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Series & Trilogias Literarias
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
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Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
Caixa de entrada: 0
O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
Caixa de entrada: 0
Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Ligações: 0
Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
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Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
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Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
Caixa de entrada: 0
O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
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Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
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Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
Caixa de entrada: 0
O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Ligações: 0
Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
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Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
Caixa de entrada: 0
Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
Caixa de entrada: 0
O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
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Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
Caixa de entrada: 0
Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
Caixa de entrada: 0
O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Ligações: 0
Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_PRINCESA_MIA.jpg
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
Caixa de entrada: 0
Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
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O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_PRINCESA_MIA.jpg
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
Caixa de entrada: 0
Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
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O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_PRINCESA_MIA.jpg
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
Caixa de entrada: 0
Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
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O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
Caixa de entrada: 0
Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_PRINCESA_MIA.jpg
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
Caixa de entrada: 0
Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
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O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
Caixa de entrada: 0
Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
Caixa de entrada: 0
Ligações: 0
Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_PRINCESA_MIA.jpg
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
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Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
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O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Recados no telefone: 0
Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?
C O N T I N U A
“Ah, sim, vossa alteza real”, ela disse. “Somos princesas, acredito. Pelo menos uma de nós é.” Sara sentiu o sangue subir para o rosto. Por pouco, conseguiu se segurar. Quando se é princesa, você não tem ataques histéricos. “É verdade”, ela respondeu. “Às vezes, eu de fato finjo ser princesa. Finjo ser princesa para tentar me comportar como se fosse.”
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_PRINCESA_MIA.jpg
Sexta-feira, 10 de setembro, 21h, A Bela e a Fera, teatro Lunt-Fontanne, banheiro feminino
Ele não ligou. Acabei de conferir com a minha mãe.
Acho que não é totalmente justo da parte dela me acusar de acreditar que o mundo todo gira em volta do meu rompimento com o Michael. Porque eu não acredito. Mesmo. Como é que poderia saber que ela tinha acabado de colocar o Rocky na cama? Ela deveria ter desligado a campainha do telefone, já que meu irmãozinho tem tido tanta dificuldade para pegar no sono.
Mas, bom, não tinha nenhum recado para mim. Acho que eu não devia ter esperado que houvesse. Quer dizer, eu dei uma olhada no vôo dele, e ele só vai chegar ao Japão daqui a catorze horas.
E a gente não pode usar celular nem palm top quando o avião está voando. Pelo menos, não para ligar nem para mandar mensagens de texto.
Nem para responder a e-mails.
Mas tudo bem. De verdade, tudo bem. Ele vai ligar. Ele vai receber o meu e-mail e daí vai ligar para mim e nós vamos reatar e tudo vai voltar a ser como era.
Tem que voltar.
Enquanto isto, simplesmente preciso seguir em frente como se as coisas estivessem normais. Bom, tão normais quanto podem estar quando você está esperando notícias de alguém que foi seu namorado por dois anos, com quem você terminou, mas a quem enviou um e-mail de desculpas porque percebeu que estava completa e irrevogavelmente errada.
Principalmente porque, se vocês não reatarem, você sabe que só vai viver uma espécie de meia vida e que estará destinado a uma série de relacionamentos sem sentido com top models.
Ah, espera aí. Este é o meu pai. Deixa para lá.
Mas, sabe como é. Sou eu também. Sem a parte das top models.
Assistir a A Bela e a Fera hoje à noite com o J.P. me fez perceber como eu fui totalmente estúpida na semana passada.
Não que eu já não tivesse me dado conta disso. Mas o espetáculo realmente me fez cair na real.
O que é especialmente esquisito, porque o Michael e eu nunca entramos exatamente num acordo no que diz respeito ao teatro. Quer dizer, eu mal conseguia fazer o Michael me acompanhar para ver os tipos de espetáculo que eu gosto, que basicamente são os que envolvem garotas com saias armadas e coisas que voam do teto do teatro (tais como O fantasma da ópera e Tarzan: o musical).
E, nas poucas ocasiões em que ele REALMENTE me acompanhou, passou o tempo todo se inclinando para cima de mim e cochichando: “Dá para ver por que este espetáculo vai sair de cartaz. Não tem jeito de um cara agüentar ficar por aí cantando para uma chaleira falante a respeito de como ele gosta de uma garota. Você sabe disso, não sabe? E de onde é que esse som de orquestra completa supostamente viria? Quer dizer, eles estão em um calabouço. Simplesmente não faz o menor sentido.”
E eu achei que isso estragou a experiência toda, de verdade. O mesmo vale para o fato de o Michael ter pedido licença a cada cinco minutos para ir ao banheiro, fingindo ter bebido água demais no jantar. Mas a verdade é que ele só queria ficar conferindo os alertas do World of Warcraft no celular dele.
Mas, apesar de eu estar me divertindo com o J.P. e tudo o mais, não consigo parar de desejar que o Michael estivesse aqui para reclamar que A Bela e a Fera não passa de um musical cafona da Disney, feito para criancinhas, que não são exatamente um público qualificado, e que a música realmente é horrível e que a coisa toda só serve para fazer os turistas gastarem dinheiro com camisetas, canecas e programas de teatro muito caros em papel brilhante.
É especialmente triste o fato de ele não estar aqui porque nesta noite percebi que, na verdade, a história de A Bela e a Fera é a história do Michael e eu.
Não a parte da Bela (é claro). E nem a parte da Fera.
Mas a parte das pessoas que começam como amigas e que nem percebem que se gostam até que seja quase tarde demais...
Isso é totalmente a gente.
Tirando, é claro, o fato de a Bela ser mais inteligente do que eu. Tipo: Será que realmente teria feito diferença para a Bela se a Fera, muito antes de ele a ter aprisionado em seu castelo, tivesse ficado com a Judith Gershner, e daí não tivesse comentado com ela?
Não. Porque tudo aquilo aconteceu ANTES de a Bela e a Fera terem se conhecido. Então, que diferença faz?
Exatamente: nenhuma.
Simplesmente não dá para acreditar como eu fui idiota em relação a isso. Juro que, por mais cafona que seja — e, tudo bem, admito que agora eu enxergo o grau de cafonice da história —, é preciso dizer que A Bela e a Fera trouxe uma nova clareza à minha vida.
O que não deveria ser assim tão surpreendente já que, afinal de contas, é uma história tão antiga quanto o tempo.
De todo modo, eu sei que, no passado, já disse que o homem ideal para mim seria alguém capaz de assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais linda e mais romântica jamais contada, sem ficar implicando com as coisas erradas (tipo quando a Fera passa por sua transformação de príncipe no palco, ou quando os lobos falsos de pelúcia aparecem — bom, eles não podiam ser assustadores DEMAIS, pois há criancinhas na platéia).
Mas agora eu percebo que o único cara com quem eu assisti ao espetáculo e que passou no teste foi o J.P. Reynolds-Abernathy IV. Não pude deixar de notar que ele até derramou uma lágrima, que escorreu pela bochecha dele, durante a cena em que a Bela, com muita valentia, troca a própria vida pela do pai.
O Michael nunca chorou durante um espetáculo da Broadway. Tirando a cena em que o pai-macaco do Tarzan é assassinado brutalmente.
E isso só aconteceu porque ele estava tendo um ataque de riso.
Mas o negócio é o seguinte: estou começando a achar que isso não é necessariamente uma coisa ruim. Acho que talvez os meninos simplesmente sejam diferentes das meninas. Não só pelo fato de eles realmente se importarem com coisas como, por exemplo, se vai ou não ter um filme de Nightstalkers com a Jessica Biel fazendo mais uma vez seu papel de Abby Whistler de Blade: Trinity.
Ou porque eles acham que tudo bem ir para a cama com a Judith Gershner e nunca comentar com a namorada porque aconteceu antes de eles começarem a sair.
Mas isso só acontece porque eles são programados de um jeito diferente. Tipo, para ficarem impassíveis ao ver um cara com fantasia de gorila levar um tiro de mentirinha no palco.
Ao mesmo tempo, eles totalmente acreditam naquela cena do filme Um lugar chamado Notting Hill em que a personagem da Julia Roberts volta para aquele cara interpretado pelo Hugh Grant, apesar de que uma estrela de cinema daquelas não se apaixonaria, nem em um milhão de anos, por um dono de livraria pobretão.
E digo isso na pele de uma princesa apaixonada por um universitário.
O negócio é que, agora, eu finalmente entendi tudo: os caras são diferentes da gente.
Mas isso nem sempre é ruim. Aliás, como meus ancestrais diriam Vive la différence. Porque, tudo bem, muitos caras não gostam de musicais.
Mas esses mesmos caras podem dar de presente para você um colar com pingente de floco de neve no seu aniversário de quinze anos para representar o Baile de Inverno Sem Denominação, onde vocês declararam o amor um pelo outro pela primeira vez.
E isso, é preciso reconhecer, é uma coisa muito romântica.
Ah, as luzes acabaram de piscar. Está na hora de voltar para o meu lugar para o segundo ato.
E, para falar a verdade, não estou nem um pouco a fim de voltar. Seria ótimo se o J.P. não ficasse me perguntando sem parar se eu estou bem.
Eu entendo totalmente o fato de ele estar preocupado comigo como uma prova de amizade e tudo o mais, mas o que ele espera que eu diga? Como é que ele pode não saber que a resposta é não, não estou bem coisa nenhuma? Será que preciso lembrar a ele que, há duas noites, eu fui a maior idiota de ARRANCAR aquele colar de floco de neve e JOGAR em cima do cara que tinha me dado de presente? Será que ele acha que a gente simplesmente se recupera de uma coisa assim só porque vai assistir a um musical com xícaras dançantes?
O J.P. é mesmo um amor, mas às vezes é totalmente sem noção.
Mas acontece que a Tina sabe: o J.P. realmente é um vulcão adormecido de paixão. Aquela lágrima comprova isso. Ele só precisa da mulher certa para destrancar seu coração — que até agora ele manteve em uma casca fria e dura, para se proteger emocionalmente — e ele vai explodir como a caldeira borbulhante do Parque Nacional de Yellowstone.
E essa mulher obviamente não era a Lilly (que, aliás, também não me ligou nem me mandou nenhum e-mail, nem para me dar mais um pouco de bronca por ser uma ladra de namorado, e isso não faz nem um pouco o feitio dela).
Por outro lado, talvez o J.P. não seja sem noção. Talvez ele simplesmente seja homem.
Acho que nem todo mundo pode ser igual à Fera.
Sexta-feira, 10 de setembro, 23h45, no loft
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Nenhum recado no telefone também.
Mas o avião do Michael ainda vai ficar voando mais onze horas e meia. Ele vai me ligar quando pousar.
Quer dizer, ele tem que ligar. Certo?
Bom, não vou pensar sobre isto agora. Porque cada vez que eu penso, sinto umas palpitações estranhas no coração e as palmas das minhas mãos ficam suadas.
Enquanto eu estava fora, chegou para mim um envelope entregue por um mensageiro. Minha mãe me disse isso (não muito contente) quando eu a acordei para perguntar se o Michael tinha ligado. (Sinceramente, não percebi que ela estava dormindo. Normalmente, fica acordada assistindo a David Letterman até que o convidado musical apareça, à meia-noite e meia. Como é que eu ia saber que a convidada musical era a Fergie, e por isso minha mãe foi mais cedo para a cama?)
O envelope entregue pelo mensageiro obviamente não era do Michael. Era um envelope cor de marfim todo chique, com um enorme lacre de cera com as letras D e R no meio. Tinha alguma coisa naquilo que simplesmente berrava Grandmère.
Então, não fiquei surpresa quando minha mãe disse, toda mal-humorada: “A sua avó disse que era para você abrir assim que chegasse.”
Mas eu fiquei surpresa, quando ela completou: “E disse para você ligar para ela depois de ler. Não importasse a hora.”
“É para eu ligar para Grandmère depois das onze da noite?” Isso não fazia o menor sentido. Grandmère vai para cama todo dia, sem exceção, antes do noticiário das onze, a não ser que esteja em alguma festa com Henry Kissinger ou alguém assim. Ela diz que, se não dormir suas oito horas de sono de beleza, não pode fazer nada para sumir com as bolsas que ficam embaixo dos olhos dela no dia seguinte, por mais creme de hemorróidas que passe.
“Esse foi o recado”, minha mãe resmungou, e puxou as cobertas de novo para cima da cabeça. (Como ela consegue dormir com o sr. Gianini roncando daquele jeito ao lado dela é um mistério para mim. Só pode ser amor de verdade.)
Eu não estava gostando nada da aparência daquele envelope e com toda a certeza não estava gostando nada da idéia de ter que ligar para Grandmère às onze e meia da noite.
Mas fui para o meu quarto, rompi o lacre, peguei a carta, comecei a ler...
E quase tive um ataque cardíaco.
Em dois segundos exatos, já estava ao telefone com Grandmère.
“Ah, Amelia”, ela disse, parecendo completamente desperta. “Que bom. Finalmente. Recebeu a carta?”
“Da MÃE da Lana Weinberger?”, eu praticamente berrei. Só me lembrei de manter a voz baixa porque moro em um loft e o meu irmãozinho estava dormindo no quarto ao lado e eu não queria me arriscar a provocar a ira da minha mãe se eu o acordasse. “Pedindo para eu fazer o discurso de abertura no evento de gala da sociedade feminina dela para arrecadar dinheiro para os órfãos da África? Recebi. Mas... como é que você sabia? Também recebeu um?”
“Não seja ridícula”, ela desdenhou. “Eu tenho minhas maneiras de descobrir essas coisas. Então, Amelia, eu preciso saber. Isto é muito importante. Ela mencionou fazer um convite para que você se junte à Domina Rei quando atingir a maioridade?” Praticamente dava para ouvir que ela estava babando de tão ansiosa. “Ela mencionou alguma coisa sobre pedir para que você faça o juramento quando completar dezoito anos?”
“Mencionou sim”, respondi. “Mas, Grandmère, nunca ouvi falar desta tal de Domina Rei antes. E não tenho tempo para isto neste momento. Estou passando por um período muito estressante agora, e realmente preciso me concentrar em ficar com a cabeça no lugar...”
No entanto, esta foi totalmente a coisa errada a se dizer. Grandmère estava praticamente soltando fogo pelas ventas quando respondeu em seu tom mais principesco: “Para a sua informação, a Domina Rei é uma das sociedades femininas mais importante do mundo. Como é que você pode não saber disto, Amelia? Elas são como a Opus Dei das organizações de mulheres. Só que não têm filiação religiosa.”
Preciso confessar que fiquei um pouco interessada, apesar de não ser minha intenção. “É mesmo? Aquela sociedade secreta de O código Da Vinci? Aquela em que os membros se chicoteiam? A mãe da Lana anda com um espeto de metal esquisito preso em volta da perna?”
“Claro que não”, Grandmère respondeu com uma fungada. “Estou falando de maneira figurativa.”
Isso foi muito decepcionante de ouvir. Nunca fui apresentada à mãe da Lana (e ficou bem óbvio que ela não sabe nada sobre mim, porque na carta mencionou como a Lana tem apreciado minha amizade ao longo dos anos, e como é uma pena que a minha agenda real tenha me impedido de comparecer a mais festas na casa delas, para as quais ela sabe que a Lana me convidou. Até parece.), mas a idéia de que algum integrante da família Weinberger tenha possíveis espetos entrando em suas carnes me enche de imensa alegria.
“E”, Grandmère prosseguiu, “eu sei que já lhe falei sobre a Domina Rei, Amelia. A Contessa Trevanni é integrante.”
“A avó da Bella?” Grandmère não tem mencionado muito sua arquiinimiga, a Contessa, desde que a neta dela, a Bella, deixou toda a família Trevanni deliciada, no último Natal, ao fugir com o meu pseudoprimo príncipe René e ter ficado, bom, grávida dele. (Grandmère diz que é mais educado dizer enceinte, que é o termo em francês, mas a verdade é que dá tudo no mesmo. Quer dizer, realiza, será que ninguém na minha família ouviu falar de camisinha?)
Depois de uma conversinha séria com o meu pai (e, desconfio, uma troca monetária: o René iria assinar, dali apenas alguns dias, um contrato televisivo para um novo reality show, Príncipe encantado, em que algumas meninas iriam competir pela oportunidade de ter um encontro com um príncipe de verdade... especificamente, ele próprio), o René finalmente se casou com a Bella. Infelizmente para a avó dela, o casamento ocorreu em uma cerimônia discreta e fechada, já que René demorou tanto para pedir a mão dela que a barriga da Bella obviamente estava aparecendo, e o pessoal da Majesty Magazine ainda se ressente muito desse tipo de coisa.
Agora, a Bella e o René estão morando aqui em Manhattan, no Upper East Side, em uma cobertura que a Contessa deu para eles de presente de casamento, vão a aulas de Lamaze juntos e parecem estar felizes de verdade.
Grandmère ficou com tanta inveja de a Bella ter ficado com o René, em vez de mim — apesar de eu ainda estar no ensino médio, acorda — que poderia ter tido um colapso. Basicamente, nunca tocamos no assunto.
“Audrey Hepburn também era da Domina Rei”, Grandmère prosseguiu. “Assim como a princesa Grace de Mônaco. Hillary Rodham Clinton. A Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor. Jacqueline Kennedy Onassis. Até Oprah Winfrey.”
Um silêncio recaiu sobre a nossa conversa, como sempre acontece entre os integrantes educados da sociedade quando o nome da sra. Winfrey é mencionado.
Então eu falei: “Bom, isso tudo é muito legal, Grandmère. No entanto, como já disse, este realmente não é o melhor momento para mim. Eu...”
Mas Grandmère, para variar, não estava nem escutando.
“Eu, é claro, fui convidada para me filiar há anos. No entanto, devido a um engano completo, envolvendo um certo cavalheiro, que não será citado nesta conversa, fui colocada na lista negra de modo muito rude.”
“Ah, bom, é uma pena. Eu...”
“Certo. Se você quer mesmo saber, foi o príncipe Rainier de Mônaco. Mas os boatos eram completamente falsos! Eu nunca olhei nem duas vezes para ele! Por acaso era culpa minha o fato de ele ter ficado tão fascinado por mim que costumava me seguir por aí como um cachorrinho? Não posso imaginar como alguém pode ter pensando que era alguma coisa além do que realmente foi... uma simples paixão que um homem bem mais velho nutriu por uma jovem que não podia fazer nada além de borbulhar de tanto joie de vivre?”
Demorou um minuto para eu me dar conta de quem ela estava falando. “Quer dizer... você?”
“Claro que fui eu, Amelia! Qual é o seu problema? Por que você acha que ele se casou com Grace Kelly? Por que você acha que a família dele permitiu que se casasse com uma atriz de cinema? Só porque ficaram muito aliviados por ele ter resolvido se casar com alguém depois da mágoa que viveu quando eu o rejeitei...”
Engoli em seco. “Grandmère! Você fez com que ele virasse gay?”
“Claro que não! Amelia, não seja ridícula. Eu... Ah, deixe para lá. Como foi mesmo que chegamos a este assunto? O negócio é que a Contessa Trevanni vai comer a própria cabeça se você fizer o discurso de abertura na festa de gala beneficente da sociedade feminina. Nunca pediram à neta dela que fizesse discurso. Mas é claro que não, por que pediriam? Ela nunca realizou nada, a não ser ficar grávida, e isso qualquer idiota pode fazer, e ela é tão abobada que provavelmente ficaria paralisada ao ver duas mil empresárias de sucesso com traje impecável olhando para ela...”
Engoli em seco de novo... mas desta vez por outro motivo. “Espera aí... duas mil?
“Vamos ter que marcar um horário na Chanel agora mesmo”, Grandmère continuou tagarelando. “Alguma coisa discreta, acho, mas bem jovem. Acredito que esteja na hora de mandarmos fazer um tailleur para você. Vestidos são ótimos, mas um bom tailleur de lã é sempre uma escolha acertada...”
“Empresárias de sucesso com traje impecável?”, repeti, sentindo-me meio tonta. “Achei que a platéia seria de gente como a mãe da Lana... mulheres casadas da alta-sociedade com babás, cozinheiras e arrumadeiras em tempo integral...”
“Nancy Weinberger é uma das decoradoras mais requisitadas de Manhattan”, Grandmère interrompeu com frieza. “Ela decorou todo o apartamento que a Contessa comprou para René e Bella. Deixe-me ver, então, as cores da Domina Rei são azul e branco... azul nunca foi a melhor cor para você, mas vamos ter que dar um jeito...”
“Grandmère”, o pânico começava a subir pela minha garganta. Era mais ou menos a mesma sensação que eu tinha sempre que pensava no Michael, mas sem as palmas das mãos suadas. “Não posso fazer isso. Não posso fazer um discurso para duas mil empresárias de sucesso. Você não entende... estou passando por uma crise romântica no momento, e até que essa situação esteja resolvida, acho que preciso ficar na minha... aliás, mesmo depois que estiver tudo resolvido, acho que não vou conseguir falar na frente de tanta gente.”
“Quanta bobagem”, Grandmère disse, ríspida. “Você falou perante o Parlamento da Genovia sobre os parquímetros, lembra? Como se algum de nós pudesse esquecer daquele momento.”
“É, mas eram só uns velhos de peruca, não a mãe da Lana Weinberger! Não sei não, Grandmère. Acho que eu deveria...”
“Claro, só Deus sabe o que vamos fazer a respeito do seu cabelo. Acho que, até lá, ainda não vai ter crescido. Talvez Paolo possa ajustar algum tipo de extensão. Vou ligar para ele amanhã de manhã...”
“Falando sério, Grandmère, acho que eu...”
Mas já era tarde demais. Ela já tinha desligado o telefone, sem parar de resmungar sobre extensões de cabelo.
Maravilha. Eu realmente estava precisando disto.
Sábado, 11 de setembro, 9h, no loft
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O que não é estranho. Quer dizer, ele ainda tem três horas de vôo. E depois, precisa passar pela alfândega.
Então, só preciso ter paciência. Só preciso ficar calma. Só preciso...
FTLOUIE: TINA!!!! VOCÊ ESTÁ AÍ???? Se estiver, responda. ESTOU MORRENDO!!!!
ILUVROMANCE: Oi, Mia! Estou aqui. Por que você está morrendo?????
Ah, graças a Deus. Graças a Deus pela existência da Tina Hakim Baba.
FTLOUIE: Porque ao mesmo tempo em que eu sei que a ligação que Michael e eu temos é forte demais para ser dilacerada por um simples mal-entendido, e que ele vai ligar quando chegar ao Japão e vai me dizer que me perdoa e tudo vai ficar bem... Mas e se não for ficar? E se ele não ligar? Ai, meu Deus... as palmas das minhas mãos não param de suar!!!!! E acho que eu talvez esteja tendo um ataque cardíaco...
ILUVROMANCE: Mia! Tudo vai dar certo! Claro que o Michael vai perdoar você! Vocês vão voltar, e tudo vai ficar exatamente como era. Até melhor. Porque casais que passam por momentos difíceis juntos sempre saem fortalecidos...
FTLOUIE: Tem razão! E tanto faz, certo? Minhas ancestrais enfrentaram adversidades mais graves. Como invasores que saquearam seus palácios, seqüestros e ser forçadas a tomar vinho no crânio do pai assassinado e tudo o mais. O Michael e eu vamos ficar bem!
ILUVROMANCE: Totalmente! Então, acho que você não vai lá hoje à noite, certo?
FTLOUIE: Não vou lá aonde?
ILUVROMANCE: À festa da vitória.
FTLOUIE: Que festa da vitória?
ILUVROMANCE: Você sabe. A festa da vitória da Lilly e da Perin. Por terem vencido a eleição do conselho estudantil.
FTLOUIE: Não fui convidada para nenhuma festa da vitória.
ILUVROMANCE: Você não recebeu o e-mail?
FTLOUIE: Nãããããão...
ILUVROMANCE: Ah.
FTLOUIE: Ah, o quê?
ILUVROMANCE: Achei que ela não tinha falado sério.
FTLOUIE: Quem? Do que você está falando?
ILUVROMANCE: Da Lilly. Ela ficou dizendo que nunca mais ia falar com você porque você puxa o tapete dos outros e é uma ladra de namorado. Mas eu achei que ela estava brincando.
!!!!!!
FTLOUIE: O QUÊ???? COMO ELA PÔDE DIZER ISSO??? FOI SÓ UM SELINHO!!! ERA PARA SER NA BOCHECHA!!! EU ACERTEI A BOCA DELE POR ENGANO!!!!
ILUVROMANCE: Certo. Mas você não foi ver A Bela e a Fera com o J.P. ontem à noite?
FTLOUIE: Bom, fui. Mas foi absolutamente inocente. Nós fomos só como AMIGOS.
ILUVROMANCE: Mas você já não disse que o seu homem ideal seria um que conseguisse assistir a uma apresentação inteira de A Bela e a Fera, a história mais romântica que já foi contada, sem fazer piada nas horas erradas?
FTLOUIE: É. Mas isso faz muito tempo. E desde então, percebi que eu estava errada. Agora, o meu homem ideal é um que faz piada.
ILUVROMANCE: Bom, é melhor dizer isso à Lilly.
FTLOUIE: Por quê? O que ela anda dizendo? Espera um pouco... como é que ela SABE o que o J.P. e eu fizemos ontem à noite? Como é que VOCÊ sabe?
ILUVROMANCE: Ah... Você não viu?
FTLOUIE: NÃO VI O QUÊ????
ILUVROMANCE: A foto gigantesca de você e o J.P. saindo do teatro que está no New York Post de hoje com a manchete “princesa magoada encontra novo amor”?
PRINCESA MAGOADA ENCONTRA NOVO AMOR
Parece que o fim chegou para a princesa Mia Thermopolis (da Genovia), que mora aqui em Nova York, e seu namorado de longa data, Michael Moscovitz, aluno da Universidade de Columbia (e plebeu).
Segundo boatos, Moscovitz teria assinado um contrato de um ano com uma empresa japonesa de robótica localizada em Tsukuba, onde trabalhará em um projeto altamente sigiloso.
Mas parece que Vossa Alteza Real não está sofrendo tanto assim por seu amor perdido — nem perdendo tempo antes de voltar ao mercado. Seu ex-bonitão foi substituído por um homem misterioso que acompanhou a jovem representante da realeza a uma apresentação do espetáculo da Broadway A Bela e a Fera, que está há um bom tempo em cartaz, na sexta-feira à noite. Fontes que não quiseram se identificar dizem que o rapaz não é ninguém menos do que John Paul Reynolds-Abernathy IV, filho do rico promotor e produtor de teatro John Paul Reynolds-Abernathy III.
Uma pessoa que também esteve na platéia do espetáculo e que viu o jovem casal em seu camarote particular afirmou: “Com certeza pareciam bem íntimos lá.” Outra espectadora afirmou: “Eles formam um casal muito bonito. Os dois são tão altos e loiros...”
Quando procuramos um porta-voz do palácio real da Genovia para obter uma declaração, recebemos o seguinte comunicado: “Não fazemos comentários sobre a vida pessoal da princesa.”
Sábado, 11 de setembro, 10h, no loft
Bom. Pelo menos agora eu sei por que não tive notícias da Lilly.
O que é a maior confusão, em muitos níveis. Quer dizer, para começo de conversa, foi só um selinho.
E, em segundo lugar, eles já tinham terminado quando o selinho aconteceu. E, em terceiro lugar, FOMOS AO TEATRO COMO AMIGOS. Como é que alguém com a cabeça no lugar pode achar que eu estou SAINDO com o J.P. Reynolds-Abernathy IV?
Quer dizer, claro que ele é engraçado, fofo, legal e tudo o mais. Não me entenda mal.
Mas o meu coração pertence ao Michael Moscovitz, e sempre pertencerá!
Nada disso faz o menor sentido. A Lilly supostamente é minha melhor amiga. Como pode acreditar em uma coisa tão horrível a meu respeito?
E é verdade, eu fui bem má com o irmão dela na semana passada. Mas isso foi só porque eu (feito uma idiota) não percebi que coisa maravilhosa existia entre nós, até que fui lá e destruí tudo.
Mas eu PEDI DESCULPAS para ele. É só uma questão de tempo (duas horas) até que ele receba o meu e-mail e me ligue (por favor, Deus) e nós ajeitemos tudo e ele envie meu colar de floco de neve de volta e tudo fique bem.
A menos que por acaso ele dê uma olhada no Google News e veja o artigo gigantesco sobre eu e o J.P.
Mas por que ele acreditaria naquilo? Ele nunca acreditou em nenhuma das mentiras que os paparazzi sempre publicavam sobre eu e o James Franco. Por que acreditaria NISTO?
Não acreditaria. Não pode acreditar.
Então, qual é o problema da Lilly?
Sei lá. Não vou entrar em pânico. É verdade que, no passado, eu ficaria histérica com uma coisa destas. Já estaria ligando para o meu pai e implorando para que os nossos advogados exigissem uma retratação. Estaria tentando descobrir quem deu a dica para os jornais — como se eu já não soubesse (Grandmère). Estaria enlouquecida mandando e-mails para o Michael, toda histérica, explicando que nada disso é verdade.
Mas não agora. Sou muito madura para tudo isso. Além do mais, estou acostumada.
E, além disso: já estou apavorada demais com o estado atual das coisas. Como é que posso ficar ainda mais desesperada? Mal consigo segurar a caneta para escrever isto, de tão ensopada de suor que a minha mão está.
Então... tanto faz. Vou dar um tempo para que a Lilly se acalme. Tenho certeza de que quando ela estiver dando a festa dela e todo mundo menos eu estiver lá (eu liguei para a Tina depois que saí correndo para comprar o jornal. Eu disse a ela que é CLARO que ela tem de ir à festa da Lilly, apesar de querer boicotá-la em solidariedade a mim. Mas eu realmente preciso que ela vá, para eu poder saber o que a Lilly anda dizendo de mim. Juro que se a Lilly estiver falando mal de mim, vou ligar para a Comissão Federal das Comunicações e relatar o fato de que ela usou a palavra com M no episódio da semana passada de Lilly Tells It Like It Is, enquanto descrevia a atual situação no Iraque), ela vai começar a sentir a minha falta e vai me convidar para a festa.
E daí eu vou e nós vamos nos abraçar e tudo vai ficar bem.
Simplesmente vou ficar aqui fazendo o meu dever de pré-calculo até lá. Porque Deus bem sabe que eu não prestei muita atenção na semana passada, então NÃO FAÇO IDÉIA do que está acontecendo naquela aula. E, para falar a verdade, o mesmo vale para todas as outras matérias. A última coisa de que eu preciso, além de tudo o mais que está acontecendo, é repetir de ano na escola e ser expulsa.
E acho que, enquanto estiver fazendo isso, vou dar um fim nos pasteizinhos de carne de porco que sobraram do Number One Noodle Son (este negócio de carne é surreal. Uma vez que a gente começa a comer, não dá para parar).
Porque é assim que uma pessoa adulta lidaria com esta situação.
FALTAM DUAS HORAS PARA ELE POUSAR!!!!!!! Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê Ê
Sábado, 11 de setembro, 10h15, no loft
Então, acabei de colocar o meu nome no buscador do Google News para ver quantos artigos tinham sobre mim, e qual seria a probabilidade de o Michael ver aquele texto sobre eu e o J.P....
...tem 527 artigos RSS sobre o assunto.
Mas não é só.
Visitei a Pesquisa de Blogs do Google Blog para ver se alguém estava escrevendo sobre mim em algum blog, e descobri um novo site que entrou no ar: www.euodeiomiathermopolis.com.
Lá tem uma lista com as dez coisas mais idiotas sobre Mia Thermopolis. A primeira é o meu cabelo.
A décima é o meu nome.
O que tem no meio vai ficando cada vez pior.
Eu sei que deveria ignorar as coisas ruins que as pessoas falam de mim. Grandmère me disse que se eu reagir ou demonstrar que estou a par daquilo de alguma maneira, só irei alimentar a coisa toda, dando MAIS assunto para as pessoas que me odeiam.
Mas isto. Isto realmente é...
Uma maravilha. É mesmo uma maravilha. Como se eu já não tivesse BASTANTE coisa com que me preocupar.
Agora tem alguém por aí que me odeia tanto a ponto de comentar com o mundo todo que, com o meu cabelo novo, as minhas orelhas ficam parecendo asas de chaleira.
Era bem disso que eu precisava.
Sábado, 11 de setembro, 10h30, no loft
Querido Michael,
A esta altura você provavelmente já viu
Querido Michael,
Oi! Eu estava aqui imaginando se você viu
Querido Michael,
Antes de qualquer coisa, não olhe o
Caro fundador do euodeiomiathermopolis.com,
SE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, POR QUE SIMPLESMENTE NÃO FALA NA MINHA CARA, SEU COVARDE????
Sábado, 11 de setembro, meio-dia, no loft
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Meu celular acabou de tocar. Eu tinha tanta certeza de que era o Michael (o avião dele já pousou a esta altura) que quase derrubei o telefone, de tão suadas que as minhas mãos estavam, além de tremerem tanto (também estavam engorduradas da coxa de frango que eu encontrei no fundo da geladeira e que estava comendo).
Mas era só o J.P. Ele queria saber se eu tinha visto o jornal.
“Vi, não é engraçado?” Tentei parecer toda desencanada. O que é difícil fazer com um resto de coxa de frango frito na boca. “As pessoas acham que nós estamos apaixonados. Ha, ha.”
“É”, o J.P. respondeu. “Ha, ha.”
Tenho sorte por ele ser um cara que leva as coisas na esportiva.
“Sinto muito, de verdade”, eu disse. “Andar comigo é um pouco perigoso. Quer dizer, você acaba saindo no jornal.” Não mencionei o site euodeiomiathermopolis.com. Achei que ele ia descobrir esta informação logo, logo.
“Eu não me importo de ser associado a uma princesa, herdeira de um trono real. E os meus pais estão totalmente impressionados. Acham que eu finalmente consegui fazer alguma coisa útil.”
Foi a minha vez de dizer “Ha, ha”. Mas a verdade é que eu estava me sentindo meio enjoada. Talvez fosse por causa de tanta carne que eu consumi na última hora e meia. Basicamente, tudo o que estava na geladeira. Eu sinceramente não sei qual é o meu problema. Passei de vegetariana a praticamente canibal em menos de uma semana.
Bom, tudo bem, não me transformei numa canibal. Sabe-se lá qual é o nome que se dá para quem come carne em excesso.
Só que eu sabia a verdade. Minha sensação de enjôo não tinha nada a ver com a quantidade de carne que eu comi, e tudo a ver com o fato de que o avião do Michael já ter pousado, total, e que ele obviamente iria checar as mensagens dele a qualquer minuto.
“Olha”, o J.P. disse. “Eu estava aqui pensando se você ficou sabendo da festa da Lilly.”
“Fiquei sim. Não fui convidada. Obviamente.”
“Eu imaginei”, o J.P. suspirou. “Estava torcendo para que ela já tivesse superado a esta altura.”
“Bom, ver as nossas fotos juntos estampadas em toda a imprensa não vai ajudar em nada a situação”, eu disse.
“Não”, o J.P. respondeu. “Talvez, se nós dermos o fim de semana para ela...”
“Talvez.” Espero que sim. Mas acho que o fim de semana não vai adiantar.
“Quer me encontrar hoje à noite, para fazermos a nossa festa sozinhos?” “Sabe como é, para mostrar para eles como se faz?”
“Ai, meu Deus, que fofo da sua parte. Mas acho que é melhor eu ficar aqui. Porque o avião do Michael pousou, então ele deve ir dar uma olhada no e-mail dele logo, logo. E eu realmente quero estar aqui quando ele ligar.” Se ele ligar.
Mas ele tem que ligar. Certo??????
“Ah.” O J.P. pareceu meio chateado. “Bom, não seria melhor se você não estivesse aí quando ele ligar? Para ele perceber como você é requisitada e popular?”
Dei risada. O J.P. realmente tem um senso de humor distorcido.
“Engraçado! Mas acho que ele já vai ter uma boa noção disto quando vir o jornal. Se aquela foto nossa chegar até o Japão. Além do mais, eu realmente preciso estudar pré-cálculo, se quiser passar.”
“Bom, se você precisar de ajuda, posso passar aí, na boa”, o J.P. ofereceu. “Sou ótimo com a soma de diferenças infinitesimais.”
Ele não é um fofo? Imagine só, oferecer-se para abrir mão do sábado para me ajudar com pré-cálculo!
“Ai”, eu respondi. “É muito legal da sua parte. Mas está tudo bem. Na verdade, tem um professor de álgebra que mora aqui em casa, e eu posso recorrer a ele se começar a arrancar os cabelos de desespero. Quer dizer, o que sobrou do meu cabelo.”
“Bom”, o J.P. respondeu. “Tudo bem. Mas se você mudar de idéia...”
“Eu sei para quem telefonar”, eu estava meio que tentando me apressar para desligar o telefone. Porque o Michael podia estar ligando naquele exato momento. Não que o meu celular não fosse avisar. Mas... sabe como é.
“Certo”, o J.P. disse. “Bom, lembre-se disso. Nós formamos um casal ‘muito bonito’.”
“Porque nós dois somos tão altos e loiros”, dei risada.
O J.P. também deu risada, depois desligou.
Quando a caldeira de Yellowstone entrou em erupção pela última vez, há quarenta mil anos, despejou mil quilômetros cúbicos de dejetos, cobrindo basicamente a metade da América do Norte com uma camada de 1,80m de cinzas.
Isto é totalmente o que vai acontecer quando o J.P. finalmente encontrar seu amor verdadeiro.
Eu sei que isso é uma coisa totalmente egoísta de se dizer, mas só espero que, quando ele encontrar o dele, eu ainda tenha o meu.
Sábado, 11 de setembro, 16h, no loft
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Não dá para acreditar. Ele ainda não mandou e-mail nem ligou.
Minha mãe acabou de enfiar a cabeça aqui e disse: “Mia? Você não vai sair hoje à noite?”
Acho que ela percebeu, pelo fato de eu estar usando meu pijama de flanela da Hello Kitty, que vou ficar em casa hoje à noite.
“Que nada”, eu respondi, em um tom mais despreocupado do que o verdadeiro. POR QUE ELE NÃO LIGOU? “Só vou ficar aqui e terminar meu dever de casa de pré-cálculo.”
“Dever de casa de pré-cálculo?” Minha mãe chegou a esticar a mão para sentir a temperatura da minha testa. “Você não parece estar com febre...”
“Ha, ha.” Todo mundo ao meu redor está revelando um grande dom para a comédia ultimamente. Eu totalmente coloquei as mãos atrás das costas para ela não ver como estavam suando.
“Mia”, minha mãe disse, estampando sua expressão maternal no rosto. “Você não pode ficar trancada neste apartamento se lamentando por causa do Michael para sempre.”
“Eu sei disso”, respondi, chocada. “Meu Deus, mãe! Você acha que eu faria isto? Sou feminista, você sabe. Não preciso de um homem para me fazer feliz.” É só que, sabe como é, quando aquele homem especificamente está por perto, e eu cheiro o pescoço dele, meus níveis de oxitocina aumentam e eu me sinto mais calma e mais relaxada do que quando estou sozinha. Ou com qualquer outra pessoa.
“Bom.” Minha mãe parecia descrente. Ela sabe sobre a coisa da oxitocina. “Não sei. Você não resolveu ficar em casa por causa daquela reportagem boba do jornal, resolveu?”
“Está falando daquela que me acusa de ficar com o ex-namorado da minha melhor amiga quando mal faz uma semana que eu e o meu próprio namorado terminamos?” Perguntei, como quem não quer nada. “Caramba, não, por que diabos eu iria deixar que isso me incomodasse?”
“Mia.” Os lábios da minha mãe estão começando a se apertar, sinal claro de que ela não estava nada contente comigo. “Você não pode permitir que o fato de o Michael estar tocando a vida dele impeça você de tocar a sua. Claro que é importante você sofrer com a perda, mas...”
“QUE PERDA? TALVEZ O MICHAEL AINDA NÃO TENHA RECEBIDO MEU E-MAIL DE DESCULPAS. ATÉ ONDE A GENTE SABE, ELE PODE ESTAR ABRINDO O E-MAIL AGORA E, AO VER QUE EU PEDI DESCULPAS, ESTÁ SE PREPARANDO PARA LIGAR E ME ACEITAR DE VOLTA. A QUALQUER SEGUNDO.”
“Pare de gritar”. “Você está mesmo se sentindo bem? Parece um pouco exaltada. Você comeu alguma coisa hoje?”
“Hum.” Eu não sabia muito bem como dar a ela a notícia de que eu tinha acabado com toda a carne do almoço e com o bacon canadense que ela tinha reservado para o café-da-manhã. Não tinha sobrado nem um pedaço de carne no loft. O sorvete também tinha acabado. E eu ainda comi todos os biscoitos das bandeirantes. “Comi.”
“Bom, se você tem certeza de que está se sentindo bem e que vai ficar aqui mesmo”, minha mãe disse, “acho que o Frank e eu vamos ao cinema Angelika ver aquele novo documentário sobre o grunge. Você se importa de cuidar do Rocky enquanto a gente estiver fora?”
“Claro que não”, respondi. Em vez de cheirar o pescoço do Michael, achei que algumas horas da brincadeira preferida do Rocky, que inclui apontar para várias peças da coleção de caminhões Tonka e gritar “Minhão!”, que significa caminhão na língua dele, fariam bem para mim. Pode ser que eu relaxe um pouco.
Então, agora estou aqui cuidando do meu irmão. Ah, se pelo menos os fotógrafos do New York Post pudessem me ver agora... A vida glamourosa da princesa preferida dos Estados Unidos: sentada no chão da sala com o irmãozinho, brincando de “Minhão” com um pijama de flanela da Hello Kitty...
...enquanto seu coração se despedaça lenta e irrevogavelmente.
Domingo, 12 de setembro, 10h, no loft
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Mas recebi uma mensagem instantânea!!!
Ah, é só a Tina. Mas acho que isso é melhor do que nada.
ILUVROMANCE: Oi, Mia!!!! Ele ligou?????
FTLOUIE: Ainda não. Mas tenho certeza de que logo terei notícias. Ele ainda deve estar se acomodando e tudo o mais. Ele vai ligar ou escrever assim que puder.
Meu Deus, eu pareço tão corajosa e forte, mas por dentro, estou tremendo igual a uma... nem sei o quê. Uma coisinha que fica lá tremendo. POR QUE ELE NÃO LIGOU????
ILUVROMANCE: Claro que vai ligar. A menos que tenha visto aquela foto, quer dizer.
Certo. É hora de mudar de assunto.
Ftlouie: E aí, como foi a festa????
ILUVROMANCE: A festa foi OK, acho. Nada de muito emocionante aconteceu. O Kenny Showalter apareceu com um monte de caras da aula de muay thai dele, e todos começaram a fazer flexão de braço sem camisa, e acho que a Lilly ficou impressionada com o que viu, já que totalmente se enroscou em um deles. E daí a Perin comeu cerejas marrasquino demais e vomitou na pia do banheiro e um monte de cerejas ainda estavam inteiras, de modo que a Ling Su precisou cortar tudo com uma tesoura para que pudesse passar pelo ralo. Foi meio que só isso. Como eu disse, você não perdeu muita coisa.
FTLOUIE: Espera aí um minuto. A Lilly SE ENROSCOU com um cara da AULA DE MUAY THAI DO KENNY SHOWALTER?
ILUVROMANCE: Ah. É, foi sim. Bom, quer dizer, o Boris disse que viu a Lilly agarrando um cara qualquer na cozinha. Mas ela jogou uma luva de forno em forma de lagosta na cabeça dele antes que pudesse ver direito quem era. Você sabe que o Boris tem medo de lagosta...
FTLOUIE: Mas era com certeza um dos caras da aula de muay thai????
ILUVROMANCE: Era. Bom, o cara estava sem camisa, então tinha que ser.
FTLOUIE: Mas isto simplesmente é... é tão errado! Quer dizer, ela nem teve oportunidade de se recuperar da tristeza de terminar com o J.P.! É óbvio que ela só ficou com o cara para se vingar! O que a Lilly acha que está fazendo? Alguém precisa conversar com essa garota. Você tentou falar com ela????
ILUVROMANCE: Bom... mais ou menos. Mas ela só deu risada na minha cara e me disse para não ser tão...
FTLOUIE: Tão o quê? Tão O QUÊ?
ILUVROMANCE: Nada, Mia, preciso ir, minha mãe está chamando. A gente se fala mais tarde!
Mas o negócio é que ela não precisava dizer. Eu sei o que a Lilly disse a ela.
Para não ser tão Mia.
Mas existe uma RAZÃO para eu me preocupar tanto com ela. Às vezes a Lilly faz escolhas realmente muito ruins. E daí ela se magoa.
E é verdade que às vezes ela também faz boas escolhas — tipo ficar com o J.P. — e se magoa do mesmo jeito.
Mas ficar com um lutador de muay thai qualquer na cozinha da casa dela, só um dia depois de terminar com um namorado de seis meses?
Não sei como esta pode ser uma boa escolha.
Alguém precisa falar com ela antes que faça algo de que se arrependa.
Se a Dra. Moscovitz não me odiasse completamente agora — por ter dado um pé na bunda do filho dela e depois SUPOSTAMENTE ter saído com o namorado de sua filha —, eu ligaria para ela.
Mas, levando em conta o atual estágio do nosso relacionamento, provavelmente esta não seja a atitude mais prudente a se tomar.
Domingo, 12 de setembro, 11h, no loft
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Mas, daí, o meu celular tocou!
Só que não era o Michael. Era só o J.P.
J.P.: “E aí, como você está?”
Foi meio difícil esconder a minha decepção desesperadora.
Eu: “Tudo bem. E você?”
J.P.: “Qual é o problema? Espera... não vai dizer que ele não ligou.”
Eu: “Ele não ligou.”
Resmungos ininteligíveis do outro lado da linha. Daí:
J.P.: “Não se preocupe. Ele vai ligar.”
Eu: “Espero que sim.”
J.P.: “Está de brincadeira? Seria burrice não ligar. Então, como foi a sua noite de ontem?”
Eu: “Boa. Quer dizer, não fiz muita coisa. Só brinquei de Minhão com o meu irmão.”
J.P.: “Você brincou DO QUÊ?”
Está vendo, o Michael sabe o que é Minhão. Além de saber, ele também já BRINCOU disso com o Rocky. Acho até que ele GOSTA dessa brincadeira. Ele fica tão relaxado com ela quanto eu fico.
Eu: “É... Ah, deixa para lá. Você soube da Lilly?”
J.P.: “Não. O que tem ela?”
Eu não queria ser a portadora de más notícias sobre a ex do J.P., mas achei que era melhor ele saber por mim do que por alguém na escola, na segunda-feira.
Eu: “Ela ficou com um lutador de muay thai qualquer na festa dela, ontem à noite.”
Em vez do suspiro de horror que eu esperava ouvir, quase parece que o J.P. ficou... bom, foi quase como se ele estivesse dando risada.
J.P.: “É bem a cara da Lilly mesmo.”
Fiquei chocada. Quer dizer, claro, era a cara da ANTIGA Lilly — da Lilly pré-J.P. Mas não da nova Lilly, melhorada.
E ele estava dando risada!
Eu: “J.P., você não percebe? A Lilly só está fazendo isto porque está arrasada e magoada com o que considera ser uma traição nossa! Essa coisa toda de lutador de muay thai está relacionada diretamente àquele artigo do New York Post. A gente precisa fazer alguma coisa antes que ela entre em um espiral cada vez mais descendente de comportamento autodestrutivo, como aconteceu com a Lindsay Lohan!”
J.P.: “Bom, não sei o que a gente pode fazer. A Lilly já está bem grandinha para tomar as próprias decisões. Se ela quiser ficar com um lutador de muay thai qualquer, o problema realmente é dela, não nosso.”
Não dava para acreditar que ele ainda estava dando risada.
Eu: “J.P., não é engraçado.”
J.P.: “Bom, meio que é sim.”
Eu: “Não, não é, é...”
Domingo, 12 de setembro, meio-dia, no loft
Eu tive que parar de escrever porque daí o meu celular tocou de novo. Era o Michael.
Ele está no Japão. E recebeu o meu e-mail.
Também viu a foto do J.P. e eu no Post.
Mas ele disse que aquilo não fazia a menor diferença. Ele disse que sentia muito por a gente ter que fazer isto pelo telefone, mas que não tinha outro jeito.
Perguntei o que ele queria dizer com “isto”, e ele disse que tinha passado a viagem inteira até o Japão pensando no assunto, e que realmente acha que seria melhor se ele e eu voltássemos a ser o que éramos antes de começar a namorar: amigos.
Ele disse que achava que nós dois provavelmente precisávamos amadurecer um pouco, e que talvez um tempo afastados — saindo com outras pessoas — pudesse ser bom para nós.
Eu disse que tudo bem. Apesar de cada palavra que ele proferia parecer uma punhalada no meu coração.
E daí eu me despedi e desliguei. Porque fiquei com medo de que ele me ouvisse soluçando.
E não é assim que eu quero que ele se lembre de mim.
Domingo, 12 de setembro, 12h30, no loft
POR QUE EU DISSE QUE TUDO BEM?????????????????
Por que eu não disse o que eu realmente sentia, que eu entendia a parte de precisar amadurecer um pouco e de passar um tempo longe...
...mas não a parte de ser apenas amigos e sair com outras pessoas????
Por que eu não disse o que eu estava pensando, que eu preferia MORRER a ficar com alguém que não fosse ele?????
Por que eu não disse a verdade a ele?????
E eu SEI que não teria feito nenhuma diferença, e que eu só teria soado exatamente o que ele acha que eu sou: uma menininha imatura.
Mas pelo menos ele não ia achar que eu acho que está tudo tão bem assim.
Porque eu NÃO acho que esteja tudo tão bem assim.
Eu NUNCA vou achar que está tudo tão bem assim.
Acho que eu nunca mais vou ficar bem.
Segunda-feira, 13 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe entrou no meu quarto agorinha mesmo, para dizer que compreende que eu esteja triste por ter perdido o amor da minha vida.
Ela disse que compreende como deve ter sido difícil para mim ter passado por um rompimento tão horrível e ainda ter perdido a minha melhor amiga na mesma semana.
Ela disse que tem solidariedade completa pela minha situação dura, e entende que eu precise de tempo para curtir a tristeza da minha perda.
Ela disse que tentou me dar o tempo e a liberdade que eu preciso para ficar triste.
Mas ela disse que um dia inteiro na cama já está bom demais.
E também que está cansada de me ver com o meu pijama de flanela da Hello Kitty que, se não está enganada, eu não tiro desde sábado. E também que está na hora de levantar, de trocar de roupa e de ir para a escola.
Eu não tive outra escolha além de dizer a verdade a ela:
Que eu estou morrendo.
Claro que eu sei que não estou morrendo.
Mas por que eu me sinto assim?
Fico torcendo para que tudo simplesmente... desapareça.
Mas não vai desaparecer. Não desaparece. Quando fecho os olhos e vou dormir, fico torcendo para que, quando tornar a abri-los, tudo não tenha passado de um pesadelo terrível.
Só que nunca é assim que acontece. Cada vez que eu acordo, continuo com meu pijama da Hello Kitty — o mesmo que eu estava usando quando o Michael disse que achava que nós simplesmente deveríamos voltar a ser amigos — e nós CONTINUAMOS SEPARADOS.
Minha mãe disse que eu não estou morrendo. Mesmo depois de eu ter deixado ela sentir as palmas das minhas mãos suadas e meus batimentos cardíacos erráticos. Mesmo depois de eu ter mostrado a ela a parte branca dos meus olhos, que ficou visivelmente amarelada. Mesmo depois de eu mostrar a minha língua para ela, que ficou basicamente branca, em vez de cor-de-rosa e saudável. Mesmo depois de eu ter informado a ela que visitei o site diagnosticoerrado.com, e que é óbvio que eu estou com meningite.
Nesse caso, minha mãe disse, era melhor eu me vestir logo para ela poder me levar para o pronto-socorro.
Foi aí que eu vi que ela tinha me pegado no pulo. Então eu simplesmente implorei a ela que me deixasse ficar na cama mais um dia. E ela finalmente cedeu.
Eu não contei a verdade para ela: que nunca mais vou sair da cama.
É verdade. Quer dizer, pense bem sobre o assunto: agora que o Michael saiu da minha vida, não existe nenhuma razão verdadeira para eu sair da cama. Tal como, por exemplo, ir à escola.
É verdade. Eu sou a princesa da Genovia. Eu vou SEMPRE ser a princesa da Genovia, independentemente de eu ir à escola ou não. Então, que diferença faz se eu for à escola? Não vou deixar de ter emprego — princesa da Genovia —, independentemente de eu me formar ou não.
E, como agora eu tenho dezesseis anos, ninguém pode me FORÇAR a ir à escola.
Portanto, decido que não vou. Nunca mais.
Minha mãe disse que vai ligar para a escola e dizer que eu não vou à aula hoje, e que vai ligar para Grandmère e dizer a ela que também não vou conseguir ir à aula de princesa desta tarde. Ela até disse que vai falar para o Lars que ele pode tirar o dia de folga, e que eu posso ficar mais um dia deprimida na cama se eu quiser.
Mas que amanhã, independentemente do que eu disser, vou ter que ir à escola.
E a isso eu só posso dizer uma coisa: é o que ELA pensa.
Talvez meu pai me deixe mudar para a Genovia.
Segunda-feira, 13 de setembro, 17h, no loft
A Tina acabou de passar aqui. A minha mãe deixou que ela entrasse para me fazer uma visita.
Eu realmente preferia que não tivesse deixado.
Acho que o fato de que eu não tomo banho há dois dias deve estar aparente, já que os olhos da Tina ficaram bem esbugalhados quando ela me viu.
Mesmo assim, ela fingiu que não estava chocada com a quantidade de oleosidade no meu cabelo nem nada. Ela falou assim: “A sua mãe me contou. Sobre o Michael. Mia, sinto muito, de verdade. Quando você vai voltar para a escola? Todo mundo está sentindo a sua falta!”
“A Lilly não está”, respondi.
“Bom”, a Tina fez uma careta. “Não, isto é verdade. Mas, mesmo assim. Você não pode ficar trancada no quarto o resto da vida, Mia.”
“Eu sei. Vou voltar para a escola amanhã.” Mas esta era uma mentira completa. Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, já dava para sentir as palmas das minhas mãos ficando suadas. Só a idéia de ir à escola me dava vontade de gemer.
“Ah, que ótimo”, a Tina disse. “Eu sei que as coisas não deram certo com o Michael, mas talvez seja melhor assim. Quer dizer, ele é muito mais velho do que você, e vocês estão em momentos tão diferentes da vida, com você ainda no ensino médio e ele já na faculdade e tudo o mais.”
Não dava para acreditar. Até a Tina — aquela que sempre me apoiava com mais convicção no que diz respeito ao meu amor pelo Michael — estava me traindo. Mas tentei não deixar que o meu choque transparecesse.
“Além do mais”, a Tina prosseguiu, sem nem se dar conta da dor que infligia a mim, “agora você realmente pode se concentrar em começar aquele romance que sempre quis escrever. E vai poder se esforçar mais na escola e melhorar as suas notas para entrar em uma faculdade ótima de verdade, onde vai conhecer um cara ótimo de verdade que vai fazer você esquecer a existência do Michael!”
É. Porque é bem isso que eu quero fazer. Esquecer sobre a existência do Michael. O único cara — a única PESSOA — perto de quem eu já me senti completamente calma.
Mas eu não disse isso. Em vez disso, falei: “Quer saber de uma coisa, Tina? Você tem razão. A gente se vê amanhã na escola. Prometo.”
E a Tina foi embora toda feliz, achando que tinha me alegrado.
Mas eu realmente não acredito nisso. Sabe como é, que alguma coisa do que a Tina tenha dito seja verdade.
E realmente não vou à escola amanhã. Eu só disse aquilo para a Tina ir embora. Porque ter que falar com ela me deixou supercansada. Eu só queria voltar a dormir.
Aliás, é o que vou fazer agora. Escrever isto aqui me deixou completamente exausta.
Só o fato de viver me deixa exausta.
Talvez desta vez, quando eu acordar, realmente descubra que foi só um sonho ruim...
Terça-feira, 14 de setembro, 8h, no loft
Mas não tive tanta sorte assim com a coisa do sonho ruim. Dava para ver pela maneira como o sr. Gianini entrou aqui com uma caneca fumegante de chocolate quente e disse: “Vamos acordar para este lindo dia, Mia! Olhe só o que eu trouxe! Chocolate quente! Com chantilly! Mas você só vai poder tomar se sair da cama, trocar de roupa e entrar na limusine para ir para a escola.”
Ele nunca teria feito isso se eu não tivesse dado um pé na bunda brutal do meu namorado de longa data e não estivesse à beira do desespero naquele momento.
Coitado do sr. G. Quer dizer, ele merece pontos por tentar. Realmente merece.
Eu disse que não queria chocolate quente nenhum. Daí expliquei — com muita educação — que não vou à escola. Nunca mais.
Dei uma olhada na minha língua ao espelho agora mesmo. Não está tão branca quanto ontem. É possível que eu não esteja com meningite, no final das contas.
Mas o que mais pode explicar o fato de que sempre que penso que o Michael não faz mais parte da minha vida o meu coração começa a bater muito rápido e não desacelera por sessenta segundos, às vezes até mais?
Vai ver que estou com febre de lassa. Mas nunca estive na África Ocidental.
Terça-feira, 14 de setembro, 17h, no loft
A Tina veio me visitar de novo depois da escola hoje. Desta vez, trouxe toda a lição de casa que eu tinha perdido.
E também o Boris.
O Boris ficou um pouco surpreso de me ver na minha atual condição. Eu sei porque ele disse: “Mia, é muito surpreendente para mim o fato de uma feminista ficar tão aborrecida porque um homem a rejeitou.”
Daí, ele disse: “Aaai!”, porque a Tina deu a maior cotovelada nas costelas dele.
Ele não acreditou na minha história de febre de lassa.
Então, daí, apesar de eu realmente não querer magoar ninguém — porque só Deus sabe que eu mesma já estou sofrendo o bastante por todo mundo — fui forçada a lembrar ao Boris de que no passado, quando uma certa ex-namorada dele o rejeitou, ele largou um globo inteiro em cima da cabeça na tentativa equivocada de conquistá-la de volta. Eu disse que comparado a isso, o fato de eu estar me recusando a tomar banho e a sair da cama durante alguns dias realmente não é nada.
E ele concordou. Mas ficou cheirando o ar do meu quarto e perguntando: “Mia, posso abrir a janela? Parece que está um pouco... quente aqui dentro.”
Não me importo de estar fedendo. A verdade é que eu não me importo com nada. Não é uma tristeza?
Isso fez com que ficasse difícil para a Tina conseguir fazer com que eu conversasse sobre bobagens com ela, algo que dá para ver que foi idéia da minha mãe. A Tina tentou fazer com que eu me interessasse em voltar para a escola dizendo que tanto o J.P. quanto o Kenny tinham ficado perguntando de mim... especialmente o J.P., que tinha dado uma coisa para a Tina me entregar: um bilhetinho bem dobrado que eu tive interesse zero em ler.
Depois do que pareceu uma eternidade — eu sei! É muito triste quando as tentativas da sua melhor amiga de deixar você animada falham completamente —, a Tina e o Boris finalmente foram embora. Abri o bilhete que o J.P. deu para a Tina entregar para mim. Dizia um monte de coisa, tipo: Vamos lá, não pode ser TÃO ruim assim e Por que você não atende aos meus telefonemas? e Eu vou levar você para ver Tarzan! Assentos de orquestra! e Volte logo para a escola. Estou com saudade de você.
O que foi totalmente fofo da parte dele.
Mas quando a sua vida está totalmente se despedaçando ao seu redor, o último lugar do mundo em que você quer estar é na escola... por mais que lá tenha garotos fofos dizendo que estão com saudade de você.
Quarta-feira, 15 de setembro, 8h, no loft
Minha mãe irrompeu aqui hoje de manhã, com a boca praticamente invisível, de tão apertados que os lábios dela estavam. Ela disse que entende que eu estou triste. Disse que entende que eu sinto que não existe motivo para viver porque o meu namorado me deu um pé na bunda, minha melhor amiga não fala comigo e eu não tenho escolha a respeito da carreira que vou seguir algum dia. Ela disse que entende que as palmas das minhas mãos não parem de suar, que eu estou com palpitação e que a minha língua está com uma cor esquisita.
Mas daí ela disse que três dias de fossa é o limite dela. Ela disse que eu ia me levantar e ia me vestir e ir para a escola, nem que ela tivesse que me arrastar até o banheiro e me enfiar embaixo do chuveiro por conta própria.
Eu simplesmente fiquei no lugar exato onde estive nas últimas setenta e duas horas — a minha cama — e continuei olhando para ela sem dizer nada. Não dava para acreditar como ela podia ser tão fria. Quer dizer, estou falando sério.
Daí ela tentou uma tática diferente. Começou a chorar. Disse que estava preocupada de verdade comigo e que não sabe o que fazer. Diz que nunca me viu assim — que eu nem fiz nada no outro dia, quando o Rocky tentou enfiar uma moeda de dez centavos no nariz. Ela disse que, há uma semana, eu teria tido um ataque por ver moedas soltas pela casa, porque ele poderia se engasgar com elas.
Agora eu nem ligava mais.
E isso nem é verdade. Eu não quero que o Rocky se engasgue. E não quero fazer minha mãe chorar.
Mas, ao mesmo tempo, não sei o que posso fazer para evitar que qualquer uma dessas coisas aconteça.
Daí a minha mãe mudou a abordagem de novo, parou de chorar e perguntou se eu queria que ela pegasse pesado. Ela disse que não quer incomodar o meu pai enquanto ele está ocupado com a Assembléia Geral da ONU, mas que eu realmente não estava lhe dando muita escolha. O que eu queria que ela fizesse? Que fosse incomodar o meu pai com isso?
Eu disse a ela que podia chamar o meu pai se quisesse. Disse que estava mesmo querendo falar com ele, para discutir a possibilidade de me mudar permanentemente para a Genovia. Porque a verdade é que eu não quero mais morar em Manhattan.
Eu só queria que a minha mãe me deixasse sozinha para eu poder continuar sentindo pena de mim mesma em paz. O meu plano de fato funcionou... um pouco bem demais. Ela ficou tão desnorteada que saiu correndo do meu quarto e começou a chorar de novo.
Eu realmente não queria fazer com que ela chorasse! Sinto muito por tê-la deixado mal. Principalmente porque na verdade eu não quero me mudar para a Genovia. Tenho certeza de que não vão me deixar ficar o dia inteiro na cama sem fazer nada lá. E isso realmente é o que eu estou começando a fazer. Todo dia de manhã, acordo antes de todo mundo e tomo café-da-manhã — geralmente qualquer coisa que tenha sobrado na geladeira da noite anterior — e dou comida para o Fat Louie e limpo a caixa de areia dele.
Daí volto para a cama, e no final o Fat Louie acaba vindo se juntar a mim, e juntos assistimos à contagem regressiva dos dez melhores videoclipes da MTV e depois à do VH1. Quando a minha mãe ou o sr. G entra no quarto e tenta me fazer ir à escola, eu digo não... o que geralmente me deixa tão exausta que preciso tirar uma sonequinha.
Daí eu acordo a tempo de assistir The View e um episódio inteiro de Judging Amy.
Depois que eu me asseguro de que não há ninguém por perto, vou para a cozinha e almoço alguma coisa — um sanduíche de presunto ou um saco de pipoca de microondas ou algo assim. Não importa muito o quê — e volto para a cama com o Fat Louie e assisto à juíza Milian em The People’s Court, e depois à Judge Judy.
Daí a minha mãe manda a Tina, e eu finjo estar viva, e então a Tina vai embora, e eu vou dormir, porque a Tina me deixa exausta. Daí, depois que a minha mãe e todo mundo está dormindo, eu levanto, faço um lanche e assisto à TV até as três da manhã.
Daí acordo algumas horas depois e faço tudo de novo, depois percebo que não estava sonhando e que realmente não estou mais com o Michael.
Eu supostamente poderia fazer isto até os dezoito anos, até começar a receber meu salário anual como princesa da Genovia (que só começa a ser pago quando eu atingir a maioridade legal e dê início às minhas funções oficiais como herdeira do trono).
E, tudo bem, vai ser difícil cumprir as minhas funções oficiais da cama.
Mas aposto que consigo encontrar um jeito.
Mesmo assim. É um saco fazer a mãe da gente chorar. Talvez eu deva escrever um cartão ou algo assim para ela.
Só que isso incluiria sair da cama para procurar umas canetinhas e tal. E eu estou muito, muito cansada para fazer tudo isto.
Quarta-feira, 15 de setembro, 17h, no loft
Acho que a minha mãe não estava brincando sobre pegar pesado. A Tina não apareceu depois da escola hoje.
Grandmère apareceu.
Mas — por mais que eu a ame, e por mais que eu sinta por tê-la feito chorar — a minha mãe está totalmente errada se acha que qualquer coisa que Grandmère diga ou faça vá me fazer mudar de idéia a respeito de ir à escola.
Não vou voltar. Simplesmente não há motivo.
“Como assim, não há motivo?”, Grandmère quis saber quando eu disse isso. “Claro que tem motivo. Você precisa aprender.”
“Por quê?”, perguntei a ela. “O meu futuro emprego está totalmente garantido. Ao longo dos séculos, a maior parte dos monarcas foi um monte de imbecis completos, e no entanto tiveram permissão para governar. Que diferença faz se eu me formar no ensino médio ou não?”
“Bom, você não vai querer ser uma ignorante”, Grandmère insistiu. Ela estava empoleirada bem na beirada da minha cama, segurando a bolsa no colo e olhando para tudo cheia de desdém, como por exemplo para as folhas de dever de casa que a Tina tinha deixado no dia anterior e que eu meio tinha jogado pelo chão, e para os meus bonequinhos de Buffy — A Caça-Vampiros, aparentemente sem perceber que eles agora são peças de colecionador caras, igual às xícaras de Limoges idiotas dela.
Mas, pela expressão de Grandmère, deu para ver que, em vez de estar no quarto de sua neta adolescente, ela se sentia como se estivesse em alguma loja de penhores em um beco fedido de Chinatown ou algo assim.
E, tudo bem, acho mesmo que está um pouco bagunçado. Mas que se dane.
“Por que eu não vou querer ser ignorante?”, perguntei. “Algumas das mulheres mais influentes do planeta também não se formaram no ensino médio.”
“Cite uma”, Grandmère exigiu, com uma fungada de desdém.
“Paris Hilton”, eu disse. “Lindsay Lohan. Nicole Richie.”
“Tenho bastante certeza de que todas essa mulheres se formaram no ensino médio. E, mesmo que não tenham se formado, não há nada de que se orgulhar. Ignorância nunca é bonito. Falando nisso, quanto tempo faz que você não lava o cabelo, Amelia?”
Não consigo entender a razão de tomar banho. Que diferença faz a minha aparência agora que o Michael está fora da minha vida?
Quando mencionei isso, no entanto, Grandmère perguntou se eu estava me sentido bem.
“Não, não estou, Grandmère. E eu achei que estava bem óbvio pelo fato de eu não ter levantado da cama em quatro dias, a não ser para comer e para ir ao banheiro.”
“Ah, Amelia”, Grandmère pareceu ofendida. “Agora também nos rebaixamos a referências escatológicas? Sinceramente. Eu compreendo que você esteja triste por perder Aquele Garoto, mas...”
“Grandmère acho que é melhor você ir embora agora.”
“Não vou embora até decidirmos o que vamos fazer em relação a isto.”
E então Grandmère bateu com o dedo no papel de carta da Domina Rei da sra. Weinberger, que ela encontrou saindo de baixo da minha cama.
“Ah, isso aí”, eu disse. “Por favor, peça à sua secretária que recuse para mim.”
“Recusar?” As sobrancelhas desenhadas de Grandmère se ergueram. “Não faremos nada deste tipo, mocinha. Você faz alguma idéia do que Elana Trevanni disse quando eu cruzei com ela na Bergdorf’s ontem e mencionei como quem não quer nada que a minha neta tinha sido convidada para fazer um discurso na festa de gala da Domina Rei? Ela disse...”
“Certo”, interrompi de novo. “Eu farei.”
Grandmère não disse nada por um segundo. “Você acabou de dizer que fará o discurso, Amelia?”
“Disse sim”, respondi. Qualquer coisa para ela ir embora. “Eu faço. Mas é só que... será que a gente pode falar disso mais tarde? Estou com dor de cabeça.”
“Você deve estar desidratada, provavelmente. Bebeu seus oito copos d’água hoje? Você sabe que precisa beber oito copos d’água por dia, Amelia, para ficar sempre hidratada. É assim que nós, as mulheres Renaldo, conservamos nossa pele de veludo, ao consumir líquidos suficientes...”
“Acho que eu só preciso descansar”, eu disse com a voz fraca. “A minha garganta está começando a doer um pouco. Não quero ficar com laringite e perder a voz antes do grande evento... é na sexta-feira da outra semana, certo?”
“Pelo amor de Deus”, Grandmère pulou da minha cama tão rápido que assustou o Fat Louie do forte de travesseiros que eu tinha montado para ele ao meu lado. Só deu para ver uma mancha cor de laranja quando ele correu para a segurança do armário. “Não podemos permitir que você fique com alguma doença que ameace a sua presença à festa de gala! Enviarei meu médico particular imediatamente!”
Ela começou a remexer na bolsa, em busca do celular cravejado de pedrarias — que ela só sabe usar porque eu mostrei para ela como funcionava um milhão de vezes —, mas eu a detive ao dizer, com a voz bem fraca: “Não, está tudo bem, Grandmère. Acho que eu só preciso descansar... É melhor você ir embora. Seja lá o que eu tenha, acho que você não vai querer pegar...”
Grandmère saiu de lá como uma bala.
E eu FINALMENTE pude voltar a dormir.
Ou pelo menos, foi o que eu achei. Porque, alguns minutos depois, a minha mãe apareceu à porta e ficou lá olhando para mim, cheia de preocupação no rosto.
“Mia”, ela falou. “Você disse à sua avó que vai fazer um discurso no evento beneficente da Sociedade Feminina Domina Rei?”
“Falei sim”, respondi, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Falei qualquer coisa para fazer com que ela fosse embora.”
Minha mãe foi embora, com cara de preocupação.
Não sei por que ELA está tão preocupada. Sou eu que vou ter de encontrar um jeito de fugir da cidade antes que o evento aconteça.
Quinta-feira, 16 de setembro, 11h, na limusine do meu pai
Hoje de manhã, às nove horas, eu estava na cama com os olhos fechados bem apertados (porque ouvi alguém entrando e não queria ter que dar conta disso), quando minhas cobertas foram arrancadas e uma voz muito severa e profunda disse: “Levanta.”
Abri os olhos e fiquei surpresa de ver o meu pai ali parado, com o terno de negócios dele e cheirando a outono.
Faz tanto tempo que eu não saio de casa que me esqueci do cheiro do outono.
Dava para ver pela expressão dele que eu estava ferrada.
Então, eu disse: “Não”, puxei as cobertas de volta e enfiei a cabeça embaixo delas.
E é aí que o meu pai diz: “Lars. Por favor.”
E daí o meu guarda-costas me pegou no colo — eu ainda com a cabeça enfiada embaixo das cobertas — e me tirou da cama e começou a me carregar para fora do apartamento da minha mãe.
“O que você está fazendo?”, eu quis saber, quando consegui desvencilhar a minha cabeça das cobertas, e vi que estávamos no corredor de entrada e que a Ronnie, nossa vizinha de porta, estava olhando para nós, estupefata, com os braços cheios de sacolas de compras.
“Algo que é para o seu próprio bem”, meu pai disse de trás de Lars, na escada.
“Mas...” Eu realmente não conseguia acreditar naquilo. “Estou de pijama!”
“Eu mandei você levantar”, meu pai disse. “Foi você que não quis obedecer.”
“Você não pode fazer isto comigo”, exclamei, quando saímos do prédio e fomos na direção da limusine do meu pai. “Eu sou americana, eu tenho direitos, sabe?”
Meu pai olhou para mim e disse, todo sarcástico: “Não, não tem coisa nenhuma. Você é uma adolescente.”
“Socorro!”, eu gritei para todos os alunos da Universidade de Nova York que moram no nosso bairro e que estavam chegando em casa depois de uma noite de diversão no East Village. “Liguem para a Anistia Internacional! Estou sendo levada contra a minha vontade!”
“Lars”, meu pai disse todo desgostoso, quando os universitários começaram a olhar ao redor em busca das câmeras que eles com toda a certeza acharam que estavam filmando, já que a coisa toda parecia alguma cena de um episódio de Law and Order cujo cenário era a rua Thompson, ou algo assim. “Enfie a Mia dentro do carro.”
E o Lars obedeceu! Ele me enfiou dentro do carro!
E, tudo bem, ele jogou o meu diário atrás de mim. E uma caneta.
E os meus chinelos chineses com florzinhas de lantejoulas bordadas.
Mas, mesmo assim! Por acaso isto é maneira de se tratar uma princesa? É o que eu quero saber. Ou até mesmo um ser humano qualquer?
E o meu pai não quer nem me dizer onde estamos indo. Ele só responde: “Você vai ver”, quando eu pergunto.
Depois de superar o choque inicial de ser carregada daquela maneira, percebo, para minha surpresa, que não me importo muito. Quer dizer, é esquisito estar na limusine do meu pai com o meu pijama da Hello Kitty, com meu lençol e o meu edredom enrolados no corpo.
Mas, ao mesmo tempo, não consigo sentir nenhuma indignação verdadeira com a situação.
Acho que, na verdade, pode ser que o problema seja este. Que eu simplesmente não me importo mais com nada.
Só que eu também não posso me dar ao trabalho de me importar muito com isso.
Quinta-feira, 16 de setembro, meio-dia, no consultório do doutor Loco
Estamos esperando no consultório de um psicólogo.
E não estou brincando. Meu pai não me levou para o jato real para retornar à Genovia. Ele me trouxe para o Upper East Side para uma consulta com um psicólogo.
E também não é um psicólogo qualquer. Mas sim um dos especialistas de mais destaque na nação em psicologia adolescente e infantil. Pelo menos se os diversos diplomas e prêmios enquadrados e pendurados nas paredes da sala de espera servirem como indicação.
Imagino que isto tenha o intuito de me impressionar. Ou pelo menos de me confortar.
Mas não posso dizer que me sinto muito confortada ao saber que o nome dele é dr. Arthur T. Loco.
É isso aí. Meu pai me trouxe para uma consulta com o dr. Loco. Porque ele — e a minha mãe e o sr. G — aparentemente acham que eu sou louca.
Eu sei que provavelmente pareço louca, aqui sentada de pijama, com meu edredom apertado ao redor do corpo. Mas de quem é a culpa? Eles podiam ter me deixado trocar de roupa.
Não que eu teria trocado, é claro. Mas se me dissessem que iriam me tirar do apartamento, eu poderia pelo menos ter colocado um sutiã.
Mas parece que a recepcionista do dr. Loco — ou enfermeira, ou sei lá o que ela é — não se incomoda com as minhas vestimentas. Ela só falou assim: “Bom dia, príncipe Phillipe”, para o meu pai, quando ele entrou comigo. Quer dizer, quando o Lars me carregou para dentro. Porque quando a limusine estacionou na frente do prédio antigo de tijolinhos onde fica o consultório do dr. Loco, eu não quis sair do carro. Eu não ia atravessar a rua East 78 com o meu pijama da Hello Kitty! Posso ser louca, mas não TÃO louca assim.
Então, o Lars me carregou.
Parece que a recepcionista não achou nada de estranho no fato de a nova paciente de seu patrão precisar se carregada para dentro do consultório. Ela só falou: “O dr. Loco a atenderá em um instante. Enquanto isso, pode por favor preencher isto aqui, querida?”
Não sei por que entrei em pânico de repente. Mas fiquei toda: “Não. O que é isto? Um teste? Não quero fazer teste nenhum.” É estranho, mas o meu coração começou a bater enlouquecido com a idéia de ter que fazer um teste.
A recepcionista só ficou olhando para mim de um jeito esquisito e falou: “É só uma avaliação de como você está se sentindo. Não existe resposta certa ou errada. Só vai levar um minuto para preencher.”
Mas eu não queria fazer uma avaliação, mesmo que não houvesse resposta certa ou errada.
“Não”, respondi. “Acho que não.”
“Pronto”, meu pai estendeu a mão para a recepcionista. “Eu também faço um. Assim você se sente melhor, Mia?”
Por alguma razão, eu me senti. Porque, para ser sincera, se eu sou louca, meu pai também é. Quer dizer, você tinha que ver quantos sapatos ele tem. E ele é homem.
Então a recepcionista entregou ao meu pai o mesmo formulário para preencher. Quando olhei, vi que era uma lista de afirmações que a gente tinha que avaliar, marcando a resposta mais apropriada. Afirmações do tipo: Não vejo motivo em viver. Às quais eu podia dar uma das seguintes respostas:
a) O tempo todo
b) A maior parte do tempo
c) Algumas vezes
d) Poucas vezes
e) Nunca
Como eu não tinha mais nada para fazer e estava mesmo com uma caneta na mão, preenchi o formulário. Quando terminei, reparei que tinha marcado quase só O tempo todo e A maior parte do tempo. Tipo, para coisas como Sinto que todo mundo me odeia... A maior parte do tempo e Sinto que sou inútil... A maior parte do tempo.
Mas o meu pai tinha marcado quase tudo como Poucas vezes e Nunca.
Até as respostas para afirmações como: Sinto que o verdadeiro amor romântico me deixou para trás.
O que eu por acaso sei que é a maior mentira. Meu pai me disse que só teve um amor de verdade na vida toda, e que foi a minha mãe, e que ele a deixou partir, e que se arrependia totalmente. Foi por isso que ele me disse para não ser tonta de deixar o Michael ir embora. Porque ele sabe que talvez eu nunca mais encontre um amor assim.
Pena que eu só fui me dar conta de que ele tinha razão quando já era tarde demais.
Mesmo assim, é fácil para ele achar que ninguém nunca o odeia. Não existe nenhum euodeiooprincipephillipedagenovia.com.
A recepcionista — a sra. Hopkins — pegou os formulários de volta e os levou por uma porta à direita da mesa dela. Não deu para ver o que tinha atrás da porta. Enquanto isso, o Lars pegou o exemplar mais novo da revista Sports Illustrated da mesinha de centro da sala de espera do dr. Loco e começou a ler todo desencanado, como se ele carregasse princesas de pijama para o consultório de psicólogos todos os dias.
Aposto que ele nunca achou que isso seria parte de seu trabalho quando ele se formou na escola de guarda-costas.
“Acho que você vai gostar do dr. Loco, Mia”, meu pai diz. “Eu o conheci em um evento beneficente no ano passado. Ele é um dos profissionais de mais destaque no país em psicologia adolescente e infantil.”
Apontei, para os prêmios da parede. “É, eu tinha percebido essa parte.”
“Bom, é verdade. Ele me foi muito bem recomendado. Não permita que o nome — nem o jeito dele — a engane.”
O jeito dele? O que isto quer dizer?
A sra. Hopkins voltou. Disse que o médico vai nos receber agora.
Maravilha.
Quinta-feira, 16 de setembro, 16h, na limusine do meu pai
Bom. Foi a coisa mais esquisita. Do mundo.
O dr. Loco era... não o que eu esperava. Na verdade, não sei bem o que eu estava esperando, mas com certeza não era o dr. Loco. Eu sei que o meu pai disse para eu não deixar nem o nome nem o jeito dele me enganarem, mas quer dizer, pelo nome e pela profissão dele achei que seria um carinha careca, velho de cavanhaque e óculos, e talvez sotaque de alemão.
E ele era velho. Tipo da idade de Grandmère.
Mas ele não era baixinho. E não era careca. E não tinha cavanhaque. E tinha um sotaque meio do oeste. Isso porque, ele me explicou, quando não está no consultório dele de Nova York, fica no rancho que tem no estado de Montana.
É. É isso mesmo. O dr. Loco é um psicólogo caubói.
É bem típico mesmo: com todos os psicólogos que existem em Nova York, eu fui logo acabar com um que é caubói.
O consultório dele é decorado como o interior de uma casa de fazenda. Na forração de madeira das paredes da sala dele, há fotografias de mustangues selvagens correndo livremente. E cada um dos livros nas estantes atrás da mesa foram escritos por Louis L’Amour e Zane Grey, que são autores famosos de faroeste. A mobília é toda de couro escuro, cravejada de tachas de latão. Tem até um chapéu de caubói pendurado no gancho atrás da parede. E o tapete é uma esteira dos índios navajos.
Com tudo isso, deu para ver na hora que o dr. Loco com certeza fazia jus ao nome dele. E também que ele era mais louco do que eu.
Aquilo tinha de ser piada. Meu pai tinha que estar brincando, o dr. Loco não pode ser um dos principais especialistas da nação em psicologia adolescente e infantil. Talvez estivessem fazendo uma pegadinha comigo, tipo as do programa Punk’d. Talvez o Ashton Kutcher fosse aparecer a qualquer momento para falar assim: “Dããã! princesa Mia! Você caiu na pegadinha! Este cara aqui não é psicólogo coisa nenhuma! É o meu tio!”
“Então”, o dr. Loco disse, com uma voz de caubói grandiosa e profunda, depois que eu me sentei ao lado do meu pai no sofá diante da poltrona grande de couro do dr. Loco. “Você é a princesa Mia. Prazer em conhecê-la. Ouvi dizer que você foi estranhamente simpática com a sua avó ontem.”
Fiquei completamente chocada com isso. Diferentemente dos outros pacientes do dr. Loco que, presumo, são todos crianças, eu por acaso conheço uma dupla de psicólogos jungianos — o dr. e a dra. Moscovitz —, de modo que sei como a relação entre médico e paciente deve se dar.
E que, supostamente, não começam com acusações completamente falsas da parte do médico.
“Esta é uma calúnia total e completa”, corrigi. “Não fui simpática com ela. Eu só disse o que ela queria ouvir para que fosse embora.”
“Ah”, o dr. Loco disse. “Isso é diferente. Então, está me dizendo que as coisas estão uma beleza não é?”
“Obviamente que não”, respondi. “Já que estou aqui no seu consultório de pijama e edredom.”
“Sabe, eu reparei”, o dr. Loco disse. “Mas vocês, mocinhas, estão sempre usando as coisas mais esquisitas, então achei que era só a última moda ou qualquer coisa assim.”
Deu para ver na hora que aquilo lá nunca daria certo. Como poderia confiar minhas emoções mais profundas a alguém que chama a mim e as minhas amigas de “vocês, mocinhas” e acha possível alguma de nós sair na rua com um pijama da Hello Kitty e um edredom?
“Isto aqui não vai dar certo para mim”, eu disse ao meu pai e me levantei. “Vamos embora.”
“Espere aí um segundo, Mia”, meu pai pediu. “A gente acabou de chegar, certo? Dê uma chance ao homem.”
“Pai.” Não dava para acreditar naquilo. Quer dizer, se eu tinha que fazer terapia, por que os meus pais não puderam achar um terapeuta de verdade, em vez de um terapeuta CAUBÓI? “Vamos embora. Antes que ele me MARQUE A FERRO E FOGO.”
“Você tem alguma coisa contra fazendeiros, mocinha?”, o dr. Loco quis saber.
“Hum, levando em conta que sou vegetariana”, respondi. Não mencionei que tinha parado de ser vegetariana há uma semana. “Tenho, tenho sim.”
“Você parece mesmo muito esquentadinha”, o dr. Loco disse. Juro que ele usou este termo mesmo. “Para alguém que, de acordo com isto aqui, diz que acha que não se importa com nada a maior parte do tempo.”
Ele bateu com o dedo na folha de avaliação que eu tinha preenchido na sala de espera. Eu me afundei de novo no meu assento, porque vi logo que aquilo ia demorar um pouco, e disse: “Olhe, dr., hum...” Eu nem conseguia dizer o nome dele! “Acho que deveria saber que eu já estudo a obra do dr. Carl Jung há algum tempo. Tenho me esforçado para atingir a auto-atualização há anos. A psicologia não é algo desconhecido para mim. Por acaso eu sei perfeitamente bem qual é o meu problema.”
“Ah, então sabe”, o dr. Loco disse, com um ar de curiosidade. “Então, explique.”
“É que eu só estou me sentindo meio para baixo”, eu disse. “É uma reação normal a algo que aconteceu comigo na semana passada.”
“Certo”, o dr. Loco disse, olhando para um papel na mesa dele. “Você terminou com o seu namorado... Michael, certo?”
“Certo”, concordei. “E, tudo bem, talvez seja um pouco mais complicado do que o fim de namoro de uma adolescente normal, porque eu sou princesa, e o Michael é um gênio, e ele acha que precisa ir para o Japão para construir um braço cirúrgico robotizado para provar para a minha família que ele é digno de mim, quando a verdade é que eu não sou digna dele, e suponho que porque, lá no fundo, eu sabotei totalmente o nosso relacionamento. E, tudo bem, talvez nós já estivéssemos amaldiçoados desde o início, porque eu obtive o resultado INFJ no teste de personalidade jungiano Myers-Briggs online que fizemos no verão passado, e ele obteve ENTJ, e agora ele quer ser só meu amigo e sair com outras pessoas, e essa é a última coisa que eu quero. Mas eu respeito a vontade dele, e sei que, se algum dia quiser atingir os frutos da auto-atualização, preciso passar mais tempo construindo as raízes da minha árvore da vida, e... e... e, realmente, é só isso. Tirando a possibilidade de meningite. Ou de febre de lassa. É isso que há de errado comigo. Eu só preciso me ajustar. Estou bem. Estou bem de verdade.
“Você está bem?”, o dr. Loco perguntou. “Você perdeu quase uma semana de aula, apesar de não estar com nenhum problema físico — vamos dar uma olhada na meningite, é claro — e faz dias que não tira o pijama. Mas está tudo bem.”
“Está”, respondi. De repente, eu estava muito perto de chorar. E o meu coração também estava batendo muito rápido. “Posso ir para casa agora?”
“Por quê?”, o dr. Loco quis saber. “Para poder se enfiar de novo na cama e continuar a se isolar dos seus amigos e das pessoas que gostam de você — o que é um sinal clássico de depressão, aliás?”
Só fiquei lá olhando estupefata para ele. Não dava para acreditar que ele — um desconhecido completo, PIOR, um desconhecido que gosta de COISAS DE CAUBÓI — estava falando comigo daquele jeito. Aliás, quem ele achava que era — além de um dos especialistas em psicologia adolescente e infantil de maior proeminência na nação?
“Para que você possa continuar a se afastar do seu longo relacionamento com a sua melhor amiga, Lilly”, ele consultou uma anotação no bloquinho que tinha no colo, “assim como outros amigos, ao evitar a escola e outros ambientes sociais em que possa ser obrigada a interagir com eles?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Eu sei que supostamente a louca ali era eu, mas era difícil acreditar, com aquela afirmação, que ele não era louco.
Porque eu não estava evitando a escola por causa do risco de encontrar a Lilly, nem de interagir socialmente com os outros. Não era nada disso. Nem é por isso que eu quero me mudar para a Genovia.
“Para que você possa continuar a ignorar as coisas que você sempre amou — como trocar mensagens instantâneas com a sua amiga Tina — e durma durante o dia, para depois ficar acordada a noite inteira”, o dr. Loco prosseguiu, “ganhando peso por causa de assaltos compulsivos à geladeira quando acha que ninguém está olhando?”
Espera... como é que ele sabe DISSO? COMO É QUE ELE SABIA DA TINA? OU DOS BISCOITOS DAS BANDEIRANTRES?
“Para que você possa simplesmente continuar dizendo o que acha que as pessoas querem ouvir para elas irem embora e a deixem em paz, e se recusando a seguir as normas básicas da higiene — mais uma vez, exemplos clássicos da depressão adolescente?”
Eu só revirei os olhos. Porque tudo o que ele estava dizendo era totalmente ridículo. Não estou deprimida, Talvez esteja triste. Porque tudo é um saco. E provavelmente estou com meningite, apesar de parecer que todo mundo está ignorando os meus sintomas.
Mas não estou deprimida.
“Para que você continue a se isolar das coisas que sempre amou — sua escrita, seu irmãozinho, seus pais, suas atividades escolares, seus amigos — e continue se deixando consumir pelo autodesprezo, no entanto sem nenhuma motivação para mudar, ou para voltar a aproveitar a vida?” A voz do dr. Loco ecoava muito alta no consultório em estilo country dele. “Eu posso continuar. É necessário?”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Só que agora eu estava segurando as lágrimas. Não dava para acreditar naquilo. Não dava mesmo.
Não estou com meningite. Não estou com febre de lassa.
Estou deprimida. Estou deprimida de verdade.
“Pode ser que eu esteja um pouco para baixo”, eu disse, depois de limpar a garganta, porque era um pouco difícil falar com o nó enorme que de repente tinha aparecido lá.
“Você sabe que não há problema nenhum em reconhecer que está deprimida”, o dr. Loco prosseguiu, em tom simpático. Quer dizer, para um caubói. “Muita, muita gente já sofreu de depressão. Ter depressão não significa que você é louca, nem fracassada, nem má.”
Eu tive que engolir muitas lágrimas.
“Tudo bem”, foi a única coisa que eu consegui dizer.
Daí o meu pai esticou o braço e pegou a minha mão. O que eu realmente não gostei, porque só me deu mais vontade de chorar. Além do mais, a minha mão estava supersuada.
“E não faz mal chorar”, o dr. Loco prosseguiu, entregando para mim uma caixa de lenços que ele tinha escondida em algum lugar.
Como é que ele fica fazendo isso? Como é que ele era capaz de ler a minha mente daquele jeito? Será que era porque passava muito tempo nas pradarias? Com os cervos? E os antílopes? Aliás, o que é um antílope?
“É perfeitamente normal, e até mesmo saudável, levando em conta o que andou acontecendo na sua vida ultimamente, Mia, que você esteja triste e precise conversar sobre isso com alguém”, o dr. Loco ia dizendo. “Foi por isso que a sua família trouxe você aqui para falar comigo. Mas, a menos que você mesma reconheça que tem um problema e que precisa de ajuda, eu não poderei fazer muita coisa. Então, por que você não diz o que realmente a está incomodando, e como você realmente está se sentindo? E, desta vez, deixe a árvore jungiana da auto-atualização de fora.”
E daí — antes que eu me desse conta do que estava acontecendo —, percebi que nem me preocupava mais com a possibilidade de estarem fazendo uma pegadinha comigo.
Talvez fosse o tapete dos índios navajo. Talvez fosse o chapéu de caubói no gancho atrás da porta. Talvez eu simplesmente tenha chegado à conclusão de que ele estava certo: eu não poderia passar o resto da vida enfiada no meu quarto.
De todo modo, quando eu vi, já estava contando tudo para aquele caubói velho e esquisito.
Bom, não TUDO, obviamente, porque o meu PAI estava sentado ali. E parece que isto é um tipo de regra do dr. Loco, que na primeira consulta de um menor, o pai, a mãe ou o responsável legal esteja presente. Esta não seria a regra se o dr. Loco me aceitasse como paciente regular.
Mas eu disse a ele a coisa mais importante — a coisa que não consigo tirar da cabeça desde domingo, quando desliguei o telefone depois de falar com o Michael. A coisa que me fez ficar na cama desde então.
E foi que, na primeira vez que eu me lembro de ter ido com a minha mãe visitar os pais dela em Versailles, no estado de Indiana, Papaw me avisou para ficar longe da cisterna abandonada nos fundos da casa da fazenda, que estava coberta com uma placa velha de compensado, e que ele estava esperando uma escavadeira que viria enchê-la de terra.
Só que eu tinha acabado de ler Alice no País das Maravilhas e, é claro, estava obcecada com qualquer coisa que se assemelhasse a uma toca de coelho.
Então, é claro que tirei o compensado de cima da cisterna, e fiquei lá parada na beiradinha, olhando para o buraco fundo e escuro, imaginando se ele levava ao País das Maravilhas e se eu realmente poderia ir até lá.
E daí a terra da beirada cedeu, e eu caí no buraco.
Só que não fui parar no País das Maravilhas. Muito longe disso.
Não me machuquei nem nada, e no fim consegui sair, agarrando-me a algumas raízes que cresciam na lateral do buraco. Coloquei a placa de compensado de volta no lugar em que estava e voltei para casa, abalada, fedorenta e suja, mas ilesa. Nunca contei para ninguém o que eu tinha feito, porque sabia que Papaw simplesmente ficaria bravo comigo. E, por sorte, ninguém nunca descobriu.
Mas o negócio é que, desde que eu falei com o Michael no domingo, estou me sentindo como se estivesse sentada no fundo daquele buraco de novo. De verdade. Como se eu estivesse lá embaixo, olhando para o céu azul lá no alto, totalmente sem saber como é que eu tinha me metido naquela situação.
Só que, desta vez, não tinha nenhuma raiz para me ajudar a me firmar e sair do buraco. Eu estava empacada lá no fundo. Enxergava a vida normal passando lá em cima — gente rindo, se divertindo; o sol brilhando; os passarinhos e as nuvens no céu — mas não conseguia voltar para me juntar àquilo. A única coisa que eu podia fazer era observar, do fundo daquele enorme buraco escuro.
Bom, mas quando terminei de explicar tudo isso — que foi basicamente quando mal conseguia continuar a falar, de tão forte que eu soluçava — que o meu pai começou a resmungar bem bravo que Papaw ia ver só da próxima vez que eles se encontrassem (e parece que a coisa envolvia um daqueles aparelhinhos de dar choque e Papaw no chuveiro).
O dr. Loco, por sua vez, ergueu os olhos do papel em que ficou escrevendo durante o tempo todo em que falei, olhou bem dentro dos meus olhos e disse uma coisa surpreendente.
Ele disse: “Às vezes, na vida, a gente cai em buracos dos quais não consegue sair sozinho. É para isso que os amigos e a família servem — para ajudar. Mas eles só podem ajudar se você informar a eles que está lá embaixo.”
Fiquei olhando estupefata para ele mais um pouco. Foi realmente estranho, mas... eu não tinha pensado nisso. Eu sei que parece idiota. Mas a idéia de pedir ajuda nunca tinha me ocorrido.
“Então, agora que sabemos que você está lá no fundo”, o dr. Loco prosseguiu, com sua fala cantada de caubói, “que tal você nos deixar dar uma ajuda?”
O negócio era que... eu não tinha certeza se alguém podia me ajudar. A sair daquele buraco, quer dizer. Eu estava tão no fundo, e tão cansada... mesmo que alguém me jogasse uma corda, eu não tinha certeza se teria forças para me agarrar a ela.
“Acho”, eu disse, fungando, “que seria bom. Quer dizer, se der certo.”
“Vai dar certo”, o dr. Loco afirmou com muita certeza. “Então, amanhã de manhã, eu quero que você vá ao seu clínico geral para fazer um exame de sangue, só para nos certificarmos de que não há nada de errado desse lado. Certos problemas de saúde podem afetar o humor, então vamos eliminar essas possibilidades — além da meningite, é claro. Daí você pode vir me ver para a sua primeira sessão de terapia depois da aula. E o meu consultório tem uma localização muito conveniente, apenas a alguns quarteirões de distância da sua escola.”
Fiquei olhando para ele, com a boca de repente seca. “Eu... eu realmente não acho que vou conseguir ir à escola amanhã.”
“Por que não?” O dr. Loco parecia surpreso.
“É só que...” Meu coração tinha começado a bater com toda força contra as minhas costelas. “Será que não dá... que não seria melhor se eu voltasse para a escola na segunda-feira? Sabe como é, para começar tudo do zero e tal?”
Ele só ficou olhando para mim através dos óculos com aro de prata. Reparei que os olhos dele eram azuis. A pele ao redor deles era enrugada e tinha ar simpático. Exatamente como os olhos de um caubói deveriam ser.
“Ou talvez”, eu disse, “você poderia, sabe como é. Receitar alguma coisa. Algum remédio ou qualquer coisa assim. Talvez isso torne as coisas mais fáceis.”
Idealmente algum remédio que me fizesse apagar completamente, para eu não precisar pensar nem sentir nada até, ah, a formatura.
Mais uma vez, o dr. Loco parecia saber exatamente do que eu estava falando. E parecia achar divertido.
“Eu sou psicólogo, Mia”, ele disse, com um sorrisinho. “Não psiquiatra. Não posso receitar medicamentos. Tenho um colega que receita, quando acho que um paciente está precisando. Mas não acho que seja o seu caso.”
O quê? Ele não poderia estar mais enganado. Preciso de remédios. E muitos! Quem precisava mais de drogas do que eu? Ninguém! Ele só estava me negando remédios porque não conhece Grandmère.
Quando eu vi, o dr. Loco estava olhando fixamente para mim, e o meu pai se remexia todo desconfortável na cadeira. Foi aí que percebi que tinha falado a última parte em voz alta.
Opa.
“Bom”, eu disse na defensiva, para o meu pai. “Você sabe que é verdade.”
“Eu sei”, meu pai olhou para o céu. “Pode acreditar.”
“Conhecer a sua avó é algo que anseio em fazer algum dia”, o dr. Loco disse. “Ela obviamente é muito importante para você e eu teria interesse em ver a dinâmica entre vocês duas. Mas, bom... em nenhum lugar desta avaliação você indicou que sente ímpetos suicidas. Aliás, à pergunta se alguma vez você já se sentiu compelida a tirar a própria vida, você respondeu Nunca.” “Bom”, eu disse, desconfortável. “Só porque, para me matar, eu teria que sair da cama. E realmente não estou a fim de fazer isto.”
O dr. Loco sorriu: “Acho que remédios não são a solução no seu caso específico.”
“Bom, eu preciso de alguma coisa”, eu disse. “Porque se não, não sei como vou conseguir chegar até o fim do dia. Estou falando sério. Sem ofensa, mas você não sabe como as coisas são no ensino médio hoje em dia. Não estou brincando. É de dar medo.”
“Sabe, Eleanor Roosevelt, uma senhora que pouquíssimas pessoas diriam que não tinha a cabeça no lugar, certa vez disse: ‘Faça todo dia uma coisa que lhe dá medo’”, o dr. Loco observou.
Sacudi a cabeça. “Isso não faz o menor sentido. Por que alguém vai querer fazer coisas que lhe dão medo?”
“Porque esta é a única maneira de crescer como indivíduo”, o dr. Loco respondeu. “Claro, muitas coisas podem ser assustadoras — aprender a andar de bicicleta; andar de avião pela primeira vez; voltar para a escola depois de ter terminado com o seu namorado de um tempão e ver uma foto sua com o namorado da sua melhor amiga nas páginas de um jornal de ampla distribuição. Mas, se você não correr riscos, vai continuar sempre a mesma. E será que realmente é assim que você acha que vai conseguir sair do buraco em que caiu? Você não acha que o único jeito de sair de lá é mudar?”
Respirei fundo. Ele tinha razão. Eu sabia que ele tinha razão. É só que... ia ser tão difícil...
Bom. O Michael realmente disse que nós dois precisávamos amadurecer um pouco.
O dr. Loco prosseguiu: “E, além do mais, qual é a pior coisa que pode acontecer? Você tem um guarda-costas. E até parece que não tem outras amigas além da Lilly, certo? Que tal aquela tal de Tina que a sua mãe mencionou?”
Eu tinha me esquecido da Tina. É engraçado como isso pode acontecer quando a gente está no fundo de um buraco. A gente se esquece das pessoas que fariam qualquer coisa — qualquer coisa mesmo, provavelmente — para ajudar você a sair dele.
“É”, eu disse, sentindo, pela primeira vez em muito tempo, uma pequena fagulha de esperança. “Tem a Tina.”
“Que bom. É um começo. E quem sabe?”, ele completou, com um sorriso. “Pode ser até que você se divirta!”
Certo. Agora eu sei que o nome dele é realmente apropriado. Ele é mais louco do que eu.
E, levando em conta que sou eu quem não tira o pijama da Hello Kitty há quase uma semana, isso quer dizer muita coisa.
Quinta-feira, 16 de setembro, 18h, no loft
Depois que saímos do consultório do dr. Loco, meu pai perguntou o que eu tinha achado. Ele disse: “Se você achar que não gostou, a gente pode arrumar outro, Mia. Todo mundo, inclusive a diretora da sua escola, concorda que ele é o terapeuta com mais recomendações na cidade, mas...”
“VOCÊ CONTOU PARA A DIRETORA GUPTA?”, eu praticamente berrei.
Parece que o meu pai não apreciou muito o meu berro.
“Mia”, ele disse, “faz quatro dias que você não vai à escola. Achou que ninguém iria notar?”
“Bom, você poderia ter dito que eu estava com bronquite!”, berrei. “Não que eu estava deprimida!”
“Não contamos a ninguém que você está deprimida”, meu pai disse. “A diretora da escola ligou para saber por que você tinha faltado tantos dias...”
“Maravilha”, exclamei e me afundei no assento de couro. “Agora a escola inteira vai saber!”
“Só se você contar para todo mundo”, meu pai disse. “A dra. Gupta certamente não vai dizer nada para ninguém. Ela é profissional demais para fazer algo assim. Você sabe disto, Mia.”
Por mais que me doa admitir, meu pai tem razão. A diretora Gupta pode ser muitas coisas — controladora despótica ensandecida, por exemplo — mas nunca trairia o sigilo profissional entre aluno e diretor.
Além do mais, até parece que a metade da população estudantil da Escola Albert Einstein não faz terapia também. Mesmo assim. A última coisa de que eu preciso é que o Michael descubra que eu fiquei tão arrasada com a rejeição dele que estou me consultando com um psicólogo. Que humilhação!
“Quem mais sabe?”, perguntei.
“Ninguém, Mia. A sua mãe, o seu padrasto e o Lars.”
“Não vou contar para ninguém”, o Lars disse, sem tirar os olhos da partida emocionante de Halo que ele estava jogando no Treo dele.
“Só nós sabemos”, meu pai prosseguiu.
“E Grandmère?”, perguntei, toda desconfiada.
“Ela não sabe. Ela, como sempre, demonstra ignorância total e completa por tudo que não a envolve.”
“Mas ela vai descobrir quando eu não aparecer para as aulas de princesa. Ela vai ficar imaginando onde eu estou.”
“Deixe que eu me preocupo com a minha mãe”, meu pai disse, com um ar bem frio nos olhos, tipo Daniel Craig em Casino Royale. Se o James Bond fosse completamente careca. “Você só trate de melhorar.”
Isso é fácil para ele dizer. Não foi ele quem assumiu o compromisso de falar para a Opus Dei das organizações femininas na sexta-feira da semana que vem.
De todo modo, quando voltei para o loft, descobri que a minha mãe tinha aproveitado a minha ausência para limpar o meu quarto e mandar toda a minha roupa de cama para lavar na lavanderia. Ela também tinha aberto todas as janelas e ligado todos os ventiladores e estava arejando o meu quarto com tanta vontade que o Fat Louie não saía de baixo da cama por medo de ser varrido pela tempestade de vento.
Nesse ínterim, o sr. G tinha levado embora a minha TV. E o meu pai informou que não vão substituí-la, porque o dr. Loco acha que as crianças não devem ter uma TV só para elas.
Então agora eu já sei sobre o que o dr. Loco e eu vamos passar uma boa parte da nossa hora marcada para amanhã discutindo.
Tanto faz. Acho que tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Tipo que, quando eu estava tomando banho, agorinha mesmo, a minha mãe se esgueirou para dentro do banheiro e roubou meu pijama da Hello Kitty. E jogou no incinerador.
“Pode acreditar, Mia, é melhor assim”, foi o que ela disse quando eu a confrontei a respeito da questão.
Acho que ela tem razão. Talvez eu estivesse ficando um pouco apegada demais a ele.
Mesmo assim. Sinto falta dele. Nós passamos por muita coisa juntos, meu pijama da Hello Kitty e eu.
Minha mãe, meu pai e o sr. G estão todos sentados ao redor da mesa da cozinha agora, em uma espécie de conferência não tão secreta assim a meu respeito. Não tão secreta assim porque estou ouvindo tudo, total. Quer dizer, posso estar deprimida, mas não sou SURDA.
Para me distrair, entrei na internet pela primeira vez em, tipo um milhão de anos, para ver se alguém tinha me mandado um e-mail.
Acontece que tinham mandado sim. Um monte deles. Estava com 243 mensagens não-lidas. E, tudo bem, a maior parte delas era spam. Mas um bom número era de tentativas de me animar da parte da Tina. Havia algumas da Ling Su e da Shameeka também, e até algumas do Boris. (Ele é mesmo um namorado muito bom. Sempre faz exatamente o que a Tina manda.) Havia algumas do J.P., na maior parte piadas encaminhadas que deviam deixar a gente alegre ou algo assim. Não que ele saiba que eu estou para baixo. É MELHOR que ele não saiba, de todo modo.
Então, quando eu estava examinando as mensagens e jogando uma por uma na pasta do lixo, eu vi.
Um e-mail do Michael.
Juro que o meu coração começou a bater a uns mil quilômetros por minuto, e as palmas das minhas mãos ficaram instantaneamente encharcadas. Porque, e se aquilo fosse apenas para reiterar o que o Michael tinha me dito no domingo? Aquela coisa sobre como nós deveríamos ser só amigos e sair com outras pessoas? Não quero ver isso de novo. Não quero ouvir isso de novo. Nem quero pensar nisso de novo. Passei a semana inteira fazendo tudo que eu podia para NÃO ter que reviver aquela conversa específica na minha mente... e agora havia uma chance de que ela se revelasse diante dos meus olhos.
De jeito nenhum.
Mas daí, bem quando eu ia apertar o EXCLUIR, hesitei. Porque, e se não fosse sobre aquilo? E se — e, tudo bem, mesmo enquanto eu estava tendo a idéia, já me dei conta de que este era um enorme E SE, mas tanto faz —, mas e se fosse um e-mail para me dizer que ele tinha mudado de idéia e que, no final das contas, não queria terminar?
E se ele tivesse passado esta última semana tão deprimido quanto eu?
E se, depois de uma semana separados, ele tivesse percebido como sente a minha falta, e do mesmo jeito que eu estava aqui parada, louca para estar nos braços dele, cheirando o pescoço dele, o Michael estivesse louco para estar comigo nos braços, cheirando o pescoço dele?
E, antes que eu pudesse mudar de idéia, cliquei em ABRIR....
SKINNERBX: Oi, Mia. Sou eu. Bom, é óbvio. Só queria saber como você está. A Lilly me disse que você faltou à escola a semana toda... espero que esteja tudo bem.
Estou me acomodando aqui em Tsukuba. Este lugar é meio maluco — o pessoal realmente come macarrão no café-da-manhã! Mas por sorte dá para achar sanduíche de ovo na maior parte dos lugares. O trabalho é bem o que eu achava que ia ser — difícil —, mas realmente acredito que tenho uma boa chance de conseguir fazer esta coisa decolar. Mas vai saber, talvez eu não esteja mais tão otimista depois de algumas semanas disto aqui.
Você viu as supostas negociações para um filme de reunião de Buffy, a caça-vampiros com Angel? Achei que você ia fica animada com isso.
Bom, preciso ir andando... Espero de verdade que você não esteja indo à escola porque foi enviada para algum lugar maravilhoso no seu jatinho para cumprir alguma função de princesa, e não que esteja doente.
Michael
Fiquei lá sentada durante muito tempo, com o dedo pronto para apertar RESPONDER. Quer dizer, ele expressou preocupação com a minha saúde (física, não mental, mas tudo bem. Duvido que mesmo o Michael fosse capaz de predizer que eu pudesse chegar ao fundo do poço no quesito auto-atualização e acabasse no consultório de um psicólogo caubói com o meu pijama da Hello Kitty, enrolada em um edredom).
Mesmo isso, tem que ter algum significado, não é mesmo? Tem que ter alguma coisa ali. Pode ser que ele ainda me ame, pelo menos um pouquinho, não? Que talvez exista uma chance, no final das contas, de que algum dia, de algum jeito, eu possa voltar a sentir o cheiro do pescoço dele em freqüência semi-regular, não?
Mas daí... Não sei. Pensei sobre o que ele disse ao telefone. Sobre querer ser só meu amigo. Percebi que este e-mail era só isso mesmo. Um recado simpático para me mostrar que ele não tinha ficado magoado com a coisa do J.P.
COMO É QUE ELE PODE NÃO TER FICADO MAGOADO COM AQUILO? POR ACASO ELE NÃO SE IMPORTAVA COMIGO NEM UM POUQUINHO?????
OU será que eu, no ataque psicótico total que eu tive na semana passada por causa da coisa com a Judith Gershner, consegui destruir a quantidade mínima de sentimentos românticos que ele já teve por mim?
E foi aí que eu tirei o mouse de cima do botão RESPONDER e passei para o EXCLUIR. E apertei.
E assim, sem mais nem menos, o e-mail dele desapareceu.
E não ia ter jeito de eu mandar uma resposta para ele.
O Michael pode ter me superado. Mas eu não o superei. Não ainda, pelo menos.
E não posso fingir que superei. E não vou fazer uma coisa tão idiota e indigna quanto clicar em RESPONDER e pedir para ele me aceitar de volta.
Mas a única maneira que eu conheço para não fazer isto é simplesmente não dizer absolutamente nada para ele.
Depois que eu excluí o e-mail do Michael, dei uma olhada no site euodeiomiathermopolis.com. Não tinha nenhuma atualização nova, graças a Deus.
Bom, e por que haveria? Eu não saí de casa a semana toda. Seja lá quem que cuida desse site, não tem nenhum material novo.
Agora a minha mãe está me chamando. Ela, o meu pai e o sr. G pediram uma pizza do Tre Giovanni. Vamos todos sentar para jantar como uma família normal. Só eu, a minha mãe, o marido dela, o filho dele e o meu pai, o príncipe da Genovia.
Ah, é. Nós somos mesmo uma família bem normal.
Não é para menos que eu estou fazendo terapia.
Sexta-feira, 17 de setembro, Francês
Ai, meu Deus. É tão... surreal estar aqui.
Acho que o dr. L estava enganado, e eu preciso sim de remédio. Porque simplesmente não sei como vou agüentar. Sei que ele disse que é bom fazer uma coisa assustadora por dia — muito obrigada por isso, aliás, Eleanor Roosevelt, muito obrigada mesmo —, mas isto aqui é tipo NOVE MILHÕES DE COISAS, tudo ao mesmo tempo.
E, certo, tudo bem, eu não sei por que a ESCOLA deve ser assim tão assustadora. Eu nunca tive medo da escola antes. Pelo menos, não tanto assim.
Mas tem muito mais coisas do que a escola simplesmente. É ter que FALAR com as pessoas. É ter que agir de forma NORMAL. Quando eu sei que NÃO estou normal.
E, tudo bem, a verdade é que eu nunca fui normal. Mas estou mais NÃO normal do que nunca. Eu perdi meu sistema de apoio — a ÚNICA coisa com que fui capaz de contar nos últimos dois anos para manter a minha sanidade neste mar de loucura completa —, o Michael.
E agora, sem mais nem menos, ele foi embora — foi completamente arrancado da minha vida — e eu simplesmente devo seguir em frente como se nada tivesse acontecido? Sei. Até parece.
E eu preciso estar aqui, neste — vamos encarar — hospício, com toda essa gente que é MUITO MAIS LOUCA DO QUE EU (elas simplesmente não reconhecem que há algo de errado — diferentemente de mim) sem absolutamente ninguém me esperando fora daqui e dizendo: “Ai, meu Deus, você não acredita o que a fulaninha fez hoje.”
Falando sério, isto é simplesmente cruel.
Mas acho que é o que eu mereço. Quer dizer, até parece que não fui eu mesma quem causou tudo isto com a minha própria estupidez.
Pelo menos não fui forçada a sofrer o massacre de um dia inteiro neste lugar. Tive que passar a manhã esperando sem fazer nada no consultório do dr. Fung para tirarem o meu sangue. E como eu tive que ficar sem comer desde a meia-noite de ontem, para que o resultado do exame saísse certo, eu estava praticamente MORRENDO DE FOME. Quer dizer, já foi bem ruim ter que sair da cama, tomar banho e me vestir.
Mas eu nem tomei café-da-manhã!
Pior ainda, apesar de a minha barriga estar totalmente vazia, não consegui... bom, por alguma razão, a saia do meu uniforme não queria fechar. Quer dizer, o zíper fechava — quase todo — mas eu não consegui fazer o botão entrar na casa, porque tinha um monte de PELE no caminho. No final, tive que usar um alfinete de fralda para manter a minha saia no lugar.
No começo, achei que a minha saia devia ter encolhido na lavanderia e fiquei meio brava com isso.
Mas o meu sutiã também não cabia! Quer dizer, sei que já faz um tempinho que eu não visto roupa de baixo, já que passei a maior parte da semana com o meu pijama da Hello Kitty.
E admito que reparei que tudo anda ficando meio apertado em todos os lugares ultimamente. E eu só coloquei o meu jeans com stretch. E tive que usar os últimos ganchos de todos os meus sutiãs.
E mesmo assim fiquei toda marcada.
Mas, quando vesti meu sutiã preferido hoje de manhã, pela primeira vez na vida, eu fiquei com UM BURAQUINHO ENTRE OS SEIOS, porque ele estava apertando muito os meus peitos.
É isso aí. Eu realmente tenho peitos para serem apertados. Não sei de onde eles surgiram, mas olhei para baixo, e lá estavam eles. Olá, peitos!
Daí eu achei que o lugar que lava roupa a quilo tinha encolhido o meu sutiã também; então experimentei outro. A mesma coisa. Depois, outro. A MESMA COISA. Não dava para entender.
Mas quando eu cheguei à Clínica Médica do SoHo e FINALMENTE chamaram o meu nome, e eu entrei, e me pesaram, eu descobri o que estava acontecendo. Fiquei CHOCADA de descobrir que eu estava pesando quase SEIS Fat Louies!
Isso é quase um Fat Louie a mais do que eu pesava da última vez que subi em uma balança! E admito que já faz um tempinho, mas, mesmo assim!
E, tudo bem, talvez eu esteja mandando ver na carne de um jeito um tanto pesado há mais ou menos uma semana. Bom, não só na carne, mas também na pizza, nos biscoitos das bandeirantes, na manteiga de amendoim, no macarrão de gergelim frio, na pipoca de microondas (com manteiga derretida), nos biscoitos Oreo, no sorvete Häagen-Dazs e nas famosas fritas do Baluchi’s...
Mas engordar quase um GATO inteiro?
Uau. É tudo que eu tenho a dizer. Só... uau.
Claro que havia uma explicação racional por trás da carne. O dr. Fung disse assim: “Você ainda está bem dentro do índice correto de massa corporal para a sua altura, princesa. Na verdade, é bem normal ter este tipo de estirão de crescimento na sua idade. Algumas mulheres têm isso até com vinte e poucos anos.”
É que eu não cresci só para os lados. Cresci para cima também — agora estou com um metro e setenta e oito. Eu cresci mais de dois centímetros desde a última vez que estive no consultório do médico!
Se eu continuar assim, vou estar com um metro e oitenta quando chegar aos dezoito anos.
E o lado positivo de engordar um Fat Louie inteiro? Acho que não tenho mais o peito achatado.
E pelo lado não tão positivo assim? Vou ter que falar com a minha mãe sobre comprar sutiãs novos. E calcinhas. E calças jeans. E pijamas. E moletons. E um uniforme novo.
E vestidos de baile novos.
Ai, meu Deus.
Mas tanto faz. Até parece que eu não tenho coisas mais importantes com que me preocupar (há!) do que o tamanho do meu peito (gigantesco) e o fato de que minha saia está presa por um pedacinho de metal e todos os meus jeans estão curtos demais. Quer dizer, tem o fato de que, daqui a meia hora, eu vou ter que ir até o refeitório.
E encontrar a Lilly.
Que sem dúvida vai levar a bandeja dela para outro lugar quando me vir.
E isto... bom, tanto faz. Eu sei que a Tina vai continuar querendo sentar comigo. Esta é a única coisa, aliás, que me impede de virar para o Lars e dizer: “Vamos embora”, e sair pisando firme para bem longe deste depósito de malucos.
Aliás, foi bom o dr. Loco ter mencionado a Tina ontem, porque toda vez que eu começo a sentir muito que estou escorregando de volta para dentro do buraco de que estou tentando sair, penso nela, e é como se ela fosse uma raiz ou algo assim em que eu posso me agarrar para não deslizar mais para o fundo do abismo negro do desespero.
Como será que a Tina se sentiria se descobrisse que eu penso nela como se fosse uma raiz?
Claro que tenho coisas muito piores com que me preocupar além de quem vai ou não sentar comigo no almoço: o fato de que estou fazendo terapia e não quero que ninguém saiba; o fato de que daqui a uma semana eu supostamente vou ter que fazer um discurso para uns dois milhares de mulheres de negócios mais influentes de Nova York; o fato de que o amor da minha vida só quer ser meu amigo (e ficar com outras pessoas) e que eu não o tenho mais para ser meu sistema de apoio cheio de amor, de modo que fui largada à deriva para nadar sozinha nos mares da adolescência; o fato de que a indústria da carne enfia tanto hormônio em seus produtos que, só de consumir algumas dúzias de sanduíches de presunto e de porções de frango kung pao na última semana, finalmente consegui ganhar peitos praticamente da noite para o dia; euodeiomiathermopolis.com; o fato de que ambas as calotas polares estão derretendo devido ao aquecimento global antropogênico e de que os ursos polares estão todos morrendo afogados.
Mas estou tentando tratar das minhas preocupações uma de cada vez. Com passinhos de bebê, como os do Rocky quando ele estava aprendendo a andar. Primeiro preciso passar pelo almoço. Depois me preocupo com as calotas polares.
Faltam mais quatro horas para eu poder dar o fora daqui.
Sexta-feira, 17 de setembro, Superdotados & Talentosos
Maravilha. Então, agora tenho mais uma preocupação a adicionar à lista:
Parece que a escola inteira acha que o J.P. e eu estamos ficando.
É isso que acontece quando a gente passa quase uma semana em casa com um ataque de nervos e não está presente para se defender.
Bom, também acho que é o que acontece quando a sua foto saindo de braços dados de um teatro com o cara está em todo lugar. Mas ele só estava me ajudando a descer a escada! Porque eu estava de salto! E os degraus eram acarpetados e não tinha corrimão!
Caramba!
E, tudo bem, com base na evidência fotográfica, dava para ver por que a população média dos Estados Unidos — e o resto do mundo, imagino — ficaria pensando que o J.P. e eu estamos ficando.
Mesmo assim! Era de se esperar que os meus AMIGOS fossem mais espertos do que isso!
Mas parece que não. E o limite já foi traçado:
Agora a Lilly senta na mesa do Kenny Showalter na hora do intervalo.
Acho que a apreciação mútua que os dois têm pelos amigos que lutam muay thai os uniu, ou qualquer coisa assim.
A Perin e a Ling Su sentam com eles, apesar de a Ling Su ter me dito, quando estávamos no bufê de tacos, que preferia sentar comigo.
“Mas a Lilly me colocou no cargo de secretária”, ela explicou, parecendo verdadeiramente desolada em relação ao assunto. “O que é melhor do que tesoureira, acho” — isto definitivamente é verdade, levando em conta que a Ling Su foi tesoureira no ano passado. “E a Lilly nomeou o Kenny para isso. Mas significa que tenho que sentar com ela e a Perin, que é a vice-presidente, para a gente poder conversar sobre as novas iniciativas da Lilly, como por exemplo a coisa de alugar o telhado da escola para a instalação de antenas de celular em troca de laptops gratuitos para bolsistas, e como vamos garantir que mais alunos da AEHS sejam aceitos na faculdade de primeira linha de sua escolha, e esse tipo de coisa.”
“Tudo bem, Ling Su”, eu disse a ela enquanto espalhava queijo cheddar por cima da minha tostada de carne picante. “De verdade, eu entendo.”
“Que bom. E, só para constar”, ela concluiu, “acho que você e o J.P. formam um casal demais. Ele é o maior gostoso.”
“Nós não estamos juntos”, eu respondi, totalmente confusa.
“Certo”, a Ling Su disse, toda sabichona, e deu uma piscadinha para mim. Como se ela achasse que eu só estava dizendo aquilo como alguma tentativa desvirtuada de agradar a Lilly! O que seria totalmente fútil, se fosse por isso que eu tivesse dito aquilo. Mas não foi por isso que eu disse aquilo, de jeito nenhum! Eu disse porque era verdade!
Mas a Ling Su não é a única que acha que o J.P. e eu estamos juntos. Quando fui devolver a minha bandeja do almoço, uma das funcionárias do refeitório sorriu para mim e disse: “Quem sabe você não consegue fazer com que ele experimente o nosso milho?”
No começo, eu não entendi do que ela estava falando. Daí, quando entendi, comecei a ficar totalmente vermelha. O J.P. é famoso por detestar milho! E ela achou que eu pudesse curá-lo disso! Ai, meu Deus!
Pelo menos o J.P. parece não estar ligado no que está acontecendo. Ou, se estiver, não está deixando transparecer. Ele pareceu surpreso quando eu cheguei para almoçar pela primeira vez em toda a semana, mas não fez muito caso (graças a Deus), como a Tina fez, com gritinhos e abraços e dizendo o quanto tinha sentido a minha falta.
O que foi bem legal, mas meio vergonhoso, porque chamou mais atenção para o fato de que eu fiquei fora tanto tempo, e estou totalmente cansada de ficar falando “bronquite” quando as pessoas me perguntam onde eu estive a semana toda. Porque não posso exatamente dizer: “Na cama, com o meu pijama da Hello Kitty, recusando-me a levantar depois que o meu namorado me deu um pé na bunda.” A única coisa que o J.P. fez fora do comum foi sorrir para mim, quando não havia nenhum motivo para sorrir — aliás, o Boris estava discursando sobre o ódio que ele tem por emos, especificamente o My Chemical Romance, como ele sempre faz. Eu estava dando uma mordida na minha tostada (é impressionante como, apesar de eu estar totalmente deprimida, continuo comendo que nem um cavalo. Mas, tanto faz, eu estava morta de fome; só tinha comido uma barra energética PowerBar o dia todo, que peguei na Ho’s Deli, depois da consulta no médico, a caminho da escola) e reparei no sorriso do J.P. — que, como a Ling Su disse, realmente é bem gostoso — e falei: “O quê?”, com a boca cheia de carne picada, queijo cheddar, molho tipo salsa, creme azedo, pimenta mexicana e alface picadinha.
“Nada”, o J.P. respondeu, sem parar de sorrir. “Só estou feliz porque você voltou. Não fique fora tanto tempo de novo, certo?”
E isso foi legal da parte dele. Principalmente levando em conta o fato de que ele PRECISA saber que as pessoas andam dizendo que estamos juntos.
O que explicaria pelo menos em parte por que a Lilly está tão imóvel no lado dela da sala de S & T. Ela se recusa a olhar para mim — não fala comigo —, não reconhece nem a minha existência. Para ela, parece que eu sou Hester Prynne de A letra escarlate.
Só a Hester Prynne do livro, não a da versão do cinema, que é interpretada por Demi Moore e é até quase bacana e explode as coisas. Ah, espera... isso foi em G.I. Jane.
Eu gostaria de simplesmente chegar para a Lilly e dizer algo do tipo: “Olha só. Sinto MUITO. Sinto muito por ter sido tão ridícula com o seu irmão, e sinto muito se fiz alguma coisa que magoou você. Mas você não acha que já me castigou bastante? Agora eu mal consigo RESPIRAR porque respirar NÃO SERVE PARA NADA se eu sei que, no fim do dia, não vou poder cheirar o pescoço do seu irmão. A única coisa em que eu consigo pensar é que nunca, nunca mais vou ouvir o som da risada sarcástica dele quando assistíamos a South Park juntos. Será que você não vê que eu precisei reunir cada grama de coragem e de força que eu possuo só para vir até aqui hoje? Que eu estou fazendo TERAPIA? Que passo cada segundo do dia querendo estar MORTA? Então, será que você podia parar de ser tão fria comigo e me dar um desconto? Porque eu realmente valorizo a sua amizade, e sinto falta dela. E, aliás, você acha mesmo que ficar com um lutador de muay thai qualquer é a maneira mais madura de reagir à sua mágoa amorosa? Por acaso você é a Lana Weinberger ou algo assim?”
Só que não dá. Porque acho que eu não ia suportar olhar para aquele olho morto que ela fica jogando para o meu lado agora.
Porque eu sei que é exatamente isto que ela vai fazer.
Sexta-feira, 17 de setembro, Educação Física
Estou aqui em pé, tremendo.
Em pé e não sentada porque estou em um dos campos de beisebol do Great Lawn no Central Park. Acho que estou jogando de ala esquerda, ou qualquer coisa assim, mas é difícil saber com tantos gritos. Pega a bola! Pega a bola!
Até parece. Pega a bola você, sua fracassada. Não vê que estou ocupada escrevendo no meu diário?
Eu devia totalmente ter feito o dr. Fung me dar um bilhete para eu escapar da aula de ginástica. ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA?
Porque não é só a coisa do Pega a bola. Eu tive que TIRAR A ROUPA na frente de todo mundo. E isso significa que eu tive que levantar o suéter, e todo mundo viu o ALFINETE DE FRALDA segurando a minha saia para não abrir.
Eu falei: “Ha, ha, perdi um botão.”
Mas essa explicação não funcionou para dizer por que, quando eu coloquei meu short de ginástica, ele ficou TODO COLADINHO e totalmente entrando na parte da frente. Graças a Deus que a minha camiseta de ginástica sempre foi um pouco grande. Agora, está servindo certinho.
E como se tudo isso já não fosse bem ruim, de algum modo a LANA WEINBERGER por acaso estava no vestiário quando eu estava me trocando.
Não sei o que ela estava fazendo lá, já que ela não tem aula de EF neste período. Acho que não gostou da maneira como os cachos do cabelo dela ficaram, ou qualquer coisa assim, porque estava secando de novo. Eva Braun, mais conhecida como Trisha Hayes, estava parada bem ao lado dela, lixando as unhas.
E, é claro, apesar de eu ter abaixado a cabeça por instinto assim que vi as duas, na esperança de que não fossem reparar em mim, já era tarde demais. A Lana deve ter avistado o meu reflexo no espelho em que ela estava se olhando, ou algo assim, porque, antes que eu me desse conta, ela desligou o secador e estava dizendo: “Ah, você está aí. Por onde andou a semana toda?”
COMO SE ELA ESTIVESSE ME PROCURANDO!
Está vendo, é EXATAMENTE por isso que eu não queria voltar para a escola. Não posso lidar com coisas desse tipo ALÉM de tudo o mais que está acontecendo. Falando sério, a minha cabeça vai explodir.
“Hum”, eu respondi. “Bronquite.”
“Ah”, a Lana disse. “Bom, sobre aquela carta que você recebeu da minha mãe...”
Fechei os olhos. Eu realmente FECHEI OS OLHOS porque eu sabia o que viria a seguir — ou pelo menos achei que sabia — e não achei que fosse emocionalmente capaz de dar conta daquilo.
“Sei”, respondi. E, por dentro, eu estava pensando: Fala logo. Seja lá qual for a coisa maldosa, amarga e humilhante que você vá dizer, simplesmente diga para eu poder sair daqui. Por favor. Não sei quanto mais eu vou conseguir agüentar.
“Obrigada por ter dito que vai”, foi a coisa completamente surpreendente que a Lana disse, em vez do que eu achava que ela diria. “Porque era a Angelina Jolie que ia fazer o discurso, mas ela totalmente deu o cano para fazer papel de Madre Teresa em um filme novo aí. A minha mãe estava me deixando louca, de tão histérica que estava para achar alguma substituta. Então eu sugeri você. Você fez aquele discurso no ano passado, sabe qual, quando nós duas estávamos disputando a presidência do conselho estudantil. E foi meio bom. Então achei que você seria uma substituta decente para a Angelina. Então. Obrigada.”
Não tenho bem certeza — vamos ter que checar com sismólogos do mundo todo — mas realmente acho que, naquele momento, o inferno realmente congelou.
Porque a Lana Weinberger disse alguma coisa legal para mim.
Mas é claro que essa não é a parte que me fez desejar que o dr. Fung me desse um bilhete para não fazer EF hoje.
Foi a próxima parte.
Eu fiquei tão surpresa de ver a Lana Weinberger agir como um ser humano que nem consegui responder na hora. Só fiquei lá parada, olhando para ela. E isso infelizmente deu à Trisha Hayes a oportunidade de reparar no alfinete de fralda segurando a minha saia fechada.
E ela é sabidinha demais para acreditar na minha desculpa de ter perdido um botão.
“Cara”, a Trisha disse. “Tipo, você totalmente precisa de uma saia nova.” Daí o olhar dela subiu para o meu peito. “E de um sutiã maior.”
Eu senti que fiquei total e completamente vermelha. Ainda bem que eu tenho consulta com um terapeuta depois da aula hoje. Porque nós vamos ter mesmo MUITA coisa sobre o que falar.
“Eu sei”, respondi. “Eu, hum, preciso fazer umas compras.”
E foi aí que a próxima coisa completamente surpreendente aconteceu. A Lana virou de novo para o reflexo dela, passou os dedos pelo cabelo agora completamente liso e disse: “Nós vamos à liquidação de lingerie da Bendel amanhã. Quer vir junto?”
“Cara, você está... ?” Louca, era obviamente o que a Trisha ia perguntar.
Mas eu vi a Lana lançar um olhar de aviso para ela no espelho, e exatamente como o Almirante Piett fez quando se deu conta de que tinha deixado a Millennium Falcon escapar na frente do Darth Vader, a Trisha fechou a boca... apesar de parecer assustada.
Eu só fiquei lá parada, sem ter certeza se aquilo tudo estava mesmo acontecendo, ou se era um sintoma da minha depressão. Talvez eu estivesse com alguma forma de depressão em que a gente tem alucinações sobre convites para liquidação de lingerie na Bendel de animadoras de torcida que sempre odiaram você. Nunca se sabe.
Como eu não respondi na hora, a Lana se virou para ficar de frente para mim. Pela primeira vez, ela não parecia esnobe. Simplesmente parecia... normal.
“Olha, eu sei que você e eu nem sempre nos demos bem, Mia. Aquela coisa com o Josh... bom, tanto faz. Às vezes ele era mesmo o maior imbecil. Além do mais, algumas das suas amigas são tão... quer dizer, aquela tal de Lilly...”
“Não diga mais nada”, ergui a mão. E não estava falando só por falar, não. Porque era muito sério. Eu realmente não queria que a Lana falasse mais nada da Lilly. Que, é verdade, anda me tratando igual a lixo ultimamente.
Mas talvez eu mereça ser tratada igual a lixo.
“Mas, bom”, a Lana prosseguiu, “vi que você não estava sentada com ela no almoço hoje.”
“Estamos dando um tempo”, eu disse, séria.
“Bom, tanto faz”, a Lana continuou. “Você realmente está salvando a pele da minha mãe. E se você vai entrar para a Domina Rei algum dia, como eu vou — se tiver sorte —, então acho que devíamos deixar o passado no passado. Quer dizer, espero que seja hoje mais madura do que era, e que a gente possa se comportar como adultas em relação a esta questão. Você não acha?
Fiquei tão chocada que só assenti.
Em vez de ressaltar que o caso não é exatamente de a Lana e eu não nos darmos bem, mas sim o fato de ela ser totalmente maldosa com algumas das minhas amigas.
Em vez de falar: “Para a sua informação, eu não entraria para a Domina Rei nem que você me pagasse.”
Em vez de fazer qualquer uma dessas coisas, eu só fiquei lá parada, assentindo.
Porque não consegui pensar em mais nada o que fazer. É, eu fiquei mesmo completamente abobalhada com o que estava acontecendo.
Ou como estou louca e deprimida com tudo.
“Legal”, a Lana disse. “Então, amanhã de manhã, às dez horas, na Bendel. Depois a gente almoça em algum lugar. Vamos, Trish. A gente precisa ir para a aula.”
E assim, sem mais nem menos, as duas saíram...
...quase exatamente no mesmo instante em que a sra. Potts entrou e assoprou o apito dela e nos mandou fazer fila para ir para o parque.
Eu fiz o que me mandaram sem nem pensar sobre o assunto.
É, eu estava mesmo completamente tonta com o que tinha acabado de acontecer. Uma parte de mim dizia: É um truque. Tem que ser. Eu vou chegar à Bendel e, em vez da Lana, vai estar o comediante Carrot Top, com um monte de paparazzi que vão tirar a minha foto junto com o Carrot Top, e a manchete de todos os jornais de domingo vai ser “Conheça o novo futuro consorte real da Genovia... Carrot Top!”
Mas a minha parte racional — acho que, apesar de estar afundada na depressão, ainda tenho um lado racional — dizia: É ÓBVIO que a Lana estava sendo sincera. Aquela coisa que ela disse sobre o Josh — quer dizer, basicamente, o que aconteceu entre você, o Josh e a Lana não é diferente do que está acontecendo agora entre você, o J.P. e a Lilly. Apesar de você e o J.P. serem só amigos, a Lilly ainda ACHA que você o roubou, do mesmo jeito que a Lana achou sobre o Josh. A única diferença, na verdade, era que você era mesmo a fim do Josh. É claro que a Lana ficou louca da vida. É claro que a LILLY está louca da vida. Meu Deus, Mia. Você é mesmo um saco.
Então talvez não seja um truque, no final das contas. Talvez a Lana realmente só queira sair comigo.
A questão é... será que eu realmente quero sair com ela?
Ah, meleca. Lá vem a sra. Potts. Ela não parece muito feliz com o fato de eu ter trazido o meu diário aqui para a lateral esquerda do campo.
Mas por acaso a culpa é minha se ninguém joga a bola para mim?