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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRIMEIROS PASSOS, PRIMEIRO AMOR / Odette Joyeux
PRIMEIROS PASSOS, PRIMEIRO AMOR / Odette Joyeux

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Aluna de dança, Marie Soler foi escolhida pelo grande bailarino Igor Andreiev para contracenar com ele num grande espectáculo de gala na Ópera de Monte Carlo, o palco que todas as grandes estrelas desejam pisar. No gesto de Andreiev, Marie julga descobrir uma declaração de amor. Mas, na noite da estreia, à hora do espectáculo, Marie não aparece. Que terá acontecido?

 

 

 

 

Mexem-se, respiram, movimentam-se como se estivessem sós no mundo. Um feixe de luz cerca-os, segue-os, persegue-os. Por vezes, escapam-se-lhe. Depois voltam, reencontram o halo dourado, o círculo luminoso que os desenha aos olhos dos outros e que os glorifica.

Ela, Marie. Precisamente uma adolescente. Delicada como uma flor da Primavera, frágil como um esboço, como uma promessa. Os traços vincados por uma expressão de domínio que lhe fecha o rosto, mas o olhar transparece-um olhar louco, magnetizado, reflexo duma secreta exalta ção.

Ele. A força da idade e a beleza indiscutível. Uma beleza que não é apenas o dom de Deus, mas também o resultado duma ciência, duma arte capaz de modelar um corpo e de transfigurar traços.

A paixão, qualquer paixão, só tem um rosto - fechado para o mundo exterior, aberto para o invisível -, grave e secreto. Igor Andreiev dança e é a sua maneira de viver. A sua arte é uma religião - um fim em si. Dança para viver e vive para dançar. Fora disso, Igor não tem nada de comum com a Terra. Esta apenas lhe serve de trampolim. Para se elevar, para dominar. Para que o homem se liberte das suas amarras, desafie o equilíbrio e possa conquistar o espaço em saltos prodigiosos.

O bailarino é duma espécie rara. Existe, é verdade, e soberbamente, mas à margem dos outros. Desprende-se deles, ultrapassa-os, como um senhor. A sua natureza extraordinária transtorna a moda e desafia o gosto da sua época. Uma época em que a demagogia e a facilidade negligenciam o excepcional em benefício do excêntrico.

E ele dança. Trabalha. Todos os olhares que o seguem, a câmara que o capta, o fotógrafo que o surpreende e até o seu reflexo no espelho são outros tantos espectadores, outras tantas testemunhas que é necessário convencer e conquistar.

Mais ainda do que diante do público, é no trabalho das aulas, sobre os palcos nus, que o verdadeiro talento se revela. Os profissionais, os iniciados, não se enganam sobre isso. Os que naquele momento assistem ao ensaio sabem que estão a participar numa estranha cerimónia, numa iniciação. Há o mistério da obra, a sua elaboração, e nos caminhos da criação, ao lado do mestre, há o aluno-uma criança aturdida que não avalia a sua sorte, mas que vive, transportada, o sonho duma vocação.

Quando se soube, no Centro, que o grande Andreiev viria fazer um estágio, todos os corações de raparigas e de rapazes bateram. Quando souberam que, durante o estágio, ele escolheria a distribuição dum ballet que seria apresentado no espectáculo de gala, em Monte Carlo, uma emulação geral decuplicou as esperanças.

É que o Centro é uma escola diferente. Ali, o gesto tem tanta importância como o pensamento. Ainda mais, talvez, porque o precede, o exprime e o prolonga. Uma escola de movimento, uma escola de juventude e de vida. A expressão corporal corresponde à formação do carácter. Também deve corresponder à educação espiritual. Ao contrário de Diaghilev, que, no princípio do século, ousava dizer a Nijinski: "Dança com as tuas pernas e com a minha cabeça, hoje, um mestre digno desse nome apenas pode recomendár que dancem com as pernas e a própria cabeça.

Marie. Uma engraçada "rapariguinha, duma adolescência preservada. A idade pretendida ingrata é, pelo contrário, para ela, uma eclosão prodigiosa, um impulso permanente. A sede de vi ver, mesmo que a vida possa meter medo, a sede de aprender, de compreender, mesmo que o mundo apresente abismos.

Para Marie, tudo começa. Ela escolheu a sua vida, uma das mais duras, uma das mais belas, sem hesitação. Nasceu com um amor, uma vocação: a dança. Sim, é uma maneira de viver, de realizar esse ritmo, essa palpitação, essa paixão, contidos na sua encantadora aparência. A juventude na sua fina flor, no seu melhor sentido, o mais puro.

Marie é pura. Nos seus actos, nas suas intenções, nas suas aspirações, que contudo são infinitas: uma grande carreira, um grande amor, grandes alegrias. Marie ainda não pensa que pode haver pequenas felicidades.

Ela trabalha, obedece, segue o mestre. Por agora, nada mais existe do que estes passos, estas figuras em que os corpos se ligam e se desligam, mais nada senão esta música que é necessário desposar, que esta representação que é preciso exprimir. O prazer de ser alguém diferente de si própria. Ultrapassar-se, superar-se.

Todos os olhares seguem o par- e mais de uma

aluna inveja Marie, a eleita. Marie, que parece desfrutar sempre de privilégios. Quais? Nem os da fortuna, nem os do nascimento. Bonita, é verdade. Melhor. Um encanto, no sentido mágico, um encanto que a diferencia, que acaba sempre por a fazer destacar, por a impor. Contudo, tímida. Ela tem sempre de se violentar, e os seus professores também sabem que é preciso violentá-la para que ela ouse exprimir o melhor dos seus dons. Libertá-la! Mas do quê, então?

Quais as cadeias que podem pesar sobre as crianças? Que segredos? Que fantasmas, para os que estão na flor da idade?

O imenso estúdio- como uma gaiola. Um local intemporal, enormemente aberto à luz. Sobre três lados corre a barra, e a quarta parede é apenas um gigantesco espelho, um muro de vidro onde todo o estúdio se reflecte. A barra é o instrumento, o espelho, a testemunha. Tem para os bailarinos valor de símbolo. Há também um piano, um grande piano negro, arrumado num ângulo da aula, e um gira-discos colocado no chão.

É um local onde se vive com intensidade, duma maneira insólita, onde o tempo não conta. O Centro é um seminário, um lar. É um espaço vital para os que a vocação esporeia. Tem as suas leis, as suas disciplinas, às quais todos se têm de submeter. Por amor da arte.

Em volta, contudo, existe uma cidade. Uma cidade florida. De azul e de ócio. Encaixada entre as colinas e o Mediterrâneo, excepcionalmente aumentada, desenvolvida como se o luxo e o prazer não tivessem limites. Periodicamente, ali se encontra o mundo inteiro, em suma, o do dinheiro e dos privilégios. Mas o céu não está à venda e aqui, nesta Provença radiosa, é prodigado a todos...

Vestida de qualquer maneira, uma jovem sai dum hotel de luxo. Os porteiros cumprimentam-na. Um automóvel avança. Um Rolls. Os mandaretes precipitam-se. Abrem-lhe a porta. Fecham-lha. Aqui, a fortuna tem direito a todas as atenções e veneram-na, admiram- na, mimam-na. Indiferente, a jovem cliente instalou-se. Sentar-se num Rolls ou sentar-se no metro! Não devia haver diferença nenhuma, e, contudo, não é a mesma coisa.

O Rolls segue pela Croisette. Está-se na Primavera. Todas as bandeiras do mundo, içadas de fresco, estalejam sob um vento delicioso. Flores, flores, e o mar loucamente azul. As praias estão movimentadas. Banhos de sol garantidos para clientela da terceira idade -uma clientela graúda que não depõe as armas-, sempre a idáde de ouro. Almoço servido debaixo dos pára-sóis. Óleo filtrante e óculos escuros, esquis náuticos e lanchas- automóveis.

 

Transportada como uma princesa, Sarah não olha para coisa nenhuma. A jovem e riquíssima americana não vem a Cannes para se divertir. o vestuário denuncia o seu estado de espírito. Bluejean deslavado e remendado, estranhamente coligado a uma blusa romântica, cabeção, plissados, renda. Uma roupa que parece talhada no damasco dum velho cortinado e flutuando sobre uma camisola de várias cores. Colares, cinto, xaile, franjas e sacola sioux. A desarmonia arrogantemente reunida. O desafio à elegância, o escárnio da sobriedade para impor o gosto das crianças que se disfarçam, que brincam e que sonham. O uniforme duma certa juventude que escolheu liberdade.

Vestir-se, por tão paradoxal que pareça, não é desvendar-se? Afixar e mostrar o seu carácter. No seu trajo anárquico, que contrasta com o luxo e as atenções de que é rodeada, não existe em Sarah qualquer provocação. Antes pelo contrário. O estilo hippy é o da reflexão e da vontade. É uma profissão de fé.

À força de obstinação, Sarah obteve a vitória. Os pais cederam. Para ajovem, nenhuma vontade de pertencer à juventude dourada. Nenhuma vontade de abusar dos privilégios do dinheiro.

Ela escolheu a liberdade, não por vagas razões contestatárias, nem para viver marginalmente, sem freio nem lei, recusando a disciplina, os es forços, enfim, a moral. Antes pelo contrário, a sua liberdade é uma escola, uma escola ardentemente desejada- algures em França. Mas não importa onde e não importa que escola.

Uma escola bem mais apaixonante do que os colégios e as universidades. Uma escola de dança. Nada de mais sério. Ao inscreverem-se nela, os postulantes estão prontos a acatar a disciplina. Para os seus verdadeiros adeptos, a dança é uma religião. Uma necessidade física que en gendra um estado de espírito e até mesmo um estado de graça.

Para os dezoito anos de Sarah, nem jóias, nem carro, nem nenhuma das lembranças de convenção- apenas uma inscrição no Centro de Dança e a autorização para ali ficar durante um ano. Era o que ela considerava como o mais belo dos presentes. Ser admitida pela grande Marjorie Brooks, o ídolo da sua infância, e trabalhar na sua escola, sob a sua superior direcção.

O momento chegou. Ao partir, Sarah não olha para trás. Com os cotovelos apoiados na varanda da sua suite, o Sr. e a Sr. a Green debruçaram-se para ver a filha; eles partirão, de madrugada, em cruzeiro. A Grécia, a Ásia Menor, Sarah não se importa. A aventura não é contemplar maravilhas, mas estudar, descobrir a vida através de si mesma, incorporar-se num meio onde os maiores sonhos exigem os maiores esforços.

O Rolls meteu-se pela cidade e atinge os pontos altos. Um conjunto de imóveis, brancos, novos, residenciais. O Rolls circula no parque de estacionamento, procura uma porta. Ei-la, a mais pequena, quase dissimulada. Uma placa: "Centro Internacional de Dança Clássica. Sarah chegou.

Antes que o motorista se apreste a abrir-lhe a porta, já ela salta. Contempla a fachada impessoal como se tomasse posse duma conquista. Ali, por detrás dos muros, por detrás das vidraças, há uma vida de que ela apercebe os ecos- músicas incansavelmente repetidas, exercícios. Trabalha-se a todos os níveis.

 

No grande estúdio, o ensaio prossegue. A jornalista toma notas. De tempos a tempos, em voz baixa, ou com um olhar, dá ordens ao operador de câmara. Descontraída, nem por isso está menos atenta. Também ela trabalha.

É uma bela mulher, nova, com ares de covergirl. São apenas os ares, e a sua sedução ainda a torna mais temida. Quer na imprensa, quer na televisão, Géraldine Dupuy comèça a gozar de uma nova notoriedade. Esperam- se os seus artigos, as suas opiniões, os seus retratos, porque ela é capaz de fazer uma reputação.

Tal como inúmeras raparigas, ela experimentou a dança, o teatro, e foi sobre si própria que fez incidir as suas primeiras opiniões. Com o seu veredicto, ela foi a primeira vítima: não suficientemente dotada. A mediocridade garantida, se persistisse em vias que não a conduziriam a parte nenhuma. Então, renunciar-não perder tempo. Encontrar os caminhos dum outro êxito. Encontrar os meios de se exprimir e, se possível, de falar alto, porque Géraldine é ambiciosa.

À falta de poder artístico, recorre ao do relato; à falta de poder criador, recorre ao da crítica.

Para a jornalista, Igor Andreiev é um lucro inesperado. Tornaram-se amigos. Desde Paris que ela está sempre a seu lado. O bailarino oferece-lhe um assunto soberbo. Géraldine não o quer deixar escapar. E, depois, o mundo da dança, donde voluntariamente se excluiu, conserva aos seus olhos todo o seu interesse primordial, toda a sua magia. "A dança, arte grave e profunda.

Géraldine sabe do que fala. Estudou-lhe a história, as manifestações, a filosofia. Conservou de tudo isso uma certa nostalgia, que a sua renúncia torna ainda mais prestigiosa.

Conduzida, dirigida, levada. Marie obedece ao bailarino. Parece simultaneamente nascer e desarticular-se entre as suas mãos. A pouco e pouco, a pequena intérprete esquece o seu papel e as suas sujeições. Os seus gestos, a sua expressão, traem o fascínio exercido por Igor, enquanto, perdido no meio dos outros, umjovem a olha com um intenso interesse mesclado de reprovação.

Também Madame franziu as sobrancelhas. Madame. A silhueta mais frágil e a melhor desenhada, vestida com uma malha de lã como as outras bailarinas. Madame, a directora do Centro- uma estrela que foi de primeira grandeza, hoje uma professora de primeiro plano.

Sentada num banco, encostada ao espelho, ela mantém-se direita- mantém-se sempre direita, Madame, e o seu rosto permanece impenetrável. A presença mais apagada, a roupa mais modesta, em contraste absoluto, por exemplo, com a deslumbrante jornalista ou com algumas alunas que são as belezas da escola.

Sempre a dançar, Igor dá sinais de impaciência, e bruscamente é o estoiro. Sem doçura, gritou: "Alto! " Colocou-se diante do seu jovem par, furioso, descontente.

"Mas que é que estás a fazer? Que é que tens? " Marie fica paralisada. O seu rosto, ainda há pouco extasiado, tornou-se reçeoso. Como se estivesse em falta. Mas de quê? Dançava com todo o seu coração e perdera a noção das realidades. Onde é que está o mal?

"Ainda não compreendeste? Não há necessidade de me olhares dessa maneira! "

 

Implacável, ele caricatura Marie, que cora, que continua especada na sua frente, paralisada. Esboçam-se risos, imediatamente abafados pelo olhar que Igor lança de repente aos que riem.

O bailarino moderou-se. Gosta de pôr à prova o seu poder, de que chega a abusar. Um mestre incontestável que vive num clima de admiração, de adoração. Mas, quaisquer que sejam os prazeres que o seu prestígio lhe concede, nunca esquece os seus fins, o que crê ser a sua missão: a dança consumada, a procura permanente da perfeição.

É preciso explicar, explicar mais uma vez àquela que ainda considera uma criança, o que espera dela. O que ela deve ser e não o que ela é. O que ela deve exprimir e não o que ela sente. A interpretação é uma transfiguração, uma renovação absoluta. É preciso esconder a sua verdade. É a do personagem que conta. Marie tem lágrimas nos olhos, e as lágrimas fazem perder tempo. Ao escolher aquela aluna, com a aprovação de Madame, Igor não se enganou. Ela é ca paz, tem dons e, de antemão, os meios de os exprimir.

"Sabes o que representas no óallet?

"Sim, mestre.

- O quê? Diz.

- Uma boneca.

- Que é uma boneca? "

Marie continua muda- envergonhada, intimidada. Igor recomeça, como se repetisse uma lição.

"Uma boneca, quer dizer, um objecto. Nem coração, nem alma. Portanto, os olhos vazios. Não deves exprimir nada, nada- percebes? Não passas dum objecto maquinal. Não tens existência, ainda não. Nada de nada. "

Igor deu uma palmada na testa, deu uma palmada no coração. Durante alguns segundos, observa a sua pequena parceira sufocada.

"Estás a perceber bem?

- Sim, mestre.

- Não estás cansada?

- Não, mestre.

- Então, recomecemos. Música. "

Ao preparar-se para recomeçar, Marie, finalmente, olhou para Madame.

Olhar eloquente, apelo de socorro, e Madame sorriu-lhe, oh! levemente, mas aquele sorriso bastou. Não desaprova, antes pelo contrário, encoraja. Mas ela não presta qualquer atenção ao rapaz perdido, naquele momento, entre os outros, que não a perde de vista. O rosto meio dissimulado sob a cabeleira encaracolada, ele sorriu, trocista, como se sentisse prazer com as reprimendas infligidas à sua camarada.

A sua camarada! A atenção que Serge lhe presta denuncia que Marie é bem mais qualquer coisa para ele.

Igor e Marie evoluem de novo. Géraldine, divertida, tomou notas. A personalidade da jovem interessa-a.

 

Fácil de imaginar o estado de espírito da aluna, de repente erguida, pelas necessidades dum espectáculo, à categoria de estrela. Parceira de Igor Andreiev, designada por ele, chamada a partilhar por uma noite o seu esplendor prodigioso. O nascimento dum belo romance cujas peripécias ainda são desconhecidas. Romance rosa, romance negro?

Para além da personalidade, também é preciso que à aluna não falte carácter. As paixões são tanto mais perigosas quanto o coração é puro, as intenções inocentes. Géraldine que já viveu, Géraldine que se sabe bater, que conhece as decepções e as esperanças, as desilusões e as subidas triunfais, admira, inveja, a frescura de qualquer jovem que dá os seus primeiros passos na vida. Aqueles que contarão para sempre e que a encaminham para o seu destino.

A vontade de Géraldine fez-se sempre acom panhar de clarividência. A inteligência, a astúcia, fizeram sempre pressão sobre o seu coração. Marie é doutra espécie. Tem o mistério e a destreza dos sonâmbulos. O seu encanto é indizível, empréstimo dos sortilégios da poesia. Não se saberia explicá-lo. Isto não é tranquilizante para ela, que, além do mais, não está tranquila, porque este encanto, esta aura indescritível, fazem dela um ser à parte. E, se alguns o admiram, outros podem odiar este encanto inexplicável.

Géraldine admira. A adolescência de Marie é a que ela gostaria de ter tido. Marie parece estar sempre a olhar para as nuvens, ver longe. Géraldine soube sempre olhar em frente, o que nem sempre é divertido, e a jovem anseia por uma autêntica juventude, que verdadeiramente nunca experimentou.

O insólito par evolui: retomaram o tema. O homem, o criador, procurando animar o objecto que lhe parece ser o mais belo e o mais desejável. A obra ideal sobre a qual tem todos os poderes: os da criação ou da destruição. O velho sonho dos homens, como se recusassem a evidência: admitir que toda a vida dada já não nos pertence.

Novamente os flashes crepitam. Marie aplica-se em obedecer, a não existir, a não ser mais do que um objecto mecânico articulado ou desarticulado pelo mestre. E esta submissão à sua personagem custa- lhe muito mais esforços do que deixar transparecer o lirismo que a habita, a emoção sentida e que as palavras não saberiam traduzir.

Ao longe, atrás de Igor e Marie, uma outra adolescente ensaia, Hfixando-os", os passos, as figuras executadas por Marie, a titular do papel. Ouviu as observações. A parte, como que afastada para a sombra, repete, aprende. É a dupla. É também a melhor amiga de Marie. Chama-se Florentine, tratam-na por Floflo.

Assim que Sarah chegou, a secretária preveniu a directora. A "novata" era esperada. O motorista trazia as malas para o pequeno vestíbulo, onde havia um incessante vai-e-vem de bailarinos que vinham ao escritório sob diversos pretextos: correio, telefone, autorizações. As paredes cobertas de cartazes, de fotos, de recortes de imprensa, de notas de serviço, formavam um puzzle onde se podia decifrar a vida do Centro.

Sarah regozijava-se já com aquele ambiente onde iria ocupar o seu lugar. Ia viver no meio que escolhera. Ali não seria uma estranha, porque o Centro é internacional. Há bailarinos de todas as nacionalidades, de todas as raças.

 

O motorista esperava ordens. Mas Sarah não tinha nenhuma necessidade dele-pelo contrário, ele incomodava-a, tal como o casaco curto de visão que ele segurava respeitosamente no braço, "para a Menina". A Menina nem por nada queria aquilo. Que ele leve o casaco. Quanto às malas, ela própria as transportaria para cima. Futuros "camaradas" viriam ajudá-la.

Despediu o motorista dizendo-lhe "Obrigada". O motorista inclinou-se:

"A que horas venho buscar a Menina?

- Eu cá me arranjarei, não se preocupe. Antes das oito horas estarei no Carlton. "

Por ser a última noite, Sarah prometera jantar com os pais-jantar de adeus. Amanhã, seria interna no Centro. Quanto a eles, partiriam em cruzeiro. Boa viagem e nenhum lamento. Sim, nenhum lamento para Sarah, nem para eles, sem dúvida. Finalmente aliviados daquela criança por quem "tudo tinham feito", segundo a expressão consagrada, e que parecia achar que não era o bastante e, sobretudo, que não era o que seria necessário fazer.

O director saía do seu estúdio particular, um vasto estúdio cheio de maquetas e de pinturas, único local proibido no Centro, dado que, pelas outras dependências, cada um podia circular livremente. Mas o director, ao assumir a tarefa de administrar a escola, não renunciara à sua obra. Pintor e decorador, não deixava de pintar e de elaborar as suas concepções do palco e do cenário-uma cenografia pessoal que talvez algum dia se impusesse. Formava com Madame um casal- modelo, votado à dança, devotado às suas causas.

Pierre Robin ainda era novo e simpático. Ele próprio também se treinava a dançar, mas como se jogasse ténis ou praticasse natação. Um desporto como qualquer outro e, evidentemente, mais completo, porque requer, além do treino físico, uma cultura intelectual.

O Sr. Robin amava o Centro, que fundara sob o impulso de Madame. Madame era célebre. Estrela de primeira grandeza. Marjorie Brooks, americana, não sacrificara o seu nome de origem ao hábito de os bailarinos adoptarem nomes com ressonâncias eslavas. Com o marido, Pierre Robin, criara o Centro-era a obra deles, o filho deles.

Marjorie era ali a animadora, isto é, a alma. É que, para os bailarinos, mais do que para os outros, com excepção dos campeões, há uma idade que pode ser trágica e que é a hora da verdade. O que ainda se pode fazer e o que já não se pode fazer. O que se foi e o que se é. O tempo também trabalha e esse não poupa nada, nem ninguém.

Mas, ao renunciar ao palco, Marjorie Brooks não renunciara à dança. Antes pelo contrário. Enriquecida por todas as suas experiências, a estrela faria com elas lucrar os outros. De acordo com o marido, os dois igualmente apaixonados por uma profissão, por uma arte, que era, ao mesmo tempo, o seu céu e a sua razão de viver, tinham escolhido um porto de abrigo.

 

A juventude deles fora passada a triunfar nos quatro cantos do mundo. Agora precisavam dum ponto fixo. Uma escola-uma maneira de sobreviver, de reviver após os pavores dos primeiros desfalecimentos, dos êxitos menos estrondosos. A melhor maneira de prosseguir uma pesquisa, de ficar no movimento (e que sentido tem esta expressão para um bailarino! Marjorie Brooks jamais se contentaria em lutar e demonstrar, mas em transmitir.

No crepúsculo duma carreira prestigiosa, a estrela sentia-se mais viva do que nunca. Como que rejuvenescida pela juventude que desabrochava à sua volta. O que ela já não podia realizar, outras gerações portadoras de promessas o realizariam. Para isso, Madame decidira dar tudo para as ajudar, para as exaltar. Eram assim os que dirigiam o Centro.

A todos os níveis, os alunos podiam admirá- los, podiam também amá-los.

Sarah seguiu o director. O Centro é como uma colmeia-abafa nos locais que se tornaram demasiado estreitos para o número crescente de alunos; é que a sua fama é retumbante. Para além do prestígio de Madame, para além da qualidade dos professores ligados à escola, há estágios que fazem sonhar. Os maiores nomes da dança vêm aqui quer para trabalhar, quer para fazer trabalhar. Béjart, Noureev, Plissitskaia, Franchetti, Erick Bruhn, por exemplo.

O Sr. Robin precedia Sarah. Ela tomava conhecimento do que ia ser o seu universo- estúdios, aulas, a cantina, o bar. Mas o Sr. Robin esclarecia, sorrindo, que o café servido era "fingido" e o álcool proibido.

Um ambiente sonoro e variado acompanhava a visita. O director entreabria portas. Apoiadas na barra, raparigas muito jovens aprendiam o bê-á-bá da dança. As cinco posições sacrossantas, bases da disciplina clássica. Abrir os pés sem se contorcionar; treinar-se nos dois movimentos: dobrado, estendido; comprimir os rins e seguir a cadência.

Numa outra aula avistavam-se "grandes", cobertas de compridas saias voláteis, apertadas de qualquer maneira por cima dos collants, sapatos de salto, castanholas: era o curso de dança espanhola. A porta seguinte permanecia rigorosamente fechada; atrás dela era a lição de silêncio e de recolhimento-a cerimónia do ioga. Mais adiante, cursos de jazz, mais adiante, ainda, cursos de ritmo. Todas as disciplinas eram proporcionadas, desde a pantomima às lições de arte dramática. Uma espécie de universidade.

A Sarah patenteavam-se-lhe também os duches, os lavabos, os vestiários. Fatos de malha, roupa interior, collants, secavam. Uma placa indicava que as "grandes lavagens, tais como de roupões, etc. eram proibidas", e o Sr. Robin disse-lhe:

"Você está autorizada a lavar os collants e a roupa interior. Mas, como é evidente, temos uma lavandaria. "

Sar ah re plic ou

"Oh! é formidável uma pessoa poder ocupar-se das suas coisas, e os meus collants serei eu mesma a lavá-los. "

O Sr. Robin sorriu. Decididamente, a "novata" era simpática. Ainda bem. No Centro, onde estavam representadas todas as classes sociais, o director lamentava sempre a presença de alguns elementos socialmente favorecidos. Famílias demasiado ricas, pais demasiado célebres, crianças mimadas. Aqui, igualdade absoluta. Só o talento, o valor pessoal, podiam estabelecer distinções.

Um quarto claro, confortável, um divã.

"Eis o quarto que lhe reservámos. Mas parece que você prefere partilhar um quarto com outras alunas.

-Sim, senhor, prefiro. Oh! não é por uma questão de preço! "

Sarah mordera os lábios, como que para se desculpar desta reflexão, que lhe parecia idiota. Continuou:

"Quero estar com as outras. Ficarei muito contente em partilhar um quarto com raparigas como eu, não estar sozinha. Os meus pais devem-lhe ter escrito.

-Efectivamente. Então venha ver o quarto que coabitará com duas das nossas alunas. "

O quarto, onde três divãs delimitavam o espaço de cada uma, não era de modo algum maior do que o quarto precedente. Mas estava habitado, e era o que agradava a Sarah Green, que, em Nova Iorque, desfrutava, na sumptuosa casa familiar, dum apartamento só seu. Um espaço luxuoso, é verdade, mas vazio de calor humano -nem irmão, nem irmã-, apenas e sucessivamente animado por uma ama holandesa, depois por uma governanta francesa.

"Ficará pouco à vontade. Se não lhe convém, ainda está a tempo de mudar.

- Ficarei muito bem.

- Daqui a pouco, apresentá-la-ei às suas com panheiras. Agora, estão a ensaiar com Igor Andreiev. "

Sarah exclamou:

"Oh! desejava assistir ao ensaio.

- O Sr. Andreiev não gosta que o incomodem.

-Mas eu conheço-o muito bem. Quando ele dança em Nova Iorque, é recebido em casa de meus pais. "

E Sarah, pela segunda vez, mordeu os lábios. Cortês, mas firmemente, o Sr. Robin fê-la guardar as conveniências.

"Aqui, Sarah, você apenas será uma aluna como as outras. Nem as relações, nem o meio, têm importância. O que importa é o trabalho.

-Trabalharei, senhor, trabalharei. Vim para isso. Vim também para viver duma maneira diferente da que vivia em minha casa, para que nem tudo seja fácil. É estúpido, sobremaneira estúpido. "

O Sr. Robin teve dificuldade em reprimir um sorriso de satisfação. Agradava-lhe aquela pequena americana que falava com veemência, sem se preocupar com a pronúncia. A sua cabeleira de indiana, a testa estreita e obstinada e uns olhos muito claros, muito francos.

"Oh! senhor, por favor, deixe-me assistir ao ensaio.

- Impossível! O Sr. Andreiev não ficaria satisfeito. Tem de se lhe pedir autorização. "

 

No estúdio grande, o ensaio prosseguia. Acabado o pas de deux' - a pequena obedecera às suas indicações-, Igor, seguindo a acção do ballet, transportara a boneca, suposta adormecida, primeiro nos seus braços. Depois depusera-a num berço insólito, um quarto crescente de lua que, em cena, desceria dos cimbres no momento pretendido. Deitara Marie com muito cuidado, depois estendera-se ao lado do berço, sobre o qual apoiou a mão. Um momento de pausa -o repouso e a magia nocturnos. Os intérpretes tinham-se imobilizado no sono. A música era muito doce. Com os olhos bem fechados, o rosto de Marie respirava felicidade e Serge já não tinha vontade nenhuma de sorrir. Olhava a jovem bailarina como se nada mais existisse para além

 

' Figuras executadas no ballet por dois bailarinos. N. da T. )

 

dela, insensível ao companheiro que lhe dava uma cotovelada.

Entretanto, o mestre erguera-se para ordenar o quadro seguinte. Um grupo de crianças preparava-se para intervir. A pianista atacava um novo tema. Andreiev batia o compasso.

Serge não se mexia, totalmente absorvido pela sua contemplação, incapaz de reparar em Madame, que o fixava como se faz a alguém que está prestes a cometer um erro e a quem se deseja chamar a atenção. Manifestamente, ela proibia-se a si mesma de intervir. Não deveria dar o exemplo respeitando ela própria a autoridade de Andreiev? As ordens, as observações, as admoestações, na altura em que era ele o mestre de ballet, só dele deveriam dimanar.

A música prosseguia e o espaço cénico conti nuava vazio. A voz de Andreiev retumbou, tal como toda a gente esperava, excepto Serge.

"Obrigado! "

Um obrigado sonoro, que fez sobressaltar o jovem. Andreiev estava na sua frente.

"Então, e a tua entrada? "

Serge endireitara-se como uma mola e preparava-se para dançar. A voz do mestre voltou a ressoar:

"O teu boné, os teus bigodes? Estamos na véspera do ensaio geral. Sabes o que isso signific a? Estou farto de dizer que toda a gente tem de ensaiar com os seus acessórios.

Nem bem nem mal, Serge colava em si mesmo um par de bigodes e ajustava um grande boné sobre o cabelo muito encaracolado. A sua volta, os camaradas estavam silenciosos, retendo a vontade de rir.

Géraldine também estava com vontade de rir, mas a atitude de Madame intimava-a a conservar-se séria. Na verdade, Serge, atafulhado daquela maneira, estava cómico. A sua silhueta magra, ainda adolescente, contrastava com a atlética estatura do mestre. À sua maneira, o jovem também dava nas vistas.

Sem dúvida que nunca viria a ser um grande bailarino dentro da tradição romântica, uma estrela no mais puro sentido do classicismo, mas outra coisa. Não lhe faltavam possibilidades e era um dos melhores elementos do Centro. Não era sem razão que Igor Andreiev lhe confiara um papel ao seu lado.

Mas o jovem era difícil. Susceptível, sombrio. Tinha ideias fixas, como os seres muito novos que, ainda ignorantes da vida, querem refazê-la conforme a sua vontade. Em luta perpétua com a sua sensibilidade, ostentava uma atitude desenvolta e algumas vezes mesmo insolente. Era assim nas suas relações com Igor, que ele admirava contrafeito e que aquela palerma da Marie adolava sem se preocupar em o esconder.

Colocara-se em posição para a entrada. O piano recomeçava e pela terceira vez Andreiev explodia:

 

"Estás a fazer de propósito! E o sol? Eu disse com os acessórios. Se não tens o sol, como é que vais fazer para o pendurar?

O sol! Serge parecia cair das nuvens. Contudo, para o socorrer, os camaradas, pressurosos, passavam-lhe um disco de contraplacado redondo como uma roda de bicicleta e ingenuamente pintalgado de raios vermelhos e amarelos.

Marie acabara por abrir os olhos, visto que o ensaio estava suspenso. Erguera-se um pouco, emergindo do berço-crescente de lua. Que teria Serge? Em que pensaria? Não era possível, ele estava a fazer de propósito para contrariar o Sr. Andreiev! Aquilo não estava certo, e ainda por cima a dois dias do espectáculo.

Por mais fatigado que estivesse, o mestre era tenaz. Serge tinha de ensaiar, ensaiaria. O rapaz estava finalmente pronto, em posição- esperava pelo piano. O seu boné, os seus longos bigodes encerados, a sua própria atitude, que definiam o seu papel, transformavam a sua habitual aparência numa silhueta de palhaço. Durante alguns segundos, ficou parado, à espera, sob o olhar de Andreiev...

"Desta vez, estás pronto? Vamos a isto. " Igor dirigia-se ao pianista:

"Música, se faz favor. Retomemos a entrada do guarda da praça. O guarda da praça. É Serge. Ele repete a sua variação. É o guarda imaginário dum jardim fantástico. Faz rolar o sol como se fosse um arco. Brinca com saltos de gato, piruetas, e, ao saltar, acaba por o pendurar num fio que o faz subir. Será o amanhecer. O jardim abre as suas portas, as crianças podem invadi-lo.

E a boneca acorda. Descobre as crianças, verdadeiras crianças que brincam. Que brincam à palheta, que brincam ao eixo, que jogam à bola. A boneca gostaria de viver como elas e partilhar dos seus jogos.

Porque o criador fabricou uma boneca tão perfeita que pode, que deve, tornar-se viva.

Sempre ao longe, sempre no fundo, onde ninguém repara nela, Floflo, atenta, ensaia sozinha o papel que deverá estar à altura de dobrar, aconteça o que acontecer.

Marie escapou-se do seu berço-junta-se à dança das crianças, que o guarda da praça vigia. As crianças não podem fazer asneiras: andar sobre os canteiros, trepar às árvores, mergulhar no lago. As crianças têm de ser bem comportadas, quando se divertem. O quadro é uma sátira de todas as proibições.

O ensaio retomara o seu curso. Serge voltara a si, isto é, ao trabalho. Discretamente, Madame eclipsara-se, outras tarefas a esperavam.

Nas escadas, encontrou-se com Pierre Robin, que a vinha render. Estava-se na antevéspera do espectáculo. Um espectáculo de gala, na Ópera de Monte Carlo. Já todos os lugares estavam vendidos. Seria um acontecimento, como em todas as aparições de Andreiev. Graças a ele, o Centro ia estar no galarim.

 

Mas o Centro não era a Ópera de Paris, nem o Covent Garden, nem o Kirov, nem o Bolchoi. Era apenas ainda uma escola que, para emparceirar com as melhores, tinha necessidade de demonstrar a sua eficácia. Igor Andreiev, que votava uma verdadeira admiração a Marjorie Brooks, oferecia-lhe uma ocasião soberba. Não se podia negligenciar fosse o que fosse para ajudar ao êxito do jovem méstre de ballet, porque desta vez seria também o do Centro.

Rapidamente, ao cruzarem-se, Pierre Robin e a mulher trocaram algumas impressões.

"Houve um pequeno incidente com Serge, lá em cima. Ele está nervoso.

- Está-o sempre.

-Sim, mas agora é como se ensaiasse con trariado.

- E Marie?

- Oh! ela é exactamente o contrário... " Desataram a rir.

"E Sarah Green? Irá dar alguma coisa?

-Parece-me que vai. É simpática. Confiei-a a Suzanne (era a secretária) para as formalidades e as recomendações secundárias.

-Vou vê-la. Falas tu com Géraldine Dupuy, que quer fazer um artigo sobre o Centro. É importante. "

Cada um tomou o seu caminho. Madame estava satisfeita com a reacção do esposo. Ela hesitara em aceitar no seu internato uma rapariga que, aos seus olhos, apresentava um terrível defeito: a fortuna. De Nova Iorque, porém, o próprio Andreiev se dera ao incómodo de a recomendar.

Segundo ele, Sarah Green não tinha só fortuna, tinha também futuro, e na dança, embora haja legiões de amadores, existem poucos eleitos - aqueles para quem a dança não é nem um passatempo, nem um prazer, mas uma necessidade absoluta, os meios e o objectivo da existência.

O talento, é preciso procurá-lo onde se encontra, sem distinção de raças, nem de meio. Era a vez de Madame ir receber Sarah.

Géraldine interessava-se cada vez mais por Marie. Quando o director entrou discretamente no estúdio, fez-lhe sinal para que viesse sentar-se a seu lado. Em voz baixa, para não incomodar, perguntou, apontando para Marie:

"Como se chama ela?

- Marie. arie Soler. "

Para uma jornalista, o anúncio duma revelação éuma ocasião a não perder.

"Onde é que a pescou?

-Aqui. A mãe trouxe-no-la há cinco anos para nos pedir conselho. Uma mulher jovem, encantadora, francamente inteligente. Vivia sozinha com a filha, que apenas pensava em dançar. Marie apresentava tais qualidades que aceitámos imediatamente ficar aqui com ela no Centro. Mas havia problemas.

- De que ordem?

- Não sabemos exactamente... É como se houvesse um mistério. A Sr. a Soler é muito reservada. Tem-se a sensação de que é preciso ela adorar a filha para ter saído do seu retiro.

- Que é que ela faz? Como é que vive? E onde?

- Para os lados de Saint-Tropez. Em Grimaud, mais exactamente. Enfim, nos arredores. Dirige um pequeno negócio. Um centro hípico. Para Marie, o sonho era Paris. Mas pa ra os provincianos é um sonho proibido.

- Porquê?

-Porque, por mais incrível que pareça, a Ópéra não tem internato. Só recruta os seus alunos no seu âmbito, o que é verdadeiramente lamentável. Aqui, nós quisemos de certo modo remediar esta injustiça, e, paralelamente à escola, Marjorie fundou um internato. Deste modo, podemos receber alunos de toda a parte. Demõs uma bolsa a Marie a fim de que pudesse estud ar connosco. "

Géraldine tomava notas - abrangia com o olhar o corpo de ballet, onde podia reconhecer várias nacionalidades e todas as raças. Queria saber mais. A reportagem que ela preparava ao redor de Igor abria outras perspectivas, e Géraldine gostava de tratar a fundo os seus temas. Nunca seria de mais falar da dança, que, para a maioria das pessoas, permanecia uma desconhecida, uma noção menor, menos importante do que o futebol ou o catch e apenas ligada às pontas e à graciosidade. Que foi uma arte primordial, disso ninguém parecia querer duvidar- com excepção de alguns coreógrafos, de alguns historiadores ou filósofos e de alguns poetas.

Géraldine continuava a perguntar:

"Para a dança, não existe mais nenhum internato em França?

-Mais nenhum. Nós somos uma organização privada. Não beneficiamos de nenhum auxílio, de nenhum subsídio. É verdadeiramente o amor pela Arte. E, se quer ouvir uma anedota, quando quisemos criar este internato, os poderes públicos assimilaram-nos à hotelaria.

Géraldine continuava a tomar notas.

"Posso dizer à hotelaria?

-Pode mesmo gritá-lo. Todos os anos estamos à beira do naufrágio. Felizmente que os maiores nomes da dança nos vêm dar uma ajuda. Quer com representações, como a que Igor Andreiev prepara, quer através de estágios de ensino.

-Isso deve provocar uma extraordinária emulação.

- Maravilhosa. É o que é belo na nossa profissão, não existe o star-sYstem. "

Géraldine voltou a Marie. Achava-a encantadora e tinha vontade de o dizer, de fazer qualquer coisa por el a.

O altifalante deu sinal e uma voz soou. "São dezasseis horas. Igor parecia não ter ouvido, no que todos o imitaram. Mas, ao fim duns momentos, a voz ressoou de novo:

"Peço desculpa, mas recordo que são dezasseis horas. "

O Sr. Robin inclinou-se para Géraldine. "Se não os chamamos à realidade, esquecem os planos de trabalho e as suas contingências. "

Uma mulher jovem e alta entrou no estúdio com um sorriso de desculpa. Era Suzanne Leroy, professora de História da Arte. Pelo menos na origem. Mas, desde a abertura do Centro, ligara-se-Lhe com devoção e transformara-se no indispensável braço direito da direcção. Andreiev viu-a e parou. O pianista deixou de tocar.

"Já sei, menina. São dezasseis horas. " O mestre voltou-se para o ballet.

"Meninas, senhores, obrigado. Ensaio geral amanhã, em Monte Carlo. "

 

Segundo o costume, os bailarinos aplaudiram e depois, no meio da maior desordem e ruído, abandonaram o estúdio, vestindo os abafos de lã, apanhando sapatos, empatando-se por um nada, apenas por prazer, e dirigindo uma última saudação ao mestre e a Géraldine Dupuy. Após a cerimónia silenciosa, era a recriação, uma agitação salutar, incontrolada. Podia-se rir, falar, fazer barulho, e, se Suzanne Leroy lançava alguns apelos à calma, era apenas por uma questão de formalidade.

No meio da debandada geral, Igor reparara em Serge, que tentava passar despercebido, prestes a safar-se. Ele deteve-o:

"Vem cá, tu. Que se passa contigo? "

Nenhuma resp osta.

"Não te agrada dançar isto? Queres que te substitua? "

Serge teve um olhar de desafio e replicou, num fio de voz:

" Tanto me faz.

-Pois a mim não, imagina tu. Quando uma pessoa se compromete a desempenhar um papel, agarra-o bem e dá-lhe o seu melhor. Compreendido? E conto contigo. "

"Conto contigo "

Igor insistira naquelas últimas palavras, que, para ele, não tinham réplica. Efectivamente, Serge não replicou. Murmurara "Sim, mestre" com a beiça estendida, contrariado, e era o melhor. Igor desconcertava-o e ele sentia nisso uma surda satisfação. Serge tinha de se confessar vencido. Andava de mau humor sem saber muito bem porquê, sem compreender a verdade e olhá-la de frente.

Igor não o levara a sério, felizmente! Abandonar o seu papel! O jovem bailarino teria ficado doente com isso. Sim, Igor era o mais forte, ele, que aparentemente não se importava com coisa alguma senão com o ballet. Enquanto Serge se preocupava com tantas coisas, com demasiadas coisas.

Ele tinha a idade das grandes ideias, dos grandes problemas. Queria atacar a vida e não deixar-se viver. Queria marchar contra a corrente. Maravilhosamente jovem, sentia-se muito velho e, do alto dos seus dezoito anos, considerava o mundo como se já Lhe tivesse dado a volta.

Mas é assim que convém ser novo. Deve-se sonhar muito para conseguir um pouco. É preciso querer muito para apreender o que se gosta. O mestre de ballet chamara-o às realidades. Obscuramente, Serge estava-lhe reconhecido.

"Queres dançar? "

Serge não ousara dizer que não.

"Então, dança. "

Era lógico e, naquele momento, nada mais tinha importância. Só o trabalho. Era isso. Limitar-se à tarefa a cumprir. E não sair da razão pensando na rapariga, mais nova do que ele, mas que crescia ao mesmo tempo que ele.

Durante os anos da infância, ela fora a sua melhor amiga. Mas "a amiga" já não era uma criança. Os homens olhavam-na quando passava na rua e, com toda a inocência, quase sem dar por isso, Serge olhava-a também com olhos que já não eram os dum garoto.

Por agora, sossegado por ter ficado bem com Igor Andreiev, preferia deixar o estúdio sem esperar por Marie, como era seu hábito. Preferia ir ocupar o seu lugar na aula de ritmo. Ali poderia acalmar os nervos, batendo nos tambores ou nos címbalos.

Posto ao corrente do incidente, Pierre Robin procurava desculpar Serge.

"Não compreendo a sua atitude! É um dos nossos melhores elementos.

- Uma verdadeira cabeça de burro, sim. Mas isso não me desagrada. Um dançarino deve ter carácter. Não se dança só com as pernas. "

Quanto a Marie, terminado o ensaio, sentiu-se desamparada. Retardava-se, demorava-se a vestir a malha, a apanhar as suas coisas. Preferia ficar, pois Igor ficava e ela não respondia ao convite da sua inseparável Floflo, que, à espera no umbral da porta, empurrada pelos que saíam, lhe fazia sinais de impaciência:

"Despacha-te, vem. "

Impaciente de quê? Terminado o ensaio, para Marie, tudo parava. O resto, que ela tanto amava, os cursos, os jogos, o café bebido no pequeno bar da cantina, para retomar forças para novos esforços, as discussões apaixonadas após os espectáculos ou emissões de televisão - esse resto que era ainda há algumas semanas o essencial da sua vida, esfumava-se desde que o mestre aparecera. Era apenas na sua presença e em função dele que as coisas tinham um sentido, tinham gosto. E eis que o ídolo a escolhera.

Eleita pelo seu Deus, a jovem saltara para dentro do círculo encantado das loucas esperanças. Menina! Já não se é uma menina aos dezasseis anos. Até mesmo Madame se apagava no seu espírito, no seu coração, diante do bailarino glorioso. Continuando a viver no Centro, onde se considerava em casa e melhor do que em qualquer outro sítio, de repente sentia-se ali uma estranha, marginalizada, quando Igor não estava.

Não pensava mesmo noutra coisa do que no termo do espectáculo - que estava próximo. Igor Andreiev partiria para longe. Tinha o tempo contado; Marie ignorava-o. Vivia com uma esperança inexprimível, insensata, o coração louco, os olhos maiores do que o mundo, mas o mundo a seus olhos resumia-se a Igor.

Ela demorava-se no estúdio. Soltou os cabelos, como se de repente se tornasse indispensável penteá-la doutro modo. Na longa cabeleira liberta, o rosto surgiu embelecido duma nova e irresistível feminilidade.

Géraldine ficou tão impressionada como o Sr. Robin. Quanto a Igor, não reparara em coisa nenhuma. Fazia sinal a Marie para que viesse para o pé deles. Apresentou-a a Géraldine, que manifestava o desejo de "fazer um artigo" sobre a pequena. Mas Pierre Robin intervinha. Não gostavam de colocar as suas alunas como vedetas. Seria um mau exemplo. Depois da representação, logo se veria.

Lisonjeada, Marie sorria à jornalista. Uma maneira de lhe agradecer o interesse que esta lhe manifestava e que Marie entendia só dever a Igor. Este deu-lhe uma pequena palmadinha na face.

"Vamos, desaparece. Já hoje te vi o bastante. Mas ele sorria - e este sorriso tornava Marie imóvel, numa espera apaixonada, loucamente intimidada, loucamente feliz.

"Desaparece, já te disseram. O dia ainda não acabou. "

A voz do Sr. Robin chamava-a a si, às realidades, e, depois duma breve reverência, decidiu-se a ir ter com Floflo, que gesticulava, e começou logo a admoestá-la quando se dirigiam, a correr, para a aula de ritmo.

És completamente idiota em olhar para o Sr. Andreiev dessa maneira, com olhos de carneiro mal morto. Se julgas que não se dá por isso...

- O quê?

- Ora, que o amas.

- És doida. Admiro-o.

- É a mesma coisa.

-Tu não o admiras?

- Oh! sim, mas não perco o sono por isso, enquanto tu, tu perdes o sono.

- Isso incomoda-te?

- Às vezes, sim. Quando te levantas de noite e vais à janela como se estivesses à espera do Espectro.

Para as bailarinas, o Espectro, da rosa, claro, é um pouco o Romeu dos seus sonhos.

Marie rebelava -se:

"Falas por falar! Não sabes o que estás a dizer.

Floflo envolvera a companheira pela cintura, num gesto espontâneo de amizade. O corredor ressoava de percussões rítmicas, incansavelmente repetidas. Antes de entrar na aula, Florentine fixou a amiga nos olhos:

"Queres que te diga uma coisa? Tu amas demasiado o Sr. Andreiev, sim, ama-lo demasiado. Metes -me medo!

No estúdio grande, Géraldine vai monopolizar Igor. Estão sós. Mais ninguém a não ser a equipa de filmagens e o engenheiro de som - além do fotógrafo, permanentemente ao ataque para "captar o bailarino, que parece não saber que é espiado, armadilhado, fotografado.

A equipa instala-se para filmar um grande plano. Viram dançar Andreiev. Géraldine vai fazê-lo falar: daquele ensaio, daquele ballet, da jovem intérprete.

De há uns dias a esta parte, Géraldine vinha obtendo bons documentos. Igor fala de si: da sua infância, dos seus começos no Kirov, a mais gloriosa escola do mundo.

Se bem que não gostasse de falar dum ponto capital da sua vida; Géraldine levou-o a contar a determinação que uma noite tomou, depois duma série de espectáculos triunfais em Paris, onde o público da Opéra que o descobria gritava por milagre - "Nijinski não morreu, Nijinski ressuscitou. Um ídolo aparecera, imediatamente consagrado. E, para melhor corresponder a esta adoração das multidões, o ídolo rejeitara as suas ligações e os seus laços de amizade.

Ao escolher a liberdade, ao ser assunto das crónicas, Igor rompera com o corpo de ballet de que era o mais belo florão, com um país que era o seu. Colocara-se fora da lei -a lei dum povo que prefere as massas às personalidades-, enquanto os outros, estrangeiros, fascinados com a sua audácia, o faziam entrar vivo numa espécie de lenda.

Para ele, daí para a frente, deixam de existir fronteiras. Pode ir para onde quiser, quando quiser, como quiser. E quem sabe se, um dia, quando a nostalgia se tornar demasiado grande, ela não o fará regressar à Rússia? O bailarino pródigo não será mais do que o filho pródigo, aquele que merece o perdão e o acolhimento.

A estrela está no seu lugar-os projectores regulados.

 

Habituado à disciplina da sua profissão, Igor respeita a dos outros. Facilitou o trabalho dos técnicos. E, depois, ele já sabe como é. Sabe que se pode dar ao luxo de ir demasiado longe. Aquele que os profanos consideram como um fenómeno, um bailarino nato, é sobretudo um carácter, uma consciência.

Para Géraldine, apaixonada pela dança -de facto, ela está sobretudo apaixonada pelo seu tema -, este bailarino fora de série, tranquilo por poder falar com alguém que o compreende, é uma ocasião formidável. Ela não o trairá.

Desde que se conheceram em Paris, ele deixou-a ligar-se aos seus passos, a única maneira de o estudar, de lhe permitir estabelecer uma biografia que não fosse fantasiada.

Um filme sobre ele? Que o faça. Com a condição de que o retrato seja semelhante e exacta a existência posta a descoberto. Ela terá a exclusi vidade. Uma sorte para Géraldine. A aproveitar a todo o custo.

Porque Géraldine acredita na sorte. Sabe que vale mais frequentar os que a têm do que aqueles a quem ela falta. Isto dito doutra maneira, o seu sentido prático fá-la preferir os que o êxito favorece e que ela considera como saudável contágio. O esplendor de Andreiev reflecte-se sobre os que fazem a sua exegese - o belo sorriso de Géraldine dissimula dentes grandes e uns olhos de aço.

Os técnicos estão a postos. Géraldine tomou lugar ao lado do operador de câmara. Andreiev está sentado na sua frente. Haverá tomadas de vistas opostas. Géraldine não se esquecerá de figurar na emissão. Cuidou da sua maquilhagem - o conjunto é fotogénico.

"Quando quiseres, Igor, estamos prontos. Apenas um ensaio de voz para o som. "

O engenheiro regula o microfone à boa distância. Andreiev pronuncia algumas palavras. Não há problema.

Descontraído, habituado a responder às entrevistas, sem nenhuma pose; despenteado, uma toalha turca à volta do pescoço, o bailarino só apresenta o rosto. Um rosto de traços selvagens, talhado para captar a luz. Um filho das estepes e do Oriente, extremamente fotogénico.

A entrevista começa. Géraldine e Igor haviam-se concertado antes. Trata-se de definir o espectáculo, o bailado, o seu tema. Falarão também da distribuição, e as imagens do ensaio encadear-se-ão com as do espectáculo, que será filmado ao vivo, em directo.

"Galateia, que é?

- Uma transposição do tema de Pigmalião. O criador e a sua criação.

-Parece-me que tomou muita liberdade sobre o tema...

- Os temas são eternos, mas a sua interpretação deve ser uma perpétua juventude, não digo novidade, mas uma renovação. Transpus o tema mitológico para a vida de hoje. O escultor não passa dum fabricante de bonecas. E Galateia é a sua obra-prima. Uma obra-prima implica o milagre, a maravilha. Então surge o momento fabuloso em que o espírito criador ultrapassa a matéria, quer ela seja o mármore ou a seda, o momento em que a alma vem animar o objecto.

E Galateia é...

 

A pequena Soler, que vocêjá viu. Já montei este ballet em Paris, há alguns anos, para mostrar as capacidades da escola de dança. Depois disso, repu-lo em cena em vários países, e, se o volto a apresentar em Monte Carlo, é uma maneira de prestar homenagem à escola de Madame Marjorie Brooks.

- O papel de Galateia é capital. É muito raro confiar um papel duma tal importância a uma aluna.

-Já lhe disse que este ballet foi concebido para pôr em realce as escolas, quando elas o merecem. E penso que a aproximação entre alunos e professores, reunidos numa mesma acção, pode ajudar à compreensão da dança, na sua técnica e na sua progressão. Não se esqueça de que não há só crianças neste ballet; há adultos. Há Ingrid Keller, que considero como uma das nossas maiores bailarinas... Ela chega esta noite... Eu também actuo. "

Igor disse "eu" com um sorriso de desculpa. Géraldine atacou de seguida.

"Você também actua. Você, que não tem receio de dar a uma aluna uma oportunidade excepcional.

-Não será a primeira vez. E ela merece- o.

- Logo de caras, mete-a no mesmo plano das estrel as.

-Você sabe muito bem que não é porque se tem um papel que se tem direito ao plano. Marie deverá trabalhar mais do que nunca depois desta experiência.

-Porque é que a escolheu? Que é que determinou a sua escolha?

- As suas qualidades. O seu físico. Ela corresponde à concepção que eu faço do personagem.

- No seu ballet, se bem entendi, Galateia não passa duma criança, dum brinquedo. Marie Soler já não é uma criança, é quase uma rapariga.

Para desempenhar um papel de criança, impõe-se -nma certa maturidade. Não, não, não é um paradoxo. A compreensão é indispensável à interpretação. A intenção não basta. E depois, há os artifícios da cena, a maquilhagem, o trajo. Olhe para o personagem tal como o público o verá. "

Igor exibe uma maqueta- um grande desenho que o operador da câmara isola e que a objectiva vai ampliar até preencher todo o écran.

"Eis Galateia. "

E Igor comenta a imagem.

O pintor, de pleno acordo com o coreógrafo, imaginou um personagem que, numa primeira impressão, parece excessivo, caricatural. A caricatura da infância e dos seus desaires. Por mais cómico que seja o seu aspecto, a boneca parece sofrer. Estranha criatura, boneca de bazar, pendurada como numa montra. Por que milagre se transformará ela numa heroína de carne e sangue? E por que sortilégio ostentará beleza? E como é que o criador a conseguirá fazer encontrar as alegrias do riso e o gosto das lágrimas?

De novo o operador de câmara regressa a Igor.

"Marie será exactamente o que eu quero que ela seja", afirma ele.

À porta da aula de ritmo, Marie e Floflo reencontraram Suzanne Leroy, que as aguardava na comp anhia da novata.

As apresentações foram feitas.

 

"Eis Florentine e Marie, e eis Sarah, que vai partilhar o vosso quarto. Ajudá-la-eis a instalar-se.

- Depois da aula, Mademoiselle?

- Claro, depois da aula. "

Marie e Floflo convidaram Sarah a segui-las. As três raparigas esgueiraram-se pelo pequeno estúdio onde Serge estava a preparar-se para "passar com uma companheira. O professor traçara inscrições no quadro preto - dois tempos fortes, um tempo fraco. Havia instrumentos de percussão sobre os quais os alunos se exercitavam, um de cada vez. Era um curso facultativo, muito pouco concorrido. Mas Serge achava-o indispensável à sua formação de bailarino - e ele sobressaía na bateria.

Ao aperceber-se da presença de Marie, Serge bateu mais forte e fora do compasso, o que sur preendeu o professor.

"Que é que te aconteceu? Ias muito bem. Não há necessidade de te enervares. Parece que ficas à espera do compasso para te atirares para cima da bateria, quando ela não te fez mal nenhum. Porque é que lhe bates dessa maneira? "

A aula inteira riu.

"Vamos, recomeça, contando. E respeito pelas cadências. "

Serge recomeçou e o professor ficou contente. Dois outros alunos se apresentaram.

Serge foi-se aninhar num canto da sala. Marie, decidida, foi sentar-se ao lado dele.

"Porque é que não vieste connosco? "

Serge não respondeu.

"Estás a ver a rapariga que está connosco, lá em baixo? É a novata.

- Estou-me nas tintas.

- Não estás a ser razoável. "

Serge estava-se nas tintas, o que o não impedia de reparar em Sarah. Uma rapariga soberba, que não devia ter complexos. Via-se pelo seu à-vontade, no olhar seguro que pousava em tudo, sobre todos, sobre ele.

Com veemência -decididamente, Serge desnorteava-a-, Marie retomou em voz baixa:

"Mas que é que se passa contigo? Tens cada vez mais mau carácter. Acabarei por me zangar contigo. Portaste-te muito mal no ensaio. O Sr. Andreiev não estava contente. E se ele te substituísse?

- Estou-me nas tintas - repetiu Serge.

-Então estás-te nas tintas para tudo! Não gostas do teu papel? Não gostas do Sr. Andreiev? "

O que aquela rapariga o podia enervar! Fez uma careta, imitando-a: Não gostas do Sr. Andreiev?

- Estou-me nas tintas e volto a estar para o teu Sr. Andreiev.

- Estás a cometer um erro. É uma sorte ter um papel, sobretudo ao lado dele. "

- Quem te ouvisse, havia de julgar que nunca viste um bailarino. "

Com o rosto iluminado, Marie replicou, num grito, tanto mais forte quanto foi abafado:

"Ele não é só um bailarino. "

 

Mas o tom apaixonado que a conversa deles tomara não escapava ao professor. Visivelmente, as duas crianças - porque para ele os jovens continuavam a ser crianças- estavam a cem léguas do que quer que fosse de rítmico.

"Silêncio, aí ao fundo! "

Serge voltou as costas a Marie. E foi como uma criança, um rapazito resmungão e mal-humorado, que se desculpou:

"É ela que não pára, Sr. Professor. Eu não lhe perguntei nada".

Sarah estava intrigada. Ela bem reparava na pequena cena que se desenrolava durante a aula. Muito baixo, perguntou a Floflo, apontando para Serge:

"Que é que ele tem? "

Floflo tomou um ar superior: "Depois te explico... " E, como Marie voltasse para junto delas, disse:

É por causa dela.

- É o seu boy friend ? "

Floflo sibilou:

É isso, ele está apaixonado.

- Eu pedi silêncio! - clamou o professor.

-Se têm coisas a dizer, vão dizê-las para outro lado. "

Desta vez, a lição recomeçou, apenas pontuada pelos bum-buns e pum-puns.

Estava-se no fim do dia.

Tendo voltado a vestir a roupa da cidade, os externos iam regressar às suas casas, enquanto os internos ainda se passeavam em fato de trabalho, uma espécie de uniforme, ornamentado de pelagens mais ou menos vistosas. Cada um entretinha-se a seu modo: leitura, lavagem de roupa, trabalhos de mulher. Havia raparigas qúe faziam tricot para se descontraírem) ou colóquios apaixonados sobre um filme, um método, sobre o futuro exame.

Acabadas as aulas, o Centro continuava a vi ver, e até, em algumas salas de aula, alguns fanáticos trabalhavam sozinhos, como Madame, por exemplo.

Porque há sempre, durante o dia, a hora em que Marjorie Brooks se encontrava sozinha, consigo própria. As suas ocupações eram inúmeras, lições, ensaios, administração. Tinha de estar em contacto permanente com os bailarinos, os músicos, os pintores, os pedagogos, estar ao corrente de tudo- e ainda preparar espectáculos, tournées. Não parava.

Por vezes, sonhava com um belo jardim onde passearia, repousada. A natureza, que amava, nunca conseguia gozá-la, apreendê-la, nela se retemperar. Enfim, o seu jardim era aquela escola, aquele canteiro onde desabrochavam talentos.

No grande estúdio deserto -sem o recurso dum piano ou dum gira-discos-, Madame treinava-se.

Nunca se concedia a graça dum repouso, duma paragem. Não se pára de dançar. A sua silhueta impecável, de aparência tão frágil, era trabaLhada como o aço mais fino. A sua técnica, ainda resplandecente, era preciso mantê-la. Mas Marjorie sabia que a pouco e pouco a sua proverbial resistência se tornava menor. A respiração menos profunda, e as dificuldades... mais difíceis.

A idade de Gisela já passara e Marjorie não queria obstinar-se, oferecer ao público uma imagem desvanecida.

 

A dança, acima de tudo, é juventude, porque implica, exige, a mais rara beleza, a do corpo. Felizes dos pintores, dos músicos, que podem envelhecer com o seu génio. Do mesmo modo, os actores, que podem evoluir no tempo, com a sua idade.

Marjorie, enquanto se devotava à sua escola, não experimentava o azedume dos fins de carreira. Era demasiado inteligente para isso. Pelo contrário, experimentava um entusiasmo, uma força nova. O espírito, a vontade, de certo modo triunfante da matéria.

No silêncio, na solidão, desprovida de qualquer adorno, de qualquer ilusão, a Estrela sobrevivia.

No bar da cantina, as três raparigas travavam conhecimento bebendo o copo da amizade. Soda para Sarah e Marie, chocolate para Floflo, o que lhe valeu reprimendas por parte da amiga.

"Madame disse que devias ter cuidado com a linha. Fazias melhor se tomasses um sumo de limão, sem açúcar.

- Oh, é só uma vez!

- É sempre só uma vez! "

Floflo amuou, sentindo-se vagamente culpada. Sim, era gulosa, e, depois, gostava tanto de chocolate! Era encantadora, ainda muito infantil, loura, de olho azul, leitosa como uma drageia.

E eis que a novata dava razão a Marie. Uma bailarina tinha de ter cuidado com a linha. É capital.

"É na nossa idade que nos devemos formar; depois, quando se for completamente adulta, será demasiado tarde. "

Floflo suspirou, pousou o chocolate com ar de mártir. Era penosa, a dança! Tinha de se renunciar a todos os prazeres- estar alerta, e, para cúmulo da infelicidade, Floflo tinha uma mãe com um condão especial para a cozinha. As tentações eram constantes, tanto mais que os seus três irmãos e as suas duas irmãs não faziam caso da estética e preferiam a boa mesa.

Sarah sentia-se bem no meio das duas raparigas. Sem mais aquelas, já podia participar das suas discussões, dos seus problemas. Esperava obter a sua amizade, a sua confiança- ser como elas, refilona, maliciosa, fraternal.

Travavam conhecimento; primeiro os nomes: "Eu chamo-me Florentine Bernardi e ela Marie Soler. E tu?

- Sarah Green.

Depois, perguntas mais sérias. Floflo conduzia o interrogatório. Marie permanecia mais reservada.

" Donde vens?

- De Nova Iorque.

- És americana?

- Sim.

-Parece que há muitos crimes em Nova Iorque! É verdade que as pessoas não ousam sair à noite, que as ruas estão desertas, que se pode ser morto por dez dólares?

- Sim, há muitas agressões, muitos crimes. Há de tudo um pouco em Nova Iorque.

Marie experimentara sempre uma espécie de fascinação pela América, e isso depois das primeiras lições de Geografia. Só a conhecia através dos livros, pelos filmes. Uma impressão de espaço nas paisagens, ou grandes dimensões nas cidades. Nova Iorque, sobretudo, fazia-a sonhar. Eis uma afirmação que surpreendeu Sarah, que a lisonjeou mesmo. Uma francesinha amava o seu país, sonhava com ele. E não era por gentileza, uma maneira de acolher uma estrangeira.

 

Era admirável, aquela Marie, que lhe falava gravemente da sua cidade gigantesca. E, espontaneamente, Sarah convidava-a. Sim, quando houvesse férias, Marie poderia ir, bem como Floflo, se quisesse. Mas esta última não compartilhava todos os sonhos de Marie.

Eu, eu teria medo. É demasiado grande, é demasiado elevado. Em que andar habitas?

- No segundo. "

Floflo exclamou, desiludida: "No segundo! "

-Sim, lá não existem só grandes edifícios. Onde eu habito, as casas não são muito altas. Dão para o Park - Quinta Avenida.

-Quinta Avenida! Oh! lá-lá, tu és fina! Que faz o teu pai?

-Tem negócios. E o teu?

-O meu é pescador. Se quiseres, num do mingo, vais a nossa casa comer peixe, mas que peixe!

- Peixe como?

-Peixes nobres, linguados, sargos, douradas reais. Hem! Marie, regalamo-nos, e, para a linha, não há perigo. "

Sarah voltara-se para Marie: "E o teu? " Marie pareceu embaraçada.

"Morreu. "

E, como Sarah procurasse pronunciar palavras de circunstância, Floflo cortou-lhe a palavra:

"Há já muito tempo. Ela não o chegou a conhecer. "

Um pouco mais tarde, encontraram-se no quarto comum. Havia que instalar Sarah, iniciá-la nos segredos daquele minidormitório. "Não te chateias de partilhar um quarto connosco? Não preferias ficar sozinha?

-Não, em minha casa estava sozinha. Não acho piada nenhuma não podermos compartilhar seja o que for. Quando se tem medo, quando se está triste...

- Tu às vezes estás triste? - perguntou Marie, que cada vez se sentia mais atraída pela novata.

- Oh, sim!

- Porquê

- Não sei, acontece... E tu? Nunca estás triste?

- Sim... Às vezes... não sei bem porquê... É vago... É como se tivesse medo, das pessoas, das coisas... enfim, da vida... não é fácil. "

Mesmo quando sorria, o olhar de Marie permanecia grave, como que atraído por coisas que ela era a única a ver.

Tagarela como uma pega, Floflo falava muito

- tinha sempre qualquer coisa para dizer a propósito de tudo e de nada-, mas Marie, para ela, contava muito. Como os outros, submetia-se ao seu encanto, e admitia-o- admirava-a, em segredo, claro. Não se vai dizer à nossa melhor amiga que nos espanta, que a admiramos, mas, quando chega a ocasião, provamo-lo.

Marie não se parecia com ninguém-era única, sem contudo ser excêntrica, e a sua inteligência tinha os defeitos da sua juventude, uma mistura de intuição e de ingenuidade. Sim, Floflo admirava-a e não compreendia que uma rapariga como ela pudesse ter dúvidas sobre si mesma, sobre a vida. Com vigor, declarou que Marie era "torcida".

"Sim, és torcida. No teu lugar não teria medo de nada. E sobretudo nesta altura...

 

E começou a enumerar para Sarah as razões de satisfação, as provas de que Marie não deveria ter medo fosse do que fosse.

Em primeiro lugar, fazia progressos formidáveis. Toda a gente o via, toda a gente o sabia, e não apenas os professores, mesmo os colegas, as colegas - os que são implacáveis, mas que reconhecem sempre, mesmo contrafeitos, os melhores. E, depois, Madame tinha um fraco por ela, tinha confiança, sabe-se lá! E o Sr. Andreiev também tinha um fraco; a prova: escolhera-a. Então que é que Marie queria mais?

Sarah pensava que Floflo não estava enganada. Era verdade que Marie era invejável. Encantadora, atraente. Floflo também era bonita, mais bonita, talvez, mas de outro modo e sobretudo sem mistéri o.

Ao tagarelarem, as raparigas apressavam-se. Sarah desfazia as malas. Que vestidos! A maioria deles ostentavam as etiquetas de grandes costureiros parisienses. O cabide reservado a Sarah não chegaria. Com aquilo tudo, não se aguentaria. Desenvolta, Sarah amontoava as vestimentas mais luxuosas numa mala. Assim, não se falaria mais no assunto.

Fora mais uma ideia da mãe, aquelas bagagens supérfluas. A criada de quarto obedecera. Aqui, Sarah aprendia a servir-se a si própria e as suas escolhas prevaleceriam.

Os três divãs ocupam o essencial do quarto. Delimitam o espaço reservado a cada uma. A prancha que serve de secretária, as gavetas que servem de cómoda, as estantes. Cada uma pode arranjar o seu canto à sua maneira - assim podem-se adivinhar os gostos, o carácter, e Sarah repara nas instalações das suas novas amigas.

Para Floflo, uma manta com barra, em patch work' confeccionado por ela própria, e uma colecção de almofadas. Para Marie, uma colcha

' Trabalho executado com a mistura de vários padrões e tecidos (N. do T.

 

branca, perfeitamente esticada. Para Floflo, uma confusão de objectos, de bibelots. Para Marie, sete espigas de trigo atadas com uma fita vermelha, livros. Apollinaire, Les possédés, Les lettres de Noverre, uma fotografia de Marjorie Brooks numa esplendorosa moldura de arabescos e uma outra fotografia, duma mulher nova, de cabelos ao vento, tirada sobre um fundo de paisagem- a mãe.

"E aqui, já nos viste? "

Floflo brandiu uma fotografia debaixo do nariz de Sarah, acompanhando o gesto com os seus inevit áveis comentários.

"Vê como estamos feias! Tínhamos dez anos, acabávamos de entrar no Centro. "

Na foto, duas crianças em tutu - desajeitadas, os joelhos e as pontas mal esticados, os braços mal "colocados" das debutantes. A desgraça dos primeiros passos que a formação vai a pouco e pouco corrigindo.

"Felizmente que viemos cair numa boa escola! Quando se principia mal, nunca mais nos recompomos. "

 

Marie tem razão. As crianças que sonham dançar e os pais que não se opõem aos seus sonhos não se dão conta do que as espera. É mil vezes mais belo e é mil vezes mais dificil do que imaginam. O primeiro professor é determinante, porque, tal como é impossível endireitar uma árvore que não foi bem cuidada, não é possível salvar da mediocridade as alunas mal preparadas. A dança clássica, não sendo natur al, mas sendo, como todas as artes, uma convenção, uma disciplina

 

' Nome dado aos trajos de bullet, em que a saia de organdi émuito curta e rodada e fica aberta por cima das coxas. (N. da T.

 

que exige a escola, o primeiro professor deve colocar a criança. Esta fase inicial é tão delicada como domar e treinar um puro-sangue.

Para formar bem um aluno, é preciso de certo modo deformá-lo, mais exactamente, deformar as suas atitudes naturais. Ora, Noverre anunciou-o - e todos os conhecedores só o podem aprovar-, nada é menos natural para os homens do que a lei vinda de fora. Mas a deformação deve ser, definitivamente, mais bela, mais elegante, do que a forma.

É a observação absoluta da lei que permite o equilíbrio, o voo, o virtuosismo, o á-vontade soberano que faz dos bailarinos - e sem que ninguém se aperceba disso, quer dizer, revelar o esforço- campeões duma espécie superior.

"Com quem é que trabalhaste?

- Com o Sr. Balanchine. "

Por pouco que Florentine e Marie não assobiaram de admiração. Balanchine é uma referência. É o indiscutível, o indiscutido, e o seu New York City Ballet é célebre, e com razão. Sarah prosseguiu com um certo orgulho:

"Em Nova Iorque há muitas escolas de dança. Tradicionais, como a de Balanchine, ou de vanguarda, como a de Cunningham ou de Nikolais. "

Ao nome de Cunningham, Floflo e Marie fizeram uma careta: não gostam dele. Mas Nikolais, formidável! Um verdadeiro inovador, Alwyn Nikolais. Os seus ballets não se assemelham a nenhum outro. Sem proporem quebra-cabeças, exprimem soberbamente a vida das formas: geometria, combinações, móbiles, os movimentos representados são os dos objectos, das coisas, mais do que os dos homens.

" Também trabalhei com Robbins.

- Robbins! Deve ser qualquer coisa! Tens veia!

- E depois fui à escola de Martha Graham. Muito importante, Martha Graham, para a respiração, para o ritmo, para a expressão corporal. Conhecem? "

Mas é preciso acalmar os orgulhos da juventude americana. No Centro, está-se ao corrente de tudo, e Marie responde-Lhe com ardor:

"Sabes, aqui, não estudamos só a dança. Também se estuda a história da dança. Martha Graham não faz mais do que aplicar as teorias de Delsarte. Foi ele o primeiro a pensar na respiração, na expressão rítmica, e as suas teorias revolucionaram a técnica. "

E Floflo, a apoiar:

"Pensa que Madame a conhece, à Martha Graham. Ela conhece tudo. "

Depois, como ache que já falaram o bastante sobre o trabalho, volta às preocupações de outra ordem e dirige-se a Marie:

"Diz-me lá, as coisas correm mal ao Serge?

- Serge? Quem é? - perguntou Sarah.

- Sabes muito bem... o seu apaixonado.

-Aquele que batia no tambor? É divertido! Que é que Lhe corre mal?

- Não sei... Anda esquisito de há uns tempos para cá", responde Marie.

Floflo insiste:

"Ele não anda esquisito, está apaixonado. " Maríe encolhe os ombros: "Não é uma razão! Tu dizes não importa o quê! O que há de certeza é que não foi correcto com o Sr. Andreiev, e logo na véspera do exame. O que não é boa política. "

No que diz respeito ao exame, Florentine faz notar que não é assim tão grave como isso, porque o Sr. Andreiev já se terá ido embora. Ele não faz parte do júri. Não é como Ingrid Keller. Com ela é preciso andar mansamente, porque é ela quem presidirá ao júri.

Marie empalideceu ligeiramente. O seu coração está comprimido. É verdade que, depois daquela representação de Monte Carlo, ainda haverá uma prova. O exame. O exame que pode determinar uma carreira, e com cujo êxito se pode alcançar um contrato numa companhia, na do Béjart, na Ópera, quem sabe? Mas Igor Andreiev terá partido e Marie não quer pensar naquela data.

Há semanas que vive no seu sonho. Depois de amanhã, o pano correrá sobre o espectáculo; como é que ela vai viver sem Igor ali? E ele ir-se-á embora.

Marie não quer submeter os seus sonhos a esta evidência. Na sua idade, nada é impossível. Nada é insuperável, sobretudo a realidade, e os milagres parecem dever fazer parte do quotidiano.

Vindo do pátio, o ruído duma moto levou Floflo á janela. É Serge, evidentemente, que executa para seu prazer algumas evoluções em cima da máquina. Floflo chama Marie:

"Vem ver, Serge faz-te a serenata dos adeuses. Já não está zangado. "

Marie meneia a cabeça e sorri; Serge é uma criança. Sim, tem modos de criança sob os seus ares superiores. Tal como todas as noites, ei lo que dá voltas e reviravoltas. se assim se pode dizer, debaixo das janelas, só para demonstrar com ostentação que se vai embora, quando preferia ficar.

"Ele não é pensionista? - perguntou Sarah.

-É. Mas pode sair todas as noites... até à meia-noite. "

Floflo desata a rir.

" Tem um encontro no Carlton!

- No Carlton! "

Sarah deu um grito. É lá também que se encontrará com os pais. Serge poderia levá-la. Claro, e porque não? Imediatamente Marie se debruça, gesticula, grita:

"Serge, Serge, espera "

Que é que as raparigas querem? Serge põe o motor em surdina e aproxima-se da porta.

Sarah vai deixar o quarto. O quarto que ocupará daí a pouco, depois do familiar adeus, e que vai partilhar durante meses. Virá encontrar as suas colegas adormecidas. Não fará barulho.

 

Mas elas estarão ali. Haverá a sua presença e no dia seguinte retomarão as tagarelices, as confidências virão. Conhecer-se-ão cada vez melhor, amar-se-ão cada vez mais. Sarah travará também conhecimento com todos os outros, os professores, os alunos, os pequenos e os grandes. Será integrada numa existência colectiva - já não estará sozinha, pois viverá com seres que partilham os seus gostos, as suas aspirações, as suas preocupações.

Ao deixar o Centro, pela primeira vez, Sarah assinou o registo onde cada aluno deve anotar a sua saída, o motivo que a justific a e a hora do regresso - e esta assinatura representa para ela a confirmação do pacto, do compromisso.

Marie e Floflo confiaram a novata ao amigo. Antes, tiveram tempo de dizer a Sarah que Serge era um rapaz às direitas. Não era muito sociável, oh, não! mas às direitas. O que na linguagem delas implica numerosos elogios: coragem, talento, lealdade e mérito. Muito mérito.

E, agora, Sarah volta a descer das alturas da cidade; percorre a rue de Antibes, a Croisette, escarranchada, agarrada a Serge, que a acomoda à sua maneira. Uma maneira de travarem conhecimento. Simpática, Sarah Green. Bela rapariga, de acordo, mas simpática acima de tudo. As primeiras palavras trocadas foram das mais simples.

"Vais à cidade? Queres que te leve? " Sarah não se fez rogada e passou a perna por cima da moto.

"iEntão, deixo-te no Carlton? Está mesmo a calhar, também vou para lá. "

Em plena Croisette, o hotel erige-se como uma grande peça de construção. Um palácio da Belle Époque. Fora de moda e sempre na moda. Uma espécie de monumento para testemunhar um estilo de vida. O seu parque de estacionamento, aberto em leque diante da fachada, está pejado de carros de todos os países, de todas as marcas.

Serge deixou Sarah sob o peristilo. Os porteiros, surpreendidos, saúdam a jovem. O motorista avançou.

"O senhor e a senhora esperam a menina no bar. "

Sarah volta-se para o amigo.

"A que horas entras?

- À meia-noite. Queres que te venha buscar?

- Claro. Que é que vais fazer até lá? "

O rapaz desatou a rir. Responde, para troçar de si mesmo:

"Vou ganhar a minha vida, minha querida. No Carlton, de noite, sou limpa-discos.

- Limpa-discos? "

Sarah não compreende.

"Sim, limpo a louça. Senão, como é que poderia pagar o meu curso? Então até já, espero...

- Até já, claro. "

Sarah vê-o partir. Vai contornar o edifício. Como empregado, só tem direito à entrada de serviço. Sim, Sarah vê-o partir, mais admirativa do que se tivesse encontrado um ídolo, mais orgulhosa do que se tivesse vindo na companhia dum rei.

O pessoal observou a cena. Porteiros e porteiras conhecem o jovem limpador da louça. Associam-no a um estudante duma espécie particular, porque estudar para vir a ser bailarino é menos vulgar do que para vir a ser engenheiro ou arquitecto.

Mas estimam-no, e, se alguns o acham um bocado "maluco", é antes um cumprimento para alguém que sai do comum, dotado, em suma, duma loucura lúcida, no género dum feiticeiro ou dum mágico.

 

Para os porteiros engalanados, para os mandaretes de uniforme, aquele rapaz, hippy na maneira descontraída de vestir, inspira não só estima, mas uma certa inveja. Ele tem a coragem de pôr a sua juventude ao serviço duma arte terrivelmente gratuita. Os bailarinos nunca fazem fortuna, como acontece com os cantores ou as vedetas de cinema. Toda a gente o sabe, ninguém enriquece na dança. Então é preciso ser um bocado louco. E Miss Green também devia ser um bocado louca.

Mais uma que quer ser bailarina. É incrível o que a juventude de hoje pode gostar da dança, e não das danças simples, não, não, da dança sábia, que quer pôr a existência e os seus problemas em piruetas, em saltos.

Os porteiros sabem tudo a respeito da clien tela - os que têm importância e os que a não têm. Vida oficial, vida privada, embora não digam nada, os porteiros sabem mais ou menos tudo.

Que Miss Green, riquíssima herdeira americana, fraterniza com o limpador da louça, eis o que os vai divertir, nas cozinhas.

O Sr. e a Sr. Green esperavam Sarah. Os pais tinham um aspecto distinto. Bom estilo, elegante, americanos de classe internacional.

A Sr. Green, deveras chique, cuidada como só as americanas o sabem ser, impecável da cabeça aos pés, um pouco comedida no que respeita a jóias. Em França (e, quer se queira, quer não, era necessário seguir a moda que vinha de Paris!, em França, hoje, era do melhor tom as pessoas cobrirem-se de vidrarias ou de pacotilha, em detrimento do verdadeiro, do precioso.

Sem se submeter a esta moda, que acha absurda e vulgar - qualquer maltrapilho a podia seguir-, a Sr. Green resignara-se a um ou dois anéis, pérolas à volta do pescoço, muitas pérolas, e das verdadeiras, além de soberbos brincos pendentes que brilhavam sob os cabelos.

O casal estava silencioso, habituado ao seu próprio silêncio.

Contudo, à volta deles, o terraço, amplamente aberto sobre o bar, estava ruidoso, animado. Era a hora do aperitivo.

Ao longe, o crepúsculo incendiava a linha do horizonte. A colina do Suquet, o seu campanário, a sua fortaleza, recortavam-se num céu de ouro e de púrpura, assim como a costa, que se encurvava, arrendada, desenhada até aos longínquos contornos onde se perfilava o maciço de Estérel. O azul do mar escurecia-se, a água-marinha transformava-se em safira. Os últimos barcos de recreio regressavam das ilhas de Ouro, enquanto os pescadores se preparavam para alcançar o largo.

O Sr. Green percorrera rapidamente os jornais, Financial Time e Tribune de Genève. Apenas para dar uma olhadela profissional às rubricas de Wall Street ou do Stock Exchange. Depois do que sua mulher lhe dirigira um olhar ofendido, e, como homem bem-educado bem domesticado, teria pensado Sarah), dobrara os diários por detrás dos quais teria preferido concentrar-se.

Que leia em casa, ainda vá! Há muito que os Green já não tinham grande coisa a dizer um ao outro, mas em público, em companhia da esposa, não podia ser. Como autêntica americana, a Sr. a Green tinha princípios, e ali estavam eles, os dois, bebendo aperitivos e contemplando, sem darem por ele, o bom tempo.

 

A despeito da maquilhagem, o bonito rosto da Sr. Green alterou-se, mas retomou imediatamente a serenidade que devia apagar todo e qualquer traço de emoção ou de rugas. Acabava de reparar na filha, que circulava entre as mesas, com um vestido e botas evocando simultaneamente o Far West e os Romanos.

Nunca a Sr. a Green poderia admitir aqueles disfarces, aquelas roupas ordinárias. Mas que podia ela admitir numa criança que não se parecia-com ninguém? De que a existência era uma espécie de desafio, a negação obstinada dos valores e das convenções, tal como lhas tinham inculc ado?

Sarah vira os pais. Avançava desenvolta, sem se preocupar com o aspecto que podia ter, sobretudo ali, de insólito e de provocante. Meu Deus! Onde estava a rapariguinha que a Sr. Green desejava? Organdi e capelina, obediência e luvas brancas, menina em flor! A Sr. Green confundia a maneira de vestir com o coração.

A jovem que se instalava à mesa deles tinha algo de diferente. O olhar claro, sublinhado de negro, deixava transparecer uma alegria que não lhe era habitual. Parecia feliz. Inútil perguntar-lhe se estava contente: resplandecia. Os seus movimentos tinham a vivacidade e a fantasia duma poldra posta em liberdade.

Tinham bastado umas horas. O pequeno rosto teimoso, sempre fechado, que traía uma vontade estranha à lei familiar, estava aberto. Os reflexos do riso animavam-no, e os Green olhavam a filha com surpresa, como uma desconhecida que acabavam de descobrir.

E ela falava, uma tagarelice desordenada, dirigida tanto a si mesma como aos que a ouviam. No momento de se separarem, pela primeira vez, Sarah confiava-se, libertava-se. O pai compreendia e sentia-se orgulhoso, enquanto a Sr. Green, mais do que nunca, pensava: "Não compreendo", afastando para longe, de uma vez por todas, o que não tinha vontade de compreender.

A Sr. a Green era bonita, loucamente coquete. Oh! as horas passadas nos institutos de beleza! As provas. As últimas modas. A sua linha, a sua pele, os seus cabelos. Cega para tudo o que não fosse ela, tendo o gosto do dinheiro como se ele lhe fosse devido. Havia momentos em que Sarah a detestava, outros em que Lhe fazia pena como se tem pena dum enfermo.

Desde a sua mais tenra infância, Sarah repudiava a mãe, ou, antes, o que esta bonita mulher encarnava com graça. A futilidade, o egoísmo, o desejo de agradar no seu sentido mais superficial. Não, a Sr. Green nunca compreendera a filha e, na altura de se separarem, nem por isso tentava compreendê-la melhor, porque aquela filha nada tinha de comum consigo.

Esta paixão de viver que se revelava surpreendia-a sem a emocionar, e, enquanto falava, Sarah apercebia-se daquela indiferença, que já não a feria. Ela falava para si, para o pai, cujos olhos, claros como os seus, pareciam mais vivos do que de costume.

Sarah descrevia o Centro, descrevia as raparigas que seriam suas amigas. Suas amigas. O quarto delas. E Serge: um irmão. Alguém com quem se identificava. Vindos direitinhos um ao encontro do outro, por caminhos diferentes.

 

Para ela, as facilidades da fortuna; para ele, as dificuldades duma família modesta. Mas ambos fugidos, saídos de caminhos batidos, com vontades intactas, o gosto de viver a própria vida e não a que o meio muitas vezes impõe.

Sarah falava do jovem bailarino como se dela se tratasse. Forçar o destino, pôr tudo em causa, correr riscos, ter coragem, coragem, coragem. Contudo, guardava como um segredo aquele sentimento excessivo que Serge, segundo Floflo, sentia por Marie - e que a fazia sonhar. Crianças que se amam, crianças que só têm necessidade delas próprias.

O pai ouvia o que ela dizia e adivinhava o que ela silenciava. E compreendia. Amava-a muito. Se tivesse estado menos ocupado, se tivesse tido temp o para viver!

Ora! o business invadia toda a sua existência. Como uma droga. Até o cruzeiro projectado, e para o qual embarcava no dia seguinte, tinha um fim utilitário: relações a cultivar, e sobre o belo horizonte das ilhas gregas planava a combinação dum negócio.

Mas, tal como ele era, Sarah amava-o muito. Um campeão. Partido do nada, fizera-se a si mesmo. Um autêntico self-made, o que na América é um título de nobreza - da raça dos pioneiros.

Sarah parecia-se com ele e não procurava negar aquela semelhança.

Ao passo que a mãe! Não, sobretudo não, nunca se tornar uma mulher como ela, privilegiada logo à nascença -uma rica família de Chicago- e desfrutando dos seus privilégios como se a sociedade lhos devesse. Não ser a imagem daquela mulher mimada, muito preocupada consigo mesma, bronzeada durante todo o ano - que se vestia em Paris e se calçava em Florença. Apta também a vigiar os movimentos de Wall Street e a cotação dos quadros.

Havia belas telas, móveis assinados vindos de França no apartamento da Quinta Avenida, aquele apartamento onde uma rapariguita se atolava em tédio.

As crianças do seu meio, pequenos macacos a imitarem os adultos, fugira deles quando não tinha vontade de lhes bater. E as recepções dadas pela mãe, onde a society se orgulhava de ser recebida!

Por isso a criança fora excluída, esquecida, negligenciada, em favor dos preparativos de festas que a Sr. a Green organizava, tendo apenas em mente o êxito e os concertos de elogios que registaria, tanto por ela como pelos seus convidados prestigiosos. Ajaezados, falando alto, bebendo, em resumo.

E depois, uma noite, por causa destas barafundas, o providencial encontro. Marjorie Brooks. Para Sarah, a centelha, o deslumbramento.

Na véspera, a governanta levara-a à Ópera e ela vira dançar a estrela. A revelação do movimento, do ritmo, duma maneira de estar que não se parecia com qualquer outra.

Sarah tinha dez anos e, perante o palco iluminado, encontrara a sua razão de viver. Por isso, quando soubera que Marjorie Brooks seria a convidada de honra da festa que os pais iam dar, pedira para ver a estrela, sim, vê-la de perto, olhá-la nos olhos. Era fácil de satisfazer por alguns minutos aquela criança que não pedia mais nada e a quemjulgavam dar tudo. Foi assim que a mãe se dignara levar Marjorie Brooks atéjunto da pequena admiradora.

 

Oh! a entrada de sua mãe precedendo a estrela no seu quarto... A primeira soberbamente elegante, coberta de diamantes, apressada. A segunda, frágil, o rosto lavado, calmo, não tendo aparentemente nada de comum com aquela que provocava o entusiasmo dos espectadores.

"Deixo-vos", dissera a Sr. a Green voltando para junto dos seus convidados.

Para ela, não passava duma criancice aquele encontro a sós entre a estrela e a filha. Uma condescendência da sua convidada de marca para com a criança da casa.

Marjorie aproximara-se de Sarah, sentara- se ao seu lado como se lhe fosse dedicar todo o seu tempo. Nenhuma pressa. Ela tranquilizava tanto quanto se adivinhava o domínio que tinha de si própria. A governanta fora afastada.

-Também queres dançar?

- Sim.

- É muito difícil, sabes?

-Gostava de ir consigo. Com o seu grupo.

-Mas tu és demasiado pequena. E depois é preciso trabalhar, trabalhar muito, antes de ser admitida. "

Marjorie ria, um riso doce e feliz. Tinha um olhar de adolescente que contrastava com a energia do seu rosto... Falava, explicava, aconselhava. E Sarah empenhara-se em ouvi-la, não apenas naquela altura, mas no futuro. Aprenderia, trabalharia, para ir um dia ter com ela. Para viver como ela. Como ela...

De qualquer maneira, desordenadamente, Sarah contava. A sua memória transbordava e era como se definisse aos responsáveis pela sua existência as linhas essenciais que traçava para si mesma, para a vida.

Tinham deixado o bar. O terraço esvaziara-se. Caíra a noite. O jantar? Que importava... Onde os pais quisessem.

Tinham escolhido o Félix. A Sr. a Green gostava daquele restaurante, que é em Cannes o que o Lip é em aris, ou o Sardis em Nova Iorque. Era de bom tom mostrar-se ali, ter ali um acolhimento familiar, de apertar a mão ao dono, de conversar com os chefes de mesa. E, depois, era divertido. Caras conhecidas, celebridades. As mesas a transbordarem para o largo passeio e a Croisette desfilando com os seus passeantes, os seus curiosos, os seus cachos de raparigas desenvoltas, os seus rapazes equívocos, os seus músicos fazendo serenatas forçadas viola ou flauta indiana) aos clientes first class .

Os mexilhões à marinheira, o linguado grelhado, Sarah devorava-os com animação, e uma vez sem exemplo bebia vinho rosé. Era bem melhor do que o sempre eterno champanhe dos dias de festa.

Para além da presença dos pais -eles estavam ali só como sombras, fantasmas-, ela evocava a sarabanda de todos os rostos entrevistos no Centro.

Madame, o seu ídolo enfim reencontrado, com quem ia viver, como se prometera a si mesma. E todos os temas de Madame-os que a rodeavam, o seu meio, a sua tribo. E, na tribo, Serge e Marie.

 

Aqueles dois, Sarah amara-os desde o primeiro instante. Seriam seus amigos. Floflo também, claro, mas Marie era outra coisa. Era preciso fazer-se amar por Marie. Ingenuamente, francamente, Sarah distribuía o seu coração, num único bloco, num irreprimível desejo de amor. Do amor que a sua infância fora roubada, porque os sentimentos da mãe a seu respeito apenas representavam uma convenção, obrigação, e não necessidade, uma exigência.

Diante da filha que se revelava no momento de os deixar, os pais experimentavam uma espécie de mal-estar. As suas convicções foram abaladas, os seus direitos seriam os mais justos?

Deste confronto, o Sr. Green obtinha algum orgulho. A vontade da filha reflectia a sua, mesmo exercendo-se numa direcção oposta. Ele quisera o êxito, ela queria a felicidade.

Quanto à Sr. a Green, pensava que a separação a ia aliviar. Erguida diante de si, Sarah, combativa, animada, anunciando as suas cores e a sua escolha, que aos olhos maternos revelavam desafio, parecia-se com um juiz.

À meia-noite, reencontrou-se com Serge, que, como prometido, a conduziria ao Centro. Apresentou-o aos pais. Hirsuto, usando com classe os seus ouropéis folclóricos, o jovem inclinou-se e beijou a mão que a Sr. a Green lhe estendia. O "limpador de louça" tinha maneiras e a mãe de Sarah pensou que a dança era bom se também desse noções de comportamento em público. Mas o olhar do jovem, vivo e malicioso, nada tinha de comum com o olhar dos homens do mundo.

Sarah trepou para a moto e os jovens pareceram levantar voo na noite. Sarah não se virou para trás. O vento puxava-lhe os cabelos. A moto era simbólica- a evasão, a liberdade.

O Sr. e a Sr. a Green seguiram-lhe o rasto, depressa perdido na perspectiva da margem. Tal como não souberam falar com a filha, também não sabiam falar entre si. O diálogo. Lado a lado quase há vinte anos, cada um só falava para si. O deserto. A solidão a dois. Houvera a juventude, um luar de amor, aquilo a que se convencionou chamar um bom casamento. Uma certa forma de entendimento, de associação. O jovem de sorte e a rica herdeira.

Todas as esperanças permitidas, excepto as duma felicidade que nem sequer procuraram.

No Centro.

O silêncio, o contraste com o bulício do dia. No estreito vestíbulo onde apenas brilha uma lâmpada, o registo está aberto. Serge assinou a sua hora de entrada. Sarah também, a seu lado.

No piso dos quartos, separaram-se, mas, antes, ainda algumas palavras em voz baixa. Serge reteve Sarah um instante. Uma rapariga fixe... Merece atenção.

"Se bem entendo, de certo modo, cortaste as amarras. "

Sarah sibilou: "É isso. Cortei as amarras. Tu também? "

Serge abanou a cabeça: "Não, comigo não é a mesma coisa. Os meus pais não têm massas. Meu pai é mecânico, um excelente mecânico. Estás a ver a diferença? Mas eles foram porreiros. Desde que eu trabalhasse, deixaram-me perfeitamente à vontade. Sem preconceitos. Obtive uma bolsa e Madame foi formidável. Deu confiança aos meus pais. Se eu triunfar, eles ficarão felizes e eu gostaria de os ajudar, nunca os abandonar. Eles são porreiros, compreendem. Não, não cortei as amarras, mas não serei mecânico. É tudo.

Numa espontaneidade recíproca, beijaram- se como irmão e irmã. E boa noite.

O quarto. As raparigas dormem. A janela está aberta sobre a noite, que se apresenta doce e fresca. Sarah despe-se sem fazer ruído, desliza pela cama sem suspeitar que Marie, imersa no escuro, conserva os olhos abertos. Impossível conciliar o sono. Marie ouviu a moto, o regresso de Serge e da novata. Adivinhou o conciliábulo entre eles à entrada, mas não se mexeu.

Marie não quer falar. Que nada a incomode, porque de noite quer divagar à sua vontade. Prosseguir a história que inventa todos os dias. Uma história sempre recomeçada, sempre embelecida, cheia de maravilhas. Já não é uma adolescente. Dança melhor do que alguém jamais o fez. As multidões aclamam-na e Igor, o Magnífico, não quer ficar sem ela.

 

O ENSAIO GERAL

Em frente ao mar, erigido sobre a costa rochosa, pousado sobre os terraços, emergindo da verdura do parque que o circunda, o teatro de Monte Carlo representa só por si uma fabulosa ópera.

A decoração, o sítio, o enquadramento, têm talvez mais importância do que o que ali se representa, porque o conjunto tomou, com o tempo, valor de símbolo. Sim, esta ópera, que sustém nos seus encraves o casino, boites nocturnas e salas de jogo, é ao mesmo tempo monumento histórico, museu, postal ilustrado, testemunho. É um modelo, um exemplo- qualquer coisa que nunca mais se voltará a fazer, mas que deve ter sido feita.

É certo que é apenas uma miniatura da Ópera de Paris. Para Monte Carlo, Charles Garnier, o arquitecto, não fez mais do que reconstruir a sua obra-prima com outras medidas. Mas o que perdeu em tamanho ganhou em preciosidade e é o símbolo dum local que fez nascer uma mitologia onde as divindades são o jogo, o prazer, as distracções.

Nascidas duma época passada, ultrapassada, as divindades continuam a reinar. Adaptaram-se, seguiram a moda, mas o seu templo permanece.

Anacrónica, barroca, kitsch, perante a paisagem eterna, volta as costas ao que o rodeia, à vida, à cidade, tomada de febre, tomada, poder-se-ia dizer, da loucura das alturas.

Encerrado no seu promontório, o principado, tal como uma cidadela, domina a cidade. Mónaco, imutável, deixa crescer Monte Carlo como uma formidável proliferação. A cidade cresce, alarga-se para o mar, agarra-se aos picos e, não podendo estender-se, lança- se ao assalto do céu com os seus edifícios dignos do Novo Mundo.

Toda a paisagem se transforma, eriçada de gruas gigantescas, de estaleiros verticais. A montanha sofre a escalada e, nas suas rochas selvagens, uma larga ferida abre a via da auto-estrada futura.

A cidadela do prazer tornou-se mais do que nunca a do dinheiro. Os tecnocratas substituíram os aristocratas.

Encontro em Monte Carlo! Uma palavra de ordem para os negócios e, acessoriamente, para os jogos e para a arte. Aqui, a Ópera está bem protegida. A Ópera está salva.

E é ali, nessa Ópera, que Géraldine Dupuy prossegue a sua entrevista. O retrato dum bailarino que ela iniciou há alguns dias.

O seu trabalho de repórter não implica de facto nenhuma criação. É antes uma espécie de caça. Estar à espreita, aguardar a ocasião. A caneta ou a câmara lá estão para captar. Na massa dos documentos registados, apenas se tratará, na montagem, de extrair a palavra rara, o gesto insólito, a reacção reveladora.

É o princípio número um das emissões televisivas, quer sejam baptizadas de retratos ou de entrevistas, quer sejam a propósito dum homem ou do universo. Uma espécie de cinema-verdade, de jornalismo posto em imagens. O êxito depende apenas do assunto escolhido.

Com Igor Andreiev, Géraldine teve sorte. Um personagem célebre, favorito do público e da imprensa. Um personagem espectacular, capaz de se exprimir não só pela palavra, como ainda, e melhor, pelo gesto.

Um personagem em que os que o rodeiam são pintores, músicos, poetas. Outros tantos testemunhos para recolher, documentos sonoros ou visuais a inserir no dossier.

E ao lado de Igor Andreiev, hoje, Ingrid Keller.

Ingrid Keller: prima ballerina absoluta. A igual das Plissetskaia, das Fonteyn, das Alonso, das Chauviré. Uma das primeiras figuras da dança contemporânea. Chegara na véspera à noite a Monte Carlo.

Ao contrário das estrelas de cinema, cuja existência tem tendência para se transformar em publicidade permanente, as élites da dança parecem desprezar esses meios de dar de falar de si. No quotidiano, podem passar despercebidas, procurando apenas brilhar na hora em que o pano se ergue, a hora da verdade.

Seguido por Géraldine, para quem todos os pretextos são bons para não largar o seu tema, Igor espera Ingrid. O casal que formam faz sensação. Um e outro completam-se na perfeição.

Tal como Igor, Ingrid está no apogeu da sua carreira. A sua estonteante técnica não a impede de ser da raça das bailarinas inspiradas. As que fazem prevalecer a poesia, o lirismo, a metafísica. As que não se limitam apenas a dançar o seu papel, mas que o fazem viver, que o animam no pleno sentido da palavra.

Keller é da grande linhagem saída do romantismo, a dos Taglioni, dos Grisi, isto é: a Sfide, Gisela. A apoteose do ballet branco e a sua insuperável beleza.

Quais são as relações entre Ingrid e Igor? Para além da profissão, Géraldine procura o rasto dos sentimentos. São indefiníveis.

 

Estrelas da sua têmpera nunca experimentam sentimentos comparáveis aos dos comuns dos mortais. A paixão dum ofício, os esforços e as inquietações partilhadas, os triunfos também, claro, e a intimidade que o treino implica, a exaltação que o êxito duplica, as viagens juntos, as digressões, ou, como hoje, os encontros nos quatro cantos do mundo. Maravilhosos nómadas, uma existência dispersa, mas em todos os sítios, sempre idênticos, eles vivem uma vida que lhes é própria e de que uma mulher como Géraldine está excluída, quaisquer que sejam os seus conhecimentos e a sua compreensão.

Aqui hoje, amanhã algures. Por agora, encontraram-se; a jornalista tem de aproveitar o facto. Mas Géraldine, diante da bailarina, não experimenta os mesmos sentimentos do que diante do bailarino.

Se tem vontade de glorificar Igor, não tem vontade nenhuma de glorificar a sua parceira, a sua igual. Instinto feminino que nada justifica, porque não está apaixonada por Igor. Admira-o, e esta admiração bem explorada ser-lhe-á favorável.

No que diz respeito a Ingrid, apenas experimenta sentimentos vagos, uma tendência mais crítica do que admirativa. De facto, sem o confessar a si própria, inveja-a. Ingrid não representa o sonho impossível? O que Géraldine

não conseguiu realizar e que a outra, soberba mente, realizou.

Para as necessidades da sua entrevista, arrastou o casal pelos labirintos do teatro.

Agora estão sobre os telhados, por onde circulam, onde param, obedecendo ao operador de câmara e a Géraldine, que procuram os ângulos de tomadas de vistas mais insólitos, misturando a pureza duma paisagem com os elementos barrocos da arquitectura.

Como é que os bailarinos podiam ficar insensíveis à natureza que os rodeia e que está em absoluta oposição com o teatro? O céu azul, o mar brilhante, o ar...

O ar, sobretudo, que respiram como se se dessedentassem numa nascente. Mas o seu elemento natural está de certo modo fora da natureza. Está ali, nas profundezas do edifício, em cena e sobre o palco rugoso, sob o céu das gambiarras e dos cimbres.

Géraldine entabulou com Ingrid um diálogo que é antes um questionário. A estrela responde de boa vontade.

Sim, chegou de Estocolmo, onde fez três espectáculos com O Lago dos Cisnes, mas pertence ao Royal Ballet de Copenhaga, uma das companhias que mantêm no mais alto grau as tradições clássicas.

"Mademoiselle Keller, não é a primeira vez que vem a França: As suas impressões do regresso?

-Dá-las-ei depois do espectáculo. O que lhe posso dizer, desde já, é que fico sempre feliz de voltar ao vosso belo país. Para os bailarinos, a França é uma outra pátria, porque foi em França que nasceu a dança clássica.

-Você veio para a noite de gala que se verificará amanhã aqui, com Igor Andreiev.

-Para a noite de gala, sim. Vamos apresentar um espectáculo que já demos em Londres e em Nova Iorque. Mas depois vou ficar em Cannes durante três semanas.

- Férias?

-Nunca. Marjorie Brooks convidou-me para fazer um estágio na sua escola na qualidade de professora.

- Gosta de ensinar?

- Esse é um outro aspecto da dança para o qual todo o bailarino se deve preparar."

Géraldine captou o pensamento da estrela e evita sublinhá-lo.

 

Aquela esplendorosa mulher, no apogeu duma carreira excepcional, pensa já no crepúsculo. Dolorosos amores, os da dança. Sempre a noção do tempo contado, a brevidade, a impressão de dever parar em plena forma, em plena juventude.

Aos trinta e cinco anos, a bela idade, Ingrid não se pode impedir de olhar o futuro. Um futuro já próximo que a obrigará a apagar-se e em que a cena já não será o seu paraíso, o seu "céu imaginário" descrito por um poeta.

Géraldine pergunta:

"Conhece os alunos a quem vai prodigar as suas lições?

- Ainda não.

- Sabe que foi entre eles que Igor escolheu... o seu par?

- Forçosamente, visto que em Galateia necessitamos duma criança.

-Creio que, aqui, Igor foi feliz na escolha. Olhe. "

Com um sorriso malicioso, Géraldine estendeu o jornal, que desde a manhã traz intencionalmente na sua maleta. Igor aproximou-se de Ingrid, que abre o jornal e tem dificuldade em dissimular um acesso de despeito. Mas, em poucos segundos, a estrela domina-se-sorri como se nada tivesse acontecido.

Contudo, na primeira página dum importante diário da manhã destaca-se uma foto, acompanhada da legenda: "Igor Andreiev descobre uma futura estrela. " E reconhece-se Marie ao lado do bailarino, que a sustém num equilíbrio encantador.

Como se não tivesse percebido, Géraldine olha o jornal que Ingrid lhe devolveu. Dirige-se a Igor:

"Estás contente? Está bem anunciado, não está? Pensei que era preciso fazer qualquer coisa pela pequena. Falaste-me dela com tanto entusiasmo! "

Igor está furioso, como se Géraldine lhe tivesse pregado uma partida, e sente-se incomodado relativamente à sua companheira.

Deste modo, a publicidade do espectáculo é feita sobre ele, claro, mas também sobre uma desconhecida, uma rapariguita anunciada como uma revelação sem nunca ter sido posta à prova. Géraldine podia ter esperado pela representação se se sentisse com uma veia bondosa em relação à pequena. Esperar o julgamento do público para falar dela e anunciar Ingrid Keller com as honras que lhe são devidas. Ele pensara, até então, que Géraldine era uma mulher às direitas, uma camarada com quem não haveria complicações. Hoje, considera a "camarada" sob outro aspecto. A "camarada" é uma bela mulher, que deve estar habituada a agradar, o que Igor tem demasiada tendência para esquecer. Este género de esquecimento, o instinto feminino, o original coquetismo, não o podem perdoar. E, duma maneira ou doutra, uma mulher gosta de demonstrar os seus poderes. Agradar é uma espécie de competição, de desporto. Agradar um pouco mais do que a outra - do que as outras.

Porque é que Géraldine haveria de saber perder? E porque é que não procuraria desempenhar um papel, mesmo não sendo de primeiro plano?

Quanto a Ingrid, disfarçou o seu descontentamento. Já tinha passado por outras situações. Os ciúmes, as cascas de bananas- sabia o que isso era. Uma grande carreira não afasta nem as mesquinhices, nem as traições. O incidente não é grave. Não terá qualquer repercussão. É uma esfoladela.

 

Com graça, a estrela interrompeu a entrevista. O tempo passa. Ela tem a sua lição, haverá o ensaio. Que M" Dupuy espere, se quiser prosseguir a reportagem com ela, e Igor aprova: basta de palavras. É preciso ir trabalhar.

Ingrid quase que corre pelos telhados, em direcção à porta estreita que dá acesso aos fundos do teatro. Lá vai reencontrar a confusão, o cheiro a pó, a promessa da noite iluminada. O seu clima.

No Centro, a fotografia de Marie na primeira página do jornal tem o efeito dum golpe de teatro.

Ela foi designada para desempenhar o papel principal e, a despeito das invejas que esta escolha fez nascer, pareceu normal. Na Escola trabalha-se, e que os melhores vençam. É o jogo, está correcto. Ora Marie está entre as melhores, ninguém o contesta.

Mas, em contrapartida, a publicidade, o vedetismo, não estão nos primeiros planos das preocupações dos bailarinos. O mundo da dança, mais puro, tem tendência para desprezar o frenesim, o arrivismo, que agitam até aos limites máximos da decência os meios do cinema, por exemplo, ou da canção.

Praticamente, não existe falsa glória na dança. Ali, o talento não é um efeito do acaso. Que uma aluna seja projectada daquele modo sob o fogo da actualidade, eis o que vai provocar na colectividade diversos movimentos, e esta publicidade intempestiva pode perturbar os espíritos.

A secretária recortou a fotografia e afixou-a no vestíbulo, tal como faz diariamente em relação a todas as informações que dizem respeito à Escola.

Marie foi informada, arrastada. "Vem, vem ver. Estás na primeira página, como a Brigitte Bardot. "

Diante da sua imagem, o seu nome associado ao de Andreiev, Marie teve uma tontura, uma mistura de felicidade e de receio. Não é demasiada honra? Que vão pensar os camaradas, os professores? Que vai pensar Madame?

Madame está furiosa, e a direcção partilha da sua fúria.

A publicidade feita a Marie é excessiva e sobretudo prematura, deslocada.

Mais grave ainda, ofende Ingrid Keller. É verdade que o prestígio desta nada pode ser abalado com aquilo, mas é desagradável para o seu amor-próprio e pode ficar de mau humor. De craveira igual à de Igor em relação à celebridade, também é a sua parceira de eleição. O par é célebre.

Quando se apresenta a ocasião de os poder admirar juntos, é sempre, tanto para a imprensa como para o público, uma onda de curiosidade que precede o concerto dos elogios. O artigo de Géraldine dando a posição de vedeta a uma rapariguita desconhecida é uma nota discordante na orquestração habitual.

Sim, Madame está contrariada, tanto mais que o comportamento de Marie lhe dá razões para se inquietar, porque a jovem bailarina se deixa visivelmente levar por sentimentos que não são apenas profissionais.

Aquela fotografia, aquele artigo, não poderão agravar a sua exaltação? Já um jornal da tarde telefonou para o Centro mostrando interesse em fazer "qualquer coisa" sobre Marie. Suzanne Leroy recusou, entrincheirando-se atrás da lei que quer preservar a juventude de toda e qualquer exploração.

Mais do que de costume, naquela manhã, o Centro está efervescente.

 

Há a proximidade do espectáculo de gala, na noite seguinte, e, para o conjunto da Escola, a preparação do exame, que continua a ser o principal acontecimento do ano.

Aparentemente, Marie contrai-se. Alguns camaradas felicitam-na, outros invejam-na, outros gozam-na. Quanto a Serge, não disse nada.

Naquela manhã, aos alunos da classe superior, raparigas e rapazes, é Madame quem dá a lição. A barra, o adágio, os exercícios de base, voltas e bateria e, para concluir, um ensaio da variação do exame.

Pela primeira vez, Sarah tomou lugar entre os alunos. Marie e Florentine indicaram-lhe o essencial, a barra sobretudo, tal como lhes é imposta. Para a dança clássica, a barra é de certo modo ritual, indispensável, insubstituível. O trabalho que ali se faz é capital, todos os coreógrafos, tradicionais ou inovadores, estão de acordo sobre esta necessidade.

Madame, hoje, interessa-se particularmente pela novata.

Não se esqueceu da criança encontrada uma noite em Nova Iorque. A criança que não exprimia o capricho duma menina mimada, mas um desejo profundo: entregar-se, devotar-se à dança, e reencontrar a estrela que lhe tinha indicado o caminho.

O que a pequena ignorava é que tinha visto a estrela brilhar nas suas últimas luzes, porque aquelas representações dadas com brilho no Lincoln Center, que é em Nova Iorque o que a Ópera é em Paris, tinham sido as do adeus. O adeus da cena, mas não da dança, e naquele dia Sarah podia reencontrá-la e prosseguir o seu sonho.

Ladeada por Marie e Floflo, Sarah segue a aula. Estão com os olhos nela. Esta primeira lição é uma prova, um exame de entrada. Sarah passa-o com brio. A jovem americana esteve na boa escola. Trabalhou não como amadora, mas como profissional. É uma excelente recruta, cuja presença só pode alimentar e fustigar o espírito de emulação geral.

Durante a lição, Madame incluiu um ensaio do exame. Era evidente que Sarah não poderia participar naquele ano. Para si, a lição acabou. Está a transpirar.

"Vem aqui e cobre-te", disse Madame.

"Vem aqui quer dizer, para junto dela. "Cobre-te: quer dizer que Madame vai cuidar da jovem, que a vai vigiar.

Pequenas frases mais ricas de ressonâncias do que discursos. Testemunhos de atenção, de afeição. Sarah não pede mais para se sentir integrada na Escola, adoptada por Madame.

Obedecendo, cobrindo-se com um abafo de lã, instalou-se, as costas contra o espelho, sentada não muito longe da professora.

As alunas desfilam. Uma por uma, repetem a mesma variação orientada para lhes permitir demonstrar a sua técnica e as suas possibilidades.

Como que erguida no ar por uma chama interior, Marie dançou na perfeição. Passou as suas voltas, manteve os seus equilibrios, superou com grande margem os seus saltos. Mais do que nunca, a classe olhava-a com atenção. É como

que uma libertação à qual ninguém pode ficar indiferente.

 

Terminada a sua variação, depois de ter executado a reverência de uso, ajovem ergue os olhos para Madame para pedir a sua aprovação, mas voluntariamente, a professora permanece impenetrável. De facto, gostaria de beijar aquela adolescente verdadeiramente adorável, aquela aluna que ela forma há cinco anos e que se revela duma maneira indiscutível.

Mas está fora de questão entregar-se a cúmprimentos, a efusões. Em nenhum caso deixar transparecer o entusiasmo, o coração. Nenhum tratamento de excepção deve favorecer Marie.

Por enquanto, já há demasiadas coisas que a distinguem. A sua personalidade, o papel que vai desempenhar, e aquela publicidade perigosa que faz dela um alvo. Marie é uma maravilhosa promessa, mas é preciso esperar e mesmo preparar a confirmação.

Silêncio absoluto na aula. Se bem que tenha sido ela a guiar, a explicar, a aconselhar, Madame parece agora não saber o que dizer à jovem ofegante que permanece diante de si e cujo rosto, depois de ter exprimido a alegria de ter triunfado, exprime a surpresa e depois a inquietação - uma inquietação inexplicável. Então Madame decide-se.

Diz apenas:

"Não esteve mal. "

Não esteve mal! Toda a aula traduziu "muito bem". Mas a alegria de Marie morreu, enquanto as lágrimas lhe queimam os olhos. Lágrimas que tem de dominar. A reserva de Madame dissimula qualquer coisa: um perigo, um aviso.

Enquanto os outros alunos ensaiam, ela foi-se apoiar na barra, e as aprovações que algumas companheiras lhe prodigam por mímica, piscadelas de olho, não apagam a sua decepção. Retoma fôlego. Serge aproximou-se. Fala muito baixinho - mas mesmo assim fala:

"Se dançares assim no exame, serás imediatamente contratada como primeira-bailarina.

-Madame não parece estar contente.

- Está-o e bem... Queres que te beije no meio da aula? "

Oh! Serge. O melhor rapaz do mundo, o melhor dos amigos. O mais imprevisível com o seu maldito carácter, as suas ideias que gostariam de tudo quebrar. Uma vez mais, ei-lo que procura tranquilizar Marie, encorajá- la... E, no entanto, Marie tem demasiada tendência para o negligenciar desde que.

Desde que Igor Andreiev reina no Centro. Desde que a adolescente sente a sua presença como um encantamento e que os sentimentos experimentados por ele surgem agora de menor importância, como que infantis. Apenas a paixão e o respeito sentidos por Madame permanecem em primeiro plano. Ela confunde-os com os que sente por Andreiev, quando são dissociáveis, porque, sem que ela se dê conta disso, eles substituem o homem pelo bailarino no seu coração ignorante.

"Muito obrigada, meninas; obrigada, senhores. " É o fim da lição; os alunos aplaudem, Madame retém-nos.

 

"Que cada um de vocês pense nas minhas observações. Dentro de alguns dias será o exame e nesse dia nada mais poderei fazer por vocês. Para muitos de vocês, esta prova pode ser decisiva. Este ano, ireis comparecer perante um júri magnífico, mas particularmente severo. É Me Keller quem o presidirá. Além disso, o seu estágio começará no Centro a partir do dia a seguir ao do espectáculo de gala de Monte Carlo. O que quer dizer depois de amanhã. É ela quem tomará o meu lugar. Procurai honrar-me. "

No intercomunicador, a voz de Suzanne Leroy ressoa: "Bailarinos de Galateia, atenção. Partida para Monte Carlo às treze horas e trinta. Não esqueçam a maquilhagem, nem os sapatos, para o ensaio geral. Bailarinos de Galateia, atenção. No quarto, Florentine e Marie mudam de roupa para se prepararem para a partida. Sarah gostaria de fazer parte da festa, assistir ao espectáculo de gala, cuja perspectiva põe a Escola emocionada.

Durante a lição, pôde apreciar o trabalho das suas companheiras. Indiscutivelmente, Marie ultrapassa a maioria dos alunos, não apenas pela sua técnica, mas ainda mais pelos seus dons dramáticos, pela sua sensibilidade e pelo seu físico encantador.

Era normal que Igor Andreiev a tivesse preferido. Mas, ao adjuntar-lhe Florentine como dupla, o mestre provou o seu faro e a segurança do seu julgamento.

Contudo, inseparáveis na vida, Floflo e Marie são profundamente diferentes.

É verdade que partilham segredos e risos loucos. Para elas, é o tempo das grandes esperanças. Mas Florentine não tem complexos, nem problemas. A sua vida de família, simples e feliz, confere-lhe um equilíbrio, uma saúde do corpo e também do espírito. Bonita, de aparência mais redonda, mais infantil do que Marie, é uma excelente bailarina, cuja técnica já é notável. Sarah sente-se orgulhosa por ter simpatizado logo de entrada com aquelas duas. Partilhar o quarto delas é um pouco partilhar as suas vidas.

Hoje, depois desta primeira lição de dança clássica, Sarah tomará contacto com toda a Escola. Ela tomou nota das suas aulas, mas amanhã terá direito a acompanhar o Centro para assistir ao espectáculo de gala da Ópera de Monte Carlo. E a jovem, habituada a ocupar os melhores lugares, satisfaz-se por seguir o espectáculo, como todos os alunos do Centro, do alto do último balcão, o galinheiro, segundo uns, o paraíso, segundo outros.

Marie recortou a fotografia do jornal-pousou-a em cima da mesinha-de-cabeceira. Sarah disse-lhe:

"Dançar com Andreiev! Deves estar contente!

- É formidável! Mas é ainda mais do que isso! "i Floflo e Sarah trocam um sorriso: Marie tem dificuldade em dominar a sua exaltação. Floflo explica à novata:

"Terás de te habituar... Com Marie, é sempre outra coisa, é sempre mais.

- Tens medo?

- Claro.

-Não tens necessidade de ter medo. Danças muito bem. Desejo-te good-luck. "

Marie deu trés pancadinhas na madeira. Tudo era bom para esconjurar a má sorte: nunca se sabia. Florentine desata a rir, fazendo o mesmo gesto.

 

"Se toco na madeira, é por Marie, porque, por mim, não tenho de que ter medo. "

Marie ergue para a amiga um olhar de gazela assustada:

"Nunca se sabe! O que me está a acontecer é tão bom!

- Que é que isso tem de bom? É justo, é tudo. Tu és a melhor, não é verdade, Sarah? "

Sarah aquiesce.

"Então, é á melhor que cabe o bom papel. " E Florentine insiste, dirigindo-se em especial a Sarah:

"O papel de Galateia, sei-o de cor, mas, repito-te, não tenho nada com que me preocupar. Nada no mundo poderá impedir Marie de dançar.

Ela é como Gisela, capaz de sair do túmulo para dançar com o seu príncipe. "

Depois dum almoço rapidamente comido na cantina, os bailarinos saltaram para o autocarro que os vai conduzir. Serge segue na moto. Convidou Marie.

"Vens? Vamos fazer o caminho juntos? " Mas ela recusou. queria estar calma, sossegada. Concentrar-se durante o trajecto, pensar em Galateia, pensar em Igor.

Enquanto o grupo parte em direcção a Monte Carlo, Sarah tomou lugar num pequeno compartimento sumariamente arranjado que serve de aula e onde se aglomeram o melhor que podem diante das carteiras rudimentares.

Com efeito, esta história de tal maneira negligenciada é bem mais longa do que a das repúblicas e dos impérios, porque nasceu antes das civilizações. A dança é de certo modo o embrião das comunidades, das sociedades, das épocas que

se organizam.

Oprofess or explica:

"A dança é uma arte de imitação - é a imagem da natureza, multiforme e baseada no ritmo-, a dança é também um movimento de alma. É a respiração, é a vida, o princípio espiritual da humanidade. A dança exalta a vida e procura recriá-la, exprimi-la, figurá-la no que ela tem de visível, de formal ou de misterioso e de secreto. "

Os alunos estão entusiasmados. O professor prossegue a sua definição geral, que será o tema duma recapitulação na altura dos exames.

Todos ouvem, tiram apontamentos, examinam os documentosprojectados. Circulam livros.

Aprender a história da dança é familiarizar-se com a história da arte e até com a história sim plesmente, porque a dança reflecte as civilizações e as modas. É a arte primordial. É pelo gesto que o homem em primeiro lugar procurou expri mir- se, testemunhar.

Sendo essencialmente figurativa, a dança pôs, muito antes do cinema, o mundo em imagens. Os documentos que chegaram até nós das suas mais antigas expressões, pinturas, gravuras, esculturas, são só de certo modo clichés, ima gens fixas duma arte que é, na sua essência, a do movimento.

 

Assim, não basta que os bailarinos cultivem o seu gosto inicial, a sua atracção pelo movimento, pela expressão corporal no seu mais elevado sentido. Os jovens bailarinos devem aprender também a descobrir as relações profundas que a bela profissão que escolheram tem não apenas com a actualidade, mas com o esoterismo, as religiões e a filosofia.

Para além da porta fechada, apercebe-se o eco dos cursos - percussões, piano, bateria. Os adágios tradicionais superimpressionados pelas castanholas - Bach e os Pink Floyds. Minkus e Gershwin.

Todo o Centro trabalha num ambiente de vida e de esperança.

Em Monte Carlo, no teatro, à hora marcada, o ensaio começou. Ensaia-se tanto para os bailarinos como para os maquinistas, para a orquestra, para os electricistas.

Todos os intérpretes estão com os trajos de cena, menos Igor, Ingrid e Marie, que ainda trabalham em collant. Para as duas estrelas, em que o ballet está inscrito no seu repertório desde há muito, aquilo não passa de um ensaio de rotina.

Não havia problemas de trajos nem de acessórios.

Já estão habituados.

Mas para Marie tudo se passa de outro modo.

O mestre de ballet quis fazê-la ensaiar uma primeira vez para se familiarizar com a

orquestra e com Ingrid Keller, cujo papel foi desempenhado durante os ensaios por uma dupla. A estrela tem o seu próprio estilo, as suas cadências. É preciso respeitá-los, sem, no entanto, prejudicar a debutante. Os problemas de trajo e de maquilhagem virão depois.

Ocenário está "colocado".

É um conjunto de caixas, de cubos de diferentes tamanhos, que se apresenta como um jogo de construção. O decorador concebeu um cenário móbil, um cenário de transformação visível, um cenário que se move, que também dança. Cada face dos elementos apresenta desenhos diferentes e sugere a sucessão dos quadros- caixas-presentes para a loja de brinquedos, árvores para o jardim público, candeeiros para as ruas e até monumentos de Paris, simbolizados pela coluna de Vendôme, a bacia das Tulherias, o Arco do Triunfo.

Tal como a concebeu Andreiev, Galateia é uma obra completa, contrária à moda que exalta a abstracção de tudo o que deve contribuir para o espectáculo. Igor não quis submeter-se-lhe. Formado segundo as mais puras tradições clássicas, as únicas que podem permitir dominar todas as outras disciplinas, Igor compreendeu perfeitamente e assimilou as tendências modernas. Mas o próprio conhecimento da sua arte levou-o a uma escolha. Depois de múltiplas experiências, Igor dá a sua preferência aos ballets que contam uma história mais do que estados de espírito.

 

Nesta escolha, ele alinha com Robbins, Béjart, Petit, cujos maiores êxitos são histórias: Nossa Senhora de Paris; Núpcias para Robbins, Nijinski para ájart, por exemplo. Muitos coreógrafos julgam-se audazes e, para reagirem contra o bonito, só propõem o aborrecido. À poesia, que permite todos os sonhos, sobrepõem o hermetismo. O pano, os palcos nus, os collants, muito pouco. Querer voltar as costas às convenções e, na maior parte das vezes, criar outras. O espectáculo deve ser uma festa e todas as expressões devem aí desempenhar um papel, especialmente os cenários, os trajos, onde o talento de pintores, de arquitectos, se deve exprimir em comunhão com o do coreógrafo, dos músicos, dos intérpretes.

Na sala deserta, Ingrid Keller, perdida no meio dos assentos vazios, olha atentamente o palco. O cenário acaba de mudar. É o segundo quadro. O jogo da construção que representava a loja de brinquedos mudou, os cubos deslocaram-se e agora apresenta-se a perspectiva duma rua estranhamente iluminada pela Lua.

Ingrid não aparece neste quadro, mas para Marie ele é capital. Marca o despertar da boneca para a vida-Pigmaleão criou uma obra-prima e a sua obra- prima simboliza a criação do homem, uma criação de que ele se vai tornar o escravo.

Pigmalião é o antepassado do Aprendiz de Feiticeiro. O homem e os seus sonhos de poder, de potência, enquanto Ingrid simboliza a Mulher, isto é, o desejo de aventuras, o gosto da curiosidade. Ela aparece no ballet sob múltiplos aspectos.

Géraldine veio pôr-se ao lado da estrela - curiosa de ver as suas acções e de conhecer o seu julgamento sobre a nova parceira que Igor escolheu.

Em cena, Igor e Marie ensaiam um pas de deux. A boneca Galateia esforça-se por seguir o seu criador. Ela procura retê-lo, chama-o. E o criador volta para ela. A boneca tranquilizada imita o andar do homem que a leva para a cidade.

É noite. Enganosamente, eles vão refugiar-se no jardim público.

Naquele momento, apenas vestida com um collant branco, as pernas calçadas de seda cor de carne, os seus belos cabelos mal presos na nuca, Marie evoca mais uma jovem ninfa do que a boneca caricatural imaginada pelo coreógrafo e o seu decorador. Como no ensaio da véspera, ela interpreta o seu papel duma maneira que altera o sentido da coreografia e que identifica a jovem mais com uma irresistível apaixonada do que com um objecto mecanizado.

Ingrid observa-a com um olho crítico e Géraldine não resiste ao desejo de a interrogar. Insidiosa, pergunta:

"Que é que acha da pequena Soler?

- Demasiado alta, demasiado velha. "

Um pouco espantada pela brutalidade da resposta, Géraldine só pôde inclinar-se perante o veredicto. Ela admira a franqueza da estrela, que não procura esconder o que pensa.

O pas de deux chegou ao fim. Igor avança até à beira do proscénio. Chama:

"Ingrid, és tu; vens? Vamos ensaiar o nosso adágio e o pas de trois.

Como se rejeitasse um manto da corte, Ingrid tirou dos ombros os xailes em que se envolvera: os músculos, as articulações, devem ser mantidos no quente para poderem responder aos esforços.

 

A estrela sobe para o palco. Todos a olham: a sua admirável silhueta soberbamente trabalhada, a longa musculatura das pernas, o desenvolvimento dos ombros, o porte da cabeça, a beleza dos braços. Simultaneamente magra e sólida, Ingrid representa esteticamente a perfeição, como se a dança a tivesse esculpido à imagem duma deus a.

Igor apoia as mãos nos ombros de Marie e empurra-a à sua frente para a confrontar com a estrela.

Que é que pensas dela? "

Marie ergue os olhos para Ingrid e, durante alguns segundos, esta parece hesitar perante aquele olhar tão belo, onde se lêem, curiosamente misturados, a angústia e o desafio, a paixão e a timidez. Depois, o olhar da jovem vai para Igor, como para implorar o seu socorro, mas a voz de Ingrid recondu-la à estrela. Ela fala claro, apesar do acento estrangeiro.

Dirige-se primeiro a Igor:

"Queres a minha opinião? É um erro. Esta rapariga no papel é um erro. A sua interpretação é arquifalsa, absolutamente afastada do tema. "

Dirige-se depois a Marie:

"Que é que representas neste ballet? Marie responde num sopro:

"U ma boneca.

-Isto é, um objecto, precisamente uma peça mecânica, e tu danças como se dançasses a Gisela... Não compreendeste então o assunto?

- Sim... Mas Galateia torna-se viva, como na lenda.

-No fim, apenas no fim, e, mesmo assim, duma certa maneira. O que conta neste ballet é o humor. Tu não tens nenhum e danças tudo da mesma maneira. "

Desta vez, Igor intervém para aprovar Ingrid e, mortificada, Marie ouve o mestre ralhar-lhe como na véspera:

"Estás a ver! Já te disse isto mesmo ontem e não me deste ouvidos. Em que é que estás a pensar?

-Não haverá nenhuma diferença entre ela e eu", observou a estrela.

Mas Igor exclama:

"Aí exageras. A pequena vai preparar-se e quando a vires com o trajo da cena compreenderás que não cometi um erro.

Marie não se mexe. Igor empurra-a.

"Anda lá. Vai-te vestir e maquilha-te, como para o espectáculo. "

Marie deixou o palco contrafeita. Dos bastidores, os seus camaradas assistiram à algaraviada da estrela. Quando ela passa junto de Serge, ele detém-na e diz-lhe com ironia:

"Então, Sr. a Andreiev! Parece que não é só para mim que as coisas correm mal! "

Marie encolhe os ombros. Florence seguiu-a até ao camarim comum, como de costume. A costureira já está a ajudar Marie a tirar o collant, a seguir passa-lhe a indumentária. É um vestido exageradamente "criança", mais cómico do que belo. Galateia, segundo a vontade do coreógrafo e do decorador, parece-se mais com o retrato satírico duma rapariguinha do que com uma boneca de sonho.

 

Marie está tensa, simultaneamente colérica e pesarosa pelas reflexões da estrela. Outras alunas vieram ao camarim para assistir ao acto de vestir.

Os comentários vão de vento em popa: "Olha lá, ela não tem um ar favorável, Miss Keller?

- Quando pensamos que é ela quem vai presidir ao exame! "

Florentine exibiu a foto do jornal e põe-na bem em evidência, sobre a mesa que serve de toucador a Marie.

"Naturalmente, é por causa da foto. Isto tem todo o ar de não lhe agradar.

- Talvez ela esteja com ciúmes. "

Marie ergue a cabeça, atingida por esta reflexão, e Floflo insiste:

"É isso com certeza, tem ciúmes. "

Marie atou os cordões dos sapatos. Em frente do espelho, examina-se com coquetismo. Ciumenta? A grande Ingrid Keller ciumenta dela, a pequena desconhecida distinguida por Igor! Ciumenta...

Marie dá por si a repetir-se estas palavras com uma espécie de deslumbramento. As estrelas nunca são ciumentas dos alunos; decerto que existe outra coisa. Se Keller tem ciúmes, não será por outras razões que não profissionais? Ciumenta, por exemplo, do interesse, da amizade, que Igor testemunha a esta adolescente que tirou da sombra?

Perante a sua imagem no espelho, Marie divaga sem prestar atenção ao que a rodeia, a costureira, as colegas, o camarim, o teatro, enfim, onde todo o seu destino se pode decidir.

Entretanto, Floflo estende-lhe uma espécie de bola de lã cor de fogo, enquanto o contra-regra irrompe.

"Então, Marie, estás pronta? Estamos à tua espera no palco! Marie vai para sair, mas Floflo e a costureira retêm -na:

"E a peruca? Não pões a peruca? "

Apressadamente, Marie enfia a peruca na cabeça. As colegas riem diante desta transformação à vista. O rosto de Marie fica como que feio com aquela cabeleira de lã, com mechas direitas, estranhamente composta e encimada por um enorme laço.

"Estás cómica como tudo! "

-Não se pode dizer que seja bonito, bonito.

- Pareces um palhaço. "

Com um gesto raivoso, Marie tirou a peruca:

"Não a porei. "

Floflo inquieta-se:

"Estás doida!

- Estou-te a dizer que não a porei. "

Durante este tempo, uma mulher ainda nova arrumou o seu "2 cv" nas proximidades da Ópera. Depois de ter hesitado, dirigiu-se, seguindo uma placa indicativa, para a muito larga passagem coberta que ladeia o teatro e que desemboca na esplanada que domina o mar. A mulher empurrou a porta envidraçada "Proibida a entrada a qualquer pessoa estranha ao teatro", mas um porteiro velava. O Sr. Andreiev dera ordens formais para repelir os jornalistas ou os curiosos antes da representação.

A mulher insistia, apresentava-se, quando Pierre Robin, que também chegava, a reconheceu.

 

"Bom dia, Sr. a Soler. Vem ver Marie?

-O senhor teve a gentileza de me convidar para assistir ao último ensaio, o que Lhe agradeço. Lá arranjei as coisas e não hesitei em abandonar o meu refúgio para vir aqui. "

Pierre Robin acompanhava-a, fazia-a atravessar os bastidores para a conduzir à sala. O director falava em voz baixa e a jovem mulher respondia no mesmo tom.

"Pode sentir-se orgulhosa! Amanhã será um grande dia para Marie.

-Para mim também. É uma verdadeira oportunidade, não é? Este papel com Igor Andreiev... E isto graças a vós, graças a Madame, que tão bem sabe tomar conta dela. Se soubesse como ela fala do Centro, como ela fala de Madame! Eu poderia ter ciúmes, mas sinto-me feliz por ter podido confiar-vo-la. Sim, é uma oportunidade.

-Pode-o dizer, uma oportunidade única. O seu futuro pode depender disto. "

Instintivamente, a mãe de Marie juntou as mãos. O Sr. Robin reparou neste gesto de oração e de receio. Sorriu:

"Vamos, não tem razão para ter receio. " Pierre Robin instalara Catherine Soler na sala. Discretamente, ela escolhera um assento atrás da orquestra, porque nas primeiras filas havia o vai-e-vem dos técnicos, e Géraldine, sempre seguida dos seus repórteres, reinava ali como num país conquistado.

Antes de ir ter com a equipa, o Sr. Robin inclinou-se para a senhora:

"Poderá ver Marie depois do ensaio.

- Ela não está demasiado nervosa?

- Só o necessário- disse o Sr. Robin sorrindo.

-A calma não é o regime dos artistas. Se ela estivesse calma na véspera duma tal noite, seria desesperante.

-Marie é tão excessiva... "

Catherine deixou a frase em suspenso, como lhe acontecia muitas vezes. Tinha entoações de rapariguinha e parecia tímida, reservada. Pierre Robin e Marjorie apreciavam-na muito.

Ela era encantadora. Os olhos, muito belos, pareciam olhar algures, como os que viveram um drama e nunca se recompuseram. Parecia muitas vezes "ausente", o que fazia que os que lidavam mais de perto com ela a achassem "estranh a".

Com efeito, tinha uma personalidade singular e escolhera uma determinada maneira de viver que correspondia aos seus gostos: a recusa das obrigações, a amizade pelos cavalos e os cães, o amor pela natureza e a paixão pelos gatos.

Habitava, nos arredores de Grimaud -uma bonita aldeia junto de Saint-Tropez-, numa velha residência provençal. O sítio era admirável e a natureza preservada. Os campos de nliveiras e as vinhas, de encosta a encosta, desciam até ao mar: Era a perspectiva da luz e do azul. Ao norte, era o mistério das florestas, as gargantas selvagens onde as correntes brilham ou se secam. conforme o ritmo das estações, os Maures meio calcinados pelos incêndios que, periodicamente, abrasam o maciço. Os Maures, ainda inviolados, misteriosos, onde os iniciados, os curiosos, podem encontrar os rastos dos tempos antigos, vias romanas, fortalezas sarracenas.

Catherine Soler montara ali o seu clube hípico, um pequeno negócio que lhe dava para viver, e o gosto pelos cavalos era herança. Porque o pai fora treinador célebre. Ela residia ali durante todo o ano, não procurando nem encontros, nem relações. Quanto ao pai de Marie, Catherine nunca falava nele, como se jamais tivesse existido.

Quando aquela mulher fazia um esforço em direcção ao mundo, era pela filha. Marie escolhera uma carreira onde tinha necessidade dos outros, onde os contactos e as relações têm a sua razão de ser, o seu peso. Por isso, hoje, vinda para assistir ao ensaio geral, sentia-se muito emocionada. Até ali só assistira a lições, a exames.

Desta vez, era outra coisa. Ansiosamente, esperava o momento em que a filha surgisse em cena, enquanto admirava Ingrid e Igor ensaiando uma coreografia cheia de audácia, de humor e de dificuldades.

Chegou o momento de Marie intervir. Mas, a um sinal de Igor, a orquestra calou-se, e ele interpela a jovem heroína, que espera nos bastidores.

"Marie, vem mostrar-te. "

Marie avança e, isolada na sala, Catherine vê aparecer a filha, simultaneamente cómica e estranha, num vestido de formas rígidas.

Igor dirige-se a Ingrid, que, os pulsos nas ancas, numa atitude cara aos bailarinos, retoma o fôlego depois do esforço, olhando Marie, que se apresenta.

"Vês, que com a vestimenta já não há problema? Ela tem verdadeiramente o ar duma criança. "

Mas, depois de ter observado atentamente Marie, Andreiev exclama:

"E a peruca? Não tens a peruca? "

Num sopro, Marie responde: "Gosto mais de não a pôr. "

Esta resposta teve o efeito duma tempestade. "E porquê? "

Marie hesita, agora: "Aperta-me muito. "

Nos bastidores, as suas camaradas espiam e fazem comentários: "Ela exagera. Ela ousa desafiar o Mestre! E Miss Keller já não a está a ver com muito bons olhos! "

"Se te aperta demasiado, vão-ta alargar. Põe-na lá para ver... De que é que estás à espera? Eu disse que pusesses a peruca. "

Mas Marie não se move - e docemente, com as lágrimas nos olhos, ousa replicar:

"Não é bonita. "

Desta vez, Andreiev explode:

"Então eu fiz-te trabalhar durante cinco semanas, para tu agora teres um capricho! Põe a peruca e maquilha- te como as outras. "

Ao dizer isto, apontou para quatro meninas, quatro "bonecas" vestidas como Galateia e curiosamente pintadas.

Ingrid Keller impacienta-se:

"Quando ela estiver pronta, poder-se-á ensaiar?

- Estás a ouvir? Miss Keller não está contente. Despacha-te, estás a prejudicar o ensaio. "

Marie voltou ao camarim. Pierre Robin seguiu-a. Não é altura de fazer observações, mas ele quer vigiar a indisciplinada a fim de que se apresente finalmente tal como Galateia deve ser.

O director está receoso. Marie deixou-se arrastar por sentimentos que nada têm a ver com o trabalho. O espectáculo não pode sofrer as consequências:

Apressadamente, raivosamente, Marie enfia a peruca de lã vermelha. Nas faces aplica duas manchas vivas. Com lápis azul, desenha sobre as pálpebras pestanas em forma de roda de bicicleta. Ela julga desfigurar-se e esta desfiguração só a faz sofrer em relação a Igor, porque é por ele que ela queria estar bela.

O ensaio recomeçou. Marie dança finalmente com Ingrid e Andreiev. Como acontece frequentemente aos intérpretes, a jovem identificou-se com Galateia, pelo menos em espírito, e o pas de trois ilustra esta identificação como uma paralela entre a vida e a ficção.

Nesta altura do ballet, a boneca Galateia torna-se ciumenta, porque o seu criador está encantado com uma bela passeante, personificada por Ingrid. Por causa dela, ele esquece a boneca fabulosa que fabricou com as suas próprias mãos e que, de tal modo perfeita, se torna viva como uma criança. Furiosa por se ver abandonada, Galateia engendra uma maneira de interromper o duo de amor e as suas intervenções excedem os apaixonados.

Na sala, Catherine Soler começa a sorrir. O ballet é encantador, legível como uma comédia, e, para a filha, que oportunidade ter sido escolhida para desempenhar um papel tão importante!

Catherine só se pode felicitar por ter confiado Marie a Madame. A criança merece um destino retumbante. Ela é feita para as luzes, para a luta e as vitórias.

Catherine, que escolheu viver o oposto do que Marie deseja, aprova a sua ambição juvenil e pura de todo e qualquer cálculo, a sua vocação inata, os seus dons que deveriam fazer dela um personagem de excepção. Quando, há pouco, a viu tentar resistir a Andreiev, teve medo.

Agora, está tranquila. Marie agarra a cena, impõe-se. O brilho das estrelas não a eclipsa. Mas Catherine ignora as observações que a grande Keller fez a propósito da aluna.

Apoiando-se, aparentemente sem esforço, no braço de Igor, Ingrid executa uma série de piruetas particularmente difíceis. Galateia intervém uma vez mais e agarra a perna da estrela como que para lhe imprimir um movimento de rotação, cada vez mais rápido, cada vez mais forte... Mas Marie, uma vez mais, deixa-se arrastar e leva às últimas consequências a situação que reflecte tão bem os seus próprios sentimentos.

É com uma verdadeira violência que impulsiona o pé de Ingrid, que, brutalmente desequilibrada, só consegue evitar a queda graças a Igor, que a segura.

Mais medo do que dor, mas a orquestra parou, enquanto Igor se zanga com Marie:

"És doida! Miss Keller podia ter partido o pé...

E volta-se para Ingrid, que massaja o tornozelo.

"Dói-te?

- Não, não, já passou.

Marie está excessivamente confusa. Ingrid

desta vez não lhe faz nenhuma observação.

Contenta-se em olhar aquela estranha rapariga - de facto, nem por isso muito pequena-, como se acabasse de a surpreender em flagrante delito; mas não disse nada.

E o ensaio recomeça onde parara e vai finalmente seguir sem mais nenhum incidente.

Em frente ao teatro, o carro do Centro espera os alunos.

Em breve será o fim do dia e no céu bandos de pássaros juntam-se em fileiras cerradas. Avançam no azul, giram, dispersam-se, reúnem-se mais uma vez e recomeçam, como se executassem um voo ritual.

Enquanto falava com a mãe, que acompanhara até ao carro, Marie está fascinada por este estranho ballet orquestrado de gritos e de batimentos de asas, que se desenrola como uma cerimónia, enquanto o sol-poente faz nascer intensas luminosidades rosas e sombras violetas.

O ensaio terminou bem, mas Marie ainda sente a impressão de viver num outro mundo, de ser transportada, no verdadeiro sentido da palavra. Tudo é confuso nela e misteriosamente agitado como aqueles pássaros apressados com a proximidade da noite.

Existe contudo uma certeza, um ponto assente: o olhar de Ingrid Keller. Aquele olhar surpreendido que ela pousou há pouco em Marie, ao mesmo tempo pleno de inteligência e duma intuição infalível. Marie gostaria de compreender aquele olhar que a obceca, enquanto fala com a mãe e Serge, procurando colocar a mudança.

O rapaz ajudou Catherine a instalar-se no "2 cv".

"Volta para Grimaud? Mas espero que venha amanhã à noite.

-Claro, estou contentíssima por Marie.

-Ela não vai nada mal, não senhor! Podemos estar orgulhosos dela!

Catherine sorriu. Experimenta uma verdadeira amizade pelo rapaz, que lha retribui, igualmente. Convida-o muitas vezes para Grimaud. Ensinou-o a nadar, a montar a cavalo. Viu-o crescer ao mesmo tempo que Marie. Amigos de infância. Uma infância de que eles ainda não se desprenderam quando estão na altura de entrar no mundo dos adultos.

Catherine Soler sente-se bem com eles - como se sente com a natureza, os cavalos, os gatos e o seu paraíso: o jardim. Era bom que aquele entendimento, que aquele estado de graça, pudesse durar, mas as crianças crescem, descobrem, escapam-se.

Catherine conhece o preço das renúncias, o silêncio que pode abafar os corações mais tumultuosos. Ela, tão tímida, tão pouco inclinada a abrir a sua casa a estranhos, sempre admitiu aquele rapaz de cabelos compridos e com ideias ainda mais compridas.

Serge e Marie fazem recomendações a Catherine, que vai embrenhar-se na estrada: que seja prudente, mas que amanhã esteja lá à hora, para o espectáculo.

 

Por sua vez, Ingrid Keller deixou o teatro. Com ela, Igor, o Sr. Robin e Géraldine. Para a sua estada em Monte-Carlo, a estrela alojou-se no Hotel de aris, o local onde é obrigatório alojarem-se as celebridades ou as fortunas, a alguns passos do casino.

À sua passagem, os alunos, que estão a subir para o autocarro de qualquer maneira, esboçam breves saudações, às quais Ingrid responde com sorrisos. Só Marie não se mexeu, e a mãe aperta-lhe o cotovelo para a chamar à ordem. O grupo voltou-se e visivelmente falam de Marie, que se decide a fazer uma breve reverência.

Há pouco, durante o ensaio, Géraldine Dupuy procurou entrevistar Catherine. E a jovem mulher recusou.

Contudo, pela filha, agradeceu à jornalista, mas iludiu as perguntas com uma gentileza desarmante. Falar dela, do seu meio, não. Ainda menos aceitar uma reportagem em Grimaud e a exibição de recordações e de retratos de família.

Géraldine não se deu por vencida. Quando quer saber, sabe. É de facto verdade que Marie lhe interessa e que lhe reconhece dons surpreendentes. Ainda é preciso que aquele interesse seja confirmado pelo êxito. E depois não é divertido opor-se uma frágil debutante a uma estrela confirmada?

Catherine vai partir. Beija a filha e não pode conter uma espécie de observação, que não formula tão precisamente como desejaria:

"Estás nervosa, minha querida. Toma atenção. Por exemplo, durante o pas de trois, tive medo por Keller. Por causa de ti, ela podia ter feito uma entorse ou partir um pé.

- Mas eu não fiz de propósito - murmura Marie com uma voz rouca.

- Duvido. "

O sorriso de Catherine desmente o seu olhar. A atitude da filha não é natural. Sempre tão franca, tão confiante, límpida como a água da rocha, hoje Marie está perturbada. Há algo mais

do que o receio, do que o enervamento da criação iminente, mas não é altura de procurar provocar confissões, a confissão ingénua. Catherine não disse nada e Serge fez o mesmo. Serge, que de boa vontade acrescentaria alguns comentários e algumas ironias sobre Marie, que, segundo ele, tinha demasiado tendência para olhar o mestre com " olhos de carneiro mal morto"

Mas conteve-se. Na véspera da grande noite, era melhor deixá-la sossegada. Ele compensar-se-ia mais tarde, quando Andreiev se tivesse ido embora, porque Andreiev está apenas de passagem. Sim, que ele se vá e depressa, para o diabo, se quiser, e que Marie volte a ser para Serge a melhor amiga, da qual, por agora, ele se contenta em beijar a mãe da melhor vontade.

O "2 cv" afasta-se com o seu ruído característico de lataria.

À ordem de M'e Leroy, que tem dificuldade em reunir os bailarinos, o motorista do autocarro apita várias vezes para chamar a atenção. Que os retardatários se despachem. Serge dirigiu-se para o seu cavalo de batalha.

Lá em baixo, do outro lado da praça, diante da entrada do teatro, Igor despediu-se do seu par. Também ele tinha de regressar a Cannes e voltar ao teatro para tomar o seu carro, estacionado ao lado do autocarro.

Vê Marie, que Serge convida a pendurar-se

na moto, e chama-a num tom peremptório:

 

"Marie, vem! Eu levo-te. "

Enquanto a jovem avança, Andreiev volta-se para Suzanne Leroy e, para lhe falar, baixa a voz, porque a vigilante, tal como os alunos, manifesta uma certa surpresa. Para os bailarinos já instalados no autocarro, Marie é decididamente a favorita. Florentine, que guardara um lugar ao seu lado para a amiga, apenas lhe pode lançar uma mímica que significa mais ou menos: "Bem, minha querida, estás de facto nos pequenos papéis de Igor! "

Entretanto, Andreiev explica-se com Suzanne Leroy:

"Se a levo, é para lhe dizer duas palavrinhas. Sim, preciso de falar com ela. Não gostaria que ela amanhã falhasse. Ela tem reacções que me inquietam.

-Desperte-a, mas sobretudo não a desen corage, Pelo contrário. Para ela serão os seus primeiros passos. "

Andreiev tranquiliza-a. Para os artistas, basta um pouco de esperança, e realizam maravilhas. Amanhã, Marie será o que ele quer que ela seja.

A princípio como que petrificada pelo convite inesperado, Marie obedeceu.

É ainda o deslumbramento. Não repara em coisa nenhuma. Nem nos seus camaradas, que a vêem entrar no carro e sentar-se ao lado do mestre, nem em Serge, despeitado, que faz roncar o motor, enquanto os camaradas se riem dele. A sua dulcineia acaba de ser raptada, sob o seu nariz e nas suas barbas, e um rapaz, tomando ares de tenor, põe-se a cantar a grande ária de Orfeu:

Perdi a minha Euridice

Nada se compara à minha dor cru-uel, que-e infelicidade!

Furioso, Serge arrancou como se roubasse um cavalo. Avança num barulho infernal, causando a reprovação assustada dos passeantes. Serge não quer seguir Marie. Quer adiantar-se. Rodar

mais depressa do que Andreiev, despistá-lo. Ultrapassar, esquecer o belo Mercedes desportivo que

condus Marie.

Igor contornou o parque. A noite ainda não tombou e, no céu, os inúmeros pássaros prosseguem a sua ronda. Voam em direcção às árvores gigantescas, que abandonarão atraídos pelas últimas claridades do dia.

Como ainda há pouco, quando se despedia da mãe, Marie reparou mais uma vez nos voos simultaneamente desordenados e rítmicos. E depois a viatura desapareceu nas ruas para deixar a cidade. Alcançou a meia cornija, onde a circulação se faz um pouco mais à vontade do que na estrada à beira-mar. É o sobrevoo da paisagem, na luz do poente, cor-de-rosa e de fogo.

Marie mantém-se muito direita, não ousa olhar Andreiev. Rodam em silêncio e o tempo parece interminável. Mas para Marie a paisagem não passa duma abstracção e diante dos seus olhos existe apenas um gigantesco rosto, que representa para si toda a beleza do mundo.

 

Enquanto conduz, Igor lança breves olhares à sua passageira e sente-se ligeiramente desconcertado. É que Marie, que ainda não é uma mulher, já não é uma criança, do que Igor toma consciência pela primeira vez. Tão seguro de si no seu trabalho, ei-lo embaraçado, mais à vontade em trajo de dança do que em trajo de passeio. Ao volante da sua viatura, parece-se com todos os jovens que têm ao lado uma rapariga bonita.

Contudo, tem de falar com Marie. É de Galateia que se trata, do espectáculo, que tem de ser bem sucedido. É apenas isso que conta. Um artista põe sempre os seus títulos em questão. Ganhar de todas as vezes, nunca decepcionar e manter todos os outros intérpretes fustigando o desejo de ganhar por sua vez.

Ele hesita.

Metida num poncho dum azul berrante, a ra pariga não se move. Desprendeu os cabelos, que o vento puxa para trás e que libertam o perfume encantador, com o olho encaixado como um triângulo de azeviche na pele transparente.

Para Marie, o silêncio torna-se intolerável. Pesa como uma rede na qual ela procura debater-se: A voz sumida, ela ousa finalmente falar: "Não está contente comigo? "

Aliviado, Igor responde imediatamente, en contrando duma só vez a sua autoridade e as suas preocupações:

"É que eu sou muito exigente, no teu interesse, no meu.

-Eu quero que o mestre esteja contente comigo. Quero fazer tudo o que o mestre quiser. "

A ambiguidade deste grito do coração que a jovem deixou escapar como uma confissão, o desejo de submissão, que ultrapassa o quadro do que o mestre exige, Andreiev finge não os ouvir, não os compreender.

"Só te peço que trabalhes como entendo que deve ser. Que confies em mim.

- Mas em si eu tenho mais do que confiança! Consigo iria de olhos fechados até ao fim do mundo!

- Cá estão as grandes palavras! "

Igor riu, um riso um bocado forçado, e a dureza do seu rosto de olhos rasgados parece acentuada. O que o torna ainda mais sedutor.

Marie voltou a cabeça para o seu ídolo. Não gostava que ele se risse. Para ela é tudo muito grave.

"É verdade que vai fundar uma companhia?

- É verdade.

-É verdade que pensou em mim? Foi Madame quem mo disse.

-Sim, Madame disse-to, o que é verdade.

- Oh! obrigada, obrigada. "

Num gesto apaixonado, Marie agarra na mão dele e beija-a com fervor.

Incomodado por este impulso, Igor retirou a mão. Decididamente, àquela rapariga falta a razão, porque o bailarino não a quer ver senão como uma criança.

O carro corre, a estrada oferece perigo, está atravancada, os faróis acendem-se, as vivendas cintilam e a noite transforma a pouco e pouco a paisagem. É verdade que, para a sua futura companhia, Igor pensou em contratar Marie, mas por agora quer voltar ao que hoje é essencial.

Sim, contratará Marie. Sim, levá-la-á com ele nas suas tournées que percorrem o mundo. Sim, aquele projecto é possível desde que ela trabalhe bem, que ouça bem, enfim, que seja razoável.

Fala comigo como se eu fosse uma criança.

- Falo-te da única coisa que te deve interessar por agora, o teu papel.

 

- Sim, mestre, mas eu já não sou uma criança, sabe... A prova é que M'e Keller acha que sou demasiado velha. Vou fazer dezasseis anos.

Igor replica:

E eu escolhi-te porque danças muito bem e porque tens um ar de bebé, apesar dos teus futuros dezasseis anos. "

Igor ri mais uma vez, como se o riso pudesse dissipar a perturbação que agita Marie e da qual ele, por seu turno, se quer defender. Retoma o assunto dos incidentes do ensaio.

"Diz-me uma coisa: que é que se passou com a peruca? "

Desarmante de candura, Marie confessa: "Não posso ficar feia diante de si.

- Mas tu nunca podes ficar feia. "

Marie olha-o intensamente e logo Igor procura atenuar as palavras cerimoniosas:

"Serás mesmo muito bonita quando fores uma mulher. "

O olhar de Marie interroga-o. Ela procura compreender.

Uma vez mais, Igor esquiva-se aos olhos inocentes. De novo Lhe explica a sua personagem, o que espera dela. Seja de que maneira for, não a pode trair. Tal como ele a quer, Galateia não é feia, mas deve ser... cómica.

Cómica! Marie não quer admitir isso. Cómica, quando tudo é tão sério para si, definitivo, parece-lhe. Fazer rir, quando se está emocionado até às lágrimas! Ainda é demasiado jovem para saber que é o cúmulo da arte.

Murmura "Está a troçar de mim. "

Só pensa em si, quando Igor só quer pensar na sua heroína.

"Não, não troço de ti. Tens de compreender que Galateia é apenas um esboço de mulher. "

E, sem querer, não se pode impedir de acrescentar, depois de ter olhado aquela adolescente obstinada:

"Sim, o esboço duma mulher, ao mesmo tempo irresistível... e incómoda. "

Um brilho de contentamento, o reflexo duma tímida vitória, iluminou o rosto da jovem. Chegaram a Cannes. Andreiev pára o carro sem entrar no parque de estacionamento do Centro. Marie agradece-lhe.

"Até à manhã de manhã, na lição. E esta noite pensa no que te disse. "

No que te disse!

Na verdade, as palavras dançam como os movimentos do seu coração, como o seu sangue acelerado nas veias, e, contudo, ela fica imóvel. Sorri sem se mexer. Então, para se desembaraçar daquela situação o mais depressa possível, Andreiev beija-a levemente na face como se beijasse um bebé e empurra-a docemente.

"Vamos, raspa-te, raspa-te, e que eu não ouça falar mais de ti até amanhã. "

E partiu.

Marie ficou no mesmo sítio. Levou a mão à cara, como se quisesse nela conservar a marca do beijo.

Depois, a sua mão deslizou docemente até à boca, como para corresponder a este beijo que lhe parece ser o sinal da paixão. E então, num grande movimento de alegria, correndo, dançando, atravessa o parque para entrar na escola.

 

Sarah e Floflo esperavam-na. Esperavam sobretudo o momento em que as três se pudessem refugiar no quarto e dissertar sobre os acontecimentos do dia.

Para Sarah, este primeiro dia fora uma espécie de iniciação. Escolhera as suas aulas, concebera o emprego do tempo, um emprego do tempo muito sobrecarregado. Uma única recriação: correr até à praia durante a pausa reservada ao almoço e ao repouso.

Estava satisfeita. No Centro ia sentir-se em casa. O ambiente correspondia ao que desejava: uma vida colectiva que não abafava as individualidades. Finalmente tivera a sua primeira lição com Madame.

Deste modo mantivera o juramento da sua infância. Reencontrar Marjorie Brooks, causa das suas primeiras admirações, portanto dos seus primeiros amores. Colocar-se sob a protecção da estrela, confiar nela, como numa fada madrinha.

Florentine divertia-se a ouvir a jovem americana. Mais uma apaixonada, um pouco louca. Mas é preciso ser doido para dançar. Não é por acaso que Gisela, a poética encarnação da dança, é louca por isso mesmo, e na sua aura prestigiosa vêm brilhar, ao lado do seu fantasma imaginário, vivos transformados por sua vez em sombras lendárias: Nijinski, Spessitzeva: Os bailarinos não são pessoas como as outras. São uma raça à parte, uma tribo espalhada pelos quatro cantos do mundo.

A própria Floflo, que se julgava protegida pela sua constante alegria, ficaria louca se tivesse de abandonar aquela profissão terrível e maraviLhosa. Também o entusiasmo de Sarahcorrespondia aos seus pontos de vista, como correspondia às aspirações de Marie.

Quando as três raparigas se encontram finalmente sós, no quarto, Marie entrega-se a sonhar alto. As outras duas fazem-lhe perguntas, espicaçam-na.

O regresso com Igor, uma verdadeira honra, acrescenta mais raios à sua auréola. Diante das amigas era inútil esconder a sua alegria. As confidências são mais uma maneira de reviver, o que conta acima de tudo.

"Ele beijou-me... "

E como as outras pareçam espantadas: "Precisamente, beijou-me. Disse que eu seria bonita quando fosse mulher.

- Que é que isso quer dizer?

- Quererá ele talvez casar comigo? "

E Marie conta ainda mais:

"Ele quer levar-me com ele, na sua companhia. Faremos a volta ao mundo... Serei o seu par. "

O bom senso de Florentine queria resistir, mas, como Marie a pressionasse para que lhe desse a sua opinião:

"Que é que julgas? Que é que pensas? " Ela encolhe os ombros, com uma certa perplexidade. "Bem, não sei, eu... Talvez ele te ame. " Marie pôs-se a rir, um riso feliz, um riso louco, enquanto os seus olhos se enchem de lágrimas. E já não é só curiosidade o que testemunham as outras duas jovens, mas uma certa inquietação.

Decididamente, Marie está bastante excitada... Sim, claro, o Sr. Andreiev beijou-a... Mas na face. Toda a gente se beija na face... Não há nenhum motivo para perder a cabeça e quando se quer ser uma estrela é preciso conservar os pés bem assentes na terra.

 

NOITE DE FESTA

Marie acabou por adormecer. Ao sonho acordado, voluntário, sustentado por uma imaginação que toma os desejos por realidades, sucederam sonhos incontroláveis, reflexos duma verdade ou de premonições que escapam à adormecida e que surgem da chave dos sonhos... ou do psicanalista.

De manhã, em vez de acordar fresca e bem-disposta, Marie sente-se maldisposta, apreensiva. A aproximação da noite, o cagaço ou outra qualquer coisa, o medo de outra coisa?

Não tem tempo para se deixar invadir por ideias vagas. Galateia vai marcar a sua estreia. Uma partida que é necessário ganhar em força e em beleza. Madame ainda ontem a fizera recapitular, após o jantar, e esta manhã, quando Marie se encontra no estúdio grande para ter a lição quotidiana, ela trabalha com a melhor das vontades para merecer a aprovação da professora.

Uma lição sapiente, a barra au ralenti, os adágios e exercícios que cada um executa alternadamente. É a aula dos "grandes, raparigas e rapazes misturados, e hoje há dois alunos fora de série, que no entanto sofrem e transpiram como os outros, que se submetem com toda a humildade ao implacável rigor da aula. Dois alunos que ouvem Madame como se ainda tivessem tudo a aprender. Andreiev e Keller com os outros, como os outros.

Para os homens, Madame ordenou uma série de bateria e de piruetas particularmente difíceis, a executar em "diagonal" e a terminar de joelhos. Um após outro, os bailarinos desfilam com mais ou menos felicidade.

Quando chega a vez de Andreiev, toda a aula faz incidir sobre ele uma atenção recrudescida. Ele atira-se, salta. Com ele, o exercício transforma-se em proeza. As posições respeitadas na perfeição. Igor sobrevoa a aula num movimento que, no teatro, arrancaria aclamações do público. Mas aqui tudo o admira, retendo o fôlego, e obsèrva a lei do trabalho, a lei do silêncio.

Igor empregou-se a fundo, até ao limite das suas forças.

Quando termina a extraordinária diagonal, a dois passos do piano onde Marie se colocou para o ver melhor, o bailarino desequilibra-se ligeiramente, tombando de joelhos depois duma volta dupla no ar, simultaneamente engenhosa e selvagem. Esgotado pelo esforço, agarra-se e, durante um segundo, retoma o fôlego apoiado contra o busto frágil, enquanto o rosto da rapariga resplandece como se a estrela lhe rendesse homenagem diante de todos.

Aborrecido, Serge viu a transfiguração de Marie. Gostaria de rir, mas experimenta um sentimento desconhecido. Azedume, desencantamento, ciúme. A encantadora jovem que o tornava tão feliz vai fazê-lo sofrer?

A voz de Madame soou e Igor endireitou-se para se submeter às observações.

"Tens de recomeçar, Igor. Falhaste no fim, porque não te poupaste. Partes a fundo, está bem, mas pensa na chegada. Quando cais de joelhos, tens de te transformar num bloco. A imobilidade absoluta depois dum movimento. A força do equilíbrio. Vá, recomeça.

Marjorie tem razão. O equilíbrio. Toda a dança reside no equilíbrio. O movimento castigado, imobilizado, para oferecer a mais perfeita imagem da sua beleza.

Ainda dobrado pelo esforço, Igor pede alguns instantes de pausa.

"Deixe-me respirar um pouco.

- Recomeçarás depois. Meninas.

As raparigas avançam, Keller no meio delas. Madame indica-lhes um exercício e Ingrid abre fogo com a sua deslumbrante técnica. Também ali a classe inteira suspende a respiração. Tal como os outros, Marie admira, mas nos seus olhos há um brilho de desafio.

Algumas horas mais tarde, é a partida geral para Monte Carlo.

O autocarro, alguns carros particulares, a moto de Serge, enfim, a equipa do Centro em deslocação. O Sr. Robin e Madame foram à frente, enquanto Suzanne Leroy, como de costume, vigia o embarque, que se parece mais com um divertimento. O direito de rir, de segredar, de falar em voz alta. Sarah está incluída, porque todo o Centro foi convidado para a noite de gala.

Ela já ocupou o seu lugar ao lado de Florentine e ambas fazem sinal a Marie para se juntar a elas. Chamam- na:

"Marie... não vens? Vem, Marie.

Como Marie não parece disposta a subir para o autocarro, uma aluna observa com ironia:

"Atentem nisto! Ela aguarda o Sr. Andreiev.

Efectivamente, quando Igor aparece, Marie dá alguns passos na sua direcção. Mas Ingrid Keller acompanha-o e ele passa por Marie dirigindo-Lhe um pequeno sinal de amizade, após o que ajuda Miss Keller a subir para o carro. E parte imediatamente.

No autocarro, prestes a partir, os camaradas fazem comentários. Marie ficou desconcertada. Eis Serge, escarranchado na moto, que vem recolher a abandonada:

"Então, Madame Andreiev, abandonam-vos?

- Como és idiota! "

Serge convida-a com ênfase:

"Eu levo-te, se quiseres. Nunca se deve abandonar uma mulher infeliz. "

E volta-se para Suzanne Leroy, que espera: "Pode partir com o rebanho, Mademoiselle. Eu conduzo a ovelha tresmalhada. Já estou habituado a servir-lhe de ama seca. "

É contrariada que Suzane deixa Marie partir com o rapaz. Preferia conservá-la junto de si, mas assim os bailarinos, durante o trajecto, não aborrecerão Marie com os seus dichotes e os seus sarcasmos.

Tanto como Madame, como o Sr. Robin, Suzanne sabe que os nervos da jovem estão por um fio. Ela está à mercê da confusão dos seus sentimentos. Pode ser atingida por observações, provocar uma crise. Para os professores, é preciso fingir a cegueira, só ver o essencial: o compromisso profissional e não o dum coração inocente.

O autocarro iniciou a marcha. Serge vai seguir depois de ter descrito no pátio do Centro uma soberba viragem. Marie, instintivamente, cingiu-se às costas do rapaz.

Entre Cannes e Monte Carlo, cinquenta quilómetros.

Cavalgando a moto, que é para os jovens o que o cavalo era para os antepassados, Serge e Marie rodam no meio do ruído e do vento.

São belos, os cabelos soltos, vestidos de trapos mais ou menos exóticos, que são, nos nossos dias, o uniforme da juventude. Daquela que se quer livre, desprendida das modas e rebelde aos usos, para se criarem outros que, se bem que folclóricos, ilustram o seu desejo de novidade.

O par passa, faz o seu caminho ao acaso da circulação, insensível aos que reparam nele e que não estão longe de os tomar por heróis da Equipa Selvagem.

Contudo, Serge conduz com mais prudência do que de costume, como se tivesse um peso na alma. Na ocorrência, a que será dentro de pouco tempo a triunfadora da noite.

Um posto de gasolina. Serge pára. Apercebeu-se de que o pneu da frente estava ligeiramente vazio. Quer que o verifiquem. O mecânico fá-lo, enquanto, perante a impaciência de Marie, anuncia:

"Se não forem muito longe, aguenta-se, mas tomem atenção.

Serge preferiria uma reparação mais a sério. Não é muito prudente. Marie exaspera-se:

"Mas ele diz que se pode aguentar! Queres que cheguemos atrasados?

- Vale mais tarde do que nunca.

Prestes a discutir, Serge, contudo, recua. O mau humor toma conta dele. De novo engata a moto:

"Vamos, sobe.

Marie não se faz rogada. Ela quer falar, explicar-lhe tudo o que ele sabe tão bem como ela: o espectáculo, Andreiev, Andreiev que a espera. Serge prefere acelerar o motor para abafar a voz de Marie. Abre-Lhe o gás e avança pela estrada, a grande velocidade.

A polícia de trânsito reparou na moto vermelha. As viragens, os túneis, as paragens, Serge esquece-os a pouco e pouco: mais depressa, mais depressa. Não viverei enquanto não chegar.

É assim que Serge ouve o que ela não diz. Mas a jovem que ele transporta está encostada a ele. Pode sentir os batimentos do seu coração, que ressoam no seu. Um coração de que ele estava seguro e que talvez já não lhe pertença.

Na travessia de Nice, Serge conseguiu ultrapassar o autocarro. Os camaradas viram-no passar. Serge consegue sempre despistar o autocarro e, como de costume nas deslocações, será o primeiro a chegar.

Mas, na estrada, apitos ressoam e os polícias alcançaram imediatamente o imprudente.

"Os seus papéis? "

É o processo de chamar à ordem. A enumeração das faltas, as citações do código, a moral, a multa. Os polícias estão ali, poderosos e impávidos, de botas, de capacete, dominando as suas enormes máquinas.

Marie suplica-lhes. Esperam-nos, vão dançar, é um espectáculo de gala em Monte Carlo, com a presença do príncipe e da princesa. Exibe até um par de sapatos, um programa. Provas. Mas os polícias nunca mais acabam a oratória. Não têm pressa, e a impaciência dos jovens acaba por os divertir.

 

Finalmente, o veredicto:

"São cinquenta francos, e podem-se considerar muito felizes. Pagam?

- Se sou obrigado a isso! - responde Serge.

- É a lei e você transgrediu. "

Furiosa, Marie grita:

"Oh! paga, anda! Acabemos com isto duma vez! "

Mas Serge bem revistou os bolsos, os cinquenta francos não aparecem em parte nenhuma. Tem de recorrer a Marie. Terá ela sete francos e meio?

Cada vez mais enervada, a jovem procura no grande saco onde estão arrumados os seus apetrechos de bailarina, a sua maquilhagem. O porta-moedas joga às escondidas no meio de todo aquele arsenal. Filósofos, os polícias aconselham-lhe calma, método. Eis o porta-moedas, e Marie consegue completar a multa, dizendo:

"A culpa será vossa, se chegarmos atrasados! " Muito descontraído, um dos homens aponta para Serge.

"Não, será dele. Acredite, menina, os excessos de velocidade acabam sempre por resultar em atrasos. "

E Serge replicou, furioso ele também, não apenas pelo incidente, mas ainda mais por Marie:

"A culpa é dela! Julga que sou um foguete de transporte. "

O foguete de transporte está autorizado a partir com o último conselho dos anjos da estrada:

"Vá, rapazes, e pianinho, pianinho! "

Arrancam de novo, mas sem se arriscarem, enquanto o rapaz procura dominar a cólera que o invade. Não só a cólera. Algo de mais grave e que o fere insuportavelmente. Que é que Marie tem? Além disso, não estão atrasados, e subitamente o rapaz sente vontade de fazer sair cá para fora o que tem no coração. Ainda há tempo para se explicarem!

Deliberadamente, deixa a estrada e mete por uma via secundária a fim de encontrar um local tranquilo onde possam falar olhos nos olhos.

Surpreendida, Marie reagiu:

"Que estás tu a fazer? "

Ela já vai ver, vai saber o que ele pensa. Ao saltar da moto, ele dá alguns passos debaixo das árvores, voltando as costas. Marie agarra-o:

Estás doido! Que estás tu a fazer?

-Respiro. E aconselho-te a fazer o mesmo.

- Respirarei quando estiver no teatro, e acon selho-te a partir o mais depressa possível. Se eu soubesse! Devia ter feito como ontem e não vir contigo.

-Não estás contente com o motorista?

-Nem tenho razão para tal! Tu abusas, tu paras... Vê-se bem que não és tu quem vai dançar com Igor! "

Serge rebenta:

"Igor, Igor... Não podes dizer Andreiev, como toda a gente? Antigamente, gostavas, quando eu te levava na moto... Mas agora, diz a verdade: gostavas de estar com Andreiev?

- Deixa-me em paz. "

Postados frente a frente, os dois jovens parecem de repente inimigos. Serge insiste:

"Responde. Diz-me que gostavas de estar com ele. Não partirei enquanto não tiveres respondido.

-Bem, então, sim! "

 

Marie respondeu com força, com uma sinceridade terrível para o rapaz.

É aquela a sua amiga? Aquela com quem partilhou até àquele dia tudo o que Lhe importa, aquela com quem partilhou as suas esperanças, os seus projectos, aquela, enfim, com quem acharia natural partilhar a sua vida? Sim, seria natural, a felicidade, o futuro, com Marie.

O rapaz fica silencioso e Marie faz um gesto na sua direcção. Ele parece-lhe tão novo! Uma criança comparado com o Outro; e, o pior para o orgulho dele, ela sentia pena dele:

"Não estejas zangado, Serge... Tu não podes compreender... É a primeira vez que um mestre de ballet me distingue.

- Não é por ser muito esperto que te distingue. Tu és formidável. Ouando eu for coreógrafo, também te farei dançar.

- Tu, não é a mesma coisa... Tu és um miúdo... enquanto Igor é...

Mas Serge interrompe-a:

"O h, está bem, está bem! Sej a como for, é o bom Deus! Tu tens todo o aspecto de estares apaixonada. Devias ter vergonha.

- Bem se vê. Julgas como um miúdo! ii E, con1 uma total ingenuidade, acrescenta: "Não é o homem que eu amo. É o bailarino. i Serge casquina. Marie só tem uma ideia: abreviar, romper este diálogo inútil, esta cena in tempestiva. É preciso partir. Sim, ela tem pressa de se encontrar no teatro. Preparar-se, recolher-se, mistúrar-se ao ambiente dos bastidores, àquela vida subterrânea que desemboca em plena luz no palco, o local mágico onde se podem operar as transfigurações e os milagres.

E está ali, num caminho perdido, a discutir em vão com um rapaz teimoso, ingrato, porque também ele tem oportunidades para defender Galateia. A ele também Igor deu um papel, e, em vez de lhe tecer coroas, ousa criticá-lo!

Serge agarrou Marie por um braço, como que para a reter pela força:

"Queres que te diga uma coisa? O teu Andreiev é um velho. Talvez seja soberba a tradição, a Escola, mas é preciso sair disso. Não é porque se provém do Bolchoi ou do Kirov que se é o maior bailarino do mundo. Sempre a Gisela, sempre O Lago... Já está tudo farto d'O Lago.

Indignada, Marie defende o seu ídolo. "Estás a ficar doido! Isso não impede que Igor possa dançar tão bem o moderno como o clássico. Sem o clássico, Béjart não existiria, ele próprio o confessa, e isso não o impede de ser um revolucionário... Igor...

-Vai à fava, com o teu Igor! "

Bruscamente, Serge retomou a moto. Põe-na em marcha com o máximo de ruído, mas Marie quer que ele a ouça. É ela, por sua vez, que o retém, plantada diante da moto:

"lI'u tens ciúmes de Igor porque nunca serás um grande bailarino clássico, nunca. Serás um bom bailarino moderno, mas nunca um clássico! "

Serge não respondeu. Se Marie lamenta ter vindo com ele, ele lamenta tê-la trazido. Desejava-a longe e ela está ali, muito próxima, demasiado próxima, de novo atrás de si, agarrada a ele, porque acabaram de retomar a estrada, e o caminho que têm de percorrer juntos só os fará chegar a uma separação. A infãncia acabou e para Serge ele só a associa a uma imagem de morte.

A sua juventude exagera a decepção que Marie lhe inflige. Sobre uma motocicleta, a cento e vinte quilómetros à hora, o rapaz, naquele momento, acha-se o mais infeliz dos homens. A pureza e a serenidade dos primeiros sentimentos cederam. Serge e Marie apenas têm ressentimentos: um acha-se traído, o outro incompreendido.

Abandonado "o verde paraíso dos amores infantis. Serge acusa Marie -Eva eterna- da primeira traição.

Sobre o asfalto, um relâmpago. Serge viu o perigo. Um caco de garrafa. Bem tentou travar, demasiado tarde para o evitar. A moto empina-se, derrapa, o pneu rebenta. É o acidente, a queda inevitável.

Mas Serge sacode-se, levanta-se. Indemne. E Marie?

Marie está ali perto, caída na berma da estrada. Apesar das suas mãos em sangue, o choque doloroso, Serge só pensa nela. Já se reanima, se levanta, indemne, ela também.

"Marie, Marie, não estás mal?

Não, ela não está mal. É pior. É o que ela descobre que a faz tremer mais, é o que ela avalia e que a faz empalidecer como se ficasse sem sangue: é a moto deitada por terra, a roda da frente, torcida, fora de uso...

Num movimento de raiva e de impotência, esbofeteia Serge, que, por sua vez, a esbofeteia também.

Incapazes de encontrarem palavras que exprimam a desordem que os assalta, os jovens, fora de si, ficam em frente um do outro. Aquele rapaz imbecil, aquela rapariga possessa... Odeiam-se. É a guerra. Adeus.

Marie fugiu.

Um toque de klaxon. Um automobilista viu o acidente e a briga. Abrandou, mas negligencia a moto virada, que Serge agora procura arrastar para o lado da estrada. Há uma rapariga que corre como uma louca. O automobilista, lenta mente, ultrapassa Marie, e pára para a convidar.

" Posso ser-lhe útil? Quer subir? "

Sem reflectir, Marie instalou-se ao lado do desconhecido: uma providência. O carro corre, ela vai recuperar o tempo perdido. Naquele momento, os outros devem estar a chegar ao teatro. Quanto a Serge, nunca lhe perdoará.

Julgando reencontrar a sua disposição anterior, Marie delira. Obriga-se a respirar. Sim, respirar, a fonte da calma e do domínio. Sem o fôlego não existem campeões, estrelas. Procura aplicar os preceitos iniciais do ioga para se recompor, pensando que daí a pouco, e apesar dos incidentes, terá de realizar uma representa ção. Os seus joelhos? Doem-lhe, mas não deve ser grave.

Sem dar por isso, junta as mãos para dirigir ao Céu, no qual gostaria tanto de acreditar, uma oração... "Meu Deus, meu Deus, peço-vos... Que eu dance, que tenha muito êxito, que Igor fique contente comigo. "

 

Sentada ao lado do desconhecido. Marie en contra-se, assim se pode dizer, a cem léguas dele. Contudo, enquanto conduz, o homem obser va-a: bonita, belas pernas, desnudadas pela minissaia e feridas pela queda. Estranha passageira, que nem sequer lhe dirigiu um olhar.

O homem decide-se a falar e Marie parece descobri-lo quando lhe ouve a voz:

" O seu amigo não é nada afável! "

Então Marie presta finalmente atenção àquele que ela tomou pela providência. Neutro, nem novo, nem velho. Ele diz ainda:

"Eu nunca bato em mulheres, antes pelo contrário! "

A jovem não responde. Um sentimento de receio vem insinuar-se nela. O carro ultrapassou Beaulieu, Eze. Em breve estará em Monte Carlo: o final, a libertação, a esperança.

Em Monte Carlo, todo o grupo está em vias de tomar conta do teatro. Nos camarins, os trajos estão pendurados. O quadro de serviço afixa a ordem do programa:

Galateia;

O Espectro da Rosa;

O Lago dos Cisnes

No camarim comum reservado aos jovens intérpretes de Galateia apresentou-se um criado de libré. Traz um pequeno ramo de flores, que coloca no lugar de Marie. Admiram o ramo, um ramo redondo, com rosas e túlipas, oferecido numa corola de renda. As raparigas tocam-se com o cotovelo.

"É com certeza do Sr. Andreiev. "

Florentine contempla o ramo. Ao mesmo tempo, olha-se no espelho que encima o toucador onde Marie se vai olhar para se maquilhar, para se transformar em Galateia. No plano mais atrás do seu reflexo há a vestimenta suspensa num prego; a peruca, com o seu grande laço vermelho, cobre uma cabeça de madeira. E Marie ainda não chegou.

As camaradas começam a interrogar-se, Suzanne Leroy inquieta-se. Logo após a chegada, Andreiev reclamou Marie. Que se apresentasse para fazer algumas recapitulações, para ensaiar uma última vez as figuras mais difíceis.

Suzanne Leroy saiu do camarim das raparigas. No dos rapazes, a mesma surpresa. Sempre o primeiro, Serge não está. Eles não estão. Serge e Marie. "É esquisito, não acha, Mademoiselle? "

-Meninos, preparem-se, e não espalhem o pânico. Ainda há muito tempo. "

Suzanne atravessa o palco deserto e o cenário. perde-se no escuro. A cortina de ferro não está levantada. Mas os maquinistas começam a ocupar os seus postos, tal como os músicos, que se vão preparar no salão. Suzanne Leroy vai até à entrada dos artistas. Sem tardar, era preciso agora que Serge e Marie chegassem.

Depois de Eze, o desconhecido bifurcou em direcção a Turbie, trocando a média cornicha pela grande, menos atulhada, mais rápida.

Marie procura parecer impassível. O seu companheiro esboçou algumas banalidades, enquanto Marie se finge interessada pela grandiosa paisagem, pelos sítios célebres. Na verdade, ela conta os quilómetros. Cada marco diminui a distância. Monte Carlo aproxima- se. Já se vê o rochedo de Mónaco, que desafia o mar.

Marie recomeça a viver, o seu rosto distende-se. Está quase capaz de sorrir, capaz de agradecer ao desconhecido, que chega aos cimos da cidade. Mas, em vez de meter para a direita, na direcção das placas indicadoras, o homem continua em frente, na direcção da auto-estrada.

"Que é que está a fazer? É para ali que eu vou. " E Marie designa a cidade incrustada na montanha. "Estou quase a chegar. "

O homem ironiza um pouco:

"Eu nunca lhe disse que ia a Monte Carlo. " A voz é desagradável, como se dissimulasse alguma vaga ameaça. O receio voltou, mais intenso. Marie exclama:

" Pare!

-Se eu quiser... Eu não sou um rapazola!

- Pare!

-Quando as raparigas bonitas fazem auto-stop, está-se no direito de esperar um agradecimento. Eu levo-a a São Remo. Vamos fazer um belo passeio, passaremos um belo serão! "

O homem esboçou o gesto de tocar Marie, que o evita com repulsa.

"Não me toque "

O homem continua a chicanear, mas um carro ultrapassa-os e os passageiros repararam na agitação da rapariga. Abrandam, intrigados. Marie tira partido da situação:

"Pare, ou grito por socorro e salto com o carro em andamento! Abre a porta. Pelo retrovisor, o homem pode ver as eventuais testemunhas. Está bem. Ele pára, i proferindo uma injúria para a rapariga, que foge. O outro carro retomou a velocidade. Marie foge, corre na direcção da primeira ramificação que vai dar à cidade. Uma estrada sinuosa que se

estende através das gargantas e os bosques de oliveiras.

Ela corre obcecada pelo tempo que roda. Um ou dois carros passaram.

Não ousou fazer-lhes sinal. Contudo, terá de se resignar a uma solução como essa. O temponão se detém e na Ópera o pano erguer-se-á, aconteça o que acontecer, à hora anunciada.

Uma carripana ultrapassou-a. Pintalgada, transbordante de raparigas floridas à maneira hippy e rapazes mascarados. Jovens da sua idade, um bando. Lamenta não lhes ter feito sinal, mas o condutor parou. Todos se voltam. Esperam-na, convidam-na. Quantos sorrisos, quantos cumprimentos... Contudo, aquelas raparigas esgadelhadas e pintadas, aqueles rapazes deslavados, demasiado descontraídos para estarem em estado normal, não estão longe de a fazer sentir o mesmo mal- estar provocado pelo desconhecido e que tanto a assustou.

"Como é bonita!

- Vem connosco. "

Oferecem-lhe uma flor, que ela segura contra vontade. Estendem-lhe os braços. Uma rapariga de aspecto demente, horrorosamente pintada, os olhos vincados a carvão, agarrou Marie pelo ombro:

"Vem, vem... Oferecer-te-emos uma viagem. Marie deita fora a flor e escolhe de novo a fuga. Vive um pesadelo. O mundo tornou-se feio e ameaçador. Lançou-se por um atalho, perseguida durante um bocado pelos dichotes do bando, que apenas lhe ofereceu uma imagem desfigurada da juventude. Uma juventude que não é a sua.

Através dos matos, atalhos, ruelas, Marie desce, continua a descer em direcção à cidade.

Entretanto, um camionista obsequioso embarcou Serge e a sua moto.

"Vocês podiam-se ter morto! Podem-se gabar de ter tido muita sorte! "

Enquanto conduzia, o motorista ia fazendo perguntas, uma maneira de falar, e Serge esforça-se por responder sem dizer a verdade. A briga, as bofetadas... Sente-se envergonhado como um miúdo.

"Com que então, és bailarino! É engraçado! O futebol, a moto, de acordo, mas bailarino... Eu nunca teria pensado em vir a ser bailarino!

- O meu pai também não... É mecânico.

- Isso aí já compreendo... Mas se ele te fez a vontade, é porque deves ter razão. É preciso de tudo para fazer o mundo. E, repara, nunca pus os pés na Ópera. Tens de me convidar. "

Serge não pára de olhar para os lados, na esperança de encontrar Marie. O motorista é filósofo, procura tranquilizar aquele jovem cabeludo que acha estranho e simpático:

"Evidentemente que ela podia ter esperado por ti... Mas, como dizes que no teatro não se brinca com as horas, ela deve ter tido medo de falhar. Connosco passa-se o mesmo, para todo o motorista o horário é sagrado. Não te preocupes. Com uma rapariga, a boleia dá sempre resultado, sobretudo se ela é bonita... Ela é bonita? "

Demasiado contraído, Serge não tem coragem de sorrir.

Nenhum rasto de Marie. Alguém a deve ter levado! O camião passa onde ela tomou a resolução de fugir, há alguns instantes... Mais adiante, a caranguejola pintalgada arrasta-se em zigue- zague pela estrada. O camião ultrapassou-a.

Finalmente, Monte Carlo, onde os camionistas não podem circular no centro da cidade. O camionista deixa o rapaz em casa dum "compincha", garagista instalado à entrada da cidade. Serge poderá confiar-lhe a moto, e "boa sorte".

Compreensivo, o motorista "emprestou" mesmo dez francos ao rapaz - que confessou estar sem cheta - para pagar um táxi, se conseguisse apanhar algum.

Contando mais com as pernas do que com esta probabilidade, Serge pôs-se a correr a bom correr, e eis finalmente os jardins, o Casino, o movimento na praça que anuncia as noites de gala. Salvo!

Serge está atrasado, mas conseguiu evitar o pior. Acreditará ele nisso?

Ele chegou, mas Marie, onde está Marie? É o que pergunta. É o que lhe perguntam os colegas, Suzane, o director. Toda a gente fala ao mesmo tempo.

"É a esta hora que chegas?

- Julgávamos que já não vinhas! Que é que te aconteceu?

Serge tem razão em estar inquieto por Marie, é forçado a compreender que ela não está.

Desta vez, é o Sr. Robin que responde, depois de ter ordenado que se calassem todos:

"Não, Marie não está. Que é que fizeram? Não compreendes que vocês vão sabotar o espectáculo? "

Serge explica, conforme pode, o acidente, a zanga.

 

"Marie não quis esperar por mim. Partiu antes de mim, enquanto eu procurava arrastar a moto, para não provocar um acidente. "

Igor Andreiev está ali, entre os outros. Pronto desde há muito, ouviu, furioso e gelado. É o primeiro a regressar à realidade. Não pode estar a inquietar-se nem a emocionar-se a propósito da ausente. Ela não está, é um facto. Porquê? Ver-se-á depois. Por agora, é preciso restabelecer a calma. Que cada um só pense no seu papel pequeno ou grande. Que cada um assuma as suas responsabilidades.

É com uma espécie de desprezo que ordena a Serge, que perdeu toda a sua fleuma habitual e se comporta como uma criança em pânico:

"Tu, vai-te vestir depressa. E vem ter comigo ao palco. "

Desesperado, o jovem exclama:

"Mas se ela não está aqui, é porque teve um acidente! "

Implacável, Igor levanta o tom de voz: "Veste-te, já disse. E toda a gente em cena para os acertos. Dentro de vinte minutos, começa-se. "

Voltando-se para Suzanne, acrescenta: " cQue preparem a dupla. Às exclamações, à desordem, à inquietação geral, sucede-se o silêncio; ninguém se mexe. Igor repete com força, invocando o testemunho do director e de Madame:

"Eu disse a dupla. "

Madame apenas pode acrescentar:

"Meninos, despachem-se, que eu me ocupo de Florentine. "

Igor voltou para o palco... Ingrid, também ela pronta, ensaia ainda algumas figuras. Executa também exercícios de amaciamento para aquecer, exercícios de respiração para se descontrair. Aparentemente, nada quer saber do drama que se desenrola nos bastidores. Está ao corrente do que se passou, não diz nada, contenta-se em amaciar as pontas.

A cortina de ferro subiu. Só o grande cortinado vermelho e ouro separa os dois mundos que se vão defrontar: artistas e espectadores. Os que dão e os que recebem, os que propõem e os que jigam. O público é rei, nada de pior do que o seu descontentamento. Nada de melhor do que os seus favores.

É com a morte na alma que Florentine se deixa preparar. Rodeiam-na. Madame está junto dela para a encorajar, para a aconselhar, mas o belo olhar daquela que foi uma tão grande estrela e que se devota com tanta generosidade a prodigar a sua ciência e a sua inteligência está cheio de inquietação e de tristeza. Não é ela responsável por Marie, a aluna a quem prefere entre todas e que falta, inexplicavelmente? Por que razões?

Graves, sem dúvida. Porque tudo que toca na juventude é grave, mas Madame recusa-se a pensar no pior, num acidente.

À volta de Florentine todos se apressam. A dupla tornou-se essencial, é ela que passa para o primeiro plano. Vigiam-Lhe a maquilhagem, as manchas vermelhas na face, as pestanas exageradamente desenhadas. Florentine deixa que lhe ponham a máscara de Galateia. Depois a grossa peruca de lã e a vestimenta, na qual se enfia com uma detestável impressão de usurpação.

Impressão reforçada quando, nos bastidores, Serge as vê aparecer.

 

Ele chama à parte a jovem, Madame, Andreiev. Andreiev sobretudo:

"Não vai dançar sem Marie! "

E a Floflo:

"Tu não vais ocupar o seu lugar! Não lhe vais roubar o papel! Chamar Serge à razão, acalmá-lo. Ele conhece a lei: no teatro, os ausentes são substituídos. No palco, portanto, para uma recapitulação.

A Ingrid, Andreiev não pode esconder a sua inquietação.

"Duvido que a pequena se aguente.

-Tenho a certeza de que se aguentará. " Ingrid pegou em Florentine pela mão. Ela sorri-lhe:

"Tenho confiança em ti, estive a observar-te durante o ensaio. Florentine ergue um olhar surpreendido. Como é que Miss Keller pôde reparar nela? Apenas ensaiava na sombra de Marie. A Marie brilhante, ao pé de quem uma pessoa se sente eclipsada.

"Sim, estive a observar-te, e, se dançares como ensaiavas quando não te julgavas observada, não apenas salvarás a situação, como te prevejo um belo êxito! "

Florentine julga sonhar. É uma rapariga leal. Marie é a sua melhor amiga e a estrela ilustríssima está ali, não só encorajando-a, mas predizendo-lhe também o êxito. O êxito reservado a Marie.

Ingrid Keller explica-lhe que Galateia é um daqueles papéis que "levam a intérprete, como se diz na linguagem do ofício. Papéis-oportunidade, papéis-chave. Competia-lhe a ela saber tirar partido disso.

Para além da cortina ouve-se o rumor da sala. O público está ali. A festa tem de começar.

À hora marcada, o príncipe e a princesa chegaram.

A sala está magnífica, superlotada. O espectáculo de gala reuniu o belo mundo da Riviera, demasiado feliz por poder envergar fatos de cerimónia, isto é, de exibir o que simboliza o luxo e a fortuna-jóias, vestidos negros, enfeites, faustosa elegância, a alta costura exibindo as suas marcas mais célebres, os cabeleireiros os seus penteados mais trabalhosos.

Para a circunstância, Catherine Soler vestiu um vestido branco comprido, luvas de cerimónia. Está muito bela e espantosamente jovem. Madame reservou-lhe um lugar junto da orquestra. Um lugar, porque Catherine Soler informou que viria só. Não há portanto ninguém à sua volta de quem ela estime a presença? Uma amiga, um companheiro?

Aqui, tal como na aldeia, ela não parece saber viver senão com ela própria, e, se quis estar elegante, é apenas para ser digna da filha, da sua estreia, envolvida sob os melhores auspícios.

Aquela noite não é uma noite como as outras, porque a esperança é mais viva do que nunca.

As três pancadas.

O ano.

Primeiro quadro.

O público aplaudiu o cenário, que representa o escritório da directora das compras da loja de brinquedos. É o aparecimento de Andreiev, logo seguido do de Ingrid, que provoca aclamações. O público reconheceu os seus ídolos e saúda -os.

 

Para Catherine Soler, familiarizada desde o ensaio na véspera com o ballet, ela já não descobre a acÇão, mas segue-a, prevê-a. Dentro de alguns instantes será a vez de Marie aparecer.

Precisamente o criador vem propor à directora a sua obra, Galateia.

Depõe aos pés de Ingrid uma enorme caixa branca atada com uma fita vermelha. Catherine sorri, com o coração a bater. Sabe que de um momento para o outro Marie vai surgir da caixa, quando Igor levantar a tampa para apresentar a boneca-maravilha.

Mas para aquela mulher instalada na orquestra, tal como para Sarah e os alunos do Centro agrupados no último balcão da Ópera, há um momento de estupor, partilhado por Géraldine, tão segura do êxito da jovem que já lhe redigiu o " art igo.

Galateia surgiu, é verdade; ela anima-se, mexe, executa tudo o que o seu criador lhe ordena, mas não é Marie. O público não dá por nada, mas os outros!

Alarmada, Catherine, o mais discretamente possível, deixa o seu lugar- ela quer saber.

Com respeito a Marie, vive um horror. Uma espécie de loucura se apossou dela depois que deixou a estrada. O medo de tudo: das pessoas, do tempo, da cidade encravada. Só sabe correr. Correr para encontrar a Ópera. Correr para a sua vida: Igor. Galateia e Madame, e a mãe... mamã, mamã... Todos traídos, todos contra ela, que falta ao seu dever, ao seu compromisso.

Esgotada, ofegante, tem de continuar a debater-se entre a síncope e a crise de nervos. E, à medida que se aproxima do objectivo, a Ópera surge como uma miragem.

Ei-la que chega. A entrada dos artistas. Desemboca no palco e seu aparecimento no meio dos bastidores silenciosos provoca simultaneamente o alívio e o pavor, porque Marie já não pertence a si mesma. Quer precipitar-se sobre o palco, mas pára, fulminada.

À luz dos projectores, vê Andreiev, que, num gesto de senhor, abre a caixa donde sai Florentine como uma mola.

Insensível aos que a rodeiam, olha sem com preender: Andreiev, Ingrid - Galateia! Galateia! E eles dançam como se ela não existisse, ela. É preciso retê-la e afastá-la à força, pois nem a autoridade da Madame é suficiente para a acalm ar.

Clama:

"É para mim, é para mim! "

Madame suplica-Lhe que se cale, mas o grito recomeça, louco, dilacerante:

"É para mim, é para mim... "

Ingrid, que sai da cena para uma rápida mudança de trajo, mostra-se irritada e, enquanto a costureira a desabotoa, exprime o seu descontentamento. Ela predissera-o: com Marie, Igor fizera uma má escolha! Sempre histórias, sempre problemas, e o cúmulo- faltar ao erguer do pano! Irá ela acabar com aquela cena? Que a obriguem a calar-se, que a expulsem.

O duro julgamento da estrela atinge Marie mais vivamente do que os golpes. Depois eis Serge, que aparece por sua vez-mascarado, ridículo com os seus grandes bigodes, o seu boné encarrapitado e por baixo o seu olhar desolado. A sua vista só faz exasperar a rapariga.

"Foi por causa dele... "

 

Brutalmente, invectiva Ingrid:

"Foi por causa de si! Deve estar contente! Você não queria que eu dançasse com Igor... Eu sei porquê! Porque acha que sou muito velha...

- Cala-te!

-É porque tem ciúmes. Tal como ele, ele também tem ciúmes. "

Enquanto acabava de mudar de trajo, Ingrid suplica que a obriguem a calar-se, já chega de escândàlo. Então, no cúmulo da exaltação -e antes de a estrela voltar para cena -, Marie tenta agarrar-se a ela:

"Você tem ciúmes porque ele me ama... Sim, ele ama-me... Foi a mim que Igor escolheu. "

Desta vez, Madame ordenou que levassem Marie dali para fora.

Que a levem para o camarim, que chamem um médico. Que lhe dêem um duche, se for preciso.

Catherine chegou na altura de ver a filha ser arrastada para fora dos bastidores.

Encontra-se de repente perante aquela miúda teimosa que se debate entre as mãos do director, de Suzanne, de Madame, e é gelada de pavor que se aproxima. Mas, perante a mãe, Marie acalma-se bruscamente e baixa a cabeça. Tornou-se horrorosamente pálida.

Com uma voz irreconhecível, uma voz profunda, ferida, articula, finalmente vencida:

"Deixa-me, mamã, deixa-me. Peço-te perdão. "

Catherine permanece paralisada, como se respeitasse aquele desgosto, esta desfeita que ela partilha tão intensamente com a filha e pela qual nada pode fazer.

Nada mais senão compartilhar e compreender, e dar a entender que compreende, que não julga...

Oque quer que fosse que a filha tivesse cometido, o castigo basta. Tantas esperanças, tanto trabalho perdidos. Marie de repente diminui os seus privilégios, privilégios que devia apenas às suas qualidades.

Ela será acusada pelos mestres, por Miss Keller, que ofendeu, e sobretudo pelo Sr. Andreiev, para quem falhou.

Mas, para Catherine, a filha não está em falta.

A paixão cabe apenas aos corações generosos.

Catherine nunca duvidou da filha, nunca duvidará.

Marie repete, como se respondesse à mãe, que pousa nela um olhar tão eloquente:

"Peço-te perdão. Agora, deixa-me.

Depois volta-se para Madame. Sim, está vencida. É a Madame que se deve entregar.

Por sua vez, esta aproxima-se de Catherine,

com quem se sente perfeitamente solidária.

"Deixe-a... Vamos tratar dela. Estamos desolados, verdadeiramente desolados. "

Enquanto fala, Madame já pousou uma mão autoritária no ombro da aluna, e desta vez, sem nenhuma resistência, Marie deixa-se levar.

Uma outra silhueta, afastada, assistiu à cena. É Sarah.

 

Tal como Catherine, deixou a sala. Tal como Catherine, a substituição de Marie tornou-lhe o espectáculo insuportável. Impulsiva, directa, tendo votado, desde o primeiro instante, uma amizade absoluta à jovem heroína, ela, a estrangeira, não poderia ficar alheia ao que se passa, à intensidade dum acontecimento simultaneamente público e secreto, como só o teatro reserva aos que o servem, aos que podem morrer por ele.

Sarah queria socorrer Marie e, mesmo que ainda nada possa fazer, o coração dita-lhe que é preciso estar ali. Tal como o amor, a amizade é antes de mais uma presença.

Madame conduziu simplesmente Marie ao camarim comum, onde os altifalantes transmitem o espectáculo. As bailarinas que aparecem no 2º acto d'O Lago dos Cisnes, o famoso ballet branco, preparam-se. Os tutus imaculados estão pendurados, um para cada uma, e a sua brancura irradia no camarim todo dourado de luz.

Madame instalou Marie diante do seu toucador e Marie compreendeu. Deve dançar.

Para Galateia, claro, o irreparável. O papel de vedeta, adeus. Mas, depois do ballet que devia marcar a sua estreia, a representação continua e, como os outros, Marie tem de retomar o seu lugar nos conjuntos. Retomá-lo-á, e a isso não faltará. É o que Madame ordena.

Esta vê crescer nos olhos de Marie o brilho da revolta. A recusa? Contudo, lutando consigo mesma, Marie continua sentada em frente do espelho. À sua volta, e excepcionalmente, apenas há silêncio no camarim, que habitualmente se parece com uma espécie de colmeia transbordante, plena de gritos e de risos.

As suas camaradas estão consternadas e adi vinha-se o seu desgosto. Ninguém sonha em a condenar. Nem o atraso irreparável, nem o escândalo - como irá reagir Miss Keller, depois das invectivas proferidas pela jovem? -, podem predominar sobre o sentimento geral. Lamentam-na. Ela está a pagar demasiado caro os seus sonhos e a sua paixão.

Por agora, cada uma só se pode calar. O espectáculo prossegue e, se nos bastidores existe um drama, em cena tudo corre bem, muito bem.

Ao deparar-se-lhe o ramo de flores, Marie chorou. Leu e releu o cartão. A letra de Igor, as flores de Igor:

Para Marie, pela sua estreia, com os meus votos de felicidades e a certeza de que me honrará.

Com os olhos marejados, Marie começa a arranjar-se. Limpou o rosto, espalhou a base.

E a fotografia com Igor, a bela foto que apareceu na imprensa e que ela ontem colou no toucador como um troféu. Ela e Igor e a legenda de Géraldine: "Igor Andreiev descobre uma estrela.

Uma estrela!

Marie arranca a fotografia, rasga-a. Madame viu esse gesto.

"Recompõe-te. Falhaste a Galateia, recupera-te O Lago.

-Com as outras!

- É no meio das outras, como tu dizes, que se descobrem as verdadeiras estrelas.

Marie continua a maquilhar-se, enquanto o altifalante transmite os últimos acordes que marcam o fim do ballet. Os aplausos ressoam. Acabou mesmo.

Madame torna-se mais doce.

 

"Não recomeces a chorar, minha filha. Prepara-te e aproveita o intervalo para ires apresentar as tuas desculpas ao Sr. Andreiev. Eu, pelo meu lado, falarei também com ele.

Por melhor que se seja, nunca se é insubstituível: é a lei do teatro, como de toda a vida. Morreu o rei, viva o rei!

Marie não dançou, mas Galateia triunfou graças a outra. O público apenas viu o fulgor. Sós, entre os espectadores deliciados, os alunos do Centro interrogam-se: que é que aconteceu a Marie? Algo de grave, de terrível, claro...

Felizmente que havia uma dupla, e ninguém teria suposto que Florentine estivesse à altura de substituir tão brilhantemente a titular, porque para toda a Escola só havia uma aluna, só uma intérprete: Marie Soler. Mesmo as que a tinham invejado não sentem vontade de se regozijar; porque cada uma pode tirar uma lição do acontecimento.

Quanto a Sarah, aterrada, choca pela primeira vez com as leis duma profissão que o mais imprevisto destino não modificará. Sim, pode-se lamentar Marie e meditar no seu exemplo.

Com todas as suas esperanças por terra, Marie olha incansavelmente o pequeno ramo de flores romântico. O cartão, a letra de Igor! Nunca tinha recebido flores, nunca lhe tinham dirigido tão prestigiosa mensagem...

Deste modo, Igor não a considerava como uma simples aluna que se obriga a trabalhar - pensara nela. Tinha de lhe pedir perdão... Tinha de lhe agradecer... O ramo ali pousado, no meio dos bâtons e dos lápis de maquilhagem, não era um símbolo?

Por agora, não existe para ela nenhuma realidade. Nem sequer sente a fadiga, porque está esgotada. Vive como se vive depois dos acidentes, depois das tragédias: num segundo estado, numa espécie de hipnose. Com o despertar, a vida continua, mas ela ainda não o pode conceber.

Como todas as suas camaradas do corpo de ballet, vestiu o feérico uniforme dos cisnes, o clássico tutu que tão bem transpõe a flor como o pássaro. O collant de seda cor de carne perfeitamente esticado, os sapatos atados como deve ser, ela está pronta, pronta para o segundo ballet, em que ficará perdida nos conjuntos.

Então, decide-se a ir ter com Igor. É o intervalo. Barafunda, mudança de cenário, a animação dos camarins e dos corredores. Marie passa como um ligeiro fantasma, levando nas mãos cerradas o ramo de Igor.

No vestíbulo contíguo à cena, Catherine Soler espera. Tranquilizaram-na um pouco. Serge contou-lhe tudo: a contenda, a estúpida aventura.

"Marie nunca me perdoará; contudo, não tive culpa! O Sr. Andreiev deu-Lhe volta à cabeça. "

Catherine compreendeu e suspirou pela bela amizade daquelas crianças, pelo "verde paraíso" que eles abandonaram sem regresso.

Quando Marie atravessa o vestíbulo, a mãe tem dificuldade em dissimular a emoção. Mas a filha vem na sua direcção. Tanta juventude, tanta graça e tanto sofrimento!

 

Desgostos, decepções, que podem desorientar uma vida inteira! Catherine sabe-o, tem disso conhecimento.

Perante esta pequena sílfide, aquele cisne ferido, fica muda, e Marie julga tranquilizá-la:

"Vês, mamã, está tudo a correr bem...

-Vejo... Vais conseguir dançar? "

Então, com uma voz grave, surdamente exaltada, a jovem responde:

"É preciso. Pelo Sr. Andreiev, tenho de dançar... Será como na lição, quando ele reparou em mim. "

Sorriu, com um sorriso que fez aflorar as lágrimas aos olhos da mãe. Depois embrenhou-se nos corredores para ir ao encontro de Igor.

No corredor, escassamente iluminado, a porta do bailarino está entreaberta.

Retraída, com uma única olhadela Marie pode ver o camarim brilhante, cheio de flores, que transbordam até ao corredor. Mas Igor não está sozinho. A sua costureira, a sua secretária, Géraldine e desconhecidos, familiares da estrela, a quem admite no seu santuário.

Intimidada, Marie não ousa bater à porta, nem manifestar a sua presença. Muito branca na penumbra, fica hesitante e não se pode impedir de ouvir. Porque se trata de Galateia. Galateia que foi salva, o seu êxito confirmado.

Segundo a opinião de todos, a "pequena" foi formidável. Que domínio, que sangue-frio! Que maravilhosa escola, a de Marjorie Brooks! Andreiev julgava ter descoberto uma pérola, uma outra pérola aparecia, e todos se podiam extasiar com a epopeia realizada.

Contudo, Igor confessa que teve medo: a ausên cia de Marie podia ser um desastre; mas, no

fim de contas, aquele golpe duro a todos galvanizou. E todos aprovam, enaltecem, contentes com esta dupla vitória.

Arrepios fazem tremer Marie. Passeiam-lhe pelas costas como serpentes. Sente-se doente. Passou um suplício-e fica paralisada, a respiração suspensa, o coração louco.

"Em suma, não foi assim tão grave! Ninguém deu por nada. "

Quem disse aquilo?

Géraldine Dupuy, sempre resoluta, sempre prestes a agarrar a ocasião, a aceitar o acontecimento, a mudança. Ela, que, apenas há algumas horas, jogava tudo na jovem desconhecida, nada tem de melhor a dizer do que aquela atrocidade: "Não foi grave. "

Igor respondeu:

"Só é grave para ela. "

Muito suavemente, Marie desaparece na sombra.

Ao voltar ao camarim, as camaradas rodeavam Florentine, que acaba de realizar uma proeza.

Ainda vibrante pelo êxito obtido, sorri no meio das raparigas, que a felicitam. Mas o regresso de Marie fá- las calar, por pudor.

Contudo, a triunfadora aproxima-se e, se o rosto de Marie está alterado, o de Florentine exprime sobretudo uma sinceridade absoluta. Para além da felicidade do êxito, das repercussões que pode ter na aurora da sua jovem carreira, o que prevalece nela é a amizade de Marie.

 

Perfeitamente leal, não é nestas circunstâncias que gostaria de ter colhido os seus primeiros louros, pelo que a sua alegria está ensombrada. Não encontra qualquer palavra e Marie não diz nada.

O que é um facto é Florentine estar ali, diante dela, envergando o trajo que era o seu, ainda animada pelo esforço e pelo êxito. Florentine, que trabalhou na sombra, modestamente. Florentine, que se soube dobrar às exigências do ofício, que foi o que o mestre queria que ela fosse: uma encantadora peça mecânica, à qual só ele podia insuflar uma determinada existência. Um objecto maravilhoso, um instrumento, e não um ser demasiado cedo submetido aos seus sonhos e à sua lamentável exaltação.

Deste modo, as duas adolescentes enfrentam-se no meio das outras, que receiam uma explosão. Para Florentine, tão naturalmente confiante e optimista, o drama que agita Marie toma a forma duma revelação, sente-se assustada... É pois tão duro viver... tão duro amar.

Muito baixinho, diz: "Peço-te desculpa. "

Marie abanou a cabeça. Não, Floflo não tem de lhe pedir desculpa.

Sem nada dizer, estende-lhe o ramo que estreitava contra o coração.

O corpo de ballet juntou-se no palco para O Lago dos Cisnes. Florentine reentrou na fila, como Marie. É o fim do admirável adágio que é o canto de amor do Príncipe e de Odete, a princesa que um mágico metamorfoseou num pássaro.

Imóveis, todas as raparigas os rodeiam. Com Ingrid e Igor, a dança atinge uma tal perfeição que a sua fantástica técnica se desvanece para apenas deixar transparecer o essencial: a alma.

Tal como o público, as bailarinas ficam presas à indelével emoção que as obras-primas revelam e que o mais ignorante dos homens pode apreender.

Longas aclamações saudaram o fim do adágio. Depois é a variação do Príncipe, o momento de bravura esperado. Uma variação breve e ful gurante em que o bailarino se eleva literalmente, em que brinca com o espaço sobrevoando a cena.

Como no ensaio da manhã, Marie olha-o... O bailarino vai executar a famosa diagonal. Como nessa manhã, parece não tocar o solo. Magnífico com a luz, tão belo no seu gibão bordado, aproxima-se da ribalta, aproxima-se de Marie, imobilizada na posição regulamentar. Mas à espectacular visão sobrepõe-se uma outra visão, a da manhã, Igor vencendo a gravidade e caindo de joelhos apoiando-se nela.

A sala soltou exclamações de alegria para saudar a proeza.

Marie não ouve, quer guardar para si a recordação daquela manhã radiosa em que todas as esperanças lhe pareciam permitidas. E quando a orquestra finalmente recomeça para fazer calar os bravos, é preciso que uma camarada a desperte, enquanto Madame, escondida nos bastidores, quase grita o seu nome para a chamar à ordem.

Como uma autómata, ela recupera o compasso, executa os passos e perde-se, confunde-se no movimento geral das raparigas, vítimas do encantamento d'O Lago dos Cisnes.

 

Para os bailarinos, não há tréguas, repouso bem merecido. A lição é fatídica. Um indivíduo de estirpe não o pode evitar. Aconteça o que acontecer, submete-se-lhe. Se ele falha, a dança abandona-o. Mais exigente do que todas as artes, a arte da dança não suporta nenhuma excepção à sua regra de ouro: a lição.

E, como todos os dias, hoje haverá treino no Centro. Para a classe dos grandes", a lição será dada por Ingrid Keller. O estágio da estrela começa. Uma dádiva. Durante três semanas, todos poderão trabalhar sob a sua superior orientação, lucrar com a sua ciência, os segredos da sua técnica. É um verdadeiro presente que Madame oferece aos seus alunos.

Suzanne Leroy fez a chamada. Que a primeira classe suba para a aula.

Há um verdadeiro movimento de afluência. As raparigas e os rapazes já estão em fato de trabalho. Um pouco de nervosismo. Afrontar um novo professor e daquela qualidade!

E, depois a noite da véspera, tão importante para a Escola tomou, por causa de Marie, dimensões inesperadas. Marie faltou ao ballet, ofendeu também Miss Keller. Sabem-no, recordam-no...

Para além do interesse profissional, a lição não apresentaria outro interesse? O confronto duma aluna faltosa e da prima abssoluta, autori tária e vitoriosa.

Florentine e Sarah não largam Marie. Ladeiam- na porque Marie parece não querer comparecer na aula, e contudo tem de suportar e suplantar esta última prova. As raparigas têm dificuldade em a chamar à razão, em a encorajar. Marie segue-as, contrariada. Mas encontram Andreiev, que franze o sobrolho. Detém Marie, quando esta passa diante dele, e chama-a à parte.

Severo, olha-a.

Excepcionalmente, ele não está em collants de trabalho. mas vestido como o comum dos mortais- um fato desportivo, um fato de viagem.

Marie sabia-o: ele tinha de partir no dia a seguir ao espectáculo de gala. Ele está preparado e ela fica calada. Com uma voz impaciente, ele pergunta apenas:

- Então?

Peço-lhe desculpa.

-Tu és imperdoável. Cometeste a falta mais grave que um artista pode cometer e nem uma palavra, nem uma desculpa! Porque é que faltaste? Porquê?

-Porque o amo. Sim, amo-o.

A confissão jorrou, orgulhosa e ingénua, enquanto Igor a queria obrigar a calar-se. Mas ela quer que ele saiba a verdade-não é possível que ele a ignore. Ele vai reagir. Vai esboçar um gesto.

"Tudo aconteceu porque o amo. O senhor

transportou M'e Keller em meu detrimento.

Serge troçou de mim, batemo-nos.

Desta vez, Igor interrompe-a:

"Infantilidades! E é por infantilidades que falhaste a oportunidade que te oferecia, sabotaste semanas de trabalho! Raparigas como tu não me interessam. E histórias desse género, obrigado. Tenho mais que fazer.

Abandona Marie exactamente depois de a ter assim condenado, sem qualquer indulgência, para se apressar a juntar-se a Ingrid, que acaba de aparecer no corredor, não longe deles, e que se espanta:

"Ainda não partiste?

Ainda não. Igor quis despedir-se de Marjorie Brooks e dos seus colaboradores. Também quis voltar a ver o seu par. Sorriem. O próximo encontro? Em Nova Iorque, em Setembro.

Igor confirma

"Sim, reencontrar-nos-emos em Nova Iorque. Daqui até lá já terei constituído a minha companhia e contrato-te, se continuares de acordo.

Marie gostaria de poder tapar os ouvidos e fugir da presença deles, que lhe era insuportável. Igor está a alguns passos e esqueceu-a. Ela não existe - nunca existiu!

O soberbo e triunfante par simboliza para ela tudo o que pode haver de desejável neste mundo. Ela está ferida pela sua espera, o seu comportamento, esquecendo que as duas estrelas são "monstros sagrados e como tal cúmplices à procura de glória. Para eles, o casal que formam não tem existência senão nas luzes da ribalta, mas Marie é demasiado nova, demasiado ingénua, para compreender que o teatro e a vida raramente fazem bom conjunto.

Visto que Igor e Ingrid impedem o acesso ao corredor, Marie prefere utilizar a escada que conduz ao estúdio. É a única saída que lhe permite evitá-los. Assim, tal como os outros, sobe para a aula, tal como os outros, vai tomar o seu lugar na barra, e à sua volta toda a classe faz silêncio.

Marie compreendeu. Procura manter-se de cabeça erguida, porque aquele silêncio inusitado significa piedade. E esta piedade faz-Lhe mal, envergonha-a. Não quer olhar para ninguém. Suportará ela, a privilegiada, a invejada, ter-se transformado na que decepcionou, na que se lamenta?

Está na barra, entre Florentine e Sarah. Na barra oposta está Serge, com quem se recusa a trocar o mínimo olhar. Saberá ela um dia que o jovem sofre tanto como ela?

A acompanhante já está ao piano. Todos esperam a chegada daquela que vai tomar conta da aula.

Finalmente, aparece Madame, precedendo Ingrid Keller, e é com uma certa solenidade que apresenta a nova professora.

"Durante três semanas, Miss Keller aceitou fazer-vos trabalhar. É uma grande honra para a nossa escola. Espero que apreciem esta oportunidade e que dela saibam tirar proveito.

Alinhada ao longo das barras, a classe aguarda. Parecendo passar os alunos em revista, seguida de Madame, a estrela começa a dar a volta ao estúdio. Cada aluno, rapariga ou rapaz, executa à passagem de Ingrid uma vénia de deferência, apresentando- se por sua vez:

" Jennifer Lemoine, Sarah Green, Serge Laro que, Florentine erdini."

 

Ingrid chegou diante de Marie, que não se move, que não responde à sua injunção:

"Então, Marie? "

Marjorie vira-se para a professora convidada: "Espero que ela lhe tenha apresentado as suas desculpas.

- Não, e aguardo-as. "

Marie irá agravar o seu caso? Teimar? Provocar uma nova tempestade, que desta vez não terá solução, porque, se ela se obstina, será necessário puni-la rigorosamente?

Madame levantou a voz, o que é raro, e todos suspendem a respiração:

"Pela última vez, Marie, ouviste? Keller aguarda as tuas desculpas. "

À laia de resposta, Marie larga a barra, atravessa o estúdio a correr. A fuga. Partir. Em poucos segundos sai do mundo que é o seu, de Madame, que não se moveu e cujo rosto exprime uma decisão irrevogável: se Marie transpuser a porta, não voltará mais.

Mas, perante o espanto geral, Ingrid foi no seu encalço. Corre atrás da que acaba de franquear o umbral da porta e que vai descer rapidamente as escadas.

Ingrid alcança-a, barra-lhe o caminho, agarra-a rudemente, com uma mão sem fraqueza, enquanto com a outra fecha a porta.

Ei-las sós, e Ingrid obriga Marie a olhá-la de frente.

"Idiota! "

Marie debate-se:

"Deixe-me.

-Nunca. Tu vais-me ouvir, vais-me escutar. Que é que se faz aqui? Dança-se. Tu não vais começar a misturar os teus assuntozinhos sentimentais com a tua profissão! Não és estúpida a esse ponto! Que é que desejas desde há anos? Dançar. Então, dança. Vou dar-te lições, eu, porque eu to digo: tu és dotada, muito dotada. Julgas que sou tua inimiga? Tu tens ciúmes! Idiotices. Igor não te ama, minha querida, como também a mim não ama. "

Ingrid arrastou Marie, que a ouve, estupefacta, para a janela do patamar das escadas. Lá adiante podem ver Igor meter-se no carro, Igor que vai partir. E Ingrid recomeça a falar com uma voz calorosa, sem contudo largar a rapariga, que a pouco e pouco se abandona àquela mão firme que parece executar um salvamento.

No pátio, o Mercedes arrancou. Igor afasta-se, só, olhando apenas em frente, para onde o êxito o impele.

Olha para ele... Em quem julgas que ele pensa?

Em ninguém, estás a ouvir? Em ninguém. Pensa na sua profissão e tem muita razão. Sê como ele, sê como eu, que não somos dessas pessoas que vivem sem grandeza, sem paixão. Nós, nós temos a paixão, a da dança, e, vê-lo-ás, é o bastante para preencher uma vida. O bastante para sofrer e para conhecer as mais belas alegrias. "

Ao ouvi-la, Marie, pouco a pouco, descontrai-se, o rosto mudou. Se chora, já não é por causa da sua decepção, é porque a estrela encontrou o caminho do seu coração, porque ela despertou o melhor de si mesma: a sua consciência e a esperança.

Agora, Ingrid sobe os poucos degraus que as separam da aula. Volta-se para trás. Marie segue-a. Ambas, de mãos dádas, entram no estúdio.

Aliviada, depois de ter trocado um olhar de entendimento com Ingrid, Madame eclipsou-se.

Miss Keller pode tomar posse da aula. Explicar, corrigir, demonstrar. Os jovens rostos estão graves, aplicados, prestes a descobrirem o sentido do movimento e a sua correspondência com o espírito.

Sob o controlo de Ingrid, Marie retomou o seu lugar na barra. A pianista toca dois acordes. A lição começa.

A lição, sempre recomeçada.

 

 

                                                                                                    Odette Joyeux

 

 

 

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