o seu dinheiro em como aquele homem, quando não estava sentado ao balcão a beber com os compinchas, chamaria a essas mulheres nomes que até mesmo ela não usaria. Conhecia de ginjeira o tipo de Vanlees.
Portanto, você trabalha lá como segurança e também se encarrega da manutenção deste complexo residencial, não é verdade?
Sim, bem vê, a minha mulher... estamos separados, ela trabalha para a empresa que gere isto, foi assim que conseguimos arranjar a vivenda, porque digo-vos uma coisa... o preço que estes lugares custam... são astronómicos. Portanto, pode-se dizer que sou uma espécie de administrador do complexo, embora actualmente não viva cá. Os proprietários contam comigo, pelo que me tenho mantido por cá até a minha mulher decidir o que quer fazer. As pessoas têm problemas... com as canalizações, com a electricidade, e Deus sabe que mais. Eu trato de arranjar pessoal que resolva tudo isso. Já falei com o serralheiro que ficou de vir esta tarde para mudar as fechaduras da casa de Miss Bondurant. Além de me manter de olho em tudo, sabem como é. Um tipo de segurança, embora oficialmente não o seja. O que agrada aos residentes. Eles sabem que podem contar comigo, que tenho a formação necessária para essa função.
A vivenda de Miss Bondurant é por este caminho? perguntou Moss, apontando e inclinando-se para o rio, tentando desviar a conversa.
Ontem falei com alguns detectives replicou Vanlees franzindo-lhe o cenho e com uns olhos que se apequenavam ainda mais. Dava a impressão de pensar que ela, com os seus ares de matrona, talvez fosse uma impostora, não se parecendo nada com Liska, que mostrava sobejamente o qui era.
Ora bem, nós estamos a dar seguimento ao trabalho dos nossos colegas acrescentou Liska sem dar grande importância ao assunto. Sabe como é. No entanto, é por de mais evidente que ele não fazia a mínima ideia para além das noções com que ficara ao ver a séria televisiva A Balada de Nova Iorque e ao ler revistas de detectives de fraca qualidade. Havia pessoas que colaboravam com mais boa vontade quando sentiam que eram incluídas nos processos de investigação. Enquanto outras queriam ter toda a espécie de garantias de que a sua vida não ficaria manchada fosse de que forma fosse, nem pelo crime nem pelas investigações.
De um dos bolsos do blusão, Vanlees tirou um grosso aro com chaves, indicando o caminho pelo passeio abaixo
Em tempos, inscrevi-me na esquadra de polícia confidenciou. Foi numa altura em que as contratações estavam congeladas. Sabem como é, cortes nos orçamentos e tudo o mais.
Credo, deve ter sido difícil replicou Liska dando o seu melhor para encarnar a personagem de Francês McDormand em Fargo. Sabe, fica-se com a impressão de que estamos sempre a precisar de gente competente, mas por causa do orçamento, o que é uma maçada...
Vanlees, o homem que estava por dentro das coisas, concordou com um acenar de cabeça.
Merdas de politiquices... mas não é preciso eu estar a dar-vos muitas explicações, não é verdade? replicou Vanlees.
Tem toda a razão. Quem sabe o número de homens como você, que poderiam vir a tornar-se uns xuis de primeira qualidade, e que andam a desperdiçar os seus talentos por outros empregos. É uma lástima.
E eu tinha competência para esse tipo de trabalho, O seu tom de voz coloriu-se com muitos anos de azedume,, como uma nódoa que nunca chegasse a sair por completo.
Então, Gil, você chegou a conhecer esta rapariga, a Bondurant?
^Claro que sim; eu costumava vê-la por aqui. Ela não era de muitas falas. Do tipo pouco sociável. Morreu, não foi? Eles não disseram com certeza nos noticiários, mas a rapariga que foi assassinada era ela, não é verdade?
Ainda temos umas quantas questões que precisam de ser averiguadas.
Ouvi dizer que havia uma testemunha. De quê... é o que tenho andado a perguntar a mim mesmo. Quer dizer, essa testemunha viu-o a matar ou o quê? Isso já seria alguma coisa de peso, não? Terrível.
Sabe, não posso falar muito sobre esse assunto, percebe? disse Liska como se lamentasse esse impedimento. -Gostaria muito de poder falar... enfim, tendo em vista que você tem uma profissão com algumas afinidades com a nossa e tudo isso... mas sabe como é.
Cheio de uma sabedoria fictícia, Vanlees assentiu com a cabeça.
Por acaso viu-a na sexta-feira? perguntou Moss. Estou a referir-me à Jillian Bondurant.
Vi, por volta das três da tarde. Estava aqui a arranjar o meu triturador do lixo. A minha mulher tentou triturar uns caules de aipo e fez uma grande porcaria. Uma menina com um canudo universitário... Seria de esperar que tivesse mais miolos para não fazer uma coisa dessas.
Quanto à Jillian Bondurant... insistiu Moss tentando mudar de assunto.
Na altura eu estava a olhar pela janela da cozinha replicou ele voltando a semicerrar os olhos, um de cada nação. Vi-a arrancar no automóvel.
Sozinha?
Sim confirmou Vanlees.
E essa foi a última vez que a viu?
Foi respondeu, voltando a concentrar a sua atenção em Liska. Esse tarado pegou-lhe fogo, não é verdade? Quer dizer, o Cremador. Credo, isso é uma aberração -acrescentou embora a sua expressão reflectisse um fascínio manifestamente mórbido. Onde é que esta cidade irá parar?
O seu palpite é tão bom como o meu.
Acho que é por causa do milénio. Estou convencido disso arriscou ele. -- O mundo vai ficar cada vez mais louco. É o fim dos mil anos e tudo o mais.
O Milénio resmungou Moss semicerrando os olhos, enquanto observava um vaso de barro cheio de crisântemos mortos no pequeno alpendre da frente da vivenda onde Jillian Bondurant vivera.
É possível que sim concordou Liska. Que Deus nos ajude a todos, não é verdade?
Que Deus nos ajude ecoou Moss com sarcasmo
Mas é tarde de mais para Miss Bondurant comentou Vanlees com sobriedade, girando a chave na fechadura. Precisa de ajuda enquanto estiver aqui, detective?
Não, mas agradeço, Gil. Bem vê, são os regulamentos... esse tipo de coisas replicou Liska virando-se para o homem enquanto lhe bloqueava a entrada da casa. Alguma vez viu Miss Bondurant acompanhada de alguém em especial? Amigas? Algum namorado?
De vez em quando via o pai dela por aqui. Na verdade, ele é que é o proprietário da vivenda. Mas nada de namorados. De quando em vez também vinha cá uma amiga. Quero frisar que era apenas uma amiga. Não era uma namorada... Pelo menos, não me parece que o fosse.
Uma rapariga em especial? Sabe como é que ela se chama?
Não. Ela também não era muito simpática. Tinha um aspecto de pessoa dura. Quase como se fosse a miúda de um motoqueiro... Seja como for, eu nunca tive qualquer contacto com ela. Ela... a Miss Bondurant, regra geral, andava sozinha e nunca tinha muito a dizer. A verdade é que nem se enquadrava inteiramente neste ambiente. Entre os resi dentes não há muitos estudantes, além de que ela usava sempre umas roupas bastante estranhas. Sempre com botas estilo militar, vestida de preto e tudo o mais.
Ela alguma vez lhe deu a impressão de não regular muito bem da cabeça?
Está a referir-se a drogas e coisas do género? Ela andava metida em drogas?
Não sei, só estou a considerar todas as hipóteses percebe, por causa do meu tenente... Liska deixou que a sugestão ficasse a pairar no ar, dando a impressão de pensar que Vanlees mostraria solidariedade para com a sua posição, uma espécie de irmão de sangue profissional. Agradeceu-lhe a cooperação e entregou-lhe o cartão-de-visita da polícia, dando-lhe instruções para que lhe telefonasse se lhe ocorresse alguma coisa que pudesse ter relevância para o caso. Relutante, o homem retrocedeu, afastando-se da porta e erguendo a cabeça de modo a tentar ver o que Moss fazia já no interior da casa. Liska disse-lhe adeus com um gesto de despedida, após o que fechou a porta.
Credo, Senhor, deixa-me ir tomar um duche murmurou com um estremecimento de repulsa ao entrar na sala de estar.
Com que então não gostaste dele, Maggie? perguntou Moss com um sotaque exageradamente à moda do Norte do país.
Liska mimoseou-a com uma careta que também se destinava à estranha mistura de aromas que pairava no ar, o cheiro adocicado de um purificador de ambiente e o do fumo entranhado de cigarros.
Pelo menos, consegui pô-lo a falar, não achas?
Não tens um pingo de vergonha nessa cara.
Tudo em nome do dever.
Sinto-me muito satisfeita por estar a entrar na menopausa.
Liska assumiu um semblante mais sóbrio, fixando o olhar na porta.
Agora e falando a sério, estes candidatos a polícias dão-me arrepios. Têm sempre problemas com o seu sentido de autoridade. Sentem necessidade de poder e controlo, para além de terem uma percepção muito arreigada da sua pouca valia como pessoas. São mais as vezes em que sentem antagonismo pelas mulheres do que o contrário. Ei! chamou de súbito com uma expressão bastante mais radiante. Vou ter de mencionar esta teoria da próxima vez que estiver com o nosso agente especial muito bem-parecido.
Assediadora de homens!
Prefiro o termo oportunista corrigiu Liska.
Da sala de estar de Jillian Bondurant,desfrutava-se de uma panorâmica do rio. Os acabamentos pareciam ser recentes. Sofás e cadeirões exageradamente estofados em tons de pastel. As mesas de café de palhinha com tampos de vidro e as mesinhas de apoio estavam sujas com o pó fino, que servia para tirar impressões digitais, deixada pela equipa pericial do Departamento de Investigação. Havia um conjunto de equipamento de som estereofónico onde se integravam um televisor com um ecrã de grandes dimensões e um sistema estereofónico de tecnologia de ponta. A um canto via-se uma escrivaninha e respectiva estante com livros, cadernos e demais artigos que faziam parte da vida de uma estudante universitária como Jillian, tudo ridiculamente bem arrumado. Ao longo de outra parede estava o que havia de mais recente em teclados electrónicos, de um negro cintilante. A cozinha, que se via bem da sala de estar, exibia uma limpeza esmerada.
Temos de descobrir se ela tinha mulher-a-dias.
Não há dúvida de que esta casa não tem nada a ver com as instalações habituais dos estudantes universitários, regra geral, sempre nas lonas comentou Liska. por outro lado, há que pensar que esta rapariga não tinha nada de comum. Para começar, teve uma meninice nada típica andando sempre a saltar de país em país pela Europa.
E contudo, regressou aqui para frequentar a faculdade. A que é que isso se terá devido? Ela poderia ter entrado para qualquer universidade... a Sorbonne, Oxford, Harvard ou mesmo a Southern na Califórnia. Podia ter optado por uma qualquer onde a temperatura ambiente fosse amena e soalheira. Podia ter ido para qualquer local exótico. Por que razão terá vindo para aqui?
Para estar perto do paizinho.
Moss começou a percorrer a sala; o seu olhar perscrutava tudo e mais alguma coisa que lhe pudesse dar uma pista em relação à vítima.
Imagino que isso faça sentido. Mas mesmo assim A minha filha Beth e eu mantemos um relacionamento fantástico, mas, no mesmo minuto em que ela acabou o liceu quis sair do ninho.
Para onde é que ela foi?
Para a Universidade de Wisconsin, em Madison. O meu marido não é nenhum Peter Bondurant. Teve de ir para uma faculdade onde as propinas não fossem muito altas explicou Moss folheando as revistas Psychologe Today e Rollini Stone.
Se o meu velho tivesse tido mil milhões de dólares, e pudesse proporcionar-me uma casa como esta, eu também teria querido estar perto dele. Talvez eu consiga fazer côm que o Bondurant me adopte.
Quem é que esteve cá ontem?
Mandaram um par de tipos de uniforme depois de o corpo ter sido encontrado com a carta de condução da Bondurant... só para se certificarem de que ela não estava em casa, de boa saúde e alheia a tudo o que se estava a passar. Pouco depois, foi a vez do Sam vir com o Elwood para darem uma vista de olhos. Interrogaram os vizinhos, mas ninguém sabia nada de importante para o caso. Ele aproveitou para levar a agenda dela, recibos do cartão de crédito, contas do telefone e mais alguma papelada, mas não descobriu nada que merecesse um primeiro prémio. Temos de deduzir que, se ela tivesse algum vício em relação a qualquer droga, os tipos da perícia criminal já teriam descoberto alguma coisa.
Talvez ela tivesse o hábito de trazer tudo na mala de mão.
Arriscando-se a perder o que tinha de reserva por alguém lhe roubar a mala? Não me parece. Além do mais, esta casa está demasiado limpa para uma drogada.
No primeiro andar havia dois quartos de cama com duas casas de banho completas. Na sua pequena casa em Saint Paul, Liska tinha o prazer de partilhar uma casa de banho exígua com os filhos, de onze e nove anos de idade. Como detective, auferia um bom salário, mas coisas como a liga de hóquei e os especialistas de ortodontia custavam bom dinheiro, e a pensão de alimentos que o ex-marido dava para os filhos, um montante estabelecido pelo tribunal, era risível. Muitas vezes pensava que devia ter tido a sensatez de se ter deixado engatar por um fulano rico, em vez de se ter deitado com um tipo de nome Rich.
O quarto de Jillian encontrava-se tão aberrantemente arrumado e limpo como o resto da casa.
A roupa da cama de grandes proporções já havia sido removida pela equipa de perícia criminal; os lençóis tinham sido levados para o laboratório onde se procurariam quaisquer indícios de sangue ou de fluidos seminais. Em cima das cadeiras não se via qualquer peça de roupa, nem tãopouco no chão, tal como não se via nenhuma gaveta da cómoda parcialmente aberta de onde pendesse roupa interior; também não havia sapatos espalhados por onde quer que
1 Em inglês, rico. (N da T)
fosse nada que se assemelhasse ao quarto atulhado de Liska, que ela nunca sentia vontade, além de não ter tenpo de arrumar ou limpar. Quem diabo é que tinha oportunidade de o ver, além de ela própria e dos filhos? Quem é que tinha ocasião de ver o quarto de Jillian Bondurant? Havia alguns instantâneos de um rapaz presos entre a moldura do espelho acima da cómoda de carvalho. Não se viam nenhumas fotografias de membros da família. Liska abriu as gavetas das mesas-de-cabeceira que ladeavam a cama. Nada de preservativos nem de qualquer dispositivo intra-uterino. Um cinzeiro limpo e uma pequena caixa de fósforos com o logotipo da DCup Coffee House. Nada naquele quarto mostrava qualquer pormenor de natureza pessoal com respeito à sua ocupante o que sugeri» a Liska duas possibilidades: que Jillian Bondurant era princesa da repressão, ou que alguém passara a casa a pente fino depois do seu desaparecimento, tendo deixado tudo como que desinfectado. Apenas fósforos e o cheiro ao fumo de cigarros, embora todos os cinzeiros da casa estivessem escrupulosamente limpos. Vanlees tinha uma chave. Quem mais é que poderia acrescentar a essa lista? Peter Bondurant. A amiga de aparência dura de Jillian? O assassino. Naquele momento o criminoso estava de posse das chaves da sua vítima, bem como do seu endereço, ao que se acrescia o automóvel e os cartões de crédito. Kovac agira de imediato, dando instruções para que não se perdesse o rastro de quaisquer recibos que comprovassem a utilização dos cartões depois do desaparecimento da rapariga, o que tivera lugar na última sexta-feira à noite. Mas, até ao momento, essa medida não produzira nenhuns resultados positivos. Todos os agentes policiais de serviço na grande área metropolitana tinham a descrição das características e número da chapa de matrícula do Saab vermelho de Jillian Bondurant. Até à data, nada.
A casa de banho principal também se encontrava impecavelmente limpa. Nas saboneteiras havia sabonetes em tons de alfazema e verde-jade para decoração, uma vez que. supostamente, ninguém os utilizaria. O champô na prateleira da banheira era da marca Paul Mitchell o frasco tinha o rótulo de um salão de cabeleireiro de um centro comercial de Dinkydale. Uma possível fonte de informações, caso Jillian tivesse sido o género de mulher que se confessasse à sua cabeleireira. No armário dos medicamentos não havia nada de interessante, nem tão-pouco debaixo do lavatório.
O outro quarto era mais pequeno e a roupa de cama também já tinha sido levada. As roupas de Verão, retiradas do quarto principal devido à aproximação de mais um rigoroso Inverno do Minnesota, estavam penduradas no roupeiro desse quarto. As gavetas da cómoda continham todo o tipo de vestuário - alguns pares de cuecas: pretas, de seda, tamanho médio; um soutien de renda negra da Loja Frederiek’s de Hollywood: muito reduzido e desbotado das lavagens, tamanho 34B; um par de perneiras pretas de qualidade inferior com um buraco na zona de um joelho de tamanho pequeno. A roupa interior não estava dobrada. Liska ficou com a impressão de que aquelas peças de vestuário não pertenciam a Jillian Bondurant.
Seriam da amiga? Não havia peças em quantidade suficiente para indicar que houvesse uma parceira de casa a tempo inteiro. O facto de a segunda casa de banho ser utilizada eliminava a hipótese de um amante. Liska regressou ao quarto principal voltando a inspeccionar as gavetas da cómoda.
Já conseguiste descobrir alguma coisa? perguntou Moss aproximando-se da ombreira da porta, tendo a precaução de não se encostar, uma vez que a madeira estava suja com pó das impressões digitais.
Ou esta miúda tinha uma noção de higiene inacreditável, ou um fantasma da casa das fadas chegou aqui antes de qualquer outra pessoa. Ela desapareceu na sexta-feira. Isso deu ao assassino uns bons dois dias de posse das chaves.
Mas não houve nada que nos indicasse a presença de alguém desconhecido, ou suspeito, que tivesse andado a rondar a casa.
Então, é possível que o nosso assassino não seja um estranho ou suspeito. Talvez conseguíssemos arranjar uma equipa que mantivesse a casa sob vigilância durante uns dois dias disse Liska, pensativa. Talvez o fulano acabe por aparecer.
O mais provável é ele já ter cá estado e partido. Estaria a correr um grande risco se viesse cá depois de o corpo ter sido descoberto.
Ele correu um grande risco quando lançou fogo ao cadáver no parque.
De uma algibeira do casaco comprido, Liska tirou o seu telemóvel e ligou o número de Kovac, aguardando impacientemente enquanto tocava do outro lado da linha sem que ninguém atendesse. Finalmente, acabou por desistir guardando o telefone no bolso.
O Sam deve ter deixado o casaco outra vez no carro Devia usar o telemóvel numa corrente à volta do pescoço. como a carteira de um camionista. Em qualquer dos casos, provavelmente tens razão. Se o Joe «Fumacento» quisesse voltar aqui, tê-lo-ia feito depois de a ter morto, mas antes de o corpo ter sido encontrado. E na hipótese de ele ter estado aqui, talvez neste momento, enquanto conversamos, já tenham encontrado as suas impressões digitais.
Como se tivéssemos essa sorte.
Encontrei algumas peças de roupa no outro quarto acrescentou Liska com um suspiro. Possivelmente, pertencerão a uma amiga, e também descobri o cabeleireiro da Jillian, além de uma carteira de fósforos com o nome dCup café.
O D’Cup? perguntou Moss. Também encontrei um. Achas que devíamos experimentar para ver se nos serve?
Um tamanho «D»’? perguntou Liska com um sorriso afectado. Mas só se fosse nos sonhos do meu ex-marido. Queres saber o que encontrei numa ocasião na gaveta onde ele costumava guardar as meias? perguntou ela quando ambas percorriam o corredor em direcção à sala de estar. Uma dessas revistas pornográficas cheias de mulheres com tetas enormes, gigantescas, descomunais. Estou a falar de mamas que pendiam até aos joelhos. Página após página com esse espectáculo. Tetas, tetas e mais tetas do tamanho do Hindenburg. E os homens atrevem-se a pensar que somos muito más porque, quando queremos coisos COM quinze centímetros, queremos mesmo que tenham quinze centímetros.
Moss emitiu um som entre um gemido e uma risada.
Nikki, depois de um dia passado contigo, vou ter de ir ao confessionário.
Pois bem, enquanto estiveres lá dentro, aproveita para perguntar ao padre o que é que se passa com os rapazes em relação às mamas.
1 Trocadilho entre o nome do café e um tamanho de soutien. (N. da T.)
Saíram ambas da casa, fechando a porta à chave. O vento soprava rio abaixo, varrendo os cheiros a lama e as folhas mortas, juntamente com os odores metálicos da cidade e das máquinas que a habitavam. Moss agasalhou-se melhor apertando o casaco mais junto ao corpo. Liska meteu as mãos nas algibeiras fundas, inclinando os ombros para a frente. As duas encaminharam-se para o carro, começando a queixar-se antecipadamente do longo Inverno que se aproximava. No Minnesota, o Inverno era sempre demasiado prolongado.
Quando fizeram marcha atrás, saindo do parque de estacionamento, avistaram Vanlees de pé junto da entrada da casa onde já não vivia, observando-as com uma expressão que não deixava adivinhar nada, até que Liska ergueu a mão acenando-lhe num gesto de despedida.
E que tal se tentássemos outra vez, Angie? perguntou com suavidade o desenhador do Departamento de Perícia Criminal. Chamava-se Oscar e tinha uma entoação de voz com a consistência de açúcar caramelizado. Kate já tivera ocasião de o ver a embalar pessoas com a sua voz, estando quase a adormecê-las: Angie DiMarco estava prestes a ser embalada.
Kate colocara-se atrás da rapariga, mantendo-se a uma distância de quase dois metros, perto da porta. Não queria que a impaciência que ela própria sentia fizesse aumentar o nervosismo que a jovem manifestava. Angie agitava-se na cadeira, como se fosse uma criança que mal tivesse começado a andar na sala de espera do consultório de um pediatra, mostrando-se infeliz, pouco à vontade e nada disposta a cooperar. Tinha o aspecto de quem não dormira bem, embora tivesse aproveitado a casa de banho da Phoenix e tomado um duche. Os seus cabelos castanhos ainda estavam húmidos e escorridos, mas bem lavados. Usava o mesmo blusão por cima de uma camisola de lã diferente e as mesmas calças sujas de ganga.
Quero que feches os olhos dizia o desenhador. Respira devagar e fundo e deixa que tudo saia cá para fora...
Angie suspirou de impaciência.
lentamente...
Kate tinha de reconhecer mérito no homem em virtude da tolerância que mostrava. Ela própria sentia uma vontade quase irresistível de esbofetear alguém, fosse quem fosse Mas Oscar tinha a vantagem de não ter sido ele quem desfrutara do prazer de ir buscar Angie à Casa Phoenix, onde Toni Urskine, uma vez mais, dera largas à frustração que sentia em relação aos casos do Cremador, descarregando em Kate.
Duas mulheres brutalmente assassinadas e não se faz nada porque são prostitutas... meu Deus, a Polícia chegou ao ponto de afirmar que essas mortes não constituíam nenhuma ameaça para o público em geral... como se essas mulheres não contassem como cidadãs desta cidade! É absolutamente ultrajante!
Kate contivera-se ao ponto de nem sequer tentar explicar-lhe qual era o conceito de risco elevado e risco menor com referência às vítimas. Sabia bem de mais qual a reacção que suscitaria emocional, visceral, sem sombra de lógica.
Para a Polícia é inteiramente indiferente que existam mulheres que o desespero tenha levado à prostituição e ao consumo de drogas. Na óptica deles, mais uma puta morta o que é?... Apenas um problema a menos pelas ruas. Mas a filha de um milionário aparece morta e, subitamente, temos uma crise! Meu Deus, desta vez a vítima foi uma pessoa a sério! arengara ela cheia de sarcasmo.
Kate fez um esforço para distender os músculos tensos das mandíbulas ao recordar-se desse episódio. Nunca simpatizara com Toni Urskine. Esta tinha o hábito de se concentrar ao longo das vinte e quatro horas de todos os dias na indignação que sentia, mantendo-a constantemente como que em banho-maria. Caso ela e os seus ideais, ou as suas «vítimas», como chamava às mulheres que acolhia na Phoenis não se sentissem ligeiramente ultrajadas, não descansaria até encontrar uma maneira qualquer de ser insultada, de modo a poder subir ao seu púlpito de onde berraria a todos os que se encontrassem à distância de poderem ouvi-la. O Cremador alimentar-lhe-ia a fogueira das indignações durante muito mais tempo. Contudo, Urskine tinha alguma justificação para todo aquele sentimento de ultraje, o que Kate era forçada a admitir. Pela sua mente já tinham passado sentimentos similarmente cínicos em relação àquele tipo de casos. No entanto ela sabia que as forças da autoridade tinham andado a trabalhar naqueles dois primeiros casos, fazendo o melhor de que eram capazes dentro dos seus limites em termos de número de efectivos, e orçamentais, que os manda-chuvas impunham à média das mortes violentas.
Mesmo assim, a única coisa que ela gostaria de ter dito a Toni Urskine nessa manhã era: «A vida é uma porra. É melhor habituares-te!» Ainda sentia a língua dorida por a ter mordido. Em vez disso, limitara-se a dizer: «Eu não sou nenhum xui, sou uma pessoa que defende os seus interesses. Estou do seu lado.»
Mas havia muita gente que também não queria ouvir isso. Ela trabalhava em estreita cooperação com a Polícia, pelo que, por um processo de associação, era culpabilizada. Havia muitas ocasiões em que os próprios polícias olhavam para ela, considerando-a uma inimiga dos seus interesses, porque ela trabalhava com um grande número de liberais de coração sofredor que passavam demasiado tempo a dizer mal da Polícia. Kate encontrava-se entre os dois campos.
Ainda bem que gosto do meu trabalho, senão acabaria por o odiar.
Estás no parque, mas estás em segurança dizia Oscar numa voz muito suave. O perigo já passou, Angie. Ele agora não pode fazer-te mal nenhum. Abre bem os olhos da tua mente e olha para a cara dele. Observa-o com toda a tua atenção.
Em passos lentos, Kate aproximou-se de uma cadeira próxima da sua testemunha, sentando-se sem fazer nenhum barulho. O olhar de Angie, que se mantinha firme, cruzou-se com o de Kate, desviando-se a seguir para Oscar que também a observava; os seus olhos plenos de simpatia cintilavam como ónix bem polido num rosto que parecia afundar-se no ar. Uma barba farta e bigode, a par de uma cabeleira espessa, quase como a juba de um leão, solta à volta dos ombros maciços.
Não poderás ver se não observares, Angie acrescentou com sensatez.
Talvez eu não queira ver respondeu a rapariga com uma expressão de desafio.
Desde que estejas aqui, ele não pode fazer-te nenhum mal, Angie retorquiu Oscar fitando-a com tristeza. E só precisas de olhar para o rosto dele. Não és obrigada a ver o seu coração ou a ler-lhe os pensamentos. Tudo o que tens de observar é a cara dele.
Ao longo de toda a sua carreira, Oscar tivera oportunidade de se sentar em frente de muitas testemunhas; todas haviam receado as mesmas duas coisas: vingança por parte do criminoso a qualquer altura num futuro indefinido, e o medo mais premente de serem forçados a reviver o crime uma vez mais. Kate sabia que uma recordação ou um pesadelo poderiam causar tanta ansiedade psicológica como um evento que tivesse lugar fisicamente e não mentalmente. Seja qual foro grau de evolução que a raça humana gosta de pensar ter alcançado, a mente continua a experimentar dificuldades em diferenciar entre a realidade física e a realidade perceptiva.
O silêncio arrastou-se. Oscar olhou para Kate.
Angie, tu disseste-me que estavas disposta a fazer isto, lembrou ela à rapariga.
Sim, disse, mas talvez tenha mudado de ideias respondeu Angie mostrando-se ainda mais carrancuda. Quer dizer, que raio é que eu tenho a ganhar com tudo isto? Estarás em segurança e contribuirás para afastar i assassino das ruas da cidade.
Não, quero dizer, realmente retorquiu ela, enfrentando subitamente os aspectos práticos da questão. O que é que eu ganho com isto? Ouvi dizer que há uma recompensa. Você nunca me falou em recompensa nenhuma.
Ainda não tive tempo de abordar esse assunto com ninguém.
Pois bem, acho melhor que o faça. Porque se eu me decidir a fazer isto, então, pode apostar que quero receber alguma coisa pelo meu trabalho. Acho que mereço.
Isso é o que mais tarde se verá atalhou Kate Até ao momento não nos deste peva. Tenciono tirar a limpo essa questão da recompensa. Mas, entretanto, a verdade, é que és uma testemunha. Podes ajudar-nos enquanto nós tambem podemos ajudar-te. Talvez não te sintas preparada para isto. É possível que penses que a tua memória não é suficientemente forte. Se de facto for isso que se está a passar tudo bem. Os xuis têm pilhas de fotografias de suspeitos que chegam ao tecto. Talvez venhas a encontrá-lo entre elas.
E talvez eu possa pôr-me no olho da rua ripostou Angie com brusquidão, levantando-se tão repentinamente que as pernas da cadeira arrastaram pelo soalho.
Kate sentia uma vontade quase irreprimível de a sufocar. Era por esse motivo que ela não queria trabalhar com adolescentes: o seu nível de tolerância para com o drama e as merdas que eles congeminavam era muito reduzido.
Examinou Angie, tentando formular uma estratégia. Se a miúda quisesse efectivamente sair dali, nada a poderia impedir. Ninguém lhe bloqueava a porta. Mas o que Angie queria realmente era fazer uma cena, ter todos à sua volta a apaparicá-la, implorando-lhe que não fosse. Contudo, no que dizia respeito a Kate, as súplicas não eram uma opção. Não estava disposta a entrar numa jogada em que não tinha a mínima hipótese de controlar a situação. Se não aceitasse o repto da rapariga, raciocinava Kate, o mais que lhe poderia acontecer era ter de a seguir quando saísse porta fora. Sabin arruinaria a sua carreira se ela perdesse a sua testemunha principal, a única que tinha. Naquela fase da sua vida, já se dedicava a uma segunda carreira. Quantas mais é que poderia vir a ter?
Kate levantou-se com lentidão, dirigindo-se para a ombreira da porta a que se encostou com os braços cruzados.
Sabes, Angie, tenho estado a pensar que deve haver uma razão para nos teres dito, para começar, que viste esse tipo. Não foste obrigada a dizer-nos. Na altura, não sabias da existência de uma recompensa. Nada te impedia de teres mentido, dizendo-nos que quando encontraste o corpo ele já tinha desaparecido. Como é que nós poderíamos saber que estavas a mentir? Temos de aceitar a tua palavra quanto ao que viste ou não viste. Portanto, vamo-nos deixar de merdas, de acordo? Não me agrada nada que tentes fazer gato-sapato de mim quando eu estou do teu lado. Eu sou a que se põe entre ti e o promotor público, e ele só está à espera de uma oportunidade para te pôr atrás das grades, passando a considerar-te como uma suspeita no crime. Não me venha com ameaças! ripostou Angie, obstinada.
Não se trata de uma ameaça. Estou a ser muito franca contigo porque acho que é isso que queres. Com certeza que não quererás que te minta e tente lixar-te a vida, tal como eu própria não desejo isso. O que eu respeito. E que tal se retribuísses o favor’?
A rapariga ficou a mordiscar a unha do polegar já muito ratada, com os cabelos pendentes diante do rosto parcialmente oculto, mas Kate viu que ela piscava os olhos com força, o que lhe suscitou uma vaga de simpatia por ela. A alteração de estado de espírito que aquela miúda lhe inspirava acabaria por a levar à dependência do Prozac.
Você deve pensar que eu sou uma chata de primeira grandeza disse Angie por fim com um pequeno trejeito nos lábios carnudos que quase reflectia pesar.
Sim, mas não considero que isso seja uma falha fatal ou irreversível; compreendo que terás as tuas razões para essa atitude. Mas terás mais a recear se não tentares identificar o criminoso acrescentou Kate. Neste momento, és a única pessoa que conhece as características fisionómicas do homem. Será preferível que haja mais uns duzentos xuis que partilhem contigo esse conhecimento.
E o que é que me poderá acontecer se eu não cooperar?
Não recebes nenhuma recompensa. Para além disso, não faço a mínima ideia. Neste momento és uma testemunha em perspectiva. Caso decidas que isso não corresponde à realidade, o assunto fica fora da minha alçada. É possível que o promotor público decida agir com dureza, mas. por outro lado, talvez ele opte por te deixar ir em paz. Em qualquer das hipóteses, ele afastar-me-á do caso.
O que provavelmente lhe daria muita satisfação.
Não aceitei este caso por pensar que seria simples ou agradável contrapôs Kate. Não quero ver-te sozinha no meio de tudo isto, Angie. Também não me parece que desejes isso.
Sozinha. Angie sentiu os braços e as pernas percorridas por arrepios que fizeram com que ficasse com pele de galinha. Aquela palavra provocava-lhe um vazio constante que se alojava no seu âmago. Recordava-se dessa sensação a acumular-se dentro de si na noite anterior, empurrando a sua consciência para um canto da sua mente cada vez mais exíguo. Era o que mais receava no mundo e para lá deste. Mais ainda do que a dor física. Mais do que um assassino.
Vamos deixar-te sozinha. O que é que isso te parece, grande péste? Poderás ficar sozinha para sempre. Fica aí sentadinha a pensar nisso. Até é possível que nunca mais voltemos.
Retraiu-se toda ao recordar-se do som de uma porta que se fechava, a profunda escuridão no interior da despensa,! o sentimento de solidão que parecia querer tragá-la Naquele momento, tinha a impressão de que aquela sensação se elevava dentro de si como um fantasma negro. Cerrava-se em redor da sua garganta, uma mão invisível que fazia com que quisesse chorar, sabendo de antemão que lhe era impossível. Nunca naquele lugar. Não naquele momento. Sentiu o coração começar a bater com mais rapidez.
Vamos lá, miúda continuou Kate suavemente, acenando com a cabeça na direcção de Oscar. Experimenta fazer o que te pedimos. Ao fim e ao cabo, não tens nada melhor que possas fazer. Entretanto, vou-me informar do dinheiro da recompensa.
«A eterna história da minha vida», pensou Angie. Faz o que eu quero, senão deixo-te sozinha Faz o que eu quero, caso contrário faço-te mal. Escolhas que não eram escolhas.
De acordo murmurou Angie por fim, regressando à cadeira a fim de iniciar a descrição do homem que vira, para que o desenhador fizesse o retrato do mal.
O edifício onde se situava o consultório do Dr. Lucas Brandt, juntamente com os de dois outros psicoterapeutas e dois psiquiatras, era um prédio de tijolos estilo jorgiano de proporções graciosas. Os doentes que iam ali à procura de tratamento, provavelmente, sentiriam mais estar prestes a tomar um chá extremamente requintado do que a confessar os seus segredos mais profundos, revelando toda a sua roupa suja psicológica.
O consultório de Lucas Brandt ficava no segundo andar. Quinn e Kovac foram deixados a arrefecer as ideias no vestíbulo enquanto o médico terminava a consulta de um paciente. No ar pairavam os acordes do Concerto Brandeburguês N,”3, de Bach, como que num suave murmúrio. QUIM ficou a olhar fixamente através da janela de estilo clássico de onde se desfrutava de uma vista sobre o lago das Ilhas e parte do lago Calhoun bastante mais vasto, ambos de águas tão acinzentadas quanto os bairros antigos sob a luminosidade sombria do dia.
Kovac percorria o vestíbulo inspeccionando o mobiliário.
Peças realmente antigas. Muita classe. Porque seria que os tarados ricos têm classe, é o tipo de gente que eu tenho de arrastar para a cadeia, só quer cagar em cima de mim?
Repressão.
O que?
As apetências de cada um em termos sociais são fun dadas e ocultas em repressão. Os tarados ricos também querem cagar em cima de si explicou Quinn com Um sorriso, mas as maneiras que lhes ensinaram na infância impedem-nos de o fazer.
Não há dúvida de que gosto de si, Quinn retorquiu Kovac rindo-se à socapa. Vou ter de lhe arranjar uma alcunha. Ficou a olhar para Quinn, observando o fato elegante, reflectindo por uns momentos antes de prosseguir com um meneio de cabeça: GQ. É isso mesmo. GQ, como o nome da revista. «G» para G-man, e «Q» para Quinn.
- Kovac mostrou-se imensamente satisfeito consigo próprio. Sim, agrada-me muito. Não perguntou a Quinn se lhe agradava.
Entretanto, a porta da sala de consultas do Dr. Brandt abriu-se e a secretária do médico, uma mulher de estatura baixa, cabelos ruivos e quase sem queixo, convidou-os a entrar numa voz que se assemelhava ao sussurro de uma bibliotecária.
O doente, se é que tinha existido, devia ter saído furtivamente pela porta da outra sala. Lucas Brandt levantou-se por detrás da sua mesa de trabalho quando os dois homens entraram na sala; Kovac sentiu de súbito a sensação desagradável de já se ter cruzado com aquele homem. Brandt. O nome dizia-lhe qualquer coisa, mas nunca teria equacionado o Brandt da sua associação de ideias com o mesmo Brandt autor de Neuroses of The Rich and Famouse.
Procederam às apresentações, com Kovac à espera que Brandt também acusasse tê-lo reconhecido, o que não aconteceu... e que serviu apenas para azedar ainda mais o estado de espírito de Kovac. A expressão no rosto do psiquiatra era apropriadamente formal. Era um homem louro com um aspecto atraente de cunho germânico; tinha um nariz de linhas direitas e olhos azuis; era de estatura mediana, mas com uma postura e presença que davam a impressão de ser mais alto do que efectivamente era. Sólido era o termo que ocorria à mente. Usava uma gravata de seda muito em moda e uma camisa azul que pelo aspecto fora passada a ferro por alguém que sabia o que estava a fazer. Num cabide alto a um canto da sala estava pendurado o casaco de um fato de um cinzento metálico.
Consciente da sua indumentária, Kovac alisou a gravata que comprara numa das lojas da cadeia... e Penney. Doutor Brandt, já tive oportunidade de o ver no tribunal.
1 Nome por que os agentes especiais do FBI são conhecidos. (N. da T.)
1 «Neuroses dos Ricos e Famosos». (N. da T.)
- Sim, provavelmente terá visto. A psicologia forense é uma actividade em que me iniciei em princípio de carreir - explicou o médico a Quinn. - Na altura estava a precisar de dinheiro - confessou com um pequeno sorriso de cumplicidade, como se partilhasse com eles o facto de actualmente não precisar de dinheiro. - Mas cheguei à conclusão de que gostava desse tipo de trabalho, pelo que não o pus totalmente de parte. É uma boa variante daquilo que vejo no meu dia-a-día profissional.
- É um interlúdio que o afasta das meninas ricas com perturbações alimentares, permitindo-lhe testemunhar a favor de um bandalho qualquer - retorquiu Kovac, mordaz, arqueando um sobrolho. - Sim, aí está um passatempo.
- Eu trabalho para quem necessita dos meus serviços, detective. Seja pela acusação, seja a favor da defesa. «Tu trabalhas mas é para quem sacar da carteira em primeiro lugar.» Mas Kovac sabia que não poderia permitir-se expressar aquele pensamento em voz alta.
- De facto, ainda esta tarde vou ter de ir ao tribunal acrescentou Brandt. - Mas primeiro tenho um almoço marcado. Portanto, embora deteste ter de me mostrar grosseiro, sugiro que tratemos imediatamente do assunto que vos trouxe ao meu consultório.
- Só queremos fazer-lhe umas perguntas rápidas - replicou Kovac pegando no ancinho em miniatura que se coadunava com o jardim zen disposto sobre a credência junto da janela. Do ancinho olhou para a caixa como se esperasse que a pequena alfaia servisse para apanhar os excrementos do gato.
- Certamente que compreenderão que não posso ajudar-vos muito nas vossas investigações. A Jillian era minha paciente. As minhas mãos estão amarradas pelo segredo profissional que existe entre médico e doente.
-A sua doente está morta - disse Kovac sem estar com meias-palavras. Pegou numa pedra negra de superficie polida que tirou da areia, voltando-se para se encostar de costas contra a credência, enquanto rolava a pedra entre os dedos. Um homem que se instalava procurando a posição mais confortável. - Não estou em crer que as expectativas que ela tinha em termos de confidencialidade sejam exactamente as mesmas no momento presente.
- Tenho a impressão de que o senhor não é capaz de se decidir, detective retrucou Brandt com uma expressão quase divertida. A Jillian está morta ou não? O senhor deu a entender ao Peter que ela talvez estivesse viva. Ora, se a Jillian estiver viva, então continuará a esperar o mesmo grau de confidencialidade da minha parte.
Existem muitas probabilidades de o corpo que foi encontrado ser da Jillian Bondurant, mas não há uma certeza absoluta interveio Quinn, participando pela primeira vez na conversa e retirando diplomaticamente as rédeas das mãos de Kovac. Em qualquer dos casos, estamos a trabalhar a contra-relógio, doutor Brandt. O assassino não hesitará em matar de novo. O que é um dado adquirido. O que acontecerá mais cedo do que mais tarde, no meu entender. Quanto mais conseguirmos descobrir sobre as suas vítimas, mais perto estaremos de o deter.
Estou familiarizado com as suas teorias, agente Quinn. Tive oportunidade de ler alguns dos seus artigos. De facto, até estou em crer que tenho o livro de que o senhor é co-autor algures numa das prateleiras da minha estante. Demonstra muito discernimento. Conhecer-se as vítimas é conhecer-se os seus assassinos.
Isso é apenas parte do texto. As duas primeiras vítimas do homicida eram mulheres de elevado risco, em termos da actividade a que se dedicavam. Todavia, a Jillian não parece ajustar-se a esse molde.
Brandt encostou-se à esquina da secretária, tamborilando com a ponta do dedo indicador nos lábios enquanto acenava lentamente com a cabeça.
O factor que diverge do padrão. Estou a ver. Esse pormenor transforma-a na peça central do quebra-cabeças. Você acredita que ele está a revelar mais de si próprio ao ter morto a Jillian do que com a morte das outras duas. E se a morte dela se dever apenas ao facto de ter estado no local errado à hora errada? E se ele não escolheu as duas primeiras vítimas por terem sido prostitutas? É possível que todas as vítimas tenham sido obra do acaso.
Não ripostou Quinn, examinando o brilho de desafio, pouco perceptível e bastante curioso, que via nos olhos de Brandt. No estojo de truques deste indivíduo não existe nada que se deva ao acaso. Ele seleccionou cada uma das mulheres por uma razão bem definida. Essa razão devia ser mais aparente em relação à Jillian. Há quanto tempo é que ela vinha à sua consulta?
Há dois anos.
Como é que ela veio parar ao seu consultório? Foi recomendada por alguém?
Foi através do golfe. Tanto o Peter como eu somos membros do Minikahda. Um clube excelente para se travar conhecimentos confessou o médico com um sorriso, aparentemente satisfeito com a sagacidade que demonstrava na sua carreira profissional.
Se vivesse na Florida poderia ter mais conhecimentos replicou Quinn na brincadeira. Somos compinchas ou quê?... Tão espertos, tão expeditos.» A temporada por es tas bandas tem de se limitar a... o quê?, uns dois meses
Três, isto é, nos anos em que temos Primavera replicou Brandt acompanhando o ritmo de respostas na ponta da língua. Mas costumamos passar muito tempo nas instalações do clube. O restaurante é muito acolhedor. O senhor joga golfe?
Quando tenho oportunidade para isso. Não porque gostasse particularmente da prática desse desporto. Apenas um meio de estabelecer contactos, uma oportunidade de dar a conhecer as suas ideias ao seu agente especial administra tivo ou ao chefe da brigada; eram ocasiões que também lhe serviam para se manter ao corrente dos casos em que trabalhava de parceria com colegas espalhados por todo o país O que, ao fim e ao cabo, não era assim tão diferente do modo de agir de Lucas Brandt.
É uma pena que a temporada tenha acabado disse este.
Sim, é uma grande falta de consideração da parte deste assassino trabalhar em Novembro, se pusermos as coisas nesses termos atalhou Kovac com ironia.
Não foi isso o que pretendi dizer, senhor detective retorquiu Brandt, lançando-lhe um olhar de través. Nu entanto, agora que puxou esse assunto, é uma lástima que o senhor não tenha conseguido apanhá-lo durante o Verão. Não estaríamos a ter esta conversa redarguiu o psiquiatra, fazendo uma pausa. Seja como for, há muitos anos que conheço o Peter acrescentou dirigindo-se a Quim
Ele não me deu a impressão de ser uma pessoa muito sociável.
Não. De facto, para ele, o golfe é uma actividade que deve ser levada muito a sério. Com o Peter tudo é muito sério. É uma pessoa que põe muito empenho em tudo o que faz.
Que impacto é que essa característica na sua maneira de ser teve na relação que tinha com a Jilhan?
Ah! exclamou o médico, agitando um dedo à guisa de advertência e abanando a cabeça, embora continuasse a sorrir~. Está a pisar o risco, agente Quinn.
Quinn acusou o toque com um inclinar de cabeça.
Qual foi a última vez em que falou com a Jilhan? perguntou Kovac.
Ela veio a uma consulta na passada sexta-feira. Vinha ao consultório todas as sextas-feiras às dezasseis horas.
E depois seguia para casa do pai para jantar com ele?
Sim. O Peter e a Jilhan esforçavam-se muito por melhorar o relacionamento entre os dois. Viveram separados durante muito tempo. Havia muitos sentimentos antigos que era preciso encarar de frente
Tais como?
Brandt olhou Quinn pestanejando
Muito bem concedeu este E que tal se nos desse o tipo de informações generalizadas, por exemplo, com referência à origem dos problemas psicológicos da Jillian? Limitando-se a dar-nos apenas a sua opinião?
Lamento muito, mas a minha resposta tem de ser negativa. Kovac soltou um pequeno suspiro de frustração.
Veja uma coisa, nada o impede de responder a algumas perguntas simples sem que com isso vá contra a sua ética deontológica. Por exemplo, queremos saber se ela andava a tomar algum medicamento O que é necessário para a despistagem de substâncias tóxicas.
Tomava Prozac. Para tentar equilibrar as alterações no seu estado de espírito
Um medicamento para maníaco-depressivos, não é verdade? perguntou Quinn
O médico limitou-se a lançar-lhe um olhar
Que fosse do seu conhecimento, ela tinha algum problema com drogas? - tentou Kovac.
Não tenho comentários a fazer a esse respeito. A Gíllian tinha algum problema por causa de um namorado? Não obteve resposta.
Alguma vez mencionou ter sido maltratada ou violentada por alguém?
Silêncio.
Kovac passou a mão pela boca afagando o bigode. Sentia o seu sangue-frio a esboroar-se, qual pedaço de cortiça ressequida.
Há dois anos que conhece esta rapariga. Também conhece o pai dela. Ele considera-o seu amigo. Talvez pudesse dar-nos alguma informação que nos indicasse o caminho até ao assassino que a matou. E, no entanto, está a fazer-nos perder tempo com essas tretas de merda... É o jogo das escolhas, do frio e do quente. Você conhece as regras, Sam adiantou Quinn depois de ter pigarreado discretamente. Sim, sim... pois as regras que se fodam! vociferou Kovac, dando um piparote a um livro com fotografias de Mapplethorpe que estava em cima de uma mesinha de apoio. Se eu fosse um advogado da defesa a acenar com um maço de notas, pode apostar que ele haveria de descobrir uma maneira de se desenvencilhar, contornando os princípios da ética.
Sinto-me ofendido com esse comentário, senhor detective.
Ora bem, tenho muita pena por ter ferido a sua susceptibilidade. Houve alguém que torturou essa rapariga, senhor doutor. Afastou-se da credência mostrando uma expressão tão dura quanto a pedra que lançou para dentro do cesto dos papéis. O som foi semelhante ao estalo de uma bala disparada por uma arma de calibre 22. Houve alguém que lhe cortou a cabeça decepando-a do corpo, após o que a guardou como recordação. Se eu tivesse conhecido essa rapariga, pode crer que estaria muito interessado em saber quem é que lhe fez uma selvajaria dessas. E se pudesse ajudar a apanhar esse sacana tarado, acredite que não hesitaria. Mas você está mais preocupado com o seu estatuto social do que com o que possa ter acontecido à pobre Jillian Bondurant. Pergunto a mim mesmo se o pai dela já se terá apercebido disso. - Soltou uma gargalhada de azedume no momento em que o seu pager começou a tocar. - o que raio é que eu estou para aqui a dizer? o Peter Bondurant nem sequer quer acreditar que a filha talvez esteja viva. o mais certo é vocês dois merecerem-se um ao outro.
O pager voltou a dar sinais de vida. Leu a mensagem no mostrador, praguejou entre dentes e saiu do consultório, deixando o rescaldo da conversa por conta de Quinn.
Brandt conseguiu encontrar algo de divertido na explosão temperamental de Kovac.
Pois bem, ele não precisou de muito tempo. Regra geral, o polícia médio precisa de mais um pouco para perder as estribeiras comigo.
O sargento Kovac tem andado sob uma tensão tremenda por causa destes assassínios justificou Quinn, deslocando-se até à credência onde estava o jardim zen. Em nome dele, apresento-lhe as minhas desculpas.
As pedras dentro da caixa haviam sido dispostas de maneira a formarem um X, enquanto a areia fora colocada em pequenos sulcos sinuosos à volta delas. O pensamento de Quinn concentrou-se nas lacerações nos pés da vítima, um desenho que formava um X duplo e nos golpes de lâmina no peito da vítima dois X que se interceptavam.
Este desenho tem algum significado? perguntou ele casualmente.
Para mim não tem respondeu Brandt. Os meus pacientes brincam mais com isso do que eu próprio. Descobri que serve para acalmar as pessoas, ao mesmo tempo que encoraja o fluxo de pensamento e comunicação.
Quinn conhecia vários agentes do Centro Nacional de Análise do Crime Violento que tinham jardins zen. Os seus gabinetes situavam-se a cerca de vinte metros abaixo da superfície do solo a uma profundidade dez vezes maior do que aquela a que os mortos eram sepultados, como eles costumavam dizer na brincadeira. Nada de janelas nem de ar fresco, e a percepção de que tinham o peso da terra sobre as paredes era de um simbolismo capaz de fazer tesão a Freud. As pessoas necessitavam de qualquer coisa para aliviar a tensão a que estavam sujeitas. Pessoalmente, ele preferia bater em coisas com força. Passava horas a fio no ginásio onde punia e socava um saco em couro de pugilista pelos pecados do mundo.
Não há necessidade de estar a desculpar-se em nome do Kovac disse Brandt, baixando-se para apanhar do chão o livro de Mapplethorpe. Eu tenho muita experiência de lidar com polícias. Para eles, tudo é muito simples.
Das duas uma: as pessoas ou são boas ou más. Não são capazes de compreender que eu próprio, por vezes, considero frustrantes as limitações que a ética profissional me impõe. mas a verdade é que eles são o que são. Você compreende o que quero dizer.
Colocou o livro de lado, voltando a aproximar-se da extremidade da secretária, com a anca ligeiramente encostada a uma pequena pilha de pastas de cartolina. Na etiquetada de cima lia-se «BONDURANT, JILLIAM». Em cima dessa pasta havia um pequeníssimo gravador, como se tivesse estado a trabalhar no caso quando os dois homens chegaram, ou como se continuasse a trabalhar nos apontamentos que tomara aquando da última consulta em que ela estivera presente
Eu compreendo a sua posição. Só espero que também compreenda a minha disse Quinn cautelosamente. Não estou aqui na qualidade de polícia. Se bem que em última análise o nosso objectivo seja o mesmo, o sargento Ko vac e eu temos agendas de trabalho totalmente diversas. O meu perfil profissional não exige a recolha do tipo de provas admissíveis em tribunal. Eu ando à procura de impressões, sentimentos, instintos natos, pormenores que alguns considerariam insignificantes. O Sam procura uma faca ensanguentada com impressões digitais no cabo. Está a compreender?
Com gestos lentos, Brandt anuiu com a cabeça, sem nunca desviar os olhos dos de Quinn.
Sim, estou em crer que compreendo. Vou ter de pensar nesse ângulo de ver as coisas. Mas, ao mesmo tempo, você também deve considerar a hipótese de os problemas que a Jillian me apresentou poderem não ter rigorosamente nada a ver com a sua morte. É possível que quem a matou não tenha sabido nada a respeito dela.
Mas, por outro lado, talvez ele tenha tido conhecimento da coisa que o levou a praticar o crime adiantou Quinn. De uma carteira achatada que guardava na algibeira do casaco tirou um cartão-de-visita do FBI, entregando-o a Brandt.
Este é o número da linha directa do meu gabinete» FBI, na baixa. Espero que me dê notícias suas.
Colocando o cartão em cima da mesa, Brandt trocou um aperto de mão com o agente especial.
Com a reserva devida nas circunstâncias em que nos encontrámos, foi um prazer conhecê-lo. Tenho de confessar que fui eu quem sugeriu ao Peter o seu nome, quando ele me disse que tencionava telefonar ao seu director.
Não tenho bem a certeza se devo ficar-lhe agradecido por isso, doutor Brandt retorquiu Quinn com um trejeito nos lábios quando já se dirigia para a porta.
Saiu do consultório pela área da recepção, lançando um olhar de fugida à mulher que estava sentada no sofá de pêlo de camelo, a qual tinha os pés perfeitamente unidos e a mala de mão vermelha equilibrada sobre os joelhos; a expressão no seu rosto era de uma neutralidade estudada, uma máscara que tentava ocultar o aborrecimento e constrangimento que sentia. Não desejava ser vista naquele consultório.
Quinn perguntou-se como é que Jillian se teria sentido quando ia ali, confiando os seus segredos mais íntimos a um dos amigos parasitários do pai. Aquelas consultas teriam sido uma opção ou uma condição imposta pelo pai a troco do seu apoio? Havia dois anos que ela ia ali todas as semanas, e só Deus e Lucas Brandt é que sabiam por que motivo. E, muito possivelmente, Peter Bondurant. Brandt podia ostentar à frente deles os seus princípios éticos, qual pavão que alisasse e erguesse as penas da sua cauda, mas Quinn desconfiava que Kovac estava cheio de razão: depois de tudo resumido e concluído, a primeira obrigação de Brandt seria para consigo próprio. Sem esquecer que manter Peter Bondurant satisfeito contribuiria, e em muito, para a satisfação do Dr. Lucas Brandt.
Kovac esperava por Quinn no átrio do piso térreo, olhando fixamente com uma expressão intrigada para uma pintura abstracta que representava uma mulher com três olhos e seios que se projectavam das regiões laterais da cabeça.
Jesus Cristo, isto consegue ser mais feio do que a mãe da minha mulher... e ela era capaz de quebrar um espelho a uma distância de quinze metros. Parece-lhe que eles o penduraram aqui com o objectivo de dar aos tarados que aqui vêm um abanão suplementar quando chegam e partem?
Trata-se de um teste Rorschach. disse Quinn.
’Teste que tem o nome do seu criador, o psiquiatra suíço Hermann Rorchach: é utilizado para avaliar a inteligência e personalidade através da interpretação de borrões de tinta, em termos que revelam factores intelectuais e emocionais. (N da T.)
Eles andam a tentar afastar os tipos que pensam que representa uma mulher com três olhos e mamas que lhes saem dos lados da cabeça.
Kovac franziu o sobrolho, lançando um último olhar ao quadro antes de saírem para a rua.
Um só telefonema do Brandt e o desgraçado do meu traseiro achar-se-á no olho da rua comentou num resmungo enquanto desciam os degraus. Até parece que estou a ouvir o meu tenente: «Em que raio é que você estava a pensar, Kovac?» Jesus, o Brandt até é capaz de me açularo comandante. O mais provável é fazerem parte da mesma liga de gamão. O mais certo é irem à mesma manicura. O Greer subirá a um escadote para me arrancar a cabeça e gritar para dentro do buraco que ficar no pescoço: «Em que raio é que você estava a pensar, Kovac? Trinta dias sem vencimento!» Abanou a cabeça. Em que diabo é que eu estava a pensar?
Não sei replicou Quinn. Em que raio é que estava a pensar?
Em que odeio aquele tipo, foi nisso que estava a pensar.
A sério? Pensei que estávamos a representar a cena do polícia mau e do polícia bonzinho.
Não sou um actor assim tão bom redarguiu Kovac, olhando-o por cima do tejadilho do Caprice. Por acaso acha que sou parecido com o Harrison Ford?
Talvez, se se visse livre do bigode... disse Quinn semicerrando os olhos.
Entraram no carro cada um pelo seu lado; o riso de Kovac esmoreceu num acenar de cabeça.
Não sei de que é que estou a rir-me. Eu devia saber que não me cabe perder as estribeiras daquela maneira. O Brandt buliu-me com os nervos, mais nada. Estou a castigar-me porque não associei o nome à pessoa antes de me encontrar com ele. Mas acontece que não estava à espera
Nenhuma desculpa era uma boa justificação. Kovac bufou olhando com fixidez através do pára-brisas, observando as finas ramadas despidas de um arbusto na margem do lago à distância.
Você conhece-o de algum caso? perguntou Quinn
Conheço. Aconteceu há oito ou nove anos; testemunhou a favor da defesa numa investigação de homicídio em que trabalhei. Um tal Cari Borchard, um rapaz de dezanove anos que assassinou a namorada depois de ela ter tentado acabar o namoro. Estrangulou-a. É então que aparece o Brandt com uma história capaz de arrancar lágrimas a uma pedra, descrevendo a maneira como a mãe desse Borchard o abandonara, e como a tensão que existia entre ele e a namorada o havia levado a esse extremo. Disse aos jurados que todos devíamos ter muita pena do Cari, porque ele não tinha tido a intenção de matar a rapariga, e que estava cheio de remorsos. Afirmando que não se tratava de um assassino na verdadeira acepção da palavra. Alegando que tinha sido um crime passional. Que o rapaz não constituía uma ameaça para a sociedade. Blá... blá... blà. Boo... hoo... hoo.
Mas você achava que as coisas não eram bem assim?
O Cari Borchard era um merdas de um sociopata lamuriento, com um cadastro por delinquência juvenil cheio de pequenos crimes que a acusação não foi autorizada a apresentarem julgamento. Tinha um historial de sevícias em mulheres. Do que Brandt se encontrava tão ciente quanto nós, mas a verdade é que não éramos nós que lhe pagávamos pelo testemunho.
Esse Borchard conseguiu safar-se adiantou Quinn.
A sentença foi de homicídio involuntário. Começou por ser sentenciado como adulto com pena reduzida, mas o tempo em que esteve sob prisão preventiva foi contado como prisão efectiva, etc., etc., etc. O sacaninha mal teve tempo de cagar uma vez na prisão. Apressaram-se a enviá-lo para uma casa de reeducação. Enquanto viveu lá, violou uma mulher na localidade mais próxima, após o que lhe esfacelou a cabeça com um martelo. Ficámos todos muito agradecidos ao doutor Brandt. E quer saber o que é que ele teve a dizer sobre o assunto? perguntou Kovac ainda cheio de perplexidade. Na altura publicaram um artigo no Star Tribune em que ele disse ter pensado que o Cari tinha «esgotado a sua capacidade de fazer vítimas» com o primeiro assassínio, mas o que é que se havia de fazer, essas merdas aconteciam. Continuou a dizer que não poderiam atribuir-lhe qualquer responsabilidade por aquele pequeno engano, porque não lhe fora possível passar o tempo necessário com Borchard. Uma merda absolutamente espantosa.
Em silêncio, aquela informação ficou registada na mente de Quinn. A sensação de que estava a envolver-se de mais naquele caso voltou a assolá-lo. Sentia que as pessoas ligadas ao assunto fechavam o cerco à sua volta, demasiado perto para que ele pudesse observá-las com discernimento. Queria que retrocedessem, que se afastassem de si. Não queria saber nada a respeito de Lucas Brandt, não desejava ficar com nenhuma impressão pessoal em relação ao homem. Queria aquilo que o médico tivesse para lhe dar desde que este o fizesse à distância de um braço. Só desejava fechar-se no gabinete confortável e acolhedor que o agente especial administrativo lhe destinara na baixa, na Avemida Washington. Mas não era assim que as coisas se desenrolariam ali.
Sei mais uma coisa acerca do seu doutor Brandt acrescentou Quinn quando Kovac ligou a ignição do automóvel e engrenou a mudança.
O quê?
Ontem, ele manteve-se nos bastidores da conferência de imprensa.
Aqui está ele.
Kovac carregou no botão do comando à distância que imobilizava a imagem. A imagem contorceu-se enquanto o aparelho de vídeo a posicionava correctamente. Num dos lados onde a multidão de repórteres se reunira, juntamente com um grupo de homens importantes, encontrava-se Brandt. Kovac sentiu na base do diafragma um músculo contraído como se fosse um punho cerrado. Fez pressão no botão que continuaria a projecção, observando o psiquiatra inclinar a cabeça para dizer qualquer coisa ao homem que estava ao seu lado. Voltou a imobilizar a imagem.
Com quem é que ele está a falar?
Ahh... Yurek inclinou a cabeça de lado tentando um ângulo de visão mais favorável. É o Kellerman, advogado oficioso nomeado pelo promotor público.
Já sei quem é. Um rapaz que passa a vida a tentar trepar. Telefona-lhe. Descobre se ele e o Brandt estavam juntos ordenou Kovac. Tenta apurar se o Brandt tinha algum motivo legítimo para estar presente.
Achas que ele pode ser um suspeito? perguntou Adler, arqueando o sobrolho. Acho que ele é um grande cara de cu. Se isso fosse contra a lei, as cadeias estariam cheias de advogados.
Esta manhã ele buliu com os meus nervos queixou-se (Covac. Na minha opinião, ele e o Bondurant são demasiado amigalhaços, para não mencionar que o Bondurant anda a tentar fazer gato-sapato de nós
Há que não esquecer que ele é o pai da vitima apontou Adler
Ele é o pai rico da vitima acrescentou Tippen
Ele é o pai da vitima rico e poderoso, recordou a todos Yurek como agente encarregado das relações públicas
Faz parte da investigação de um assassínio atalhou Kovac olhando-o de esguelha. Tenho de conduzir esta investigação com tanto rigor como qualquer outra. O que quer dizer que temos de investigar toda a gente. Os membros da família da vitima são sempre observados ao microscópio. Quero averiguar o Brandt um pouco mais para que ele fique a saber que não somos apenas uma matilha de cães domesticados a quem o Peter Bondurant possa dar ordens a torto e a direito. Se ele nos puder dizer alguma coisa sobre aJillian Bondurant eu quero essas informações E também quero pisar lhe os calos porque ele é uma porra de uma carraça
Isso soa-me a grandes problemas, Kovak entoou Yurek
Estamos a falar de uma investigação de homicídio, Charm. Queres consultar a Emily Post?
Só quero chegar ao fim disto com a minha carreira intacta
A tua carreira é investigar retorquiu Kovac. O Brandt mantinha contactos regulares com a Jillian Bondurant.
Por acaso tens alguma razão, alem de não gostares dele que te leve a pensar que este psiquiatra da pixa limpou o sebo a duas putas, para alem de ter decapitado uma das suas doentes’ perguntou Tippen
Não estou a dizer que ele é um suspeito ripostou Kovac Mas a verdade é que esteve com a Jillian Bondurant na sexta-feira passada. Ela ia ao consultório dele todas as sextas feiras. Ele sabe tudo aquilo que nós precisamos de saber a respeito desta vítima. Se estiver a ocultar-nos qualquer informação relevante, temos todo o direito de o apertar um pouco
E o privilégio de fazer com que ele proteste.
Ele já começou a cantar essa cantiga. Anda a fugir com o rabo à seringa. Tenta colocar-se à margem. Se Conseguirmos fazer com que mencione o nome de um possível namorado da Jillian, o que me parece improvável, isso seria uma informação de que não dispomos até agora. Assim que confirmarmos que o cadáver corresponde à Jillian Bondurant, automaticamente deixará de existir o privilégio da confidencialidade a que a relação médico-paciente obriga, pa sando nós a poder exercer pressão sobre o Brandt para que nos dê pormenores.
Há outra coisa que me desagrada nesse mentecapto acrescentou Kovac percorrendo o comprimento da mesa com a engrenagem do cérebro a trabalhar a toda a velocidade. Não gosto do facto de o nome dele ter estado associado com só Deus sabe quantos criminosos. Quero uma lis ta com o nome de todos os infractores violentos a favor de quem, ou contra, ele tenha testemunhado.
Eu trato disso ofereceu-se Tippen. A minha ex trabalha no arquivo dos registos criminais. Ela detesta-me mas com certeza que detesta este assassino ainda mais. Comparando-me com ele, até que me vou sair muito bem
Homem, isso é uma tristeza, Tip disse Adler abanando a cabeça. Tu mal te situas acima da escumalha
Ei, isso é um degrau mais acima desde que ela meteu os papéis para o divórcio.
E o Bondurant... continuou Kovac provocando outro coro de resmungos. Recusa-se a falar connosco, o que não me agrada nada. Disse ao Quinn que andava preocupado devido à intromissão na sua privacidade. Não sou capaz de imaginar porquê acrescentou com uma careta matreira, tirando do bolso do casaco o pequeno gravador portátil
Os cinco membros do grupo que se encontravam presentes juntaram-se em seu redor para poderem ouvir. Liska e Moss continuavam incumbidas de tentar recolher pormenores sobre o passado da vítima. Por seu lado, os agentes federais já tinham regressado aos escritórios do FBI. Walsh trabalhava com base na lista de dados computorizados relativos a homicídios com as mesmas características, cometidos em outras regiões do país. Estaria a ligar para outros agentes de outros gabinetes que o FBI tinha espalhados por todo o território, entrando em contacto com várias pessoas que conhecera em diversos ramos das forças policiais graças aos programas de formação profissional organizados pela Academia Nacional do FBI, programas esses destinados aos profissionais das forças da lei que não faziam parte do Bu| reau. Por seu turno, Quinn enclausurara-se para poder elaborar em paz e sossego o perfil psicológico de Joe Fumacento. Mal respirando, os detectives começaram a ouvir com toda a atenção a gravação da conversa travada entre Bondurant e Quinn. Kovac tentou visualizar Bondurant, sentindo necessidade de ver mentalmente o rosto do homem; precisava de ver as expressões faciais que acompanhavam aquela voz desprovida do mínimo traço de emoção. Já tinha estudado minuciosamente esse diálogo juntamente com Quinn, conhecendo as impressões deste último. Mas proceder ao interrogatório de alguém por intermédio de uma terceira pessoa era como tentar ter relações sexuais com alguém que se encontrasse num quarto contíguo grande frustração e muito pouca satisfação.
A gravação continuou até que o aparelho se desligou com um estalido acentuado. Kovac olhou para os homens do grupo de trabalho um a um. Rostos de polícias: carrancudos com um cepticismo reservado e muito arreigado. Este tipo está a esconder-nos qualquer coisa disse [ Adler por fim, recostando-se todo para trás na sua cadeira. Não sei se será alguma coisa relacionada com o crime adiantou Kovac. Mas quanto a mim digo, sem sombra de dúvida, que ele está a ocultar-nos seja o que for que aconteceu na sexta-feira à noite. Quero que um de vós vá falar outra vez com a governanta e interrogar, uma vez mais, os vizinhos dele.
Nessa noite ela não estava em casa informou Elwood.
Isso não me interessa. Ela conhecia a rapariga. Conhece o patrão. Yurek gemeu pousando a cabeça nas mãos.
Qual é o teu problema, Charm perguntou Tippen. í Tudo o que tens a dizer à gente dos jornais é que neste (momento não temos comentários a fazer.
Sim, através dos canais de televisão de âmbito nacional disse ele. Os cães mais importantes farejaram a merda e vieram logo a correr. O meu telefone não pára de tocar com os repórteres das grandes cadeias televisivas a ligarem constantemente. Por si só, o Bondurant já é motivo de notícias. Agora o Bondurant mais um cadáver carbonizado e decapitado que pode, ou não, ser o da filha é o tipo de acontecimento que transcende qualquer fazedor de opinião ou os cabeçalhos da Dateline, e que vende pasquins aos camiões cheios. Se farejarmos com muita insistência na direcção do Peter Bondurant, será aí que os meios de comunicação social se concentrarão. E digo-vos mais: o homem irá aos arames. E nós ficaremos atolados em processos judiciais, e suspensões.
Eu encarrego-me do Bondurant e do Brandt disse Kovac, sabendo de antemão que teria de se comportar com muito mais contenção do que mostrara nessa mesma manhã. Estou disposto a aguentar o pior, mas vou precisar de gente que os trabalhe perifericamente, que falem com os amigos, conhecidos e por aí adiante. Chunk, tu e o Hamill já foram investigar o pessoal da Paragon? Trabalhar o ângulo dos empregados pouco satisfeitos com o emprego? Tenho uma reunião marcada para daqui a trinta minutos. Talvez possam falar com alguém que tenha conhecido a rapariga quando ela vivia em França sugeriu Tippen. Talvez os agentes federais consigam descobrir alguma coisa por lá. Se a miúda andava desarranjada do siso deve ter havido uma razão. É possível que exista alguma pessoa amiga por lá que saiba se essa razão tem um nome. Telefonem ao Walsh e vejam o que é que ele pode fazer. Perguntem-lhe se já sabe alguma coisa acerca desses registos clínicos da rapariga. Elwood, conseguiste alguma coisa de Wisconsin acerca da carta de condução de que a nossa testemunha se apoderou? Nada de criminal. Liguei para as informações para descobrir um número de telefone... ela não tem nenhum.» Contactei os correios... dizem que se mudou sem ter deixado nenhum endereço. Podes riscar a hipótese três. Ela já deu alguma descrição para um retrato-robô? ” perguntou Yurek. A Kate Conlan trouxe-a esta manhã para trabalhar com o Oscar respondeu Kovac pondo-se de pé. Estou de saída para ver o que se está a passar quanto a esse assunto.
É melhor começarmos a rezar a Deus para que ela tenha uma memória fotográfica. Uma informação positiva neste caso podia salvar a pele de todos nós.
Vou precisar de fotocópias, o mais depressa possível, para entregar à imprensa disse Yurek.
Eu trato disso. Para que horas é que ficou marcada a tua presença em Os mais Procurados da América? Para as cinco da tarde
Kovac viu as horas no seu relógio. O dia estava a correr a uma velocidade que era o dobro da normal e eles não tinham grande coisa que se visse em termos de trabalho. Que raio de maneira de iniciar uma investigação daquela envergadura. O elemento tempo era essencial. Não havia nenhum polícía que não soubesse que, decorridas as primeiras quarenta e oito horas de uma investigação criminal, as hipóteses de se solucionar o homicídio ficavam substancialmente reduzidas. Mas a quantidade de informações que era necessário recolher, classificar e interpretar, a par da tomada de medidas no início de qualquer investigação de assassínios múltiplos, era infinita. Um só facto que fosse ignorado poderia ser a peça que invertesse a direcção da corrente
O pager de Kovac começou a tocar. O número indicado era o do seu tenente
Encontramo-nos de novo aqui às dezasseis horas. Todos os que puderem devem vir finalizou tirando o casaco das costas da cadeira. Se estiverem fora, contactem-me através do telemóvel. Tenciono ficar por aqui
Ela não me pareceu estar muito segura de si, Sam disse Oscar levando-o para uma mesa de desenhador de plano inclinado no gabinete onde o espaço era exíguo e que se tornava ainda mais pequeno devido à grande desarrumação. Os papeis, livros e revistas ocupavam todo o espaço disponível, formando amontoados e pilhas muito periclitantes. Eu imcentivei-a com tanta suavidade quanta me foi possível, mas ela mostrou-se extremamente renitente
Renitente, género a mentir ou devido ao receio.
Receio, E tal como você sabe bem, o medo pode precipitar uma atitude de prevaricação
Você andou outra vez a folhear a enciclopédia, não é verdade, Oscar?
Por entre a densa pilosidade facial espreitou um sorriso beatífico
O conhecimento académico é a fonte da alma.
Sim, sim... ainda acaba por se afogar em tantos conhecimentos, Oscar retorquiu Kovac com mostras de impaciência, tirando do fundo da algibeira uma pastilha de mentol cheia de cotão. Vamos lá a ver essa obra-prima.
Eu considero-a um trabalho em progressão corrigiu Oscar, retirando para trás a folha opaca de protecção e revelando o esboço do retrato-robô que havia sido prometido aos residentes de Twin Cities pelos seus concidadãos mais proeminentes, eleitos por eles. O suspeito usava um blusão escuro bastante folgado o que ocultava a sua verdadeira constituição física por cima de uma camisola com capuz, o que não deixava ver os cabelos. Tinha uns óculos de sol de aviador que escondiam a configuração dos olhos. O nariz não sugeria nada de especial e o rosto tinha uma largura média. A boca encontrava-se parcialmente oculta por um bigode.
É o cabrão do Unahomber]! exclamou Kovac sentindo o estômago às voltas; parecia querer atirar-se a Oscar. Que porra é que eu vou fazer com isto?
Vamos lá a acalmar, Sam, eu já lhe tinha dito que era apenas um trabalho em progressão explicou Oscar na sua voz de timbre baixo e sereno.
Ainda por cima, usa óculos de sol Foda-se! Era meia-noite e ela descreve-o com óculos de sol! praguejou Sam. Que o cabrão do Judas me valha! Este homem pode ser qualquer pessoa. Também pode ser parecido com ninguém. Até podia ser eu mesmo! Por amor de Deus!
Estou a contar poder trabalhar um pouco mais com a Angie adiantou o desenhador sem se deixar perturbar com a fúria de Kovac. Ela não acredita que tem os pormenores fisionómicos na memória, mas eu estou em crer que tem tudo gravado. Só é preciso que se liberte do medo e então começará a recordar-se de tudo com clareza. Mais cedo ou mais tarde.
Mas acontece que eu não tenho mais cedo ou mais
1 Nome por que Theodore Kac/ynski é conhecido. Entre Maio de 1978 e Abril de 1995, este cidadão norte-americano enviou a várias pessoas imúmeras encomendas postais armadilhadas com explosivos. Posteriormente foi detido, julgado e sentenciado a prisão perpétua. As avaliações psiquiátricas concluíram que ele era um homem com uma inteligência acima da média. (N da T)
tarde, Oscar! Às cinco da tarde vou enfrentar a merda de uma conferência de imprensa! Era tanta a fúria que começou a bufar, voltando-se para o espaço atravancado onde o desenhador trabalhava e olhando em seu redor como se procurasse algum objecto que pudesse arremessar-lhe. Jesus, parecia Sabin a falar, exigindo provas que alguém teria de desencantar. Levara o dia todo a dizer a si mesmo que não podia contar com aquela ladra de trazer por casa, aquele monte de merda a que era obrigado a chamar testemunha, mas por baixo de todo esse cinismo esperava ver um retrato-robô ao estilo do «acertar em cheio», «apanhei-te pelos tomates». Apesar dos seus vinte e dois anos de carreira, o optimismo continuava a morar dentro de si. Absolutamente espantoso.
Tenho estado a trabalhar numa versão sem bigode adiantou Oscar. Ela não está muito segura quanto ao pormenor do bigode.
Como é que ela pode não ter a certeza se o homem tinha bigode ou não?! Das duas uma: ou tinha ou não tinha! Foda-se! Foda-se, foda-se e foda-se! A única alternativa é não o entregar hoje e mais nada acrescentou Kovac mais para si mesmo. Vamos aguentar, chamar a rapariga outra vez amanhã e tentar obter um retrato mais minucioso.
Pelo canto do olho, via que Oscar deixava pender a cabeça ligeiramente. Dava a impressão de estar a recolher-se nas suas barbas. Kovac parou de andar de um lado para o outro, olhando-o bem de frente.
Podemos tentar fazer isso, não é verdade, Oscar?
Terei todo o prazer em trabalhar de novo com a Angie amanhã. Nada me daria mais prazer do que ajudá-la a desbloquear as recordações que guardou na memória. A confrontação em termos de memória é o primeiro passo no sentido de se neutralizar o seu poder negativo. Quanto ao outro assunto, vai ter de falar com o comandante Greer. Ele esteve aqui há uma hora e levou uma cópia do retrato-robô.
Ela viu a cara dele durante dois minutos à luz das chamas que consumiam um cadáver recordou Kate, tomando a dianteira em direcção ao seu pequeno gabinete, não estando certa se haveria espaço suficiente para ele. Quando se sentia enfurecido, Kovac era como uma coluna de energia que mal se podia conter e que requeria espaço para movimentos contínuos.
Ela olhou directamente para o rosto do assassino numa altura em que as chamas permitiam que o visse com toda a clareza. Deixa-te disso, Ruiva. Não te parece que as características fisionómicas do homem teriam ficado como que gravadas a fogo na sua memória?
Kate encostou-se à secretária, cruzando os tornozelos e tomando a precaução de manter os dedos dos pés afastados das passadas de Kovac.
Estou em crer que a memória dela melhorará drasticamente depois da promessa de algum dinheiro continuou Kate com frieza.
O quê!
Por portas e travessas, ela soube da recompensa que o Bondurant oferece e quer uma parte. Tens coragem para a censurar, Sam? A miúda não tem onde cair morta. Não tem ninguém. Tem andado a viver pelas ruas, a fazer só Deus sabe o quê para conseguir sobreviver.
Por acaso não te ocorreu explicar-lhe que as recompensas são dadas aquando da acusação’! Não podemos indiciar ninguém que não possamos deter. Não podemos apanhar uma pessoa de cuja aparência física não fazemos a mínima ideia.
Eu sei. Ei, não precisas de estar para aí a dar-me lições. E... apenas uma palavra de aviso, não te ponhas com lições quando falares com a Angie adiantou Kate. Ela está na defensiva, Sam. Corremos o risco de vir a perdê-la. No sentido figurado e literal da palavra. Se neste momento pensas que a vida é uma merda, imagina o que é que será se a nossa única testemunha nos deixar de mãos a abanar.
Do que é que estás para aí a falar? Estarás a tentar dizer-me que devemos ter sempre alguém que a siga?
Nada que dê nas vistas e sem ser num carro-patrulha. que se mantenha bastante atrás dela. Se colocar alguém de uniforme à esquina da Casa Phoenix, isso só servirá para agravar a situação mais do que já está. Está convencida de que estamos a tratá-la como se fosse uma criminosa.
Que maravilha! replicou Kovac com sarcasmo. E que mais é que sua majestade deseja?
Não tentes fazer de mim a má da fita ripostou Kate num tom autoritário. Não te esqueças de que estou do teu lado. E pára de andar de um lado para o outro, ainda ficas tonto. Estás a pôr-me tonta.
Kovac respirou fundo encostando-se a uma parede, mesmo em frente de Kate.
Tu já sabias o que esperar desta rapariga, Sam. Por que razão agora te mostras tão surpreendido? Ou querias que o retrato-robô tivesse ficado a imagem chapada do fulano?
A boca de Kovac contorceu-se tal a contrariedade que sentia. Passou a mão pelo rosto, desejando poder fumar um cigarro.
Tenho um mau pressentimento a respeito deste caso, Kate admitiu o detective. Acho que estava à espera que a fada madrinha das testemunhas tocasse na nossa menina com a varinha de condão. Ou que a espetasse com a varinha. Ou que lha encostasse à cabeça como se fosse o cano de uma arma. Esperei que a miúda tivesse medo que bastasse para dizer a verdade. O Oscar disse-me que o medo precipita a prevaricação.
Ele tem andado a ler outra vez esses livros de psicologia popular, não é verdade?
Qualquer coisa desse género assentiu Kovac com um suspiro. Mas resumindo e concluindo: preciso de alguma coisa que dê um empurrão a esta investigação, caso contrário terei de começar a procurar em alguns buracos fétidos cheios de merda. Esperava que isto resolvesse todos os nossos problemas.
Adia a entrega do retrato por um dia. Amanhã trago-a de novo até cá. Talvez o Oscar consiga aplicar-lhe os seus poderes místicos, arrancando-lhe qualquer coisa que valha a pena... sem querer entrar por terrenos alheios.
Não me parece que consiga adiar a divulgação desse retrato-robô. O Grande Chefe Pila Pequena» já o abarbatou antes de mim. Vai querer divulgá-lo. Sem dúvida que ele próprio o apresentará na conferência de imprensa.
«Raios partam os manda-chuvas resmungou Kovac. Quando há um caso como este, são piores do que as crianças. Toda a gente quer ficar com os louros. Todos querem ver a fronha nas notícias. Têm todos de parecer muito importantes, como se tivessem alguma merda a ver com as investigações, para além de se meterem no caminho dos polícias a sério.
É isso que está a moer-te por dentro, Sam observou Kate. Não tem nada a ver com o retrato... Trata-se, isso sim, da resistência inata que tu mostras quando há alguém que se mantém de olho no teu trabalho.
Também tens andado a ler os livros do Oscar? perguntou Kovac com cara de poucos amigos.
Tenho uma licenciatura universitária que me permite passar cérebros a pente fino recordou-lhe ela. Qual é a pior coisa que pode acontecer caso o retrato-robô seja divulgado sem corresponder minimamente ao suspeito que procuramos?
Não sei, Kate. O certo é que este sacana corta a cabeça às mulheres e depois faz churrascos com o que resta do corpo. Qual é a pior coisa que poderá suceder?
Ele não se há-de sentir ofendido com o retrato acrescentou Kate. O mais certo é achar muita graça, convencido de que conseguiu ser outra vez mais esperto do que a Polícia.
Pois é, e então sentir-se-á ainda mais invencível, com poder para sair por ai para tratar da saúde de outra vítima! Esplêndido!
Não sejas assim tão fatalista. Até podes aproveitar este contratempo, tirando vantagem dele. Pergunta ao Quinn. Além do mais, se o retrato-robô corresponder ao fulano, ainda que parcialmente, talvez consigas descobrir alguma coisa. É possível que haja alguém por aí que se recorde de ter visto um indivíduo com algumas parecenças perto de uma camioneta. Talvez lhes ocorra parte do número de uma chapa de matrícula, uma mossa num pára-choques, um indivíduo que coxeasse. Sabes tão bem como eu que o factor sorte pode desempenhar um papel muito importante numa investigação com estas características.
Sim, de acordo admitiu Kovac que, relutantemente, começou a afastar-se da parede. Um camião cheio de sorte, nesta altura, dava-nos muito jeito. Ou dentro em pouco. Por onde é que pára o nosso raio de sol?
Pedi que a levassem de volta à Casa Phoenix. Ela não se mostrou nada satisfeita com essa perspectiva.
É uma pena.
Faço minhas as tuas palavras disse Kate. Ela quer um quarto de hotel ou um apartamento, qualquer sítio nestes moldes. Mas eu quero-a a conviver com outras pessoas. Não é o isolamento que fará com que ela se abra. Mais ainda, gostaria muito que houvesse alguém que ficasse de olho nela. Lembraste-te de pedir que inspeccionassem a mochila que ela costuma levar para onde quer que vá?
A Liska encarregou-se disso. A nossa Angie ficou toda transtornada, mas é preciso lembrarmo-nos de que tinha acabado de fugir de um cadáver sem cabeça. Não nos podíamos arriscar a que lhe desse uma de psicopata, atacando-nos com uma faca. O agente policial que a encontrou devia ter feito isso no mesmo momento, mas o homem ficou muito abalado ao pensar no Joe «Fumacento. Um novato estúpido. Se ele voltar a cometer uma argolada dessas com o rafeiro errado, não faltará muito para que vá desta para melhor
A Nikki descobriu alguma coisa de importante? perguntou Kate.
Em que é que estás a pensar? Drogas? replicou Kovac falando entre dentes e abanando a cabeça
Não sei Talvez O comportamento dela poderá indicar o uso de estupefacientes. Tão depressa está bem como está mal, é uma miúda dura e está sempre à beira de uma crise de lágrimas. Às vezes começo a imaginar em coisas nada abonatórias a respeito dela, mas depois dou comigo a pensar. Meu Deus, veja-se tudo aquilo por que ela passou. Ao fim e ao cabo, se levarmos tudo em consideração, talvez se deva concluir que ela é notavelmente estável, pensando ajuizadamente
Ou talvez ela esteja a precisar de uma dose especulou Kovac aproximando-se da porta. É provável que tenha andado à procura disso no parque à meia-noite. Eu conheço uns tipos que trabalham nos narcóticos. Vou entrar em contacto com eles, talvez conheçam esta miúda. Ainda não conseguimos descobrir nada que se lhe possa apontar. No Wisconsin não têm nada contra ela
Já falei com uma tal Susan Frye do nosso departamento de delinquência juvenil disse Kate. Há imenso tempo que ela se dedica a este trabalho. Conseguiu estabelecer uma rede fabulosa. Por outro lado, o Rob está a ver se descobre alguma coisa através dos contactos que tem no Wisconsin Mas, entretanto, preciso de incentivar a Angie com qualquer coisa, Sam. Uma demonstração do nosso apreço. Achas que consegues arranjar alguma coisa do teu fundo de maneio para informadores?
Vou ver o que posso fazer. Outra tarefa a acrescentar à sua lista já muito longa. Pobre tipo, pensou Kate. Hoje, os vincos que lhe sulcavam o rosto pareciam mais fundos. Como se tivesse o peso da cidade sobre os ombros robustos. O casaco do fato descaía-lhe, largo, como se de uma maneira qualquer ele lhe tivesse retirado a goma, a fim de restituir as energias dispendidas.
Ouve... não te preocupes com isso acrescentou Kate quando abriu a porta. Eu própria me encarrego de abordar o teu tenente. Sei que tens coisas mais importantes a fazer.
A meio caminho da porta, Kovac voltou-se para ela brindando-a com um sorriso de esguelha.
O que é que te deu essa ideia?
É só um palpite.
Obrigado. Tens a certeza de que não andas muito atarefada a manietar homens armados?
Também já ouviste falar disso? perguntou Kate com uma careta, sentindo-se pouco à vontade com a atenção que o episódio do dia anterior estava a despertar. Já tinha recusado meia dúzia de pedidos de entrevistas, além de ter ido um número de vezes exagerado à casa de banho para tentar disfarçar os hematomas, aplicando mais maquilhagem.
O local errado à hora errada, mais nada. A história da minha vida acrescentou ela com secura.
Kovac ficou com uma expressão pensativa, como se estivesse a considerar dizer qualquer coisa de muito profundo, mas depois abanou a cabeça ligeiramente.
Tu és um prodígio, Ruiva.
Nem pensar. Acontece apenas que tenho um anjo da guarda que tem um sentido de humor mórbido. Vai à tua guerra, sargento. Eu encarrego-me da nossa testemunha.
O movimento do trânsito irrita-o. Toma pela 35W em direcção a sul, saindo da baixa da cidade a fim de evitar os muitos semáforos e as curvas do traçado sinuoso da via alternativa. Um tráfego automóvel de «pára-arranca», ao ponto de só lhe apetecer abandonar o carro, caminhar pela berma e puxar as pessoas ao acaso para fora das suas viaturas, batendo-lhes na cabeça com uma barra de ferro revestida de borracha. Diverte-o saber que, muito provavelmente, existirão outros condutores a quem apeteceria fazer o mesmo. Porém, não conseguiriam imaginar que o homem sentado ao volante do sedan escuro atrás deles, ao seu lado ou à frente, era capaz de dar largas a esse tipo de fantasias sem sequer pensar duas vezes.
Olha para a mulher que conduz o Saturn vermelho que segue ao seu lado. É bonita, com uns traços fisionómicos nórdicos e um cabelo de um louro muito claro que penteia de forma a dar grande volume à cabeleira, que se mantém no seu lugar devido à laca que aplicou. Ela apercebe-se de que ele a observa, sorrindo-lhe e acenando-lhe. A mulher retribui-lhe o sorriso, após o que faz um gesto mostrando uma expressão engraçada, indicando o trânsito à frente dos dois que avança a passo de caracol. Ele encolhe os ombros fazendo uma careta risonha, desenhando com os lábios a pergunta: «O que é que se há-de fazer?»
Começa a imaginar aquele rosto pálido e tenso devido ao tertor enquanto se debruça sobre ela empunhando uma faca. Visualiza o peito nu que se soergue acompanhando o ritmo acelerado da respiração cava. Ouve o tremor que lhe sai da voz quando lhe implora que lhe poupe a vida. Aos ouvidos chegam-lhe os gritos da mulher quando começa a golpear-lhe os seios.
O desejo sexual causa-lhe frémitos nas virilhas.
«Provavelmente, o factor mais crucial no desenvolvimento de um violador, ou assassino, em série é o papel que as suas fantasias desempenham.» John Douglas, Mindhuntela.
As suas fantasias nunca o chocavam. Nem sequer durante a infância, quando imaginava qual seria a sensação ao observar a morte de uma coisa viva, o que sentiria quando fechasse as mãos à volta da garganta de um gato, ou do miúdo que vivia a algumas casas de distância; qual seria a sensação de ter nas suas mãos, literalmente, o poder de vida ou de morte. O que não acontecera ao longo da adolescência, período da sua vida em que imaginava cortar os mamilos dos seios da mãe, ou extirpar-lhe a laringe que esmagaria com um martelo, ou ainda remover-lhe o útero que lançaria para dentro da fornalha.
Sabe que, para os assassinos como ele, esse tipo de pensamentos são uma parte continuada das operações internas do processo de cognição. De facto, para ele, são naturais. Naturais e, consequentemente, de acordo com os padrões.
Toma pela saída que lhe dará acesso à Rua 36 continuando para ocidente, percorrendo as ruas ladeadas de árvores rumo ao lago Calhoun. A loura desapareceu e com ela a sua fantasia. Volta a pensar na conferência de imprensa marcada para essa tarde com um misto de frustração e contentamento. A polícia tinha um retrato-robô o que o deixou divertido. Encontrava-se entre a multidão enquanto o comandante Greer erguia o desenho que, supostamente, seria uma réplica da sua pessoa de tal forma exacta que as pessoas o reconheceriam na rua depois de um primeiro olhar. No fim da conferência, todos os repórteres presentes tinham passado mesmo ao seu lado.
A origem da frustração que sentia dava pelo nome de John Quinn. Quinn não aparecera durante a conferência de imprensa, não tendo até então apresentado nenhum comunicado oficial, o que lhe parecia ser uma desconsideração premeditada. Quinn encontrava-se demasiado embrenhado nas suas deduções e especulações. Muito plausivelmente, estaria a concentrar toda a sua atenção nas vítimas. Tentando saber quem eram e o que eram, perguntando a si mesmo por que razão é que haviam sido escolhidas.
Literalmente, «Caçador de Mentes». (N da T.)
«Num certo sentido, a vítima forma e molda o criminoso... Para se conhecer é necessário que nos familiarizemos com o parceiro complementar.» Hans von Hentig.
Quinn também perfilhava essa teoria. O livro que escrevera, subordinado ao tema do homicídio de natureza sexual, era um de entre muitos que tem na prateleira, além de Seductions of Crime, de Katz, Insidenthe Criminal Mind2, de Samenow, Without Conscience3, de Hare, Sexual Homicide: Patterns and Motives4, de Ressler, Burgess e Douglas. Ele tinha-os estudado a todos, a par de muitos mais. Uma viagem de exploração pessoal.
Vira para o quarteirão onde mora. Devido ao contorno dos lagos naquela área da cidade, as ruas mais próximas em redor eram irregulares em vários trechos. Esta descreve uma curva que permite que os terrenos das vivendas tenham uma dimensão maior do que a maior parte das casas. Mais privacidade. Ele estaciona o automóvel na zona pavimentada à entrada da garagem, saindo da viatura.
Escureceu e a escassa luz de há pouco extinguiu-se; o dia deu lugar à noite. O vento sopra vindo de ocidente; as rajadas trazem consigo o fedor recente a merda de cão. O cheiro chega-lhe às narinas uma fracção de segundo antes de começar a ouvir o ladrar rápido de um cão.
Saído da escuridão que envolve o relvado do vizinho, a cadelinha de pêlo frisado de Mrs. Vetter aproxima-se que nem uma bala, uma criatura que tem o aspecto de um amontoado de pompons brancos cosidos entre si com alinhavos largos. A cadelita corre até ficar a uma distância dele de cerca de metro e meio, detendo-se mas mantendo-se firmemente no seu lugar a ladrar e a rosnar, qual esquilo hidrófobo. Acto imediato, o barulho desencadeia toda a sua má disposição. Ele odeia a cadela. Muito em especial, naquele momento odeia a criatura canina por ter desencadeado o regresso do mau humor que sentira no meio do engarrafamento de trânsito. Só lhe apetece dar um pontapé ao animal com toda a força. Consegue imaginar os ganidos estridentes, o corpo quase inerte da cadela quando a apanhasse pela garganta esmagando-lhe a traqueia.
1, 2, 3, 4 Literalmente, «Seduções do Crime», «No Interior da Mente Criminosa», «Sem Consciência» e «Homicídio Sexual: Padrões e Motivos». (N. da T.)
Bitsy, Chama Mrs. Vetter dos degraus da frente de sua casa numa voz guinchada. Bitsy, vem cá! Yvonne Vetter, uma mulher que deve ter uns sessenta anos, é uma viúva desagradável com um rosto de formas arredondadas e expressão azeda, além de uma voz esganiçada. Ele odeia-a profunda e visceralmente, cada vez que a vê pensa em matá-la, mas há qualquer coisa igualmente profunda e fundamental que trava os seus desejos. Recusa-se a examinar o que dá origem a essa contenção, sentindo-se encolerizado ao pensar no que John Quinn deduziria dessa atitude.
Bitsy, Vem cá!
A cadela rosna ao homem, depois volta-se e começa a correr de um extremo ao outro da garagem, parando para urinar na esquina da vivenda.
Bitsy Sente a cabeça a latejar violentamente e um calor que lhe invade o cérebro, percorrendo o seu corpo de cima a baixo. Se, naquele momento, Yvonne Vetter decidir atravessar o relvado, ele não hesitará em matá-la. Agarrá-la-á, abafando-lhe os gritos com os jornais que tem na mão. Com rapidez, puxá-la-á para dentro da garagem, desfazendo-lhe a cabeça contra a parede para que perca a consciência, após o que matará a cadela em primeiro lugar para acabar com aquele ladrar infernal. Em seguida, dará largas ao seu estado de espírito selvático aniquilando Yvonne Vetter de uma maneira que sacie a ânsia maléfica profundamente arreigada dentro de si.
Ivonne Vetter começa a descer os degraus da frente de sua casa.
Os músculos que atravessam as costas e os ombros dele contraem-se. A sua pulsação acelera-se.
BÍtsy!! Aqui, imediatamente.
Os pulmões dele enchem-se. Os dedos flexionam-se à volta dos jornais.
A cadela ladra-lhe uma última vez antes de começar a ladrar à dona. A metro e meio de distância, Mrs. Vetter baixa-se, apanhando o animal e ficando com ele nos braços, como se a cadelinha fosse uma criança.
A oportunidade morre como uma canção por entoar.
Esta noite está muito excitada comenta a mulher. sorrindo. Fica sempre assim quando passa muito tempo dentro de casa. Mas tenho de dizer que não gosta nada de si acrescenta Mrs. Vetter, adoptando uma atitude defensiva e entrando em casa juntamente com a cadela.
Grande puta! invectiva ele entre dentes. A raiva permanecerá dentro dele durante muito tempo, qual chave de afinação que continuasse a vibrar muito depois de ter sido retesada. Repetidamente, na sua mente, ele representará a fantasia de matar Yvonne Vetter até à exaustão.
Encaminha-se para a garagem onde o Blazer e o Saab vermelho se encontram estacionados, entrando em casa por uma porta lateral, desejoso por ler as notícias que falam do Cremador nos dois jornais. Recortará todos os artigos correspondentes às investigações, fazendo fotocópias desses artigos, uma vez que o papel em que os jornais são impressos é de qualidade inferior e não duram o suficiente. Gravou em vídeo os noticiários televisivos da noite, tanto os transmitidos pelas estações de âmbito nacional, como os das emissões locais, tencionando ver essas gravações em que procurará qualquer menção ao Cremador.
O Cremador. Acha graça ao nome. Parece-lhe ser algo extraído de um livro aos quadradinhos. Traz-lhe à mente imagens de criminosos de guerra nazis e monstros de filmes de orçamento reduzido. Aquilo de que os pesadelos são feitos.
Ele é aquilo de que os pesadelos são feitos.
E à semelhança das criaturas que povoam os pesadelos da nossa infância, ele vai para a cave. À cave é o seu espaço pessoal, o santuário ideal. A sala principal está equipada com a aparelhagem própria de um estúdio de som amador. As paredes e o tecto estão revestidos com um material acústico que absorve o som. A alcatifa rasa é cor de ardósia. Gosta do tecto baixo, a falta de luz natural, a sensação de se encontrar nas profundezas da Terra rodeado por paredes espessas de cimento. O seu mundo, um lugar onde se sente em segurança. Exactamente como quando era um rapazinho.
Percorre o corredor dirigindo-se para a sala de jogos, erguendo os jornais defronte de si para admirar os cabeçalhos.
Sim, sou famoso diz ele sorrindo. Mas não fiques triste. Dentro em pouco também gozarás de fama. Não há nada que se iguale à fama.
Vira-se para a mesa de bilhar, erguendo os jornais num ângulo de forma a que a mulher toda nua, presa à mesa com os braços e pernas abertos, possa vê-los se tal desejar. Ao invés, fixa o olhar nele, os olhos vidrados de lágrimas e terror. Os sons que ela emite não são palavras, mas sim a vocalização da emoção mais básica de todas: o medo.
Os sons afectam-no como se fossem descargas eléctricas, dando-lhe energia. O medo que ela expressa proporciona-lhe o domínio que exerce sobre ela. O controlo é poder. E o poder é o expoente máximo dos afrodisíacos.
Não tardará muito para que tu mesma sejas a notícia destes cabeçalhos diz ele percorrendo com a ponta do dedo a extensão das letras carregadas impressas a negro na página de rosto do Star Tribune. «Do pó vieste e ao pó hás-de voltar.»
De mansinho, o dia deu lugar à noite. O único indicador da passagem do tempo de que Quinn dispunha era o seu relógio de pulso, que só muito raramente consultava. O gabinete que lhe havia sido destinado não tinha janelas, apenas paredes que ele passava os dias a encher com apontamentos, muitas vezes com o auscultador do telefone preso entre o ouvido e o ombro, enquanto discutia o caso de Blacksburg, onde o suspeito parecia estar à beira de uma confissão. Quinn devia ter estado presente. A necessidade de controlar tudo e mais alguma coisa acalentava a noção de que seria capaz de impedir todos os erros, apesar de saber que tal não correspondia à verdade.
Kovac proporcionara-lhe um espaço naquilo que o grupo de trabalho designara, informalmente, como os escritórios do Toque Amoroso da Morte. Agradecera mas não aceitara. Necessitava de separação, de isolamento. Não lhe seria possível trabalhar com uma dúzia de polícias a trocarem teorias e a sugerirem nomes de suspeitos, como se mexessem uma salada. Já sentia as suas ideias contaminadas, não obstante essa separação.
A notícia de que John Quinn fora chamado a bordo para intervir no caso do Cremador já tinha começado a correr. Kovac telefonara a dar a má notícia depois da conferência de imprensa. Era apenas uma questão de horas até ele se ver obrigado a lidar directamente com os meios de comunicação social.
Que diabo, ele tinha desejado poder dispor de mais algum tempo. Mas só podia contar com as poucas horas que se seguiriam. Devia ter-se instalado, embrenhando-se no seu trabalho, mas, aparentemente, não conseguia fazer isso. A exaustão levava-lhe a melhor. A úlcera queimava-lhe as entranhas. Tinha fome, sabendo que precisava de se alimentar para manter o cérebro em funcionamento, mas não queria perder tempo saindo para comer. Havia tantas informações misturadas com o zunido de cafeína a mais que lhe enxameava a cabeça. Ao que se acrescentava uma sensação familiar de inquietude que vibrava bem no seu íntimo o sentido de urgência que um caso no local do acontecimento trazia sempre à superfície, ao que desta feita se aliava uma combinação de circunstâncias mitigadoras e recordações fragmentadas e intrusivas vindas do passado. Composto, uma vez mais, por um sentimento que recentemente se fora infiltrando nele cada vez mais: o medo. O receio de não conseguir estabelecer a diferença nas investigações com a rapidez necessária. O medo de prejudicar as coisas. O receio de que a fadiga que o pressionava de súbito provasse ser excessiva. O medo de que aquilo que realmente desejava fosse afastar-se de tudo aquilo.
Sentindo necessidade de se mexer para escapar a todas aquelas emoções, Quinn começou a andar de um lado para o outro em frente da parede onde afixara os seus apontamentos, abarcando parte do que escrevera em olhares de relance. Os rostos de Bondurant e de Brandt rodopiavam-lhe no interior da cabeça como folhas sopradas pelo vento.
Peter Bondurant escondia mais do que aquilo que lhes dava a entender.
Lucas Brandt tinha licença oficial para guardar segredos.
Quinn só queria nunca ter conhecido nenhum dos dois homens. Devia ter oferecido mais resistência quando soubera que teria de ir àquela cidade numa fase tão preliminar da investigação, reflectia enquanto massajava um nódulo que tinha no ombro direito. A questão que ali se colocava tinha a ver com controlo. Se entrasse no palco com a sua estratégia inteiramente delineada, estaria de imediato na mó de cima.
Essa metodologia não se aplicava apenas àquele caso. Era a forma como geria toda a sua vida desde a maneira de lidar com a burocracia na sua profissão, até à forma de tratamento reservada aos chineses que geriam a secção dos correios onde tinha um apartado, ou à compra dos artigos de mercearia. Em qualquer situação ou relacionamento, a palavra-chave era controlo.
Furtivamente, Kate surgiu nos bastidores da sua mente, como que para o atormentar. Quantas vezes ao longo dos últimos anos tinha revisto na sua imaginação tudo o que se passara entre os dois, ajustando as suas próprias acções e reacções com o objectivo de obter um desfecho diferente? Mais vezes do que estava disposto a admitir. Controlo e estratégia eram as palavras que lhe serviam de referência. Mas no que dizia respeito a Kate nenhuma das duas era aplicável. Num dado momento, tinham sido duas pessoas que se conheciam, depois amigos, para a seguir ficarem demasiado envolvidos um com o outro. Não houvera tempo para reflexões, ambos demasiado enredados nas emoções do momento para poderem ter qualquer sentido de perspectiva, arrastados um para o outro por uma necessidade e paixão que era mais forte do que a vontade racional de qualquer dos dois. E depois tudo tinha terminado e ela saíra da sua vida, deixando-o com... nada. Nada além de mágoa por ter permitido que as coisas tivessem ficado por ali, seguro de que, eventualmente, tanto um como o outro acabariam por concluir que aquela fora a melhor solução.
E de facto fora. Pelo menos para Kate. Tinha uma nova vida ali. Uma nova carreira, amigos, uma casa. Ele devia ter tido o bom senso suficiente para se manter afastado de tudo aquilo, deixar as coisas como estavam. Mas a tentação que a oportunidade lhe propiciara atraira-o como algo que o chamava com um sorriso cheio de sedução. E a força de toda aquela mágoa empurrava-o para a frente.
Quinn supunha que cinco anos era muito tempo para qualquer pessoa continuar a guardar a sua mágoa; todavia, muitas outras o tinham acompanhado durante mais tempo. Casos que nunca haviam sido resolvidos, julgamentos perdidos, um assassino de crianças que conseguira escapar. O seu casamento, a morte da mãe, o alcoolismo do pai. Talvez ele nunca fosse capaz de se desligar das coisas. Talvez por isso sentisse um vazio tão grande dentro de si: não restava qualquer espaço para nada além dos detritos ressequidos do seu passado.
Praguejou entre dentes, sentindo desprezo por si próprio. Devia estar a reflectir sobre a mente de um criminoso e não a sua.
Não se recordava de se ter encostado à secretária, tal como não tinha a mínima noção dos minutos que perdera naquelas conjecturas. Passou a mão grande pelo rosto, humedeceu os lábios e sentiu o paladar, muito vago, a uisque. Uma estranha peculiaridade psicológica e uma necessidade que não seria suprida. Não se permitia beber nada alcoólico. Também não se permitia fumar. De facto, não se permitia grande coisa. Caso acrescentasse as mágoas a essa lista, o que é que lhe restaria;
Aproximou-se da secção de parede onde prendera com fita-cola alguns apontamentos relativos ás vitimas do Cremador, os quais escreveu pelo seu punho com marcadores de cor. Tudo em maiúsculas. Uma escrita apertada com uma inclinação acentuada para a direita. O tipo de caligrafia que fazia com que os grafólogos erguessem as sobrancelhas, concedendo-lhe amplo espaço de manobra
Colocara fotografias das três mulheres por cima dos apontamentos. Sobre a mesa via-se uma pasta, de lombada com três argolas, aberta, todas as páginas estavam cheias de relatórios cuidadosamente dactilografados, mapas, desenhos feitos à escala dos locais dos crimes, fotografias destes locais e relatórios das autópsias. A sua Bíblia portátil do caso. Mas Quinn achava que lhe era útil dispor algumas daquelas informações básicas de um modo mais linear, dar as fotografias das três mulheres sorridentes e os seus apontamentos presos na parede mulheres essas que já não eram deste mundo, cujas vidas haviam sido extintas como pavios de círios, a quem fora violentamente roubado qualquer resquício de dignidade
Três mulheres de raça branca Todas na faixa etária dos vinte e um aos vinte e três anos, as alturas variavam entre aproximadamente um metro e sessenta e sete e um metro e oitenta. A constituição física variava entre a de Lila White de ossos largos, até a pequena Fawn Pierce, passando pela de constituição média da desconhecida que talvez fosse Jilhan Bondurant
Duas prostitutas e uma estudante universitária. Tinham vivido em zonas diferentes da cidade. As duas prostitutas, regra geral, trabalhavam em áreas distintas e nenhum desses locais era frequentado por Jilhan Bondurant. Era possível que ocasionalmente Lila e Fawn se tivessem cruzado, mas era extremamente improvável que Jilhan tivesse frequentado os mesmos restaurantes e bares ou lojas
Quinn também já tinha pensado numa possível ligação em virtude do consumo de estupefacientes, mas até ao momento ainda não tinham encontrado nada que corroborasse essa probabilidade. Lila White entrara nos eixos depois de ter participado num programa de recuperação havia mais de um ano. Quanto a Fawn Pierce ninguém lhe conhecia o vício das drogas, se bem que tivesse a reputação de se entregar de vez em quando a períodos de vários dias de orgias com vodca ordinária. E Jillian? A Polícia não encontrara estupefacientes de espécie alguma em sua casa, nem tão-pouco no seu organismo. Tal como não tinha cadastro policial com referência ao consumo de estupefacientes. Até à data não fora revelado nada que confirmasse isso.
«Parece-lhe que eles gostariam que os outros soubessem por que motivo as filhas enveredaram pela prostituição e pela toxicodependência?»
Conseguia ainda ouvir a amargura na voz de Peter Bondurant. O que é que teria dado origem a esse azedume?
Jillian era a peça que não se ajustava no quebra-cabeças que era composto por aqueles crimes. Era a que desalinhava o perfil. Existia um tipo comum de assassino cujas vítimas eram prostitutas. As mulheres que se dedicavam a essa actividade eram vítimas de elevado risco, fáceis de iludir. Os seus assassinos tinham tendência a ser homens socialmente desadaptados, indivíduos de raça branca com empregos inferiores às suas capacidades, os quais tinham um historial de experiências humilhantes com mulheres, procurando vingar-se do género feminino ao punirem o estrato social que consideravam ser o pior.
A menos que Jillian tivesse levado uma vida secreta de prostituição... O que não era totalmente improvável, supunha Quinn; no entanto, até ao momento nem sequer havia qualquer indicação de que ela tivesse um namorado, quanto mais uma lista de clientes.
«Os rapazes não lhe interessavam. Ela não queria relações temporárias. Já tinha passado por tanta coisa...»
Por que coisas é que Jillian teria passado? O divórcio dos pais. A doença da mãe. Um padrasto num novo país. E que mais? Algo de mais profundo? De mais sombrio? Qualquer coisa que a forçara a procurar ajuda terapêutica junto de Lucas Brandt.
«... Deve considerar a hipótese de os problemas que a Jillian me apresentou poderem não ter rigorosamente nada a ver com a suamorte. É possível que quem a matou não tenha sabido nada a respeito dela ”
Mas aposto um dólar em como você sabia, doutor Brandt disse Quinn em voz baixa olhando para a fotografia da rapariga. Sentia isso nas suas entranhas. Jilhan era a chave do enigma. Havia algo na vida dela que a colocara sob mira daquele assassino E- se conseguissem identificar essa coisa, então, era possível que existisse uma esperança num milhão de virem a apanhar o filho da puta
Quinn aproximou-se da secretária começando a folhear os papeis relativos ao caso até chegar à secção das fotografias reproduções a cores vinte por vinte e cinco cuidadosamente etiquetadas, de acordo com o tema Os locais onde os cadáveres haviam sido encontrados imagens generalizadas, condições do terreno, a posição dos corpos fotografados de vários ângulos, grandes planos das mulheres carbonizadas indicadores de um sádico em termos da sua sexualidade. Ferimentos infligidos depois da morte que se deviam mais a um pendor para o tetichismo do que ao sadismo, um elemento intrínseco nas fantasias do criminoso
Fantasias de uma aberração sofisticada Fantasias que ele acalentava havia muito tempo
Com lentidão, Quinn continuou a folhear as fotografias que mostravam grandes planos dos ferimentos, examinando minuciosamente todas as marcas que o assassino deixara, alongando se nos golpes de faca no peito das vitimas Oito facadas que constituíam um grupo, em que os golpes mais extensos alternavam com os mais pequenos, formando um padrão específico
De todos os aspectos macabros daqueles assassínios, aquele era o que mais o incomodava. Mais do que a carbonização dos cadáveres. Este ultimo dava-lhe a impressão de se dever mais a um desejo de exibicionismo, uma declaração pública Do pó vieste e ao pó hás-de voltar. Um funeral simbólico, o fim da ligação que ele mantivera com as suas vitimas. Mas aqueles ferimentos de faca possuíam um significado mais pessoal, mais intimo. Precisamente o quê?
Quinn sentia uma cacofonia de vozes dentro da cabeça de Bondurant, de Brandt, do médico legista, de Kovac, polícias e magistrados que investigavam mortes violentas, peritos e agentes de cem casos que pertenciam ao passado. Todos com uma opinião ou questão, ou ainda dificuldades por resolver. Todas essas vozes de tal maneira elevadas que mal conseguia ouvir-se a pensar. A sensação de fadiga só parecia ampliar o barulho, ansiando Quinn por implorar a alguém que o fizesse acabar.
O Todo-Poderoso Quinn. Era como o apelidavam em Quântico. Se pudessem vê-lo naquele momento... prestes a sucumbir ao pavor de existir qualquer pormenor importante que lhe tivesse passado despercebido... ou de conduzira investigação na direcção errada.
O sistema estava sobrecarregado e era ele quem se encontrava aos comandos... Ao que se juntava um pensamento deveras assustador: só ele é que podia alterar a situação, mas não se sentia capaz de alterar nada, porque, por muito horrível que isso fosse, a alternativa deixava-o ainda mais assustado. Sem o exercício das suas funções, não existia nenhum John Quinn.
No mais fundo do seu íntimo, Quinn começou a sentir uns tremores quase imperceptíveis que lhe subiam até aos braços. Lutou contra aquela sensação odiosa, que lhe contraía os bíceps e tríceps, numa tentativa para obrigar aquela fraqueza a regressar ao seu interior. As pálpebras cerraram-se com força; deixou-se cair no chão e começou a fazer flexões. Dez, vinte, trinta... até sentir que a pele dos braços estava prestes a ceder, incapaz de conter a tensão da massa muscular, até que as dores obliterassem os barulhos que tinha na cabeça, dando lugar a um só ruído: o pulsar das batidas do seu coração. Pouco depois, obrigou-se a pôr-se de pé, respirando com dificuldade enquanto sentia o corpo quente e molhado de suor. Focou-se na fotografia que tinha defronte de si, sem ver a carne lacerada ou o sangue no cadáver; vendo apenas o padrão do ferimento. A letra «X» sobreposta sucessivamente.
Juro por Deus murmurou Quinn, percorrendo com a ponta do dedo as linhas em cruz. E se estiver a mentir, que morra já aqui. Pelas ruas de Minneapolis anda um assassino à solta, Hoje, a polícia de Minneapolis divulgou um retrato-robô. Um homem que alegadamente assassinou brutalmente três mulheres, e esta é a notícia principal do nosso noticiário desta noite...»
As mulheres que viviam na Casa de Phoenix espalhavam-se pelos sofás e pelas muitas cadeiras desirmanadas da sala de estar; todas as atenções estavam concentradas no apresentador televisivo, de ombros largos e queixo rectilíneo, do noticiário das vinte e três horas do Canal Onze. Começaram a ser transmitidas imagens da conferência de imprensa dessa mesma tarde, vendo-se o comandante da polícia que apresentava o retrato-robô do Cremador, após o que todo o ecrã ficou ocupado com o desenho.
Da ombreira da porta, Angie observava a cena, concentrando toda a sua atenção nas mulheres. Havia duas que não eram muito mais velhas do que ela. Quatro tinham vinte e tal anos, enquanto outra era mais velha, gorda e feia. A gorda usava uma camiseta de alças porque a caldeira da climatização estava avariada, pelo que a temperatura ambiente era quente e seca como se estivessem num deserto. A parte superior dos braços tinha uma pele branca e balofa, semelhante à barriga de um peixe. Quando se sentava a barriga pendia-lhe sobre as coxas.
Angie sabia que a mulher se tinha prostituído em tempos, embora não fosse capaz de imaginar que algum homem pudesse ter sentido tusa suficiente para pagar os seus favores sexuais. Os homens gostavam de raparigas bonitas e novinhas. Independentemente do grau de fealdade do homem, todos queriam mulheres bonitas. Pelo menos, essa era a experiência de Angie. Talvez fosse por essa razão que Arlene, a Gorda, estava naquela casa. Era muito possível que não conseguisse arranjar um homem que lhe pagasse os seus serviços, passando a Casa Phoenix a ser o lar que a acolhera.
Havia uma ruiva pálida e magra, com a aparência sofrida de uma toxicodependente, que começou a chorar quando a câmara mostrou fotografias das três vítimas de assassínio. As outras mulheres fingiram não ter reparado. Toni Urskine, que geria a Phoenix, sentava-se em cima do braço da poltrona da ruiva, inclinando-se para baixo de modo a poder tocar no ombro da rapariga.
Vê se te acalmas disse numa voz suave. Podes chorar à vontade. A Fawn era tua amiga, Rita.
A ruiva elevou os pés ossudos e descalços até ao assento da poltrona, ocultando o rosto nos joelhos flectidos, entregando-se a uma crise de choro.
Porque é que ele teve de a matar daquela maneira? Ela não fazia mal a ninguém.
Os actos do criminoso não fazem o mínimo sentido
disse uma outra. Podia ter acontecido a qualquer de nós
Uma hipótese bastante clara na perspectiva de todas, até mesmo em relação às que tentavam negá-la
É preciso ser esperta, saber com quem é que se vai, adiantou a gorda Arlene. Temos de ter um sexto sentido
Como se pudéssemos ser esquisitas nas escolhas atirou uma mulher de raça negra, com uns cabelos penteados em tranças pequenas e muito apertadas, lançando-lhe um olhar maldoso. Qual o homem que haveria de querer ver esse teu cu balofo? Olhar para essa gordura toda a tremelicar que nem gelatina enquanto te esquartejava. Arlene corou que nem um tomate e as feições contrairam-se-lhe, os olhos quase desaparecendo nas dobras arredondadas das bochechas e sobrancelhas farfalhudas. Parecia-se com um cão pequinês que Angie vira numa ocasião. Cala essa cloaca, cabra ossuda. Com uma expressão de irritação, Tom Urskine saiu de junto da ruiva que continuava a chorar, encaminhando-se para o centro da sala, ergueu as mãos como se fosse um árbitro. Vamos lá a ver, não quero ouvir esse tipo de linguagem. Temos de aprender a respeitar-nos e a mostrar imteresse umas pelas outras. Não se esqueçam, estima entre o grupo, estima entre membros do mesmo sexo e auto-estima. Angie pensou que para ela era fácil dizer aquilo, afastando-se sorrateiramente da porta. Tom Urskine nunca se vira obrigada a fazer um broche a um velho asqueroso e pervertido para conseguir dinheiro suficiente para uma refeição. Era uma espécie de benfeitora boazinha, com as suas indumentárias de um chique casual da linha Dayton, que complementava com um penteado de cem dólares de Horst. Ia todos os dias para aquela espelunca ao volante do seu Ford Explorer acabada de sair de uma qualquer vivenda maravilhosa situada em Edina ou Minnetonka. Nem sequer seria capaz de imaginar o que uma mulher sentia por dentro ao saber que só valia vinte e cinco dólares
Todas nós nos interessamos pelas vitimas destes assassinos acrescentou Urskine apaixonadamente, com os seus olhos escuros a iluminarem as feições de traços acentuados. Todas nos sentimos encolerizadas pelo facto de a polícia não ter feito praticamente nada até agora. é ultrajante. É uma bofetada em cheio no rosto de qualquer pessoa. É a cidade de Mmneapolis a dizer-nos que a vida das mulheres em circunstâncias desesperadas não vale nada. Temos de nos sentir iradas perante essa indiferença e não encolerizadas umas com as outras
As mulheres ouviam-na, algumas atentamente, outras com pouca convicção e outras fingindo-se desinteressadas
Penso que é preciso participar. É necessário que sejamos «proactivas» continuou Urskine. Amanhã mesmo iremos à Câmara Municipal. A imprensa terá oportunidade de conhecer os nossos pontos de vista. Vamos arranjar fotocópias do retrato-robô e debateremos
Angie afastou-se da ombreira da porta começando a percorrer o corredor em passadas silenciosas. Não lhe agradava quando as pessoas começavam a falar dos casos do Cremador. As mulheres da Phoemix, em princípio, não deviam saber quem ela era, nem tão-pouco que estava envolvida no caso o que não impedia que Angie se sentisse sempre tensa ao pensar que as outras mulheres observavam a sua atitude e que acabariam por descobrir, de uma maneira qualquer, que ela era a testemunha mistério. Não queria que ninguém se inteirasse desse pormenor
Não desejava que fosse verdade
De súbito, as lágrimas assomaram-lhe aos olhos, apressou-se a limpá-las com a mão. Nenhuma manifestação de emoção. Caso mostrasse o que sentia, então podia haver alguém que detectasse essa sua fraqueza, ou a loucura que a arrastara para a «Zona», fazendo com que se mutilasse. Nunca ninguém conseguiria compreender que a lâmina cortava a ligação que a levaria à insanidade mental
Estás a sentir-te bem?
Sobressaltada, Angie virou-se para trás deparando-se-lhe um homem que se encontrava na ombreira da porta que dava para a cave. Era bem-parecido e devia ter trinta e muitos anos. naquele momento usava umas calças de sarja bege e uma camisola Ralph Lauren, embora estivesse a trabalhar na caldeira. Devia ser alguém que Tom Urskine conhecia
O rosto estava sujo de suor e poeira. Nas mãos tinha um trapo cinzento-escuro encardido de sujidade misturada com qualquer coisa cor de sangue.
Baixou o olhar até Angie, que lhe retribuiu erguendo a cabeça com um sorriso enviesado.
A caldeira desta casa é muito antiga começou ele a dizer à laia de explicação, só com braçadeiras de borracha e muita força de vontade é que consigo mantê-la a funcionar. Greggory Urskine acrescentou o homem apresentando-se e estendendo a mão à rapariga.
Você cortou-se notou Angie sem aceitar a mão que ele lhe estendia. O seu olhar continuava preso à mancha de sangue que lhe atravessava a palma da mão.
Urskine olhou para o ferimento, limpando-o com o trapo enquanto se ria à socapa daquela maneira nervosa que por vezes as pessoas adoptavam ao tentar causar uma boa impressão em alguém. Angie limitou-se a fitá-lo. O homem tinha algumas parecenças com Kurt Russel, pensava ela: um queixo largo e nariz pequeno, com uns cabelos revoltos de tonalidade clara. Usava uns óculos com armações prateadas de metal. Nessa manhã, tinha cortado o lábio superior quando se barbeava.
Não tem calor com esse blusão? perguntou ele. Angie não lhe deu resposta. Suava que nem um cavalo,
mas as mangas da camisola eram curtas de mais para cobrirem todas as cicatrizes que tinha nos braços. O blusão era uma necessidade. Se conseguisse obter algum dinheiro de Kate, tencionava comprar algumas roupas. Talvez qualquer coisa por estrear, que não lhe fosse dado por instituições de beneficência ou adquirida em lojas de preços reduzidos.
Sou o marido da Toni... costumo fazer uns biscates por aqui adiantou Urskine. Semicerrou os olhos. Calculo que você seja a Angie.
Esta limitou-se a olhá-lo fixamente.
Não tenciono dizer nada a ninguém acrescentou Urskine num tom confidencial. O seu segredo está seguro comigo.,
Angie ficou com a impressão de que, de uma maneira indefinida, ele troçava dela. Concluiu que não simpatizava { com ele, bem-parecido ou não. Havia qualquer coisa nos olhos por detrás dos dispendiosos óculos de marca que lhe ” causava mal-estar. Como se a olhasse com algum desprezo, como se ela fosse um insecto ou algo do género. Pôs-se a imaginar se alguma vez ele teria pago a uma mulher a troco de relações sexuais. A mulher dele tinha todo o aspecto de ser do tipo que considerava o sexo uma coisa suja. A missão da vida de Toni Urskine era salvar mulheres dessas práticas pecaminosas.
Estamos todos muito preocupados por causa deste caso prosseguiu ele com uma expressão circunspecta. A primeira vítima... a Lila White, foi residente desta casa durante algum tempo. Para a Toni, a morte dela foi um choque enorme. Ela adora esta casa. Adora as mulheres que aqui vivem. Trabalha afincadamente pela causa.
E o que é que você faz? perguntou Angie cruzando os braços.
Sou engenheiro na Honeywell respondeu ele com outra risada de nervosismo acompanhada de um sorriso sedutor. De momento estou de licença para poder ajudar a reparar o que está avariado nesta casa antes que o Inverno bata à porta... e para, finalmente, defender a minha tese. Riu-se como se o que acabara de dizer fosse uma boa piada. Não perguntou a Angie o que ela fazia, se bem que nem todas as mulheres acolhidas naquela casa fossem prostitutas. Olhava para o estômago da jovem, para a argola que ela tinha no umbigo, assim como as tatuagens que a camisola demasiado pequena revelava. Angie inclinou a anca, deixando ver mais um pouco de pele nua, perguntando a si mesma se ele estaria a pensar que talvez a desejasse.
Portanto, agora eles têm uma boa oportunidade de apanhar esse fulano, graças a si acrescentou ele numa meia afirmação meia pergunta, retribuindo-lhe o olhar. Você viu-o mesmo.
Não é suposto que isso se saiba retorquiu Angie frontalmente. Tal como não é suposto que eu fale desse assunto.
Fim de conversa. Angie ignorou as palavras de ocasião com que normalmente as conversas terminavam, afastando-se dele e dirigindo-se para as escadas. Sentia os olhos de Greggory Urskine presos em si enquanto se afastava.
Bem, então, boa noite disse ele quando ela desapareceu na escuridão do primeiro andar.
Angie entrou no quarto que partilhava com uma mulher cujo ex-namorado a manietara e lhe rapara o cabelo todo com uma faca de caça, porque ela, tendo filhos menores, se recusara a entregar-lhe o cheque da assistência social para ele comprar crack. Naquele momento, os filhos dessa mulher encontravam-se à guarda de famílias de acolhimento Entretanto, o namorado tinha fugido para o Wisconsin. A mulher submetera-se a um programa de recuperação por consumo de estupefacientes, de onde saíra com uma necessidade premente de se confessar. A terapia, por vezes, tinha esse efeito em algumas pessoas. Angie tivera o cuidado de agir com inteligência, não permitindo que isso lhe sucedesse.
Não contes os teus segredos, Anjo. Eles são a única coisa que te tornam especial.
Especial. Ela queria ser especial. Não desejava ficar sozinha. O facto de haver mais pessoas naquela casa não era relevante. Nenhuma daquelas pessoas estava realmente ali com ela. Ela não pertencia àquele meio. Fora deixada ali como se fosse um cachorrinho abandonado que ninguém queria. Cabrões dos xuis. Queriam extorquir-lhe coisas, mas não estavam dispostos a dar-lhe nada em retribuição. Estavam-se absolutamente nas tintas para ela. Não se interessavam minimamente pelo que ela pudesse querer deles.
Pelo menos, Kate era, em parte, uma pessoa franca, pensava Angie enquanto andava nervosamente de um lado para o outro no quarto. Não obstante, não podia esquecer-se de que Kate continuava a ser um deles. Kate Conlan tinha a incumbência de tentar penetrar as defesas de Angie, de forma a que a Polícia e a Procuradoria pudessem obter o que desejavam. O que poria cobro àqueles contactos. De facto, ela não era uma amiga na verdadeira acepção da palavra. Angie podia contar pelos dedos de uma mão os amigos que tivera e ainda lhe sobejariam dedos.
Naquela noite precisava de um amigo. Não queria ficar encafuada naquela casa. Desejava pertencer a algum lugar
Pensou na mulher cujo corpo ardera no parque, perguntando-se onde é que ela pertenceria, fantasiando sobre o que aconteceria se ela tomasse o lugar dessa mulher. Passaria a ser filha de um homem muito rico. Passaria a ter um pai, um lar e dinheiro.
Em tempos também tivera um pai: tinha as cicatrizes que o comprovavam. Também tivera uma casa: ainda tinha nas narinas o cheiro acre a gordura da cozinha, continuava a recordar-se dos armários espaçosos e escuros com portas que se fechavam pelo lado de fora Mas nunca tivera dinheiro
Angie deitou-se com as roupas que usara durante o dia, esperando que todos se aquietassem dentro de casa e que a sua colega de quarto começasse a ressonar. Só então é que afastou os cobertores para trás, levantando-se da cama e saindo do quarto, desceu as escadas e saiu de casa pela porta das traseiras
A noite estava ventosa. As nuvens percorriam o firmamento com tanta velocidade que quase dava a impressão de que o tempo parara. no espaço As ruas estavam desertas, exceptuando os carros que, de quando em vez, muito espaçadamente, percorriam um dos grandes cruzamentos que permitiam o acesso tanto para sul como para norte. Angie rumou a ocidente, sentia-se enervada e sobressaltada. A sensação de estar a ser constantemente observada era uma impressão que sentia na nuca, mas sempre que olhava por cima do ombro não avistava ninguém
A «Zona» estava a persegui-la como uma sombra. Mas se ela continuasse a caminhar, se tivesse um objectivo em mente, se se concentrasse em algo de específico, talvez não conseguisse apanhá-la.
No interior das casas que ladeavam a rua estava escuro. As ramagens das árvores eram agitadas pelo vento. Quando chegou ao lago, a superfície das águas estava tão cintilante e escura como uma grande mancha de óleo escorregadio. Angie manteve-se no lado mais escurecido da rua, caminhando em direcção a norte. As pessoas que viviam naquelas proximidades não hesitariam em chamar a polícia caso vissem alguém a caminhar por ali àquela hora da noite
Reconheceu a casa que vira nos noticiários. parecia uma construção que alguém trouxera de Inglaterra, rodeada por uma vedação alta em ferro que delimitava o perímetro da propriedade. Dobrou uma esquina subindo pela pequena elevação de terreno que dava acesso às traseiras, as árvores de grande porte ocultavam a sua presença. Os arbustos das sebes impediam que se visse a casa durante três estações do ano mas naquele momento estavam despidas de folhas, e nada lhe impedia a visão através dos ramos entrelaçados uns nos outros
Dentro de casa havia uma luz ligada, numa sala que tinha umas portas corrediças de vidro martelado que davam acesso ao terraço. Angie deixou-se ficar junto da vedação tomando a precaução de não lhe tocar, tentando ver o que se passava no relvado das traseiras da vivenda de Peter Bondurant. Olhou para lá da piscina e dos bancos corridos de pedra, o seu olhar demorou-se nas mesas e cadeiras de ferro forjado que ainda não haviam sido guardadas face ao Inverno que se aproximava. Olhou para a luz difusa de uma tonalidade ambar na janela, contra a qual se recortava a figura de um homem sentado a uma secretária, perguntando a si mesma se ele se sentiria tão sozinho quanto ela própria Naquele momento, perguntava-se se o dinheiro lhe proporcionaria algum conforto.
Peter levantou-se da secretária, começando a percorrer o escritório num passo que manifestava tensão e inquietude. Não conseguia dormir, mas recusava-se a tomar os comprimidos que o médico lhe prescrevera e mandara entregar em sua casa. O pesadelo estava bem vivo nos seus pensamentos, o clarão alaranjado e muito intenso das chamas, o cheiro. Sempre que fechava os olhos conseguia ver tudo, sentia o calor das labaredas. Via o rosto de Jillian. o choque, a vergonha, o desgosto. Era capaz de visualizar o rosto da filha separado do corpo, como que a flutuar em liberdade, a base da garganta irregular e ensanguentada. Se a sua mente ficava cheia de imagens como aquela durante as horas em que estava acordado, o que é que veria se adormecesse?
Dirigindo-se para as portas corrediças de vidro, pôs-se a observar a noite escura e fria, imaginando olhares assestados em si. Jillian. Imaginava que sentia a presença dela. O peso daquela sensação fazia-lhe pressão no peito, como se ela o enlaçasse nos seus braços. Até mesmo depois da morte, ela continuava a querer tocar-lhe, agarrar-se a ele; sentindo uma ânsia desesperada por amor, qualquer que fosse o significado que essa emoção tinha na sua perspectiva deformada e tortuosa.
Começou a sentir no mais fundo do seu ser uma excitação sexual sombria e estranha, seguida por um sentimento de culpa e vergonha. Afastou-se das portas de vidro com um rugir animalesco, lançando-se sobre o tampo da secretária e arremessando para o chão tudo o que até então estivera meticulosamente arrumado. Canetas, o Rolodex e os pesa-papeis, ficheiros e agendas. Do telefone veio um tilintar de protesto. O candeeiro caiu no soalho onde a lâmpada se estilhaçou com um estrondo, mergulhando a sala na escuridão
O ultimo clarão de luz intensa ficou a pairar nos olhos de Peter, centelhas gémeas cor de laranja que acompanhavam os seus movimentos. Labaredas a que ele não conseguia escapar. A emoção era como uma pedra na garganta, aí alojada dura e de superfície irregular. Sentia uma grande pressão nos globos oculares, como se estivessem prestes a rebentar o que o levou a perguntar, completamente desnorteado se mesmo assim continuaria a ver as chamas
Da sua garganta saiu um som sufocado e áspero quando se encaminhou num passo vacilante para um candeeiro de chão na sala às escuras, tropeçando nos objectos que fizera tombar da mesa
Mais calmo depois de ter ligado a luz, começou a arrumar o que tinha desarrumado. Repôs tudo no seu lugar, uma coisa de cada vez alinhando tudo com muita precisão. Era aquilo que tinha de fazer voltar a organizar a sua vida com uma exactidão minuciosa, de molde a dar-lhe continuidade, tal como fizera quando Sophie o abandonara levando Jilhan consigo, o que acontecera havia já muitos anos
A ultima coisa que Peter Bondurant arrumou foi a sua agenda que encontrou aberta na ultima sexta-feira. «Jilhan jantar» escrito na sua caligrafia impecável. Duas palavras que lhe pareciam tão simples tão inocentes Mas com Jillie nada era simples e inocente. Não obstante todos os esforços da filha nesse sentido
O telefone tocou sobressaltando-o, desviando-o das suas recordações ensombradas
Peter Bondurant proferiu como se aquela fosse uma hora normal de expediente. No seu subconsciente perguntou-se se teria esperado algum telefonema do estrangeiro
Paizinho, meu querido disse uma voz sedutora, suavemente musical Conheço todos os teus segredos
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