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PRÍNCIPE DE FOGO
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CAPÍTULO 14

CAIRO

— Nunca assinei nada assim — disse Quinnell sombriamente. Passava da meia-noite; estavam no pequeno e gasto Fiat de Quinnell. Do outro lado do Nilo, o Cairo central remexia-se irrequieto, mas Zamalek estava silenciosa àquela hora. Tinham demorado duas horas a chegar lá. Gabriel estava seguro de que ninguém o seguira.

— Tem certeza do número do apartamento?

- Já estive lá — disse Quinnell. — Não na condição que esperava, sabe, apenas numa das festas da Mimi. Vive no apartamento A. Todos conhecem o endereço da Mimi.

— Tem certeza de que ela não tem um cão?

— Só tem um gato angora com problemas de peso. Tenho a certeza que um homem que afirma ser amigo do grande Herr Heller não terá qualquer problema em lidar com um gato obeso. Já eu, por outro lado, tenho de me defrontar com um porteiro núbio de 2,15m. Como é que isto aconteceu?

— Você é um dos melhores jornalistas do mundo, Quinnell. Por certo que consegues enganar um porteiro.

— É verdade, mas isto não é propriamente jornalismo.

— Pensa nisto como uma partida de um menino inglês. Diz-lhe que o carro se foi abaixo. Diz-lhe que precisas de ajuda. Dá-lhe dinheiro. Cinco minutos, e nem mais um minuto. Percebeste?

Quinnell assentiu.

— E se o teu amigo da Mukhabarat aparecer? — perguntou Gabriel. — Qual é o sinal?

Duas buzinadelas breves, seguidas por uma longa.

Gabriel saiu do carro, atravessou a rua e desceu um lance de degraus de pedra que conduziam a um cais junto da orla costeira. Deteve-se por um momento para observar a vela angular e graciosa de uma faluca que deslizava devagar rio acima. Depois virou-se e avançou para sul, com a elegante mala de couro do Herr Klemp a pender-lhe do ombro direito. Alguns passos mais à frente, surgiram no seu campo de visão os pisos superiores do edifício de apartamentos da Mimi, acima da elevação diante de si: um antigo edifício de Zamalek, caiado, com grandes terraços sobre o rio.

Uns cem metros para lá do edifício, outro lance de degraus erguia-se acima da rua. Antes de os subir, Gabriel olhou para trás à beira-rio para ver se tinha sido seguido, mas verificou que o cais estava deserto. Subiu os degraus e atravessou a rua, percorrendo depois o caminho até a entrada do beco escurecido que corria ao longo dos fundos do prédio. Fosse essa a primeira vez que ali estivesse e poderia não ter encontrado o seu destino, mas andara pelo beco à luz do dia e sabia com toda a certeza que 130 passos normais o conduziriam à entrada de serviço do edifício da Mimi Ferrere.

Pintadas na porta de metal dentada, liam-se as palavras em árabe NÃO ENTRAR. Gabriel olhou para o relógio. Como esperara, a caminhada desde o carro tomará-lhe .30 minutos. Tentou a maçaneta e verificou que a porta estava trancada, como estivera de dia. Retirou um par de finas ferramentas de metal do bolso lateral da mala e baixou-se até ficar com o trinco ao nível dos olhos. Em 15 segundos, o trinco cedera.

Empurrou a porta e olhou para o interior. Estendia-se diante de si um corredor curto de chão de cimento. Na outra extremidade encontrava-se uma porta semiaberta, que dava para o hall. Gabriel avançou e escondeu-se atrás da segunda porta. Ouvia do outro lado a voz de David Quinnell a oferecer ao porteiro núbio 20 libras para que lhe empurrasse o carro empanado para fora da estrada. Quando a conversa deu lugar ao silêncio, Gabriel espreitou para o outro lado da porta, mesmo a tempo de ver a túnica do núbio a ondular na escuridão.

Entrou no hall e parou junto às caixas de correio. A caixa do apartamento 6A tinha a etiqueta: M. FERRERE. Subiu as escadas até o sexto piso. A porta era flanqueada por um par de palmeiras envasadas. Gabriel colou o ouvido à madeira e não ouviu qualquer som no interior.

Retirou do bolso um dispositivo disfarçado de lâmina elétrica e fê-lo correr à volta do rebordo da porta. Brilhava uma luzinha verde o que queria dizer que o dispositivo não detectara qualquer sinal da existência de um sistema de segurança eletrônico.

Gabriel tornou a enfiar o aparelho no bolso e introduziu a sua antiquada gazua no buraco da fechadura. No preciso instante em que começava a trabalhar, ouviu vozes femininas que se elevavam pela escadaria vindas lá de baixo. Prosseguiu calmamente, as pontas dos dedos registrando alterações subtis em tensão e rotação, enquanto outra parte da sua mente pensava e repensava nas possibilidades. O edifício tinha 11 andares. As hipóteses tendiam ligeiramente, mais do que igualavam, para que as mulheres nas escadas estivessem a encaminhar-se para o sexto piso ou mais acima. Tinha duas opções: abandonar o seu trabalho por agora e tornar a descer as escadas em direção ao hall, ou procurar refúgio num piso superior. Ambos os planos acarretavam potenciais perigos. As mulheres podiam achar suspeita a presença de um estrangeiro desconhecido no edifício, e se acontecesse viverem num dos últimos pisos, ele poderia encontrar-se preso sem qualquer rota de fuga.

Decidiu continuar a trabalhar. Pensou nos exercícios que tinha feito na

Academia, de Shamron sempre atrás do seu ombro, incitando-o a trabalhar como se a sua vida e as vidas da sua equipe dependessem de si. Ouvia agora o bater dos saltos altos, e quando uma das mulheres guinchou com uma gargalhada o seu coração deu um salto.

Quando a última tranca se afastou por fim, Gabriel colocou a mão no trinco e sentiu a gratificante sensação de movimento. Abriu a porta e deslizou para o interior, tornando depois a fechá-la no exato momento em que as mulheres chegavam ao patamar. Encostou-se à porta e, tendo apenas a gazua como arma, susteve o fôlego enquanto elas passavam a rir à gargalhada. Odiou-as por um instante pela sua frivolidade.

Trancou a porta. Retirou da pasta um Maglite do tamanho de um cigarro e fez incidir o feixe estreito à volta do apartamento. Estava num pequeno hall de entrada, para lá do qual se situava a sala de estar. Fresca e branca, com mobiliário baixo e confortável, e uma abundância de almofadas coloridas e mantas, lembrava vagamente a Gabriel o clube noturno da Mimi. Avançou devagar, mas parou de repente quando a luz incidiu sobre um par de olhos amarelos néon.

O gato gordo da Mimi estava deitado, enrolado, em cima de uma otomana. Olhou sem interesse para Gabriel, pousou o focinho nas patas e fechou os olhos. Tinha uma lista de alvos, organizada por ordem de importância. Uma das primeiras prioridades era os telefones da Mimi. Encontrou o primeiro na sala de estar, pousado sobre uma mesa de apoio. Localizou o segundo na mesa-de-cabeceira do quarto e o terceiro na sala que ela usava como escritório. Acoplou a cada um deles um dispositivo miniatura conhecido no léxico do Escritório como "vidro", um transmissor que iria fornecer cobertura tanto para o telefone, como para a sala à sua volta. A uma distância de cerca de mil metros, permitiria a Gabriel usar a sua suite no Intercontinental como posto de áudio.

Encontrou também no escritório o segundo artigo da sua lista de alvos, o computador da Mimi. Sentou-se, ligou o computador e introduziu um CD no drive. O software correu automaticamente e começou a recolher dados guardados no disco duro: caixas de e-mail, documentos, fotografias, até arquivos de áudio e vídeo. Enquanto os arquivos eram copiados para o CD, Gabriel deu uma olhadela ao resto do escritório. Vasculhou um molho de correspondência, abriu as gavetas da secretária, olhou de relance para os arquivos. A ausência de tempo permitiu-lhe apenas um exame superficial dos artigos, e Gabriel não encontrou nada que lhe chamasse a atenção.

Verificou o progresso do download, e em seguida levantou-se e fez incidir o feixe da Maglite pelas paredes. Uma delas estava coberta por várias fotografias emolduradas. A maior parte mostrava a Mimi na companhia de outras pessoas bonitas. Numa delas viu uma versão mais jovem da Mimi, com um kaffiyeh envolvendo-lhe os ombros. Tinha como fundo as Pirâmides de Gize que, como o rosto dela, eram banhadas por um tom siena projetado pelo sol poente — Mimi, a idealista New Age que tentava salvar o mundo da destruição através do poder do pensamento positivo.

Uma segunda fotografia chamou a atenção de Gabriel: a Mimi, de cabeça pousada numa almofada cor de lavanda, a olhar diretamente para a lente. O seu rosto estava colado ao de um homem que fingia dormir e que tinha um chapéu puxado sobre os olhos, deixando-lhe assim visíveis apenas o nariz, a boca e o queixo — o suficiente de um rosto, sabia-o Gabriel, para que os especialistas fizessem um reconhecimento facial conclusivo. Tirou uma pequena máquina fotográfica digital da sacola do Herr Klemp e fotografou a fotografia.

Regressou para junto da secretária e viu que o download estava terminado.

Retirou o CD da drive e desligou o computador. Depois olhou para o relógio. Estivera no interior do apartamento durante sete minutos, mais dois minutos do que tinha planejado. Deixou cair o CD para dentro da sacola, dirigindo-se em seguida à porta de entrada, onde se deteve por um instante para se certificar de que o patamar estava vazio antes de sair.

As escadas estavam vazias, como o hall, com exceção do porteiro núbio, que desejou a Gabriel uma boa noite quando passou por ele e saiu para rua. Quinnell, a imagem perfeita da indiferença, estava sentado em cima do capot do carro a fumar um cigarro. Como um bom profissional, manteve os olhos baixos até Gabriel ter virado à esquerda e ter começado a andar em direção à ponte Tahrir.

Na manhã seguinte, Herr Klemp ficou doente. Depois de ter recebido uma descrição desagradavelmente pormenorizada dos sintomas, o Sr. Katubi diagnosticou uma desordem bacteriana e previu que o desfecho seria violento, mas rápido. — A cidade do Cairo traiu-me — queixou-se Herr Klemp. — Fui seduzido por ela, e retribuiu o meu afecto com a vingança.

A previsão do Sr. Katubi de uma recuperação rápida demonstrou ser errónea. A tempestade nos intestinos de Herr Klemp assolou-os ao longo de muitos dias e noites. Foram chamados médicos, receitados medicamentos, mas nada parecia funcionar. O Sr. Katubi pôs de parte o ressentimento que nutria por Herr Klemp e assumiu pessoalmente a responsabilidade de cuidar dele. Receitou-lhe uma poção, provada pelo tempo, de batatas cozidas salpicadas com sumo de limão e sal, preparado que lhe entregava três vezes ao dia.

A doença suavizou o comportamento do Herr Klemp. Mostrava-se agradável para com o Sr. Katubi e até se desculpava junto das empregadas de quarto que tinham de lhe limpar a medonha casa de banho. Por vezes, quando o Sr. Katubi entrava no quarto, ia encontrar Herr Klemp sentado na cadeira de braços junto à janela, a olhar, fatigado, para o rio. Passava contudo a maior parte do tempo apaticamente 156 estendido na cama. Por forma a aliviar o tédio do cativeiro, ouvia música e os noticiários em alemão pelo seu rádio de ondas curtas, com os minúsculos receptores para não perturbar os outros hóspedes. O Sr. Katubi deu por si com saudades do velho Johannes Klemp. Por vezes, erguia os olhos do seu posto no hall e ansiava por ver o rabugento alemão atravessar pesadamente o chão de mármore com as abas do casaco a bater e o maxilar endurecido para o confronto. Certa manhã, uma semana exata depois de Herr Klemp ter ficado doente, o Sr. Katubi bateu-lhe à porta e ficou surpreso com a voz vigorosa que o mandou entrar. Passou o cartão pela ranhura da porta e entrou. Herr Klemp estava a fazer a malas.

— A tempestade terminou, Katubi.

— Tem certeza?

— Tanta quanto é possível numa situação como esta.

— Lamento que o Cairo o tenha tratado tão mal, Herr Klemp. Imagino que a decisão para prolongar a sua estada tenha afinal sido um erro.

— Talvez, Katubi, mas também nunca fui homem de ficar preso ao passado, nem você o devia fazer.

— É uma doença árabe, Herr Klemp.

— Eu não sofro dessa doença, Katubi. — Herr Klemp colocou o seu rádio de ondas curtas no saco e fechou o fecho. — Amanhã é outro dia.

Chovia em Frankfurt naquela tarde: o piloto da Lufthansa dissera-o abundantes vezes. Falara da chuva quando ainda se encontravam em terra, no Cairo, e fornecera-lhes entediantes atualizações por duas vezes durante o voo. Gabriel deixara-se prender pela laboriosa voz do piloto, pois ela dava-lhe algo que fazer além de olhar para o relógio e calcular as horas até o próximo massacre de inocentes levado a cabo pelo Khaled. Quando se aproximavam de Frankfurt, encostou a cabeça ao vidro e olhou para fora, esperando vislumbrar as primeiras luzes da planície do Sul da Alemanha, mas, em seu lugar, viu apenas escuri dão. O jato mergulhou nas nuvens, e a sua janela foi riscada por fios horizontais de água da chuva — e nessas velozes gotículas viu Gabriel as equipes do Khaled posicionarem-se para o ataque seguinte.

Depois, 157 subitamente, surgiu a pista de aterragem, uma folha de mármore negro polido erguendo-se devagar para os receber, e desceram.

No terminal, dirigiu-se a uma cabina telefônica e marcou o número de uma empresa de transporte em Bruxelas. Identificou-se como Stevens, um dos seus muitos nomes telefônicos, e pediu para falar com o Sr. Parsons. Ouviu uma série de estalidos e de zumbidos, seguidos de uma voz feminina, distante e com um ligeiro eco. Gabriel sabia que a moça estava naquele momento sentada ao balcão do Controle de Operações no Boulevard King Saul.

— Que deseja? — perguntou ela.

— Identificação por voz. — Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Recorrendo a termos hebraicos que nenhum ouvinte poderia compreender, Gabriel confiou concisamente à moça os meios técnicos com que captara e gravara a voz do sujeito.

— Passe por favor a gravação.

Gabriel pressionou o botão PLAY e levou o gravador ao bocal do receptor.

Voz masculina, francês perfeito.

"Sou eu. Dá-me uma apitadela quando puderes. Não é nada de urgente. Gao."

Baixou o gravador e colou o receptor ao ouvido.

— Não temos nada compatível em arquivo — disse a mulher.

— Compare-a com a impressão vocal não identificada 698/D. — A aguardar. — Depois um momento mais tarde: — Combina.

— Preciso identificar um número telefônico.

Gabriel localizou a segunda intercepção, pressionou PLAY e tornou a levar o gravador até o telefone. Ouvia-se a Mimi Ferrere a fazer uma chamada internacional do telefone do seu escritório. Quando o último número foi marcado, Gabriel pressionou PAUSE.

A mulher na outra extremidade da linha recitou o número: 00 33 54 67 98. Gabriel sabia que o 33 era o código da França e que o 91 era o código para a cidade de Marselha. — Faça a ligação — disse ele.

— Um momento.

Passados dois minutos, a mulher disse:

O telefone está registrado em nome de um Monsieur Paul Véran, Boulevard St-Rémy, Marselha.

— Preciso de outra identificação vocal.

— Qualidade?

— Igual à anterior.

— Passe a gravação.

Gabriel tornou a pressionar o PLAY, mas dessa vez a voz foi abafada pelo som de um aviso de segurança, em alemão, gritando do altifalante acima da sua cabeça: Achtung! Achtung! Terminado o aviso, tornou a premir PLAY. Dessa vez a voz, feminina, era claramente audível.

"Sou eu. Onde estás? Telefona-me quando puderes. Adoro-te."

STOP.

— Nada de compatível em arquivo.

— Compare com a impressão vocal não identificada 572/B.

— A aguardar. — E depois: — Combina.

— Aponte, por favor, que o sujeito dá pelo nome de Mimi Ferrere. A morada dela é Rua Brasil 24, apartamento 6A, Cairo.

Acrescentei-a ao arquivo. Tempo decorrido nesta chamada: .32 minutos. Mais alguma coisa?

— Preciso que me envie uma mensagem ao Ezekiel.

Ezekiel era o código telefônico para o departamento de Operações.

— A mensagem é?

— O nosso amigo está a passar algum tempo em Marselha, no endereço que me deu.

— Número 56 Boulevard St-Rémy?

— Exatamente — disse Gabriel. — Preciso de instruções do Ezekiel para continuar.

— Estás a telefonar do aeroporto de Frankfurt?

— Sim.

— Vou desligar. Vá para outro lugar e torne a ligar daqui a cinco minutos. Terei então instruções para si.

Gabriel desligou. Dirigiu-se a um quiosque de jornais, onde comprou uma revista alemã, e percorreu depois uma curta distância no terminal até junto de outro grupo de telefones. O mesmo número, a mesma conversa, a mesma moça em

Tel Aviv.

— Ezekiel quer que vá a Roma.

— Roma? Por que Roma?

— Bem sabe que não sei responder.

Não interessava. Gabriel sabia a resposta.

— Para onde devo ir?

— O apartamento perto da Piazza di Spagna. Conhece-o? Conhecia. Era um encantador apartamento de segurança ao alto da Escadaria Espanhola, não muito longe da Igreja da Trinta dei Monti. — Há um voo de Frankfurt para Roma dentro de duas horas. Vamos reservar-lhe um lugar.

— Quer o meu número de passageiro frequente?

— O quê?

— Deixe lá.

— Boa viagem — disse a moça, e a chamada desligou-se.


PARTE TRÊS


A Gare de Lyon


CAPÍTULO 15

MARSELHA

 

 

Pela segunda vez em dez dias, Paul Martineau fez a viagem de Aix-en-Provence para Marselha. Tornou a entrar no café da pequena rua ao fundo da Rue des Convalescents e subiu as escadas estreitas até o apartamento do primeiro andar, onde de novo foi saudado no patamar por uma figura encapuzada que falou com ele em árabe em voz baixa. Sentaram-se, encostados a almofadas de seda, no chão da minúscula sala de estar. O homem introduziu lentamente haxixe no cachimbo de água e levou um fósforo aceso ao fornilho. Em Marselha, era conhecido como Hakim el-Bakri, um imigrante recente da Argélia. Martineau conhecia-o por outro nome, Abu Saddiq. Martineau não o tratava por esse nome, como Abu Saddiq não tratava Martineau pelo nome que lhe fora dado pelo seu verdadeiro pai.

Abu Saddiq sugou longamente a boquilha do cachimbo, inclinando-o em seguida na direção de Martineau. Martineau puxou longamente o haxixe e deixou que o fumo lhe subisse às narinas. Depois acabou o seu café. Uma mulher de véu levou-lhe a xícara vazia e ofereceu-lhe outra. Quando Martineau sacudiu a cabeça, a mulher saiu silenciosamente do quarto.

Fechou os olhos enquanto uma onda de prazer se lhe abatia sobre o corpo. O estilo árabe, pensou: um pouco de fumo, uma xícara de café doce, a subserviência de uma mulher que conhecia o seu lugar na vida. Embora tivesse sido criado como verdadeiro francês, era sangue árabe que lhe corria nas veias e o árabe que ele sentia mais confortável na língua. A linguagem do poeta, a linguagem da conquista e do sofrimento. Havia alturas em que a separação do seu povo era quase demasiado dolorosa para suportar. Na Provença, ele estava rodeado por 164 pessoas como ele, e, no entanto, não lhes podia tocar. Era como se ele tivesse sido condenado a vaguear entre eles, como um espírito amaldiçoado vagueia entre os vivos. Apenas ali, no minúsculo apartamento de Abu Saddiq, podia transformar-se no homem que verdadeiramente era. Abu Saddiq compreendia isso, razão por que parecia não ter pressa de chegar ao assunto. Enfiou mais haxixe no cachimbo de água e acendeu outro fósforo.

Martineau deu outra passa no cachimbo, desta vez mais profundamente do que a anterior, e susteve o fumo até lhe parecer que os pulmões iam rebentar. Sentia agora a mente a flutuar. Viu a Palestina, não com os seus olhos, mas como lhe fora descrita por aqueles que a tinham de fato visto. Martineau, à semelhança do pai, nunca lá colocara um pé. Os limoeiros e olivais: foi isso que imaginou. Fontes frescas e cabras subindo as colinas castanhas do Galileu. Um pouco como a Provença, pensou ele, antes da chegada dos Gregos. A imagem desintegrou-se, e deu por si a vaguear por uma paisagem de ruínas celtas e romanas. Chegou a uma aldeia, uma aldeia na planície costeira da Palestina. Beit Sayeed, como lhe chamavam. Agora nada mais restava do que uma pegada no solo empoeirado. Na sua alucinação, Martineau caiu de joelhos e arranhou a omoplata na terra. Nada lhe restituía, nem ferramentas nem cerâmicas, nem moedas nem restos humanos. Era como se o povo se tivesse simplesmente desvanecido.

Obrigou-se a abrir os olhos. A visão dissipou-se. A sua missão iria em breve acabar. Os assassinatos do pai e do avô seriam vingados, o seu direito inalienável cumprido. Martineau estava confiante de que não iria passar os seus últimos dias como um francês da Provença, mas como um árabe na Palestina. O seu povo, perdido e espalhado, seria devolvido à terra, e Beit Sayeed tornaria a erguer-se do túmulo. Os dias dos judeus estavam contados. Haveriam de partir, como todos aqueles que tinham chegado à Palestina antes deles: os Gregos e os Romanos, os Persas e os Assírios, os Turcos e os Ingleses. Martineau estava convencido de que um dia, em breve, andaria à procura de artefatos entre as ruínas de um assentamento judaico.

Abu Saddiq estava a puxar-lhe a manga da camisa e a chamá-lo pelo seu verdadeiro nome. Martineau virou lentamente a cabeça e fitou Abu Saddiq com um olhar de pálpebras pesadas.

— Sou Martineau — disse ele em francês. — Paul Martineau. Doutor Paul Martineau.

— Estiveste longe por um momento.

— Estive na Palestina — murmurou Martineau, de fala arrastada pela droga. — Em Beit Sayeed.

— Não tarda a que estejamos todos lá — disse Abu Saddiq.

Martineau lançou-lhe um sorriso — não de arrogância, mas de silenciosa confiança. Buenos Aires, Istambul, Roma: três atentados, cada um deles planejado e executado sem falhas. As equipes tinham colocado os explosivos no alvo e desaparecido sem deixar rasto. Durante cada uma das operações, Martineau escondera-se com trabalho arqueológico e operara através de um intermediário. Abu Saddiq estava a tratar da operação de Paris. Martineau concebera-a e planejara-a; a partir do seu café no Quartier Belsunce, Abu Saddiq movia as peças de xadrez ao comando de Martineau. Quando estivesse terminado, Abu Saddiq sofreria o mesmo destino de todos aqueles que Martineau usara. Aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca permitiria ser desmascarado por um traidor árabe.

Abu Saddiq estendeu o cachimbo a Martineau, que ergueu a mão num gesto de rendição. Depois, com um lento aceno da cabeça, instruiu Abu Saddiq para continuar com a reunião final. Durante a meia hora seguinte, Martineau permaneceu em silêncio, enquanto Abu Saddiq falava: a localização das equipes, as moradas em Paris onde as bombas-mala estavam a ser montadas, o estado emocional dos três shaheeds. Abu Saddiq parou de falar enquanto a mulher velada lhes servia mais café. Quando ela tornou a sair, Abu Saddiq referiu que o último membro da equipe iria chegar a Marselha dentro de dois dias.

— Ela quer ver-te — disse Abu Saddiq. -Antes da operação. Martineau sacudiu a cabeça. Conhecia a moça — tinham sido amantes — , e sabia porque é que ela o queria ver. Era melhor do que agora não passassem tempo juntos. De outro modo, Martineau poderia ter segundas intenções acerca daquilo que planejara para ela.

— Mantemo-nos com o plano original — disse ele. — Onde é que me encontro com ela?

— O café da Internet no porto. Conhece-o?

Martineau conhecia.

Ela vai lá estar às 12.30 horas.

Nesse instante, do minarete de uma mesquita ao alto da rua, o muegin convocou os fiéis para a oração. Martineau fechou os olhos enquanto era banhado pelas palavras familiares.

Deus é maior. Testemunho que não existe nenhum deus além de Deus.

Testemunho que Maomé é o Profeta de Deus. Venham à oração. Venham ao êxito. Deus é maior. Não há nenhum deus além de Deus.

Uma vez terminada a chamada à oração, Martineau levantou-se e preparou-se para partir.

— Onde está o Hadawi? — perguntou.

— Em Zurique.

— É um fardo, não achas? Abu Saddiq assentiu.

— Mando-o para outro lugar? — Não — disse Martineau. — Mata-o.

Quando chegou à Place de la Préfecture, Martineau sentia-se de cabeça desanuviada. Como eram diferentes as coisas deste lado de Marselha, pensou. As ruas eram mais limpas, as lojas mais abundantes. Martineau, o arqueólogo, não conseguia evitar refletir sobre a natureza dos dois mundos que existiam lado a lado nesta antiga cidade. Um centrava-se na devoção, o outro no consumo. Um tinha muitos filhos, o outro considerava as crianças como um fardo financeiro. Martineau sabia que os Franceses não tardariam a ser uma minoria no seu próprio país, colonos na sua própria terra. Algures em breve, um século, talvez um pouco mais, a França seria um país muçulmano.

Virou para o Boulevard St-Rémy. Bordejada de árvores e dividida ao meio por um estacionamento a pagar, a rua subia ligeiramente num ângulo em direção a um pequeno parque verde com uma vista sobre o velho porto. Os edifícios de ambos os lados eram de majestosa pedra cinza e uniformes em altura. As janelas do piso térreo eram cobertas por barras de ferro. Muitos dos edifícios continham escritórios — advogados, médicos, agentes imobiliários — e mais ao alto da rua havia dois bancos e uma enorme loja artigos de decoração. Ao fundo da rua, na extremidade da Place de la Préfecture, havia um par de quiosques em frente um do outro: um vendia jornais, e o outro, sanduíches. Durante o dia havia um pequeno mercado na rua, mas agora ao crepúsculo os vendedores tinham guardado o queijo e os legumes frescos e ido para casa.

O edifício do número 56 era apenas residencial. O hall estava limpo e a escadaria era ampla, com um corrimão de madeira e uma passadeira nova. O apartamento estava vazio, com exceção de um único sofá branco e um telefone no chão. Martineau dobrou-se, levantou o receptor e marcou um número. Um atendedor de chamadas, como esperara.

— Estou em Marselha. Telefona-me quando puderes.

Desligou, depois sentou-se no sofá. Sentia a pressão da arma contra os rins. Inclinou-se para a frente e tirou-a do cós da calça. A Stechkin de nove milímetros — a arma do seu pai. Por muitos anos após a morte do pai em Paris, a arma ficara a acumular pó num depósito da Polícia, como prova de um julgamento que nunca viria a ocorrer. Um agente do serviço secreto franceses levara clandestinamente a arma para Túnis em 1985 e oferecera-a a Arafat. Arafat tinha-a dado a Martineau.

O telefone tocou. Martineau respondeu.

— Monsieur Véran?

— Mimi, meu amor — respondeu Martineau. — Que bom ouvir a tua voz.

CAPÍTULO 16

ROMA

 

 

O telefone acordou-o. Como os telefones do apartamento de segurança, não tinha campainha, apenas uma luz pulsante, luminosa com um marcador de canal, que transformou as suas pálpebras em vermelho. Estendeu a mão e levou o receptor ao ouvido.

— Acorda — disse Shimon Pazner.

— Que horas são?

— Oito e meia.

Gabriel tinha dormido 12 horas.

— Veste-te. Há uma coisa que tens de ver, já que estás na cidade.

— Analisei as fotografias, li todos os relatórios. Não preciso ver nada.

— Precisa, sim.

— Por quê?

— Porque vai te chatear.

— E que bem isso fará?

— Às vezes precisamos que nos chateiem — disse Pazner. Encontro-me contigo na escadaria da Galleria Borghese dentro de uma hora. Não me deixes feito parvo à tua espera.

Pazner desligou. Gabriel levantou-se da cama e deixou-se ficar debaixo do chuveiro durante muito tempo, equacionando se deveria fazer a barba. Por fim, acabou por se decidir a apará-la. Vestiu um dos ternos escuros de Herr Klemp e dirigiu-se à Via Veneto para tomar café. Uma hora depois de ter desligado a chamada de Pazner seguia por um caminho de cascalho sombreado em direção à escadaria da galeria. O katsa de Roma estava sentado num banco de mármore no pátio anterior, a fumar um cigarro.

— Bela barba — disse Pazner. — Céus, estás com um aspecto terrível.

— Precisava de uma desculpa para ficar no meu quarto de hotel no Cairo.

— Como é que o conseguiste?

Gabriel contou-lhe. Um produto farmacêutico vulgar que, quando ingerido e não devidamente administrado, tinha um efeito desastroso, embora temporário, no trato digestivo.

— Quantas doses tomaste?

— Três.

— Pobre coitado.

Atravessaram os jardins no sentido norte: Pazner como um homem a marchar ao som de um tambor que só ele ouvia, e Gabriel a seu lado, exausto por força de excesso de viagens e de preocupações. No perímetro do parque, perto dos jardins botânicos, situava-se a abertura para o beco sem saída. Durante dias depois do atentado, a imprensa mundial mantivera-se acampada no cruzamento. O chão continuava pejado de pontas de cigarros e de copos de plástico esmagados. Aos olhos de Gabriel era como um pedaço de terra arável depois do festival anual das colheitas.

Entraram numa rua e desceram o declive da encosta até chegarem a uma barricada de aço temporária, controlada pela Polícia italiana e pelos seguranças israelenses. Pazner foi imediatamente admitido, bem como o seu conhecido, um alemão de barba.

Uma vez atrás da cerca puderam ver os primeiros sinais de danos: o pinheiro queimado sem as suas agulhas; as janelas partidas das villas vizinhas; os pedaços de destroços retorcidos espalhados por toda a parte como papel amachucado no lixo. Mais alguns passos e a cratera da bomba surgiu à vista, com pelo menos três metros de profundidade e rodeada por um halo de pavimento queimado. Pouco restava dos edifícios mais próximos do ponto de impacto; mais no interior do complexo, as estruturas permaneciam de pé, mas os lados de frente para a explosão tinham sido arrancados, por isso o efeito parecia o de uma casa de bonecas. Gabriel lançou um olhar ao escritório intato, onde as fotografias emolduradas continuavam sobre a secretária, e à casa de banho, com uma toalha ainda pendurada no varão. O ar estava pesado devido ao cheiro de cinza e àquilo que Gabriel temia ser o cheiro persistente de carne queimada. Vindo das profundezas do complexo chegou-lhe o arranhar e o rugir das escavadoras e dos bulldozers. A cena do crime, como o cadáver de uma vítima de homicídio, tinha dado as suas pistas finais. Agora era a altura do enterro.

Gabriel ficou mais tempo do que julgara que ficaria. Nenhuma ferida passada, real ou imaginada, nenhuma ofensa ou disputa política justificava um ato de homicídio àquela escala. Pazner tinha razão: o simples fato de ver a cena provocava em si uma fúria imensa. Mas havia outra coisa, outra coisa além da fúria. Enchia-o de ódio. Virou-se e começou a subir a colina. Pazner seguiu-o em silêncio.

— Quem te disse para me trazeres aqui?

— Foi ideia minha.

— Quem?

— O velho — disse Pazner em voz baixa. — Por quê?

— Não sei por quê. Gabriel deteve-se.

— Porquê, Shimon?

— O Varash reuniu ontem depois de teres chegado a Frankfurt. Volta para o apartamento de segurança. Espera aí por mais instruções. Em breve, alguém entrará em contato contigo.

E com essas palavras Pazner atravessou a rua e desapareceu na Villa Borghese. Mas ele não regressou ao apartamento de segurança. Em vez disso, encaminhou-se na direção oposta, para os bairros residenciais do Norte de Roma. Encontrou a Via Trieste e seguiu-a para oeste, até chegar, passados dez minutos, a uma praça pequena e confusa chamada Piazza Annibaliano.

Pouco se alterara naquela praça durante os 30 anos passados desde que Gabriel a vira pela primeira vez: o mesmo grupo de árvores melancólicas ao centro da praça, as mesmas lojas sombrias que forneciam clientes de classe baixa. E na extremidade norte, enfiado entre duas ruas, encontrava-se o mesmo prédio, com o formato de uma fatia de tarte, com a ponta para a praça e o Bar Trieste no piso térreo. Zwaiter costumava parar no bar para usar o telefone antes de subir as escadas até o seu quarto.

Gabriel atravessou a praça, abrindo caminho através dos carros e das motas perigosamente estacionadas no centro, e entrou no edifício pela soleira marcada "Entrada C". O hall estava frio e escuro. As luzes, lembrou-se Gabriel, funcionavam com um temporizador para poupar eletricidade. A vigilância do edifício tinha notado que os residentes, incluindo Zawiter, raramente se incomodavam a ligá-los — um fato que demonstraria ser uma vantagem operacional para Gabriel, porque lhe assegurara virtualmente o benefício de trabalhar no escuro. Nesse momento, parou diante do elevador, ao lado do qual havia um espelho. A vigilância tinha-se esquecido de o mencionar. Naquela noite, ao ver o seu reflexo no espelho, Gabriel quase pegara na Beretta e disparara. Em vez disso, enfiou a mão no bolso do casaco para procurar uma moeda e estava a estendê-la em direção à ranhura de pagamento no elevador quando Zwaiter, que usava um casaco simples e segurava um saco de papel contendo uma garrafa de vinho de figo, entrou pela última vez na Entrada C.

"Desculpe, mas não é o Wadal Zwaiter?"

"Não! Por favor, não!"

Gabriel deixara que a moeda lhe caísse da ponta dos dedos. Antes de chegar ao chão, sacara da Beretta e disparara os seus dois primeiros tiros. Um dos cartuchos despedaçou o saco de papel antes de atingir Zwaiter no peito. Vinho e sangue misturaram-se aos pés de Gabriel enquanto ele continuava a disparar para o corpo em queda do palestino.

Nesse momento, olhou para o espelho e viu-se como fora naquela noite, um rapaz anjo com um blusão de couro, um artista que não fazia ideia de como o ato que estava a cometer iria alterar para sempre o curso da sua vida. Transformara-se noutra pessoa. E outra pessoa permanecera então. Shamron não lhe tinha dito que isso ia acontecer. Ensinara-o a sacar de uma arma e a disparar num segundo, mas nada fizera para o preparar para o que ia acontecer a seguir. Defrontar-se com um terrorista nos termos do outro, no seu campo de batalha, exige um preço terrível. Altera os homens que o fazem, bem como a sociedade que os envia.

É a derradeira arma do terrorista. Para

Gabriel, as alterações também eram visíveis. Na altura em que entrara a cambalear em Paris para a sua missão seguinte, já tinha as têmporas grisalhas.

Tornou a olhar para o espelho e viu a figura de barba do Herr Klemp a retribuir-lhe o olhar. Na sua mente dispararam imagens do caso: uma embaixada arrasada, o seu próprio dossiê, Khaled... Teria Shamron razão? Estaria Khaled a enviar uma mensagem? Teria Khaled escolhido Roma devido ao que Gabriel fizera 30 anos antes naquele mesmo lugar?

Ouviu o suave arrastar de passos atrás de si: uma mulher velha, envergando o negro da viuvez, a segurar um saco plástico com mercearias. Olhou diretamente para ele. Por um instante, receou que ela de algum modo se lembrasse dele. Gabriel desejou-lhe uma boa manhã e tornou a sair para a praça inundada de luz. Sentia-se subitamente febril. Caminhou durante algum tempo pela Via Trieste, depois fez sinal a um táxi e pediu ao motorista que o levasse à Praça de Espanha. Ao entrar no apartamento de segurança, viu uma cópia do La Repubblica daquela manhã no chão do hall da entrada. Na página seis encontrava-se um anúncio grande de um carro desportivo italiano. Gabriel olhou atentamente para o anúncio e viu que ele tinha sido cortado de uma outra edição do jornal e colado sobre a página correspondente. Rasgou as extremidades da página e descobriu, escondida entre duas páginas, uma folha de papel contendo o texto codificado da mensagem. Depois de a ter lido, queimou-a no lava-louças e tornou a sair. Adquiriu uma mala de viagem nova na Via Condotti e passou a hora seguinte a comprar a roupa adequada ao seu destino seguinte. Regressou a um apartamento de segurança durante o tempo suficiente para encher o seu novo saco, depois foi almoçar no Nino, na Via Borgognona. Às duas da tarde, apanhou um táxi para o aeroporto Fiumicino, e às cinco e meia embarcou num voo para a Sardenha. Enquanto o avião de Gabriel ganhava velocidade na pista de descolagem, Amira Assaf surgia ao portão da frente da Clínica Stratford e mostrava o cartão identificativo ao guarda de segurança, que o examinou cuidadosamente, fazendo depois sinal para avançar. Ela fez girar o manipulo da mota e desceu, acelerada, os metros do caminho de cascalho em direção à mansão. O Dr. Avery estava a sair para a noite, acelerando em direção ao portão no seu grande Jaguar prateado. Amira tocou a buzina e acenou-lhe, mas ele ignorou-a e passou por ela inundando-a num chuveiro de pó e cascalho.

O estacionamento para o pessoal situava-se no pátio dos fundos. Ela colocou a mota no descanso, retirou a mochila do compartimento do assento e deixou o capacete no seu lugar. Duas moças iam a sair do serviço. Amira deu-lhes as boas noites, e utilizou em seguida o seu cartão para abrir a entrada de segurança do pessoal. O relógio de ponto estava montado na parede do hall. Encontrou o cartão, na terceira ranhura do fundo, e picou-o: 17h56. O vestiário ficava a alguns passos do início do corredor. Amira entrou e vestiu o uniforme: calças brancas, sapatos brancos e uma bata cor de pêssego que o Dr. Avery acreditava ser calmante para os doentes. Passados cinco minutos apresentou-se ao serviço na janela da enfermeira-chefe. Ginger Hall, uma loira oxigenada de lábios escarlate, olhou para cima e sorriu.

— Novo penteado, Amira? Muito bonito. Céus, o que eu não faria para ter um cabelo forte e negro como o teu.

— Podes ficar com ele, bem como com a pele morena, os olhos negros e todas as outras coisas que os acompanham.

— Ah, deixa-te disso, querida. Aqui somos todas enfermeiras. Só estamos a fazer o nosso trabalho e a tentar fazer uma vida decente.

— Talvez, mas lá fora as coisas são diferentes. Que tens para mim?

— Lee Martinson. Está no solário. Leva-a para o quarto. Deita-a para a noite. — Aquele tipo grande ainda anda à volta dela?

— O guarda-costas? Ainda. O Dr. Avery acha que ele vai andar por aqui algum tempo.

— Porque é que uma mulher como Miss Martinson precisa de um guarda-costas? — É confidencial, minha querida. Altamente confidencial.

Amira desceu o corredor. Passado um momento, chegou à entrada do solário. Ao entrar, a umidade saudou-a como um cobertor úmido. Miss Martinson estava na sua cadeira de rodas, a olhar para as janelas escurecidas. O guarda-costas, ao ouvir Amira aproximar-se, levantou-se. Era um homem grande e de constituição pesada, de uns vinte anos, com cabelo curto e olhos azuis. Falava com um sotaque inglês, mas Amira duvidava que ele fosse verdadeiramente inglês. Ela baixou o olhar para Miss Martinson.

— Está a ficar tarde, minha querida. Já é hora de subir as escadas e de se preparar para dormir.

Empurrou a cadeira de rodas para fora do solário e ao longo do corredor até os elevadores. O guarda-costas premiu o botão de chamada. Passado um instante entraram no elevador e subiram em silêncio até o quarto dela, no quarto piso. Antes de entrar, Amira deteve-se e olhou para o guarda-costas.

— Vou dar-lhe banho. Porque não espera aqui até eu ter terminado?

— Para onde quer que ela vá, eu vou.

— Nós fazemos isto todas as noites. A pobre mulher merece um pouco de privacidade.

— Para onde quer que ela vá, eu vou — repetiu ele.

Amira sacudiu a cabeça e empurrou Miss Martinson para o seu quarto, seguida do guarda-costas, que avançava em silêncio atrás de si.

CAPÍTULO 17

BOSA, SARDENHA

 

 

Durante dois dias Gabriel esperou que eles estabelecessem contato. O hotel, pequeno e de cor ocre, situava-se no antigo porto junto ao local onde o rio Temo desaguava no mar. O quarto dele ficava no último piso e tinha uma pequena varanda com um corrimão de ferro. Acordava tarde, tomava o pequeno-almoço na sala de jantar e passava as manhãs a ler. Ao almoço, comia massa com peixe num dos restaurantes do porto, e depois ia a pé até a estrada que conduzia à praia, a norte da cidade, e estendia a toalha na areia para dormir mais um pouco. Passados dois dias, a sua aparência melhorara apreciavelmente. Ganhara peso e força, e a pele sob os seus olhos já não tinha um ar castanho amarelado e de icterícia. Até começava a gostar do seu aspecto com barba.

Na terceira manhã, o telefone tocou. Ouviu as instruções sem falar, e depois desligou. Tomou uma ducha e vestiu-se, fez a mala e desceu as escadas para ir almoçar. Depois do almoço pagou a conta, colocou a mala no porta-bagagens do carro que tinha alugado em Cagliari e dirigiu para o norte, ao longo de cerca de 50 quilômetros, até a cidade portuária de Alghero. Deixou o carro na rua onde lhe tinham dito que o deixasse, e atravessou um beco sombrio que ia desembocar em frente ao mar.

Dina estava sentada num café no cais, a beber café. Tinha óculos escuros, sandálias e um vestido sem mangas; o cabelo escuro chegava-lhe até os ombros e brilhava à luz ofuscante refletida pelo mar. Gabriel desceu um lance de escadas de pedra até o cais e entrou num bote de 4,50 metros em cujo casco se lia a palavra Fidelity. Ligou o motor, um Yamaha de 90 cavalos, e soltou as amarras. Dina juntou-se a ele passado um instante e disse-lhe, num francês sofrível, que se dirigisse ao enorme iate branco a motor ancorado a cerca de 800 metros da linha da costa num mar turquesa.

Gabriel levou o bote devagar para fora do porto, e depois, ao chegar a mar aberto, aumentou a velocidade e seguiu oscilando em direção ao iate sobre as vagas suaves. Ao aproximar-se, Rami, de calções de caqui e camisa branca, subiu para a popa. Desceu para o degrau das escadas de mergulho e estava aí à espera, de mão estendida, enquanto Gabriel se ia aproximando.

Quando entraram, o salão principal parecia uma subestação do quartel-general da equipe na cave Boulevard King Saul. Das paredes pendiam mapas em larga escala e fotografias aéreas, e o eletrônico de bordo fora acrescido do tipo de técnico de comunicações que Gabriel não via desde o assassinato de Abu Jihad. Yaakov ergueu o olhar de um dos monitores do terminal e estendeu a mão. Shamron estava sentado a uma mesa na pequena cozinha do iate, usando calças caqui e uma camisa branca de manga curta. Puxou os óculos graduados para a testa e estudou Gabriel como se ele fosse um documento ou outro mapa. — Bem-vindo ao Fidelity — disse ele — , uma combinação de posto de comando e apartamento de segurança. — Onde é que o arranjou?

— É de um amigo do Escritório. Por acaso, estava em Cannes. Nós o levamos para o mar e acrescentamos o adicional de que precisávamos para nossa viagem. Também mudamos o nome.

— Quem o escolheu?

— Eu — disse Shamron. — Significa lealdade e fidelidade.

— ... e uma devoção ao dever ou aos nossos votos ou obrigações - disse Gabriel. - Eu sei o que significa. Também sei por que o escolheu... pelo mesmo motivo pelo qual disse a Shimon Pazner para me levar às ruínas da embaixada.

— Achei importante que visse. Por vezes, quando alguém se encontra no meio de uma operação como esta, o inimigo pode tornar-se um pouco como uma abstração. É fácil esquecer a sua verdadeira natureza. Achei que precisasse avivar sua memória.

— Faço isto há muito tempo, Ari. Conheço a natureza do meu inimigo e sei o que significa ser leal. — Gabriel sentou-se à mesa, em frente a Shamron. — Ouvi dizer que o Varash se reuniu depois de eu ter saído do Cairo. Imagino que a decisão deles seja mais do que óbvia.

— Khaled foi julgado — disse Shamron — , e o Varash expressou o seu veredicto. Gabriel executara as sentenças desses processos, mas na verdade nunca presenciara um. Eram uma espécie de julgamento, mas pesavam muito a favor da acusação e eram conduzidos sob circunstâncias tão secretas que os acusados nem sequer sabiam da sua existência. Os réus não tinham advogados nessa sala de tribunal; os seus destinos não eram decididos por um júri dos seus pares, mas sim pelos seus inimigos mortais. A prova de culpa era indiscutível. Nunca eram apresentadas provas abonatórias. Não havia transcrições nem qualquer forma de apelo. Apenas uma sentença era possível, e ela era irrevogável.

— Já que eu sou o agente de investigação, importas-te que te dê uma opinião acerca do caso?

— Se tiveres de o fazer.

— O caso contra o Khaled é totalmente circunstancial, e tênue, no mínimo. — O rasto de provas é claro — disse Shamron. — E começamos a seguir esse rasto baseados na informação que nos foi dada por uma fonte palestina.

— É isso que me preocupa. Yaakov juntou-se a eles à mesa.

— Mahmoud Arwish é há vários anos um dos nossos ativos de topo no seio da Autoridade palestina. Tudo que ele nos disse mostrou estar certo. — Mas nem Arwish está certo de que o homem naquela fotografia é o Khaled. O caso é um castelo de cartas. Se se descobrir que uma das cartas não é a verdadeira, então todo o caso vai ao ar... e acabamos com um homem morto numa rua francesa. — A única coisa que sabemos a respeito da aparência do Khaled é que foi dito que ele tinha uma semelhança espantosa com o seu avô disse Shamron. — Eu sou a única pessoa nesta sala que viu o xeque de frente, e vi-o em circunstâncias impossíveis de esquecer. — Shamron levantou a fotografia para os outros verem. — O homem nesta fotografia podia ser irmão gémeo do Sheikh Asad.

— Isso ainda não prova que ele seja o Khaled. Estamos a falar de matar um homem.

Shamron virou a fotografia diretamente para Gabriel.

— Reconheces que se este homem entrar no prédio 56 da Boulevard St-Rémy tudo indica que ele será Khaled al-Khalifa?

— Reconheço que sim.

— Por isso, vamos pôr o edifício sob vigilância. E aguardamos. Esperemos que ele apareça antes do próximo massacre. Se o fizer, obtemos a fotografia dele a entrar no prédio. Se os nossos especialistas tiverem a certeza de que ele é o mesmo homem, pomo-lo fora de combate. — Shamron cruzou os braços em frente do peito. — Claro que há outro método de identificação... o mesma que utilizamos durante a operação Ira de Deus.

Passou uma imagem pela memória de Gabriel. "Desculpe, mas não é Wadal Zwaiter?" "Não! Por favor, não!"

— É preciso que um cliente seja muito calmo para não responder ao seu nome verdadeiro numa situação como esta — disse Shamron.

— E um ainda mais calmo para não procurar a arma quando confrontado com um homem prestes a matá-lo. De ambas as formas, se for mesmo o Khaled, irá identificar-se, e tu ficarás descansado quando premires o gatilho.

Shamron empurrou os óculos para a testa.

— Quero o Fidelity em Marselha ao cair da noite. Vais estar a bordo? — Vamos usar o modelo da Ira de Deus — Começou Shamron. — Aleph, Eet, Ayin, Qoph. Tem duas vantagens. É familiar e funciona.

Gabriel anuiu.

Por necessidade, fizemos algumas alterações menores e combinamos algumas espécies de papéis, mas assim que a operação for iniciada, vai parecer igual. Sim, claro que vais ser o Aleph, o homem da arma. As equipes Ayin, os vigilantes, já estão em posição.

Se o Khaled chegar ao apartamento, dois dos vigilantes mudarão para o papel de Bet e cobrirão a tua rota de escape.

— E o Yaakov?

— Vocês dois parecem ter estabelecido uma espécie de empatia. Yaakov será o teu líder de equipe adjunto. Na noite do golpe, se tivermos sorte, será o teu motorista.

— E a Dina?

— Qoph — disse Shamron. — Comunicações. Irá manter-se em contato com Boulevard King Saul para a identificação do alvo. Também irá servir como bat leveyha do Yaakov.

Tu ficarás escondido no barco até o golpe. Quando o Khaled tiver sido abatido, toda a gente deixa a cidade por vias separadas e fará o seu caminho para fora do país. Tu e o Yaakov viajarão até Genebra e voarão para casa a partir daí. A Dina levará o barco para fora do porto. Assim que estiver em mar aberto, colocaremos uma equipe a bordo e o traremos para casa.

Shamron desenrolou um mapa do centro de Marselha em cima da mesa.

— Foi-te reservada uma posição aqui — bateu no mapa com o dedo gorducho — no lado oriental do antigo porto, ao longo do Quai de Rive-Neuve. O Boulevard St-Rémy fica aqui — outra batida — , a seis ruas para este. Vai da Place de la Préfecture para sul, até o jardim Pierre Puget.

Shamron colocou uma fotografia de satélite da rua por cima do mapa.

— Para te dizer a verdade, é uma rua perfeita para nós operarmos. O número 56 fica localizado aqui, do lado oriental da rua. Só tem uma entrada, o que significa que não deixaremos de ver Khaled se ele entrar. Como se pode ver pela fotografia, a rua é movimentada... muito trânsito, pessoas nos passeios, lojas e escritórios.

A entrada para o número 56 é visível desta grande esplanada em frente ao Palácio da Justiça. O parque contém uma colônia de sem-abrigo. Temos agora lá um par de vigilantes.

Shamron ajustou o ângulo da fotografia.

— Mas o melhor de tudo é o estacionamento a pagar no centro. Esse espaço está agora ocupado por um carro alugado por um dos vigilantes. Temos mais cinco carros. Neste momento, estão todos a ser equipados com câmeras em miniatura de alta resolução. As camaras transmitem as suas imagens através de sinais sem fios codificados. Tu tens o único descodificador.

Shamron fez um sinal com a cabeça a Yaakov, que premiu um botão. Uma enorme tela ergueu-se lentamente do console.

— Vais ficar aqui de vigia à entrada — disse Shamron. — Os vigilantes irão fazer rodar os carros a intervalos regulares para o caso do Khaled ou um dos seus homens ficar de olho no estacionamento. Eles já organizaram o tempo, por isso quando um carro sair, o carro seguinte irá ocupar o mesmo lugar.

— Engenhoso — murmurou Gabriel.

— Na verdade, foi sugestão do Yaakov. Ele fez este tipo de coisas em lugares onde é mais difícil esconder as equipes de vigilância.

— Shamron acendeu um cigarro. — Mostra-lhe o programa de computador. Yaakov sentou-se em frente do computador portátil e teclou um comando. Surgiu na tela uma animação visual do Boulevard St-Rémy e arredores.

— Como eles conhecem o teu rosto, não podes sair do barco até a noite do golpe. Isso significa que não te podes familiarizar com a vizinhança. Mas, pelo menos, podes fazê-lo aqui. O departamento técnico criou isto para que possas percorrer o Boulevard St— Rémy a partir daqui, do salão do Fidelity.

— Não é a mesma coisa.

Tens razão — disse Shamron — , mas tem de servir. Mergulhou num silêncio contemplativo. — Então que acontece quando vires um homem árabe, na casa dos trinta, a entrar no prédio do número 56? — Deixou que a questão ficasse no ar por um momento, e depois respondeu-lhe: — Tu e a Dina determinarão se poderá ser ele. Se o fizerem, enviarás uma imagem Boulevard King Saul através de uma ligação segura. Depois transmitirás o vídeo. Se ficarmos satisfeitos, daremos ordem para continuar. Você e Yaakov deixarão o Fidelity e seguirão para a Place de la Préfecture de mota. Claro que é o Yaakov que conduz. Encontrarás um lugar para esperar. Poderão estacionar na praça ou tomar uma cerveja num café da calçada. Se ele ficar durante algum tempo, terão de se deslocar. É uma parte movimentada da cidade, que fica acordada até tarde. Vocês são os dois operacionais experientes. Sabem o que fazer. Quando a Dina vir o Khaled a sair por aquela porta, irá avisar-te por rádio. Precisas de estar de regresso ao Boulevard St-Rémy em não mais de 30 segundos. Shamron apagou lentamente o cigarro. — Não me interessa que seja em plena luz do dia — disse ele, por fim. — Não me interessa que ele esteja com um amigo. Não me interessa que o ato seja testemunhado por uma multidão de pessoas. Quando o Khaled al-Khalifa sair do edifício de apartamentos, quero que des cabo dele e acabes com isso.

— A rota de fuga?

— Subir o Boulevard Notre-Dame, acima da Avenue do Prado. Dirige-te para leste a alta velocidade. O Ayin deixará um carro para ti no estacionamento do Velódromo. Depois põe-te em Genebra o mais depressa possível. Instalamos-te lá num apartamento e mudamos-te quando for seguro.

— Quando é que partimos da Sardenha?

— Agora — disse Shamron. — Dirige-te para norte, em direção à Córsega. No canto sudoeste da ilha fica o porto de Propriano. Oferry de Marselha parte daí. Pode se esconder no Mediterrâneo. São nove horas desde Propriano. Esgueire-se para o porto depois de escurecer e registre-se na capitania. Depois faça contato com os vigilantes e estabeleça a ligação com uma câmera de vigilância.

— E tu?

— A última coisa de que precisas em Marselha é de um velho a espreitar-te por cima do ombro. O Rami e eu vamos deixar-te aqui. Amanhã à noite estaremos de regresso a Tel Aviv.

Gabriel pegou na fotografia por satélite do Boulevard St-Rémy e estudou-a atentamente.

— Aleph, Bet, Ayin, Qoph — disse Shamron. — Será mesmo como nos velhos tempos. — Sim — replicou Gabriel. — Que raio poderia correr mal?

Yaakov e Dina esperaram a bordo da Fidelity enquanto Gabriel levava Shamron e Rami para a costa. Rami saltou para o cais e equilibrou o bote enquanto Shamron deslizava lentamente para o exterior.

— Isto é o fim — disse Gabriel. — A última vez. Depois disso, está terminado. — Para ambos, receio eu — disse Shamron. — Vais regressar a casa, vamos envelhecer juntos.

— Já somos velhos. Shamron encolheu os ombros.

— Mas não demasiado velho para uma última batalha.

— Veremos.

— Se tiveres a oportunidade de disparar, não hesites. Cumpre o teu dever.

— Para com quem?

— Para comigo, é claro.

Gabriel deu a volta com o bote e encaminhou-se para fora do porto. Olhou uma vez por cima do ombro e avistou Shamron, que estava de pé sem se mover no cais com o braço erguido num gesto de despedida. Quando se virou uma segunda vez, o velho tinha desaparecido. O Fidelity já estava a caminho. Gabriel abriu a válvula e seguiu-o.

CAPÍTULO 18

MARSELHA

 

 

Passadas 24 horas da chegada do Fidelity a Marselha, Gabriel tinha começado a odiar a entrada do edifício 56 do Boulevard St-Rémy. Odiava a porta em si. Odiava o trinco e a moldura. Detestava a pedra cinza do edifício e as barras de ferro das janelas ao nível do chão. Ressentia-se de todos aqueles que passavam pelo passeio, em especial dos homens com ar árabe na casa dos 30. No entanto, desprezava sobretudo os outros inquilinos: o cavalheiro distinto num blazer Cardin que exercia advocacia no escritório ao alto da rua; a grande dame de cabelo grisalho com o terrier, que a primeira coisa que fazia logo de manhã era um coco no pavimento; e a mulher chamada Sophie, cuja atividade era fazer compras e lhe lembrava muito a Leah.

Monitorizavam a tela por turnos: uma hora de serviço, duas horas de descanso. Cada um adoptava uma postura única para a vigilância. Yaakov fumava e olhava para a tela com uma expressão ameaçadora, como se, através de uma pura força de vontade, fosse compelir Khaled a aparecer nele. Dina sentava-se no sofá do salão a meditar, de pernas cruzadas, mãos nos joelhos, imóvel com exceção do bater do indicador direito. E Gabriel, que estava habituado a ficar horas de pé diante do objeto da sua devoção, andava lentamente de um lado para o outro à frente da tela, a mão direita no queixo, a mão esquerda a suportar o cotovelo direito, a cabeça inclinada para um lado. Se Francesco Tiepolo, de Veneza, tivesse surgido subitamente a bordo do Fidelity, teria reconhecido a postura de Gabriel, pois era a mesma que adoptava ao contemplar uma pintura para ver se estava terminada.

A alteração dos carros de vigilância proporcionava uma pausa bem-vinda ao tédio da vigilância. O Ayin aperfeiçoara a sequência, de modo 186

a que esta se desenrolasse com a precisão de um bailado. O carro de substituição aproximar-se-ia da entrada do estacionamento vindo de sul. O velho carro fazia marcha-a-ré e afastava-se, depois entrava um novo carro para o seu lugar. Certa vez, os dois Ayin bateram de propósito com os para-choques um no outro e envolveram-se numa convincente gritaria, para proveito de qualquer observador vindo do outro lado. Havia sempre alguns segundos de tensão quando a antiga câmera ficava negra e a nova surgia em linha. Gabriel ordenava quaisquer ajustamentos necessários de ângulo e foco, e depois isso era feito. Embora Gabriel permanecesse prisioneiro do Fidelity, ordenou à Dina e ao Yaakov que se comportassem como turistas vulgares. Fazia turnos duplos e triplos na tela de modo a poderem almoçar num restaurante numa rua lateral ao cais ou dar uma volta de mota pelas redondezas da cidade. Yaakov fez questão de conduzir pela rota de fuga em períodos diferentes do dia para se familiarizarem com os padrões de trânsito. Dina comprava roupa numa das ruas para trabalhadores cheias de lojas ou vestia roupa de banho e bronzeava-se na popa. Seu corpo tinha as marcas do pesadelo na praça Dizengoff, uma grossa cicatriz vermelha do lado direito do ventre, uma comprida cicatriz denteada na coxa direita. Nas ruas de Marselha cobria tudo, mas a bordo do Fidelity não tentava esconder os danos de Gabriel e Yaakov.

À noite, Gabriel ordenou turnos de três horas, de modo a que aqueles que não estivessem de vigia pudessem dormir durante um tempo significativo. Não tardou a arrepender-se dessa decisão, porque três horas pareciam uma eternidade. A rua ficava silenciosa como a morte. Cada figura que surgia na tela parecia cheia de possibilidades. Para aliviar o tédio, Gabriel sussurrava saudações aos agentes Ayin de serviço na esplanada em frente ao Palácio de Justiça — ou acordava o oficial de serviço do departamento de Operações no Boulevard King Saul com o pretexto de que estava a testar a ligação por satélite, só para poder ouvir uma voz vinda de casa.

Era a Dina quem substituía o Gabriel. Logo que ela se sentava numa posição de ioga em frente aa tela, ele regressava à sua cabina para tentar dormir, mas via mentalmente a porta; ou Sabri a andar pelo Boulevard St-Germain com a mão no bolso da amante; ou os árabes de Beit Sayeed a arrastarem-se para o exílio; ou Shamron, na orla costeira da Sardenha, a lembrar-lhe para que fizesse o seu trabalho. E por vezes perguntava-se se ainda possuiria o reservatório de frieza emocional necessária para se aproximar de um homem na rua e lhe encher o corpo de pedaços de metal perfurantes. Nos momentos de auto-obsessão desejava que o Khaled nunca mais pusesse um pé no Boulevard St-Rémy. Imaginava depois as ruínas da embaixada em Roma e recordava-se do cheiro a carne queimada que pairava no ar como os espíritos dos mortos, e conseguia então ver a morte do Khaled, gloriosa e graciosa, expressa com a quietude apaixonada de um Bellini. Ele ia matar o Khaled. Khaled deixara-o sem qualquer escolha, e por isso Gabriel odiava-o.

Na quarta noite, nem sequer dormiu. Às 7h45, levantou-se da cama para se preparar para o seu turno das oito horas. Tomou café na cozinha e olhou para o calendário preso à porta do frigorífico. Amanhã era o aniversário da queda de Beit Sayeed. Hoje era o último dia. Entrou no salão. Yaakov, envolto em fumo de cigarros, estava a olhar para a tela. Gabriel deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe para ir dormir umas horas. Ele permaneceu durante alguns minutos no mesmo lugar, a acabar o café, depois voltou à sua posição normal — mão direita no queixo, mão esquerda a suportar o cotovelo direito — e andou de um lado para o outro no carpete em frente da tela. O advogado saiu do prédio às 8h15. A grande dame saiu dez minutos depois. Seu terrier cagou na câmera de Gabriel. Sophie, a sósia da Leah, foi a última a sair. Deteve-se por um momento em frente da porta para pescar um par de óculos escuros da sua mala antes de, esvoaçante e linda, desaparecer da vista. — Estás com péssimo aspecto — disse Dina. — Tira o resto da noite. O Yaakov e eu faremos o teu turno.

Entardecia, o porto estava silencioso, excepto pelo latejar de technopop francês vindo de outro iate. Bocejando, Gabriel confessou a Dina que dormira pouco, se é que dormira, desde a chegada deles a Marselha. Dina sugeriu que ele tomasse um comprimido.

E se o Khaled chegar enquanto eu estou inconsciente no meu quarto?

— Talvez tenhas razão. — Ela sentou-se de pernas cruzadas no sofá e fixou o olhar na tela da televisão. O pavimento do Boulevard St-Rémy estava ocupado com o trânsito pedestre do fim da tarde. Então por que não consegues dormir? — Precisas mesmo que eu to explique? Ela manteve os olhos fixos na tela. — Por que estás preocupado que ele possa não vir? Por que estás preocupado que não conseguias disparar contra ele? Por que tens medo que sejamos apanhados e presos?

— Não gosto deste trabalho, Dina. Nunca gostei.

— Nenhum de nós gosta. Se gostássemos, eles nos mandariam embora do serviço. Fazemos porque não temos outra escolha. Fazemos porque nos forçam. Diga uma coisa, Gabriel. Que aconteceria se amanhã eles decidissem acabar com os atentados, com os esfaqueamentos e os tiroteios? Haveria paz, certo? Mas eles não querem a paz. Eles querem destruir-nos. A única diferença entre o Hamas e o Hitler é que o Hamas não tem o poder e os meios para executar o extermínio dos Judeus. Mas estão a trabalhar nisso.

— Há uma distinção moral óbvia entre os palestinos e os nazis. Há uma certa justiça na causa do Khaled. Só que os seus meios são aberrantes e imorais.

— Justiça? Khaled e os da sua espécie poderiam ter conseguido a paz vezes sem conta, mas não o querem. A causa dele é destruir-nos. Se acreditas que ele quer paz, estás a iludir-te. — Apontou para a tela.

— Se ele chegar àquela rua, tu tens o direito, na verdade, o dever moral, de te certificares que ele nunca mais sai de lá para matar e mutilar de novo. Tens de o fazer, Gabriel, ou, que Deus me ajude, fá-lo-ei eu por ti. — Farias mesmo isso? Achas mesmo que serias capaz de o matar a sangue-frio, ali na rua? Ser-te-ia assim tão fácil premires o gatilho?

Ela manteve-se em silêncio durante algum tempo, com o olhar fixo na tela tremeluzente da televisão.

O meu pai veio da Ucrânia — disse ela. — De Kiev. Foi o único membro da família que sobreviveu à guerra. Os restantes foram levados para Babi Yar e fuzilados juntamente com os outros 30.000 judeus. Depois da guerra, foi para a Palestina. Adoptou o nome de Sarid, que significa "remanescente". Casou com a minha mãe e tiveram seis filhos, um filho por cada milhão morto no Shoah. Eu fui a última. Chamaram-me Dina: vingada.

O som da música aumentou de súbito, e depois deixou de se ouvir. Quando desapareceu, tudo que restou foi o bater de uma onda contra o casco do iate. Os olhos de Dina semicerraram-se de repente, como se se tivesse lembrando de uma dor física. O seu olhar permaneceu na imagem do Boulevard St-Rémy, mas Gabriel conseguia ver que era a Rua Dizengoff que ocupava os seus pensamentos. — Na manhã de 19 de Outubro de 1994, eu estava na esquina das ruas Dizengoff e Rainha Ester com a minha mãe e duas das minhas irmãs. Quando o ônibus nº5 apareceu, beijei a minha mãe e irmãs e fiquei a vê-las entrar para o ônibus. Quando as portas se abriam, eu vi-o. — Interrompeu-se e virou a cabeça para olhar para Gabriel.

— Ele estava sentado mesmo atrás do condutor, com um saco aos pés. Até olhou para mim. Tinha um rosto doce. Não, pensei eu, não é possível. Não o ônibus nº5 da Rua Dizengoff. Por isso não disse nada. As portas fecharam-se, e o ônibus começou a afastar-se.

Os seus olhos enublaram-se com lágrimas. Cruzou as mãos e colocou-as sobre a cicatriz na perna.

— Então o que tinha este rapaz no saco, este rapaz que eu vi mas de quem nada disse? Tinha uma mina terrestre egípcia, era isso que ele tinha no saco. Tinha 20 quilos de TNT militar e uns rolos ensopados com veneno para os ratos. Viu-se primeiro o relâmpago, seguido do som da explosão. O ônibus ergueu-se alguns metros no ar e estatelou-se na rua. Fui atirada para o chão. Conseguia ver as pessoas aos gritos à minha volta, mas não ouvia nada... aquela onda de impacto tinha-me danificado os tímpanos. Reparei numa perna humana caída na rua junto de mim. Calculei que fosse minha, mas depois vi que ainda tinha as duas pernas. Era a perna de alguém que se encontrava no ônibus. Enquanto a escutava, Gabriel pensou subitamente em Roma; lembrou-se de estar junto a Shimon Pazner e de olhar para os destroços da embaixada. Seria a presença de Dina a bordo do Fidelity casual, perguntou-se ele, ou teria ela sido ali colocada intencionalmente por Shamron como lembrança viva da importância de cumprir o seu dever?

Os primeiros polícias que apareceram no lugar ficaram enjoados por causa do sangue e do fedor a carne queimada. Caíram de joelhos na rua e vomitaram. Enquanto estava ali deitada, à espera que alguém me ajudasse, o sangue começou a pingar em cima de mim. Levantei os olhos e vi sangue e restos de carne pendurados nas folhas dos azederacos. Naquela manhã choveu sangue na Rua Dizengoff. Depois chegaram os rabinos do Hevra Kadisha.

Recolheram à mão os pedaços maiores dos corpos, incluindo aqueles restos nas árvores. Depois usaram pinças para recolher os pedaços mais pequenos. Vi os rabinos a apanharem os restos da minha mãe e das minhas duas irmãs com pinças e a colocá-los num saco plástico. Foi isso que enterramos. Restos. Despojos. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para debaixo do queixo. Gabriel sentou-se no sofá junto dela e manteve o olhar fixo na tela de modo a certificar-se de que não perdiam coisa alguma. A mão dele estendeu-se para a dela. Ela agarrou-a enquanto uma lágrima lhe corria pela face.

— Culpei-me a mim mesma. Se eu soubesse que o rapaz de ar doce era na verdade Abdel Rahim al-Souwi, membro das brigadas Izzedine al-Qassam, do Hamas, poderia tê-los avisado. Se eu soubesse que o irmão do Abdel tinha sido morto num tiroteio com o IDF em 1989, teria compreendido a razão pela qual ele ia no ônibus nº5, em Tel Aviv, com um saco aos pés. Decidi que me ia vingar, não com uma arma, mas com o cérebro. Jurei que da próxima vez que visse um deles o saberia, e seria capaz de avisar as pessoas antes que fosse demasiado tarde. Foi por isso que me ofereci para o Escritório. Foi por isso que consegui fazer a ligação entre Roma e Beit Sayeed. Conheço-os melhor do que eles se conhecem a si mesmos.

Outra lágrima. Desta vez Gabriel limpou-a.

— Por que ele matou a minha mãe e as minhas irmãs, Gabriel? Foi porque lhes roubamos a terra? Foi porque éramos ocupantes? Não, foi porque queríamos fazer

a.paz. Se eu os odiar, vais-me perdoar. Se eu te pedir que não mostres qualquer misericórdia para com Khaled, irás usar de brandura em relação aos meus crimes.

Sou Dina Sarid, a remanescente vingada. Sou o seis milhões. E se Khaled vier aqui esta noite, não te atrevas a deixá-lo entrar naquele ônibus.

Lev oferecera-lhe o uso de um apartamento de segurança em Jerusalém. Shamron declinara delicadamente. Em vez disso, instruiu Tamara para que fosse procurar uma cama desdobrável na despensa e pediu a Gilah que lhe enviasse uma mala com roupas limpas e um estojo de barbear. Como Gabriel, pouco tinha dormido na semana anterior.

Nalgumas noites andava pelos corredores a qualquer hora ou sentava-se lá fora a fumar com os guarda-costas do Shabak. Na maior parte do tempo, ficava deitado no colchão desdobrável, a olhar para o brilho vermelho do relógio digital na sua secretária e a calcular os minutos que restavam até o aniversário da destruição de

Beit Sayeed. Preencheu as horas vazias relembrando operações passadas. A espera. Sempre a espera. Alguns agentes ficam loucos com isso. Para Shamron era um narcótico, semelhante às primeiras angústias de um amor intenso. Os afrontamentos, os arrepios súbitos, o remoer do estômago: tinha passado por tudo isso incontáveis vezes durante os anos. Nos becos escondidos de Damasco e do Cairo, nas ruas pavimentadas da Europa, e num subúrbio marginal de Buenos Aires, onde esperara que o Adolf Eichmann, chefe de estação do Holocausto, saísse de um ônibus urbano para o amplexo dessas mesmas pessoas que tentara aniquilar. Uma maneira adequada para aquilo terminar, pensou Shamron. Uma última noite de vigília. Uma última espera para que o telefone tocasse. Quando por fim tocou, o tom eletrônico áspero foi como música para os seus ouvidos. Fechou os olhos e deixou que o telefone tocasse uma segunda vez. Depois estendeu a mão para as trevas e aproximou o receptor do ouvido.

O mostrador digital da tela da televisão dizia 12.27. Tecnicamente, fora o turno do Yaakov, mas era a última noite antes do prazo-limite, e ninguém ia dormir. Tinham estado sentados no sofá do salão, Yaakov na sua habitual pose de confronto, Dina numa posição de meditação e Gabriel como se estivesse à espera das notícias de uma morte anunciada. O Boulevard St-Rémy estivera silencioso naquela noite. O casal que passara pela porta às 12.27 foram os primeiros a surgir na imagem da câmera num espaço de quase 15 minutos. Gabriel olhara para Dina, cujos olhos permaneciam fixos na tela.

— Viste aquilo?

— Vi.

Gabriel levantou-se e dirigiu-se ao console. Retirou e a fita de vídeo do player e colocou uma nova no seu lugar. Depois colocou a fita de áudio num gravador e rebobinou-a. Com Dina olhando por cima de seu ombro, premiu PLAY. O casal surgiu na imagem e passou pela entrada sem sequer olhar para ela.

Gabriel pressionou o STOP.

— Repare como ele colocou a moça do lado direito, de frente para a rua. Está a usá-la como escudo. E olhe a mão direita dele. Está no bolso da moça, como a de Sabri.

REWIND. PLAY. STOP.

— Meu Deus — disse Gabriel — , tem exatamente o andar do pai.

— Tem certeza?

Gabriel dirigiu-se ao rádio e chamou o vigilante que se encontrava no exterior do Palácio da Justiça.

— Viu aquele casal que acabou de passar pelo prédio?

- Lá.

— Onde eles estão agora?

— Espere. — Silêncio, enquanto o Ayin mudava de posição. Subindo a rua, em direção aos jardins. — Consegue segui-los?

— Está um silêncio de morte por aqui. Eu não aconselharia.

— Raios!

— Espere um pouco.

— O quê?

— Espere aí.

— O que há?

— Estão dando a volta.

— Tem certeza?

— Absoluta. Estão voltando.

Gabriel olhou para o monitor no preciso instante em que eles tornavam a entrar na imagem, vindos desta vez da direção oposta. Mais uma vez a mulher estava de frente para a rua, e de novo o homem tinha a mão enfiada no bolso de trás da calça jeans dela. Pararam na porta do número 56. O homem tirou a chave do bolso.

CAPÍTULO 19

SURREY, INGLATERRA

 

 

Passava pouco das dez da noite quando Amira Assaf saiu do elevador na Clínica Stratford e avançou pelo corredor do quarto piso. Ao contornar a primeira esquina, viu o guarda-costas sentado numa cadeira à porta do quarto de Miss Martinson. Ergueu os olhos quando Amira se aproximou e fechou o livro que estava a ler.

— Tenho de me certificar de que ela está a dormir confortavelmente — disse Amira.

O guarda-costas assentiu e levantou-se. Não ficou surpreso com o pedido de Amira. Durante o último mês passava pelo quarto todas as noites àquela hora. Ela abriu a porta e entrou. O guarda-costas seguiu-a e fechou a porta atrás de si. Um candeeiro, cuja intensidade da luz fora reduzida ao mínimo, brilhava suavemente. Amira dirigiu-se a um dos lados da cama e olhou para baixo. Miss Martinson estava a dormir profundamente. O que não era nenhuma surpresa: Amira tinha-lhe duplicado a dosagem de sedativos. Ficaria adormecida durante mais algumas horas.

Amira ajeitou os cobertores e abriu a última gaveta da mesa-de-cabeceira. A arma, uma Walther de nove milímetros com silenciador, estava exatamente onde a tinha deixado nessa tarde enquanto Miss Martinson ainda se encontrava no solário. Agarrou a arma pelo cabo, virou-se e alvejou o peito do guarda-costas, que enfiou a mão no interior do casaco com um movimento rápido como um relâmpago. Antes que a mão reaparecesse, Amira disparou duas vezes, o premir duplo de um assassino treinado. Os dois tiros atingiram-no na parte superior do peito. O guarda-costas caiu de costas no chão. Amira ficou por cima dele e disparou mais dois tiros.

Respirou fundo uma série de vezes para reprimir a intensa onda de náuseas que a inundou. Depois aproximou-se do telefone e marcou uma extensão interna do hospital.

— Poderia por favor pedir ao Hamida que venha ao quarto da Miss Martinson? Há alguns lençóis que têm de ser levados antes que o caminhão se vá embora. Desligou, agarrou no homem morto pelos sovacos e arrastou-o para a casa de banho. A carpete estava manchada de sangue. Amira não se sentia preocupada com isso. A sua intenção não era ocultar o crime, apenas adiar a sua descoberta por algumas horas.

Ouviu-se baterem à porta.

— Sim?

— É Hamida.

Destrancou a porta e abriu-a. Hamida empurrou para o interior um carrinho da lavandaria.

— Sente-se bem?

Amira assentiu. Hamida empurrou o carrinho até junto da cama enquanto Amira afastava os cobertores e os lençóis. Miss Martinson, frágil e cheia de cicatrizes, jazia imóvel. Hamida levantou-a pelo peito, Amira pelas pernas, e juntos baixaram-na para o interior do carrinho da lavandaria. Amira escondeu-a debaixo de uma camada de lençóis.

Foi até o corredor para ver se ele estava vazio, depois olhou para Hamida e fez-lhe sinal para ele se juntar a ela. Hamida fez rolar o carrinho para fora do quarto e começou a avançar em direção ao elevador. Amira fechou a porta, introduziu o seu cartão-chave na fechadura e tornou a tirá-lo. Encontrou-se com Hamida junto ao elevador e premiu o botão de chamada. A espera parecia uma eternidade. Quando por fim as portas se abriram, empurraram o carrinho para a cabina vazia. Amira premiu o botão para o piso térreo e começaram a descer lentamente.

O hall do piso térreo estava deserto. Hamida foi o primeiro a sair e virou à direita, em direção à porta que conduzia ao pátio traseiro. Amira seguiu-o. No exterior, havia uma van imóvel com as portas traseiras abertas. Num dos lados tinha pintado o nome da empresa local de lavandaria. O condutor habitual jazia deitado junto a um renque de faias a dois quilômetros do hospital, com uma bala no pescoço.

Hamida içou o saco da lavandaria do carrinho e colocou-o gentilmente na traseira da van, fechando em seguida as portas e subindo para o assento do passageiro. Amira observou a van a afastar-se, tornou a entrar e dirigiu-se ao posto da enfermeira-chefe. Ginger estava de serviço. — Não me estou a sentir lá muito bem, Ginger. Achas que consegues passar sem mim?

— Não há problema, querida. Precisa de carona?

Amira sacudiu a cabeça. — Eu me viro com a moto, nos vemos amanhã à noite. Amira foi até o vestiário do pessoal. Antes de despir o uniforme, escondeu a arma dentro da mochila. Depois vestiu calças jeans, uma camiseta de lã grossa e um blusão de couro. Passado um momento, atravessou o pátio dos fundos com a mochila pendurada às costas.

Subiu na motocicleta e ligou o motor, depois acelerou para fora do pátio. Ao dar a volta nos fundos da antiga mansão, ergueu o olhar para a janela da Miss Martinson: uma luz brilhava suavemente, não havia qualquer sinal de problemas. Acelerou pelo caminho de acesso e deteve-se junto à casa do guarda. O homem de serviço desejou-lhe uma boa noite e abriu-lhe o portão. Amira virou para a estrada e fez rodar o manipulo. Dez minutos depois, acelerava ao longo da autoestrada A24, dirigindo-se para o mar a sul.


CAPÍTULO 20

MARSELHA

 

 

Gabriel entrou na sua cabina e fechou a porta. Foi até o guarda-roupa e afastou um pedaço solto de carpete, expondo a porta do cofre do chão. Abriu o ferrolho e ergueu a tampa. No interior, encontravam-se três pistolas: uma Beretta 92FS, uma Jericho 941 Police Special e uma Barak SP-21. Levantou cuidadosamente cada arma e colocou-as sobre a cama. A Beretta e Jericho eram de nove milímetros. O carregador para a Beretta tinha uma capacidade de 15 balas, a Jericho, 16. A Barak — achatada, preta e feia — disparava uma bala maior e mais destrutiva de .45, embora tivesse apenas oito tiros. Abriu e examinou as armas, começando pela Beretta e terminando com a Barak. Cada arma parecia estar funcionando bem. Tornou a montá-las e a carregá-las, testou peso e equilíbrio, considerando qual devia usar. Não era provável que o disparo fosse oculto e silencioso. Iria provavelmente teria lugar numa rua movimentada, talvez em plena luz do dia. Sua prioridade era certificar-se de que Khaled seria abatido. Para isso, Gabriel precisava de potência e confiabilidade. Escolheu a Barak para arma principal e a Beretta como arma de apoio. Também decidiu que não iria utilizar silenciador. O silenciador tornava a arma demasiado difícil de esconder e demasiado difícil de manejar, de sacar e disparar. Além disso, qual era o objetivo de usar um silenciador se o ato ia ser testemunhado por uma multidão de pessoas na rua?

Foi até a casa de banho e deixou-se ficar por um momento diante do espelho, examinando o rosto. Depois abriu o armário dos medicamentos e retirou de lá uma tesoura, uma lâmina e uma lata de espuma de barbear. Aparou a barba rente, retirando em seguida o resto com a lâmina. Ainda tinha o cabelo pintado de grisalho. Nada havia a fazer a esse respeito.

Despiu-se, tomou uma ducha rápido e regressou à cabina para se vestir. Vestiu a roupa interior e as meias, e em seguida um par de calças jeans azuis-escuras e sapatos de camurça com sola de borracha. Fixou o rádio ao cós da calça na anca esquerda, fez passar um fio até o ouvido e um segundo até o pulso esquerdo. Depois de ter fixado os fios no lugar com fita adesiva preta, vestiu uma camisa preta de manga comprida. Enfiou a Beretta no cós da calça, junto ao fundo das costas. A Earak era compacta o suficiente para caber no bolso do blusão de couro. Quanto ao GPS com sinal de rastreio, um pequeno disco com o tamanho aproximado de uma moeda de um euro, enfiou-o no bolso da frente da calça.

Sentou-se na beira da cama à espera. Passados cinco minutos bateram à porta.

O relógio mostrava 2.12 horas.

— Os teus especialistas têm mesmo a certeza?

O primeiro-ministro levantou os olhos para o grupo de monitores vídeo e esperou uma resposta. Num dos monitores estava a imagem de Lev. O diretor-geral do Shabak, Moshe Yariv, ocupava o segundo; o general Amos Sharret, chefe de Aman, o terceiro.

— Não existe qualquer dúvida — respondeu Lev. — O homem na fotografia que nos foi dada pelo Mahmoud Arwish é o mesmo homem que acabou de entrar no prédio em Marselha. Agora tudo o que precisamos é da sua aprovação para que a fase final da operação comece.

— E têm-na. Dá a ordem ao Fidelity.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

— Presumo que seja capaz de ouvir o tráfego radiofônico?

— O Fidelity irá enviar-nos através de uma linha de segurança. Manteremos o controle operacional até o último segundo.

— Envie-o para aqui também — disse o primeiro-ministro. Não quero ser o último a saber.

Depois premiu um botão na secretária, e as três telas se apagaram.

A mota era uma Piaggio X9 Evolution, cinza-carvão, com uma válvula de rodar e uma velocidade máxima de 160 quilômetros por hora — embora Yaakov, numa fuga de ensaio no dia anterior, tivesse conseguido chegar aos 190. O selim inclinou-se drasticamente para baixo, no sentido de trás para a frente, de modo que o passageiro ficava sentado diversos centímetros acima do condutor, o que a tornava uma mota perfeita para um assassino, embora certamente os seus projetistas não tivessem tido isso em consideração quando a desenharam. O motor disparou, como habitual, sem hesitação. Yaakov dirigiu-se ao ponto no cais onde a figura de capacete de Gabriel o esperava. Gabriel subiu para o assento traseiro e instalou-se aí.

— Leva-me ao Boulevard St-Rémy.

— Tens certeza?

— Uma passagem — disse ele. — Quero vê-lo.

Yaakov fez uma curva apertada para a esquerda e acelerou colina acima. Era um excelente edifício na Corniche, com um chão de mármore no hall e um elevador que funcionava a maior parte das vezes. Os apartamentos de frente para a rua tinham uma ótima vista sobre o Nilo. Os os fundos davam para os terrenos murados da Embaixada da América. Era um edifício para estrangeiros e egípcios ricos, era um outro mundo comparado com o monótono edifício residencial de pedra cinza em Heliopolis, onde Zubair vivia, mas a verdade era que ser-se um polícia no Egipto não era muito rentável, mesmo que se fosse um polícia secreto trabalhando para o Mukhabarat.

Subiu as escadas, que eram amplas e curvas, com uma passadeira puída presa por aplicações de latão polido. O apartamento ficava no último andar, o décimo. Zubair praguejou em voz baixa enquanto subia as escadas. Dois maços de cigarros Cleópatra por dia tinham-lhe devastado os pulmões. Teve de se deter por três vezes num patamar para recuperar o fôlego. Demorou mais de cinco minutos a chegar ao apartamento.

Premiu a orelha contra a porta e não ouviu qualquer som vindo do interior. Não era de surpreender. Zubair tinha seguido o inglês na noite anterior durante uma excursão ensopada em álcool através dos bares do hotel e dos clubes noturnos ao longo do rio. Zubair estava confiante de que ele ainda estaria a dormir.

Enfiou a mão no bolso, de onde retirou a chave. O Mukhabarat tinha uma excelente coleção: diplomatas, dissidentes, islamitas e sobretudo jornalistas internacionais. Introduziu a chave na fechadura, abriu a porta e entrou.

O apartamento estava frio e escuro, as cortinas cerradamente fechadas contra o sol de início da manhã. Zubair tinha estado no apartamento muitas vezes e encaminhou-se para o quarto sem se dar ao trabalho de acender as luzes. Quinnell dormia profundamente entre lençóis ensopados em suor. No ar estagnado pairava um cheiro fortíssimo a whisky. Zubair retirou a arma e atravessou o quarto devagar, em direção aos pés da cama. Alguns passos depois, o seu pé direito embateu em algo pequeno e duro. Antes de conseguir aliviar a pressão descendente algo pareceu estalar, emitindo um ruído estridente. No silêncio profundo do quarto soou como um ramo de árvore a estalar. Zubair olhou para baixo e viu que tinha pisado o relógio de pulso de Quinnell. Apesar de ébrio, o inglês sentou-se rigidamente na cama. Merda, pensou Zubair. Não era um assassino profissional. Esperara matar Quinnell a dormir.

— Que raio estás a fazer aqui?

— Trago-te um recado do nosso amigo — disse Zubair calmamente.

— Não quero ter mais nada a ver com ele.

— O sentimento é mútuo.

— Então que raio estás a fazer no meu apartamento?

Zubair levantou a arma. Passado um momento, saiu do apartamento e começou a descer as escadas. A meio caminho, respirava como um maratonista e transpirava pesadamente.

Parou e encostou-se ao corrimão. Malditos Cleopatras. Se não parasse depressa de fumar, acabariam por matá-lo.

Marselha, 5h22 horas.

A porta do apartamento abre-se. Sai uma figura para a rua. O alerta verbal da Dina é ouvido no Centro de Operações Boulevard King Saul e em

Jerusalém por Shamron e pelo primeiro-ministro. E também é ouvido na esplanada suja ao longo do cours Belsunce, onde Gabriel e Yaakov estão sentados à beira de uma fonte estagnada, rodeados por toxicodependentes e imigrantes que não tinham outro lugar onde dormir. — Quem é? — perguntou Gabriel.

— A moça — disse Dina, apressando-se depois a acrescentar:— A namorada do Khaled.

— Para que lado é que ela foi?

— Para norte, em direção à Place de la Préfecture. Seguiram-se vários minutos vazios de ar. Em Jerusalém, Shamron anda de um lado para o outro no carpete em frente da secretária do primeiro-ministro, esperando ansiosamente pela ordem do Gabriel. — Não tentes fazê-lo — murmura ele. — Se ela vir o vigilante, vai avisar o Khaled e tu perde-lo. Deixa-a ir.

Passaram-se mais dez segundos antes que a voz de Gabriel se voltasse a ouvir. — É demasiado arriscado — sussurrou ele. — Deixa-me ir.

Em Ramallah, a reunião terminou de madrugada. Yasser Arafat estava de muito bom humor. Para aqueles presentes, parecia-se um pouco com o antigo Arafat, o Arafat que conseguia discutir ideologia e estratégia durante toda a noite com os companheiros mais chegados e depois sentar-se para uma reunião com um chefe de Estado. Enquanto os seus ajudantes de campo saíam da sala, Arafat fez sinal a Mahmoud Arwish para ficar.

— Começou — disse Arafat. — Agora só podemos esperar que Alá tenha abençoado a sagrada empresa do Khaled.

— Trata-se também da tua empresa, Abu Amar.

— É verdade — disse Arafat — , e não teria sido possível sem ti, Mahmoud. Arwish assentiu cautelosamente. Arafat manteve o olhar fixo nele.

— Fizeste bem o teu papel — disse Arafat. — O fato de ter enganado os israelenses com inteligência quase perdoa a traição que me fizeste e ao resto do povo palestino. Estou tentado a ignorar o teu crime, mas não posso fazê-lo.

Arwish sentiu o peito apertar. Arafat sorriu.

— Pensaste realmente que a tua traição seria alguma vez esquecida?

— A minha mulher — gaguejou Arwish. — Os Judeus obrigaram-me...

Arafat sacudiu a mão num gesto de rejeição.

— Pareces uma criança, Mahmoud. Não piores a tua humilhação rogando pela vida. Naquele momento a porta abriu, e entraram na sala dois homens da segurança com uniformes, de armas a postos. Arwish tentou tirar a arma do coldre, mas a coronha de uma espingarda bateu-lhe num rim, e uma erupção de dor estonteante fez com que caísse ao chão.

— Morres hoje a morte de um colaborador — disse Arafat. Uma morte adequada a um cão.

Os seguranças levantaram Arwish, empurraram-no para fora do Escritório e desceram as escadas. Arafat foi até a janela e olhou para o pátio quando Arwish e os seguranças surgiram no seu campo de visão. Outra coronhada nos rins fez com que Arwish caísse ao chão pela segunda vez. Depois o tiroteio começou. Lenta e ritmadamente, começaram pelos pés e avançaram lentamente para cima. A Mukata ecoou com o estalar das Kalashnikovs e os gritos do traidor moribundo. Para Arafat, tratava-se de um som muitíssimo satisfatório: o som de uma revolução. O som da vingança.

Quando os gritos pararam, houve um tiro final na cabeça. Arafat desceu o estore. Tinha tratado de um inimigo. Em breve outro teria o mesmo destino. Desligou o candeeiro e ficou sentado na obscuridade, aguardando a próxima atualização.

CAPÍTULO 21

MARSELHA

 

 

Mais tarde, quando tudo estava terminado, Dina procuraria em vão um qualquer simbolismo no momento que Khaled escolhera para fazer a sua aparição. Quanto às palavras exatas que ela utilizou para dar a notícia às equipes, não se lembrava de quais tinham sido, embora tivessem ficado gravadas em fita para a posteridade: "É ele.

Está na rua. Dirige-se para sul através do parque. " Todos aqueles que ouviram a convocação da Dina sentiram-se abalados pela sua compostura e falta de emoção. Tão tranquila foi a sua declaração que por um instante Shamron não percebeu o que tinha acabado de acontecer. Apenas quando ouviu o rugido da mota de Yaakov, seguido pelo som do respirar acelerado de Gabriel, é que compreendeu que Khaled estava prestes a ser abatido.

Passados cinco segundos da informação da Dina, Yaakov e Gabriel tinham colocado os capacetes e aceleravam para leste a toda a velocidade ao longo do cours Belsunce.

Na Place de la Préfecture, Yaakov inclinou pesadamente a mota para a direita e acelerou através da praça em direção à entrada do Boulevard St-Rémy. Gabriel agarrou-se à cintura do Yaakov com a mão esquerda. Tinha a direita enfiada no bolso do casaco e apertava a coronha volumosa da Barak. Começava a surgir a luz do dia, mas a rua permanecia na sombra. Gabriel viu Khaled pela primeira vez, a andar ao longo do passeio como um homem atrasado para um encontro importante. A mota abrandou subitamente. Yaakov tinha uma decisão a tomar: atravessar para o lado errado da estrada e aproximar-se do Khaled por trás, ou ficar do lado direito da rua e dar a volta para o abater de frente. Gabriel incitou-o a ir pela direita com um empurrão da arma. Yaakov virou o acelerador, e a mota deu um salto para a frente. Gabriel fixou os olhos em Khaled. O palestino estava a andar mais depressa.

Naquele preciso instante um Mercedes cinza escuro saiu de uma rua lateral e bloqueou-lhes o caminho. Yaakov carregou nos travões para evitar a colisão, depois buzinou e acenou ao Mercedes para que este saísse do caminho. Quando Yaakov estava de novo no caminho certo, Khaled contornara a esquina e desaparecera do campo de visão de Gabriel.

Yaakov acelerou até o fim da rua e virou à esquerda, para o Boulevard André Aune, que subia ligeiramente afastando-se do velho porto, em direção ao elevado campanário da Igreja de Notre Dame de la Garde. Khaled já tinha atravessado a rua e deslizava naquele momento para uma entrada com uma passagem coberta. Gabriel usara o programa informático para memorizar a rota de cada rua do bairro. Sabia que a passagem conduzia a uma escadaria de pedra íngreme chamada Montée de 1'Oratoire. Khaled tinha tornado a mota inútil.

— Para — disse Gabriel. — Não te mexas.

Gabriel saltou da mota e, ainda de capacete na cabeça, seguiu o caminho que o Khaled tomara. Não havia luzes na passagem, e a alguns passos para o centro Gabriel ficou numa escuridão total. Na extremidade oposta, reemergiu na luz de um rosa escuro. Começava a escadaria: ampla e muito velha, com um corrimão de ferro ao meio. À esquerda de Gabriel ficava a fachada de estuque castanha de um prédio; à direita um elevado muro de pedra calcária sobre o qual pendiam oliveiras e vinhas florescentes.

A escada curvava para a esquerda. Quando Gabriel deu a volta à esquina, viu Khaled outra vez. Estava a meio caminho do alto e subia os degraus a correr. Gabriel começou a tirar a Barak, mas deteve-se. Ao alto das escadas havia outro prédio. Se Gabriel falhasse o Khaled, o tiro errante acertaria quase de certeza no prédio. Conseguia ouvir vozes através do auricular: Dina a perguntar ao Yaakov o que se estava a passar; Yaakov a contar à Dina do carro que lhe bloqueara o caminho e do lance de escadas que os forçara a separarem-se. — Consegues vê-lo?

— Não.

Há quanto tempo é que ele desapareceu? — Há apenas alguns segundos.

— Para onde é que o Khaled vai? Por que ele está a caminhar tanto? Onde está a proteção dele? Não estou a gostar disto. Vou dizer-lhe para desistir.

— Deixa-o.

Khaled chegou ao alto e desapareceu de vista. Gabriel subiu as escadas, dois degraus de cada vez, e chegou apenas dez segundos depois de Khaled. À sua frente surgia uma interseção de duas ruas em forma de V. Uma delas, a que ficava à direita de Gabriel, subia pela encosta mesmo em frente da igreja. Não tinha quaisquer carros nem peões. Gabriel apressou-se para a esquerda e olhou pela segunda rua. Também ali não havia sinais de Khaled, apenas um par de faróis vermelhos, desaparecendo rapidamente à distância.

— Desculpe, monsieur, está perdido?

Gabriel virou-se e levantou o visor do capacete. Ela estava de pé ao alto da escadaria, jovem, com não mais de 30 anos, grandes olhos castanhos e cabelo escuro e curto. Tinha-lhe falado em francês. Gabriel respondeu na mesma língua.

— Não, não estou perdido.

— Talvez esteja à procura de alguém?

E porque estás tu, uma mulher atraente, a falar com um estranho de capacete? Deu um passo na direção dela. Ela manteve-se onde estava, mas Gabriel detectou um vestígio de apreensão no seu olhar escuro.

— Não, não estou à procura de ninguém.

— Tem a certeza? Podia jurar que estava à procura de alguém.

— Ela inclinou ligeiramente a cabeça para um lado. — Talvez esteja à procura da sua mulher.

Gabriel sentiu a nuca em chamas. Olhou com maior atenção para o rosto da mulher e apercebeu-se de que já o vira antes. Era a mulher que tinha ido ao apartamento com Khaled. Apertou com mais força a coronha da Barak.

— O nome dela é Leah, não é? Vive numa clínica psiquiátrica no Sul da Inglaterra... pelo menos, costumava. A Clínica Stratford, certo?

Estava registrada sob o nome Lee Martinson.

Gabriel impeliu-se para a frente e agarrou a mulher pelo pescoço. — O que lhe fizeram? Onde é que ela está?

— Está em nosso poder — arquejou a mulher — , mas não sei onde está.

Gabriel puxou-a para trás, em direção ao alto das escadas.

— Onde é que ela está? — Repetiu a pergunta em árabe. Responde-me! Não me fales em francês. Fala-me na tua verdadeira língua. Fala-me em árabe.

— Estou a dizer-te a verdade.

— Então sabes falar árabe. Onde é que ela está? Responde-me, ou empurro-te pelas escadas.

Empurrou-a uma fração de centímetro para mais perto da extremidade. A mão dela tentou agarrar-se ao corrimão, mas encontrou apenas o ar. Gabriel sacudiu-a uma vez violentamente.

— Se me matar, vai se destruir... e a sua mulher. Sou sua única esperança.

— E se fizer como diz?

— Vai salvar a vida dela.

— E quanto à minha?

Ela não respondeu à pergunta.

— Diz ao resto de sua equipe para desistir. Diga que deixem imediatamente Marselha. De outro modo, diremos aos Franceses que estás aqui, e isso ainda irá piorar a situação.

Ele olhou por cima do ombro dela e viu Yaakov a subir lentamente as escadas na sua direção. Gabriel fez-lhe sinal para parar com a mão esquerda. Nessa altura, a voz da Dina surgiu no ar: "Deixa-a ir, Gabriel. Vamos encontrar Leah.

Não jogues da maneira que Khaled quer."

Gabriel voltou a olhar para os olhos da moça.

— E se eu lhes disser para desistirem?

— Levo-te até ela. Gabriel tornou a sacudi-la.

— Então tu sabes onde ela está?

— Não, haverão de nos dizer onde devemos ir. Um destino de cada vez, passos muito pequenos. Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que te dissermos, ela viverá. — E o que me acontece?

— Não terá ela sofrido já o suficiente? Salva a tua mulher, Allon. Vem comigo, e faz exatamente como eu faço. É a tua única hipótese.

Ele olhou para a escadaria e viu Yaakov a sacudir a cabeça. Dina sussurrava-lhe ao ouvido: "Por favor, Gabriel, diz-lhe que não."

Ele olhou-a nos olhos. Shamron treinara-o para ler as emoções dos outros, para distinguir a verdade do engano, e nos olhos escuros da namorada do Khaled ele viu apenas a franqueza permanente de um fanático, a convicção de que o sofrimento passado justificava qualquer atitude, não interessando o quão cruel fosse. Também reparou numa tranquilidade perturbadora. Aquela moça estava treinada, não apenas doutrinada. O seu treino faria dela uma oponente de respeito, mas era o seu fanatismo que a deixaria vulnerável.

Estaria de fato Leah na posse deles? Não tinha qualquer motivo para duvidar. Khaled destruíra uma embaixada no coração de Roma. Certamente que conseguiria raptar uma mulher doente de um hospital psiquiátrico inglês. Abandonar Leah agora, depois de tudo o que ela tinha sofrido, era impensável. Talvez ela morresse. Talvez morressem os dois. Talvez Khaled lhes permitisse, se tivessem sorte, morrerem juntos.

Khaled desempenhara bem o seu papel. Nunca tencionara matar Gabriel em Veneza. O dossiê de Milão tinha sido apenas a aposta de abertura numa intriga elaborada para atrair Gabriel ali, àquele lugar em Marselha, e a apresentar-lhe um caminho que ele não podia senão seguir. A fidelidade fazia-o avançar. Afastou-a da beira das escadas e soltou a mão que lhe apertava o pescoço.

— Desistam — disse Gabriel diretamente para o microfone de pulso. — Deixem Marselha.

Quando Yaakov sacudiu a cabeça, Gabriel disse rispidamente:

— Façam como lhes disse.

Um carro desceu a colina vindo da direção da igreja. Era o Mercedes que lhes bloqueara o caminho alguns minutos antes no Boulevard St-Rémy. Parou em frente deles. A moça abriu a porta traseira e entrou. Gabriel olhou uma última vez para Yaakov, e depois entrou atrás dela.

— Ele está incontatável — disse Lev. — O seu sinal está estacionário há cinco minutos.

O sinal, pensou Shamron, numa sarjeta de Marselha. Gabriel desaparecera de suas telas. Todo aquele planejamento, toda aquela preparação, 208 e Khaled batera-os a todos com a mais antiga das artimanhas árabes: um refém. — É verdade aquilo acerca da Leah? — perguntou Shamron.

— A delegação de Londres telefonou várias vezes ao segurança. Até agora não foram capazes de o encontrar.

— Isso significa que ela está na posse deles — disse Shamron.

— E suspeito de que temos um segurança morto algures dentro da Clínica Stratford.

— Se tudo isso é verdade, está prestes a abater-se uma tempestade muito grave sobre Inglaterra dentro dos próximos minutos. Havia um certo excesso de compostura na voz de Lev para o gosto de Shamron, mas também Lev sempre tivera um elevado autocontrole. Precisamos falar com os nossos amigos do MI5 e da Administração Interna para manter as coisas tão tranquilas quanto possível durante o máximo de tempo possível. Também precisamos informar o Ministério do Negócios Estrangeiros. O embaixador vai ter de dar uns apertos de mão a sério.

— Concordo — disse Shamron — , mas receio que exista uma coisa que tenhamos de fazer primeiro.

Olhou para o relógio. Eram 7h28 hora local, 6h28 na França: faltavam 12 horas para o aniversário da evacuação de Beit Sayeed. — Mas não podemos apenas deixá-lo aqui — disse Dina. ;

— Ele já não está aqui — respondeu Yaakov. — Foi-se embora. Foi ele que decidiu ir com ela. Deu-nos ordens para evacuar, como Tel Aviv o fez. Não temos outra escolha. Estamos de partida.

— Deve haver qualquer coisa que possamos fazer para o ajudar.

Não lhe podes ser de qualquer ajuda se estiveres enfiada numa prisão francesa. Yaakov levou o microfone de pulso aos lábios e ordenou que as equipes Ayin recusassem. Dina desceu o cais com relutância e desapertou as amarras. Solta a última amarra, subiu a bordo do Fidelity e manteve-se juntamente com Yaakov no alto da ponte flutuante enquanto ele conduzia o iate para fora do canal. Ao passarem pelo Forte de São Nicolau, tornou a descer a escada da escotilha até o salão. Sentou-se no posto de comunicações, digitou um comando para aceder à memória e fixou o código de tempo para as 6.12 horas. Alguns segundos depois, ouviu a própria voz.

"É ele. Está na rua. Está a atravessar o parque no sentido sul." Tornou a ouvir tudo: Yaakov e Gabriel a montarem a mota sem palavras; Yaakov a ligar o motor e a acelerar, afastando-se; o som de pneus a prender e a resvalar ao longo do asfalto no Boulevard St-Rémy; a voz de Gabriel, calma e sem emoção: "Para aqui. Não te mexas."

Vinte segundos depois, a mulher: "Desculpe, monsieur, está perdido?"

STOP.

Quanto tempo teria Khaled passado a planejar aquilo? Anos, pensou ela. Ele tinha deixado as pistas para ela seguir, e ela tinha-as seguido, de Beit Sayeed a Buenos Aires, de Istambul a Roma, e agora Gabriel estava na mão deles. Eles iam matá-lo, e a culpa era dela.

Pressionou PLAY e tornou a ouvir a discussão de Gabriel com a palestina, depois pegou no telefone por satélite e estabeleceu comunicação com Boulevard King Saul na linha de segurança.

— Preciso de uma identificação de voz.

— Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Dina explicou as circunstâncias da intercepção.

— Passe a gravação, por favor. Ela pressionou PLAY.

"Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que dissermos, ela viverá." STOP.

— Espere um momento, por favor. Passados dois minutos:

— Não há nada compatível em arquivo.

Martineau encontrou-se uma última vez com Abu Saddiq no Boulevard d'Anthènes, na base da escadaria ampla que conduzia à Gare Saint-Charles. Abu Saddiq estava vestido com roupas ocidentais: calças impermeáveis impecáveis e uma camisa de algodão engomada. Disse a Martineau que acabara de sair um barco do porto a grande velocidade.

— Como é que se chamava? Abu Saddiq disse-lhe.

— Fidelity — repetiu Martineau. — Uma escolha interessante. Ele virou-se e começou a subir as escadas com dificuldade, tendo

Abu Sadiq ao seu lado.

— Os shaheeds receberam as suas ordens finais — disse Abu Saddiq.

— Continuarão para o seu alvo como marcado. Não podemos fazer nada para os parar.

— E tu?

— O ferry do meio-dia para Argel.

Chegaram ao alto da escadaria. A estação de trem era castanha e feia, e estava num péssimo estado.

— Devo confessar — disse Abu Saddiq — que não sentirei a falta deste lugar. — Vai para Argel e morre para o mundo. Voltaremos a trazer-te para a Cisjordânia quando for seguro.

— Depois de hoje... — Ele encolheu os ombros. — Nunca mais será seguro.

Martineau apertou a mão de Abu Saddiq.

— Maa-salaamah.

— As-salaam alaykum, irmão Khaled.

Abu Saddiq virou-se e desceu a escadaria. Martineau entrou na estação de trem e deteve-se em frente do balcão das partidas. O TGV das 8.15 para Paris estava a partir da Plataforma F. Martineau atravessou o terminal e dirigiu-se à plataforma. Caminhou ao longo do trem até encontrar a sua carruagem, e depois embarcou.

Antes de se sentar, foi à casa de banho. Deixou-se ficar muito tempo em frente do espelho, a examinar a imagem refletida. O casaco Yves Saint Laurent, a camisa azul-escura, os óculos de marca: Paul Martineau, francês distinto, arqueólogo famoso. Mas não hoje. Hoje Martineau era Khaled, filho de Sabri, neto do Sheikh Asad. Khaled, vingador de males passados, espada da Palestina. Os shaheeds receberam as suas ordens finais. Não podemos fazer nada para os parar.

Tinha sido dada outra ordem. O homem que se encontraria com Abu Saddiq naquela noite iria matá-lo. Martineau aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca iria permitir ser colocado em risco por um árabe traidor.

Passado um instante, estava sentado num lugar de primeira classe enquanto o trem saía da estação e se dirigia para norte através dos bairros de lata muçulmanos de Marselha. Paris ficava a 872 quilômetros, mas o TGV de alta velocidade iria cobrir essa distância em pouco mais de três horas. Um milagre da tecnologia ocidental e do engenho francês, pensou Khaled. Depois fechou os olhos e passado pouco tempo adormeceu.

CONTINUA

CAPÍTULO 14

CAIRO

— Nunca assinei nada assim — disse Quinnell sombriamente. Passava da meia-noite; estavam no pequeno e gasto Fiat de Quinnell. Do outro lado do Nilo, o Cairo central remexia-se irrequieto, mas Zamalek estava silenciosa àquela hora. Tinham demorado duas horas a chegar lá. Gabriel estava seguro de que ninguém o seguira.

— Tem certeza do número do apartamento?

- Já estive lá — disse Quinnell. — Não na condição que esperava, sabe, apenas numa das festas da Mimi. Vive no apartamento A. Todos conhecem o endereço da Mimi.

— Tem certeza de que ela não tem um cão?

— Só tem um gato angora com problemas de peso. Tenho a certeza que um homem que afirma ser amigo do grande Herr Heller não terá qualquer problema em lidar com um gato obeso. Já eu, por outro lado, tenho de me defrontar com um porteiro núbio de 2,15m. Como é que isto aconteceu?

— Você é um dos melhores jornalistas do mundo, Quinnell. Por certo que consegues enganar um porteiro.

— É verdade, mas isto não é propriamente jornalismo.

— Pensa nisto como uma partida de um menino inglês. Diz-lhe que o carro se foi abaixo. Diz-lhe que precisas de ajuda. Dá-lhe dinheiro. Cinco minutos, e nem mais um minuto. Percebeste?

Quinnell assentiu.

— E se o teu amigo da Mukhabarat aparecer? — perguntou Gabriel. — Qual é o sinal?

Duas buzinadelas breves, seguidas por uma longa.

Gabriel saiu do carro, atravessou a rua e desceu um lance de degraus de pedra que conduziam a um cais junto da orla costeira. Deteve-se por um momento para observar a vela angular e graciosa de uma faluca que deslizava devagar rio acima. Depois virou-se e avançou para sul, com a elegante mala de couro do Herr Klemp a pender-lhe do ombro direito. Alguns passos mais à frente, surgiram no seu campo de visão os pisos superiores do edifício de apartamentos da Mimi, acima da elevação diante de si: um antigo edifício de Zamalek, caiado, com grandes terraços sobre o rio.

Uns cem metros para lá do edifício, outro lance de degraus erguia-se acima da rua. Antes de os subir, Gabriel olhou para trás à beira-rio para ver se tinha sido seguido, mas verificou que o cais estava deserto. Subiu os degraus e atravessou a rua, percorrendo depois o caminho até a entrada do beco escurecido que corria ao longo dos fundos do prédio. Fosse essa a primeira vez que ali estivesse e poderia não ter encontrado o seu destino, mas andara pelo beco à luz do dia e sabia com toda a certeza que 130 passos normais o conduziriam à entrada de serviço do edifício da Mimi Ferrere.

Pintadas na porta de metal dentada, liam-se as palavras em árabe NÃO ENTRAR. Gabriel olhou para o relógio. Como esperara, a caminhada desde o carro tomará-lhe .30 minutos. Tentou a maçaneta e verificou que a porta estava trancada, como estivera de dia. Retirou um par de finas ferramentas de metal do bolso lateral da mala e baixou-se até ficar com o trinco ao nível dos olhos. Em 15 segundos, o trinco cedera.

Empurrou a porta e olhou para o interior. Estendia-se diante de si um corredor curto de chão de cimento. Na outra extremidade encontrava-se uma porta semiaberta, que dava para o hall. Gabriel avançou e escondeu-se atrás da segunda porta. Ouvia do outro lado a voz de David Quinnell a oferecer ao porteiro núbio 20 libras para que lhe empurrasse o carro empanado para fora da estrada. Quando a conversa deu lugar ao silêncio, Gabriel espreitou para o outro lado da porta, mesmo a tempo de ver a túnica do núbio a ondular na escuridão.

Entrou no hall e parou junto às caixas de correio. A caixa do apartamento 6A tinha a etiqueta: M. FERRERE. Subiu as escadas até o sexto piso. A porta era flanqueada por um par de palmeiras envasadas. Gabriel colou o ouvido à madeira e não ouviu qualquer som no interior.

Retirou do bolso um dispositivo disfarçado de lâmina elétrica e fê-lo correr à volta do rebordo da porta. Brilhava uma luzinha verde o que queria dizer que o dispositivo não detectara qualquer sinal da existência de um sistema de segurança eletrônico.

Gabriel tornou a enfiar o aparelho no bolso e introduziu a sua antiquada gazua no buraco da fechadura. No preciso instante em que começava a trabalhar, ouviu vozes femininas que se elevavam pela escadaria vindas lá de baixo. Prosseguiu calmamente, as pontas dos dedos registrando alterações subtis em tensão e rotação, enquanto outra parte da sua mente pensava e repensava nas possibilidades. O edifício tinha 11 andares. As hipóteses tendiam ligeiramente, mais do que igualavam, para que as mulheres nas escadas estivessem a encaminhar-se para o sexto piso ou mais acima. Tinha duas opções: abandonar o seu trabalho por agora e tornar a descer as escadas em direção ao hall, ou procurar refúgio num piso superior. Ambos os planos acarretavam potenciais perigos. As mulheres podiam achar suspeita a presença de um estrangeiro desconhecido no edifício, e se acontecesse viverem num dos últimos pisos, ele poderia encontrar-se preso sem qualquer rota de fuga.

Decidiu continuar a trabalhar. Pensou nos exercícios que tinha feito na

Academia, de Shamron sempre atrás do seu ombro, incitando-o a trabalhar como se a sua vida e as vidas da sua equipe dependessem de si. Ouvia agora o bater dos saltos altos, e quando uma das mulheres guinchou com uma gargalhada o seu coração deu um salto.

Quando a última tranca se afastou por fim, Gabriel colocou a mão no trinco e sentiu a gratificante sensação de movimento. Abriu a porta e deslizou para o interior, tornando depois a fechá-la no exato momento em que as mulheres chegavam ao patamar. Encostou-se à porta e, tendo apenas a gazua como arma, susteve o fôlego enquanto elas passavam a rir à gargalhada. Odiou-as por um instante pela sua frivolidade.

Trancou a porta. Retirou da pasta um Maglite do tamanho de um cigarro e fez incidir o feixe estreito à volta do apartamento. Estava num pequeno hall de entrada, para lá do qual se situava a sala de estar. Fresca e branca, com mobiliário baixo e confortável, e uma abundância de almofadas coloridas e mantas, lembrava vagamente a Gabriel o clube noturno da Mimi. Avançou devagar, mas parou de repente quando a luz incidiu sobre um par de olhos amarelos néon.

O gato gordo da Mimi estava deitado, enrolado, em cima de uma otomana. Olhou sem interesse para Gabriel, pousou o focinho nas patas e fechou os olhos. Tinha uma lista de alvos, organizada por ordem de importância. Uma das primeiras prioridades era os telefones da Mimi. Encontrou o primeiro na sala de estar, pousado sobre uma mesa de apoio. Localizou o segundo na mesa-de-cabeceira do quarto e o terceiro na sala que ela usava como escritório. Acoplou a cada um deles um dispositivo miniatura conhecido no léxico do Escritório como "vidro", um transmissor que iria fornecer cobertura tanto para o telefone, como para a sala à sua volta. A uma distância de cerca de mil metros, permitiria a Gabriel usar a sua suite no Intercontinental como posto de áudio.

Encontrou também no escritório o segundo artigo da sua lista de alvos, o computador da Mimi. Sentou-se, ligou o computador e introduziu um CD no drive. O software correu automaticamente e começou a recolher dados guardados no disco duro: caixas de e-mail, documentos, fotografias, até arquivos de áudio e vídeo. Enquanto os arquivos eram copiados para o CD, Gabriel deu uma olhadela ao resto do escritório. Vasculhou um molho de correspondência, abriu as gavetas da secretária, olhou de relance para os arquivos. A ausência de tempo permitiu-lhe apenas um exame superficial dos artigos, e Gabriel não encontrou nada que lhe chamasse a atenção.

Verificou o progresso do download, e em seguida levantou-se e fez incidir o feixe da Maglite pelas paredes. Uma delas estava coberta por várias fotografias emolduradas. A maior parte mostrava a Mimi na companhia de outras pessoas bonitas. Numa delas viu uma versão mais jovem da Mimi, com um kaffiyeh envolvendo-lhe os ombros. Tinha como fundo as Pirâmides de Gize que, como o rosto dela, eram banhadas por um tom siena projetado pelo sol poente — Mimi, a idealista New Age que tentava salvar o mundo da destruição através do poder do pensamento positivo.

Uma segunda fotografia chamou a atenção de Gabriel: a Mimi, de cabeça pousada numa almofada cor de lavanda, a olhar diretamente para a lente. O seu rosto estava colado ao de um homem que fingia dormir e que tinha um chapéu puxado sobre os olhos, deixando-lhe assim visíveis apenas o nariz, a boca e o queixo — o suficiente de um rosto, sabia-o Gabriel, para que os especialistas fizessem um reconhecimento facial conclusivo. Tirou uma pequena máquina fotográfica digital da sacola do Herr Klemp e fotografou a fotografia.

Regressou para junto da secretária e viu que o download estava terminado.

Retirou o CD da drive e desligou o computador. Depois olhou para o relógio. Estivera no interior do apartamento durante sete minutos, mais dois minutos do que tinha planejado. Deixou cair o CD para dentro da sacola, dirigindo-se em seguida à porta de entrada, onde se deteve por um instante para se certificar de que o patamar estava vazio antes de sair.

As escadas estavam vazias, como o hall, com exceção do porteiro núbio, que desejou a Gabriel uma boa noite quando passou por ele e saiu para rua. Quinnell, a imagem perfeita da indiferença, estava sentado em cima do capot do carro a fumar um cigarro. Como um bom profissional, manteve os olhos baixos até Gabriel ter virado à esquerda e ter começado a andar em direção à ponte Tahrir.

Na manhã seguinte, Herr Klemp ficou doente. Depois de ter recebido uma descrição desagradavelmente pormenorizada dos sintomas, o Sr. Katubi diagnosticou uma desordem bacteriana e previu que o desfecho seria violento, mas rápido. — A cidade do Cairo traiu-me — queixou-se Herr Klemp. — Fui seduzido por ela, e retribuiu o meu afecto com a vingança.

A previsão do Sr. Katubi de uma recuperação rápida demonstrou ser errónea. A tempestade nos intestinos de Herr Klemp assolou-os ao longo de muitos dias e noites. Foram chamados médicos, receitados medicamentos, mas nada parecia funcionar. O Sr. Katubi pôs de parte o ressentimento que nutria por Herr Klemp e assumiu pessoalmente a responsabilidade de cuidar dele. Receitou-lhe uma poção, provada pelo tempo, de batatas cozidas salpicadas com sumo de limão e sal, preparado que lhe entregava três vezes ao dia.

A doença suavizou o comportamento do Herr Klemp. Mostrava-se agradável para com o Sr. Katubi e até se desculpava junto das empregadas de quarto que tinham de lhe limpar a medonha casa de banho. Por vezes, quando o Sr. Katubi entrava no quarto, ia encontrar Herr Klemp sentado na cadeira de braços junto à janela, a olhar, fatigado, para o rio. Passava contudo a maior parte do tempo apaticamente 156 estendido na cama. Por forma a aliviar o tédio do cativeiro, ouvia música e os noticiários em alemão pelo seu rádio de ondas curtas, com os minúsculos receptores para não perturbar os outros hóspedes. O Sr. Katubi deu por si com saudades do velho Johannes Klemp. Por vezes, erguia os olhos do seu posto no hall e ansiava por ver o rabugento alemão atravessar pesadamente o chão de mármore com as abas do casaco a bater e o maxilar endurecido para o confronto. Certa manhã, uma semana exata depois de Herr Klemp ter ficado doente, o Sr. Katubi bateu-lhe à porta e ficou surpreso com a voz vigorosa que o mandou entrar. Passou o cartão pela ranhura da porta e entrou. Herr Klemp estava a fazer a malas.

— A tempestade terminou, Katubi.

— Tem certeza?

— Tanta quanto é possível numa situação como esta.

— Lamento que o Cairo o tenha tratado tão mal, Herr Klemp. Imagino que a decisão para prolongar a sua estada tenha afinal sido um erro.

— Talvez, Katubi, mas também nunca fui homem de ficar preso ao passado, nem você o devia fazer.

— É uma doença árabe, Herr Klemp.

— Eu não sofro dessa doença, Katubi. — Herr Klemp colocou o seu rádio de ondas curtas no saco e fechou o fecho. — Amanhã é outro dia.

Chovia em Frankfurt naquela tarde: o piloto da Lufthansa dissera-o abundantes vezes. Falara da chuva quando ainda se encontravam em terra, no Cairo, e fornecera-lhes entediantes atualizações por duas vezes durante o voo. Gabriel deixara-se prender pela laboriosa voz do piloto, pois ela dava-lhe algo que fazer além de olhar para o relógio e calcular as horas até o próximo massacre de inocentes levado a cabo pelo Khaled. Quando se aproximavam de Frankfurt, encostou a cabeça ao vidro e olhou para fora, esperando vislumbrar as primeiras luzes da planície do Sul da Alemanha, mas, em seu lugar, viu apenas escuri dão. O jato mergulhou nas nuvens, e a sua janela foi riscada por fios horizontais de água da chuva — e nessas velozes gotículas viu Gabriel as equipes do Khaled posicionarem-se para o ataque seguinte.

Depois, 157 subitamente, surgiu a pista de aterragem, uma folha de mármore negro polido erguendo-se devagar para os receber, e desceram.

No terminal, dirigiu-se a uma cabina telefônica e marcou o número de uma empresa de transporte em Bruxelas. Identificou-se como Stevens, um dos seus muitos nomes telefônicos, e pediu para falar com o Sr. Parsons. Ouviu uma série de estalidos e de zumbidos, seguidos de uma voz feminina, distante e com um ligeiro eco. Gabriel sabia que a moça estava naquele momento sentada ao balcão do Controle de Operações no Boulevard King Saul.

— Que deseja? — perguntou ela.

— Identificação por voz. — Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Recorrendo a termos hebraicos que nenhum ouvinte poderia compreender, Gabriel confiou concisamente à moça os meios técnicos com que captara e gravara a voz do sujeito.

— Passe por favor a gravação.

Gabriel pressionou o botão PLAY e levou o gravador ao bocal do receptor.

Voz masculina, francês perfeito.

"Sou eu. Dá-me uma apitadela quando puderes. Não é nada de urgente. Gao."

Baixou o gravador e colou o receptor ao ouvido.

— Não temos nada compatível em arquivo — disse a mulher.

— Compare-a com a impressão vocal não identificada 698/D. — A aguardar. — Depois um momento mais tarde: — Combina.

— Preciso identificar um número telefônico.

Gabriel localizou a segunda intercepção, pressionou PLAY e tornou a levar o gravador até o telefone. Ouvia-se a Mimi Ferrere a fazer uma chamada internacional do telefone do seu escritório. Quando o último número foi marcado, Gabriel pressionou PAUSE.

A mulher na outra extremidade da linha recitou o número: 00 33 54 67 98. Gabriel sabia que o 33 era o código da França e que o 91 era o código para a cidade de Marselha. — Faça a ligação — disse ele.

— Um momento.

Passados dois minutos, a mulher disse:

O telefone está registrado em nome de um Monsieur Paul Véran, Boulevard St-Rémy, Marselha.

— Preciso de outra identificação vocal.

— Qualidade?

— Igual à anterior.

— Passe a gravação.

Gabriel tornou a pressionar o PLAY, mas dessa vez a voz foi abafada pelo som de um aviso de segurança, em alemão, gritando do altifalante acima da sua cabeça: Achtung! Achtung! Terminado o aviso, tornou a premir PLAY. Dessa vez a voz, feminina, era claramente audível.

"Sou eu. Onde estás? Telefona-me quando puderes. Adoro-te."

STOP.

— Nada de compatível em arquivo.

— Compare com a impressão vocal não identificada 572/B.

— A aguardar. — E depois: — Combina.

— Aponte, por favor, que o sujeito dá pelo nome de Mimi Ferrere. A morada dela é Rua Brasil 24, apartamento 6A, Cairo.

Acrescentei-a ao arquivo. Tempo decorrido nesta chamada: .32 minutos. Mais alguma coisa?

— Preciso que me envie uma mensagem ao Ezekiel.

Ezekiel era o código telefônico para o departamento de Operações.

— A mensagem é?

— O nosso amigo está a passar algum tempo em Marselha, no endereço que me deu.

— Número 56 Boulevard St-Rémy?

— Exatamente — disse Gabriel. — Preciso de instruções do Ezekiel para continuar.

— Estás a telefonar do aeroporto de Frankfurt?

— Sim.

— Vou desligar. Vá para outro lugar e torne a ligar daqui a cinco minutos. Terei então instruções para si.

Gabriel desligou. Dirigiu-se a um quiosque de jornais, onde comprou uma revista alemã, e percorreu depois uma curta distância no terminal até junto de outro grupo de telefones. O mesmo número, a mesma conversa, a mesma moça em

Tel Aviv.

— Ezekiel quer que vá a Roma.

— Roma? Por que Roma?

— Bem sabe que não sei responder.

Não interessava. Gabriel sabia a resposta.

— Para onde devo ir?

— O apartamento perto da Piazza di Spagna. Conhece-o? Conhecia. Era um encantador apartamento de segurança ao alto da Escadaria Espanhola, não muito longe da Igreja da Trinta dei Monti. — Há um voo de Frankfurt para Roma dentro de duas horas. Vamos reservar-lhe um lugar.

— Quer o meu número de passageiro frequente?

— O quê?

— Deixe lá.

— Boa viagem — disse a moça, e a chamada desligou-se.


PARTE TRÊS


A Gare de Lyon


CAPÍTULO 15

MARSELHA

 

 

Pela segunda vez em dez dias, Paul Martineau fez a viagem de Aix-en-Provence para Marselha. Tornou a entrar no café da pequena rua ao fundo da Rue des Convalescents e subiu as escadas estreitas até o apartamento do primeiro andar, onde de novo foi saudado no patamar por uma figura encapuzada que falou com ele em árabe em voz baixa. Sentaram-se, encostados a almofadas de seda, no chão da minúscula sala de estar. O homem introduziu lentamente haxixe no cachimbo de água e levou um fósforo aceso ao fornilho. Em Marselha, era conhecido como Hakim el-Bakri, um imigrante recente da Argélia. Martineau conhecia-o por outro nome, Abu Saddiq. Martineau não o tratava por esse nome, como Abu Saddiq não tratava Martineau pelo nome que lhe fora dado pelo seu verdadeiro pai.

Abu Saddiq sugou longamente a boquilha do cachimbo, inclinando-o em seguida na direção de Martineau. Martineau puxou longamente o haxixe e deixou que o fumo lhe subisse às narinas. Depois acabou o seu café. Uma mulher de véu levou-lhe a xícara vazia e ofereceu-lhe outra. Quando Martineau sacudiu a cabeça, a mulher saiu silenciosamente do quarto.

Fechou os olhos enquanto uma onda de prazer se lhe abatia sobre o corpo. O estilo árabe, pensou: um pouco de fumo, uma xícara de café doce, a subserviência de uma mulher que conhecia o seu lugar na vida. Embora tivesse sido criado como verdadeiro francês, era sangue árabe que lhe corria nas veias e o árabe que ele sentia mais confortável na língua. A linguagem do poeta, a linguagem da conquista e do sofrimento. Havia alturas em que a separação do seu povo era quase demasiado dolorosa para suportar. Na Provença, ele estava rodeado por 164 pessoas como ele, e, no entanto, não lhes podia tocar. Era como se ele tivesse sido condenado a vaguear entre eles, como um espírito amaldiçoado vagueia entre os vivos. Apenas ali, no minúsculo apartamento de Abu Saddiq, podia transformar-se no homem que verdadeiramente era. Abu Saddiq compreendia isso, razão por que parecia não ter pressa de chegar ao assunto. Enfiou mais haxixe no cachimbo de água e acendeu outro fósforo.

Martineau deu outra passa no cachimbo, desta vez mais profundamente do que a anterior, e susteve o fumo até lhe parecer que os pulmões iam rebentar. Sentia agora a mente a flutuar. Viu a Palestina, não com os seus olhos, mas como lhe fora descrita por aqueles que a tinham de fato visto. Martineau, à semelhança do pai, nunca lá colocara um pé. Os limoeiros e olivais: foi isso que imaginou. Fontes frescas e cabras subindo as colinas castanhas do Galileu. Um pouco como a Provença, pensou ele, antes da chegada dos Gregos. A imagem desintegrou-se, e deu por si a vaguear por uma paisagem de ruínas celtas e romanas. Chegou a uma aldeia, uma aldeia na planície costeira da Palestina. Beit Sayeed, como lhe chamavam. Agora nada mais restava do que uma pegada no solo empoeirado. Na sua alucinação, Martineau caiu de joelhos e arranhou a omoplata na terra. Nada lhe restituía, nem ferramentas nem cerâmicas, nem moedas nem restos humanos. Era como se o povo se tivesse simplesmente desvanecido.

Obrigou-se a abrir os olhos. A visão dissipou-se. A sua missão iria em breve acabar. Os assassinatos do pai e do avô seriam vingados, o seu direito inalienável cumprido. Martineau estava confiante de que não iria passar os seus últimos dias como um francês da Provença, mas como um árabe na Palestina. O seu povo, perdido e espalhado, seria devolvido à terra, e Beit Sayeed tornaria a erguer-se do túmulo. Os dias dos judeus estavam contados. Haveriam de partir, como todos aqueles que tinham chegado à Palestina antes deles: os Gregos e os Romanos, os Persas e os Assírios, os Turcos e os Ingleses. Martineau estava convencido de que um dia, em breve, andaria à procura de artefatos entre as ruínas de um assentamento judaico.

Abu Saddiq estava a puxar-lhe a manga da camisa e a chamá-lo pelo seu verdadeiro nome. Martineau virou lentamente a cabeça e fitou Abu Saddiq com um olhar de pálpebras pesadas.

— Sou Martineau — disse ele em francês. — Paul Martineau. Doutor Paul Martineau.

— Estiveste longe por um momento.

— Estive na Palestina — murmurou Martineau, de fala arrastada pela droga. — Em Beit Sayeed.

— Não tarda a que estejamos todos lá — disse Abu Saddiq.

Martineau lançou-lhe um sorriso — não de arrogância, mas de silenciosa confiança. Buenos Aires, Istambul, Roma: três atentados, cada um deles planejado e executado sem falhas. As equipes tinham colocado os explosivos no alvo e desaparecido sem deixar rasto. Durante cada uma das operações, Martineau escondera-se com trabalho arqueológico e operara através de um intermediário. Abu Saddiq estava a tratar da operação de Paris. Martineau concebera-a e planejara-a; a partir do seu café no Quartier Belsunce, Abu Saddiq movia as peças de xadrez ao comando de Martineau. Quando estivesse terminado, Abu Saddiq sofreria o mesmo destino de todos aqueles que Martineau usara. Aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca permitiria ser desmascarado por um traidor árabe.

Abu Saddiq estendeu o cachimbo a Martineau, que ergueu a mão num gesto de rendição. Depois, com um lento aceno da cabeça, instruiu Abu Saddiq para continuar com a reunião final. Durante a meia hora seguinte, Martineau permaneceu em silêncio, enquanto Abu Saddiq falava: a localização das equipes, as moradas em Paris onde as bombas-mala estavam a ser montadas, o estado emocional dos três shaheeds. Abu Saddiq parou de falar enquanto a mulher velada lhes servia mais café. Quando ela tornou a sair, Abu Saddiq referiu que o último membro da equipe iria chegar a Marselha dentro de dois dias.

— Ela quer ver-te — disse Abu Saddiq. -Antes da operação. Martineau sacudiu a cabeça. Conhecia a moça — tinham sido amantes — , e sabia porque é que ela o queria ver. Era melhor do que agora não passassem tempo juntos. De outro modo, Martineau poderia ter segundas intenções acerca daquilo que planejara para ela.

— Mantemo-nos com o plano original — disse ele. — Onde é que me encontro com ela?

— O café da Internet no porto. Conhece-o?

Martineau conhecia.

Ela vai lá estar às 12.30 horas.

Nesse instante, do minarete de uma mesquita ao alto da rua, o muegin convocou os fiéis para a oração. Martineau fechou os olhos enquanto era banhado pelas palavras familiares.

Deus é maior. Testemunho que não existe nenhum deus além de Deus.

Testemunho que Maomé é o Profeta de Deus. Venham à oração. Venham ao êxito. Deus é maior. Não há nenhum deus além de Deus.

Uma vez terminada a chamada à oração, Martineau levantou-se e preparou-se para partir.

— Onde está o Hadawi? — perguntou.

— Em Zurique.

— É um fardo, não achas? Abu Saddiq assentiu.

— Mando-o para outro lugar? — Não — disse Martineau. — Mata-o.

Quando chegou à Place de la Préfecture, Martineau sentia-se de cabeça desanuviada. Como eram diferentes as coisas deste lado de Marselha, pensou. As ruas eram mais limpas, as lojas mais abundantes. Martineau, o arqueólogo, não conseguia evitar refletir sobre a natureza dos dois mundos que existiam lado a lado nesta antiga cidade. Um centrava-se na devoção, o outro no consumo. Um tinha muitos filhos, o outro considerava as crianças como um fardo financeiro. Martineau sabia que os Franceses não tardariam a ser uma minoria no seu próprio país, colonos na sua própria terra. Algures em breve, um século, talvez um pouco mais, a França seria um país muçulmano.

Virou para o Boulevard St-Rémy. Bordejada de árvores e dividida ao meio por um estacionamento a pagar, a rua subia ligeiramente num ângulo em direção a um pequeno parque verde com uma vista sobre o velho porto. Os edifícios de ambos os lados eram de majestosa pedra cinza e uniformes em altura. As janelas do piso térreo eram cobertas por barras de ferro. Muitos dos edifícios continham escritórios — advogados, médicos, agentes imobiliários — e mais ao alto da rua havia dois bancos e uma enorme loja artigos de decoração. Ao fundo da rua, na extremidade da Place de la Préfecture, havia um par de quiosques em frente um do outro: um vendia jornais, e o outro, sanduíches. Durante o dia havia um pequeno mercado na rua, mas agora ao crepúsculo os vendedores tinham guardado o queijo e os legumes frescos e ido para casa.

O edifício do número 56 era apenas residencial. O hall estava limpo e a escadaria era ampla, com um corrimão de madeira e uma passadeira nova. O apartamento estava vazio, com exceção de um único sofá branco e um telefone no chão. Martineau dobrou-se, levantou o receptor e marcou um número. Um atendedor de chamadas, como esperara.

— Estou em Marselha. Telefona-me quando puderes.

Desligou, depois sentou-se no sofá. Sentia a pressão da arma contra os rins. Inclinou-se para a frente e tirou-a do cós da calça. A Stechkin de nove milímetros — a arma do seu pai. Por muitos anos após a morte do pai em Paris, a arma ficara a acumular pó num depósito da Polícia, como prova de um julgamento que nunca viria a ocorrer. Um agente do serviço secreto franceses levara clandestinamente a arma para Túnis em 1985 e oferecera-a a Arafat. Arafat tinha-a dado a Martineau.

O telefone tocou. Martineau respondeu.

— Monsieur Véran?

— Mimi, meu amor — respondeu Martineau. — Que bom ouvir a tua voz.

CAPÍTULO 16

ROMA

 

 

O telefone acordou-o. Como os telefones do apartamento de segurança, não tinha campainha, apenas uma luz pulsante, luminosa com um marcador de canal, que transformou as suas pálpebras em vermelho. Estendeu a mão e levou o receptor ao ouvido.

— Acorda — disse Shimon Pazner.

— Que horas são?

— Oito e meia.

Gabriel tinha dormido 12 horas.

— Veste-te. Há uma coisa que tens de ver, já que estás na cidade.

— Analisei as fotografias, li todos os relatórios. Não preciso ver nada.

— Precisa, sim.

— Por quê?

— Porque vai te chatear.

— E que bem isso fará?

— Às vezes precisamos que nos chateiem — disse Pazner. Encontro-me contigo na escadaria da Galleria Borghese dentro de uma hora. Não me deixes feito parvo à tua espera.

Pazner desligou. Gabriel levantou-se da cama e deixou-se ficar debaixo do chuveiro durante muito tempo, equacionando se deveria fazer a barba. Por fim, acabou por se decidir a apará-la. Vestiu um dos ternos escuros de Herr Klemp e dirigiu-se à Via Veneto para tomar café. Uma hora depois de ter desligado a chamada de Pazner seguia por um caminho de cascalho sombreado em direção à escadaria da galeria. O katsa de Roma estava sentado num banco de mármore no pátio anterior, a fumar um cigarro.

— Bela barba — disse Pazner. — Céus, estás com um aspecto terrível.

— Precisava de uma desculpa para ficar no meu quarto de hotel no Cairo.

— Como é que o conseguiste?

Gabriel contou-lhe. Um produto farmacêutico vulgar que, quando ingerido e não devidamente administrado, tinha um efeito desastroso, embora temporário, no trato digestivo.

— Quantas doses tomaste?

— Três.

— Pobre coitado.

Atravessaram os jardins no sentido norte: Pazner como um homem a marchar ao som de um tambor que só ele ouvia, e Gabriel a seu lado, exausto por força de excesso de viagens e de preocupações. No perímetro do parque, perto dos jardins botânicos, situava-se a abertura para o beco sem saída. Durante dias depois do atentado, a imprensa mundial mantivera-se acampada no cruzamento. O chão continuava pejado de pontas de cigarros e de copos de plástico esmagados. Aos olhos de Gabriel era como um pedaço de terra arável depois do festival anual das colheitas.

Entraram numa rua e desceram o declive da encosta até chegarem a uma barricada de aço temporária, controlada pela Polícia italiana e pelos seguranças israelenses. Pazner foi imediatamente admitido, bem como o seu conhecido, um alemão de barba.

Uma vez atrás da cerca puderam ver os primeiros sinais de danos: o pinheiro queimado sem as suas agulhas; as janelas partidas das villas vizinhas; os pedaços de destroços retorcidos espalhados por toda a parte como papel amachucado no lixo. Mais alguns passos e a cratera da bomba surgiu à vista, com pelo menos três metros de profundidade e rodeada por um halo de pavimento queimado. Pouco restava dos edifícios mais próximos do ponto de impacto; mais no interior do complexo, as estruturas permaneciam de pé, mas os lados de frente para a explosão tinham sido arrancados, por isso o efeito parecia o de uma casa de bonecas. Gabriel lançou um olhar ao escritório intato, onde as fotografias emolduradas continuavam sobre a secretária, e à casa de banho, com uma toalha ainda pendurada no varão. O ar estava pesado devido ao cheiro de cinza e àquilo que Gabriel temia ser o cheiro persistente de carne queimada. Vindo das profundezas do complexo chegou-lhe o arranhar e o rugir das escavadoras e dos bulldozers. A cena do crime, como o cadáver de uma vítima de homicídio, tinha dado as suas pistas finais. Agora era a altura do enterro.

Gabriel ficou mais tempo do que julgara que ficaria. Nenhuma ferida passada, real ou imaginada, nenhuma ofensa ou disputa política justificava um ato de homicídio àquela escala. Pazner tinha razão: o simples fato de ver a cena provocava em si uma fúria imensa. Mas havia outra coisa, outra coisa além da fúria. Enchia-o de ódio. Virou-se e começou a subir a colina. Pazner seguiu-o em silêncio.

— Quem te disse para me trazeres aqui?

— Foi ideia minha.

— Quem?

— O velho — disse Pazner em voz baixa. — Por quê?

— Não sei por quê. Gabriel deteve-se.

— Porquê, Shimon?

— O Varash reuniu ontem depois de teres chegado a Frankfurt. Volta para o apartamento de segurança. Espera aí por mais instruções. Em breve, alguém entrará em contato contigo.

E com essas palavras Pazner atravessou a rua e desapareceu na Villa Borghese. Mas ele não regressou ao apartamento de segurança. Em vez disso, encaminhou-se na direção oposta, para os bairros residenciais do Norte de Roma. Encontrou a Via Trieste e seguiu-a para oeste, até chegar, passados dez minutos, a uma praça pequena e confusa chamada Piazza Annibaliano.

Pouco se alterara naquela praça durante os 30 anos passados desde que Gabriel a vira pela primeira vez: o mesmo grupo de árvores melancólicas ao centro da praça, as mesmas lojas sombrias que forneciam clientes de classe baixa. E na extremidade norte, enfiado entre duas ruas, encontrava-se o mesmo prédio, com o formato de uma fatia de tarte, com a ponta para a praça e o Bar Trieste no piso térreo. Zwaiter costumava parar no bar para usar o telefone antes de subir as escadas até o seu quarto.

Gabriel atravessou a praça, abrindo caminho através dos carros e das motas perigosamente estacionadas no centro, e entrou no edifício pela soleira marcada "Entrada C". O hall estava frio e escuro. As luzes, lembrou-se Gabriel, funcionavam com um temporizador para poupar eletricidade. A vigilância do edifício tinha notado que os residentes, incluindo Zawiter, raramente se incomodavam a ligá-los — um fato que demonstraria ser uma vantagem operacional para Gabriel, porque lhe assegurara virtualmente o benefício de trabalhar no escuro. Nesse momento, parou diante do elevador, ao lado do qual havia um espelho. A vigilância tinha-se esquecido de o mencionar. Naquela noite, ao ver o seu reflexo no espelho, Gabriel quase pegara na Beretta e disparara. Em vez disso, enfiou a mão no bolso do casaco para procurar uma moeda e estava a estendê-la em direção à ranhura de pagamento no elevador quando Zwaiter, que usava um casaco simples e segurava um saco de papel contendo uma garrafa de vinho de figo, entrou pela última vez na Entrada C.

"Desculpe, mas não é o Wadal Zwaiter?"

"Não! Por favor, não!"

Gabriel deixara que a moeda lhe caísse da ponta dos dedos. Antes de chegar ao chão, sacara da Beretta e disparara os seus dois primeiros tiros. Um dos cartuchos despedaçou o saco de papel antes de atingir Zwaiter no peito. Vinho e sangue misturaram-se aos pés de Gabriel enquanto ele continuava a disparar para o corpo em queda do palestino.

Nesse momento, olhou para o espelho e viu-se como fora naquela noite, um rapaz anjo com um blusão de couro, um artista que não fazia ideia de como o ato que estava a cometer iria alterar para sempre o curso da sua vida. Transformara-se noutra pessoa. E outra pessoa permanecera então. Shamron não lhe tinha dito que isso ia acontecer. Ensinara-o a sacar de uma arma e a disparar num segundo, mas nada fizera para o preparar para o que ia acontecer a seguir. Defrontar-se com um terrorista nos termos do outro, no seu campo de batalha, exige um preço terrível. Altera os homens que o fazem, bem como a sociedade que os envia.

É a derradeira arma do terrorista. Para

Gabriel, as alterações também eram visíveis. Na altura em que entrara a cambalear em Paris para a sua missão seguinte, já tinha as têmporas grisalhas.

Tornou a olhar para o espelho e viu a figura de barba do Herr Klemp a retribuir-lhe o olhar. Na sua mente dispararam imagens do caso: uma embaixada arrasada, o seu próprio dossiê, Khaled... Teria Shamron razão? Estaria Khaled a enviar uma mensagem? Teria Khaled escolhido Roma devido ao que Gabriel fizera 30 anos antes naquele mesmo lugar?

Ouviu o suave arrastar de passos atrás de si: uma mulher velha, envergando o negro da viuvez, a segurar um saco plástico com mercearias. Olhou diretamente para ele. Por um instante, receou que ela de algum modo se lembrasse dele. Gabriel desejou-lhe uma boa manhã e tornou a sair para a praça inundada de luz. Sentia-se subitamente febril. Caminhou durante algum tempo pela Via Trieste, depois fez sinal a um táxi e pediu ao motorista que o levasse à Praça de Espanha. Ao entrar no apartamento de segurança, viu uma cópia do La Repubblica daquela manhã no chão do hall da entrada. Na página seis encontrava-se um anúncio grande de um carro desportivo italiano. Gabriel olhou atentamente para o anúncio e viu que ele tinha sido cortado de uma outra edição do jornal e colado sobre a página correspondente. Rasgou as extremidades da página e descobriu, escondida entre duas páginas, uma folha de papel contendo o texto codificado da mensagem. Depois de a ter lido, queimou-a no lava-louças e tornou a sair. Adquiriu uma mala de viagem nova na Via Condotti e passou a hora seguinte a comprar a roupa adequada ao seu destino seguinte. Regressou a um apartamento de segurança durante o tempo suficiente para encher o seu novo saco, depois foi almoçar no Nino, na Via Borgognona. Às duas da tarde, apanhou um táxi para o aeroporto Fiumicino, e às cinco e meia embarcou num voo para a Sardenha. Enquanto o avião de Gabriel ganhava velocidade na pista de descolagem, Amira Assaf surgia ao portão da frente da Clínica Stratford e mostrava o cartão identificativo ao guarda de segurança, que o examinou cuidadosamente, fazendo depois sinal para avançar. Ela fez girar o manipulo da mota e desceu, acelerada, os metros do caminho de cascalho em direção à mansão. O Dr. Avery estava a sair para a noite, acelerando em direção ao portão no seu grande Jaguar prateado. Amira tocou a buzina e acenou-lhe, mas ele ignorou-a e passou por ela inundando-a num chuveiro de pó e cascalho.

O estacionamento para o pessoal situava-se no pátio dos fundos. Ela colocou a mota no descanso, retirou a mochila do compartimento do assento e deixou o capacete no seu lugar. Duas moças iam a sair do serviço. Amira deu-lhes as boas noites, e utilizou em seguida o seu cartão para abrir a entrada de segurança do pessoal. O relógio de ponto estava montado na parede do hall. Encontrou o cartão, na terceira ranhura do fundo, e picou-o: 17h56. O vestiário ficava a alguns passos do início do corredor. Amira entrou e vestiu o uniforme: calças brancas, sapatos brancos e uma bata cor de pêssego que o Dr. Avery acreditava ser calmante para os doentes. Passados cinco minutos apresentou-se ao serviço na janela da enfermeira-chefe. Ginger Hall, uma loira oxigenada de lábios escarlate, olhou para cima e sorriu.

— Novo penteado, Amira? Muito bonito. Céus, o que eu não faria para ter um cabelo forte e negro como o teu.

— Podes ficar com ele, bem como com a pele morena, os olhos negros e todas as outras coisas que os acompanham.

— Ah, deixa-te disso, querida. Aqui somos todas enfermeiras. Só estamos a fazer o nosso trabalho e a tentar fazer uma vida decente.

— Talvez, mas lá fora as coisas são diferentes. Que tens para mim?

— Lee Martinson. Está no solário. Leva-a para o quarto. Deita-a para a noite. — Aquele tipo grande ainda anda à volta dela?

— O guarda-costas? Ainda. O Dr. Avery acha que ele vai andar por aqui algum tempo.

— Porque é que uma mulher como Miss Martinson precisa de um guarda-costas? — É confidencial, minha querida. Altamente confidencial.

Amira desceu o corredor. Passado um momento, chegou à entrada do solário. Ao entrar, a umidade saudou-a como um cobertor úmido. Miss Martinson estava na sua cadeira de rodas, a olhar para as janelas escurecidas. O guarda-costas, ao ouvir Amira aproximar-se, levantou-se. Era um homem grande e de constituição pesada, de uns vinte anos, com cabelo curto e olhos azuis. Falava com um sotaque inglês, mas Amira duvidava que ele fosse verdadeiramente inglês. Ela baixou o olhar para Miss Martinson.

— Está a ficar tarde, minha querida. Já é hora de subir as escadas e de se preparar para dormir.

Empurrou a cadeira de rodas para fora do solário e ao longo do corredor até os elevadores. O guarda-costas premiu o botão de chamada. Passado um instante entraram no elevador e subiram em silêncio até o quarto dela, no quarto piso. Antes de entrar, Amira deteve-se e olhou para o guarda-costas.

— Vou dar-lhe banho. Porque não espera aqui até eu ter terminado?

— Para onde quer que ela vá, eu vou.

— Nós fazemos isto todas as noites. A pobre mulher merece um pouco de privacidade.

— Para onde quer que ela vá, eu vou — repetiu ele.

Amira sacudiu a cabeça e empurrou Miss Martinson para o seu quarto, seguida do guarda-costas, que avançava em silêncio atrás de si.

CAPÍTULO 17

BOSA, SARDENHA

 

 

Durante dois dias Gabriel esperou que eles estabelecessem contato. O hotel, pequeno e de cor ocre, situava-se no antigo porto junto ao local onde o rio Temo desaguava no mar. O quarto dele ficava no último piso e tinha uma pequena varanda com um corrimão de ferro. Acordava tarde, tomava o pequeno-almoço na sala de jantar e passava as manhãs a ler. Ao almoço, comia massa com peixe num dos restaurantes do porto, e depois ia a pé até a estrada que conduzia à praia, a norte da cidade, e estendia a toalha na areia para dormir mais um pouco. Passados dois dias, a sua aparência melhorara apreciavelmente. Ganhara peso e força, e a pele sob os seus olhos já não tinha um ar castanho amarelado e de icterícia. Até começava a gostar do seu aspecto com barba.

Na terceira manhã, o telefone tocou. Ouviu as instruções sem falar, e depois desligou. Tomou uma ducha e vestiu-se, fez a mala e desceu as escadas para ir almoçar. Depois do almoço pagou a conta, colocou a mala no porta-bagagens do carro que tinha alugado em Cagliari e dirigiu para o norte, ao longo de cerca de 50 quilômetros, até a cidade portuária de Alghero. Deixou o carro na rua onde lhe tinham dito que o deixasse, e atravessou um beco sombrio que ia desembocar em frente ao mar.

Dina estava sentada num café no cais, a beber café. Tinha óculos escuros, sandálias e um vestido sem mangas; o cabelo escuro chegava-lhe até os ombros e brilhava à luz ofuscante refletida pelo mar. Gabriel desceu um lance de escadas de pedra até o cais e entrou num bote de 4,50 metros em cujo casco se lia a palavra Fidelity. Ligou o motor, um Yamaha de 90 cavalos, e soltou as amarras. Dina juntou-se a ele passado um instante e disse-lhe, num francês sofrível, que se dirigisse ao enorme iate branco a motor ancorado a cerca de 800 metros da linha da costa num mar turquesa.

Gabriel levou o bote devagar para fora do porto, e depois, ao chegar a mar aberto, aumentou a velocidade e seguiu oscilando em direção ao iate sobre as vagas suaves. Ao aproximar-se, Rami, de calções de caqui e camisa branca, subiu para a popa. Desceu para o degrau das escadas de mergulho e estava aí à espera, de mão estendida, enquanto Gabriel se ia aproximando.

Quando entraram, o salão principal parecia uma subestação do quartel-general da equipe na cave Boulevard King Saul. Das paredes pendiam mapas em larga escala e fotografias aéreas, e o eletrônico de bordo fora acrescido do tipo de técnico de comunicações que Gabriel não via desde o assassinato de Abu Jihad. Yaakov ergueu o olhar de um dos monitores do terminal e estendeu a mão. Shamron estava sentado a uma mesa na pequena cozinha do iate, usando calças caqui e uma camisa branca de manga curta. Puxou os óculos graduados para a testa e estudou Gabriel como se ele fosse um documento ou outro mapa. — Bem-vindo ao Fidelity — disse ele — , uma combinação de posto de comando e apartamento de segurança. — Onde é que o arranjou?

— É de um amigo do Escritório. Por acaso, estava em Cannes. Nós o levamos para o mar e acrescentamos o adicional de que precisávamos para nossa viagem. Também mudamos o nome.

— Quem o escolheu?

— Eu — disse Shamron. — Significa lealdade e fidelidade.

— ... e uma devoção ao dever ou aos nossos votos ou obrigações - disse Gabriel. - Eu sei o que significa. Também sei por que o escolheu... pelo mesmo motivo pelo qual disse a Shimon Pazner para me levar às ruínas da embaixada.

— Achei importante que visse. Por vezes, quando alguém se encontra no meio de uma operação como esta, o inimigo pode tornar-se um pouco como uma abstração. É fácil esquecer a sua verdadeira natureza. Achei que precisasse avivar sua memória.

— Faço isto há muito tempo, Ari. Conheço a natureza do meu inimigo e sei o que significa ser leal. — Gabriel sentou-se à mesa, em frente a Shamron. — Ouvi dizer que o Varash se reuniu depois de eu ter saído do Cairo. Imagino que a decisão deles seja mais do que óbvia.

— Khaled foi julgado — disse Shamron — , e o Varash expressou o seu veredicto. Gabriel executara as sentenças desses processos, mas na verdade nunca presenciara um. Eram uma espécie de julgamento, mas pesavam muito a favor da acusação e eram conduzidos sob circunstâncias tão secretas que os acusados nem sequer sabiam da sua existência. Os réus não tinham advogados nessa sala de tribunal; os seus destinos não eram decididos por um júri dos seus pares, mas sim pelos seus inimigos mortais. A prova de culpa era indiscutível. Nunca eram apresentadas provas abonatórias. Não havia transcrições nem qualquer forma de apelo. Apenas uma sentença era possível, e ela era irrevogável.

— Já que eu sou o agente de investigação, importas-te que te dê uma opinião acerca do caso?

— Se tiveres de o fazer.

— O caso contra o Khaled é totalmente circunstancial, e tênue, no mínimo. — O rasto de provas é claro — disse Shamron. — E começamos a seguir esse rasto baseados na informação que nos foi dada por uma fonte palestina.

— É isso que me preocupa. Yaakov juntou-se a eles à mesa.

— Mahmoud Arwish é há vários anos um dos nossos ativos de topo no seio da Autoridade palestina. Tudo que ele nos disse mostrou estar certo. — Mas nem Arwish está certo de que o homem naquela fotografia é o Khaled. O caso é um castelo de cartas. Se se descobrir que uma das cartas não é a verdadeira, então todo o caso vai ao ar... e acabamos com um homem morto numa rua francesa. — A única coisa que sabemos a respeito da aparência do Khaled é que foi dito que ele tinha uma semelhança espantosa com o seu avô disse Shamron. — Eu sou a única pessoa nesta sala que viu o xeque de frente, e vi-o em circunstâncias impossíveis de esquecer. — Shamron levantou a fotografia para os outros verem. — O homem nesta fotografia podia ser irmão gémeo do Sheikh Asad.

— Isso ainda não prova que ele seja o Khaled. Estamos a falar de matar um homem.

Shamron virou a fotografia diretamente para Gabriel.

— Reconheces que se este homem entrar no prédio 56 da Boulevard St-Rémy tudo indica que ele será Khaled al-Khalifa?

— Reconheço que sim.

— Por isso, vamos pôr o edifício sob vigilância. E aguardamos. Esperemos que ele apareça antes do próximo massacre. Se o fizer, obtemos a fotografia dele a entrar no prédio. Se os nossos especialistas tiverem a certeza de que ele é o mesmo homem, pomo-lo fora de combate. — Shamron cruzou os braços em frente do peito. — Claro que há outro método de identificação... o mesma que utilizamos durante a operação Ira de Deus.

Passou uma imagem pela memória de Gabriel. "Desculpe, mas não é Wadal Zwaiter?" "Não! Por favor, não!"

— É preciso que um cliente seja muito calmo para não responder ao seu nome verdadeiro numa situação como esta — disse Shamron.

— E um ainda mais calmo para não procurar a arma quando confrontado com um homem prestes a matá-lo. De ambas as formas, se for mesmo o Khaled, irá identificar-se, e tu ficarás descansado quando premires o gatilho.

Shamron empurrou os óculos para a testa.

— Quero o Fidelity em Marselha ao cair da noite. Vais estar a bordo? — Vamos usar o modelo da Ira de Deus — Começou Shamron. — Aleph, Eet, Ayin, Qoph. Tem duas vantagens. É familiar e funciona.

Gabriel anuiu.

Por necessidade, fizemos algumas alterações menores e combinamos algumas espécies de papéis, mas assim que a operação for iniciada, vai parecer igual. Sim, claro que vais ser o Aleph, o homem da arma. As equipes Ayin, os vigilantes, já estão em posição.

Se o Khaled chegar ao apartamento, dois dos vigilantes mudarão para o papel de Bet e cobrirão a tua rota de escape.

— E o Yaakov?

— Vocês dois parecem ter estabelecido uma espécie de empatia. Yaakov será o teu líder de equipe adjunto. Na noite do golpe, se tivermos sorte, será o teu motorista.

— E a Dina?

— Qoph — disse Shamron. — Comunicações. Irá manter-se em contato com Boulevard King Saul para a identificação do alvo. Também irá servir como bat leveyha do Yaakov.

Tu ficarás escondido no barco até o golpe. Quando o Khaled tiver sido abatido, toda a gente deixa a cidade por vias separadas e fará o seu caminho para fora do país. Tu e o Yaakov viajarão até Genebra e voarão para casa a partir daí. A Dina levará o barco para fora do porto. Assim que estiver em mar aberto, colocaremos uma equipe a bordo e o traremos para casa.

Shamron desenrolou um mapa do centro de Marselha em cima da mesa.

— Foi-te reservada uma posição aqui — bateu no mapa com o dedo gorducho — no lado oriental do antigo porto, ao longo do Quai de Rive-Neuve. O Boulevard St-Rémy fica aqui — outra batida — , a seis ruas para este. Vai da Place de la Préfecture para sul, até o jardim Pierre Puget.

Shamron colocou uma fotografia de satélite da rua por cima do mapa.

— Para te dizer a verdade, é uma rua perfeita para nós operarmos. O número 56 fica localizado aqui, do lado oriental da rua. Só tem uma entrada, o que significa que não deixaremos de ver Khaled se ele entrar. Como se pode ver pela fotografia, a rua é movimentada... muito trânsito, pessoas nos passeios, lojas e escritórios.

A entrada para o número 56 é visível desta grande esplanada em frente ao Palácio da Justiça. O parque contém uma colônia de sem-abrigo. Temos agora lá um par de vigilantes.

Shamron ajustou o ângulo da fotografia.

— Mas o melhor de tudo é o estacionamento a pagar no centro. Esse espaço está agora ocupado por um carro alugado por um dos vigilantes. Temos mais cinco carros. Neste momento, estão todos a ser equipados com câmeras em miniatura de alta resolução. As camaras transmitem as suas imagens através de sinais sem fios codificados. Tu tens o único descodificador.

Shamron fez um sinal com a cabeça a Yaakov, que premiu um botão. Uma enorme tela ergueu-se lentamente do console.

— Vais ficar aqui de vigia à entrada — disse Shamron. — Os vigilantes irão fazer rodar os carros a intervalos regulares para o caso do Khaled ou um dos seus homens ficar de olho no estacionamento. Eles já organizaram o tempo, por isso quando um carro sair, o carro seguinte irá ocupar o mesmo lugar.

— Engenhoso — murmurou Gabriel.

— Na verdade, foi sugestão do Yaakov. Ele fez este tipo de coisas em lugares onde é mais difícil esconder as equipes de vigilância.

— Shamron acendeu um cigarro. — Mostra-lhe o programa de computador. Yaakov sentou-se em frente do computador portátil e teclou um comando. Surgiu na tela uma animação visual do Boulevard St-Rémy e arredores.

— Como eles conhecem o teu rosto, não podes sair do barco até a noite do golpe. Isso significa que não te podes familiarizar com a vizinhança. Mas, pelo menos, podes fazê-lo aqui. O departamento técnico criou isto para que possas percorrer o Boulevard St— Rémy a partir daqui, do salão do Fidelity.

— Não é a mesma coisa.

Tens razão — disse Shamron — , mas tem de servir. Mergulhou num silêncio contemplativo. — Então que acontece quando vires um homem árabe, na casa dos trinta, a entrar no prédio do número 56? — Deixou que a questão ficasse no ar por um momento, e depois respondeu-lhe: — Tu e a Dina determinarão se poderá ser ele. Se o fizerem, enviarás uma imagem Boulevard King Saul através de uma ligação segura. Depois transmitirás o vídeo. Se ficarmos satisfeitos, daremos ordem para continuar. Você e Yaakov deixarão o Fidelity e seguirão para a Place de la Préfecture de mota. Claro que é o Yaakov que conduz. Encontrarás um lugar para esperar. Poderão estacionar na praça ou tomar uma cerveja num café da calçada. Se ele ficar durante algum tempo, terão de se deslocar. É uma parte movimentada da cidade, que fica acordada até tarde. Vocês são os dois operacionais experientes. Sabem o que fazer. Quando a Dina vir o Khaled a sair por aquela porta, irá avisar-te por rádio. Precisas de estar de regresso ao Boulevard St-Rémy em não mais de 30 segundos. Shamron apagou lentamente o cigarro. — Não me interessa que seja em plena luz do dia — disse ele, por fim. — Não me interessa que ele esteja com um amigo. Não me interessa que o ato seja testemunhado por uma multidão de pessoas. Quando o Khaled al-Khalifa sair do edifício de apartamentos, quero que des cabo dele e acabes com isso.

— A rota de fuga?

— Subir o Boulevard Notre-Dame, acima da Avenue do Prado. Dirige-te para leste a alta velocidade. O Ayin deixará um carro para ti no estacionamento do Velódromo. Depois põe-te em Genebra o mais depressa possível. Instalamos-te lá num apartamento e mudamos-te quando for seguro.

— Quando é que partimos da Sardenha?

— Agora — disse Shamron. — Dirige-te para norte, em direção à Córsega. No canto sudoeste da ilha fica o porto de Propriano. Oferry de Marselha parte daí. Pode se esconder no Mediterrâneo. São nove horas desde Propriano. Esgueire-se para o porto depois de escurecer e registre-se na capitania. Depois faça contato com os vigilantes e estabeleça a ligação com uma câmera de vigilância.

— E tu?

— A última coisa de que precisas em Marselha é de um velho a espreitar-te por cima do ombro. O Rami e eu vamos deixar-te aqui. Amanhã à noite estaremos de regresso a Tel Aviv.

Gabriel pegou na fotografia por satélite do Boulevard St-Rémy e estudou-a atentamente.

— Aleph, Bet, Ayin, Qoph — disse Shamron. — Será mesmo como nos velhos tempos. — Sim — replicou Gabriel. — Que raio poderia correr mal?

Yaakov e Dina esperaram a bordo da Fidelity enquanto Gabriel levava Shamron e Rami para a costa. Rami saltou para o cais e equilibrou o bote enquanto Shamron deslizava lentamente para o exterior.

— Isto é o fim — disse Gabriel. — A última vez. Depois disso, está terminado. — Para ambos, receio eu — disse Shamron. — Vais regressar a casa, vamos envelhecer juntos.

— Já somos velhos. Shamron encolheu os ombros.

— Mas não demasiado velho para uma última batalha.

— Veremos.

— Se tiveres a oportunidade de disparar, não hesites. Cumpre o teu dever.

— Para com quem?

— Para comigo, é claro.

Gabriel deu a volta com o bote e encaminhou-se para fora do porto. Olhou uma vez por cima do ombro e avistou Shamron, que estava de pé sem se mover no cais com o braço erguido num gesto de despedida. Quando se virou uma segunda vez, o velho tinha desaparecido. O Fidelity já estava a caminho. Gabriel abriu a válvula e seguiu-o.

CAPÍTULO 18

MARSELHA

 

 

Passadas 24 horas da chegada do Fidelity a Marselha, Gabriel tinha começado a odiar a entrada do edifício 56 do Boulevard St-Rémy. Odiava a porta em si. Odiava o trinco e a moldura. Detestava a pedra cinza do edifício e as barras de ferro das janelas ao nível do chão. Ressentia-se de todos aqueles que passavam pelo passeio, em especial dos homens com ar árabe na casa dos 30. No entanto, desprezava sobretudo os outros inquilinos: o cavalheiro distinto num blazer Cardin que exercia advocacia no escritório ao alto da rua; a grande dame de cabelo grisalho com o terrier, que a primeira coisa que fazia logo de manhã era um coco no pavimento; e a mulher chamada Sophie, cuja atividade era fazer compras e lhe lembrava muito a Leah.

Monitorizavam a tela por turnos: uma hora de serviço, duas horas de descanso. Cada um adoptava uma postura única para a vigilância. Yaakov fumava e olhava para a tela com uma expressão ameaçadora, como se, através de uma pura força de vontade, fosse compelir Khaled a aparecer nele. Dina sentava-se no sofá do salão a meditar, de pernas cruzadas, mãos nos joelhos, imóvel com exceção do bater do indicador direito. E Gabriel, que estava habituado a ficar horas de pé diante do objeto da sua devoção, andava lentamente de um lado para o outro à frente da tela, a mão direita no queixo, a mão esquerda a suportar o cotovelo direito, a cabeça inclinada para um lado. Se Francesco Tiepolo, de Veneza, tivesse surgido subitamente a bordo do Fidelity, teria reconhecido a postura de Gabriel, pois era a mesma que adoptava ao contemplar uma pintura para ver se estava terminada.

A alteração dos carros de vigilância proporcionava uma pausa bem-vinda ao tédio da vigilância. O Ayin aperfeiçoara a sequência, de modo 186

a que esta se desenrolasse com a precisão de um bailado. O carro de substituição aproximar-se-ia da entrada do estacionamento vindo de sul. O velho carro fazia marcha-a-ré e afastava-se, depois entrava um novo carro para o seu lugar. Certa vez, os dois Ayin bateram de propósito com os para-choques um no outro e envolveram-se numa convincente gritaria, para proveito de qualquer observador vindo do outro lado. Havia sempre alguns segundos de tensão quando a antiga câmera ficava negra e a nova surgia em linha. Gabriel ordenava quaisquer ajustamentos necessários de ângulo e foco, e depois isso era feito. Embora Gabriel permanecesse prisioneiro do Fidelity, ordenou à Dina e ao Yaakov que se comportassem como turistas vulgares. Fazia turnos duplos e triplos na tela de modo a poderem almoçar num restaurante numa rua lateral ao cais ou dar uma volta de mota pelas redondezas da cidade. Yaakov fez questão de conduzir pela rota de fuga em períodos diferentes do dia para se familiarizarem com os padrões de trânsito. Dina comprava roupa numa das ruas para trabalhadores cheias de lojas ou vestia roupa de banho e bronzeava-se na popa. Seu corpo tinha as marcas do pesadelo na praça Dizengoff, uma grossa cicatriz vermelha do lado direito do ventre, uma comprida cicatriz denteada na coxa direita. Nas ruas de Marselha cobria tudo, mas a bordo do Fidelity não tentava esconder os danos de Gabriel e Yaakov.

À noite, Gabriel ordenou turnos de três horas, de modo a que aqueles que não estivessem de vigia pudessem dormir durante um tempo significativo. Não tardou a arrepender-se dessa decisão, porque três horas pareciam uma eternidade. A rua ficava silenciosa como a morte. Cada figura que surgia na tela parecia cheia de possibilidades. Para aliviar o tédio, Gabriel sussurrava saudações aos agentes Ayin de serviço na esplanada em frente ao Palácio de Justiça — ou acordava o oficial de serviço do departamento de Operações no Boulevard King Saul com o pretexto de que estava a testar a ligação por satélite, só para poder ouvir uma voz vinda de casa.

Era a Dina quem substituía o Gabriel. Logo que ela se sentava numa posição de ioga em frente aa tela, ele regressava à sua cabina para tentar dormir, mas via mentalmente a porta; ou Sabri a andar pelo Boulevard St-Germain com a mão no bolso da amante; ou os árabes de Beit Sayeed a arrastarem-se para o exílio; ou Shamron, na orla costeira da Sardenha, a lembrar-lhe para que fizesse o seu trabalho. E por vezes perguntava-se se ainda possuiria o reservatório de frieza emocional necessária para se aproximar de um homem na rua e lhe encher o corpo de pedaços de metal perfurantes. Nos momentos de auto-obsessão desejava que o Khaled nunca mais pusesse um pé no Boulevard St-Rémy. Imaginava depois as ruínas da embaixada em Roma e recordava-se do cheiro a carne queimada que pairava no ar como os espíritos dos mortos, e conseguia então ver a morte do Khaled, gloriosa e graciosa, expressa com a quietude apaixonada de um Bellini. Ele ia matar o Khaled. Khaled deixara-o sem qualquer escolha, e por isso Gabriel odiava-o.

Na quarta noite, nem sequer dormiu. Às 7h45, levantou-se da cama para se preparar para o seu turno das oito horas. Tomou café na cozinha e olhou para o calendário preso à porta do frigorífico. Amanhã era o aniversário da queda de Beit Sayeed. Hoje era o último dia. Entrou no salão. Yaakov, envolto em fumo de cigarros, estava a olhar para a tela. Gabriel deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe para ir dormir umas horas. Ele permaneceu durante alguns minutos no mesmo lugar, a acabar o café, depois voltou à sua posição normal — mão direita no queixo, mão esquerda a suportar o cotovelo direito — e andou de um lado para o outro no carpete em frente da tela. O advogado saiu do prédio às 8h15. A grande dame saiu dez minutos depois. Seu terrier cagou na câmera de Gabriel. Sophie, a sósia da Leah, foi a última a sair. Deteve-se por um momento em frente da porta para pescar um par de óculos escuros da sua mala antes de, esvoaçante e linda, desaparecer da vista. — Estás com péssimo aspecto — disse Dina. — Tira o resto da noite. O Yaakov e eu faremos o teu turno.

Entardecia, o porto estava silencioso, excepto pelo latejar de technopop francês vindo de outro iate. Bocejando, Gabriel confessou a Dina que dormira pouco, se é que dormira, desde a chegada deles a Marselha. Dina sugeriu que ele tomasse um comprimido.

E se o Khaled chegar enquanto eu estou inconsciente no meu quarto?

— Talvez tenhas razão. — Ela sentou-se de pernas cruzadas no sofá e fixou o olhar na tela da televisão. O pavimento do Boulevard St-Rémy estava ocupado com o trânsito pedestre do fim da tarde. Então por que não consegues dormir? — Precisas mesmo que eu to explique? Ela manteve os olhos fixos na tela. — Por que estás preocupado que ele possa não vir? Por que estás preocupado que não conseguias disparar contra ele? Por que tens medo que sejamos apanhados e presos?

— Não gosto deste trabalho, Dina. Nunca gostei.

— Nenhum de nós gosta. Se gostássemos, eles nos mandariam embora do serviço. Fazemos porque não temos outra escolha. Fazemos porque nos forçam. Diga uma coisa, Gabriel. Que aconteceria se amanhã eles decidissem acabar com os atentados, com os esfaqueamentos e os tiroteios? Haveria paz, certo? Mas eles não querem a paz. Eles querem destruir-nos. A única diferença entre o Hamas e o Hitler é que o Hamas não tem o poder e os meios para executar o extermínio dos Judeus. Mas estão a trabalhar nisso.

— Há uma distinção moral óbvia entre os palestinos e os nazis. Há uma certa justiça na causa do Khaled. Só que os seus meios são aberrantes e imorais.

— Justiça? Khaled e os da sua espécie poderiam ter conseguido a paz vezes sem conta, mas não o querem. A causa dele é destruir-nos. Se acreditas que ele quer paz, estás a iludir-te. — Apontou para a tela.

— Se ele chegar àquela rua, tu tens o direito, na verdade, o dever moral, de te certificares que ele nunca mais sai de lá para matar e mutilar de novo. Tens de o fazer, Gabriel, ou, que Deus me ajude, fá-lo-ei eu por ti. — Farias mesmo isso? Achas mesmo que serias capaz de o matar a sangue-frio, ali na rua? Ser-te-ia assim tão fácil premires o gatilho?

Ela manteve-se em silêncio durante algum tempo, com o olhar fixo na tela tremeluzente da televisão.

O meu pai veio da Ucrânia — disse ela. — De Kiev. Foi o único membro da família que sobreviveu à guerra. Os restantes foram levados para Babi Yar e fuzilados juntamente com os outros 30.000 judeus. Depois da guerra, foi para a Palestina. Adoptou o nome de Sarid, que significa "remanescente". Casou com a minha mãe e tiveram seis filhos, um filho por cada milhão morto no Shoah. Eu fui a última. Chamaram-me Dina: vingada.

O som da música aumentou de súbito, e depois deixou de se ouvir. Quando desapareceu, tudo que restou foi o bater de uma onda contra o casco do iate. Os olhos de Dina semicerraram-se de repente, como se se tivesse lembrando de uma dor física. O seu olhar permaneceu na imagem do Boulevard St-Rémy, mas Gabriel conseguia ver que era a Rua Dizengoff que ocupava os seus pensamentos. — Na manhã de 19 de Outubro de 1994, eu estava na esquina das ruas Dizengoff e Rainha Ester com a minha mãe e duas das minhas irmãs. Quando o ônibus nº5 apareceu, beijei a minha mãe e irmãs e fiquei a vê-las entrar para o ônibus. Quando as portas se abriam, eu vi-o. — Interrompeu-se e virou a cabeça para olhar para Gabriel.

— Ele estava sentado mesmo atrás do condutor, com um saco aos pés. Até olhou para mim. Tinha um rosto doce. Não, pensei eu, não é possível. Não o ônibus nº5 da Rua Dizengoff. Por isso não disse nada. As portas fecharam-se, e o ônibus começou a afastar-se.

Os seus olhos enublaram-se com lágrimas. Cruzou as mãos e colocou-as sobre a cicatriz na perna.

— Então o que tinha este rapaz no saco, este rapaz que eu vi mas de quem nada disse? Tinha uma mina terrestre egípcia, era isso que ele tinha no saco. Tinha 20 quilos de TNT militar e uns rolos ensopados com veneno para os ratos. Viu-se primeiro o relâmpago, seguido do som da explosão. O ônibus ergueu-se alguns metros no ar e estatelou-se na rua. Fui atirada para o chão. Conseguia ver as pessoas aos gritos à minha volta, mas não ouvia nada... aquela onda de impacto tinha-me danificado os tímpanos. Reparei numa perna humana caída na rua junto de mim. Calculei que fosse minha, mas depois vi que ainda tinha as duas pernas. Era a perna de alguém que se encontrava no ônibus. Enquanto a escutava, Gabriel pensou subitamente em Roma; lembrou-se de estar junto a Shimon Pazner e de olhar para os destroços da embaixada. Seria a presença de Dina a bordo do Fidelity casual, perguntou-se ele, ou teria ela sido ali colocada intencionalmente por Shamron como lembrança viva da importância de cumprir o seu dever?

Os primeiros polícias que apareceram no lugar ficaram enjoados por causa do sangue e do fedor a carne queimada. Caíram de joelhos na rua e vomitaram. Enquanto estava ali deitada, à espera que alguém me ajudasse, o sangue começou a pingar em cima de mim. Levantei os olhos e vi sangue e restos de carne pendurados nas folhas dos azederacos. Naquela manhã choveu sangue na Rua Dizengoff. Depois chegaram os rabinos do Hevra Kadisha.

Recolheram à mão os pedaços maiores dos corpos, incluindo aqueles restos nas árvores. Depois usaram pinças para recolher os pedaços mais pequenos. Vi os rabinos a apanharem os restos da minha mãe e das minhas duas irmãs com pinças e a colocá-los num saco plástico. Foi isso que enterramos. Restos. Despojos. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para debaixo do queixo. Gabriel sentou-se no sofá junto dela e manteve o olhar fixo na tela de modo a certificar-se de que não perdiam coisa alguma. A mão dele estendeu-se para a dela. Ela agarrou-a enquanto uma lágrima lhe corria pela face.

— Culpei-me a mim mesma. Se eu soubesse que o rapaz de ar doce era na verdade Abdel Rahim al-Souwi, membro das brigadas Izzedine al-Qassam, do Hamas, poderia tê-los avisado. Se eu soubesse que o irmão do Abdel tinha sido morto num tiroteio com o IDF em 1989, teria compreendido a razão pela qual ele ia no ônibus nº5, em Tel Aviv, com um saco aos pés. Decidi que me ia vingar, não com uma arma, mas com o cérebro. Jurei que da próxima vez que visse um deles o saberia, e seria capaz de avisar as pessoas antes que fosse demasiado tarde. Foi por isso que me ofereci para o Escritório. Foi por isso que consegui fazer a ligação entre Roma e Beit Sayeed. Conheço-os melhor do que eles se conhecem a si mesmos.

Outra lágrima. Desta vez Gabriel limpou-a.

— Por que ele matou a minha mãe e as minhas irmãs, Gabriel? Foi porque lhes roubamos a terra? Foi porque éramos ocupantes? Não, foi porque queríamos fazer

a.paz. Se eu os odiar, vais-me perdoar. Se eu te pedir que não mostres qualquer misericórdia para com Khaled, irás usar de brandura em relação aos meus crimes.

Sou Dina Sarid, a remanescente vingada. Sou o seis milhões. E se Khaled vier aqui esta noite, não te atrevas a deixá-lo entrar naquele ônibus.

Lev oferecera-lhe o uso de um apartamento de segurança em Jerusalém. Shamron declinara delicadamente. Em vez disso, instruiu Tamara para que fosse procurar uma cama desdobrável na despensa e pediu a Gilah que lhe enviasse uma mala com roupas limpas e um estojo de barbear. Como Gabriel, pouco tinha dormido na semana anterior.

Nalgumas noites andava pelos corredores a qualquer hora ou sentava-se lá fora a fumar com os guarda-costas do Shabak. Na maior parte do tempo, ficava deitado no colchão desdobrável, a olhar para o brilho vermelho do relógio digital na sua secretária e a calcular os minutos que restavam até o aniversário da destruição de

Beit Sayeed. Preencheu as horas vazias relembrando operações passadas. A espera. Sempre a espera. Alguns agentes ficam loucos com isso. Para Shamron era um narcótico, semelhante às primeiras angústias de um amor intenso. Os afrontamentos, os arrepios súbitos, o remoer do estômago: tinha passado por tudo isso incontáveis vezes durante os anos. Nos becos escondidos de Damasco e do Cairo, nas ruas pavimentadas da Europa, e num subúrbio marginal de Buenos Aires, onde esperara que o Adolf Eichmann, chefe de estação do Holocausto, saísse de um ônibus urbano para o amplexo dessas mesmas pessoas que tentara aniquilar. Uma maneira adequada para aquilo terminar, pensou Shamron. Uma última noite de vigília. Uma última espera para que o telefone tocasse. Quando por fim tocou, o tom eletrônico áspero foi como música para os seus ouvidos. Fechou os olhos e deixou que o telefone tocasse uma segunda vez. Depois estendeu a mão para as trevas e aproximou o receptor do ouvido.

O mostrador digital da tela da televisão dizia 12.27. Tecnicamente, fora o turno do Yaakov, mas era a última noite antes do prazo-limite, e ninguém ia dormir. Tinham estado sentados no sofá do salão, Yaakov na sua habitual pose de confronto, Dina numa posição de meditação e Gabriel como se estivesse à espera das notícias de uma morte anunciada. O Boulevard St-Rémy estivera silencioso naquela noite. O casal que passara pela porta às 12.27 foram os primeiros a surgir na imagem da câmera num espaço de quase 15 minutos. Gabriel olhara para Dina, cujos olhos permaneciam fixos na tela.

— Viste aquilo?

— Vi.

Gabriel levantou-se e dirigiu-se ao console. Retirou e a fita de vídeo do player e colocou uma nova no seu lugar. Depois colocou a fita de áudio num gravador e rebobinou-a. Com Dina olhando por cima de seu ombro, premiu PLAY. O casal surgiu na imagem e passou pela entrada sem sequer olhar para ela.

Gabriel pressionou o STOP.

— Repare como ele colocou a moça do lado direito, de frente para a rua. Está a usá-la como escudo. E olhe a mão direita dele. Está no bolso da moça, como a de Sabri.

REWIND. PLAY. STOP.

— Meu Deus — disse Gabriel — , tem exatamente o andar do pai.

— Tem certeza?

Gabriel dirigiu-se ao rádio e chamou o vigilante que se encontrava no exterior do Palácio da Justiça.

— Viu aquele casal que acabou de passar pelo prédio?

- Lá.

— Onde eles estão agora?

— Espere. — Silêncio, enquanto o Ayin mudava de posição. Subindo a rua, em direção aos jardins. — Consegue segui-los?

— Está um silêncio de morte por aqui. Eu não aconselharia.

— Raios!

— Espere um pouco.

— O quê?

— Espere aí.

— O que há?

— Estão dando a volta.

— Tem certeza?

— Absoluta. Estão voltando.

Gabriel olhou para o monitor no preciso instante em que eles tornavam a entrar na imagem, vindos desta vez da direção oposta. Mais uma vez a mulher estava de frente para a rua, e de novo o homem tinha a mão enfiada no bolso de trás da calça jeans dela. Pararam na porta do número 56. O homem tirou a chave do bolso.

CAPÍTULO 19

SURREY, INGLATERRA

 

 

Passava pouco das dez da noite quando Amira Assaf saiu do elevador na Clínica Stratford e avançou pelo corredor do quarto piso. Ao contornar a primeira esquina, viu o guarda-costas sentado numa cadeira à porta do quarto de Miss Martinson. Ergueu os olhos quando Amira se aproximou e fechou o livro que estava a ler.

— Tenho de me certificar de que ela está a dormir confortavelmente — disse Amira.

O guarda-costas assentiu e levantou-se. Não ficou surpreso com o pedido de Amira. Durante o último mês passava pelo quarto todas as noites àquela hora. Ela abriu a porta e entrou. O guarda-costas seguiu-a e fechou a porta atrás de si. Um candeeiro, cuja intensidade da luz fora reduzida ao mínimo, brilhava suavemente. Amira dirigiu-se a um dos lados da cama e olhou para baixo. Miss Martinson estava a dormir profundamente. O que não era nenhuma surpresa: Amira tinha-lhe duplicado a dosagem de sedativos. Ficaria adormecida durante mais algumas horas.

Amira ajeitou os cobertores e abriu a última gaveta da mesa-de-cabeceira. A arma, uma Walther de nove milímetros com silenciador, estava exatamente onde a tinha deixado nessa tarde enquanto Miss Martinson ainda se encontrava no solário. Agarrou a arma pelo cabo, virou-se e alvejou o peito do guarda-costas, que enfiou a mão no interior do casaco com um movimento rápido como um relâmpago. Antes que a mão reaparecesse, Amira disparou duas vezes, o premir duplo de um assassino treinado. Os dois tiros atingiram-no na parte superior do peito. O guarda-costas caiu de costas no chão. Amira ficou por cima dele e disparou mais dois tiros.

Respirou fundo uma série de vezes para reprimir a intensa onda de náuseas que a inundou. Depois aproximou-se do telefone e marcou uma extensão interna do hospital.

— Poderia por favor pedir ao Hamida que venha ao quarto da Miss Martinson? Há alguns lençóis que têm de ser levados antes que o caminhão se vá embora. Desligou, agarrou no homem morto pelos sovacos e arrastou-o para a casa de banho. A carpete estava manchada de sangue. Amira não se sentia preocupada com isso. A sua intenção não era ocultar o crime, apenas adiar a sua descoberta por algumas horas.

Ouviu-se baterem à porta.

— Sim?

— É Hamida.

Destrancou a porta e abriu-a. Hamida empurrou para o interior um carrinho da lavandaria.

— Sente-se bem?

Amira assentiu. Hamida empurrou o carrinho até junto da cama enquanto Amira afastava os cobertores e os lençóis. Miss Martinson, frágil e cheia de cicatrizes, jazia imóvel. Hamida levantou-a pelo peito, Amira pelas pernas, e juntos baixaram-na para o interior do carrinho da lavandaria. Amira escondeu-a debaixo de uma camada de lençóis.

Foi até o corredor para ver se ele estava vazio, depois olhou para Hamida e fez-lhe sinal para ele se juntar a ela. Hamida fez rolar o carrinho para fora do quarto e começou a avançar em direção ao elevador. Amira fechou a porta, introduziu o seu cartão-chave na fechadura e tornou a tirá-lo. Encontrou-se com Hamida junto ao elevador e premiu o botão de chamada. A espera parecia uma eternidade. Quando por fim as portas se abriram, empurraram o carrinho para a cabina vazia. Amira premiu o botão para o piso térreo e começaram a descer lentamente.

O hall do piso térreo estava deserto. Hamida foi o primeiro a sair e virou à direita, em direção à porta que conduzia ao pátio traseiro. Amira seguiu-o. No exterior, havia uma van imóvel com as portas traseiras abertas. Num dos lados tinha pintado o nome da empresa local de lavandaria. O condutor habitual jazia deitado junto a um renque de faias a dois quilômetros do hospital, com uma bala no pescoço.

Hamida içou o saco da lavandaria do carrinho e colocou-o gentilmente na traseira da van, fechando em seguida as portas e subindo para o assento do passageiro. Amira observou a van a afastar-se, tornou a entrar e dirigiu-se ao posto da enfermeira-chefe. Ginger estava de serviço. — Não me estou a sentir lá muito bem, Ginger. Achas que consegues passar sem mim?

— Não há problema, querida. Precisa de carona?

Amira sacudiu a cabeça. — Eu me viro com a moto, nos vemos amanhã à noite. Amira foi até o vestiário do pessoal. Antes de despir o uniforme, escondeu a arma dentro da mochila. Depois vestiu calças jeans, uma camiseta de lã grossa e um blusão de couro. Passado um momento, atravessou o pátio dos fundos com a mochila pendurada às costas.

Subiu na motocicleta e ligou o motor, depois acelerou para fora do pátio. Ao dar a volta nos fundos da antiga mansão, ergueu o olhar para a janela da Miss Martinson: uma luz brilhava suavemente, não havia qualquer sinal de problemas. Acelerou pelo caminho de acesso e deteve-se junto à casa do guarda. O homem de serviço desejou-lhe uma boa noite e abriu-lhe o portão. Amira virou para a estrada e fez rodar o manipulo. Dez minutos depois, acelerava ao longo da autoestrada A24, dirigindo-se para o mar a sul.


CAPÍTULO 20

MARSELHA

 

 

Gabriel entrou na sua cabina e fechou a porta. Foi até o guarda-roupa e afastou um pedaço solto de carpete, expondo a porta do cofre do chão. Abriu o ferrolho e ergueu a tampa. No interior, encontravam-se três pistolas: uma Beretta 92FS, uma Jericho 941 Police Special e uma Barak SP-21. Levantou cuidadosamente cada arma e colocou-as sobre a cama. A Beretta e Jericho eram de nove milímetros. O carregador para a Beretta tinha uma capacidade de 15 balas, a Jericho, 16. A Barak — achatada, preta e feia — disparava uma bala maior e mais destrutiva de .45, embora tivesse apenas oito tiros. Abriu e examinou as armas, começando pela Beretta e terminando com a Barak. Cada arma parecia estar funcionando bem. Tornou a montá-las e a carregá-las, testou peso e equilíbrio, considerando qual devia usar. Não era provável que o disparo fosse oculto e silencioso. Iria provavelmente teria lugar numa rua movimentada, talvez em plena luz do dia. Sua prioridade era certificar-se de que Khaled seria abatido. Para isso, Gabriel precisava de potência e confiabilidade. Escolheu a Barak para arma principal e a Beretta como arma de apoio. Também decidiu que não iria utilizar silenciador. O silenciador tornava a arma demasiado difícil de esconder e demasiado difícil de manejar, de sacar e disparar. Além disso, qual era o objetivo de usar um silenciador se o ato ia ser testemunhado por uma multidão de pessoas na rua?

Foi até a casa de banho e deixou-se ficar por um momento diante do espelho, examinando o rosto. Depois abriu o armário dos medicamentos e retirou de lá uma tesoura, uma lâmina e uma lata de espuma de barbear. Aparou a barba rente, retirando em seguida o resto com a lâmina. Ainda tinha o cabelo pintado de grisalho. Nada havia a fazer a esse respeito.

Despiu-se, tomou uma ducha rápido e regressou à cabina para se vestir. Vestiu a roupa interior e as meias, e em seguida um par de calças jeans azuis-escuras e sapatos de camurça com sola de borracha. Fixou o rádio ao cós da calça na anca esquerda, fez passar um fio até o ouvido e um segundo até o pulso esquerdo. Depois de ter fixado os fios no lugar com fita adesiva preta, vestiu uma camisa preta de manga comprida. Enfiou a Beretta no cós da calça, junto ao fundo das costas. A Earak era compacta o suficiente para caber no bolso do blusão de couro. Quanto ao GPS com sinal de rastreio, um pequeno disco com o tamanho aproximado de uma moeda de um euro, enfiou-o no bolso da frente da calça.

Sentou-se na beira da cama à espera. Passados cinco minutos bateram à porta.

O relógio mostrava 2.12 horas.

— Os teus especialistas têm mesmo a certeza?

O primeiro-ministro levantou os olhos para o grupo de monitores vídeo e esperou uma resposta. Num dos monitores estava a imagem de Lev. O diretor-geral do Shabak, Moshe Yariv, ocupava o segundo; o general Amos Sharret, chefe de Aman, o terceiro.

— Não existe qualquer dúvida — respondeu Lev. — O homem na fotografia que nos foi dada pelo Mahmoud Arwish é o mesmo homem que acabou de entrar no prédio em Marselha. Agora tudo o que precisamos é da sua aprovação para que a fase final da operação comece.

— E têm-na. Dá a ordem ao Fidelity.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

— Presumo que seja capaz de ouvir o tráfego radiofônico?

— O Fidelity irá enviar-nos através de uma linha de segurança. Manteremos o controle operacional até o último segundo.

— Envie-o para aqui também — disse o primeiro-ministro. Não quero ser o último a saber.

Depois premiu um botão na secretária, e as três telas se apagaram.

A mota era uma Piaggio X9 Evolution, cinza-carvão, com uma válvula de rodar e uma velocidade máxima de 160 quilômetros por hora — embora Yaakov, numa fuga de ensaio no dia anterior, tivesse conseguido chegar aos 190. O selim inclinou-se drasticamente para baixo, no sentido de trás para a frente, de modo que o passageiro ficava sentado diversos centímetros acima do condutor, o que a tornava uma mota perfeita para um assassino, embora certamente os seus projetistas não tivessem tido isso em consideração quando a desenharam. O motor disparou, como habitual, sem hesitação. Yaakov dirigiu-se ao ponto no cais onde a figura de capacete de Gabriel o esperava. Gabriel subiu para o assento traseiro e instalou-se aí.

— Leva-me ao Boulevard St-Rémy.

— Tens certeza?

— Uma passagem — disse ele. — Quero vê-lo.

Yaakov fez uma curva apertada para a esquerda e acelerou colina acima. Era um excelente edifício na Corniche, com um chão de mármore no hall e um elevador que funcionava a maior parte das vezes. Os apartamentos de frente para a rua tinham uma ótima vista sobre o Nilo. Os os fundos davam para os terrenos murados da Embaixada da América. Era um edifício para estrangeiros e egípcios ricos, era um outro mundo comparado com o monótono edifício residencial de pedra cinza em Heliopolis, onde Zubair vivia, mas a verdade era que ser-se um polícia no Egipto não era muito rentável, mesmo que se fosse um polícia secreto trabalhando para o Mukhabarat.

Subiu as escadas, que eram amplas e curvas, com uma passadeira puída presa por aplicações de latão polido. O apartamento ficava no último andar, o décimo. Zubair praguejou em voz baixa enquanto subia as escadas. Dois maços de cigarros Cleópatra por dia tinham-lhe devastado os pulmões. Teve de se deter por três vezes num patamar para recuperar o fôlego. Demorou mais de cinco minutos a chegar ao apartamento.

Premiu a orelha contra a porta e não ouviu qualquer som vindo do interior. Não era de surpreender. Zubair tinha seguido o inglês na noite anterior durante uma excursão ensopada em álcool através dos bares do hotel e dos clubes noturnos ao longo do rio. Zubair estava confiante de que ele ainda estaria a dormir.

Enfiou a mão no bolso, de onde retirou a chave. O Mukhabarat tinha uma excelente coleção: diplomatas, dissidentes, islamitas e sobretudo jornalistas internacionais. Introduziu a chave na fechadura, abriu a porta e entrou.

O apartamento estava frio e escuro, as cortinas cerradamente fechadas contra o sol de início da manhã. Zubair tinha estado no apartamento muitas vezes e encaminhou-se para o quarto sem se dar ao trabalho de acender as luzes. Quinnell dormia profundamente entre lençóis ensopados em suor. No ar estagnado pairava um cheiro fortíssimo a whisky. Zubair retirou a arma e atravessou o quarto devagar, em direção aos pés da cama. Alguns passos depois, o seu pé direito embateu em algo pequeno e duro. Antes de conseguir aliviar a pressão descendente algo pareceu estalar, emitindo um ruído estridente. No silêncio profundo do quarto soou como um ramo de árvore a estalar. Zubair olhou para baixo e viu que tinha pisado o relógio de pulso de Quinnell. Apesar de ébrio, o inglês sentou-se rigidamente na cama. Merda, pensou Zubair. Não era um assassino profissional. Esperara matar Quinnell a dormir.

— Que raio estás a fazer aqui?

— Trago-te um recado do nosso amigo — disse Zubair calmamente.

— Não quero ter mais nada a ver com ele.

— O sentimento é mútuo.

— Então que raio estás a fazer no meu apartamento?

Zubair levantou a arma. Passado um momento, saiu do apartamento e começou a descer as escadas. A meio caminho, respirava como um maratonista e transpirava pesadamente.

Parou e encostou-se ao corrimão. Malditos Cleopatras. Se não parasse depressa de fumar, acabariam por matá-lo.

Marselha, 5h22 horas.

A porta do apartamento abre-se. Sai uma figura para a rua. O alerta verbal da Dina é ouvido no Centro de Operações Boulevard King Saul e em

Jerusalém por Shamron e pelo primeiro-ministro. E também é ouvido na esplanada suja ao longo do cours Belsunce, onde Gabriel e Yaakov estão sentados à beira de uma fonte estagnada, rodeados por toxicodependentes e imigrantes que não tinham outro lugar onde dormir. — Quem é? — perguntou Gabriel.

— A moça — disse Dina, apressando-se depois a acrescentar:— A namorada do Khaled.

— Para que lado é que ela foi?

— Para norte, em direção à Place de la Préfecture. Seguiram-se vários minutos vazios de ar. Em Jerusalém, Shamron anda de um lado para o outro no carpete em frente da secretária do primeiro-ministro, esperando ansiosamente pela ordem do Gabriel. — Não tentes fazê-lo — murmura ele. — Se ela vir o vigilante, vai avisar o Khaled e tu perde-lo. Deixa-a ir.

Passaram-se mais dez segundos antes que a voz de Gabriel se voltasse a ouvir. — É demasiado arriscado — sussurrou ele. — Deixa-me ir.

Em Ramallah, a reunião terminou de madrugada. Yasser Arafat estava de muito bom humor. Para aqueles presentes, parecia-se um pouco com o antigo Arafat, o Arafat que conseguia discutir ideologia e estratégia durante toda a noite com os companheiros mais chegados e depois sentar-se para uma reunião com um chefe de Estado. Enquanto os seus ajudantes de campo saíam da sala, Arafat fez sinal a Mahmoud Arwish para ficar.

— Começou — disse Arafat. — Agora só podemos esperar que Alá tenha abençoado a sagrada empresa do Khaled.

— Trata-se também da tua empresa, Abu Amar.

— É verdade — disse Arafat — , e não teria sido possível sem ti, Mahmoud. Arwish assentiu cautelosamente. Arafat manteve o olhar fixo nele.

— Fizeste bem o teu papel — disse Arafat. — O fato de ter enganado os israelenses com inteligência quase perdoa a traição que me fizeste e ao resto do povo palestino. Estou tentado a ignorar o teu crime, mas não posso fazê-lo.

Arwish sentiu o peito apertar. Arafat sorriu.

— Pensaste realmente que a tua traição seria alguma vez esquecida?

— A minha mulher — gaguejou Arwish. — Os Judeus obrigaram-me...

Arafat sacudiu a mão num gesto de rejeição.

— Pareces uma criança, Mahmoud. Não piores a tua humilhação rogando pela vida. Naquele momento a porta abriu, e entraram na sala dois homens da segurança com uniformes, de armas a postos. Arwish tentou tirar a arma do coldre, mas a coronha de uma espingarda bateu-lhe num rim, e uma erupção de dor estonteante fez com que caísse ao chão.

— Morres hoje a morte de um colaborador — disse Arafat. Uma morte adequada a um cão.

Os seguranças levantaram Arwish, empurraram-no para fora do Escritório e desceram as escadas. Arafat foi até a janela e olhou para o pátio quando Arwish e os seguranças surgiram no seu campo de visão. Outra coronhada nos rins fez com que Arwish caísse ao chão pela segunda vez. Depois o tiroteio começou. Lenta e ritmadamente, começaram pelos pés e avançaram lentamente para cima. A Mukata ecoou com o estalar das Kalashnikovs e os gritos do traidor moribundo. Para Arafat, tratava-se de um som muitíssimo satisfatório: o som de uma revolução. O som da vingança.

Quando os gritos pararam, houve um tiro final na cabeça. Arafat desceu o estore. Tinha tratado de um inimigo. Em breve outro teria o mesmo destino. Desligou o candeeiro e ficou sentado na obscuridade, aguardando a próxima atualização.

CAPÍTULO 21

MARSELHA

 

 

Mais tarde, quando tudo estava terminado, Dina procuraria em vão um qualquer simbolismo no momento que Khaled escolhera para fazer a sua aparição. Quanto às palavras exatas que ela utilizou para dar a notícia às equipes, não se lembrava de quais tinham sido, embora tivessem ficado gravadas em fita para a posteridade: "É ele.

Está na rua. Dirige-se para sul através do parque. " Todos aqueles que ouviram a convocação da Dina sentiram-se abalados pela sua compostura e falta de emoção. Tão tranquila foi a sua declaração que por um instante Shamron não percebeu o que tinha acabado de acontecer. Apenas quando ouviu o rugido da mota de Yaakov, seguido pelo som do respirar acelerado de Gabriel, é que compreendeu que Khaled estava prestes a ser abatido.

Passados cinco segundos da informação da Dina, Yaakov e Gabriel tinham colocado os capacetes e aceleravam para leste a toda a velocidade ao longo do cours Belsunce.

Na Place de la Préfecture, Yaakov inclinou pesadamente a mota para a direita e acelerou através da praça em direção à entrada do Boulevard St-Rémy. Gabriel agarrou-se à cintura do Yaakov com a mão esquerda. Tinha a direita enfiada no bolso do casaco e apertava a coronha volumosa da Barak. Começava a surgir a luz do dia, mas a rua permanecia na sombra. Gabriel viu Khaled pela primeira vez, a andar ao longo do passeio como um homem atrasado para um encontro importante. A mota abrandou subitamente. Yaakov tinha uma decisão a tomar: atravessar para o lado errado da estrada e aproximar-se do Khaled por trás, ou ficar do lado direito da rua e dar a volta para o abater de frente. Gabriel incitou-o a ir pela direita com um empurrão da arma. Yaakov virou o acelerador, e a mota deu um salto para a frente. Gabriel fixou os olhos em Khaled. O palestino estava a andar mais depressa.

Naquele preciso instante um Mercedes cinza escuro saiu de uma rua lateral e bloqueou-lhes o caminho. Yaakov carregou nos travões para evitar a colisão, depois buzinou e acenou ao Mercedes para que este saísse do caminho. Quando Yaakov estava de novo no caminho certo, Khaled contornara a esquina e desaparecera do campo de visão de Gabriel.

Yaakov acelerou até o fim da rua e virou à esquerda, para o Boulevard André Aune, que subia ligeiramente afastando-se do velho porto, em direção ao elevado campanário da Igreja de Notre Dame de la Garde. Khaled já tinha atravessado a rua e deslizava naquele momento para uma entrada com uma passagem coberta. Gabriel usara o programa informático para memorizar a rota de cada rua do bairro. Sabia que a passagem conduzia a uma escadaria de pedra íngreme chamada Montée de 1'Oratoire. Khaled tinha tornado a mota inútil.

— Para — disse Gabriel. — Não te mexas.

Gabriel saltou da mota e, ainda de capacete na cabeça, seguiu o caminho que o Khaled tomara. Não havia luzes na passagem, e a alguns passos para o centro Gabriel ficou numa escuridão total. Na extremidade oposta, reemergiu na luz de um rosa escuro. Começava a escadaria: ampla e muito velha, com um corrimão de ferro ao meio. À esquerda de Gabriel ficava a fachada de estuque castanha de um prédio; à direita um elevado muro de pedra calcária sobre o qual pendiam oliveiras e vinhas florescentes.

A escada curvava para a esquerda. Quando Gabriel deu a volta à esquina, viu Khaled outra vez. Estava a meio caminho do alto e subia os degraus a correr. Gabriel começou a tirar a Barak, mas deteve-se. Ao alto das escadas havia outro prédio. Se Gabriel falhasse o Khaled, o tiro errante acertaria quase de certeza no prédio. Conseguia ouvir vozes através do auricular: Dina a perguntar ao Yaakov o que se estava a passar; Yaakov a contar à Dina do carro que lhe bloqueara o caminho e do lance de escadas que os forçara a separarem-se. — Consegues vê-lo?

— Não.

Há quanto tempo é que ele desapareceu? — Há apenas alguns segundos.

— Para onde é que o Khaled vai? Por que ele está a caminhar tanto? Onde está a proteção dele? Não estou a gostar disto. Vou dizer-lhe para desistir.

— Deixa-o.

Khaled chegou ao alto e desapareceu de vista. Gabriel subiu as escadas, dois degraus de cada vez, e chegou apenas dez segundos depois de Khaled. À sua frente surgia uma interseção de duas ruas em forma de V. Uma delas, a que ficava à direita de Gabriel, subia pela encosta mesmo em frente da igreja. Não tinha quaisquer carros nem peões. Gabriel apressou-se para a esquerda e olhou pela segunda rua. Também ali não havia sinais de Khaled, apenas um par de faróis vermelhos, desaparecendo rapidamente à distância.

— Desculpe, monsieur, está perdido?

Gabriel virou-se e levantou o visor do capacete. Ela estava de pé ao alto da escadaria, jovem, com não mais de 30 anos, grandes olhos castanhos e cabelo escuro e curto. Tinha-lhe falado em francês. Gabriel respondeu na mesma língua.

— Não, não estou perdido.

— Talvez esteja à procura de alguém?

E porque estás tu, uma mulher atraente, a falar com um estranho de capacete? Deu um passo na direção dela. Ela manteve-se onde estava, mas Gabriel detectou um vestígio de apreensão no seu olhar escuro.

— Não, não estou à procura de ninguém.

— Tem a certeza? Podia jurar que estava à procura de alguém.

— Ela inclinou ligeiramente a cabeça para um lado. — Talvez esteja à procura da sua mulher.

Gabriel sentiu a nuca em chamas. Olhou com maior atenção para o rosto da mulher e apercebeu-se de que já o vira antes. Era a mulher que tinha ido ao apartamento com Khaled. Apertou com mais força a coronha da Barak.

— O nome dela é Leah, não é? Vive numa clínica psiquiátrica no Sul da Inglaterra... pelo menos, costumava. A Clínica Stratford, certo?

Estava registrada sob o nome Lee Martinson.

Gabriel impeliu-se para a frente e agarrou a mulher pelo pescoço. — O que lhe fizeram? Onde é que ela está?

— Está em nosso poder — arquejou a mulher — , mas não sei onde está.

Gabriel puxou-a para trás, em direção ao alto das escadas.

— Onde é que ela está? — Repetiu a pergunta em árabe. Responde-me! Não me fales em francês. Fala-me na tua verdadeira língua. Fala-me em árabe.

— Estou a dizer-te a verdade.

— Então sabes falar árabe. Onde é que ela está? Responde-me, ou empurro-te pelas escadas.

Empurrou-a uma fração de centímetro para mais perto da extremidade. A mão dela tentou agarrar-se ao corrimão, mas encontrou apenas o ar. Gabriel sacudiu-a uma vez violentamente.

— Se me matar, vai se destruir... e a sua mulher. Sou sua única esperança.

— E se fizer como diz?

— Vai salvar a vida dela.

— E quanto à minha?

Ela não respondeu à pergunta.

— Diz ao resto de sua equipe para desistir. Diga que deixem imediatamente Marselha. De outro modo, diremos aos Franceses que estás aqui, e isso ainda irá piorar a situação.

Ele olhou por cima do ombro dela e viu Yaakov a subir lentamente as escadas na sua direção. Gabriel fez-lhe sinal para parar com a mão esquerda. Nessa altura, a voz da Dina surgiu no ar: "Deixa-a ir, Gabriel. Vamos encontrar Leah.

Não jogues da maneira que Khaled quer."

Gabriel voltou a olhar para os olhos da moça.

— E se eu lhes disser para desistirem?

— Levo-te até ela. Gabriel tornou a sacudi-la.

— Então tu sabes onde ela está?

— Não, haverão de nos dizer onde devemos ir. Um destino de cada vez, passos muito pequenos. Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que te dissermos, ela viverá. — E o que me acontece?

— Não terá ela sofrido já o suficiente? Salva a tua mulher, Allon. Vem comigo, e faz exatamente como eu faço. É a tua única hipótese.

Ele olhou para a escadaria e viu Yaakov a sacudir a cabeça. Dina sussurrava-lhe ao ouvido: "Por favor, Gabriel, diz-lhe que não."

Ele olhou-a nos olhos. Shamron treinara-o para ler as emoções dos outros, para distinguir a verdade do engano, e nos olhos escuros da namorada do Khaled ele viu apenas a franqueza permanente de um fanático, a convicção de que o sofrimento passado justificava qualquer atitude, não interessando o quão cruel fosse. Também reparou numa tranquilidade perturbadora. Aquela moça estava treinada, não apenas doutrinada. O seu treino faria dela uma oponente de respeito, mas era o seu fanatismo que a deixaria vulnerável.

Estaria de fato Leah na posse deles? Não tinha qualquer motivo para duvidar. Khaled destruíra uma embaixada no coração de Roma. Certamente que conseguiria raptar uma mulher doente de um hospital psiquiátrico inglês. Abandonar Leah agora, depois de tudo o que ela tinha sofrido, era impensável. Talvez ela morresse. Talvez morressem os dois. Talvez Khaled lhes permitisse, se tivessem sorte, morrerem juntos.

Khaled desempenhara bem o seu papel. Nunca tencionara matar Gabriel em Veneza. O dossiê de Milão tinha sido apenas a aposta de abertura numa intriga elaborada para atrair Gabriel ali, àquele lugar em Marselha, e a apresentar-lhe um caminho que ele não podia senão seguir. A fidelidade fazia-o avançar. Afastou-a da beira das escadas e soltou a mão que lhe apertava o pescoço.

— Desistam — disse Gabriel diretamente para o microfone de pulso. — Deixem Marselha.

Quando Yaakov sacudiu a cabeça, Gabriel disse rispidamente:

— Façam como lhes disse.

Um carro desceu a colina vindo da direção da igreja. Era o Mercedes que lhes bloqueara o caminho alguns minutos antes no Boulevard St-Rémy. Parou em frente deles. A moça abriu a porta traseira e entrou. Gabriel olhou uma última vez para Yaakov, e depois entrou atrás dela.

— Ele está incontatável — disse Lev. — O seu sinal está estacionário há cinco minutos.

O sinal, pensou Shamron, numa sarjeta de Marselha. Gabriel desaparecera de suas telas. Todo aquele planejamento, toda aquela preparação, 208 e Khaled batera-os a todos com a mais antiga das artimanhas árabes: um refém. — É verdade aquilo acerca da Leah? — perguntou Shamron.

— A delegação de Londres telefonou várias vezes ao segurança. Até agora não foram capazes de o encontrar.

— Isso significa que ela está na posse deles — disse Shamron.

— E suspeito de que temos um segurança morto algures dentro da Clínica Stratford.

— Se tudo isso é verdade, está prestes a abater-se uma tempestade muito grave sobre Inglaterra dentro dos próximos minutos. Havia um certo excesso de compostura na voz de Lev para o gosto de Shamron, mas também Lev sempre tivera um elevado autocontrole. Precisamos falar com os nossos amigos do MI5 e da Administração Interna para manter as coisas tão tranquilas quanto possível durante o máximo de tempo possível. Também precisamos informar o Ministério do Negócios Estrangeiros. O embaixador vai ter de dar uns apertos de mão a sério.

— Concordo — disse Shamron — , mas receio que exista uma coisa que tenhamos de fazer primeiro.

Olhou para o relógio. Eram 7h28 hora local, 6h28 na França: faltavam 12 horas para o aniversário da evacuação de Beit Sayeed. — Mas não podemos apenas deixá-lo aqui — disse Dina. ;

— Ele já não está aqui — respondeu Yaakov. — Foi-se embora. Foi ele que decidiu ir com ela. Deu-nos ordens para evacuar, como Tel Aviv o fez. Não temos outra escolha. Estamos de partida.

— Deve haver qualquer coisa que possamos fazer para o ajudar.

Não lhe podes ser de qualquer ajuda se estiveres enfiada numa prisão francesa. Yaakov levou o microfone de pulso aos lábios e ordenou que as equipes Ayin recusassem. Dina desceu o cais com relutância e desapertou as amarras. Solta a última amarra, subiu a bordo do Fidelity e manteve-se juntamente com Yaakov no alto da ponte flutuante enquanto ele conduzia o iate para fora do canal. Ao passarem pelo Forte de São Nicolau, tornou a descer a escada da escotilha até o salão. Sentou-se no posto de comunicações, digitou um comando para aceder à memória e fixou o código de tempo para as 6.12 horas. Alguns segundos depois, ouviu a própria voz.

"É ele. Está na rua. Está a atravessar o parque no sentido sul." Tornou a ouvir tudo: Yaakov e Gabriel a montarem a mota sem palavras; Yaakov a ligar o motor e a acelerar, afastando-se; o som de pneus a prender e a resvalar ao longo do asfalto no Boulevard St-Rémy; a voz de Gabriel, calma e sem emoção: "Para aqui. Não te mexas."

Vinte segundos depois, a mulher: "Desculpe, monsieur, está perdido?"

STOP.

Quanto tempo teria Khaled passado a planejar aquilo? Anos, pensou ela. Ele tinha deixado as pistas para ela seguir, e ela tinha-as seguido, de Beit Sayeed a Buenos Aires, de Istambul a Roma, e agora Gabriel estava na mão deles. Eles iam matá-lo, e a culpa era dela.

Pressionou PLAY e tornou a ouvir a discussão de Gabriel com a palestina, depois pegou no telefone por satélite e estabeleceu comunicação com Boulevard King Saul na linha de segurança.

— Preciso de uma identificação de voz.

— Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Dina explicou as circunstâncias da intercepção.

— Passe a gravação, por favor. Ela pressionou PLAY.

"Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que dissermos, ela viverá." STOP.

— Espere um momento, por favor. Passados dois minutos:

— Não há nada compatível em arquivo.

Martineau encontrou-se uma última vez com Abu Saddiq no Boulevard d'Anthènes, na base da escadaria ampla que conduzia à Gare Saint-Charles. Abu Saddiq estava vestido com roupas ocidentais: calças impermeáveis impecáveis e uma camisa de algodão engomada. Disse a Martineau que acabara de sair um barco do porto a grande velocidade.

— Como é que se chamava? Abu Saddiq disse-lhe.

— Fidelity — repetiu Martineau. — Uma escolha interessante. Ele virou-se e começou a subir as escadas com dificuldade, tendo

Abu Sadiq ao seu lado.

— Os shaheeds receberam as suas ordens finais — disse Abu Saddiq.

— Continuarão para o seu alvo como marcado. Não podemos fazer nada para os parar.

— E tu?

— O ferry do meio-dia para Argel.

Chegaram ao alto da escadaria. A estação de trem era castanha e feia, e estava num péssimo estado.

— Devo confessar — disse Abu Saddiq — que não sentirei a falta deste lugar. — Vai para Argel e morre para o mundo. Voltaremos a trazer-te para a Cisjordânia quando for seguro.

— Depois de hoje... — Ele encolheu os ombros. — Nunca mais será seguro.

Martineau apertou a mão de Abu Saddiq.

— Maa-salaamah.

— As-salaam alaykum, irmão Khaled.

Abu Saddiq virou-se e desceu a escadaria. Martineau entrou na estação de trem e deteve-se em frente do balcão das partidas. O TGV das 8.15 para Paris estava a partir da Plataforma F. Martineau atravessou o terminal e dirigiu-se à plataforma. Caminhou ao longo do trem até encontrar a sua carruagem, e depois embarcou.

Antes de se sentar, foi à casa de banho. Deixou-se ficar muito tempo em frente do espelho, a examinar a imagem refletida. O casaco Yves Saint Laurent, a camisa azul-escura, os óculos de marca: Paul Martineau, francês distinto, arqueólogo famoso. Mas não hoje. Hoje Martineau era Khaled, filho de Sabri, neto do Sheikh Asad. Khaled, vingador de males passados, espada da Palestina. Os shaheeds receberam as suas ordens finais. Não podemos fazer nada para os parar.

Tinha sido dada outra ordem. O homem que se encontraria com Abu Saddiq naquela noite iria matá-lo. Martineau aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca iria permitir ser colocado em risco por um árabe traidor.

Passado um instante, estava sentado num lugar de primeira classe enquanto o trem saía da estação e se dirigia para norte através dos bairros de lata muçulmanos de Marselha. Paris ficava a 872 quilômetros, mas o TGV de alta velocidade iria cobrir essa distância em pouco mais de três horas. Um milagre da tecnologia ocidental e do engenho francês, pensou Khaled. Depois fechou os olhos e passado pouco tempo adormeceu.

CONTINUA

CAPÍTULO 14

CAIRO

— Nunca assinei nada assim — disse Quinnell sombriamente. Passava da meia-noite; estavam no pequeno e gasto Fiat de Quinnell. Do outro lado do Nilo, o Cairo central remexia-se irrequieto, mas Zamalek estava silenciosa àquela hora. Tinham demorado duas horas a chegar lá. Gabriel estava seguro de que ninguém o seguira.

— Tem certeza do número do apartamento?

- Já estive lá — disse Quinnell. — Não na condição que esperava, sabe, apenas numa das festas da Mimi. Vive no apartamento A. Todos conhecem o endereço da Mimi.

— Tem certeza de que ela não tem um cão?

— Só tem um gato angora com problemas de peso. Tenho a certeza que um homem que afirma ser amigo do grande Herr Heller não terá qualquer problema em lidar com um gato obeso. Já eu, por outro lado, tenho de me defrontar com um porteiro núbio de 2,15m. Como é que isto aconteceu?

— Você é um dos melhores jornalistas do mundo, Quinnell. Por certo que consegues enganar um porteiro.

— É verdade, mas isto não é propriamente jornalismo.

— Pensa nisto como uma partida de um menino inglês. Diz-lhe que o carro se foi abaixo. Diz-lhe que precisas de ajuda. Dá-lhe dinheiro. Cinco minutos, e nem mais um minuto. Percebeste?

Quinnell assentiu.

— E se o teu amigo da Mukhabarat aparecer? — perguntou Gabriel. — Qual é o sinal?

Duas buzinadelas breves, seguidas por uma longa.

Gabriel saiu do carro, atravessou a rua e desceu um lance de degraus de pedra que conduziam a um cais junto da orla costeira. Deteve-se por um momento para observar a vela angular e graciosa de uma faluca que deslizava devagar rio acima. Depois virou-se e avançou para sul, com a elegante mala de couro do Herr Klemp a pender-lhe do ombro direito. Alguns passos mais à frente, surgiram no seu campo de visão os pisos superiores do edifício de apartamentos da Mimi, acima da elevação diante de si: um antigo edifício de Zamalek, caiado, com grandes terraços sobre o rio.

Uns cem metros para lá do edifício, outro lance de degraus erguia-se acima da rua. Antes de os subir, Gabriel olhou para trás à beira-rio para ver se tinha sido seguido, mas verificou que o cais estava deserto. Subiu os degraus e atravessou a rua, percorrendo depois o caminho até a entrada do beco escurecido que corria ao longo dos fundos do prédio. Fosse essa a primeira vez que ali estivesse e poderia não ter encontrado o seu destino, mas andara pelo beco à luz do dia e sabia com toda a certeza que 130 passos normais o conduziriam à entrada de serviço do edifício da Mimi Ferrere.

Pintadas na porta de metal dentada, liam-se as palavras em árabe NÃO ENTRAR. Gabriel olhou para o relógio. Como esperara, a caminhada desde o carro tomará-lhe .30 minutos. Tentou a maçaneta e verificou que a porta estava trancada, como estivera de dia. Retirou um par de finas ferramentas de metal do bolso lateral da mala e baixou-se até ficar com o trinco ao nível dos olhos. Em 15 segundos, o trinco cedera.

Empurrou a porta e olhou para o interior. Estendia-se diante de si um corredor curto de chão de cimento. Na outra extremidade encontrava-se uma porta semiaberta, que dava para o hall. Gabriel avançou e escondeu-se atrás da segunda porta. Ouvia do outro lado a voz de David Quinnell a oferecer ao porteiro núbio 20 libras para que lhe empurrasse o carro empanado para fora da estrada. Quando a conversa deu lugar ao silêncio, Gabriel espreitou para o outro lado da porta, mesmo a tempo de ver a túnica do núbio a ondular na escuridão.

Entrou no hall e parou junto às caixas de correio. A caixa do apartamento 6A tinha a etiqueta: M. FERRERE. Subiu as escadas até o sexto piso. A porta era flanqueada por um par de palmeiras envasadas. Gabriel colou o ouvido à madeira e não ouviu qualquer som no interior.

Retirou do bolso um dispositivo disfarçado de lâmina elétrica e fê-lo correr à volta do rebordo da porta. Brilhava uma luzinha verde o que queria dizer que o dispositivo não detectara qualquer sinal da existência de um sistema de segurança eletrônico.

Gabriel tornou a enfiar o aparelho no bolso e introduziu a sua antiquada gazua no buraco da fechadura. No preciso instante em que começava a trabalhar, ouviu vozes femininas que se elevavam pela escadaria vindas lá de baixo. Prosseguiu calmamente, as pontas dos dedos registrando alterações subtis em tensão e rotação, enquanto outra parte da sua mente pensava e repensava nas possibilidades. O edifício tinha 11 andares. As hipóteses tendiam ligeiramente, mais do que igualavam, para que as mulheres nas escadas estivessem a encaminhar-se para o sexto piso ou mais acima. Tinha duas opções: abandonar o seu trabalho por agora e tornar a descer as escadas em direção ao hall, ou procurar refúgio num piso superior. Ambos os planos acarretavam potenciais perigos. As mulheres podiam achar suspeita a presença de um estrangeiro desconhecido no edifício, e se acontecesse viverem num dos últimos pisos, ele poderia encontrar-se preso sem qualquer rota de fuga.

Decidiu continuar a trabalhar. Pensou nos exercícios que tinha feito na

Academia, de Shamron sempre atrás do seu ombro, incitando-o a trabalhar como se a sua vida e as vidas da sua equipe dependessem de si. Ouvia agora o bater dos saltos altos, e quando uma das mulheres guinchou com uma gargalhada o seu coração deu um salto.

Quando a última tranca se afastou por fim, Gabriel colocou a mão no trinco e sentiu a gratificante sensação de movimento. Abriu a porta e deslizou para o interior, tornando depois a fechá-la no exato momento em que as mulheres chegavam ao patamar. Encostou-se à porta e, tendo apenas a gazua como arma, susteve o fôlego enquanto elas passavam a rir à gargalhada. Odiou-as por um instante pela sua frivolidade.

Trancou a porta. Retirou da pasta um Maglite do tamanho de um cigarro e fez incidir o feixe estreito à volta do apartamento. Estava num pequeno hall de entrada, para lá do qual se situava a sala de estar. Fresca e branca, com mobiliário baixo e confortável, e uma abundância de almofadas coloridas e mantas, lembrava vagamente a Gabriel o clube noturno da Mimi. Avançou devagar, mas parou de repente quando a luz incidiu sobre um par de olhos amarelos néon.

O gato gordo da Mimi estava deitado, enrolado, em cima de uma otomana. Olhou sem interesse para Gabriel, pousou o focinho nas patas e fechou os olhos. Tinha uma lista de alvos, organizada por ordem de importância. Uma das primeiras prioridades era os telefones da Mimi. Encontrou o primeiro na sala de estar, pousado sobre uma mesa de apoio. Localizou o segundo na mesa-de-cabeceira do quarto e o terceiro na sala que ela usava como escritório. Acoplou a cada um deles um dispositivo miniatura conhecido no léxico do Escritório como "vidro", um transmissor que iria fornecer cobertura tanto para o telefone, como para a sala à sua volta. A uma distância de cerca de mil metros, permitiria a Gabriel usar a sua suite no Intercontinental como posto de áudio.

Encontrou também no escritório o segundo artigo da sua lista de alvos, o computador da Mimi. Sentou-se, ligou o computador e introduziu um CD no drive. O software correu automaticamente e começou a recolher dados guardados no disco duro: caixas de e-mail, documentos, fotografias, até arquivos de áudio e vídeo. Enquanto os arquivos eram copiados para o CD, Gabriel deu uma olhadela ao resto do escritório. Vasculhou um molho de correspondência, abriu as gavetas da secretária, olhou de relance para os arquivos. A ausência de tempo permitiu-lhe apenas um exame superficial dos artigos, e Gabriel não encontrou nada que lhe chamasse a atenção.

Verificou o progresso do download, e em seguida levantou-se e fez incidir o feixe da Maglite pelas paredes. Uma delas estava coberta por várias fotografias emolduradas. A maior parte mostrava a Mimi na companhia de outras pessoas bonitas. Numa delas viu uma versão mais jovem da Mimi, com um kaffiyeh envolvendo-lhe os ombros. Tinha como fundo as Pirâmides de Gize que, como o rosto dela, eram banhadas por um tom siena projetado pelo sol poente — Mimi, a idealista New Age que tentava salvar o mundo da destruição através do poder do pensamento positivo.

Uma segunda fotografia chamou a atenção de Gabriel: a Mimi, de cabeça pousada numa almofada cor de lavanda, a olhar diretamente para a lente. O seu rosto estava colado ao de um homem que fingia dormir e que tinha um chapéu puxado sobre os olhos, deixando-lhe assim visíveis apenas o nariz, a boca e o queixo — o suficiente de um rosto, sabia-o Gabriel, para que os especialistas fizessem um reconhecimento facial conclusivo. Tirou uma pequena máquina fotográfica digital da sacola do Herr Klemp e fotografou a fotografia.

Regressou para junto da secretária e viu que o download estava terminado.

Retirou o CD da drive e desligou o computador. Depois olhou para o relógio. Estivera no interior do apartamento durante sete minutos, mais dois minutos do que tinha planejado. Deixou cair o CD para dentro da sacola, dirigindo-se em seguida à porta de entrada, onde se deteve por um instante para se certificar de que o patamar estava vazio antes de sair.

As escadas estavam vazias, como o hall, com exceção do porteiro núbio, que desejou a Gabriel uma boa noite quando passou por ele e saiu para rua. Quinnell, a imagem perfeita da indiferença, estava sentado em cima do capot do carro a fumar um cigarro. Como um bom profissional, manteve os olhos baixos até Gabriel ter virado à esquerda e ter começado a andar em direção à ponte Tahrir.

Na manhã seguinte, Herr Klemp ficou doente. Depois de ter recebido uma descrição desagradavelmente pormenorizada dos sintomas, o Sr. Katubi diagnosticou uma desordem bacteriana e previu que o desfecho seria violento, mas rápido. — A cidade do Cairo traiu-me — queixou-se Herr Klemp. — Fui seduzido por ela, e retribuiu o meu afecto com a vingança.

A previsão do Sr. Katubi de uma recuperação rápida demonstrou ser errónea. A tempestade nos intestinos de Herr Klemp assolou-os ao longo de muitos dias e noites. Foram chamados médicos, receitados medicamentos, mas nada parecia funcionar. O Sr. Katubi pôs de parte o ressentimento que nutria por Herr Klemp e assumiu pessoalmente a responsabilidade de cuidar dele. Receitou-lhe uma poção, provada pelo tempo, de batatas cozidas salpicadas com sumo de limão e sal, preparado que lhe entregava três vezes ao dia.

A doença suavizou o comportamento do Herr Klemp. Mostrava-se agradável para com o Sr. Katubi e até se desculpava junto das empregadas de quarto que tinham de lhe limpar a medonha casa de banho. Por vezes, quando o Sr. Katubi entrava no quarto, ia encontrar Herr Klemp sentado na cadeira de braços junto à janela, a olhar, fatigado, para o rio. Passava contudo a maior parte do tempo apaticamente 156 estendido na cama. Por forma a aliviar o tédio do cativeiro, ouvia música e os noticiários em alemão pelo seu rádio de ondas curtas, com os minúsculos receptores para não perturbar os outros hóspedes. O Sr. Katubi deu por si com saudades do velho Johannes Klemp. Por vezes, erguia os olhos do seu posto no hall e ansiava por ver o rabugento alemão atravessar pesadamente o chão de mármore com as abas do casaco a bater e o maxilar endurecido para o confronto. Certa manhã, uma semana exata depois de Herr Klemp ter ficado doente, o Sr. Katubi bateu-lhe à porta e ficou surpreso com a voz vigorosa que o mandou entrar. Passou o cartão pela ranhura da porta e entrou. Herr Klemp estava a fazer a malas.

— A tempestade terminou, Katubi.

— Tem certeza?

— Tanta quanto é possível numa situação como esta.

— Lamento que o Cairo o tenha tratado tão mal, Herr Klemp. Imagino que a decisão para prolongar a sua estada tenha afinal sido um erro.

— Talvez, Katubi, mas também nunca fui homem de ficar preso ao passado, nem você o devia fazer.

— É uma doença árabe, Herr Klemp.

— Eu não sofro dessa doença, Katubi. — Herr Klemp colocou o seu rádio de ondas curtas no saco e fechou o fecho. — Amanhã é outro dia.

Chovia em Frankfurt naquela tarde: o piloto da Lufthansa dissera-o abundantes vezes. Falara da chuva quando ainda se encontravam em terra, no Cairo, e fornecera-lhes entediantes atualizações por duas vezes durante o voo. Gabriel deixara-se prender pela laboriosa voz do piloto, pois ela dava-lhe algo que fazer além de olhar para o relógio e calcular as horas até o próximo massacre de inocentes levado a cabo pelo Khaled. Quando se aproximavam de Frankfurt, encostou a cabeça ao vidro e olhou para fora, esperando vislumbrar as primeiras luzes da planície do Sul da Alemanha, mas, em seu lugar, viu apenas escuri dão. O jato mergulhou nas nuvens, e a sua janela foi riscada por fios horizontais de água da chuva — e nessas velozes gotículas viu Gabriel as equipes do Khaled posicionarem-se para o ataque seguinte.

Depois, 157 subitamente, surgiu a pista de aterragem, uma folha de mármore negro polido erguendo-se devagar para os receber, e desceram.

No terminal, dirigiu-se a uma cabina telefônica e marcou o número de uma empresa de transporte em Bruxelas. Identificou-se como Stevens, um dos seus muitos nomes telefônicos, e pediu para falar com o Sr. Parsons. Ouviu uma série de estalidos e de zumbidos, seguidos de uma voz feminina, distante e com um ligeiro eco. Gabriel sabia que a moça estava naquele momento sentada ao balcão do Controle de Operações no Boulevard King Saul.

— Que deseja? — perguntou ela.

— Identificação por voz. — Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Recorrendo a termos hebraicos que nenhum ouvinte poderia compreender, Gabriel confiou concisamente à moça os meios técnicos com que captara e gravara a voz do sujeito.

— Passe por favor a gravação.

Gabriel pressionou o botão PLAY e levou o gravador ao bocal do receptor.

Voz masculina, francês perfeito.

"Sou eu. Dá-me uma apitadela quando puderes. Não é nada de urgente. Gao."

Baixou o gravador e colou o receptor ao ouvido.

— Não temos nada compatível em arquivo — disse a mulher.

— Compare-a com a impressão vocal não identificada 698/D. — A aguardar. — Depois um momento mais tarde: — Combina.

— Preciso identificar um número telefônico.

Gabriel localizou a segunda intercepção, pressionou PLAY e tornou a levar o gravador até o telefone. Ouvia-se a Mimi Ferrere a fazer uma chamada internacional do telefone do seu escritório. Quando o último número foi marcado, Gabriel pressionou PAUSE.

A mulher na outra extremidade da linha recitou o número: 00 33 54 67 98. Gabriel sabia que o 33 era o código da França e que o 91 era o código para a cidade de Marselha. — Faça a ligação — disse ele.

— Um momento.

Passados dois minutos, a mulher disse:

O telefone está registrado em nome de um Monsieur Paul Véran, Boulevard St-Rémy, Marselha.

— Preciso de outra identificação vocal.

— Qualidade?

— Igual à anterior.

— Passe a gravação.

Gabriel tornou a pressionar o PLAY, mas dessa vez a voz foi abafada pelo som de um aviso de segurança, em alemão, gritando do altifalante acima da sua cabeça: Achtung! Achtung! Terminado o aviso, tornou a premir PLAY. Dessa vez a voz, feminina, era claramente audível.

"Sou eu. Onde estás? Telefona-me quando puderes. Adoro-te."

STOP.

— Nada de compatível em arquivo.

— Compare com a impressão vocal não identificada 572/B.

— A aguardar. — E depois: — Combina.

— Aponte, por favor, que o sujeito dá pelo nome de Mimi Ferrere. A morada dela é Rua Brasil 24, apartamento 6A, Cairo.

Acrescentei-a ao arquivo. Tempo decorrido nesta chamada: .32 minutos. Mais alguma coisa?

— Preciso que me envie uma mensagem ao Ezekiel.

Ezekiel era o código telefônico para o departamento de Operações.

— A mensagem é?

— O nosso amigo está a passar algum tempo em Marselha, no endereço que me deu.

— Número 56 Boulevard St-Rémy?

— Exatamente — disse Gabriel. — Preciso de instruções do Ezekiel para continuar.

— Estás a telefonar do aeroporto de Frankfurt?

— Sim.

— Vou desligar. Vá para outro lugar e torne a ligar daqui a cinco minutos. Terei então instruções para si.

Gabriel desligou. Dirigiu-se a um quiosque de jornais, onde comprou uma revista alemã, e percorreu depois uma curta distância no terminal até junto de outro grupo de telefones. O mesmo número, a mesma conversa, a mesma moça em

Tel Aviv.

— Ezekiel quer que vá a Roma.

— Roma? Por que Roma?

— Bem sabe que não sei responder.

Não interessava. Gabriel sabia a resposta.

— Para onde devo ir?

— O apartamento perto da Piazza di Spagna. Conhece-o? Conhecia. Era um encantador apartamento de segurança ao alto da Escadaria Espanhola, não muito longe da Igreja da Trinta dei Monti. — Há um voo de Frankfurt para Roma dentro de duas horas. Vamos reservar-lhe um lugar.

— Quer o meu número de passageiro frequente?

— O quê?

— Deixe lá.

— Boa viagem — disse a moça, e a chamada desligou-se.


PARTE TRÊS


A Gare de Lyon


CAPÍTULO 15

MARSELHA

 

 

Pela segunda vez em dez dias, Paul Martineau fez a viagem de Aix-en-Provence para Marselha. Tornou a entrar no café da pequena rua ao fundo da Rue des Convalescents e subiu as escadas estreitas até o apartamento do primeiro andar, onde de novo foi saudado no patamar por uma figura encapuzada que falou com ele em árabe em voz baixa. Sentaram-se, encostados a almofadas de seda, no chão da minúscula sala de estar. O homem introduziu lentamente haxixe no cachimbo de água e levou um fósforo aceso ao fornilho. Em Marselha, era conhecido como Hakim el-Bakri, um imigrante recente da Argélia. Martineau conhecia-o por outro nome, Abu Saddiq. Martineau não o tratava por esse nome, como Abu Saddiq não tratava Martineau pelo nome que lhe fora dado pelo seu verdadeiro pai.

Abu Saddiq sugou longamente a boquilha do cachimbo, inclinando-o em seguida na direção de Martineau. Martineau puxou longamente o haxixe e deixou que o fumo lhe subisse às narinas. Depois acabou o seu café. Uma mulher de véu levou-lhe a xícara vazia e ofereceu-lhe outra. Quando Martineau sacudiu a cabeça, a mulher saiu silenciosamente do quarto.

Fechou os olhos enquanto uma onda de prazer se lhe abatia sobre o corpo. O estilo árabe, pensou: um pouco de fumo, uma xícara de café doce, a subserviência de uma mulher que conhecia o seu lugar na vida. Embora tivesse sido criado como verdadeiro francês, era sangue árabe que lhe corria nas veias e o árabe que ele sentia mais confortável na língua. A linguagem do poeta, a linguagem da conquista e do sofrimento. Havia alturas em que a separação do seu povo era quase demasiado dolorosa para suportar. Na Provença, ele estava rodeado por 164 pessoas como ele, e, no entanto, não lhes podia tocar. Era como se ele tivesse sido condenado a vaguear entre eles, como um espírito amaldiçoado vagueia entre os vivos. Apenas ali, no minúsculo apartamento de Abu Saddiq, podia transformar-se no homem que verdadeiramente era. Abu Saddiq compreendia isso, razão por que parecia não ter pressa de chegar ao assunto. Enfiou mais haxixe no cachimbo de água e acendeu outro fósforo.

Martineau deu outra passa no cachimbo, desta vez mais profundamente do que a anterior, e susteve o fumo até lhe parecer que os pulmões iam rebentar. Sentia agora a mente a flutuar. Viu a Palestina, não com os seus olhos, mas como lhe fora descrita por aqueles que a tinham de fato visto. Martineau, à semelhança do pai, nunca lá colocara um pé. Os limoeiros e olivais: foi isso que imaginou. Fontes frescas e cabras subindo as colinas castanhas do Galileu. Um pouco como a Provença, pensou ele, antes da chegada dos Gregos. A imagem desintegrou-se, e deu por si a vaguear por uma paisagem de ruínas celtas e romanas. Chegou a uma aldeia, uma aldeia na planície costeira da Palestina. Beit Sayeed, como lhe chamavam. Agora nada mais restava do que uma pegada no solo empoeirado. Na sua alucinação, Martineau caiu de joelhos e arranhou a omoplata na terra. Nada lhe restituía, nem ferramentas nem cerâmicas, nem moedas nem restos humanos. Era como se o povo se tivesse simplesmente desvanecido.

Obrigou-se a abrir os olhos. A visão dissipou-se. A sua missão iria em breve acabar. Os assassinatos do pai e do avô seriam vingados, o seu direito inalienável cumprido. Martineau estava confiante de que não iria passar os seus últimos dias como um francês da Provença, mas como um árabe na Palestina. O seu povo, perdido e espalhado, seria devolvido à terra, e Beit Sayeed tornaria a erguer-se do túmulo. Os dias dos judeus estavam contados. Haveriam de partir, como todos aqueles que tinham chegado à Palestina antes deles: os Gregos e os Romanos, os Persas e os Assírios, os Turcos e os Ingleses. Martineau estava convencido de que um dia, em breve, andaria à procura de artefatos entre as ruínas de um assentamento judaico.

Abu Saddiq estava a puxar-lhe a manga da camisa e a chamá-lo pelo seu verdadeiro nome. Martineau virou lentamente a cabeça e fitou Abu Saddiq com um olhar de pálpebras pesadas.

— Sou Martineau — disse ele em francês. — Paul Martineau. Doutor Paul Martineau.

— Estiveste longe por um momento.

— Estive na Palestina — murmurou Martineau, de fala arrastada pela droga. — Em Beit Sayeed.

— Não tarda a que estejamos todos lá — disse Abu Saddiq.

Martineau lançou-lhe um sorriso — não de arrogância, mas de silenciosa confiança. Buenos Aires, Istambul, Roma: três atentados, cada um deles planejado e executado sem falhas. As equipes tinham colocado os explosivos no alvo e desaparecido sem deixar rasto. Durante cada uma das operações, Martineau escondera-se com trabalho arqueológico e operara através de um intermediário. Abu Saddiq estava a tratar da operação de Paris. Martineau concebera-a e planejara-a; a partir do seu café no Quartier Belsunce, Abu Saddiq movia as peças de xadrez ao comando de Martineau. Quando estivesse terminado, Abu Saddiq sofreria o mesmo destino de todos aqueles que Martineau usara. Aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca permitiria ser desmascarado por um traidor árabe.

Abu Saddiq estendeu o cachimbo a Martineau, que ergueu a mão num gesto de rendição. Depois, com um lento aceno da cabeça, instruiu Abu Saddiq para continuar com a reunião final. Durante a meia hora seguinte, Martineau permaneceu em silêncio, enquanto Abu Saddiq falava: a localização das equipes, as moradas em Paris onde as bombas-mala estavam a ser montadas, o estado emocional dos três shaheeds. Abu Saddiq parou de falar enquanto a mulher velada lhes servia mais café. Quando ela tornou a sair, Abu Saddiq referiu que o último membro da equipe iria chegar a Marselha dentro de dois dias.

— Ela quer ver-te — disse Abu Saddiq. -Antes da operação. Martineau sacudiu a cabeça. Conhecia a moça — tinham sido amantes — , e sabia porque é que ela o queria ver. Era melhor do que agora não passassem tempo juntos. De outro modo, Martineau poderia ter segundas intenções acerca daquilo que planejara para ela.

— Mantemo-nos com o plano original — disse ele. — Onde é que me encontro com ela?

— O café da Internet no porto. Conhece-o?

Martineau conhecia.

Ela vai lá estar às 12.30 horas.

Nesse instante, do minarete de uma mesquita ao alto da rua, o muegin convocou os fiéis para a oração. Martineau fechou os olhos enquanto era banhado pelas palavras familiares.

Deus é maior. Testemunho que não existe nenhum deus além de Deus.

Testemunho que Maomé é o Profeta de Deus. Venham à oração. Venham ao êxito. Deus é maior. Não há nenhum deus além de Deus.

Uma vez terminada a chamada à oração, Martineau levantou-se e preparou-se para partir.

— Onde está o Hadawi? — perguntou.

— Em Zurique.

— É um fardo, não achas? Abu Saddiq assentiu.

— Mando-o para outro lugar? — Não — disse Martineau. — Mata-o.

Quando chegou à Place de la Préfecture, Martineau sentia-se de cabeça desanuviada. Como eram diferentes as coisas deste lado de Marselha, pensou. As ruas eram mais limpas, as lojas mais abundantes. Martineau, o arqueólogo, não conseguia evitar refletir sobre a natureza dos dois mundos que existiam lado a lado nesta antiga cidade. Um centrava-se na devoção, o outro no consumo. Um tinha muitos filhos, o outro considerava as crianças como um fardo financeiro. Martineau sabia que os Franceses não tardariam a ser uma minoria no seu próprio país, colonos na sua própria terra. Algures em breve, um século, talvez um pouco mais, a França seria um país muçulmano.

Virou para o Boulevard St-Rémy. Bordejada de árvores e dividida ao meio por um estacionamento a pagar, a rua subia ligeiramente num ângulo em direção a um pequeno parque verde com uma vista sobre o velho porto. Os edifícios de ambos os lados eram de majestosa pedra cinza e uniformes em altura. As janelas do piso térreo eram cobertas por barras de ferro. Muitos dos edifícios continham escritórios — advogados, médicos, agentes imobiliários — e mais ao alto da rua havia dois bancos e uma enorme loja artigos de decoração. Ao fundo da rua, na extremidade da Place de la Préfecture, havia um par de quiosques em frente um do outro: um vendia jornais, e o outro, sanduíches. Durante o dia havia um pequeno mercado na rua, mas agora ao crepúsculo os vendedores tinham guardado o queijo e os legumes frescos e ido para casa.

O edifício do número 56 era apenas residencial. O hall estava limpo e a escadaria era ampla, com um corrimão de madeira e uma passadeira nova. O apartamento estava vazio, com exceção de um único sofá branco e um telefone no chão. Martineau dobrou-se, levantou o receptor e marcou um número. Um atendedor de chamadas, como esperara.

— Estou em Marselha. Telefona-me quando puderes.

Desligou, depois sentou-se no sofá. Sentia a pressão da arma contra os rins. Inclinou-se para a frente e tirou-a do cós da calça. A Stechkin de nove milímetros — a arma do seu pai. Por muitos anos após a morte do pai em Paris, a arma ficara a acumular pó num depósito da Polícia, como prova de um julgamento que nunca viria a ocorrer. Um agente do serviço secreto franceses levara clandestinamente a arma para Túnis em 1985 e oferecera-a a Arafat. Arafat tinha-a dado a Martineau.

O telefone tocou. Martineau respondeu.

— Monsieur Véran?

— Mimi, meu amor — respondeu Martineau. — Que bom ouvir a tua voz.

CAPÍTULO 16

ROMA

 

 

O telefone acordou-o. Como os telefones do apartamento de segurança, não tinha campainha, apenas uma luz pulsante, luminosa com um marcador de canal, que transformou as suas pálpebras em vermelho. Estendeu a mão e levou o receptor ao ouvido.

— Acorda — disse Shimon Pazner.

— Que horas são?

— Oito e meia.

Gabriel tinha dormido 12 horas.

— Veste-te. Há uma coisa que tens de ver, já que estás na cidade.

— Analisei as fotografias, li todos os relatórios. Não preciso ver nada.

— Precisa, sim.

— Por quê?

— Porque vai te chatear.

— E que bem isso fará?

— Às vezes precisamos que nos chateiem — disse Pazner. Encontro-me contigo na escadaria da Galleria Borghese dentro de uma hora. Não me deixes feito parvo à tua espera.

Pazner desligou. Gabriel levantou-se da cama e deixou-se ficar debaixo do chuveiro durante muito tempo, equacionando se deveria fazer a barba. Por fim, acabou por se decidir a apará-la. Vestiu um dos ternos escuros de Herr Klemp e dirigiu-se à Via Veneto para tomar café. Uma hora depois de ter desligado a chamada de Pazner seguia por um caminho de cascalho sombreado em direção à escadaria da galeria. O katsa de Roma estava sentado num banco de mármore no pátio anterior, a fumar um cigarro.

— Bela barba — disse Pazner. — Céus, estás com um aspecto terrível.

— Precisava de uma desculpa para ficar no meu quarto de hotel no Cairo.

— Como é que o conseguiste?

Gabriel contou-lhe. Um produto farmacêutico vulgar que, quando ingerido e não devidamente administrado, tinha um efeito desastroso, embora temporário, no trato digestivo.

— Quantas doses tomaste?

— Três.

— Pobre coitado.

Atravessaram os jardins no sentido norte: Pazner como um homem a marchar ao som de um tambor que só ele ouvia, e Gabriel a seu lado, exausto por força de excesso de viagens e de preocupações. No perímetro do parque, perto dos jardins botânicos, situava-se a abertura para o beco sem saída. Durante dias depois do atentado, a imprensa mundial mantivera-se acampada no cruzamento. O chão continuava pejado de pontas de cigarros e de copos de plástico esmagados. Aos olhos de Gabriel era como um pedaço de terra arável depois do festival anual das colheitas.

Entraram numa rua e desceram o declive da encosta até chegarem a uma barricada de aço temporária, controlada pela Polícia italiana e pelos seguranças israelenses. Pazner foi imediatamente admitido, bem como o seu conhecido, um alemão de barba.

Uma vez atrás da cerca puderam ver os primeiros sinais de danos: o pinheiro queimado sem as suas agulhas; as janelas partidas das villas vizinhas; os pedaços de destroços retorcidos espalhados por toda a parte como papel amachucado no lixo. Mais alguns passos e a cratera da bomba surgiu à vista, com pelo menos três metros de profundidade e rodeada por um halo de pavimento queimado. Pouco restava dos edifícios mais próximos do ponto de impacto; mais no interior do complexo, as estruturas permaneciam de pé, mas os lados de frente para a explosão tinham sido arrancados, por isso o efeito parecia o de uma casa de bonecas. Gabriel lançou um olhar ao escritório intato, onde as fotografias emolduradas continuavam sobre a secretária, e à casa de banho, com uma toalha ainda pendurada no varão. O ar estava pesado devido ao cheiro de cinza e àquilo que Gabriel temia ser o cheiro persistente de carne queimada. Vindo das profundezas do complexo chegou-lhe o arranhar e o rugir das escavadoras e dos bulldozers. A cena do crime, como o cadáver de uma vítima de homicídio, tinha dado as suas pistas finais. Agora era a altura do enterro.

Gabriel ficou mais tempo do que julgara que ficaria. Nenhuma ferida passada, real ou imaginada, nenhuma ofensa ou disputa política justificava um ato de homicídio àquela escala. Pazner tinha razão: o simples fato de ver a cena provocava em si uma fúria imensa. Mas havia outra coisa, outra coisa além da fúria. Enchia-o de ódio. Virou-se e começou a subir a colina. Pazner seguiu-o em silêncio.

— Quem te disse para me trazeres aqui?

— Foi ideia minha.

— Quem?

— O velho — disse Pazner em voz baixa. — Por quê?

— Não sei por quê. Gabriel deteve-se.

— Porquê, Shimon?

— O Varash reuniu ontem depois de teres chegado a Frankfurt. Volta para o apartamento de segurança. Espera aí por mais instruções. Em breve, alguém entrará em contato contigo.

E com essas palavras Pazner atravessou a rua e desapareceu na Villa Borghese. Mas ele não regressou ao apartamento de segurança. Em vez disso, encaminhou-se na direção oposta, para os bairros residenciais do Norte de Roma. Encontrou a Via Trieste e seguiu-a para oeste, até chegar, passados dez minutos, a uma praça pequena e confusa chamada Piazza Annibaliano.

Pouco se alterara naquela praça durante os 30 anos passados desde que Gabriel a vira pela primeira vez: o mesmo grupo de árvores melancólicas ao centro da praça, as mesmas lojas sombrias que forneciam clientes de classe baixa. E na extremidade norte, enfiado entre duas ruas, encontrava-se o mesmo prédio, com o formato de uma fatia de tarte, com a ponta para a praça e o Bar Trieste no piso térreo. Zwaiter costumava parar no bar para usar o telefone antes de subir as escadas até o seu quarto.

Gabriel atravessou a praça, abrindo caminho através dos carros e das motas perigosamente estacionadas no centro, e entrou no edifício pela soleira marcada "Entrada C". O hall estava frio e escuro. As luzes, lembrou-se Gabriel, funcionavam com um temporizador para poupar eletricidade. A vigilância do edifício tinha notado que os residentes, incluindo Zawiter, raramente se incomodavam a ligá-los — um fato que demonstraria ser uma vantagem operacional para Gabriel, porque lhe assegurara virtualmente o benefício de trabalhar no escuro. Nesse momento, parou diante do elevador, ao lado do qual havia um espelho. A vigilância tinha-se esquecido de o mencionar. Naquela noite, ao ver o seu reflexo no espelho, Gabriel quase pegara na Beretta e disparara. Em vez disso, enfiou a mão no bolso do casaco para procurar uma moeda e estava a estendê-la em direção à ranhura de pagamento no elevador quando Zwaiter, que usava um casaco simples e segurava um saco de papel contendo uma garrafa de vinho de figo, entrou pela última vez na Entrada C.

"Desculpe, mas não é o Wadal Zwaiter?"

"Não! Por favor, não!"

Gabriel deixara que a moeda lhe caísse da ponta dos dedos. Antes de chegar ao chão, sacara da Beretta e disparara os seus dois primeiros tiros. Um dos cartuchos despedaçou o saco de papel antes de atingir Zwaiter no peito. Vinho e sangue misturaram-se aos pés de Gabriel enquanto ele continuava a disparar para o corpo em queda do palestino.

Nesse momento, olhou para o espelho e viu-se como fora naquela noite, um rapaz anjo com um blusão de couro, um artista que não fazia ideia de como o ato que estava a cometer iria alterar para sempre o curso da sua vida. Transformara-se noutra pessoa. E outra pessoa permanecera então. Shamron não lhe tinha dito que isso ia acontecer. Ensinara-o a sacar de uma arma e a disparar num segundo, mas nada fizera para o preparar para o que ia acontecer a seguir. Defrontar-se com um terrorista nos termos do outro, no seu campo de batalha, exige um preço terrível. Altera os homens que o fazem, bem como a sociedade que os envia.

É a derradeira arma do terrorista. Para

Gabriel, as alterações também eram visíveis. Na altura em que entrara a cambalear em Paris para a sua missão seguinte, já tinha as têmporas grisalhas.

Tornou a olhar para o espelho e viu a figura de barba do Herr Klemp a retribuir-lhe o olhar. Na sua mente dispararam imagens do caso: uma embaixada arrasada, o seu próprio dossiê, Khaled... Teria Shamron razão? Estaria Khaled a enviar uma mensagem? Teria Khaled escolhido Roma devido ao que Gabriel fizera 30 anos antes naquele mesmo lugar?

Ouviu o suave arrastar de passos atrás de si: uma mulher velha, envergando o negro da viuvez, a segurar um saco plástico com mercearias. Olhou diretamente para ele. Por um instante, receou que ela de algum modo se lembrasse dele. Gabriel desejou-lhe uma boa manhã e tornou a sair para a praça inundada de luz. Sentia-se subitamente febril. Caminhou durante algum tempo pela Via Trieste, depois fez sinal a um táxi e pediu ao motorista que o levasse à Praça de Espanha. Ao entrar no apartamento de segurança, viu uma cópia do La Repubblica daquela manhã no chão do hall da entrada. Na página seis encontrava-se um anúncio grande de um carro desportivo italiano. Gabriel olhou atentamente para o anúncio e viu que ele tinha sido cortado de uma outra edição do jornal e colado sobre a página correspondente. Rasgou as extremidades da página e descobriu, escondida entre duas páginas, uma folha de papel contendo o texto codificado da mensagem. Depois de a ter lido, queimou-a no lava-louças e tornou a sair. Adquiriu uma mala de viagem nova na Via Condotti e passou a hora seguinte a comprar a roupa adequada ao seu destino seguinte. Regressou a um apartamento de segurança durante o tempo suficiente para encher o seu novo saco, depois foi almoçar no Nino, na Via Borgognona. Às duas da tarde, apanhou um táxi para o aeroporto Fiumicino, e às cinco e meia embarcou num voo para a Sardenha. Enquanto o avião de Gabriel ganhava velocidade na pista de descolagem, Amira Assaf surgia ao portão da frente da Clínica Stratford e mostrava o cartão identificativo ao guarda de segurança, que o examinou cuidadosamente, fazendo depois sinal para avançar. Ela fez girar o manipulo da mota e desceu, acelerada, os metros do caminho de cascalho em direção à mansão. O Dr. Avery estava a sair para a noite, acelerando em direção ao portão no seu grande Jaguar prateado. Amira tocou a buzina e acenou-lhe, mas ele ignorou-a e passou por ela inundando-a num chuveiro de pó e cascalho.

O estacionamento para o pessoal situava-se no pátio dos fundos. Ela colocou a mota no descanso, retirou a mochila do compartimento do assento e deixou o capacete no seu lugar. Duas moças iam a sair do serviço. Amira deu-lhes as boas noites, e utilizou em seguida o seu cartão para abrir a entrada de segurança do pessoal. O relógio de ponto estava montado na parede do hall. Encontrou o cartão, na terceira ranhura do fundo, e picou-o: 17h56. O vestiário ficava a alguns passos do início do corredor. Amira entrou e vestiu o uniforme: calças brancas, sapatos brancos e uma bata cor de pêssego que o Dr. Avery acreditava ser calmante para os doentes. Passados cinco minutos apresentou-se ao serviço na janela da enfermeira-chefe. Ginger Hall, uma loira oxigenada de lábios escarlate, olhou para cima e sorriu.

— Novo penteado, Amira? Muito bonito. Céus, o que eu não faria para ter um cabelo forte e negro como o teu.

— Podes ficar com ele, bem como com a pele morena, os olhos negros e todas as outras coisas que os acompanham.

— Ah, deixa-te disso, querida. Aqui somos todas enfermeiras. Só estamos a fazer o nosso trabalho e a tentar fazer uma vida decente.

— Talvez, mas lá fora as coisas são diferentes. Que tens para mim?

— Lee Martinson. Está no solário. Leva-a para o quarto. Deita-a para a noite. — Aquele tipo grande ainda anda à volta dela?

— O guarda-costas? Ainda. O Dr. Avery acha que ele vai andar por aqui algum tempo.

— Porque é que uma mulher como Miss Martinson precisa de um guarda-costas? — É confidencial, minha querida. Altamente confidencial.

Amira desceu o corredor. Passado um momento, chegou à entrada do solário. Ao entrar, a umidade saudou-a como um cobertor úmido. Miss Martinson estava na sua cadeira de rodas, a olhar para as janelas escurecidas. O guarda-costas, ao ouvir Amira aproximar-se, levantou-se. Era um homem grande e de constituição pesada, de uns vinte anos, com cabelo curto e olhos azuis. Falava com um sotaque inglês, mas Amira duvidava que ele fosse verdadeiramente inglês. Ela baixou o olhar para Miss Martinson.

— Está a ficar tarde, minha querida. Já é hora de subir as escadas e de se preparar para dormir.

Empurrou a cadeira de rodas para fora do solário e ao longo do corredor até os elevadores. O guarda-costas premiu o botão de chamada. Passado um instante entraram no elevador e subiram em silêncio até o quarto dela, no quarto piso. Antes de entrar, Amira deteve-se e olhou para o guarda-costas.

— Vou dar-lhe banho. Porque não espera aqui até eu ter terminado?

— Para onde quer que ela vá, eu vou.

— Nós fazemos isto todas as noites. A pobre mulher merece um pouco de privacidade.

— Para onde quer que ela vá, eu vou — repetiu ele.

Amira sacudiu a cabeça e empurrou Miss Martinson para o seu quarto, seguida do guarda-costas, que avançava em silêncio atrás de si.

CAPÍTULO 17

BOSA, SARDENHA

 

 

Durante dois dias Gabriel esperou que eles estabelecessem contato. O hotel, pequeno e de cor ocre, situava-se no antigo porto junto ao local onde o rio Temo desaguava no mar. O quarto dele ficava no último piso e tinha uma pequena varanda com um corrimão de ferro. Acordava tarde, tomava o pequeno-almoço na sala de jantar e passava as manhãs a ler. Ao almoço, comia massa com peixe num dos restaurantes do porto, e depois ia a pé até a estrada que conduzia à praia, a norte da cidade, e estendia a toalha na areia para dormir mais um pouco. Passados dois dias, a sua aparência melhorara apreciavelmente. Ganhara peso e força, e a pele sob os seus olhos já não tinha um ar castanho amarelado e de icterícia. Até começava a gostar do seu aspecto com barba.

Na terceira manhã, o telefone tocou. Ouviu as instruções sem falar, e depois desligou. Tomou uma ducha e vestiu-se, fez a mala e desceu as escadas para ir almoçar. Depois do almoço pagou a conta, colocou a mala no porta-bagagens do carro que tinha alugado em Cagliari e dirigiu para o norte, ao longo de cerca de 50 quilômetros, até a cidade portuária de Alghero. Deixou o carro na rua onde lhe tinham dito que o deixasse, e atravessou um beco sombrio que ia desembocar em frente ao mar.

Dina estava sentada num café no cais, a beber café. Tinha óculos escuros, sandálias e um vestido sem mangas; o cabelo escuro chegava-lhe até os ombros e brilhava à luz ofuscante refletida pelo mar. Gabriel desceu um lance de escadas de pedra até o cais e entrou num bote de 4,50 metros em cujo casco se lia a palavra Fidelity. Ligou o motor, um Yamaha de 90 cavalos, e soltou as amarras. Dina juntou-se a ele passado um instante e disse-lhe, num francês sofrível, que se dirigisse ao enorme iate branco a motor ancorado a cerca de 800 metros da linha da costa num mar turquesa.

Gabriel levou o bote devagar para fora do porto, e depois, ao chegar a mar aberto, aumentou a velocidade e seguiu oscilando em direção ao iate sobre as vagas suaves. Ao aproximar-se, Rami, de calções de caqui e camisa branca, subiu para a popa. Desceu para o degrau das escadas de mergulho e estava aí à espera, de mão estendida, enquanto Gabriel se ia aproximando.

Quando entraram, o salão principal parecia uma subestação do quartel-general da equipe na cave Boulevard King Saul. Das paredes pendiam mapas em larga escala e fotografias aéreas, e o eletrônico de bordo fora acrescido do tipo de técnico de comunicações que Gabriel não via desde o assassinato de Abu Jihad. Yaakov ergueu o olhar de um dos monitores do terminal e estendeu a mão. Shamron estava sentado a uma mesa na pequena cozinha do iate, usando calças caqui e uma camisa branca de manga curta. Puxou os óculos graduados para a testa e estudou Gabriel como se ele fosse um documento ou outro mapa. — Bem-vindo ao Fidelity — disse ele — , uma combinação de posto de comando e apartamento de segurança. — Onde é que o arranjou?

— É de um amigo do Escritório. Por acaso, estava em Cannes. Nós o levamos para o mar e acrescentamos o adicional de que precisávamos para nossa viagem. Também mudamos o nome.

— Quem o escolheu?

— Eu — disse Shamron. — Significa lealdade e fidelidade.

— ... e uma devoção ao dever ou aos nossos votos ou obrigações - disse Gabriel. - Eu sei o que significa. Também sei por que o escolheu... pelo mesmo motivo pelo qual disse a Shimon Pazner para me levar às ruínas da embaixada.

— Achei importante que visse. Por vezes, quando alguém se encontra no meio de uma operação como esta, o inimigo pode tornar-se um pouco como uma abstração. É fácil esquecer a sua verdadeira natureza. Achei que precisasse avivar sua memória.

— Faço isto há muito tempo, Ari. Conheço a natureza do meu inimigo e sei o que significa ser leal. — Gabriel sentou-se à mesa, em frente a Shamron. — Ouvi dizer que o Varash se reuniu depois de eu ter saído do Cairo. Imagino que a decisão deles seja mais do que óbvia.

— Khaled foi julgado — disse Shamron — , e o Varash expressou o seu veredicto. Gabriel executara as sentenças desses processos, mas na verdade nunca presenciara um. Eram uma espécie de julgamento, mas pesavam muito a favor da acusação e eram conduzidos sob circunstâncias tão secretas que os acusados nem sequer sabiam da sua existência. Os réus não tinham advogados nessa sala de tribunal; os seus destinos não eram decididos por um júri dos seus pares, mas sim pelos seus inimigos mortais. A prova de culpa era indiscutível. Nunca eram apresentadas provas abonatórias. Não havia transcrições nem qualquer forma de apelo. Apenas uma sentença era possível, e ela era irrevogável.

— Já que eu sou o agente de investigação, importas-te que te dê uma opinião acerca do caso?

— Se tiveres de o fazer.

— O caso contra o Khaled é totalmente circunstancial, e tênue, no mínimo. — O rasto de provas é claro — disse Shamron. — E começamos a seguir esse rasto baseados na informação que nos foi dada por uma fonte palestina.

— É isso que me preocupa. Yaakov juntou-se a eles à mesa.

— Mahmoud Arwish é há vários anos um dos nossos ativos de topo no seio da Autoridade palestina. Tudo que ele nos disse mostrou estar certo. — Mas nem Arwish está certo de que o homem naquela fotografia é o Khaled. O caso é um castelo de cartas. Se se descobrir que uma das cartas não é a verdadeira, então todo o caso vai ao ar... e acabamos com um homem morto numa rua francesa. — A única coisa que sabemos a respeito da aparência do Khaled é que foi dito que ele tinha uma semelhança espantosa com o seu avô disse Shamron. — Eu sou a única pessoa nesta sala que viu o xeque de frente, e vi-o em circunstâncias impossíveis de esquecer. — Shamron levantou a fotografia para os outros verem. — O homem nesta fotografia podia ser irmão gémeo do Sheikh Asad.

— Isso ainda não prova que ele seja o Khaled. Estamos a falar de matar um homem.

Shamron virou a fotografia diretamente para Gabriel.

— Reconheces que se este homem entrar no prédio 56 da Boulevard St-Rémy tudo indica que ele será Khaled al-Khalifa?

— Reconheço que sim.

— Por isso, vamos pôr o edifício sob vigilância. E aguardamos. Esperemos que ele apareça antes do próximo massacre. Se o fizer, obtemos a fotografia dele a entrar no prédio. Se os nossos especialistas tiverem a certeza de que ele é o mesmo homem, pomo-lo fora de combate. — Shamron cruzou os braços em frente do peito. — Claro que há outro método de identificação... o mesma que utilizamos durante a operação Ira de Deus.

Passou uma imagem pela memória de Gabriel. "Desculpe, mas não é Wadal Zwaiter?" "Não! Por favor, não!"

— É preciso que um cliente seja muito calmo para não responder ao seu nome verdadeiro numa situação como esta — disse Shamron.

— E um ainda mais calmo para não procurar a arma quando confrontado com um homem prestes a matá-lo. De ambas as formas, se for mesmo o Khaled, irá identificar-se, e tu ficarás descansado quando premires o gatilho.

Shamron empurrou os óculos para a testa.

— Quero o Fidelity em Marselha ao cair da noite. Vais estar a bordo? — Vamos usar o modelo da Ira de Deus — Começou Shamron. — Aleph, Eet, Ayin, Qoph. Tem duas vantagens. É familiar e funciona.

Gabriel anuiu.

Por necessidade, fizemos algumas alterações menores e combinamos algumas espécies de papéis, mas assim que a operação for iniciada, vai parecer igual. Sim, claro que vais ser o Aleph, o homem da arma. As equipes Ayin, os vigilantes, já estão em posição.

Se o Khaled chegar ao apartamento, dois dos vigilantes mudarão para o papel de Bet e cobrirão a tua rota de escape.

— E o Yaakov?

— Vocês dois parecem ter estabelecido uma espécie de empatia. Yaakov será o teu líder de equipe adjunto. Na noite do golpe, se tivermos sorte, será o teu motorista.

— E a Dina?

— Qoph — disse Shamron. — Comunicações. Irá manter-se em contato com Boulevard King Saul para a identificação do alvo. Também irá servir como bat leveyha do Yaakov.

Tu ficarás escondido no barco até o golpe. Quando o Khaled tiver sido abatido, toda a gente deixa a cidade por vias separadas e fará o seu caminho para fora do país. Tu e o Yaakov viajarão até Genebra e voarão para casa a partir daí. A Dina levará o barco para fora do porto. Assim que estiver em mar aberto, colocaremos uma equipe a bordo e o traremos para casa.

Shamron desenrolou um mapa do centro de Marselha em cima da mesa.

— Foi-te reservada uma posição aqui — bateu no mapa com o dedo gorducho — no lado oriental do antigo porto, ao longo do Quai de Rive-Neuve. O Boulevard St-Rémy fica aqui — outra batida — , a seis ruas para este. Vai da Place de la Préfecture para sul, até o jardim Pierre Puget.

Shamron colocou uma fotografia de satélite da rua por cima do mapa.

— Para te dizer a verdade, é uma rua perfeita para nós operarmos. O número 56 fica localizado aqui, do lado oriental da rua. Só tem uma entrada, o que significa que não deixaremos de ver Khaled se ele entrar. Como se pode ver pela fotografia, a rua é movimentada... muito trânsito, pessoas nos passeios, lojas e escritórios.

A entrada para o número 56 é visível desta grande esplanada em frente ao Palácio da Justiça. O parque contém uma colônia de sem-abrigo. Temos agora lá um par de vigilantes.

Shamron ajustou o ângulo da fotografia.

— Mas o melhor de tudo é o estacionamento a pagar no centro. Esse espaço está agora ocupado por um carro alugado por um dos vigilantes. Temos mais cinco carros. Neste momento, estão todos a ser equipados com câmeras em miniatura de alta resolução. As camaras transmitem as suas imagens através de sinais sem fios codificados. Tu tens o único descodificador.

Shamron fez um sinal com a cabeça a Yaakov, que premiu um botão. Uma enorme tela ergueu-se lentamente do console.

— Vais ficar aqui de vigia à entrada — disse Shamron. — Os vigilantes irão fazer rodar os carros a intervalos regulares para o caso do Khaled ou um dos seus homens ficar de olho no estacionamento. Eles já organizaram o tempo, por isso quando um carro sair, o carro seguinte irá ocupar o mesmo lugar.

— Engenhoso — murmurou Gabriel.

— Na verdade, foi sugestão do Yaakov. Ele fez este tipo de coisas em lugares onde é mais difícil esconder as equipes de vigilância.

— Shamron acendeu um cigarro. — Mostra-lhe o programa de computador. Yaakov sentou-se em frente do computador portátil e teclou um comando. Surgiu na tela uma animação visual do Boulevard St-Rémy e arredores.

— Como eles conhecem o teu rosto, não podes sair do barco até a noite do golpe. Isso significa que não te podes familiarizar com a vizinhança. Mas, pelo menos, podes fazê-lo aqui. O departamento técnico criou isto para que possas percorrer o Boulevard St— Rémy a partir daqui, do salão do Fidelity.

— Não é a mesma coisa.

Tens razão — disse Shamron — , mas tem de servir. Mergulhou num silêncio contemplativo. — Então que acontece quando vires um homem árabe, na casa dos trinta, a entrar no prédio do número 56? — Deixou que a questão ficasse no ar por um momento, e depois respondeu-lhe: — Tu e a Dina determinarão se poderá ser ele. Se o fizerem, enviarás uma imagem Boulevard King Saul através de uma ligação segura. Depois transmitirás o vídeo. Se ficarmos satisfeitos, daremos ordem para continuar. Você e Yaakov deixarão o Fidelity e seguirão para a Place de la Préfecture de mota. Claro que é o Yaakov que conduz. Encontrarás um lugar para esperar. Poderão estacionar na praça ou tomar uma cerveja num café da calçada. Se ele ficar durante algum tempo, terão de se deslocar. É uma parte movimentada da cidade, que fica acordada até tarde. Vocês são os dois operacionais experientes. Sabem o que fazer. Quando a Dina vir o Khaled a sair por aquela porta, irá avisar-te por rádio. Precisas de estar de regresso ao Boulevard St-Rémy em não mais de 30 segundos. Shamron apagou lentamente o cigarro. — Não me interessa que seja em plena luz do dia — disse ele, por fim. — Não me interessa que ele esteja com um amigo. Não me interessa que o ato seja testemunhado por uma multidão de pessoas. Quando o Khaled al-Khalifa sair do edifício de apartamentos, quero que des cabo dele e acabes com isso.

— A rota de fuga?

— Subir o Boulevard Notre-Dame, acima da Avenue do Prado. Dirige-te para leste a alta velocidade. O Ayin deixará um carro para ti no estacionamento do Velódromo. Depois põe-te em Genebra o mais depressa possível. Instalamos-te lá num apartamento e mudamos-te quando for seguro.

— Quando é que partimos da Sardenha?

— Agora — disse Shamron. — Dirige-te para norte, em direção à Córsega. No canto sudoeste da ilha fica o porto de Propriano. Oferry de Marselha parte daí. Pode se esconder no Mediterrâneo. São nove horas desde Propriano. Esgueire-se para o porto depois de escurecer e registre-se na capitania. Depois faça contato com os vigilantes e estabeleça a ligação com uma câmera de vigilância.

— E tu?

— A última coisa de que precisas em Marselha é de um velho a espreitar-te por cima do ombro. O Rami e eu vamos deixar-te aqui. Amanhã à noite estaremos de regresso a Tel Aviv.

Gabriel pegou na fotografia por satélite do Boulevard St-Rémy e estudou-a atentamente.

— Aleph, Bet, Ayin, Qoph — disse Shamron. — Será mesmo como nos velhos tempos. — Sim — replicou Gabriel. — Que raio poderia correr mal?

Yaakov e Dina esperaram a bordo da Fidelity enquanto Gabriel levava Shamron e Rami para a costa. Rami saltou para o cais e equilibrou o bote enquanto Shamron deslizava lentamente para o exterior.

— Isto é o fim — disse Gabriel. — A última vez. Depois disso, está terminado. — Para ambos, receio eu — disse Shamron. — Vais regressar a casa, vamos envelhecer juntos.

— Já somos velhos. Shamron encolheu os ombros.

— Mas não demasiado velho para uma última batalha.

— Veremos.

— Se tiveres a oportunidade de disparar, não hesites. Cumpre o teu dever.

— Para com quem?

— Para comigo, é claro.

Gabriel deu a volta com o bote e encaminhou-se para fora do porto. Olhou uma vez por cima do ombro e avistou Shamron, que estava de pé sem se mover no cais com o braço erguido num gesto de despedida. Quando se virou uma segunda vez, o velho tinha desaparecido. O Fidelity já estava a caminho. Gabriel abriu a válvula e seguiu-o.

CAPÍTULO 18

MARSELHA

 

 

Passadas 24 horas da chegada do Fidelity a Marselha, Gabriel tinha começado a odiar a entrada do edifício 56 do Boulevard St-Rémy. Odiava a porta em si. Odiava o trinco e a moldura. Detestava a pedra cinza do edifício e as barras de ferro das janelas ao nível do chão. Ressentia-se de todos aqueles que passavam pelo passeio, em especial dos homens com ar árabe na casa dos 30. No entanto, desprezava sobretudo os outros inquilinos: o cavalheiro distinto num blazer Cardin que exercia advocacia no escritório ao alto da rua; a grande dame de cabelo grisalho com o terrier, que a primeira coisa que fazia logo de manhã era um coco no pavimento; e a mulher chamada Sophie, cuja atividade era fazer compras e lhe lembrava muito a Leah.

Monitorizavam a tela por turnos: uma hora de serviço, duas horas de descanso. Cada um adoptava uma postura única para a vigilância. Yaakov fumava e olhava para a tela com uma expressão ameaçadora, como se, através de uma pura força de vontade, fosse compelir Khaled a aparecer nele. Dina sentava-se no sofá do salão a meditar, de pernas cruzadas, mãos nos joelhos, imóvel com exceção do bater do indicador direito. E Gabriel, que estava habituado a ficar horas de pé diante do objeto da sua devoção, andava lentamente de um lado para o outro à frente da tela, a mão direita no queixo, a mão esquerda a suportar o cotovelo direito, a cabeça inclinada para um lado. Se Francesco Tiepolo, de Veneza, tivesse surgido subitamente a bordo do Fidelity, teria reconhecido a postura de Gabriel, pois era a mesma que adoptava ao contemplar uma pintura para ver se estava terminada.

A alteração dos carros de vigilância proporcionava uma pausa bem-vinda ao tédio da vigilância. O Ayin aperfeiçoara a sequência, de modo 186

a que esta se desenrolasse com a precisão de um bailado. O carro de substituição aproximar-se-ia da entrada do estacionamento vindo de sul. O velho carro fazia marcha-a-ré e afastava-se, depois entrava um novo carro para o seu lugar. Certa vez, os dois Ayin bateram de propósito com os para-choques um no outro e envolveram-se numa convincente gritaria, para proveito de qualquer observador vindo do outro lado. Havia sempre alguns segundos de tensão quando a antiga câmera ficava negra e a nova surgia em linha. Gabriel ordenava quaisquer ajustamentos necessários de ângulo e foco, e depois isso era feito. Embora Gabriel permanecesse prisioneiro do Fidelity, ordenou à Dina e ao Yaakov que se comportassem como turistas vulgares. Fazia turnos duplos e triplos na tela de modo a poderem almoçar num restaurante numa rua lateral ao cais ou dar uma volta de mota pelas redondezas da cidade. Yaakov fez questão de conduzir pela rota de fuga em períodos diferentes do dia para se familiarizarem com os padrões de trânsito. Dina comprava roupa numa das ruas para trabalhadores cheias de lojas ou vestia roupa de banho e bronzeava-se na popa. Seu corpo tinha as marcas do pesadelo na praça Dizengoff, uma grossa cicatriz vermelha do lado direito do ventre, uma comprida cicatriz denteada na coxa direita. Nas ruas de Marselha cobria tudo, mas a bordo do Fidelity não tentava esconder os danos de Gabriel e Yaakov.

À noite, Gabriel ordenou turnos de três horas, de modo a que aqueles que não estivessem de vigia pudessem dormir durante um tempo significativo. Não tardou a arrepender-se dessa decisão, porque três horas pareciam uma eternidade. A rua ficava silenciosa como a morte. Cada figura que surgia na tela parecia cheia de possibilidades. Para aliviar o tédio, Gabriel sussurrava saudações aos agentes Ayin de serviço na esplanada em frente ao Palácio de Justiça — ou acordava o oficial de serviço do departamento de Operações no Boulevard King Saul com o pretexto de que estava a testar a ligação por satélite, só para poder ouvir uma voz vinda de casa.

Era a Dina quem substituía o Gabriel. Logo que ela se sentava numa posição de ioga em frente aa tela, ele regressava à sua cabina para tentar dormir, mas via mentalmente a porta; ou Sabri a andar pelo Boulevard St-Germain com a mão no bolso da amante; ou os árabes de Beit Sayeed a arrastarem-se para o exílio; ou Shamron, na orla costeira da Sardenha, a lembrar-lhe para que fizesse o seu trabalho. E por vezes perguntava-se se ainda possuiria o reservatório de frieza emocional necessária para se aproximar de um homem na rua e lhe encher o corpo de pedaços de metal perfurantes. Nos momentos de auto-obsessão desejava que o Khaled nunca mais pusesse um pé no Boulevard St-Rémy. Imaginava depois as ruínas da embaixada em Roma e recordava-se do cheiro a carne queimada que pairava no ar como os espíritos dos mortos, e conseguia então ver a morte do Khaled, gloriosa e graciosa, expressa com a quietude apaixonada de um Bellini. Ele ia matar o Khaled. Khaled deixara-o sem qualquer escolha, e por isso Gabriel odiava-o.

Na quarta noite, nem sequer dormiu. Às 7h45, levantou-se da cama para se preparar para o seu turno das oito horas. Tomou café na cozinha e olhou para o calendário preso à porta do frigorífico. Amanhã era o aniversário da queda de Beit Sayeed. Hoje era o último dia. Entrou no salão. Yaakov, envolto em fumo de cigarros, estava a olhar para a tela. Gabriel deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe para ir dormir umas horas. Ele permaneceu durante alguns minutos no mesmo lugar, a acabar o café, depois voltou à sua posição normal — mão direita no queixo, mão esquerda a suportar o cotovelo direito — e andou de um lado para o outro no carpete em frente da tela. O advogado saiu do prédio às 8h15. A grande dame saiu dez minutos depois. Seu terrier cagou na câmera de Gabriel. Sophie, a sósia da Leah, foi a última a sair. Deteve-se por um momento em frente da porta para pescar um par de óculos escuros da sua mala antes de, esvoaçante e linda, desaparecer da vista. — Estás com péssimo aspecto — disse Dina. — Tira o resto da noite. O Yaakov e eu faremos o teu turno.

Entardecia, o porto estava silencioso, excepto pelo latejar de technopop francês vindo de outro iate. Bocejando, Gabriel confessou a Dina que dormira pouco, se é que dormira, desde a chegada deles a Marselha. Dina sugeriu que ele tomasse um comprimido.

E se o Khaled chegar enquanto eu estou inconsciente no meu quarto?

— Talvez tenhas razão. — Ela sentou-se de pernas cruzadas no sofá e fixou o olhar na tela da televisão. O pavimento do Boulevard St-Rémy estava ocupado com o trânsito pedestre do fim da tarde. Então por que não consegues dormir? — Precisas mesmo que eu to explique? Ela manteve os olhos fixos na tela. — Por que estás preocupado que ele possa não vir? Por que estás preocupado que não conseguias disparar contra ele? Por que tens medo que sejamos apanhados e presos?

— Não gosto deste trabalho, Dina. Nunca gostei.

— Nenhum de nós gosta. Se gostássemos, eles nos mandariam embora do serviço. Fazemos porque não temos outra escolha. Fazemos porque nos forçam. Diga uma coisa, Gabriel. Que aconteceria se amanhã eles decidissem acabar com os atentados, com os esfaqueamentos e os tiroteios? Haveria paz, certo? Mas eles não querem a paz. Eles querem destruir-nos. A única diferença entre o Hamas e o Hitler é que o Hamas não tem o poder e os meios para executar o extermínio dos Judeus. Mas estão a trabalhar nisso.

— Há uma distinção moral óbvia entre os palestinos e os nazis. Há uma certa justiça na causa do Khaled. Só que os seus meios são aberrantes e imorais.

— Justiça? Khaled e os da sua espécie poderiam ter conseguido a paz vezes sem conta, mas não o querem. A causa dele é destruir-nos. Se acreditas que ele quer paz, estás a iludir-te. — Apontou para a tela.

— Se ele chegar àquela rua, tu tens o direito, na verdade, o dever moral, de te certificares que ele nunca mais sai de lá para matar e mutilar de novo. Tens de o fazer, Gabriel, ou, que Deus me ajude, fá-lo-ei eu por ti. — Farias mesmo isso? Achas mesmo que serias capaz de o matar a sangue-frio, ali na rua? Ser-te-ia assim tão fácil premires o gatilho?

Ela manteve-se em silêncio durante algum tempo, com o olhar fixo na tela tremeluzente da televisão.

O meu pai veio da Ucrânia — disse ela. — De Kiev. Foi o único membro da família que sobreviveu à guerra. Os restantes foram levados para Babi Yar e fuzilados juntamente com os outros 30.000 judeus. Depois da guerra, foi para a Palestina. Adoptou o nome de Sarid, que significa "remanescente". Casou com a minha mãe e tiveram seis filhos, um filho por cada milhão morto no Shoah. Eu fui a última. Chamaram-me Dina: vingada.

O som da música aumentou de súbito, e depois deixou de se ouvir. Quando desapareceu, tudo que restou foi o bater de uma onda contra o casco do iate. Os olhos de Dina semicerraram-se de repente, como se se tivesse lembrando de uma dor física. O seu olhar permaneceu na imagem do Boulevard St-Rémy, mas Gabriel conseguia ver que era a Rua Dizengoff que ocupava os seus pensamentos. — Na manhã de 19 de Outubro de 1994, eu estava na esquina das ruas Dizengoff e Rainha Ester com a minha mãe e duas das minhas irmãs. Quando o ônibus nº5 apareceu, beijei a minha mãe e irmãs e fiquei a vê-las entrar para o ônibus. Quando as portas se abriam, eu vi-o. — Interrompeu-se e virou a cabeça para olhar para Gabriel.

— Ele estava sentado mesmo atrás do condutor, com um saco aos pés. Até olhou para mim. Tinha um rosto doce. Não, pensei eu, não é possível. Não o ônibus nº5 da Rua Dizengoff. Por isso não disse nada. As portas fecharam-se, e o ônibus começou a afastar-se.

Os seus olhos enublaram-se com lágrimas. Cruzou as mãos e colocou-as sobre a cicatriz na perna.

— Então o que tinha este rapaz no saco, este rapaz que eu vi mas de quem nada disse? Tinha uma mina terrestre egípcia, era isso que ele tinha no saco. Tinha 20 quilos de TNT militar e uns rolos ensopados com veneno para os ratos. Viu-se primeiro o relâmpago, seguido do som da explosão. O ônibus ergueu-se alguns metros no ar e estatelou-se na rua. Fui atirada para o chão. Conseguia ver as pessoas aos gritos à minha volta, mas não ouvia nada... aquela onda de impacto tinha-me danificado os tímpanos. Reparei numa perna humana caída na rua junto de mim. Calculei que fosse minha, mas depois vi que ainda tinha as duas pernas. Era a perna de alguém que se encontrava no ônibus. Enquanto a escutava, Gabriel pensou subitamente em Roma; lembrou-se de estar junto a Shimon Pazner e de olhar para os destroços da embaixada. Seria a presença de Dina a bordo do Fidelity casual, perguntou-se ele, ou teria ela sido ali colocada intencionalmente por Shamron como lembrança viva da importância de cumprir o seu dever?

Os primeiros polícias que apareceram no lugar ficaram enjoados por causa do sangue e do fedor a carne queimada. Caíram de joelhos na rua e vomitaram. Enquanto estava ali deitada, à espera que alguém me ajudasse, o sangue começou a pingar em cima de mim. Levantei os olhos e vi sangue e restos de carne pendurados nas folhas dos azederacos. Naquela manhã choveu sangue na Rua Dizengoff. Depois chegaram os rabinos do Hevra Kadisha.

Recolheram à mão os pedaços maiores dos corpos, incluindo aqueles restos nas árvores. Depois usaram pinças para recolher os pedaços mais pequenos. Vi os rabinos a apanharem os restos da minha mãe e das minhas duas irmãs com pinças e a colocá-los num saco plástico. Foi isso que enterramos. Restos. Despojos. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para debaixo do queixo. Gabriel sentou-se no sofá junto dela e manteve o olhar fixo na tela de modo a certificar-se de que não perdiam coisa alguma. A mão dele estendeu-se para a dela. Ela agarrou-a enquanto uma lágrima lhe corria pela face.

— Culpei-me a mim mesma. Se eu soubesse que o rapaz de ar doce era na verdade Abdel Rahim al-Souwi, membro das brigadas Izzedine al-Qassam, do Hamas, poderia tê-los avisado. Se eu soubesse que o irmão do Abdel tinha sido morto num tiroteio com o IDF em 1989, teria compreendido a razão pela qual ele ia no ônibus nº5, em Tel Aviv, com um saco aos pés. Decidi que me ia vingar, não com uma arma, mas com o cérebro. Jurei que da próxima vez que visse um deles o saberia, e seria capaz de avisar as pessoas antes que fosse demasiado tarde. Foi por isso que me ofereci para o Escritório. Foi por isso que consegui fazer a ligação entre Roma e Beit Sayeed. Conheço-os melhor do que eles se conhecem a si mesmos.

Outra lágrima. Desta vez Gabriel limpou-a.

— Por que ele matou a minha mãe e as minhas irmãs, Gabriel? Foi porque lhes roubamos a terra? Foi porque éramos ocupantes? Não, foi porque queríamos fazer

a.paz. Se eu os odiar, vais-me perdoar. Se eu te pedir que não mostres qualquer misericórdia para com Khaled, irás usar de brandura em relação aos meus crimes.

Sou Dina Sarid, a remanescente vingada. Sou o seis milhões. E se Khaled vier aqui esta noite, não te atrevas a deixá-lo entrar naquele ônibus.

Lev oferecera-lhe o uso de um apartamento de segurança em Jerusalém. Shamron declinara delicadamente. Em vez disso, instruiu Tamara para que fosse procurar uma cama desdobrável na despensa e pediu a Gilah que lhe enviasse uma mala com roupas limpas e um estojo de barbear. Como Gabriel, pouco tinha dormido na semana anterior.

Nalgumas noites andava pelos corredores a qualquer hora ou sentava-se lá fora a fumar com os guarda-costas do Shabak. Na maior parte do tempo, ficava deitado no colchão desdobrável, a olhar para o brilho vermelho do relógio digital na sua secretária e a calcular os minutos que restavam até o aniversário da destruição de

Beit Sayeed. Preencheu as horas vazias relembrando operações passadas. A espera. Sempre a espera. Alguns agentes ficam loucos com isso. Para Shamron era um narcótico, semelhante às primeiras angústias de um amor intenso. Os afrontamentos, os arrepios súbitos, o remoer do estômago: tinha passado por tudo isso incontáveis vezes durante os anos. Nos becos escondidos de Damasco e do Cairo, nas ruas pavimentadas da Europa, e num subúrbio marginal de Buenos Aires, onde esperara que o Adolf Eichmann, chefe de estação do Holocausto, saísse de um ônibus urbano para o amplexo dessas mesmas pessoas que tentara aniquilar. Uma maneira adequada para aquilo terminar, pensou Shamron. Uma última noite de vigília. Uma última espera para que o telefone tocasse. Quando por fim tocou, o tom eletrônico áspero foi como música para os seus ouvidos. Fechou os olhos e deixou que o telefone tocasse uma segunda vez. Depois estendeu a mão para as trevas e aproximou o receptor do ouvido.

O mostrador digital da tela da televisão dizia 12.27. Tecnicamente, fora o turno do Yaakov, mas era a última noite antes do prazo-limite, e ninguém ia dormir. Tinham estado sentados no sofá do salão, Yaakov na sua habitual pose de confronto, Dina numa posição de meditação e Gabriel como se estivesse à espera das notícias de uma morte anunciada. O Boulevard St-Rémy estivera silencioso naquela noite. O casal que passara pela porta às 12.27 foram os primeiros a surgir na imagem da câmera num espaço de quase 15 minutos. Gabriel olhara para Dina, cujos olhos permaneciam fixos na tela.

— Viste aquilo?

— Vi.

Gabriel levantou-se e dirigiu-se ao console. Retirou e a fita de vídeo do player e colocou uma nova no seu lugar. Depois colocou a fita de áudio num gravador e rebobinou-a. Com Dina olhando por cima de seu ombro, premiu PLAY. O casal surgiu na imagem e passou pela entrada sem sequer olhar para ela.

Gabriel pressionou o STOP.

— Repare como ele colocou a moça do lado direito, de frente para a rua. Está a usá-la como escudo. E olhe a mão direita dele. Está no bolso da moça, como a de Sabri.

REWIND. PLAY. STOP.

— Meu Deus — disse Gabriel — , tem exatamente o andar do pai.

— Tem certeza?

Gabriel dirigiu-se ao rádio e chamou o vigilante que se encontrava no exterior do Palácio da Justiça.

— Viu aquele casal que acabou de passar pelo prédio?

- Lá.

— Onde eles estão agora?

— Espere. — Silêncio, enquanto o Ayin mudava de posição. Subindo a rua, em direção aos jardins. — Consegue segui-los?

— Está um silêncio de morte por aqui. Eu não aconselharia.

— Raios!

— Espere um pouco.

— O quê?

— Espere aí.

— O que há?

— Estão dando a volta.

— Tem certeza?

— Absoluta. Estão voltando.

Gabriel olhou para o monitor no preciso instante em que eles tornavam a entrar na imagem, vindos desta vez da direção oposta. Mais uma vez a mulher estava de frente para a rua, e de novo o homem tinha a mão enfiada no bolso de trás da calça jeans dela. Pararam na porta do número 56. O homem tirou a chave do bolso.

CAPÍTULO 19

SURREY, INGLATERRA

 

 

Passava pouco das dez da noite quando Amira Assaf saiu do elevador na Clínica Stratford e avançou pelo corredor do quarto piso. Ao contornar a primeira esquina, viu o guarda-costas sentado numa cadeira à porta do quarto de Miss Martinson. Ergueu os olhos quando Amira se aproximou e fechou o livro que estava a ler.

— Tenho de me certificar de que ela está a dormir confortavelmente — disse Amira.

O guarda-costas assentiu e levantou-se. Não ficou surpreso com o pedido de Amira. Durante o último mês passava pelo quarto todas as noites àquela hora. Ela abriu a porta e entrou. O guarda-costas seguiu-a e fechou a porta atrás de si. Um candeeiro, cuja intensidade da luz fora reduzida ao mínimo, brilhava suavemente. Amira dirigiu-se a um dos lados da cama e olhou para baixo. Miss Martinson estava a dormir profundamente. O que não era nenhuma surpresa: Amira tinha-lhe duplicado a dosagem de sedativos. Ficaria adormecida durante mais algumas horas.

Amira ajeitou os cobertores e abriu a última gaveta da mesa-de-cabeceira. A arma, uma Walther de nove milímetros com silenciador, estava exatamente onde a tinha deixado nessa tarde enquanto Miss Martinson ainda se encontrava no solário. Agarrou a arma pelo cabo, virou-se e alvejou o peito do guarda-costas, que enfiou a mão no interior do casaco com um movimento rápido como um relâmpago. Antes que a mão reaparecesse, Amira disparou duas vezes, o premir duplo de um assassino treinado. Os dois tiros atingiram-no na parte superior do peito. O guarda-costas caiu de costas no chão. Amira ficou por cima dele e disparou mais dois tiros.

Respirou fundo uma série de vezes para reprimir a intensa onda de náuseas que a inundou. Depois aproximou-se do telefone e marcou uma extensão interna do hospital.

— Poderia por favor pedir ao Hamida que venha ao quarto da Miss Martinson? Há alguns lençóis que têm de ser levados antes que o caminhão se vá embora. Desligou, agarrou no homem morto pelos sovacos e arrastou-o para a casa de banho. A carpete estava manchada de sangue. Amira não se sentia preocupada com isso. A sua intenção não era ocultar o crime, apenas adiar a sua descoberta por algumas horas.

Ouviu-se baterem à porta.

— Sim?

— É Hamida.

Destrancou a porta e abriu-a. Hamida empurrou para o interior um carrinho da lavandaria.

— Sente-se bem?

Amira assentiu. Hamida empurrou o carrinho até junto da cama enquanto Amira afastava os cobertores e os lençóis. Miss Martinson, frágil e cheia de cicatrizes, jazia imóvel. Hamida levantou-a pelo peito, Amira pelas pernas, e juntos baixaram-na para o interior do carrinho da lavandaria. Amira escondeu-a debaixo de uma camada de lençóis.

Foi até o corredor para ver se ele estava vazio, depois olhou para Hamida e fez-lhe sinal para ele se juntar a ela. Hamida fez rolar o carrinho para fora do quarto e começou a avançar em direção ao elevador. Amira fechou a porta, introduziu o seu cartão-chave na fechadura e tornou a tirá-lo. Encontrou-se com Hamida junto ao elevador e premiu o botão de chamada. A espera parecia uma eternidade. Quando por fim as portas se abriram, empurraram o carrinho para a cabina vazia. Amira premiu o botão para o piso térreo e começaram a descer lentamente.

O hall do piso térreo estava deserto. Hamida foi o primeiro a sair e virou à direita, em direção à porta que conduzia ao pátio traseiro. Amira seguiu-o. No exterior, havia uma van imóvel com as portas traseiras abertas. Num dos lados tinha pintado o nome da empresa local de lavandaria. O condutor habitual jazia deitado junto a um renque de faias a dois quilômetros do hospital, com uma bala no pescoço.

Hamida içou o saco da lavandaria do carrinho e colocou-o gentilmente na traseira da van, fechando em seguida as portas e subindo para o assento do passageiro. Amira observou a van a afastar-se, tornou a entrar e dirigiu-se ao posto da enfermeira-chefe. Ginger estava de serviço. — Não me estou a sentir lá muito bem, Ginger. Achas que consegues passar sem mim?

— Não há problema, querida. Precisa de carona?

Amira sacudiu a cabeça. — Eu me viro com a moto, nos vemos amanhã à noite. Amira foi até o vestiário do pessoal. Antes de despir o uniforme, escondeu a arma dentro da mochila. Depois vestiu calças jeans, uma camiseta de lã grossa e um blusão de couro. Passado um momento, atravessou o pátio dos fundos com a mochila pendurada às costas.

Subiu na motocicleta e ligou o motor, depois acelerou para fora do pátio. Ao dar a volta nos fundos da antiga mansão, ergueu o olhar para a janela da Miss Martinson: uma luz brilhava suavemente, não havia qualquer sinal de problemas. Acelerou pelo caminho de acesso e deteve-se junto à casa do guarda. O homem de serviço desejou-lhe uma boa noite e abriu-lhe o portão. Amira virou para a estrada e fez rodar o manipulo. Dez minutos depois, acelerava ao longo da autoestrada A24, dirigindo-se para o mar a sul.


CAPÍTULO 20

MARSELHA

 

 

Gabriel entrou na sua cabina e fechou a porta. Foi até o guarda-roupa e afastou um pedaço solto de carpete, expondo a porta do cofre do chão. Abriu o ferrolho e ergueu a tampa. No interior, encontravam-se três pistolas: uma Beretta 92FS, uma Jericho 941 Police Special e uma Barak SP-21. Levantou cuidadosamente cada arma e colocou-as sobre a cama. A Beretta e Jericho eram de nove milímetros. O carregador para a Beretta tinha uma capacidade de 15 balas, a Jericho, 16. A Barak — achatada, preta e feia — disparava uma bala maior e mais destrutiva de .45, embora tivesse apenas oito tiros. Abriu e examinou as armas, começando pela Beretta e terminando com a Barak. Cada arma parecia estar funcionando bem. Tornou a montá-las e a carregá-las, testou peso e equilíbrio, considerando qual devia usar. Não era provável que o disparo fosse oculto e silencioso. Iria provavelmente teria lugar numa rua movimentada, talvez em plena luz do dia. Sua prioridade era certificar-se de que Khaled seria abatido. Para isso, Gabriel precisava de potência e confiabilidade. Escolheu a Barak para arma principal e a Beretta como arma de apoio. Também decidiu que não iria utilizar silenciador. O silenciador tornava a arma demasiado difícil de esconder e demasiado difícil de manejar, de sacar e disparar. Além disso, qual era o objetivo de usar um silenciador se o ato ia ser testemunhado por uma multidão de pessoas na rua?

Foi até a casa de banho e deixou-se ficar por um momento diante do espelho, examinando o rosto. Depois abriu o armário dos medicamentos e retirou de lá uma tesoura, uma lâmina e uma lata de espuma de barbear. Aparou a barba rente, retirando em seguida o resto com a lâmina. Ainda tinha o cabelo pintado de grisalho. Nada havia a fazer a esse respeito.

Despiu-se, tomou uma ducha rápido e regressou à cabina para se vestir. Vestiu a roupa interior e as meias, e em seguida um par de calças jeans azuis-escuras e sapatos de camurça com sola de borracha. Fixou o rádio ao cós da calça na anca esquerda, fez passar um fio até o ouvido e um segundo até o pulso esquerdo. Depois de ter fixado os fios no lugar com fita adesiva preta, vestiu uma camisa preta de manga comprida. Enfiou a Beretta no cós da calça, junto ao fundo das costas. A Earak era compacta o suficiente para caber no bolso do blusão de couro. Quanto ao GPS com sinal de rastreio, um pequeno disco com o tamanho aproximado de uma moeda de um euro, enfiou-o no bolso da frente da calça.

Sentou-se na beira da cama à espera. Passados cinco minutos bateram à porta.

O relógio mostrava 2.12 horas.

— Os teus especialistas têm mesmo a certeza?

O primeiro-ministro levantou os olhos para o grupo de monitores vídeo e esperou uma resposta. Num dos monitores estava a imagem de Lev. O diretor-geral do Shabak, Moshe Yariv, ocupava o segundo; o general Amos Sharret, chefe de Aman, o terceiro.

— Não existe qualquer dúvida — respondeu Lev. — O homem na fotografia que nos foi dada pelo Mahmoud Arwish é o mesmo homem que acabou de entrar no prédio em Marselha. Agora tudo o que precisamos é da sua aprovação para que a fase final da operação comece.

— E têm-na. Dá a ordem ao Fidelity.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

— Presumo que seja capaz de ouvir o tráfego radiofônico?

— O Fidelity irá enviar-nos através de uma linha de segurança. Manteremos o controle operacional até o último segundo.

— Envie-o para aqui também — disse o primeiro-ministro. Não quero ser o último a saber.

Depois premiu um botão na secretária, e as três telas se apagaram.

A mota era uma Piaggio X9 Evolution, cinza-carvão, com uma válvula de rodar e uma velocidade máxima de 160 quilômetros por hora — embora Yaakov, numa fuga de ensaio no dia anterior, tivesse conseguido chegar aos 190. O selim inclinou-se drasticamente para baixo, no sentido de trás para a frente, de modo que o passageiro ficava sentado diversos centímetros acima do condutor, o que a tornava uma mota perfeita para um assassino, embora certamente os seus projetistas não tivessem tido isso em consideração quando a desenharam. O motor disparou, como habitual, sem hesitação. Yaakov dirigiu-se ao ponto no cais onde a figura de capacete de Gabriel o esperava. Gabriel subiu para o assento traseiro e instalou-se aí.

— Leva-me ao Boulevard St-Rémy.

— Tens certeza?

— Uma passagem — disse ele. — Quero vê-lo.

Yaakov fez uma curva apertada para a esquerda e acelerou colina acima. Era um excelente edifício na Corniche, com um chão de mármore no hall e um elevador que funcionava a maior parte das vezes. Os apartamentos de frente para a rua tinham uma ótima vista sobre o Nilo. Os os fundos davam para os terrenos murados da Embaixada da América. Era um edifício para estrangeiros e egípcios ricos, era um outro mundo comparado com o monótono edifício residencial de pedra cinza em Heliopolis, onde Zubair vivia, mas a verdade era que ser-se um polícia no Egipto não era muito rentável, mesmo que se fosse um polícia secreto trabalhando para o Mukhabarat.

Subiu as escadas, que eram amplas e curvas, com uma passadeira puída presa por aplicações de latão polido. O apartamento ficava no último andar, o décimo. Zubair praguejou em voz baixa enquanto subia as escadas. Dois maços de cigarros Cleópatra por dia tinham-lhe devastado os pulmões. Teve de se deter por três vezes num patamar para recuperar o fôlego. Demorou mais de cinco minutos a chegar ao apartamento.

Premiu a orelha contra a porta e não ouviu qualquer som vindo do interior. Não era de surpreender. Zubair tinha seguido o inglês na noite anterior durante uma excursão ensopada em álcool através dos bares do hotel e dos clubes noturnos ao longo do rio. Zubair estava confiante de que ele ainda estaria a dormir.

Enfiou a mão no bolso, de onde retirou a chave. O Mukhabarat tinha uma excelente coleção: diplomatas, dissidentes, islamitas e sobretudo jornalistas internacionais. Introduziu a chave na fechadura, abriu a porta e entrou.

O apartamento estava frio e escuro, as cortinas cerradamente fechadas contra o sol de início da manhã. Zubair tinha estado no apartamento muitas vezes e encaminhou-se para o quarto sem se dar ao trabalho de acender as luzes. Quinnell dormia profundamente entre lençóis ensopados em suor. No ar estagnado pairava um cheiro fortíssimo a whisky. Zubair retirou a arma e atravessou o quarto devagar, em direção aos pés da cama. Alguns passos depois, o seu pé direito embateu em algo pequeno e duro. Antes de conseguir aliviar a pressão descendente algo pareceu estalar, emitindo um ruído estridente. No silêncio profundo do quarto soou como um ramo de árvore a estalar. Zubair olhou para baixo e viu que tinha pisado o relógio de pulso de Quinnell. Apesar de ébrio, o inglês sentou-se rigidamente na cama. Merda, pensou Zubair. Não era um assassino profissional. Esperara matar Quinnell a dormir.

— Que raio estás a fazer aqui?

— Trago-te um recado do nosso amigo — disse Zubair calmamente.

— Não quero ter mais nada a ver com ele.

— O sentimento é mútuo.

— Então que raio estás a fazer no meu apartamento?

Zubair levantou a arma. Passado um momento, saiu do apartamento e começou a descer as escadas. A meio caminho, respirava como um maratonista e transpirava pesadamente.

Parou e encostou-se ao corrimão. Malditos Cleopatras. Se não parasse depressa de fumar, acabariam por matá-lo.

Marselha, 5h22 horas.

A porta do apartamento abre-se. Sai uma figura para a rua. O alerta verbal da Dina é ouvido no Centro de Operações Boulevard King Saul e em

Jerusalém por Shamron e pelo primeiro-ministro. E também é ouvido na esplanada suja ao longo do cours Belsunce, onde Gabriel e Yaakov estão sentados à beira de uma fonte estagnada, rodeados por toxicodependentes e imigrantes que não tinham outro lugar onde dormir. — Quem é? — perguntou Gabriel.

— A moça — disse Dina, apressando-se depois a acrescentar:— A namorada do Khaled.

— Para que lado é que ela foi?

— Para norte, em direção à Place de la Préfecture. Seguiram-se vários minutos vazios de ar. Em Jerusalém, Shamron anda de um lado para o outro no carpete em frente da secretária do primeiro-ministro, esperando ansiosamente pela ordem do Gabriel. — Não tentes fazê-lo — murmura ele. — Se ela vir o vigilante, vai avisar o Khaled e tu perde-lo. Deixa-a ir.

Passaram-se mais dez segundos antes que a voz de Gabriel se voltasse a ouvir. — É demasiado arriscado — sussurrou ele. — Deixa-me ir.

Em Ramallah, a reunião terminou de madrugada. Yasser Arafat estava de muito bom humor. Para aqueles presentes, parecia-se um pouco com o antigo Arafat, o Arafat que conseguia discutir ideologia e estratégia durante toda a noite com os companheiros mais chegados e depois sentar-se para uma reunião com um chefe de Estado. Enquanto os seus ajudantes de campo saíam da sala, Arafat fez sinal a Mahmoud Arwish para ficar.

— Começou — disse Arafat. — Agora só podemos esperar que Alá tenha abençoado a sagrada empresa do Khaled.

— Trata-se também da tua empresa, Abu Amar.

— É verdade — disse Arafat — , e não teria sido possível sem ti, Mahmoud. Arwish assentiu cautelosamente. Arafat manteve o olhar fixo nele.

— Fizeste bem o teu papel — disse Arafat. — O fato de ter enganado os israelenses com inteligência quase perdoa a traição que me fizeste e ao resto do povo palestino. Estou tentado a ignorar o teu crime, mas não posso fazê-lo.

Arwish sentiu o peito apertar. Arafat sorriu.

— Pensaste realmente que a tua traição seria alguma vez esquecida?

— A minha mulher — gaguejou Arwish. — Os Judeus obrigaram-me...

Arafat sacudiu a mão num gesto de rejeição.

— Pareces uma criança, Mahmoud. Não piores a tua humilhação rogando pela vida. Naquele momento a porta abriu, e entraram na sala dois homens da segurança com uniformes, de armas a postos. Arwish tentou tirar a arma do coldre, mas a coronha de uma espingarda bateu-lhe num rim, e uma erupção de dor estonteante fez com que caísse ao chão.

— Morres hoje a morte de um colaborador — disse Arafat. Uma morte adequada a um cão.

Os seguranças levantaram Arwish, empurraram-no para fora do Escritório e desceram as escadas. Arafat foi até a janela e olhou para o pátio quando Arwish e os seguranças surgiram no seu campo de visão. Outra coronhada nos rins fez com que Arwish caísse ao chão pela segunda vez. Depois o tiroteio começou. Lenta e ritmadamente, começaram pelos pés e avançaram lentamente para cima. A Mukata ecoou com o estalar das Kalashnikovs e os gritos do traidor moribundo. Para Arafat, tratava-se de um som muitíssimo satisfatório: o som de uma revolução. O som da vingança.

Quando os gritos pararam, houve um tiro final na cabeça. Arafat desceu o estore. Tinha tratado de um inimigo. Em breve outro teria o mesmo destino. Desligou o candeeiro e ficou sentado na obscuridade, aguardando a próxima atualização.

CAPÍTULO 21

MARSELHA

 

 

Mais tarde, quando tudo estava terminado, Dina procuraria em vão um qualquer simbolismo no momento que Khaled escolhera para fazer a sua aparição. Quanto às palavras exatas que ela utilizou para dar a notícia às equipes, não se lembrava de quais tinham sido, embora tivessem ficado gravadas em fita para a posteridade: "É ele.

Está na rua. Dirige-se para sul através do parque. " Todos aqueles que ouviram a convocação da Dina sentiram-se abalados pela sua compostura e falta de emoção. Tão tranquila foi a sua declaração que por um instante Shamron não percebeu o que tinha acabado de acontecer. Apenas quando ouviu o rugido da mota de Yaakov, seguido pelo som do respirar acelerado de Gabriel, é que compreendeu que Khaled estava prestes a ser abatido.

Passados cinco segundos da informação da Dina, Yaakov e Gabriel tinham colocado os capacetes e aceleravam para leste a toda a velocidade ao longo do cours Belsunce.

Na Place de la Préfecture, Yaakov inclinou pesadamente a mota para a direita e acelerou através da praça em direção à entrada do Boulevard St-Rémy. Gabriel agarrou-se à cintura do Yaakov com a mão esquerda. Tinha a direita enfiada no bolso do casaco e apertava a coronha volumosa da Barak. Começava a surgir a luz do dia, mas a rua permanecia na sombra. Gabriel viu Khaled pela primeira vez, a andar ao longo do passeio como um homem atrasado para um encontro importante. A mota abrandou subitamente. Yaakov tinha uma decisão a tomar: atravessar para o lado errado da estrada e aproximar-se do Khaled por trás, ou ficar do lado direito da rua e dar a volta para o abater de frente. Gabriel incitou-o a ir pela direita com um empurrão da arma. Yaakov virou o acelerador, e a mota deu um salto para a frente. Gabriel fixou os olhos em Khaled. O palestino estava a andar mais depressa.

Naquele preciso instante um Mercedes cinza escuro saiu de uma rua lateral e bloqueou-lhes o caminho. Yaakov carregou nos travões para evitar a colisão, depois buzinou e acenou ao Mercedes para que este saísse do caminho. Quando Yaakov estava de novo no caminho certo, Khaled contornara a esquina e desaparecera do campo de visão de Gabriel.

Yaakov acelerou até o fim da rua e virou à esquerda, para o Boulevard André Aune, que subia ligeiramente afastando-se do velho porto, em direção ao elevado campanário da Igreja de Notre Dame de la Garde. Khaled já tinha atravessado a rua e deslizava naquele momento para uma entrada com uma passagem coberta. Gabriel usara o programa informático para memorizar a rota de cada rua do bairro. Sabia que a passagem conduzia a uma escadaria de pedra íngreme chamada Montée de 1'Oratoire. Khaled tinha tornado a mota inútil.

— Para — disse Gabriel. — Não te mexas.

Gabriel saltou da mota e, ainda de capacete na cabeça, seguiu o caminho que o Khaled tomara. Não havia luzes na passagem, e a alguns passos para o centro Gabriel ficou numa escuridão total. Na extremidade oposta, reemergiu na luz de um rosa escuro. Começava a escadaria: ampla e muito velha, com um corrimão de ferro ao meio. À esquerda de Gabriel ficava a fachada de estuque castanha de um prédio; à direita um elevado muro de pedra calcária sobre o qual pendiam oliveiras e vinhas florescentes.

A escada curvava para a esquerda. Quando Gabriel deu a volta à esquina, viu Khaled outra vez. Estava a meio caminho do alto e subia os degraus a correr. Gabriel começou a tirar a Barak, mas deteve-se. Ao alto das escadas havia outro prédio. Se Gabriel falhasse o Khaled, o tiro errante acertaria quase de certeza no prédio. Conseguia ouvir vozes através do auricular: Dina a perguntar ao Yaakov o que se estava a passar; Yaakov a contar à Dina do carro que lhe bloqueara o caminho e do lance de escadas que os forçara a separarem-se. — Consegues vê-lo?

— Não.

Há quanto tempo é que ele desapareceu? — Há apenas alguns segundos.

— Para onde é que o Khaled vai? Por que ele está a caminhar tanto? Onde está a proteção dele? Não estou a gostar disto. Vou dizer-lhe para desistir.

— Deixa-o.

Khaled chegou ao alto e desapareceu de vista. Gabriel subiu as escadas, dois degraus de cada vez, e chegou apenas dez segundos depois de Khaled. À sua frente surgia uma interseção de duas ruas em forma de V. Uma delas, a que ficava à direita de Gabriel, subia pela encosta mesmo em frente da igreja. Não tinha quaisquer carros nem peões. Gabriel apressou-se para a esquerda e olhou pela segunda rua. Também ali não havia sinais de Khaled, apenas um par de faróis vermelhos, desaparecendo rapidamente à distância.

— Desculpe, monsieur, está perdido?

Gabriel virou-se e levantou o visor do capacete. Ela estava de pé ao alto da escadaria, jovem, com não mais de 30 anos, grandes olhos castanhos e cabelo escuro e curto. Tinha-lhe falado em francês. Gabriel respondeu na mesma língua.

— Não, não estou perdido.

— Talvez esteja à procura de alguém?

E porque estás tu, uma mulher atraente, a falar com um estranho de capacete? Deu um passo na direção dela. Ela manteve-se onde estava, mas Gabriel detectou um vestígio de apreensão no seu olhar escuro.

— Não, não estou à procura de ninguém.

— Tem a certeza? Podia jurar que estava à procura de alguém.

— Ela inclinou ligeiramente a cabeça para um lado. — Talvez esteja à procura da sua mulher.

Gabriel sentiu a nuca em chamas. Olhou com maior atenção para o rosto da mulher e apercebeu-se de que já o vira antes. Era a mulher que tinha ido ao apartamento com Khaled. Apertou com mais força a coronha da Barak.

— O nome dela é Leah, não é? Vive numa clínica psiquiátrica no Sul da Inglaterra... pelo menos, costumava. A Clínica Stratford, certo?

Estava registrada sob o nome Lee Martinson.

Gabriel impeliu-se para a frente e agarrou a mulher pelo pescoço. — O que lhe fizeram? Onde é que ela está?

— Está em nosso poder — arquejou a mulher — , mas não sei onde está.

Gabriel puxou-a para trás, em direção ao alto das escadas.

— Onde é que ela está? — Repetiu a pergunta em árabe. Responde-me! Não me fales em francês. Fala-me na tua verdadeira língua. Fala-me em árabe.

— Estou a dizer-te a verdade.

— Então sabes falar árabe. Onde é que ela está? Responde-me, ou empurro-te pelas escadas.

Empurrou-a uma fração de centímetro para mais perto da extremidade. A mão dela tentou agarrar-se ao corrimão, mas encontrou apenas o ar. Gabriel sacudiu-a uma vez violentamente.

— Se me matar, vai se destruir... e a sua mulher. Sou sua única esperança.

— E se fizer como diz?

— Vai salvar a vida dela.

— E quanto à minha?

Ela não respondeu à pergunta.

— Diz ao resto de sua equipe para desistir. Diga que deixem imediatamente Marselha. De outro modo, diremos aos Franceses que estás aqui, e isso ainda irá piorar a situação.

Ele olhou por cima do ombro dela e viu Yaakov a subir lentamente as escadas na sua direção. Gabriel fez-lhe sinal para parar com a mão esquerda. Nessa altura, a voz da Dina surgiu no ar: "Deixa-a ir, Gabriel. Vamos encontrar Leah.

Não jogues da maneira que Khaled quer."

Gabriel voltou a olhar para os olhos da moça.

— E se eu lhes disser para desistirem?

— Levo-te até ela. Gabriel tornou a sacudi-la.

— Então tu sabes onde ela está?

— Não, haverão de nos dizer onde devemos ir. Um destino de cada vez, passos muito pequenos. Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que te dissermos, ela viverá. — E o que me acontece?

— Não terá ela sofrido já o suficiente? Salva a tua mulher, Allon. Vem comigo, e faz exatamente como eu faço. É a tua única hipótese.

Ele olhou para a escadaria e viu Yaakov a sacudir a cabeça. Dina sussurrava-lhe ao ouvido: "Por favor, Gabriel, diz-lhe que não."

Ele olhou-a nos olhos. Shamron treinara-o para ler as emoções dos outros, para distinguir a verdade do engano, e nos olhos escuros da namorada do Khaled ele viu apenas a franqueza permanente de um fanático, a convicção de que o sofrimento passado justificava qualquer atitude, não interessando o quão cruel fosse. Também reparou numa tranquilidade perturbadora. Aquela moça estava treinada, não apenas doutrinada. O seu treino faria dela uma oponente de respeito, mas era o seu fanatismo que a deixaria vulnerável.

Estaria de fato Leah na posse deles? Não tinha qualquer motivo para duvidar. Khaled destruíra uma embaixada no coração de Roma. Certamente que conseguiria raptar uma mulher doente de um hospital psiquiátrico inglês. Abandonar Leah agora, depois de tudo o que ela tinha sofrido, era impensável. Talvez ela morresse. Talvez morressem os dois. Talvez Khaled lhes permitisse, se tivessem sorte, morrerem juntos.

Khaled desempenhara bem o seu papel. Nunca tencionara matar Gabriel em Veneza. O dossiê de Milão tinha sido apenas a aposta de abertura numa intriga elaborada para atrair Gabriel ali, àquele lugar em Marselha, e a apresentar-lhe um caminho que ele não podia senão seguir. A fidelidade fazia-o avançar. Afastou-a da beira das escadas e soltou a mão que lhe apertava o pescoço.

— Desistam — disse Gabriel diretamente para o microfone de pulso. — Deixem Marselha.

Quando Yaakov sacudiu a cabeça, Gabriel disse rispidamente:

— Façam como lhes disse.

Um carro desceu a colina vindo da direção da igreja. Era o Mercedes que lhes bloqueara o caminho alguns minutos antes no Boulevard St-Rémy. Parou em frente deles. A moça abriu a porta traseira e entrou. Gabriel olhou uma última vez para Yaakov, e depois entrou atrás dela.

— Ele está incontatável — disse Lev. — O seu sinal está estacionário há cinco minutos.

O sinal, pensou Shamron, numa sarjeta de Marselha. Gabriel desaparecera de suas telas. Todo aquele planejamento, toda aquela preparação, 208 e Khaled batera-os a todos com a mais antiga das artimanhas árabes: um refém. — É verdade aquilo acerca da Leah? — perguntou Shamron.

— A delegação de Londres telefonou várias vezes ao segurança. Até agora não foram capazes de o encontrar.

— Isso significa que ela está na posse deles — disse Shamron.

— E suspeito de que temos um segurança morto algures dentro da Clínica Stratford.

— Se tudo isso é verdade, está prestes a abater-se uma tempestade muito grave sobre Inglaterra dentro dos próximos minutos. Havia um certo excesso de compostura na voz de Lev para o gosto de Shamron, mas também Lev sempre tivera um elevado autocontrole. Precisamos falar com os nossos amigos do MI5 e da Administração Interna para manter as coisas tão tranquilas quanto possível durante o máximo de tempo possível. Também precisamos informar o Ministério do Negócios Estrangeiros. O embaixador vai ter de dar uns apertos de mão a sério.

— Concordo — disse Shamron — , mas receio que exista uma coisa que tenhamos de fazer primeiro.

Olhou para o relógio. Eram 7h28 hora local, 6h28 na França: faltavam 12 horas para o aniversário da evacuação de Beit Sayeed. — Mas não podemos apenas deixá-lo aqui — disse Dina. ;

— Ele já não está aqui — respondeu Yaakov. — Foi-se embora. Foi ele que decidiu ir com ela. Deu-nos ordens para evacuar, como Tel Aviv o fez. Não temos outra escolha. Estamos de partida.

— Deve haver qualquer coisa que possamos fazer para o ajudar.

Não lhe podes ser de qualquer ajuda se estiveres enfiada numa prisão francesa. Yaakov levou o microfone de pulso aos lábios e ordenou que as equipes Ayin recusassem. Dina desceu o cais com relutância e desapertou as amarras. Solta a última amarra, subiu a bordo do Fidelity e manteve-se juntamente com Yaakov no alto da ponte flutuante enquanto ele conduzia o iate para fora do canal. Ao passarem pelo Forte de São Nicolau, tornou a descer a escada da escotilha até o salão. Sentou-se no posto de comunicações, digitou um comando para aceder à memória e fixou o código de tempo para as 6.12 horas. Alguns segundos depois, ouviu a própria voz.

"É ele. Está na rua. Está a atravessar o parque no sentido sul." Tornou a ouvir tudo: Yaakov e Gabriel a montarem a mota sem palavras; Yaakov a ligar o motor e a acelerar, afastando-se; o som de pneus a prender e a resvalar ao longo do asfalto no Boulevard St-Rémy; a voz de Gabriel, calma e sem emoção: "Para aqui. Não te mexas."

Vinte segundos depois, a mulher: "Desculpe, monsieur, está perdido?"

STOP.

Quanto tempo teria Khaled passado a planejar aquilo? Anos, pensou ela. Ele tinha deixado as pistas para ela seguir, e ela tinha-as seguido, de Beit Sayeed a Buenos Aires, de Istambul a Roma, e agora Gabriel estava na mão deles. Eles iam matá-lo, e a culpa era dela.

Pressionou PLAY e tornou a ouvir a discussão de Gabriel com a palestina, depois pegou no telefone por satélite e estabeleceu comunicação com Boulevard King Saul na linha de segurança.

— Preciso de uma identificação de voz.

— Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Dina explicou as circunstâncias da intercepção.

— Passe a gravação, por favor. Ela pressionou PLAY.

"Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que dissermos, ela viverá." STOP.

— Espere um momento, por favor. Passados dois minutos:

— Não há nada compatível em arquivo.

Martineau encontrou-se uma última vez com Abu Saddiq no Boulevard d'Anthènes, na base da escadaria ampla que conduzia à Gare Saint-Charles. Abu Saddiq estava vestido com roupas ocidentais: calças impermeáveis impecáveis e uma camisa de algodão engomada. Disse a Martineau que acabara de sair um barco do porto a grande velocidade.

— Como é que se chamava? Abu Saddiq disse-lhe.

— Fidelity — repetiu Martineau. — Uma escolha interessante. Ele virou-se e começou a subir as escadas com dificuldade, tendo

Abu Sadiq ao seu lado.

— Os shaheeds receberam as suas ordens finais — disse Abu Saddiq.

— Continuarão para o seu alvo como marcado. Não podemos fazer nada para os parar.

— E tu?

— O ferry do meio-dia para Argel.

Chegaram ao alto da escadaria. A estação de trem era castanha e feia, e estava num péssimo estado.

— Devo confessar — disse Abu Saddiq — que não sentirei a falta deste lugar. — Vai para Argel e morre para o mundo. Voltaremos a trazer-te para a Cisjordânia quando for seguro.

— Depois de hoje... — Ele encolheu os ombros. — Nunca mais será seguro.

Martineau apertou a mão de Abu Saddiq.

— Maa-salaamah.

— As-salaam alaykum, irmão Khaled.

Abu Saddiq virou-se e desceu a escadaria. Martineau entrou na estação de trem e deteve-se em frente do balcão das partidas. O TGV das 8.15 para Paris estava a partir da Plataforma F. Martineau atravessou o terminal e dirigiu-se à plataforma. Caminhou ao longo do trem até encontrar a sua carruagem, e depois embarcou.

Antes de se sentar, foi à casa de banho. Deixou-se ficar muito tempo em frente do espelho, a examinar a imagem refletida. O casaco Yves Saint Laurent, a camisa azul-escura, os óculos de marca: Paul Martineau, francês distinto, arqueólogo famoso. Mas não hoje. Hoje Martineau era Khaled, filho de Sabri, neto do Sheikh Asad. Khaled, vingador de males passados, espada da Palestina. Os shaheeds receberam as suas ordens finais. Não podemos fazer nada para os parar.

Tinha sido dada outra ordem. O homem que se encontraria com Abu Saddiq naquela noite iria matá-lo. Martineau aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca iria permitir ser colocado em risco por um árabe traidor.

Passado um instante, estava sentado num lugar de primeira classe enquanto o trem saía da estação e se dirigia para norte através dos bairros de lata muçulmanos de Marselha. Paris ficava a 872 quilômetros, mas o TGV de alta velocidade iria cobrir essa distância em pouco mais de três horas. Um milagre da tecnologia ocidental e do engenho francês, pensou Khaled. Depois fechou os olhos e passado pouco tempo adormeceu.

CONTINUA

CAPÍTULO 14

CAIRO

— Nunca assinei nada assim — disse Quinnell sombriamente. Passava da meia-noite; estavam no pequeno e gasto Fiat de Quinnell. Do outro lado do Nilo, o Cairo central remexia-se irrequieto, mas Zamalek estava silenciosa àquela hora. Tinham demorado duas horas a chegar lá. Gabriel estava seguro de que ninguém o seguira.

— Tem certeza do número do apartamento?

- Já estive lá — disse Quinnell. — Não na condição que esperava, sabe, apenas numa das festas da Mimi. Vive no apartamento A. Todos conhecem o endereço da Mimi.

— Tem certeza de que ela não tem um cão?

— Só tem um gato angora com problemas de peso. Tenho a certeza que um homem que afirma ser amigo do grande Herr Heller não terá qualquer problema em lidar com um gato obeso. Já eu, por outro lado, tenho de me defrontar com um porteiro núbio de 2,15m. Como é que isto aconteceu?

— Você é um dos melhores jornalistas do mundo, Quinnell. Por certo que consegues enganar um porteiro.

— É verdade, mas isto não é propriamente jornalismo.

— Pensa nisto como uma partida de um menino inglês. Diz-lhe que o carro se foi abaixo. Diz-lhe que precisas de ajuda. Dá-lhe dinheiro. Cinco minutos, e nem mais um minuto. Percebeste?

Quinnell assentiu.

— E se o teu amigo da Mukhabarat aparecer? — perguntou Gabriel. — Qual é o sinal?

Duas buzinadelas breves, seguidas por uma longa.

Gabriel saiu do carro, atravessou a rua e desceu um lance de degraus de pedra que conduziam a um cais junto da orla costeira. Deteve-se por um momento para observar a vela angular e graciosa de uma faluca que deslizava devagar rio acima. Depois virou-se e avançou para sul, com a elegante mala de couro do Herr Klemp a pender-lhe do ombro direito. Alguns passos mais à frente, surgiram no seu campo de visão os pisos superiores do edifício de apartamentos da Mimi, acima da elevação diante de si: um antigo edifício de Zamalek, caiado, com grandes terraços sobre o rio.

Uns cem metros para lá do edifício, outro lance de degraus erguia-se acima da rua. Antes de os subir, Gabriel olhou para trás à beira-rio para ver se tinha sido seguido, mas verificou que o cais estava deserto. Subiu os degraus e atravessou a rua, percorrendo depois o caminho até a entrada do beco escurecido que corria ao longo dos fundos do prédio. Fosse essa a primeira vez que ali estivesse e poderia não ter encontrado o seu destino, mas andara pelo beco à luz do dia e sabia com toda a certeza que 130 passos normais o conduziriam à entrada de serviço do edifício da Mimi Ferrere.

Pintadas na porta de metal dentada, liam-se as palavras em árabe NÃO ENTRAR. Gabriel olhou para o relógio. Como esperara, a caminhada desde o carro tomará-lhe .30 minutos. Tentou a maçaneta e verificou que a porta estava trancada, como estivera de dia. Retirou um par de finas ferramentas de metal do bolso lateral da mala e baixou-se até ficar com o trinco ao nível dos olhos. Em 15 segundos, o trinco cedera.

Empurrou a porta e olhou para o interior. Estendia-se diante de si um corredor curto de chão de cimento. Na outra extremidade encontrava-se uma porta semiaberta, que dava para o hall. Gabriel avançou e escondeu-se atrás da segunda porta. Ouvia do outro lado a voz de David Quinnell a oferecer ao porteiro núbio 20 libras para que lhe empurrasse o carro empanado para fora da estrada. Quando a conversa deu lugar ao silêncio, Gabriel espreitou para o outro lado da porta, mesmo a tempo de ver a túnica do núbio a ondular na escuridão.

Entrou no hall e parou junto às caixas de correio. A caixa do apartamento 6A tinha a etiqueta: M. FERRERE. Subiu as escadas até o sexto piso. A porta era flanqueada por um par de palmeiras envasadas. Gabriel colou o ouvido à madeira e não ouviu qualquer som no interior.

Retirou do bolso um dispositivo disfarçado de lâmina elétrica e fê-lo correr à volta do rebordo da porta. Brilhava uma luzinha verde o que queria dizer que o dispositivo não detectara qualquer sinal da existência de um sistema de segurança eletrônico.

Gabriel tornou a enfiar o aparelho no bolso e introduziu a sua antiquada gazua no buraco da fechadura. No preciso instante em que começava a trabalhar, ouviu vozes femininas que se elevavam pela escadaria vindas lá de baixo. Prosseguiu calmamente, as pontas dos dedos registrando alterações subtis em tensão e rotação, enquanto outra parte da sua mente pensava e repensava nas possibilidades. O edifício tinha 11 andares. As hipóteses tendiam ligeiramente, mais do que igualavam, para que as mulheres nas escadas estivessem a encaminhar-se para o sexto piso ou mais acima. Tinha duas opções: abandonar o seu trabalho por agora e tornar a descer as escadas em direção ao hall, ou procurar refúgio num piso superior. Ambos os planos acarretavam potenciais perigos. As mulheres podiam achar suspeita a presença de um estrangeiro desconhecido no edifício, e se acontecesse viverem num dos últimos pisos, ele poderia encontrar-se preso sem qualquer rota de fuga.

Decidiu continuar a trabalhar. Pensou nos exercícios que tinha feito na

Academia, de Shamron sempre atrás do seu ombro, incitando-o a trabalhar como se a sua vida e as vidas da sua equipe dependessem de si. Ouvia agora o bater dos saltos altos, e quando uma das mulheres guinchou com uma gargalhada o seu coração deu um salto.

Quando a última tranca se afastou por fim, Gabriel colocou a mão no trinco e sentiu a gratificante sensação de movimento. Abriu a porta e deslizou para o interior, tornando depois a fechá-la no exato momento em que as mulheres chegavam ao patamar. Encostou-se à porta e, tendo apenas a gazua como arma, susteve o fôlego enquanto elas passavam a rir à gargalhada. Odiou-as por um instante pela sua frivolidade.

Trancou a porta. Retirou da pasta um Maglite do tamanho de um cigarro e fez incidir o feixe estreito à volta do apartamento. Estava num pequeno hall de entrada, para lá do qual se situava a sala de estar. Fresca e branca, com mobiliário baixo e confortável, e uma abundância de almofadas coloridas e mantas, lembrava vagamente a Gabriel o clube noturno da Mimi. Avançou devagar, mas parou de repente quando a luz incidiu sobre um par de olhos amarelos néon.

O gato gordo da Mimi estava deitado, enrolado, em cima de uma otomana. Olhou sem interesse para Gabriel, pousou o focinho nas patas e fechou os olhos. Tinha uma lista de alvos, organizada por ordem de importância. Uma das primeiras prioridades era os telefones da Mimi. Encontrou o primeiro na sala de estar, pousado sobre uma mesa de apoio. Localizou o segundo na mesa-de-cabeceira do quarto e o terceiro na sala que ela usava como escritório. Acoplou a cada um deles um dispositivo miniatura conhecido no léxico do Escritório como "vidro", um transmissor que iria fornecer cobertura tanto para o telefone, como para a sala à sua volta. A uma distância de cerca de mil metros, permitiria a Gabriel usar a sua suite no Intercontinental como posto de áudio.

Encontrou também no escritório o segundo artigo da sua lista de alvos, o computador da Mimi. Sentou-se, ligou o computador e introduziu um CD no drive. O software correu automaticamente e começou a recolher dados guardados no disco duro: caixas de e-mail, documentos, fotografias, até arquivos de áudio e vídeo. Enquanto os arquivos eram copiados para o CD, Gabriel deu uma olhadela ao resto do escritório. Vasculhou um molho de correspondência, abriu as gavetas da secretária, olhou de relance para os arquivos. A ausência de tempo permitiu-lhe apenas um exame superficial dos artigos, e Gabriel não encontrou nada que lhe chamasse a atenção.

Verificou o progresso do download, e em seguida levantou-se e fez incidir o feixe da Maglite pelas paredes. Uma delas estava coberta por várias fotografias emolduradas. A maior parte mostrava a Mimi na companhia de outras pessoas bonitas. Numa delas viu uma versão mais jovem da Mimi, com um kaffiyeh envolvendo-lhe os ombros. Tinha como fundo as Pirâmides de Gize que, como o rosto dela, eram banhadas por um tom siena projetado pelo sol poente — Mimi, a idealista New Age que tentava salvar o mundo da destruição através do poder do pensamento positivo.

Uma segunda fotografia chamou a atenção de Gabriel: a Mimi, de cabeça pousada numa almofada cor de lavanda, a olhar diretamente para a lente. O seu rosto estava colado ao de um homem que fingia dormir e que tinha um chapéu puxado sobre os olhos, deixando-lhe assim visíveis apenas o nariz, a boca e o queixo — o suficiente de um rosto, sabia-o Gabriel, para que os especialistas fizessem um reconhecimento facial conclusivo. Tirou uma pequena máquina fotográfica digital da sacola do Herr Klemp e fotografou a fotografia.

Regressou para junto da secretária e viu que o download estava terminado.

Retirou o CD da drive e desligou o computador. Depois olhou para o relógio. Estivera no interior do apartamento durante sete minutos, mais dois minutos do que tinha planejado. Deixou cair o CD para dentro da sacola, dirigindo-se em seguida à porta de entrada, onde se deteve por um instante para se certificar de que o patamar estava vazio antes de sair.

As escadas estavam vazias, como o hall, com exceção do porteiro núbio, que desejou a Gabriel uma boa noite quando passou por ele e saiu para rua. Quinnell, a imagem perfeita da indiferença, estava sentado em cima do capot do carro a fumar um cigarro. Como um bom profissional, manteve os olhos baixos até Gabriel ter virado à esquerda e ter começado a andar em direção à ponte Tahrir.

Na manhã seguinte, Herr Klemp ficou doente. Depois de ter recebido uma descrição desagradavelmente pormenorizada dos sintomas, o Sr. Katubi diagnosticou uma desordem bacteriana e previu que o desfecho seria violento, mas rápido. — A cidade do Cairo traiu-me — queixou-se Herr Klemp. — Fui seduzido por ela, e retribuiu o meu afecto com a vingança.

A previsão do Sr. Katubi de uma recuperação rápida demonstrou ser errónea. A tempestade nos intestinos de Herr Klemp assolou-os ao longo de muitos dias e noites. Foram chamados médicos, receitados medicamentos, mas nada parecia funcionar. O Sr. Katubi pôs de parte o ressentimento que nutria por Herr Klemp e assumiu pessoalmente a responsabilidade de cuidar dele. Receitou-lhe uma poção, provada pelo tempo, de batatas cozidas salpicadas com sumo de limão e sal, preparado que lhe entregava três vezes ao dia.

A doença suavizou o comportamento do Herr Klemp. Mostrava-se agradável para com o Sr. Katubi e até se desculpava junto das empregadas de quarto que tinham de lhe limpar a medonha casa de banho. Por vezes, quando o Sr. Katubi entrava no quarto, ia encontrar Herr Klemp sentado na cadeira de braços junto à janela, a olhar, fatigado, para o rio. Passava contudo a maior parte do tempo apaticamente 156 estendido na cama. Por forma a aliviar o tédio do cativeiro, ouvia música e os noticiários em alemão pelo seu rádio de ondas curtas, com os minúsculos receptores para não perturbar os outros hóspedes. O Sr. Katubi deu por si com saudades do velho Johannes Klemp. Por vezes, erguia os olhos do seu posto no hall e ansiava por ver o rabugento alemão atravessar pesadamente o chão de mármore com as abas do casaco a bater e o maxilar endurecido para o confronto. Certa manhã, uma semana exata depois de Herr Klemp ter ficado doente, o Sr. Katubi bateu-lhe à porta e ficou surpreso com a voz vigorosa que o mandou entrar. Passou o cartão pela ranhura da porta e entrou. Herr Klemp estava a fazer a malas.

— A tempestade terminou, Katubi.

— Tem certeza?

— Tanta quanto é possível numa situação como esta.

— Lamento que o Cairo o tenha tratado tão mal, Herr Klemp. Imagino que a decisão para prolongar a sua estada tenha afinal sido um erro.

— Talvez, Katubi, mas também nunca fui homem de ficar preso ao passado, nem você o devia fazer.

— É uma doença árabe, Herr Klemp.

— Eu não sofro dessa doença, Katubi. — Herr Klemp colocou o seu rádio de ondas curtas no saco e fechou o fecho. — Amanhã é outro dia.

Chovia em Frankfurt naquela tarde: o piloto da Lufthansa dissera-o abundantes vezes. Falara da chuva quando ainda se encontravam em terra, no Cairo, e fornecera-lhes entediantes atualizações por duas vezes durante o voo. Gabriel deixara-se prender pela laboriosa voz do piloto, pois ela dava-lhe algo que fazer além de olhar para o relógio e calcular as horas até o próximo massacre de inocentes levado a cabo pelo Khaled. Quando se aproximavam de Frankfurt, encostou a cabeça ao vidro e olhou para fora, esperando vislumbrar as primeiras luzes da planície do Sul da Alemanha, mas, em seu lugar, viu apenas escuri dão. O jato mergulhou nas nuvens, e a sua janela foi riscada por fios horizontais de água da chuva — e nessas velozes gotículas viu Gabriel as equipes do Khaled posicionarem-se para o ataque seguinte.

Depois, 157 subitamente, surgiu a pista de aterragem, uma folha de mármore negro polido erguendo-se devagar para os receber, e desceram.

No terminal, dirigiu-se a uma cabina telefônica e marcou o número de uma empresa de transporte em Bruxelas. Identificou-se como Stevens, um dos seus muitos nomes telefônicos, e pediu para falar com o Sr. Parsons. Ouviu uma série de estalidos e de zumbidos, seguidos de uma voz feminina, distante e com um ligeiro eco. Gabriel sabia que a moça estava naquele momento sentada ao balcão do Controle de Operações no Boulevard King Saul.

— Que deseja? — perguntou ela.

— Identificação por voz. — Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Recorrendo a termos hebraicos que nenhum ouvinte poderia compreender, Gabriel confiou concisamente à moça os meios técnicos com que captara e gravara a voz do sujeito.

— Passe por favor a gravação.

Gabriel pressionou o botão PLAY e levou o gravador ao bocal do receptor.

Voz masculina, francês perfeito.

"Sou eu. Dá-me uma apitadela quando puderes. Não é nada de urgente. Gao."

Baixou o gravador e colou o receptor ao ouvido.

— Não temos nada compatível em arquivo — disse a mulher.

— Compare-a com a impressão vocal não identificada 698/D. — A aguardar. — Depois um momento mais tarde: — Combina.

— Preciso identificar um número telefônico.

Gabriel localizou a segunda intercepção, pressionou PLAY e tornou a levar o gravador até o telefone. Ouvia-se a Mimi Ferrere a fazer uma chamada internacional do telefone do seu escritório. Quando o último número foi marcado, Gabriel pressionou PAUSE.

A mulher na outra extremidade da linha recitou o número: 00 33 54 67 98. Gabriel sabia que o 33 era o código da França e que o 91 era o código para a cidade de Marselha. — Faça a ligação — disse ele.

— Um momento.

Passados dois minutos, a mulher disse:

O telefone está registrado em nome de um Monsieur Paul Véran, Boulevard St-Rémy, Marselha.

— Preciso de outra identificação vocal.

— Qualidade?

— Igual à anterior.

— Passe a gravação.

Gabriel tornou a pressionar o PLAY, mas dessa vez a voz foi abafada pelo som de um aviso de segurança, em alemão, gritando do altifalante acima da sua cabeça: Achtung! Achtung! Terminado o aviso, tornou a premir PLAY. Dessa vez a voz, feminina, era claramente audível.

"Sou eu. Onde estás? Telefona-me quando puderes. Adoro-te."

STOP.

— Nada de compatível em arquivo.

— Compare com a impressão vocal não identificada 572/B.

— A aguardar. — E depois: — Combina.

— Aponte, por favor, que o sujeito dá pelo nome de Mimi Ferrere. A morada dela é Rua Brasil 24, apartamento 6A, Cairo.

Acrescentei-a ao arquivo. Tempo decorrido nesta chamada: .32 minutos. Mais alguma coisa?

— Preciso que me envie uma mensagem ao Ezekiel.

Ezekiel era o código telefônico para o departamento de Operações.

— A mensagem é?

— O nosso amigo está a passar algum tempo em Marselha, no endereço que me deu.

— Número 56 Boulevard St-Rémy?

— Exatamente — disse Gabriel. — Preciso de instruções do Ezekiel para continuar.

— Estás a telefonar do aeroporto de Frankfurt?

— Sim.

— Vou desligar. Vá para outro lugar e torne a ligar daqui a cinco minutos. Terei então instruções para si.

Gabriel desligou. Dirigiu-se a um quiosque de jornais, onde comprou uma revista alemã, e percorreu depois uma curta distância no terminal até junto de outro grupo de telefones. O mesmo número, a mesma conversa, a mesma moça em

Tel Aviv.

— Ezekiel quer que vá a Roma.

— Roma? Por que Roma?

— Bem sabe que não sei responder.

Não interessava. Gabriel sabia a resposta.

— Para onde devo ir?

— O apartamento perto da Piazza di Spagna. Conhece-o? Conhecia. Era um encantador apartamento de segurança ao alto da Escadaria Espanhola, não muito longe da Igreja da Trinta dei Monti. — Há um voo de Frankfurt para Roma dentro de duas horas. Vamos reservar-lhe um lugar.

— Quer o meu número de passageiro frequente?

— O quê?

— Deixe lá.

— Boa viagem — disse a moça, e a chamada desligou-se.


PARTE TRÊS


A Gare de Lyon


CAPÍTULO 15

MARSELHA

 

 

Pela segunda vez em dez dias, Paul Martineau fez a viagem de Aix-en-Provence para Marselha. Tornou a entrar no café da pequena rua ao fundo da Rue des Convalescents e subiu as escadas estreitas até o apartamento do primeiro andar, onde de novo foi saudado no patamar por uma figura encapuzada que falou com ele em árabe em voz baixa. Sentaram-se, encostados a almofadas de seda, no chão da minúscula sala de estar. O homem introduziu lentamente haxixe no cachimbo de água e levou um fósforo aceso ao fornilho. Em Marselha, era conhecido como Hakim el-Bakri, um imigrante recente da Argélia. Martineau conhecia-o por outro nome, Abu Saddiq. Martineau não o tratava por esse nome, como Abu Saddiq não tratava Martineau pelo nome que lhe fora dado pelo seu verdadeiro pai.

Abu Saddiq sugou longamente a boquilha do cachimbo, inclinando-o em seguida na direção de Martineau. Martineau puxou longamente o haxixe e deixou que o fumo lhe subisse às narinas. Depois acabou o seu café. Uma mulher de véu levou-lhe a xícara vazia e ofereceu-lhe outra. Quando Martineau sacudiu a cabeça, a mulher saiu silenciosamente do quarto.

Fechou os olhos enquanto uma onda de prazer se lhe abatia sobre o corpo. O estilo árabe, pensou: um pouco de fumo, uma xícara de café doce, a subserviência de uma mulher que conhecia o seu lugar na vida. Embora tivesse sido criado como verdadeiro francês, era sangue árabe que lhe corria nas veias e o árabe que ele sentia mais confortável na língua. A linguagem do poeta, a linguagem da conquista e do sofrimento. Havia alturas em que a separação do seu povo era quase demasiado dolorosa para suportar. Na Provença, ele estava rodeado por 164 pessoas como ele, e, no entanto, não lhes podia tocar. Era como se ele tivesse sido condenado a vaguear entre eles, como um espírito amaldiçoado vagueia entre os vivos. Apenas ali, no minúsculo apartamento de Abu Saddiq, podia transformar-se no homem que verdadeiramente era. Abu Saddiq compreendia isso, razão por que parecia não ter pressa de chegar ao assunto. Enfiou mais haxixe no cachimbo de água e acendeu outro fósforo.

Martineau deu outra passa no cachimbo, desta vez mais profundamente do que a anterior, e susteve o fumo até lhe parecer que os pulmões iam rebentar. Sentia agora a mente a flutuar. Viu a Palestina, não com os seus olhos, mas como lhe fora descrita por aqueles que a tinham de fato visto. Martineau, à semelhança do pai, nunca lá colocara um pé. Os limoeiros e olivais: foi isso que imaginou. Fontes frescas e cabras subindo as colinas castanhas do Galileu. Um pouco como a Provença, pensou ele, antes da chegada dos Gregos. A imagem desintegrou-se, e deu por si a vaguear por uma paisagem de ruínas celtas e romanas. Chegou a uma aldeia, uma aldeia na planície costeira da Palestina. Beit Sayeed, como lhe chamavam. Agora nada mais restava do que uma pegada no solo empoeirado. Na sua alucinação, Martineau caiu de joelhos e arranhou a omoplata na terra. Nada lhe restituía, nem ferramentas nem cerâmicas, nem moedas nem restos humanos. Era como se o povo se tivesse simplesmente desvanecido.

Obrigou-se a abrir os olhos. A visão dissipou-se. A sua missão iria em breve acabar. Os assassinatos do pai e do avô seriam vingados, o seu direito inalienável cumprido. Martineau estava confiante de que não iria passar os seus últimos dias como um francês da Provença, mas como um árabe na Palestina. O seu povo, perdido e espalhado, seria devolvido à terra, e Beit Sayeed tornaria a erguer-se do túmulo. Os dias dos judeus estavam contados. Haveriam de partir, como todos aqueles que tinham chegado à Palestina antes deles: os Gregos e os Romanos, os Persas e os Assírios, os Turcos e os Ingleses. Martineau estava convencido de que um dia, em breve, andaria à procura de artefatos entre as ruínas de um assentamento judaico.

Abu Saddiq estava a puxar-lhe a manga da camisa e a chamá-lo pelo seu verdadeiro nome. Martineau virou lentamente a cabeça e fitou Abu Saddiq com um olhar de pálpebras pesadas.

— Sou Martineau — disse ele em francês. — Paul Martineau. Doutor Paul Martineau.

— Estiveste longe por um momento.

— Estive na Palestina — murmurou Martineau, de fala arrastada pela droga. — Em Beit Sayeed.

— Não tarda a que estejamos todos lá — disse Abu Saddiq.

Martineau lançou-lhe um sorriso — não de arrogância, mas de silenciosa confiança. Buenos Aires, Istambul, Roma: três atentados, cada um deles planejado e executado sem falhas. As equipes tinham colocado os explosivos no alvo e desaparecido sem deixar rasto. Durante cada uma das operações, Martineau escondera-se com trabalho arqueológico e operara através de um intermediário. Abu Saddiq estava a tratar da operação de Paris. Martineau concebera-a e planejara-a; a partir do seu café no Quartier Belsunce, Abu Saddiq movia as peças de xadrez ao comando de Martineau. Quando estivesse terminado, Abu Saddiq sofreria o mesmo destino de todos aqueles que Martineau usara. Aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca permitiria ser desmascarado por um traidor árabe.

Abu Saddiq estendeu o cachimbo a Martineau, que ergueu a mão num gesto de rendição. Depois, com um lento aceno da cabeça, instruiu Abu Saddiq para continuar com a reunião final. Durante a meia hora seguinte, Martineau permaneceu em silêncio, enquanto Abu Saddiq falava: a localização das equipes, as moradas em Paris onde as bombas-mala estavam a ser montadas, o estado emocional dos três shaheeds. Abu Saddiq parou de falar enquanto a mulher velada lhes servia mais café. Quando ela tornou a sair, Abu Saddiq referiu que o último membro da equipe iria chegar a Marselha dentro de dois dias.

— Ela quer ver-te — disse Abu Saddiq. -Antes da operação. Martineau sacudiu a cabeça. Conhecia a moça — tinham sido amantes — , e sabia porque é que ela o queria ver. Era melhor do que agora não passassem tempo juntos. De outro modo, Martineau poderia ter segundas intenções acerca daquilo que planejara para ela.

— Mantemo-nos com o plano original — disse ele. — Onde é que me encontro com ela?

— O café da Internet no porto. Conhece-o?

Martineau conhecia.

Ela vai lá estar às 12.30 horas.

Nesse instante, do minarete de uma mesquita ao alto da rua, o muegin convocou os fiéis para a oração. Martineau fechou os olhos enquanto era banhado pelas palavras familiares.

Deus é maior. Testemunho que não existe nenhum deus além de Deus.

Testemunho que Maomé é o Profeta de Deus. Venham à oração. Venham ao êxito. Deus é maior. Não há nenhum deus além de Deus.

Uma vez terminada a chamada à oração, Martineau levantou-se e preparou-se para partir.

— Onde está o Hadawi? — perguntou.

— Em Zurique.

— É um fardo, não achas? Abu Saddiq assentiu.

— Mando-o para outro lugar? — Não — disse Martineau. — Mata-o.

Quando chegou à Place de la Préfecture, Martineau sentia-se de cabeça desanuviada. Como eram diferentes as coisas deste lado de Marselha, pensou. As ruas eram mais limpas, as lojas mais abundantes. Martineau, o arqueólogo, não conseguia evitar refletir sobre a natureza dos dois mundos que existiam lado a lado nesta antiga cidade. Um centrava-se na devoção, o outro no consumo. Um tinha muitos filhos, o outro considerava as crianças como um fardo financeiro. Martineau sabia que os Franceses não tardariam a ser uma minoria no seu próprio país, colonos na sua própria terra. Algures em breve, um século, talvez um pouco mais, a França seria um país muçulmano.

Virou para o Boulevard St-Rémy. Bordejada de árvores e dividida ao meio por um estacionamento a pagar, a rua subia ligeiramente num ângulo em direção a um pequeno parque verde com uma vista sobre o velho porto. Os edifícios de ambos os lados eram de majestosa pedra cinza e uniformes em altura. As janelas do piso térreo eram cobertas por barras de ferro. Muitos dos edifícios continham escritórios — advogados, médicos, agentes imobiliários — e mais ao alto da rua havia dois bancos e uma enorme loja artigos de decoração. Ao fundo da rua, na extremidade da Place de la Préfecture, havia um par de quiosques em frente um do outro: um vendia jornais, e o outro, sanduíches. Durante o dia havia um pequeno mercado na rua, mas agora ao crepúsculo os vendedores tinham guardado o queijo e os legumes frescos e ido para casa.

O edifício do número 56 era apenas residencial. O hall estava limpo e a escadaria era ampla, com um corrimão de madeira e uma passadeira nova. O apartamento estava vazio, com exceção de um único sofá branco e um telefone no chão. Martineau dobrou-se, levantou o receptor e marcou um número. Um atendedor de chamadas, como esperara.

— Estou em Marselha. Telefona-me quando puderes.

Desligou, depois sentou-se no sofá. Sentia a pressão da arma contra os rins. Inclinou-se para a frente e tirou-a do cós da calça. A Stechkin de nove milímetros — a arma do seu pai. Por muitos anos após a morte do pai em Paris, a arma ficara a acumular pó num depósito da Polícia, como prova de um julgamento que nunca viria a ocorrer. Um agente do serviço secreto franceses levara clandestinamente a arma para Túnis em 1985 e oferecera-a a Arafat. Arafat tinha-a dado a Martineau.

O telefone tocou. Martineau respondeu.

— Monsieur Véran?

— Mimi, meu amor — respondeu Martineau. — Que bom ouvir a tua voz.

CAPÍTULO 16

ROMA

 

 

O telefone acordou-o. Como os telefones do apartamento de segurança, não tinha campainha, apenas uma luz pulsante, luminosa com um marcador de canal, que transformou as suas pálpebras em vermelho. Estendeu a mão e levou o receptor ao ouvido.

— Acorda — disse Shimon Pazner.

— Que horas são?

— Oito e meia.

Gabriel tinha dormido 12 horas.

— Veste-te. Há uma coisa que tens de ver, já que estás na cidade.

— Analisei as fotografias, li todos os relatórios. Não preciso ver nada.

— Precisa, sim.

— Por quê?

— Porque vai te chatear.

— E que bem isso fará?

— Às vezes precisamos que nos chateiem — disse Pazner. Encontro-me contigo na escadaria da Galleria Borghese dentro de uma hora. Não me deixes feito parvo à tua espera.

Pazner desligou. Gabriel levantou-se da cama e deixou-se ficar debaixo do chuveiro durante muito tempo, equacionando se deveria fazer a barba. Por fim, acabou por se decidir a apará-la. Vestiu um dos ternos escuros de Herr Klemp e dirigiu-se à Via Veneto para tomar café. Uma hora depois de ter desligado a chamada de Pazner seguia por um caminho de cascalho sombreado em direção à escadaria da galeria. O katsa de Roma estava sentado num banco de mármore no pátio anterior, a fumar um cigarro.

— Bela barba — disse Pazner. — Céus, estás com um aspecto terrível.

— Precisava de uma desculpa para ficar no meu quarto de hotel no Cairo.

— Como é que o conseguiste?

Gabriel contou-lhe. Um produto farmacêutico vulgar que, quando ingerido e não devidamente administrado, tinha um efeito desastroso, embora temporário, no trato digestivo.

— Quantas doses tomaste?

— Três.

— Pobre coitado.

Atravessaram os jardins no sentido norte: Pazner como um homem a marchar ao som de um tambor que só ele ouvia, e Gabriel a seu lado, exausto por força de excesso de viagens e de preocupações. No perímetro do parque, perto dos jardins botânicos, situava-se a abertura para o beco sem saída. Durante dias depois do atentado, a imprensa mundial mantivera-se acampada no cruzamento. O chão continuava pejado de pontas de cigarros e de copos de plástico esmagados. Aos olhos de Gabriel era como um pedaço de terra arável depois do festival anual das colheitas.

Entraram numa rua e desceram o declive da encosta até chegarem a uma barricada de aço temporária, controlada pela Polícia italiana e pelos seguranças israelenses. Pazner foi imediatamente admitido, bem como o seu conhecido, um alemão de barba.

Uma vez atrás da cerca puderam ver os primeiros sinais de danos: o pinheiro queimado sem as suas agulhas; as janelas partidas das villas vizinhas; os pedaços de destroços retorcidos espalhados por toda a parte como papel amachucado no lixo. Mais alguns passos e a cratera da bomba surgiu à vista, com pelo menos três metros de profundidade e rodeada por um halo de pavimento queimado. Pouco restava dos edifícios mais próximos do ponto de impacto; mais no interior do complexo, as estruturas permaneciam de pé, mas os lados de frente para a explosão tinham sido arrancados, por isso o efeito parecia o de uma casa de bonecas. Gabriel lançou um olhar ao escritório intato, onde as fotografias emolduradas continuavam sobre a secretária, e à casa de banho, com uma toalha ainda pendurada no varão. O ar estava pesado devido ao cheiro de cinza e àquilo que Gabriel temia ser o cheiro persistente de carne queimada. Vindo das profundezas do complexo chegou-lhe o arranhar e o rugir das escavadoras e dos bulldozers. A cena do crime, como o cadáver de uma vítima de homicídio, tinha dado as suas pistas finais. Agora era a altura do enterro.

Gabriel ficou mais tempo do que julgara que ficaria. Nenhuma ferida passada, real ou imaginada, nenhuma ofensa ou disputa política justificava um ato de homicídio àquela escala. Pazner tinha razão: o simples fato de ver a cena provocava em si uma fúria imensa. Mas havia outra coisa, outra coisa além da fúria. Enchia-o de ódio. Virou-se e começou a subir a colina. Pazner seguiu-o em silêncio.

— Quem te disse para me trazeres aqui?

— Foi ideia minha.

— Quem?

— O velho — disse Pazner em voz baixa. — Por quê?

— Não sei por quê. Gabriel deteve-se.

— Porquê, Shimon?

— O Varash reuniu ontem depois de teres chegado a Frankfurt. Volta para o apartamento de segurança. Espera aí por mais instruções. Em breve, alguém entrará em contato contigo.

E com essas palavras Pazner atravessou a rua e desapareceu na Villa Borghese. Mas ele não regressou ao apartamento de segurança. Em vez disso, encaminhou-se na direção oposta, para os bairros residenciais do Norte de Roma. Encontrou a Via Trieste e seguiu-a para oeste, até chegar, passados dez minutos, a uma praça pequena e confusa chamada Piazza Annibaliano.

Pouco se alterara naquela praça durante os 30 anos passados desde que Gabriel a vira pela primeira vez: o mesmo grupo de árvores melancólicas ao centro da praça, as mesmas lojas sombrias que forneciam clientes de classe baixa. E na extremidade norte, enfiado entre duas ruas, encontrava-se o mesmo prédio, com o formato de uma fatia de tarte, com a ponta para a praça e o Bar Trieste no piso térreo. Zwaiter costumava parar no bar para usar o telefone antes de subir as escadas até o seu quarto.

Gabriel atravessou a praça, abrindo caminho através dos carros e das motas perigosamente estacionadas no centro, e entrou no edifício pela soleira marcada "Entrada C". O hall estava frio e escuro. As luzes, lembrou-se Gabriel, funcionavam com um temporizador para poupar eletricidade. A vigilância do edifício tinha notado que os residentes, incluindo Zawiter, raramente se incomodavam a ligá-los — um fato que demonstraria ser uma vantagem operacional para Gabriel, porque lhe assegurara virtualmente o benefício de trabalhar no escuro. Nesse momento, parou diante do elevador, ao lado do qual havia um espelho. A vigilância tinha-se esquecido de o mencionar. Naquela noite, ao ver o seu reflexo no espelho, Gabriel quase pegara na Beretta e disparara. Em vez disso, enfiou a mão no bolso do casaco para procurar uma moeda e estava a estendê-la em direção à ranhura de pagamento no elevador quando Zwaiter, que usava um casaco simples e segurava um saco de papel contendo uma garrafa de vinho de figo, entrou pela última vez na Entrada C.

"Desculpe, mas não é o Wadal Zwaiter?"

"Não! Por favor, não!"

Gabriel deixara que a moeda lhe caísse da ponta dos dedos. Antes de chegar ao chão, sacara da Beretta e disparara os seus dois primeiros tiros. Um dos cartuchos despedaçou o saco de papel antes de atingir Zwaiter no peito. Vinho e sangue misturaram-se aos pés de Gabriel enquanto ele continuava a disparar para o corpo em queda do palestino.

Nesse momento, olhou para o espelho e viu-se como fora naquela noite, um rapaz anjo com um blusão de couro, um artista que não fazia ideia de como o ato que estava a cometer iria alterar para sempre o curso da sua vida. Transformara-se noutra pessoa. E outra pessoa permanecera então. Shamron não lhe tinha dito que isso ia acontecer. Ensinara-o a sacar de uma arma e a disparar num segundo, mas nada fizera para o preparar para o que ia acontecer a seguir. Defrontar-se com um terrorista nos termos do outro, no seu campo de batalha, exige um preço terrível. Altera os homens que o fazem, bem como a sociedade que os envia.

É a derradeira arma do terrorista. Para

Gabriel, as alterações também eram visíveis. Na altura em que entrara a cambalear em Paris para a sua missão seguinte, já tinha as têmporas grisalhas.

Tornou a olhar para o espelho e viu a figura de barba do Herr Klemp a retribuir-lhe o olhar. Na sua mente dispararam imagens do caso: uma embaixada arrasada, o seu próprio dossiê, Khaled... Teria Shamron razão? Estaria Khaled a enviar uma mensagem? Teria Khaled escolhido Roma devido ao que Gabriel fizera 30 anos antes naquele mesmo lugar?

Ouviu o suave arrastar de passos atrás de si: uma mulher velha, envergando o negro da viuvez, a segurar um saco plástico com mercearias. Olhou diretamente para ele. Por um instante, receou que ela de algum modo se lembrasse dele. Gabriel desejou-lhe uma boa manhã e tornou a sair para a praça inundada de luz. Sentia-se subitamente febril. Caminhou durante algum tempo pela Via Trieste, depois fez sinal a um táxi e pediu ao motorista que o levasse à Praça de Espanha. Ao entrar no apartamento de segurança, viu uma cópia do La Repubblica daquela manhã no chão do hall da entrada. Na página seis encontrava-se um anúncio grande de um carro desportivo italiano. Gabriel olhou atentamente para o anúncio e viu que ele tinha sido cortado de uma outra edição do jornal e colado sobre a página correspondente. Rasgou as extremidades da página e descobriu, escondida entre duas páginas, uma folha de papel contendo o texto codificado da mensagem. Depois de a ter lido, queimou-a no lava-louças e tornou a sair. Adquiriu uma mala de viagem nova na Via Condotti e passou a hora seguinte a comprar a roupa adequada ao seu destino seguinte. Regressou a um apartamento de segurança durante o tempo suficiente para encher o seu novo saco, depois foi almoçar no Nino, na Via Borgognona. Às duas da tarde, apanhou um táxi para o aeroporto Fiumicino, e às cinco e meia embarcou num voo para a Sardenha. Enquanto o avião de Gabriel ganhava velocidade na pista de descolagem, Amira Assaf surgia ao portão da frente da Clínica Stratford e mostrava o cartão identificativo ao guarda de segurança, que o examinou cuidadosamente, fazendo depois sinal para avançar. Ela fez girar o manipulo da mota e desceu, acelerada, os metros do caminho de cascalho em direção à mansão. O Dr. Avery estava a sair para a noite, acelerando em direção ao portão no seu grande Jaguar prateado. Amira tocou a buzina e acenou-lhe, mas ele ignorou-a e passou por ela inundando-a num chuveiro de pó e cascalho.

O estacionamento para o pessoal situava-se no pátio dos fundos. Ela colocou a mota no descanso, retirou a mochila do compartimento do assento e deixou o capacete no seu lugar. Duas moças iam a sair do serviço. Amira deu-lhes as boas noites, e utilizou em seguida o seu cartão para abrir a entrada de segurança do pessoal. O relógio de ponto estava montado na parede do hall. Encontrou o cartão, na terceira ranhura do fundo, e picou-o: 17h56. O vestiário ficava a alguns passos do início do corredor. Amira entrou e vestiu o uniforme: calças brancas, sapatos brancos e uma bata cor de pêssego que o Dr. Avery acreditava ser calmante para os doentes. Passados cinco minutos apresentou-se ao serviço na janela da enfermeira-chefe. Ginger Hall, uma loira oxigenada de lábios escarlate, olhou para cima e sorriu.

— Novo penteado, Amira? Muito bonito. Céus, o que eu não faria para ter um cabelo forte e negro como o teu.

— Podes ficar com ele, bem como com a pele morena, os olhos negros e todas as outras coisas que os acompanham.

— Ah, deixa-te disso, querida. Aqui somos todas enfermeiras. Só estamos a fazer o nosso trabalho e a tentar fazer uma vida decente.

— Talvez, mas lá fora as coisas são diferentes. Que tens para mim?

— Lee Martinson. Está no solário. Leva-a para o quarto. Deita-a para a noite. — Aquele tipo grande ainda anda à volta dela?

— O guarda-costas? Ainda. O Dr. Avery acha que ele vai andar por aqui algum tempo.

— Porque é que uma mulher como Miss Martinson precisa de um guarda-costas? — É confidencial, minha querida. Altamente confidencial.

Amira desceu o corredor. Passado um momento, chegou à entrada do solário. Ao entrar, a umidade saudou-a como um cobertor úmido. Miss Martinson estava na sua cadeira de rodas, a olhar para as janelas escurecidas. O guarda-costas, ao ouvir Amira aproximar-se, levantou-se. Era um homem grande e de constituição pesada, de uns vinte anos, com cabelo curto e olhos azuis. Falava com um sotaque inglês, mas Amira duvidava que ele fosse verdadeiramente inglês. Ela baixou o olhar para Miss Martinson.

— Está a ficar tarde, minha querida. Já é hora de subir as escadas e de se preparar para dormir.

Empurrou a cadeira de rodas para fora do solário e ao longo do corredor até os elevadores. O guarda-costas premiu o botão de chamada. Passado um instante entraram no elevador e subiram em silêncio até o quarto dela, no quarto piso. Antes de entrar, Amira deteve-se e olhou para o guarda-costas.

— Vou dar-lhe banho. Porque não espera aqui até eu ter terminado?

— Para onde quer que ela vá, eu vou.

— Nós fazemos isto todas as noites. A pobre mulher merece um pouco de privacidade.

— Para onde quer que ela vá, eu vou — repetiu ele.

Amira sacudiu a cabeça e empurrou Miss Martinson para o seu quarto, seguida do guarda-costas, que avançava em silêncio atrás de si.

CAPÍTULO 17

BOSA, SARDENHA

 

 

Durante dois dias Gabriel esperou que eles estabelecessem contato. O hotel, pequeno e de cor ocre, situava-se no antigo porto junto ao local onde o rio Temo desaguava no mar. O quarto dele ficava no último piso e tinha uma pequena varanda com um corrimão de ferro. Acordava tarde, tomava o pequeno-almoço na sala de jantar e passava as manhãs a ler. Ao almoço, comia massa com peixe num dos restaurantes do porto, e depois ia a pé até a estrada que conduzia à praia, a norte da cidade, e estendia a toalha na areia para dormir mais um pouco. Passados dois dias, a sua aparência melhorara apreciavelmente. Ganhara peso e força, e a pele sob os seus olhos já não tinha um ar castanho amarelado e de icterícia. Até começava a gostar do seu aspecto com barba.

Na terceira manhã, o telefone tocou. Ouviu as instruções sem falar, e depois desligou. Tomou uma ducha e vestiu-se, fez a mala e desceu as escadas para ir almoçar. Depois do almoço pagou a conta, colocou a mala no porta-bagagens do carro que tinha alugado em Cagliari e dirigiu para o norte, ao longo de cerca de 50 quilômetros, até a cidade portuária de Alghero. Deixou o carro na rua onde lhe tinham dito que o deixasse, e atravessou um beco sombrio que ia desembocar em frente ao mar.

Dina estava sentada num café no cais, a beber café. Tinha óculos escuros, sandálias e um vestido sem mangas; o cabelo escuro chegava-lhe até os ombros e brilhava à luz ofuscante refletida pelo mar. Gabriel desceu um lance de escadas de pedra até o cais e entrou num bote de 4,50 metros em cujo casco se lia a palavra Fidelity. Ligou o motor, um Yamaha de 90 cavalos, e soltou as amarras. Dina juntou-se a ele passado um instante e disse-lhe, num francês sofrível, que se dirigisse ao enorme iate branco a motor ancorado a cerca de 800 metros da linha da costa num mar turquesa.

Gabriel levou o bote devagar para fora do porto, e depois, ao chegar a mar aberto, aumentou a velocidade e seguiu oscilando em direção ao iate sobre as vagas suaves. Ao aproximar-se, Rami, de calções de caqui e camisa branca, subiu para a popa. Desceu para o degrau das escadas de mergulho e estava aí à espera, de mão estendida, enquanto Gabriel se ia aproximando.

Quando entraram, o salão principal parecia uma subestação do quartel-general da equipe na cave Boulevard King Saul. Das paredes pendiam mapas em larga escala e fotografias aéreas, e o eletrônico de bordo fora acrescido do tipo de técnico de comunicações que Gabriel não via desde o assassinato de Abu Jihad. Yaakov ergueu o olhar de um dos monitores do terminal e estendeu a mão. Shamron estava sentado a uma mesa na pequena cozinha do iate, usando calças caqui e uma camisa branca de manga curta. Puxou os óculos graduados para a testa e estudou Gabriel como se ele fosse um documento ou outro mapa. — Bem-vindo ao Fidelity — disse ele — , uma combinação de posto de comando e apartamento de segurança. — Onde é que o arranjou?

— É de um amigo do Escritório. Por acaso, estava em Cannes. Nós o levamos para o mar e acrescentamos o adicional de que precisávamos para nossa viagem. Também mudamos o nome.

— Quem o escolheu?

— Eu — disse Shamron. — Significa lealdade e fidelidade.

— ... e uma devoção ao dever ou aos nossos votos ou obrigações - disse Gabriel. - Eu sei o que significa. Também sei por que o escolheu... pelo mesmo motivo pelo qual disse a Shimon Pazner para me levar às ruínas da embaixada.

— Achei importante que visse. Por vezes, quando alguém se encontra no meio de uma operação como esta, o inimigo pode tornar-se um pouco como uma abstração. É fácil esquecer a sua verdadeira natureza. Achei que precisasse avivar sua memória.

— Faço isto há muito tempo, Ari. Conheço a natureza do meu inimigo e sei o que significa ser leal. — Gabriel sentou-se à mesa, em frente a Shamron. — Ouvi dizer que o Varash se reuniu depois de eu ter saído do Cairo. Imagino que a decisão deles seja mais do que óbvia.

— Khaled foi julgado — disse Shamron — , e o Varash expressou o seu veredicto. Gabriel executara as sentenças desses processos, mas na verdade nunca presenciara um. Eram uma espécie de julgamento, mas pesavam muito a favor da acusação e eram conduzidos sob circunstâncias tão secretas que os acusados nem sequer sabiam da sua existência. Os réus não tinham advogados nessa sala de tribunal; os seus destinos não eram decididos por um júri dos seus pares, mas sim pelos seus inimigos mortais. A prova de culpa era indiscutível. Nunca eram apresentadas provas abonatórias. Não havia transcrições nem qualquer forma de apelo. Apenas uma sentença era possível, e ela era irrevogável.

— Já que eu sou o agente de investigação, importas-te que te dê uma opinião acerca do caso?

— Se tiveres de o fazer.

— O caso contra o Khaled é totalmente circunstancial, e tênue, no mínimo. — O rasto de provas é claro — disse Shamron. — E começamos a seguir esse rasto baseados na informação que nos foi dada por uma fonte palestina.

— É isso que me preocupa. Yaakov juntou-se a eles à mesa.

— Mahmoud Arwish é há vários anos um dos nossos ativos de topo no seio da Autoridade palestina. Tudo que ele nos disse mostrou estar certo. — Mas nem Arwish está certo de que o homem naquela fotografia é o Khaled. O caso é um castelo de cartas. Se se descobrir que uma das cartas não é a verdadeira, então todo o caso vai ao ar... e acabamos com um homem morto numa rua francesa. — A única coisa que sabemos a respeito da aparência do Khaled é que foi dito que ele tinha uma semelhança espantosa com o seu avô disse Shamron. — Eu sou a única pessoa nesta sala que viu o xeque de frente, e vi-o em circunstâncias impossíveis de esquecer. — Shamron levantou a fotografia para os outros verem. — O homem nesta fotografia podia ser irmão gémeo do Sheikh Asad.

— Isso ainda não prova que ele seja o Khaled. Estamos a falar de matar um homem.

Shamron virou a fotografia diretamente para Gabriel.

— Reconheces que se este homem entrar no prédio 56 da Boulevard St-Rémy tudo indica que ele será Khaled al-Khalifa?

— Reconheço que sim.

— Por isso, vamos pôr o edifício sob vigilância. E aguardamos. Esperemos que ele apareça antes do próximo massacre. Se o fizer, obtemos a fotografia dele a entrar no prédio. Se os nossos especialistas tiverem a certeza de que ele é o mesmo homem, pomo-lo fora de combate. — Shamron cruzou os braços em frente do peito. — Claro que há outro método de identificação... o mesma que utilizamos durante a operação Ira de Deus.

Passou uma imagem pela memória de Gabriel. "Desculpe, mas não é Wadal Zwaiter?" "Não! Por favor, não!"

— É preciso que um cliente seja muito calmo para não responder ao seu nome verdadeiro numa situação como esta — disse Shamron.

— E um ainda mais calmo para não procurar a arma quando confrontado com um homem prestes a matá-lo. De ambas as formas, se for mesmo o Khaled, irá identificar-se, e tu ficarás descansado quando premires o gatilho.

Shamron empurrou os óculos para a testa.

— Quero o Fidelity em Marselha ao cair da noite. Vais estar a bordo? — Vamos usar o modelo da Ira de Deus — Começou Shamron. — Aleph, Eet, Ayin, Qoph. Tem duas vantagens. É familiar e funciona.

Gabriel anuiu.

Por necessidade, fizemos algumas alterações menores e combinamos algumas espécies de papéis, mas assim que a operação for iniciada, vai parecer igual. Sim, claro que vais ser o Aleph, o homem da arma. As equipes Ayin, os vigilantes, já estão em posição.

Se o Khaled chegar ao apartamento, dois dos vigilantes mudarão para o papel de Bet e cobrirão a tua rota de escape.

— E o Yaakov?

— Vocês dois parecem ter estabelecido uma espécie de empatia. Yaakov será o teu líder de equipe adjunto. Na noite do golpe, se tivermos sorte, será o teu motorista.

— E a Dina?

— Qoph — disse Shamron. — Comunicações. Irá manter-se em contato com Boulevard King Saul para a identificação do alvo. Também irá servir como bat leveyha do Yaakov.

Tu ficarás escondido no barco até o golpe. Quando o Khaled tiver sido abatido, toda a gente deixa a cidade por vias separadas e fará o seu caminho para fora do país. Tu e o Yaakov viajarão até Genebra e voarão para casa a partir daí. A Dina levará o barco para fora do porto. Assim que estiver em mar aberto, colocaremos uma equipe a bordo e o traremos para casa.

Shamron desenrolou um mapa do centro de Marselha em cima da mesa.

— Foi-te reservada uma posição aqui — bateu no mapa com o dedo gorducho — no lado oriental do antigo porto, ao longo do Quai de Rive-Neuve. O Boulevard St-Rémy fica aqui — outra batida — , a seis ruas para este. Vai da Place de la Préfecture para sul, até o jardim Pierre Puget.

Shamron colocou uma fotografia de satélite da rua por cima do mapa.

— Para te dizer a verdade, é uma rua perfeita para nós operarmos. O número 56 fica localizado aqui, do lado oriental da rua. Só tem uma entrada, o que significa que não deixaremos de ver Khaled se ele entrar. Como se pode ver pela fotografia, a rua é movimentada... muito trânsito, pessoas nos passeios, lojas e escritórios.

A entrada para o número 56 é visível desta grande esplanada em frente ao Palácio da Justiça. O parque contém uma colônia de sem-abrigo. Temos agora lá um par de vigilantes.

Shamron ajustou o ângulo da fotografia.

— Mas o melhor de tudo é o estacionamento a pagar no centro. Esse espaço está agora ocupado por um carro alugado por um dos vigilantes. Temos mais cinco carros. Neste momento, estão todos a ser equipados com câmeras em miniatura de alta resolução. As camaras transmitem as suas imagens através de sinais sem fios codificados. Tu tens o único descodificador.

Shamron fez um sinal com a cabeça a Yaakov, que premiu um botão. Uma enorme tela ergueu-se lentamente do console.

— Vais ficar aqui de vigia à entrada — disse Shamron. — Os vigilantes irão fazer rodar os carros a intervalos regulares para o caso do Khaled ou um dos seus homens ficar de olho no estacionamento. Eles já organizaram o tempo, por isso quando um carro sair, o carro seguinte irá ocupar o mesmo lugar.

— Engenhoso — murmurou Gabriel.

— Na verdade, foi sugestão do Yaakov. Ele fez este tipo de coisas em lugares onde é mais difícil esconder as equipes de vigilância.

— Shamron acendeu um cigarro. — Mostra-lhe o programa de computador. Yaakov sentou-se em frente do computador portátil e teclou um comando. Surgiu na tela uma animação visual do Boulevard St-Rémy e arredores.

— Como eles conhecem o teu rosto, não podes sair do barco até a noite do golpe. Isso significa que não te podes familiarizar com a vizinhança. Mas, pelo menos, podes fazê-lo aqui. O departamento técnico criou isto para que possas percorrer o Boulevard St— Rémy a partir daqui, do salão do Fidelity.

— Não é a mesma coisa.

Tens razão — disse Shamron — , mas tem de servir. Mergulhou num silêncio contemplativo. — Então que acontece quando vires um homem árabe, na casa dos trinta, a entrar no prédio do número 56? — Deixou que a questão ficasse no ar por um momento, e depois respondeu-lhe: — Tu e a Dina determinarão se poderá ser ele. Se o fizerem, enviarás uma imagem Boulevard King Saul através de uma ligação segura. Depois transmitirás o vídeo. Se ficarmos satisfeitos, daremos ordem para continuar. Você e Yaakov deixarão o Fidelity e seguirão para a Place de la Préfecture de mota. Claro que é o Yaakov que conduz. Encontrarás um lugar para esperar. Poderão estacionar na praça ou tomar uma cerveja num café da calçada. Se ele ficar durante algum tempo, terão de se deslocar. É uma parte movimentada da cidade, que fica acordada até tarde. Vocês são os dois operacionais experientes. Sabem o que fazer. Quando a Dina vir o Khaled a sair por aquela porta, irá avisar-te por rádio. Precisas de estar de regresso ao Boulevard St-Rémy em não mais de 30 segundos. Shamron apagou lentamente o cigarro. — Não me interessa que seja em plena luz do dia — disse ele, por fim. — Não me interessa que ele esteja com um amigo. Não me interessa que o ato seja testemunhado por uma multidão de pessoas. Quando o Khaled al-Khalifa sair do edifício de apartamentos, quero que des cabo dele e acabes com isso.

— A rota de fuga?

— Subir o Boulevard Notre-Dame, acima da Avenue do Prado. Dirige-te para leste a alta velocidade. O Ayin deixará um carro para ti no estacionamento do Velódromo. Depois põe-te em Genebra o mais depressa possível. Instalamos-te lá num apartamento e mudamos-te quando for seguro.

— Quando é que partimos da Sardenha?

— Agora — disse Shamron. — Dirige-te para norte, em direção à Córsega. No canto sudoeste da ilha fica o porto de Propriano. Oferry de Marselha parte daí. Pode se esconder no Mediterrâneo. São nove horas desde Propriano. Esgueire-se para o porto depois de escurecer e registre-se na capitania. Depois faça contato com os vigilantes e estabeleça a ligação com uma câmera de vigilância.

— E tu?

— A última coisa de que precisas em Marselha é de um velho a espreitar-te por cima do ombro. O Rami e eu vamos deixar-te aqui. Amanhã à noite estaremos de regresso a Tel Aviv.

Gabriel pegou na fotografia por satélite do Boulevard St-Rémy e estudou-a atentamente.

— Aleph, Bet, Ayin, Qoph — disse Shamron. — Será mesmo como nos velhos tempos. — Sim — replicou Gabriel. — Que raio poderia correr mal?

Yaakov e Dina esperaram a bordo da Fidelity enquanto Gabriel levava Shamron e Rami para a costa. Rami saltou para o cais e equilibrou o bote enquanto Shamron deslizava lentamente para o exterior.

— Isto é o fim — disse Gabriel. — A última vez. Depois disso, está terminado. — Para ambos, receio eu — disse Shamron. — Vais regressar a casa, vamos envelhecer juntos.

— Já somos velhos. Shamron encolheu os ombros.

— Mas não demasiado velho para uma última batalha.

— Veremos.

— Se tiveres a oportunidade de disparar, não hesites. Cumpre o teu dever.

— Para com quem?

— Para comigo, é claro.

Gabriel deu a volta com o bote e encaminhou-se para fora do porto. Olhou uma vez por cima do ombro e avistou Shamron, que estava de pé sem se mover no cais com o braço erguido num gesto de despedida. Quando se virou uma segunda vez, o velho tinha desaparecido. O Fidelity já estava a caminho. Gabriel abriu a válvula e seguiu-o.

CAPÍTULO 18

MARSELHA

 

 

Passadas 24 horas da chegada do Fidelity a Marselha, Gabriel tinha começado a odiar a entrada do edifício 56 do Boulevard St-Rémy. Odiava a porta em si. Odiava o trinco e a moldura. Detestava a pedra cinza do edifício e as barras de ferro das janelas ao nível do chão. Ressentia-se de todos aqueles que passavam pelo passeio, em especial dos homens com ar árabe na casa dos 30. No entanto, desprezava sobretudo os outros inquilinos: o cavalheiro distinto num blazer Cardin que exercia advocacia no escritório ao alto da rua; a grande dame de cabelo grisalho com o terrier, que a primeira coisa que fazia logo de manhã era um coco no pavimento; e a mulher chamada Sophie, cuja atividade era fazer compras e lhe lembrava muito a Leah.

Monitorizavam a tela por turnos: uma hora de serviço, duas horas de descanso. Cada um adoptava uma postura única para a vigilância. Yaakov fumava e olhava para a tela com uma expressão ameaçadora, como se, através de uma pura força de vontade, fosse compelir Khaled a aparecer nele. Dina sentava-se no sofá do salão a meditar, de pernas cruzadas, mãos nos joelhos, imóvel com exceção do bater do indicador direito. E Gabriel, que estava habituado a ficar horas de pé diante do objeto da sua devoção, andava lentamente de um lado para o outro à frente da tela, a mão direita no queixo, a mão esquerda a suportar o cotovelo direito, a cabeça inclinada para um lado. Se Francesco Tiepolo, de Veneza, tivesse surgido subitamente a bordo do Fidelity, teria reconhecido a postura de Gabriel, pois era a mesma que adoptava ao contemplar uma pintura para ver se estava terminada.

A alteração dos carros de vigilância proporcionava uma pausa bem-vinda ao tédio da vigilância. O Ayin aperfeiçoara a sequência, de modo 186

a que esta se desenrolasse com a precisão de um bailado. O carro de substituição aproximar-se-ia da entrada do estacionamento vindo de sul. O velho carro fazia marcha-a-ré e afastava-se, depois entrava um novo carro para o seu lugar. Certa vez, os dois Ayin bateram de propósito com os para-choques um no outro e envolveram-se numa convincente gritaria, para proveito de qualquer observador vindo do outro lado. Havia sempre alguns segundos de tensão quando a antiga câmera ficava negra e a nova surgia em linha. Gabriel ordenava quaisquer ajustamentos necessários de ângulo e foco, e depois isso era feito. Embora Gabriel permanecesse prisioneiro do Fidelity, ordenou à Dina e ao Yaakov que se comportassem como turistas vulgares. Fazia turnos duplos e triplos na tela de modo a poderem almoçar num restaurante numa rua lateral ao cais ou dar uma volta de mota pelas redondezas da cidade. Yaakov fez questão de conduzir pela rota de fuga em períodos diferentes do dia para se familiarizarem com os padrões de trânsito. Dina comprava roupa numa das ruas para trabalhadores cheias de lojas ou vestia roupa de banho e bronzeava-se na popa. Seu corpo tinha as marcas do pesadelo na praça Dizengoff, uma grossa cicatriz vermelha do lado direito do ventre, uma comprida cicatriz denteada na coxa direita. Nas ruas de Marselha cobria tudo, mas a bordo do Fidelity não tentava esconder os danos de Gabriel e Yaakov.

À noite, Gabriel ordenou turnos de três horas, de modo a que aqueles que não estivessem de vigia pudessem dormir durante um tempo significativo. Não tardou a arrepender-se dessa decisão, porque três horas pareciam uma eternidade. A rua ficava silenciosa como a morte. Cada figura que surgia na tela parecia cheia de possibilidades. Para aliviar o tédio, Gabriel sussurrava saudações aos agentes Ayin de serviço na esplanada em frente ao Palácio de Justiça — ou acordava o oficial de serviço do departamento de Operações no Boulevard King Saul com o pretexto de que estava a testar a ligação por satélite, só para poder ouvir uma voz vinda de casa.

Era a Dina quem substituía o Gabriel. Logo que ela se sentava numa posição de ioga em frente aa tela, ele regressava à sua cabina para tentar dormir, mas via mentalmente a porta; ou Sabri a andar pelo Boulevard St-Germain com a mão no bolso da amante; ou os árabes de Beit Sayeed a arrastarem-se para o exílio; ou Shamron, na orla costeira da Sardenha, a lembrar-lhe para que fizesse o seu trabalho. E por vezes perguntava-se se ainda possuiria o reservatório de frieza emocional necessária para se aproximar de um homem na rua e lhe encher o corpo de pedaços de metal perfurantes. Nos momentos de auto-obsessão desejava que o Khaled nunca mais pusesse um pé no Boulevard St-Rémy. Imaginava depois as ruínas da embaixada em Roma e recordava-se do cheiro a carne queimada que pairava no ar como os espíritos dos mortos, e conseguia então ver a morte do Khaled, gloriosa e graciosa, expressa com a quietude apaixonada de um Bellini. Ele ia matar o Khaled. Khaled deixara-o sem qualquer escolha, e por isso Gabriel odiava-o.

Na quarta noite, nem sequer dormiu. Às 7h45, levantou-se da cama para se preparar para o seu turno das oito horas. Tomou café na cozinha e olhou para o calendário preso à porta do frigorífico. Amanhã era o aniversário da queda de Beit Sayeed. Hoje era o último dia. Entrou no salão. Yaakov, envolto em fumo de cigarros, estava a olhar para a tela. Gabriel deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe para ir dormir umas horas. Ele permaneceu durante alguns minutos no mesmo lugar, a acabar o café, depois voltou à sua posição normal — mão direita no queixo, mão esquerda a suportar o cotovelo direito — e andou de um lado para o outro no carpete em frente da tela. O advogado saiu do prédio às 8h15. A grande dame saiu dez minutos depois. Seu terrier cagou na câmera de Gabriel. Sophie, a sósia da Leah, foi a última a sair. Deteve-se por um momento em frente da porta para pescar um par de óculos escuros da sua mala antes de, esvoaçante e linda, desaparecer da vista. — Estás com péssimo aspecto — disse Dina. — Tira o resto da noite. O Yaakov e eu faremos o teu turno.

Entardecia, o porto estava silencioso, excepto pelo latejar de technopop francês vindo de outro iate. Bocejando, Gabriel confessou a Dina que dormira pouco, se é que dormira, desde a chegada deles a Marselha. Dina sugeriu que ele tomasse um comprimido.

E se o Khaled chegar enquanto eu estou inconsciente no meu quarto?

— Talvez tenhas razão. — Ela sentou-se de pernas cruzadas no sofá e fixou o olhar na tela da televisão. O pavimento do Boulevard St-Rémy estava ocupado com o trânsito pedestre do fim da tarde. Então por que não consegues dormir? — Precisas mesmo que eu to explique? Ela manteve os olhos fixos na tela. — Por que estás preocupado que ele possa não vir? Por que estás preocupado que não conseguias disparar contra ele? Por que tens medo que sejamos apanhados e presos?

— Não gosto deste trabalho, Dina. Nunca gostei.

— Nenhum de nós gosta. Se gostássemos, eles nos mandariam embora do serviço. Fazemos porque não temos outra escolha. Fazemos porque nos forçam. Diga uma coisa, Gabriel. Que aconteceria se amanhã eles decidissem acabar com os atentados, com os esfaqueamentos e os tiroteios? Haveria paz, certo? Mas eles não querem a paz. Eles querem destruir-nos. A única diferença entre o Hamas e o Hitler é que o Hamas não tem o poder e os meios para executar o extermínio dos Judeus. Mas estão a trabalhar nisso.

— Há uma distinção moral óbvia entre os palestinos e os nazis. Há uma certa justiça na causa do Khaled. Só que os seus meios são aberrantes e imorais.

— Justiça? Khaled e os da sua espécie poderiam ter conseguido a paz vezes sem conta, mas não o querem. A causa dele é destruir-nos. Se acreditas que ele quer paz, estás a iludir-te. — Apontou para a tela.

— Se ele chegar àquela rua, tu tens o direito, na verdade, o dever moral, de te certificares que ele nunca mais sai de lá para matar e mutilar de novo. Tens de o fazer, Gabriel, ou, que Deus me ajude, fá-lo-ei eu por ti. — Farias mesmo isso? Achas mesmo que serias capaz de o matar a sangue-frio, ali na rua? Ser-te-ia assim tão fácil premires o gatilho?

Ela manteve-se em silêncio durante algum tempo, com o olhar fixo na tela tremeluzente da televisão.

O meu pai veio da Ucrânia — disse ela. — De Kiev. Foi o único membro da família que sobreviveu à guerra. Os restantes foram levados para Babi Yar e fuzilados juntamente com os outros 30.000 judeus. Depois da guerra, foi para a Palestina. Adoptou o nome de Sarid, que significa "remanescente". Casou com a minha mãe e tiveram seis filhos, um filho por cada milhão morto no Shoah. Eu fui a última. Chamaram-me Dina: vingada.

O som da música aumentou de súbito, e depois deixou de se ouvir. Quando desapareceu, tudo que restou foi o bater de uma onda contra o casco do iate. Os olhos de Dina semicerraram-se de repente, como se se tivesse lembrando de uma dor física. O seu olhar permaneceu na imagem do Boulevard St-Rémy, mas Gabriel conseguia ver que era a Rua Dizengoff que ocupava os seus pensamentos. — Na manhã de 19 de Outubro de 1994, eu estava na esquina das ruas Dizengoff e Rainha Ester com a minha mãe e duas das minhas irmãs. Quando o ônibus nº5 apareceu, beijei a minha mãe e irmãs e fiquei a vê-las entrar para o ônibus. Quando as portas se abriam, eu vi-o. — Interrompeu-se e virou a cabeça para olhar para Gabriel.

— Ele estava sentado mesmo atrás do condutor, com um saco aos pés. Até olhou para mim. Tinha um rosto doce. Não, pensei eu, não é possível. Não o ônibus nº5 da Rua Dizengoff. Por isso não disse nada. As portas fecharam-se, e o ônibus começou a afastar-se.

Os seus olhos enublaram-se com lágrimas. Cruzou as mãos e colocou-as sobre a cicatriz na perna.

— Então o que tinha este rapaz no saco, este rapaz que eu vi mas de quem nada disse? Tinha uma mina terrestre egípcia, era isso que ele tinha no saco. Tinha 20 quilos de TNT militar e uns rolos ensopados com veneno para os ratos. Viu-se primeiro o relâmpago, seguido do som da explosão. O ônibus ergueu-se alguns metros no ar e estatelou-se na rua. Fui atirada para o chão. Conseguia ver as pessoas aos gritos à minha volta, mas não ouvia nada... aquela onda de impacto tinha-me danificado os tímpanos. Reparei numa perna humana caída na rua junto de mim. Calculei que fosse minha, mas depois vi que ainda tinha as duas pernas. Era a perna de alguém que se encontrava no ônibus. Enquanto a escutava, Gabriel pensou subitamente em Roma; lembrou-se de estar junto a Shimon Pazner e de olhar para os destroços da embaixada. Seria a presença de Dina a bordo do Fidelity casual, perguntou-se ele, ou teria ela sido ali colocada intencionalmente por Shamron como lembrança viva da importância de cumprir o seu dever?

Os primeiros polícias que apareceram no lugar ficaram enjoados por causa do sangue e do fedor a carne queimada. Caíram de joelhos na rua e vomitaram. Enquanto estava ali deitada, à espera que alguém me ajudasse, o sangue começou a pingar em cima de mim. Levantei os olhos e vi sangue e restos de carne pendurados nas folhas dos azederacos. Naquela manhã choveu sangue na Rua Dizengoff. Depois chegaram os rabinos do Hevra Kadisha.

Recolheram à mão os pedaços maiores dos corpos, incluindo aqueles restos nas árvores. Depois usaram pinças para recolher os pedaços mais pequenos. Vi os rabinos a apanharem os restos da minha mãe e das minhas duas irmãs com pinças e a colocá-los num saco plástico. Foi isso que enterramos. Restos. Despojos. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para debaixo do queixo. Gabriel sentou-se no sofá junto dela e manteve o olhar fixo na tela de modo a certificar-se de que não perdiam coisa alguma. A mão dele estendeu-se para a dela. Ela agarrou-a enquanto uma lágrima lhe corria pela face.

— Culpei-me a mim mesma. Se eu soubesse que o rapaz de ar doce era na verdade Abdel Rahim al-Souwi, membro das brigadas Izzedine al-Qassam, do Hamas, poderia tê-los avisado. Se eu soubesse que o irmão do Abdel tinha sido morto num tiroteio com o IDF em 1989, teria compreendido a razão pela qual ele ia no ônibus nº5, em Tel Aviv, com um saco aos pés. Decidi que me ia vingar, não com uma arma, mas com o cérebro. Jurei que da próxima vez que visse um deles o saberia, e seria capaz de avisar as pessoas antes que fosse demasiado tarde. Foi por isso que me ofereci para o Escritório. Foi por isso que consegui fazer a ligação entre Roma e Beit Sayeed. Conheço-os melhor do que eles se conhecem a si mesmos.

Outra lágrima. Desta vez Gabriel limpou-a.

— Por que ele matou a minha mãe e as minhas irmãs, Gabriel? Foi porque lhes roubamos a terra? Foi porque éramos ocupantes? Não, foi porque queríamos fazer

a.paz. Se eu os odiar, vais-me perdoar. Se eu te pedir que não mostres qualquer misericórdia para com Khaled, irás usar de brandura em relação aos meus crimes.

Sou Dina Sarid, a remanescente vingada. Sou o seis milhões. E se Khaled vier aqui esta noite, não te atrevas a deixá-lo entrar naquele ônibus.

Lev oferecera-lhe o uso de um apartamento de segurança em Jerusalém. Shamron declinara delicadamente. Em vez disso, instruiu Tamara para que fosse procurar uma cama desdobrável na despensa e pediu a Gilah que lhe enviasse uma mala com roupas limpas e um estojo de barbear. Como Gabriel, pouco tinha dormido na semana anterior.

Nalgumas noites andava pelos corredores a qualquer hora ou sentava-se lá fora a fumar com os guarda-costas do Shabak. Na maior parte do tempo, ficava deitado no colchão desdobrável, a olhar para o brilho vermelho do relógio digital na sua secretária e a calcular os minutos que restavam até o aniversário da destruição de

Beit Sayeed. Preencheu as horas vazias relembrando operações passadas. A espera. Sempre a espera. Alguns agentes ficam loucos com isso. Para Shamron era um narcótico, semelhante às primeiras angústias de um amor intenso. Os afrontamentos, os arrepios súbitos, o remoer do estômago: tinha passado por tudo isso incontáveis vezes durante os anos. Nos becos escondidos de Damasco e do Cairo, nas ruas pavimentadas da Europa, e num subúrbio marginal de Buenos Aires, onde esperara que o Adolf Eichmann, chefe de estação do Holocausto, saísse de um ônibus urbano para o amplexo dessas mesmas pessoas que tentara aniquilar. Uma maneira adequada para aquilo terminar, pensou Shamron. Uma última noite de vigília. Uma última espera para que o telefone tocasse. Quando por fim tocou, o tom eletrônico áspero foi como música para os seus ouvidos. Fechou os olhos e deixou que o telefone tocasse uma segunda vez. Depois estendeu a mão para as trevas e aproximou o receptor do ouvido.

O mostrador digital da tela da televisão dizia 12.27. Tecnicamente, fora o turno do Yaakov, mas era a última noite antes do prazo-limite, e ninguém ia dormir. Tinham estado sentados no sofá do salão, Yaakov na sua habitual pose de confronto, Dina numa posição de meditação e Gabriel como se estivesse à espera das notícias de uma morte anunciada. O Boulevard St-Rémy estivera silencioso naquela noite. O casal que passara pela porta às 12.27 foram os primeiros a surgir na imagem da câmera num espaço de quase 15 minutos. Gabriel olhara para Dina, cujos olhos permaneciam fixos na tela.

— Viste aquilo?

— Vi.

Gabriel levantou-se e dirigiu-se ao console. Retirou e a fita de vídeo do player e colocou uma nova no seu lugar. Depois colocou a fita de áudio num gravador e rebobinou-a. Com Dina olhando por cima de seu ombro, premiu PLAY. O casal surgiu na imagem e passou pela entrada sem sequer olhar para ela.

Gabriel pressionou o STOP.

— Repare como ele colocou a moça do lado direito, de frente para a rua. Está a usá-la como escudo. E olhe a mão direita dele. Está no bolso da moça, como a de Sabri.

REWIND. PLAY. STOP.

— Meu Deus — disse Gabriel — , tem exatamente o andar do pai.

— Tem certeza?

Gabriel dirigiu-se ao rádio e chamou o vigilante que se encontrava no exterior do Palácio da Justiça.

— Viu aquele casal que acabou de passar pelo prédio?

- Lá.

— Onde eles estão agora?

— Espere. — Silêncio, enquanto o Ayin mudava de posição. Subindo a rua, em direção aos jardins. — Consegue segui-los?

— Está um silêncio de morte por aqui. Eu não aconselharia.

— Raios!

— Espere um pouco.

— O quê?

— Espere aí.

— O que há?

— Estão dando a volta.

— Tem certeza?

— Absoluta. Estão voltando.

Gabriel olhou para o monitor no preciso instante em que eles tornavam a entrar na imagem, vindos desta vez da direção oposta. Mais uma vez a mulher estava de frente para a rua, e de novo o homem tinha a mão enfiada no bolso de trás da calça jeans dela. Pararam na porta do número 56. O homem tirou a chave do bolso.

CAPÍTULO 19

SURREY, INGLATERRA

 

 

Passava pouco das dez da noite quando Amira Assaf saiu do elevador na Clínica Stratford e avançou pelo corredor do quarto piso. Ao contornar a primeira esquina, viu o guarda-costas sentado numa cadeira à porta do quarto de Miss Martinson. Ergueu os olhos quando Amira se aproximou e fechou o livro que estava a ler.

— Tenho de me certificar de que ela está a dormir confortavelmente — disse Amira.

O guarda-costas assentiu e levantou-se. Não ficou surpreso com o pedido de Amira. Durante o último mês passava pelo quarto todas as noites àquela hora. Ela abriu a porta e entrou. O guarda-costas seguiu-a e fechou a porta atrás de si. Um candeeiro, cuja intensidade da luz fora reduzida ao mínimo, brilhava suavemente. Amira dirigiu-se a um dos lados da cama e olhou para baixo. Miss Martinson estava a dormir profundamente. O que não era nenhuma surpresa: Amira tinha-lhe duplicado a dosagem de sedativos. Ficaria adormecida durante mais algumas horas.

Amira ajeitou os cobertores e abriu a última gaveta da mesa-de-cabeceira. A arma, uma Walther de nove milímetros com silenciador, estava exatamente onde a tinha deixado nessa tarde enquanto Miss Martinson ainda se encontrava no solário. Agarrou a arma pelo cabo, virou-se e alvejou o peito do guarda-costas, que enfiou a mão no interior do casaco com um movimento rápido como um relâmpago. Antes que a mão reaparecesse, Amira disparou duas vezes, o premir duplo de um assassino treinado. Os dois tiros atingiram-no na parte superior do peito. O guarda-costas caiu de costas no chão. Amira ficou por cima dele e disparou mais dois tiros.

Respirou fundo uma série de vezes para reprimir a intensa onda de náuseas que a inundou. Depois aproximou-se do telefone e marcou uma extensão interna do hospital.

— Poderia por favor pedir ao Hamida que venha ao quarto da Miss Martinson? Há alguns lençóis que têm de ser levados antes que o caminhão se vá embora. Desligou, agarrou no homem morto pelos sovacos e arrastou-o para a casa de banho. A carpete estava manchada de sangue. Amira não se sentia preocupada com isso. A sua intenção não era ocultar o crime, apenas adiar a sua descoberta por algumas horas.

Ouviu-se baterem à porta.

— Sim?

— É Hamida.

Destrancou a porta e abriu-a. Hamida empurrou para o interior um carrinho da lavandaria.

— Sente-se bem?

Amira assentiu. Hamida empurrou o carrinho até junto da cama enquanto Amira afastava os cobertores e os lençóis. Miss Martinson, frágil e cheia de cicatrizes, jazia imóvel. Hamida levantou-a pelo peito, Amira pelas pernas, e juntos baixaram-na para o interior do carrinho da lavandaria. Amira escondeu-a debaixo de uma camada de lençóis.

Foi até o corredor para ver se ele estava vazio, depois olhou para Hamida e fez-lhe sinal para ele se juntar a ela. Hamida fez rolar o carrinho para fora do quarto e começou a avançar em direção ao elevador. Amira fechou a porta, introduziu o seu cartão-chave na fechadura e tornou a tirá-lo. Encontrou-se com Hamida junto ao elevador e premiu o botão de chamada. A espera parecia uma eternidade. Quando por fim as portas se abriram, empurraram o carrinho para a cabina vazia. Amira premiu o botão para o piso térreo e começaram a descer lentamente.

O hall do piso térreo estava deserto. Hamida foi o primeiro a sair e virou à direita, em direção à porta que conduzia ao pátio traseiro. Amira seguiu-o. No exterior, havia uma van imóvel com as portas traseiras abertas. Num dos lados tinha pintado o nome da empresa local de lavandaria. O condutor habitual jazia deitado junto a um renque de faias a dois quilômetros do hospital, com uma bala no pescoço.

Hamida içou o saco da lavandaria do carrinho e colocou-o gentilmente na traseira da van, fechando em seguida as portas e subindo para o assento do passageiro. Amira observou a van a afastar-se, tornou a entrar e dirigiu-se ao posto da enfermeira-chefe. Ginger estava de serviço. — Não me estou a sentir lá muito bem, Ginger. Achas que consegues passar sem mim?

— Não há problema, querida. Precisa de carona?

Amira sacudiu a cabeça. — Eu me viro com a moto, nos vemos amanhã à noite. Amira foi até o vestiário do pessoal. Antes de despir o uniforme, escondeu a arma dentro da mochila. Depois vestiu calças jeans, uma camiseta de lã grossa e um blusão de couro. Passado um momento, atravessou o pátio dos fundos com a mochila pendurada às costas.

Subiu na motocicleta e ligou o motor, depois acelerou para fora do pátio. Ao dar a volta nos fundos da antiga mansão, ergueu o olhar para a janela da Miss Martinson: uma luz brilhava suavemente, não havia qualquer sinal de problemas. Acelerou pelo caminho de acesso e deteve-se junto à casa do guarda. O homem de serviço desejou-lhe uma boa noite e abriu-lhe o portão. Amira virou para a estrada e fez rodar o manipulo. Dez minutos depois, acelerava ao longo da autoestrada A24, dirigindo-se para o mar a sul.


CAPÍTULO 20

MARSELHA

 

 

Gabriel entrou na sua cabina e fechou a porta. Foi até o guarda-roupa e afastou um pedaço solto de carpete, expondo a porta do cofre do chão. Abriu o ferrolho e ergueu a tampa. No interior, encontravam-se três pistolas: uma Beretta 92FS, uma Jericho 941 Police Special e uma Barak SP-21. Levantou cuidadosamente cada arma e colocou-as sobre a cama. A Beretta e Jericho eram de nove milímetros. O carregador para a Beretta tinha uma capacidade de 15 balas, a Jericho, 16. A Barak — achatada, preta e feia — disparava uma bala maior e mais destrutiva de .45, embora tivesse apenas oito tiros. Abriu e examinou as armas, começando pela Beretta e terminando com a Barak. Cada arma parecia estar funcionando bem. Tornou a montá-las e a carregá-las, testou peso e equilíbrio, considerando qual devia usar. Não era provável que o disparo fosse oculto e silencioso. Iria provavelmente teria lugar numa rua movimentada, talvez em plena luz do dia. Sua prioridade era certificar-se de que Khaled seria abatido. Para isso, Gabriel precisava de potência e confiabilidade. Escolheu a Barak para arma principal e a Beretta como arma de apoio. Também decidiu que não iria utilizar silenciador. O silenciador tornava a arma demasiado difícil de esconder e demasiado difícil de manejar, de sacar e disparar. Além disso, qual era o objetivo de usar um silenciador se o ato ia ser testemunhado por uma multidão de pessoas na rua?

Foi até a casa de banho e deixou-se ficar por um momento diante do espelho, examinando o rosto. Depois abriu o armário dos medicamentos e retirou de lá uma tesoura, uma lâmina e uma lata de espuma de barbear. Aparou a barba rente, retirando em seguida o resto com a lâmina. Ainda tinha o cabelo pintado de grisalho. Nada havia a fazer a esse respeito.

Despiu-se, tomou uma ducha rápido e regressou à cabina para se vestir. Vestiu a roupa interior e as meias, e em seguida um par de calças jeans azuis-escuras e sapatos de camurça com sola de borracha. Fixou o rádio ao cós da calça na anca esquerda, fez passar um fio até o ouvido e um segundo até o pulso esquerdo. Depois de ter fixado os fios no lugar com fita adesiva preta, vestiu uma camisa preta de manga comprida. Enfiou a Beretta no cós da calça, junto ao fundo das costas. A Earak era compacta o suficiente para caber no bolso do blusão de couro. Quanto ao GPS com sinal de rastreio, um pequeno disco com o tamanho aproximado de uma moeda de um euro, enfiou-o no bolso da frente da calça.

Sentou-se na beira da cama à espera. Passados cinco minutos bateram à porta.

O relógio mostrava 2.12 horas.

— Os teus especialistas têm mesmo a certeza?

O primeiro-ministro levantou os olhos para o grupo de monitores vídeo e esperou uma resposta. Num dos monitores estava a imagem de Lev. O diretor-geral do Shabak, Moshe Yariv, ocupava o segundo; o general Amos Sharret, chefe de Aman, o terceiro.

— Não existe qualquer dúvida — respondeu Lev. — O homem na fotografia que nos foi dada pelo Mahmoud Arwish é o mesmo homem que acabou de entrar no prédio em Marselha. Agora tudo o que precisamos é da sua aprovação para que a fase final da operação comece.

— E têm-na. Dá a ordem ao Fidelity.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

— Presumo que seja capaz de ouvir o tráfego radiofônico?

— O Fidelity irá enviar-nos através de uma linha de segurança. Manteremos o controle operacional até o último segundo.

— Envie-o para aqui também — disse o primeiro-ministro. Não quero ser o último a saber.

Depois premiu um botão na secretária, e as três telas se apagaram.

A mota era uma Piaggio X9 Evolution, cinza-carvão, com uma válvula de rodar e uma velocidade máxima de 160 quilômetros por hora — embora Yaakov, numa fuga de ensaio no dia anterior, tivesse conseguido chegar aos 190. O selim inclinou-se drasticamente para baixo, no sentido de trás para a frente, de modo que o passageiro ficava sentado diversos centímetros acima do condutor, o que a tornava uma mota perfeita para um assassino, embora certamente os seus projetistas não tivessem tido isso em consideração quando a desenharam. O motor disparou, como habitual, sem hesitação. Yaakov dirigiu-se ao ponto no cais onde a figura de capacete de Gabriel o esperava. Gabriel subiu para o assento traseiro e instalou-se aí.

— Leva-me ao Boulevard St-Rémy.

— Tens certeza?

— Uma passagem — disse ele. — Quero vê-lo.

Yaakov fez uma curva apertada para a esquerda e acelerou colina acima. Era um excelente edifício na Corniche, com um chão de mármore no hall e um elevador que funcionava a maior parte das vezes. Os apartamentos de frente para a rua tinham uma ótima vista sobre o Nilo. Os os fundos davam para os terrenos murados da Embaixada da América. Era um edifício para estrangeiros e egípcios ricos, era um outro mundo comparado com o monótono edifício residencial de pedra cinza em Heliopolis, onde Zubair vivia, mas a verdade era que ser-se um polícia no Egipto não era muito rentável, mesmo que se fosse um polícia secreto trabalhando para o Mukhabarat.

Subiu as escadas, que eram amplas e curvas, com uma passadeira puída presa por aplicações de latão polido. O apartamento ficava no último andar, o décimo. Zubair praguejou em voz baixa enquanto subia as escadas. Dois maços de cigarros Cleópatra por dia tinham-lhe devastado os pulmões. Teve de se deter por três vezes num patamar para recuperar o fôlego. Demorou mais de cinco minutos a chegar ao apartamento.

Premiu a orelha contra a porta e não ouviu qualquer som vindo do interior. Não era de surpreender. Zubair tinha seguido o inglês na noite anterior durante uma excursão ensopada em álcool através dos bares do hotel e dos clubes noturnos ao longo do rio. Zubair estava confiante de que ele ainda estaria a dormir.

Enfiou a mão no bolso, de onde retirou a chave. O Mukhabarat tinha uma excelente coleção: diplomatas, dissidentes, islamitas e sobretudo jornalistas internacionais. Introduziu a chave na fechadura, abriu a porta e entrou.

O apartamento estava frio e escuro, as cortinas cerradamente fechadas contra o sol de início da manhã. Zubair tinha estado no apartamento muitas vezes e encaminhou-se para o quarto sem se dar ao trabalho de acender as luzes. Quinnell dormia profundamente entre lençóis ensopados em suor. No ar estagnado pairava um cheiro fortíssimo a whisky. Zubair retirou a arma e atravessou o quarto devagar, em direção aos pés da cama. Alguns passos depois, o seu pé direito embateu em algo pequeno e duro. Antes de conseguir aliviar a pressão descendente algo pareceu estalar, emitindo um ruído estridente. No silêncio profundo do quarto soou como um ramo de árvore a estalar. Zubair olhou para baixo e viu que tinha pisado o relógio de pulso de Quinnell. Apesar de ébrio, o inglês sentou-se rigidamente na cama. Merda, pensou Zubair. Não era um assassino profissional. Esperara matar Quinnell a dormir.

— Que raio estás a fazer aqui?

— Trago-te um recado do nosso amigo — disse Zubair calmamente.

— Não quero ter mais nada a ver com ele.

— O sentimento é mútuo.

— Então que raio estás a fazer no meu apartamento?

Zubair levantou a arma. Passado um momento, saiu do apartamento e começou a descer as escadas. A meio caminho, respirava como um maratonista e transpirava pesadamente.

Parou e encostou-se ao corrimão. Malditos Cleopatras. Se não parasse depressa de fumar, acabariam por matá-lo.

Marselha, 5h22 horas.

A porta do apartamento abre-se. Sai uma figura para a rua. O alerta verbal da Dina é ouvido no Centro de Operações Boulevard King Saul e em

Jerusalém por Shamron e pelo primeiro-ministro. E também é ouvido na esplanada suja ao longo do cours Belsunce, onde Gabriel e Yaakov estão sentados à beira de uma fonte estagnada, rodeados por toxicodependentes e imigrantes que não tinham outro lugar onde dormir. — Quem é? — perguntou Gabriel.

— A moça — disse Dina, apressando-se depois a acrescentar:— A namorada do Khaled.

— Para que lado é que ela foi?

— Para norte, em direção à Place de la Préfecture. Seguiram-se vários minutos vazios de ar. Em Jerusalém, Shamron anda de um lado para o outro no carpete em frente da secretária do primeiro-ministro, esperando ansiosamente pela ordem do Gabriel. — Não tentes fazê-lo — murmura ele. — Se ela vir o vigilante, vai avisar o Khaled e tu perde-lo. Deixa-a ir.

Passaram-se mais dez segundos antes que a voz de Gabriel se voltasse a ouvir. — É demasiado arriscado — sussurrou ele. — Deixa-me ir.

Em Ramallah, a reunião terminou de madrugada. Yasser Arafat estava de muito bom humor. Para aqueles presentes, parecia-se um pouco com o antigo Arafat, o Arafat que conseguia discutir ideologia e estratégia durante toda a noite com os companheiros mais chegados e depois sentar-se para uma reunião com um chefe de Estado. Enquanto os seus ajudantes de campo saíam da sala, Arafat fez sinal a Mahmoud Arwish para ficar.

— Começou — disse Arafat. — Agora só podemos esperar que Alá tenha abençoado a sagrada empresa do Khaled.

— Trata-se também da tua empresa, Abu Amar.

— É verdade — disse Arafat — , e não teria sido possível sem ti, Mahmoud. Arwish assentiu cautelosamente. Arafat manteve o olhar fixo nele.

— Fizeste bem o teu papel — disse Arafat. — O fato de ter enganado os israelenses com inteligência quase perdoa a traição que me fizeste e ao resto do povo palestino. Estou tentado a ignorar o teu crime, mas não posso fazê-lo.

Arwish sentiu o peito apertar. Arafat sorriu.

— Pensaste realmente que a tua traição seria alguma vez esquecida?

— A minha mulher — gaguejou Arwish. — Os Judeus obrigaram-me...

Arafat sacudiu a mão num gesto de rejeição.

— Pareces uma criança, Mahmoud. Não piores a tua humilhação rogando pela vida. Naquele momento a porta abriu, e entraram na sala dois homens da segurança com uniformes, de armas a postos. Arwish tentou tirar a arma do coldre, mas a coronha de uma espingarda bateu-lhe num rim, e uma erupção de dor estonteante fez com que caísse ao chão.

— Morres hoje a morte de um colaborador — disse Arafat. Uma morte adequada a um cão.

Os seguranças levantaram Arwish, empurraram-no para fora do Escritório e desceram as escadas. Arafat foi até a janela e olhou para o pátio quando Arwish e os seguranças surgiram no seu campo de visão. Outra coronhada nos rins fez com que Arwish caísse ao chão pela segunda vez. Depois o tiroteio começou. Lenta e ritmadamente, começaram pelos pés e avançaram lentamente para cima. A Mukata ecoou com o estalar das Kalashnikovs e os gritos do traidor moribundo. Para Arafat, tratava-se de um som muitíssimo satisfatório: o som de uma revolução. O som da vingança.

Quando os gritos pararam, houve um tiro final na cabeça. Arafat desceu o estore. Tinha tratado de um inimigo. Em breve outro teria o mesmo destino. Desligou o candeeiro e ficou sentado na obscuridade, aguardando a próxima atualização.

CAPÍTULO 21

MARSELHA

 

 

Mais tarde, quando tudo estava terminado, Dina procuraria em vão um qualquer simbolismo no momento que Khaled escolhera para fazer a sua aparição. Quanto às palavras exatas que ela utilizou para dar a notícia às equipes, não se lembrava de quais tinham sido, embora tivessem ficado gravadas em fita para a posteridade: "É ele.

Está na rua. Dirige-se para sul através do parque. " Todos aqueles que ouviram a convocação da Dina sentiram-se abalados pela sua compostura e falta de emoção. Tão tranquila foi a sua declaração que por um instante Shamron não percebeu o que tinha acabado de acontecer. Apenas quando ouviu o rugido da mota de Yaakov, seguido pelo som do respirar acelerado de Gabriel, é que compreendeu que Khaled estava prestes a ser abatido.

Passados cinco segundos da informação da Dina, Yaakov e Gabriel tinham colocado os capacetes e aceleravam para leste a toda a velocidade ao longo do cours Belsunce.

Na Place de la Préfecture, Yaakov inclinou pesadamente a mota para a direita e acelerou através da praça em direção à entrada do Boulevard St-Rémy. Gabriel agarrou-se à cintura do Yaakov com a mão esquerda. Tinha a direita enfiada no bolso do casaco e apertava a coronha volumosa da Barak. Começava a surgir a luz do dia, mas a rua permanecia na sombra. Gabriel viu Khaled pela primeira vez, a andar ao longo do passeio como um homem atrasado para um encontro importante. A mota abrandou subitamente. Yaakov tinha uma decisão a tomar: atravessar para o lado errado da estrada e aproximar-se do Khaled por trás, ou ficar do lado direito da rua e dar a volta para o abater de frente. Gabriel incitou-o a ir pela direita com um empurrão da arma. Yaakov virou o acelerador, e a mota deu um salto para a frente. Gabriel fixou os olhos em Khaled. O palestino estava a andar mais depressa.

Naquele preciso instante um Mercedes cinza escuro saiu de uma rua lateral e bloqueou-lhes o caminho. Yaakov carregou nos travões para evitar a colisão, depois buzinou e acenou ao Mercedes para que este saísse do caminho. Quando Yaakov estava de novo no caminho certo, Khaled contornara a esquina e desaparecera do campo de visão de Gabriel.

Yaakov acelerou até o fim da rua e virou à esquerda, para o Boulevard André Aune, que subia ligeiramente afastando-se do velho porto, em direção ao elevado campanário da Igreja de Notre Dame de la Garde. Khaled já tinha atravessado a rua e deslizava naquele momento para uma entrada com uma passagem coberta. Gabriel usara o programa informático para memorizar a rota de cada rua do bairro. Sabia que a passagem conduzia a uma escadaria de pedra íngreme chamada Montée de 1'Oratoire. Khaled tinha tornado a mota inútil.

— Para — disse Gabriel. — Não te mexas.

Gabriel saltou da mota e, ainda de capacete na cabeça, seguiu o caminho que o Khaled tomara. Não havia luzes na passagem, e a alguns passos para o centro Gabriel ficou numa escuridão total. Na extremidade oposta, reemergiu na luz de um rosa escuro. Começava a escadaria: ampla e muito velha, com um corrimão de ferro ao meio. À esquerda de Gabriel ficava a fachada de estuque castanha de um prédio; à direita um elevado muro de pedra calcária sobre o qual pendiam oliveiras e vinhas florescentes.

A escada curvava para a esquerda. Quando Gabriel deu a volta à esquina, viu Khaled outra vez. Estava a meio caminho do alto e subia os degraus a correr. Gabriel começou a tirar a Barak, mas deteve-se. Ao alto das escadas havia outro prédio. Se Gabriel falhasse o Khaled, o tiro errante acertaria quase de certeza no prédio. Conseguia ouvir vozes através do auricular: Dina a perguntar ao Yaakov o que se estava a passar; Yaakov a contar à Dina do carro que lhe bloqueara o caminho e do lance de escadas que os forçara a separarem-se. — Consegues vê-lo?

— Não.

Há quanto tempo é que ele desapareceu? — Há apenas alguns segundos.

— Para onde é que o Khaled vai? Por que ele está a caminhar tanto? Onde está a proteção dele? Não estou a gostar disto. Vou dizer-lhe para desistir.

— Deixa-o.

Khaled chegou ao alto e desapareceu de vista. Gabriel subiu as escadas, dois degraus de cada vez, e chegou apenas dez segundos depois de Khaled. À sua frente surgia uma interseção de duas ruas em forma de V. Uma delas, a que ficava à direita de Gabriel, subia pela encosta mesmo em frente da igreja. Não tinha quaisquer carros nem peões. Gabriel apressou-se para a esquerda e olhou pela segunda rua. Também ali não havia sinais de Khaled, apenas um par de faróis vermelhos, desaparecendo rapidamente à distância.

— Desculpe, monsieur, está perdido?

Gabriel virou-se e levantou o visor do capacete. Ela estava de pé ao alto da escadaria, jovem, com não mais de 30 anos, grandes olhos castanhos e cabelo escuro e curto. Tinha-lhe falado em francês. Gabriel respondeu na mesma língua.

— Não, não estou perdido.

— Talvez esteja à procura de alguém?

E porque estás tu, uma mulher atraente, a falar com um estranho de capacete? Deu um passo na direção dela. Ela manteve-se onde estava, mas Gabriel detectou um vestígio de apreensão no seu olhar escuro.

— Não, não estou à procura de ninguém.

— Tem a certeza? Podia jurar que estava à procura de alguém.

— Ela inclinou ligeiramente a cabeça para um lado. — Talvez esteja à procura da sua mulher.

Gabriel sentiu a nuca em chamas. Olhou com maior atenção para o rosto da mulher e apercebeu-se de que já o vira antes. Era a mulher que tinha ido ao apartamento com Khaled. Apertou com mais força a coronha da Barak.

— O nome dela é Leah, não é? Vive numa clínica psiquiátrica no Sul da Inglaterra... pelo menos, costumava. A Clínica Stratford, certo?

Estava registrada sob o nome Lee Martinson.

Gabriel impeliu-se para a frente e agarrou a mulher pelo pescoço. — O que lhe fizeram? Onde é que ela está?

— Está em nosso poder — arquejou a mulher — , mas não sei onde está.

Gabriel puxou-a para trás, em direção ao alto das escadas.

— Onde é que ela está? — Repetiu a pergunta em árabe. Responde-me! Não me fales em francês. Fala-me na tua verdadeira língua. Fala-me em árabe.

— Estou a dizer-te a verdade.

— Então sabes falar árabe. Onde é que ela está? Responde-me, ou empurro-te pelas escadas.

Empurrou-a uma fração de centímetro para mais perto da extremidade. A mão dela tentou agarrar-se ao corrimão, mas encontrou apenas o ar. Gabriel sacudiu-a uma vez violentamente.

— Se me matar, vai se destruir... e a sua mulher. Sou sua única esperança.

— E se fizer como diz?

— Vai salvar a vida dela.

— E quanto à minha?

Ela não respondeu à pergunta.

— Diz ao resto de sua equipe para desistir. Diga que deixem imediatamente Marselha. De outro modo, diremos aos Franceses que estás aqui, e isso ainda irá piorar a situação.

Ele olhou por cima do ombro dela e viu Yaakov a subir lentamente as escadas na sua direção. Gabriel fez-lhe sinal para parar com a mão esquerda. Nessa altura, a voz da Dina surgiu no ar: "Deixa-a ir, Gabriel. Vamos encontrar Leah.

Não jogues da maneira que Khaled quer."

Gabriel voltou a olhar para os olhos da moça.

— E se eu lhes disser para desistirem?

— Levo-te até ela. Gabriel tornou a sacudi-la.

— Então tu sabes onde ela está?

— Não, haverão de nos dizer onde devemos ir. Um destino de cada vez, passos muito pequenos. Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que te dissermos, ela viverá. — E o que me acontece?

— Não terá ela sofrido já o suficiente? Salva a tua mulher, Allon. Vem comigo, e faz exatamente como eu faço. É a tua única hipótese.

Ele olhou para a escadaria e viu Yaakov a sacudir a cabeça. Dina sussurrava-lhe ao ouvido: "Por favor, Gabriel, diz-lhe que não."

Ele olhou-a nos olhos. Shamron treinara-o para ler as emoções dos outros, para distinguir a verdade do engano, e nos olhos escuros da namorada do Khaled ele viu apenas a franqueza permanente de um fanático, a convicção de que o sofrimento passado justificava qualquer atitude, não interessando o quão cruel fosse. Também reparou numa tranquilidade perturbadora. Aquela moça estava treinada, não apenas doutrinada. O seu treino faria dela uma oponente de respeito, mas era o seu fanatismo que a deixaria vulnerável.

Estaria de fato Leah na posse deles? Não tinha qualquer motivo para duvidar. Khaled destruíra uma embaixada no coração de Roma. Certamente que conseguiria raptar uma mulher doente de um hospital psiquiátrico inglês. Abandonar Leah agora, depois de tudo o que ela tinha sofrido, era impensável. Talvez ela morresse. Talvez morressem os dois. Talvez Khaled lhes permitisse, se tivessem sorte, morrerem juntos.

Khaled desempenhara bem o seu papel. Nunca tencionara matar Gabriel em Veneza. O dossiê de Milão tinha sido apenas a aposta de abertura numa intriga elaborada para atrair Gabriel ali, àquele lugar em Marselha, e a apresentar-lhe um caminho que ele não podia senão seguir. A fidelidade fazia-o avançar. Afastou-a da beira das escadas e soltou a mão que lhe apertava o pescoço.

— Desistam — disse Gabriel diretamente para o microfone de pulso. — Deixem Marselha.

Quando Yaakov sacudiu a cabeça, Gabriel disse rispidamente:

— Façam como lhes disse.

Um carro desceu a colina vindo da direção da igreja. Era o Mercedes que lhes bloqueara o caminho alguns minutos antes no Boulevard St-Rémy. Parou em frente deles. A moça abriu a porta traseira e entrou. Gabriel olhou uma última vez para Yaakov, e depois entrou atrás dela.

— Ele está incontatável — disse Lev. — O seu sinal está estacionário há cinco minutos.

O sinal, pensou Shamron, numa sarjeta de Marselha. Gabriel desaparecera de suas telas. Todo aquele planejamento, toda aquela preparação, 208 e Khaled batera-os a todos com a mais antiga das artimanhas árabes: um refém. — É verdade aquilo acerca da Leah? — perguntou Shamron.

— A delegação de Londres telefonou várias vezes ao segurança. Até agora não foram capazes de o encontrar.

— Isso significa que ela está na posse deles — disse Shamron.

— E suspeito de que temos um segurança morto algures dentro da Clínica Stratford.

— Se tudo isso é verdade, está prestes a abater-se uma tempestade muito grave sobre Inglaterra dentro dos próximos minutos. Havia um certo excesso de compostura na voz de Lev para o gosto de Shamron, mas também Lev sempre tivera um elevado autocontrole. Precisamos falar com os nossos amigos do MI5 e da Administração Interna para manter as coisas tão tranquilas quanto possível durante o máximo de tempo possível. Também precisamos informar o Ministério do Negócios Estrangeiros. O embaixador vai ter de dar uns apertos de mão a sério.

— Concordo — disse Shamron — , mas receio que exista uma coisa que tenhamos de fazer primeiro.

Olhou para o relógio. Eram 7h28 hora local, 6h28 na França: faltavam 12 horas para o aniversário da evacuação de Beit Sayeed. — Mas não podemos apenas deixá-lo aqui — disse Dina. ;

— Ele já não está aqui — respondeu Yaakov. — Foi-se embora. Foi ele que decidiu ir com ela. Deu-nos ordens para evacuar, como Tel Aviv o fez. Não temos outra escolha. Estamos de partida.

— Deve haver qualquer coisa que possamos fazer para o ajudar.

Não lhe podes ser de qualquer ajuda se estiveres enfiada numa prisão francesa. Yaakov levou o microfone de pulso aos lábios e ordenou que as equipes Ayin recusassem. Dina desceu o cais com relutância e desapertou as amarras. Solta a última amarra, subiu a bordo do Fidelity e manteve-se juntamente com Yaakov no alto da ponte flutuante enquanto ele conduzia o iate para fora do canal. Ao passarem pelo Forte de São Nicolau, tornou a descer a escada da escotilha até o salão. Sentou-se no posto de comunicações, digitou um comando para aceder à memória e fixou o código de tempo para as 6.12 horas. Alguns segundos depois, ouviu a própria voz.

"É ele. Está na rua. Está a atravessar o parque no sentido sul." Tornou a ouvir tudo: Yaakov e Gabriel a montarem a mota sem palavras; Yaakov a ligar o motor e a acelerar, afastando-se; o som de pneus a prender e a resvalar ao longo do asfalto no Boulevard St-Rémy; a voz de Gabriel, calma e sem emoção: "Para aqui. Não te mexas."

Vinte segundos depois, a mulher: "Desculpe, monsieur, está perdido?"

STOP.

Quanto tempo teria Khaled passado a planejar aquilo? Anos, pensou ela. Ele tinha deixado as pistas para ela seguir, e ela tinha-as seguido, de Beit Sayeed a Buenos Aires, de Istambul a Roma, e agora Gabriel estava na mão deles. Eles iam matá-lo, e a culpa era dela.

Pressionou PLAY e tornou a ouvir a discussão de Gabriel com a palestina, depois pegou no telefone por satélite e estabeleceu comunicação com Boulevard King Saul na linha de segurança.

— Preciso de uma identificação de voz.

— Tem uma gravação?

— Sim.

— Qualidade?

Dina explicou as circunstâncias da intercepção.

— Passe a gravação, por favor. Ela pressionou PLAY.

"Se perdermos a hora-limite, a tua mulher morre. Se me matares, a tua mulher morre. Se fizeres exatamente o que dissermos, ela viverá." STOP.

— Espere um momento, por favor. Passados dois minutos:

— Não há nada compatível em arquivo.

Martineau encontrou-se uma última vez com Abu Saddiq no Boulevard d'Anthènes, na base da escadaria ampla que conduzia à Gare Saint-Charles. Abu Saddiq estava vestido com roupas ocidentais: calças impermeáveis impecáveis e uma camisa de algodão engomada. Disse a Martineau que acabara de sair um barco do porto a grande velocidade.

— Como é que se chamava? Abu Saddiq disse-lhe.

— Fidelity — repetiu Martineau. — Uma escolha interessante. Ele virou-se e começou a subir as escadas com dificuldade, tendo

Abu Sadiq ao seu lado.

— Os shaheeds receberam as suas ordens finais — disse Abu Saddiq.

— Continuarão para o seu alvo como marcado. Não podemos fazer nada para os parar.

— E tu?

— O ferry do meio-dia para Argel.

Chegaram ao alto da escadaria. A estação de trem era castanha e feia, e estava num péssimo estado.

— Devo confessar — disse Abu Saddiq — que não sentirei a falta deste lugar. — Vai para Argel e morre para o mundo. Voltaremos a trazer-te para a Cisjordânia quando for seguro.

— Depois de hoje... — Ele encolheu os ombros. — Nunca mais será seguro.

Martineau apertou a mão de Abu Saddiq.

— Maa-salaamah.

— As-salaam alaykum, irmão Khaled.

Abu Saddiq virou-se e desceu a escadaria. Martineau entrou na estação de trem e deteve-se em frente do balcão das partidas. O TGV das 8.15 para Paris estava a partir da Plataforma F. Martineau atravessou o terminal e dirigiu-se à plataforma. Caminhou ao longo do trem até encontrar a sua carruagem, e depois embarcou.

Antes de se sentar, foi à casa de banho. Deixou-se ficar muito tempo em frente do espelho, a examinar a imagem refletida. O casaco Yves Saint Laurent, a camisa azul-escura, os óculos de marca: Paul Martineau, francês distinto, arqueólogo famoso. Mas não hoje. Hoje Martineau era Khaled, filho de Sabri, neto do Sheikh Asad. Khaled, vingador de males passados, espada da Palestina. Os shaheeds receberam as suas ordens finais. Não podemos fazer nada para os parar.

Tinha sido dada outra ordem. O homem que se encontraria com Abu Saddiq naquela noite iria matá-lo. Martineau aprendera com os erros dos seus antecessores. Nunca iria permitir ser colocado em risco por um árabe traidor.

Passado um instante, estava sentado num lugar de primeira classe enquanto o trem saía da estação e se dirigia para norte através dos bairros de lata muçulmanos de Marselha. Paris ficava a 872 quilômetros, mas o TGV de alta velocidade iria cobrir essa distância em pouco mais de três horas. Um milagre da tecnologia ocidental e do engenho francês, pensou Khaled. Depois fechou os olhos e passado pouco tempo adormeceu.

 

 

 

CONTINUA