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PRÍNCIPE DE FOGO
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CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

CONTINUA

CAPÍTULO 8

PERTO DE AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA

Acho que encontramos outro, professor.

Paul Martineau, agachado nas sombras profundas do poço de escavação, virou a cabeça devagar e procurou a origem da voz que lhe tinha perturbado o trabalho. O seu olhar incidiu sobre a forma familiar de Yvette Debré, uma jovem licenciada que se tinha oferecido como voluntária para a escavação. Iluminada por trás pelo penetrante sol de meio da manhã da Provença, não passava de uma mera silhueta. Martineau sempre a tinha considerado como um artefato bem escondido. O cabelo escuro e curto e as feições quadradas faziam-na parecer um rapaz adolescente. Apenas quando o seu olhar lhe percorria o corpo — passando pelos seios grandes, pela cintura estreita, pelas ancas arredondadas — é que a sua notável beleza se revelava na totalidade. Ele sondara-lhe o corpo com as mãos, alisara o solo dos seus recessos secretos e encontrara delícias escondidas e a dor de feridas antigas. Ninguém na escavação suspeitava de que a relação entre ambos ultrapassasse a mera relação entre professor e aluna. Paul Martineau era muito bom a guardar segredos.

— Onde está?

— Atrás do lugar de culto.

— Verdadeiro ou de pedra?

— Pedra.

— A posição?

— Rosto para cima.

Martineau levantou-se. Em seguida colocou as palmas das mãos de ambos os lados do poço estreito e, com um impulso poderoso dos ombros, içou-se para a superfície.

Sacudiu a avermelhada terra provençal batendo as mãos uma na outra e sorriu a Yvette. Estava vestido, como era costume, com calças jeans ruças e botas de camurça de formato ligeiramente mais elegante do que aquele preferido por arqueólogos menos conhecidos. A camiseta de lã era de uma tonalidade cinza-carvão, e tinha um lenço vermelho elegantemente colocado ao pescoço. O cabelo era escuro e encaracolado, os olhos grandes e de um castanho muito escuro. Um colega comentara certa vez que no rosto de Paul Martineau se podiam ver traços de todos os povos que outrora tinham habitado a Provença: os Celtas e os Gauleses, os Gregos e os Romanos, os Visigodos e os Teutões, os Francos e os Árabes. Era inegavelmente atraente. Yvette Debré não tinha sido a primeira estudante a ser seduzida por ele.

Oficialmente, Martineau era professor adjunto de Arqueologia na prestigiada Universidade de Aix-Marseille in, embora passasse a maior parte do tempo em trabalho de campo e fosse conselheiro de mais de uma dúzia de museus arqueológicos locais, espalhados pelo Sul da França. Era especialista em História pré-romana da Provença, e embora tivesse apenas 35 anos, era considerado um dos melhores arqueólogos franceses da sua geração. O seu último trabalho, um tratado acerca do legado da hegemonia liguriana na Provença, tinha sido considerado o modelo acadêmico acerca do assunto. Estava nesse momento em negociações com um editor francês para a edição de uma obra internacional acerca da História antiga da região.

O seu sucesso, as suas mulheres e rumores de riqueza tinham-no transformado numa fonte de considerável ressentimento profissional, bem como de mexericos. Martineau, embora de poucas palavras relativamente à sua vida pessoal, nunca mantivera em segredo a sua proveniência. O seu falecido pai, Henri Martineau, tinha-se envolvido tanto em negócios como na área diplomática, e falhara redondamente em ambos. Após a morte da mãe, Martineau vendera a grande casa de família em Avignon, assim como uma segunda propriedade na Vaucluse rural. Desde essa altura que vivia confortavelmente com os lucros destas vendas. Tinha um enorme apartamento perto da universidade em Aix, uma villa confortável na aldeia de Lubéron de Lacoste, e uma pequena casa térrea em Montmartre, Paris. Quando lhe perguntavam porque tinha escolhido Arqueologia, respondia que se sentia fascinado com o aparecimento e desaparecimento das civilizações e com aquilo que provocava o seu fim. Outros sentiam nele uma certa rebeldia, uma fúria silenciosa que parecia acalmar-se, pelo menos temporariamente, ao mergulhar as mãos no passado.

Martineau seguiu a moça através do labirinto das trincheiras de escavação. Localizado no alto de um monte em frente à ampla planície de Chaine de l'Étoile, o local era um oppidum, ou um forte murado numa colina, construído pela poderosa tribo celto-liguriana conhecida como Salyes. As escavações iniciais tinham concluído que o forte continha duas secções distintas, uma para a aristocracia celta e outra para aquilo que se pensava ser a classe baixa liguriana. Mas Martineau avançara com uma nova teoria. A adição apressada da seção mais pobre do forte tinha coincidido com uma série de combates ocorridos entre os Lígures e os Gregos, perto de Marselha. Com essa escavação, Martineau provara de modo conclusivo que o anexo era o equivalente a um campo de refugiados da Idade do Ferro.

Agora procurava a resposta a três questões: Por que o forte da colina tinha sido abandonado passadas apenas algumas centenas de anos? Qual era o significado do enorme número de cabeças decepadas, algumas verdadeiras e outras esculpidas em pedra, que descobrira nas proximidades do local de culto principal? Tratar-se-iam apenas de trofeus de batalha de um povo bárbaro da Idade do Ferro ou teriam uma natureza religiosa, estariam de algum modo ligados ao misterioso culto celta das "cabeças cortadas"? Martineau suspeitava de que o culto podia ter tido um papel importante no abandono repentino do forte da colina, e era por esse motivo que mandara os outros membros da equipe alertá-lo para o momento em que fosse descoberta uma "cabeça" — e porque era ele que tratava pessoalmente das escavações. Aprendera por experiência própria que nenhuma pista, por mais insignificante que fosse, podia ser ignorada. Qual era a disposição da cabeça? Que outros artefatos ou fragmentos tinham sido encontrados nas redondezas? Havia outro tipo de vestígios contidos no solo circundante? Tais assuntos não podiam ser deixados nas mãos de um estudante, ainda que tão talentoso quanto Yvette Debré.

Chegaram à trincheira, que tinha cerca de dois metros de comprimento e dois metros de largura. Martineau baixou-se para o interior, acautelando-se para não perturbar a terra circundante. Sobressaindo do subsolo duro, encontrava-se um montículo que facilmente se reconheceria como sendo um nariz humano. Martineau tirou do bolso de trás uma pequena picareta e uma escova, e começou a trabalhar.

Durante as seis horas que se seguiram não se levantou do fosso. Yvette permaneceu sentada de pernas cruzadas na borda do fosso. Por vezes, oferecia-lhe água mineral ou café, que ele recusava. De poucos em poucos minutos, um dos outros membros da equipe aproximava-se e perguntava-lhe como estava a correr. As suas perguntas deparavam-se com o silêncio. Apenas o som do que Martineau estava a fazer se erguia da trincheira. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar. Escavar, escavar, sacudir, sacudir, soprar...

O rosto ia-se erguendo lentamente na sua direção, saindo das profundezas do solo antigo, com a boca aberta numa angústia final, de olhos fechados pela morte. Enquanto a manhã passava, ia esquadrinhando mais profundamente o solo e descobriu que, como esperara, era uma mão que segurava a cabeça. As pessoas reunidas à beira da trincheira não se aperceberam de que para Paul Martineau o rosto representava mais do que um intrigante artefato de um passado distante. No solo escuro, Martineau via o rosto do seu inimigo — e um dia em breve, pensou, também ele estaria a segurar uma cabeça decepada na palma da mão.

A tempestade desceu do vale do Reno a meio do dia. A chuva, fria e batida por um vento áspero, abateu-se sobre a escavação como um bando de vândalos. Martineau saiu da trincheira e apressou-se pela colina acima, onde encontrou o resto da equipe abrigando-se a sotavento do antigo muro. — Arrumem as coisas — disse ele. — Voltaremos a tentar amanhã. Martineau despediu-se deles e encaminhou-se na direção do estacionamento. Yvette afastou-se dos outros e seguiu-o.

— Que tal jantarmos hoje à noite?

— Adoraria, mas infelizmente não posso.

— Por que não?

— Outra recepção chata na faculdade — respondeu Martineau. O reitor exigiu a minha presença.

— Amanhã à noite?

— Talvez. — Martineau tocou-lhe na mão. — Vejo você de manhã.

Do lado oposto do muro situava-se um estacionamento relvado. O novo Mercedes de Martineau destacava-se entre os veículos velhos e as motas dos voluntários e dos arqueólogos menos conhecidos que trabalhavam na escavação. Sentou-se atrás do volante e seguiu pela Dl4 em direção a Aix. Passados 15 minutos, estacionava num estacionamento no exterior do seu apartamento, mesmo junto ao cours Mirabeau, no coração da cidade.

Era um belo edifício do século XVIII, com uma varanda de ferro em cada janela e uma porta do lado esquerdo da fachada, de frente para a rua. Martineau tirou o correio da caixa, depois entrou no pequeno elevador e dirigiu-se ao quarto piso. O elevador abriu para um pequeno vestíbulo com chão de mármore. O par de ânforas romanas que se encontravam à entrada da porta era verdadeiro, embora a qualquer pessoa que perguntasse qual a sua origem lhe fosse dito que não passavam de reproduções inteligentes.

O apartamento onde entrou parecia mais adequado a um membro da aristocracia de Aix do que a um arqueólogo e professor em part-time. Originariamente tinham sido dois apartamentos, mas após a morte prematura e acidental do seu vizinho viúvo, Martineau tinha obtido o direito de os juntar num único apartamento. A sala de estar era grande e teatral, com um tecto alto e janelas grandes sobranceiras à rua. O mobiliário era de estilo provençal, embora menos rústico do que as peças na sua villa em Lacoste. Numa parede encontrava-se uma paisagem de Cézanne; noutra um par de esboços de Degas. Um par de colunas romanas invulgarmente intatas flanqueavam a entrada para um estúdio grande que continha várias centenas de monografias arqueológicas e uma notável coleção de notas de campo originais, bem como manuscritos de algumas das maiores mentes na história da arqueologia. A casa de Martineau era o seu santuário. Nunca convidava os colegas para lá irem, apenas mulheres — e nos últimos tempos apenas Yvette.

Tomou uma ducha rápido e vestiu roupa limpa. Dois minutos depois, sentava-se mais uma vez atrás do volante do Mercedes, acelerando ao longo do cours Mirabeau. Não se dirigiu à universidade. Em vez disso, atravessou a cidade e virou para a autoestrada A51 em direção a Marselha. Tinha mentido a Yvette. Não era a primeira vez.

A maior parte dos habitantes de Aix tinha tendência a olhar Marselha com desdém. Paul Martineau sempre se sentira seduzido por ela. A cidade portuária que os gregos batizaram de Massalia era agora a segunda maior da França, e continuara a ser o porto de entrada da maior parte dos imigrantes que chegavam ao país, a maior parte dos quais oriunda da Argélia, de Marrocos e da Tunísia. Grosseiramente dividida ao meio pelo ruidoso Boulevard de la Canebière, tinha dois lados distintos. A sul da avenida, na extremidade do velho porto, encontrava-se uma agradável cidade francesa com amplos passeios, ruas comerciais exclusivas e uma marginal salpicada por esplanadas. Mas para norte situavam-se os bairros conhecidos como Le Panier e o Quartier Belsunce. Ali era possível caminhar pelas ruas e ouvir apenas árabe. Os estrangeiros e os Franceses nativos, presas fáceis de criminosos de rua, raramente deambulavam pelos bairros árabes depois de escurecer.

Paul Martineau não tinha tais preocupações quanto à sua segurança. Deixou o Mercedes no Boulevard d'Anthènes, perto da base dos degraus que conduziam à estação de trens de St-Charles, e desceu a colina em direção à Rue de la Canebière. Antes de chegar à via pública, virou à direita para uma rua estreita chamada Rue des Convalescents. Com a largura insuficiente para acomodar um carro, esta descia na direção do porto, para o coração do Quartier Belsunce. A rua estava escura e Martineau sentiu nas costas as primeiras rajadas do mistral. O ar noturno cheirava a fumo de carvão e açafrão, e vagamente a mel. Dois homens idosos, sentados em cadeiras de pernas frágeis no exterior de uma moradia de apartamentos, partilhavam um cachimbo de água borbulhante e observaram Martineau com indiferença quando ele passou. No instante seguinte, uma bola de futebol, vazia e quase da cor do pavimento, ressaltou na direção dele vinda da escuridão. Martineau pousou o pé sobre ela e reenviou-a destramente ao local de onde tinha vindo. Foi apanhada por um rapaz de sandálias que, ao ver o estrangeiro alto com roupas ocidentais, se virou e desapareceu na boca do beco. Martineau teve uma visão de si mesmo, 30 anos antes. Fumo de carvão, açafrão, mel... Por um instante, sentiu-se a andar pelas ruas do Sul de Beirute.

Chegou a um cruzamento entre duas ruas. Numa esquina encontrava-se um quiosque de shwarmas, no outro um minúsculo café que prometia gastronomia tunisina. Um trio de rapazes adolescentes olhou provocadoramente para Martineau da soleira da porta de um café. Ele desejou-lhes boa noite em francês, depois baixou o olhar e virou à direita.

A rua era mais estreita do que a Rue des Convalescents, e a maior parte do passeio estava ocupada por bancas do mercado cheias de tapetes baratos e vasos de alumínio. Na outra extremidade encontrava-se um café árabe. Martineau entrou. Nos fundos do café, perto da casa de banho, encontrava-se um lance estreito de escadas às escuras. Martineau subiu-as lentamente em direção à obscuridade. No alto encontrava-se uma porta. Enquanto Martineau se aproximava, ela ia-se abrindo suavemente. Um homem sem barba e envergando um túnica, saiu para o patamar.

— Maa-salaamah — disse. "Que a paz esteja contigo."

— As-salaam alaykum — replicou Martineau, enquanto passava pelo homem e entrava no apartamento.

CAPÍTULO 9

JERUSALÉM

 

 

Jerusalém é literalmente uma cidade numa colina. Situa-se no alto das montanhas da Judeia e sobe-se até ela a partir da planície costeira por uma estrada semelhante a uma escadaria através do desfiladeiro das montanhas serpenteantes conhecidas como as Sha'ar Ha'Gai. Gabriel, como a maior parte dos israelenses, ainda se lhe referia pelo seu nome árabe, Bab al-Wad. Baixou o vidro do Skoda pertencente ao Escritório e pousou o braço na abertura. O ar da noite, fresco e suave, com um aroma a cipreste e a pinho, agitou-lhe a manga da camisa. Passou pela carcaça enferrujada de um carro blindado, uma relíquia dos combates de 1948, e pensou em Sheikh Asad e na sua campanha para cortar a corda salva-vidas até Jerusalém.

Ligou o rádio, esperando encontrar alguma música que lhe afastasse o pensamento do caso, mas em vez disso ouviu um boletim noticioso no qual informavam que um homem-bomba suicida acabara de atingir um ônibus no influente Bairro de Rehavia, em Jerusalém. Ouviu as atualizações durante algum tempo; depois, quando uma música mais sóbria começou, desligou o rádio. Música sóbria significava mais mortes.

Quanto mais sóbria a música, maior o número de mortos.

A Autoestrada 1 passou subitamente de uma via rápida de quatro pistas para uma ampla avenida urbana, a famosa estrada de Jafa, que corria desde a extremidade noroeste de Jerusalém até os muros da Cidade Velha. Gabriel seguiu a estrada para a esquerda, depois desceu uma encosta suave, passando pela estação central de ônibus, nova e caótica. Apesar do bombardeamento, os utentes derramavam-se pelo passeio até a entrada. A maior parte não tinha qualquer opção além de entrar no seu ônibus e desejar que naquela noite a bola da roleta não parasse no seu número.

Passou pela entrada do florescente mercado Makhane Yehuda. Uma moça etíope vestindo um uniforme da polícia verificava junto de uma barreira metálica as bolsas de todas as pessoas que entravam. Quando Gabriel parou num semáforo, um aglomerado de ultraortodoxos Haredim de casacos pretos desviavam-se por entre os veículos como folhas rodopiando.

Uma série de curvas levou-o à Rua Narkiss. Não havia lugar para estacionar, por isso deixou o carro do outro lado da esquina e regressou lentamente a pé até o seu apartamento sob a proteção dos eucaliptos. Sentiu a recordação agridoce de Veneza, de deslizar para casa sobre as águas sedosas de um canal e de prender o barco no cais dos fundos da casa.

O quarteirão de blocos de apartamentos de Jerusalém, em pedra calcária, era recuado alguns metros da rua e chegava-se a ele através de uma passagem de cimento que atravessava um pequeno jardim emaranhado. O hall estava iluminado por uma luz esverdeada e tinha um cheiro forte a tinta fresca à base de óleo. Não se deu ao trabalho de verificar a caixa de correio — ninguém sabia onde ele vivia, e as contas iam diretamente para uma empresa de administração dirigida pelo Alojamento.

O edifício não tinha elevador. Gabriel subiu, fatigado, as escadas de cimento até o quarto piso e abriu a porta. O apartamento era grande pelos padrões israelenses — dois quartos, uma cozinha pequena, um pequeno estúdio junto à sala de jantar e de estar em comum — , mas muito distante do piano nobile da casa do canal de Gabriel em Veneza. O Alojamento tinha-se oferecido para vender. O valor dos apartamentos em Jerusalém parecia afundar-se a cada atentado a bomba, e de momento podia ser obtido por um preço muito baixo. Chiara decidira não esperar pelo contrato para o decorar. Como não tinha muito que fazer, passava grande parte do tempo nas compras, e estava firmemente decidida a transformar o apartamento funcional mas pouco alegre em algo parecido com um lar. Desde a última vez que Gabriel tinha ido a casa, aparecera um tapete, bem como uma mesa de centro circular de latão com um pedestal de madeira laçado. Ele esperava que ela a tivesse comprado nalgum lugar de boa reputação e não num daqueles charlatães que vendiam o ar da Terra Santa num frasco.

Chamou Chiara, mas apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou pelo corredor até o quarto, que tinha sido mobilado para operacionais e não para amantes. Gabriel juntara as duas camas, mas acordava invariavelmente a meio da noite a cair na fenda entre elas, agarrando-se à extremidade do precipício. Aos pés da cama repousava uma pequena caixa de cartão. Chiara tinha empacotado a maior parte das suas coisas; isto era tudo o que restava. Calculou que o psicólogo Boulevard King Saul teria interpretado uma percepção analítica profunda na sua incapacidade de desempacotar a caixa. A verdade era bastante mais prosaica: estivera demasiado ocupado a trabalhar. Apesar disso, era deprimente pensar que toda a sua vida cabia naquela caixa, como era difícil imaginar que uma pequena urna metálica pudesse conter as cinzas de um ser humano. A maior parte das coisas nem sequer eram dele. Pertenciam a Mario Delvecchio, um papel que ele representara durante algum tempo e que lhe valera aplausos moderados. Sentou-se e abriu a fita adesiva com a unha do polegar. Ficou aliviado por encontrar um pequeno estojo de madeira, o kit de restauração de viagem contendo pigmentos e pincéis que Umberto Conti lhe oferecera no fim da sua aprendizagem. O resto era sobretudo lixo, coisas de que se deveria ter separado havia muito: antigos talões de cheques, notas acerca de restaurações, uma dura crítica de que fora alvo numa revista de arte italiana pelo seu trabalho no Cristo no Mar da Galileia, de Tintoretto. Perguntou-se porque se dera ao trabalho de a ler, quanto mais guardá-la.

No fundo da caixa encontrou um envelope em papel de cânhamo do tamanho de um livro de cheques. Abriu a aba e virou o envelope ao contrário. Caiu um par de óculos do seu interior. Tinham pertencido a Benjamin Stern, um antigo agente do Escritório que fora assassinado. Gabriel ainda conseguia ver as dedadas oleosas de Benjamin nas lentes sujas.

Começou a colocar os óculos de novo no envelope, mas reparou que havia qualquer coisa alojada no fundo. Virou-o e bateu na base. Caiu ao chão um objeto, um fio de couro do qual pendia um pedaço de coral vermelho com a forma de uma mão. Nesse momento ouviu os passos de Chiara no patamar. Agarrou no talismã e enfiou-o no bolso. Quando chegou à sala da frente já ela conseguira abrir a porta e atravessava a soleira transportando vários sacos de compras. Ergueu o olhar para Gabriel e sorriu, como que surpresa por encontrá-lo. Fizera uma trança com o cabelo escuro, e o sol mediterrânico do início de Primavera deixara-lhe um rasto de cor nas faces. Aos olhos de Gabriel parecia-se com uma nativa de Sabra. Apenas quando falava hebraico com o seu ultrajante sotaque italiano é que traía o seu país de origem. Gabriel já não lhe falava em italiano. Italiano era a língua de Mario, e Mario estava morto. Só na cama é que falavam em italiano um com o outro, e isso era uma concessão a Chiara, que acreditava que o hebraico não era uma língua própria para amantes.

Gabriel fechou a porta e ajudou-a a transportar os sacos plásticos de compras para a cozinha. Não combinavam, alguns eram brancos, outros azuis, havia um saco rosado com o nome de um talhante kosher muito conhecido. Sabia que Chiara tornara a ignorar a sua admoestação para se manter afastada do mercado Makhane Yehuda.

— Lá é tudo melhor, especialmente os legumes — disse ela defendendo-se, ao ler o olhar de desaprovação no rosto dele. — Além disso, gosto do ambiente. É tão intenso.

— Sim — concordou Gabriel. — Devia vê-lo quando explode uma bomba.

— Está a dizer que o grande Gabriel Allon tem medo de homens-bomba?

— Sim, tenho. Não se pode parar de viver, mas há coisas sensatas que se podem fazer. Como chegou em casa?

Chiara olhou para ele com uma expressão acanhada.

— Bolas, Chiara!

— Não consegui encontrar um táxi.

— Sabes que acabaram de explodir um ônibus em Rehavia?

— Claro. Ouvimos a explosão dentro do Makhane Yehuda. Foi por isso que decidi vir de ônibus para casa. Achei que seria improvável acontecer duas vezes no mesmo dia.

Gabriel sabia que esses cálculos tão macabros eram um aspecto cotidiano da vida israelense moderna.

— De agora em diante, pegue o ônibus número 11.

— Qual é esse?

Ele apontou dois dedos para o chão e fez um movimento de andar.

— Isso é um exemplo do seu sento de humor fatalista israelense?

— Precisa ter senso de humor neste país. É a única maneira de não enlouquecer.

— Gostava mais de você quando era italiano. — Ela empurrou-o gentilmente em direção à cozinha. — Vai tomar uma duche. Temos convidados para o jantar.

Ari Shamron tinha alienado todos aqueles que mais o amavam. Apostara, tolamente, como se veio a saber, que o seu compromisso de toda uma vida na defesa do seu país lhe concederia imunidade aos filhos e amigos. Yonatan, o filho, era comandante de um tanque nas Forças Defensivas Israelenses e parecia dominado por uma necessidade quase suicida de morrer em batalha. A filha mudara-se para a Nova Zelândia e vivia agora numa quinta de galinhas com um gentio. Escapava-se aos telefonemas dele e recusava as suas repetidas exigências para regressar à terra do seu nascimento.

Apenas Gilah, a esposa sofredora de longa data, permanecera lealmente a seu lado. Tinha de calma aquilo que Shamron tinha de temperamental e fora abençoada com a capacidade míope de ver nele apenas o bem. Era a única pessoa que se atrevia a repreendê-lo, embora geralmente o fizesse em polaco para lhe evitar um embaraço desnecessário — como fazia quando Shamron tentava acender um cigarro à mesa de jantar depois de terminar o seu prato de galinha assada e pilaf de arroz. Ela conhecia apenas os pormenores mais vagos do trabalho do marido e suspeitava que ele tivesse as mãos sujas. Shamron poupara-lhe o pior, pois temia que se Gilah soubesse de mais o viesse a abandonar, como sucedera com os filhos. Ela via Gabriel como uma influência moderadora e tratava-o amavelmente. Também sentia que Gabriel amava Shamron do modo turbulento como um filho ama o pai, e ela retribuía-lhe esse amor. Ignorava que Gabriel tivesse morto homens seguindo ordens do seu marido. Estava convicta de que ele seria uma espécie de escriturário que tinha passado um grande período de tempo na Europa e sabia muito a respeito de arte.

Gilah ajudou Chiara a lavar a louça enquanto Gabriel e Shamron se dirigiam para o estúdio para conversar. Shamron, escudado do olhar de Gilah, acendeu um cigarro. Gabriel abriu a janela. A chuva noturna batia a um ritmo brando na rua, e o odor penetrante das folhas de eucalipto molhadas enchiam a sala.

— Ouvi dizer que andas à caça do Khaled — disse Shamron.

Gabriel anuiu. Informara Lev das descobertas da Dina naquela manhã, e Lev partira de imediato para Jerusalém para se encontrar com Shamron e com o primeiro-ministro.

— Para lhe dizer a verdade, nunca dei muito crédito ao mito do Khaled — disse Shamron. — Sempre parti do princípio de que o rapaz tivesse mudado de nome e escolhido viver sem a sombra do pai e do avô... sem a sombra desta terra. — Também eu — disse Gabriel — , mas o caso é convincente.

— Pois é. Por que nunca ninguém fez a ligação entre as datas de Buenos Aires e Istambul?

— Calculou-se que se trataria de uma coincidência — disse Gabriel. — Além disso, não houve provas suficientes para fechar o círculo. Nunca ninguém pensou em investigar Beit Sayeed até agora.

— Ela é muito boa, essa Dina.

— Infelizmente, há uma espécie de obsessão com ela.

— Estás a referir-te ao fato de ela estar na praça Dizengoff no dia em que o ônibus nº 5 explodiu?

— Como soubeste disso?

— Tomei a liberdade de rever os arquivos pessoais da tua equipe. Escolheste bem.

— Ela sabe muito a teu respeito, incluindo algumas coisas que nunca me contou.

— Tais como?

— Nunca soube que tinha sido Rabin a dirigir o carro de fuga depois que matou o xeque Asad.

— Ficamos muito próximos depois disso, Rabin e eu, mas infelizmente nos separamos por causa de Oslo. Rabin acreditava que Arafat estava embaixo e que tinha chegado a hora de um acordo. Eu disse que Arafat estava fazendo acordo porque estava embaixo, mas pretendia usar Oslo para fazer a guerra contra nós por outros meios. É claro que eu tinha razão. Para Arafat, Oslo era apenas mais um passo na sua "estratégia de fases" para a nossa destruição. Disse-o com as suas próprias palavras, quando falava em árabe com seu povo. — Shamron fechou os olhos. — Não sinto prazer algum em saber que tinha razão. A morte de Rabin foi um golpe terrível para mim. Seus opositores chamaram-no de traidor e nazista, e depois o mataram. Assassinamos um dos nossos. Sucumbimos à doença árabe. - Sacudiu a cabeça lentamente. — Apesar disso, suponho que foi tudo necessário, esta tentativa ilusória de fazer a paz com nossos inimigos declarados. Endureceu-nos para os degraus que precisamos seguir se quisermos sobreviver nesta terra.

Gabriel abordou o tema seguinte, a demolição de Beit Sayeed, com extrema cautela.

— Foi uma operação da Palmach, não foi?

— Que sabes exatamente, Gabriel?

— Estavas lá?

Shamron exalou pesadamente, depois anuiu uma vez.

— Não tivemos escolha. Beit Sayeed era a base operacional da milícia do Sheikh Asad. Não podíamos deixar uma aldeia tão hostil entre nós. Depois da morte do Sheikh, foi necessário desferir um golpe fatal à força que lhe restava. O olhar de Shamron tornou-se subitamente distante. Gabriel bem via que ele não desejava prosseguir com o assunto. Shamron deu uma passa maior no cigarro, depois falou a Gabriel da premonição de desastre que experimentara na noite anterior ao bombardeamento.

— Eu sabia que seria qualquer coisa assim. Senti-o logo que aconteceu. — Depois corrigiu-se. — Senti-o antes de acontecer.

— Se o Khaled está a tentar castigar-me, Por que não me matou em Veneza quando teve a oportunidade de o fazer?

— Talvez tencionasse fazê-lo. Daoud Hadawi estava apenas a alguns quilômetros na estrada de Milão quando os italianos o encontraram. Talvez Hadawi fosse o homem que te deveria matar.

— E Roma? — perguntou Gabriel. — Por que Khaled escolheu Roma?

— Talvez porque Roma tivesse servido como quartel-general europeu do Setembro Negro. — Shamron olhou para Gabriel. — Ou talvez ele estivesse falando diretamente com você.

Wadal Abdel Zwaiter, pensou Gabriel. A Piazza Annibaliano.

— Lembre-se de outra coisa — disse Shamron. — Uma semana depois da bomba houve uma demonstração maciça no centro de Roma, não contra o terror palestino, mas contra nós. Os europeus são os melhores amigos dos palestinos. O mundo civilizado nos abandonou ao nosso destino. Nunca teríamos regressado a esta terra se não tivéssemos sido empurrados para cá pelos cristãos europeus, e agora que estamos aqui, eles não nos deixam lutar, muito menos antagonizar os árabes entre eles.

Um silêncio caiu entre ambos. Da cozinha veio o ruído de pratos e riso suave das mulheres. Shamron afundou-se mais na cadeira. O bater da chuva e o forte odor dos eucaliptos parecia exercer sobre ele o efeito de um sedativo.

— Trouxe alguns papéis para você assinar — disse ele.

— Que tipo de papéis?

— Do tipo que dissolverão calmamente o teu casamento com Leah. — Shamron colocou uma mão no antebraço de Gabriel. Passaram-se 14 anos. Perdeste-a. Nunca mais voltará. É altura de seguires a tua vida.

— Não é assim tão simples, Ari.

— Não o invejo — disse Shamron. — Quando planeja trazê-la para casa?

— O médico dela é contra a ideia. Receia que seu regresso a Israel apenas piore a situação. Consegui, por fim, convencê-lo de que isso não se trata de algo negociável, mas ele insiste que lhe seja dado o tempo adequado para se preparar para a transição.

— Quanto?

— Um mês — disse Gabriel. — Talvez um pouco menos.

— Diz ao médico que trataremos aqui dela. Infelizmente, temos imensa experiência em tratar de vítimas de atentados a bomba.

Shamron mudou repentinamente de assunto.

— Estás confortável neste apartamento?

Gabriel indicou que sim.

— É suficientemente grande para uma criança ou duas.

— Não vamos nos precipitar, Ari. Não vou voltar a ver os 50.

— Chiara vai querer filhos, se se casarem, é claro. Além disso, tens de cumprir o teu dever patriótico. Nunca ouviste falar da ameaça demográfica? Em breve seremos um povo minoritário entre o rio Jordão e o mar. O primeiro-ministro encoraja a todos a contribuir tendo mais filhos. Graças a Deus pelos Haredim. São o único motivo porque ainda estamos no jogo.

— Vou tentar contribuir de outra maneira.

— É seu, você sabe — disse Shamron.

— O quê?

— O apartamento.

— Está falando de quê?

— Agora é sua propriedade. Foi comprado em seu nome por um amigo do Escritório.

Gabriel sacudiu a cabeça. Sempre se espantava com aquele acesso ao dinheiro de gângsteres de Shamron.

— Não posso aceitar.

— É tarde demais. A escritura vai ser enviada de manhã.

— Não quero dever nada a ninguém.

— Nós é que lhe devemos. Aceite com amabilidade e no espírito com que foi oferecido. — Shamron deu uma palmadinha no ombro de Gabriel. — E encha-o de crianças.

Gilah enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— A sobremesa está na mesa — disse; depois olhou para Shamron e mandou-o, em polaco, apagar o cigarro. de Abril — murmurou ele, quando Gilah se afastou. — Isso não é muito tempo.

— Já estou a olhar para o relógio.

— Ocorreu-me que há uma pessoa que poderá saber onde está o Khaled.

— Arafat?

— Ele é o pai de Khaled. Além disso, deve-te um favor. Salvaste -lhe a vida uma vez.

— Yasser Arafat é a última pessoa que eu quero ver. Além disso, é mentiroso.

— Sim, mas por vezes as mentiras dele conduzem-nos à verdade.

Está fora do meu alcance. O Lev nunca me daria autorização para isso.

— Então não lhe digas.

— Não me parece que seja sensato limitar-me a aparecer e bater à porta de Arafat. E a única maneira de ir a Ramallah é ir no transporte de pessoal blindado. — Na verdade, Arafat nem sequer tem porta. O IDF tratou disso.

— Shamron permitiu-se um sorriso face aos infortúnios do seu velho adversário. — Quanto ao carro blindado, deixa isso comigo.

Gabriel deitou-se na cama e aproximou-se cuidadosamente do centro. Estendeu o braço na escuridão e envolveu nele o abdômen de Chiara. Ela permaneceu imóvel.

— De que é que tu e o Ari estavam a falar no estúdio?

— Do caso — respondeu ele, ausente.

— Só?

Ele contou-lhe que o apartamento era deles. -Como é que isso aconteceu? — Shamron e os seus amigos endinheirados. Vou pedir ao Alojamento que retirem a mobília antiga. Amanhã, podes comprar uma cama em condições.

O braço de Chiara levantou-se lentamente. Gabriel, na escuridão, conseguia ver o talismã a baloiçar-lhe da ponta dos dedos.

— O que é isso?

— Um amuleto da sorte corso. Dizem que afasta o mau-olhado.

— Onde é que o arranjaste? — É uma longa história.

— Conta.

— É confidencial.

Ele pegou no talismã. Com um ágil movimento de mão, Chiara revirou o talismã de modo que este se lhe enrolou firmemente à volta da ponta dos dedos, do mesmo modo que os árabes frequentemente brincavam com as contas de oração.

— Foi presente de uma de suas antigas amantes? — perguntou ela.

— Na verdade, de uma antiga inimiga. Um homem que tinha sido contratado para me matar e à mulher que eu estava protegendo.

— Anna Rolfe?

— Sim — respondeu Gabriel — , Anna Rolfe.

— Por que guardou? — perguntou ela. — Para lembrar dela?

— Chiara, não seja boba.

— O que eram aqueles papéis que Shamron te deu antes de ir embora? Ou isso também é confidencial?

Gabriel respondeu à pergunta com a verdade.

— Já assinou?

— Acho que devia ler primeiro.

— Sabe o que dizem.

— Vou assiná-los — disse Gabriel.

— Quando?

— Quando estiver preparado.

Nesse exato momento, o edifício foi sacudido pelo estrondo de uma explosão poderosa. Chiara saiu da cama e correu para a janela.

Gabriel permaneceu imóvel.

— Foi perto — disse ela.

— No centro comercial Ben Yehuda, acho. Provavelmente num café.

— Liga o rádio.

— Limite-se a contar as sirenes, Chiara. Pode estimar a gravidade pelo número de ambulâncias que chamaram.

Passou-se um momento, parado e mortalmente silencioso. Gabriel fechou os olhos e imaginou, com a nitidez de um vídeo, o pesadelo que ocorria a alguns quarteirões de sua nova casa. Soou a primeira sirene, depois uma segunda, uma terceira, e uma quarta. Depois de 17, perdeu a conta, pois a noite tinha se transformado numa sinfonia de sirenes. Chiara voltou à cama e agarrou-se ao peito dele.

— Assine os papéis quando estiver pronto — disse ela. — Eu estarei aqui. Estarei sempre aqui.


CAPÍTULO 10

JERUSALÉM: 22 DE MARÇO

 

 

O coronel do Exército que aguardava perto dos muros da Cidade Velha não se parecia muito com Ari Shamron, mas Gabriel não achou aquilo muito surpreendente. Havia qualquer coisa a respeito de Israel — a luz, a forte coesão social, a tensão crepitante da atmosfera — que tinha o poder de alterar dramaticamente a aparência dos seus cidadãos, mesmo no espaço de uma única geração. Yonatan Shamron era 15 centímetros mais alto do que seu infame pai, espantosamente atraente, e não possuía nenhuma daquelas defensivas físicas naturais do velho — um resultado, sabia Gabriel, do fato de ter sido criado ali, e não na Polônia. Apenas quando o coronel saltou de seu jipe blindado e avançou para Gabriel com a mão estendida como um punhal é que Gabriel teve um tênue vislumbre de Shamron, o Velho. Seu andar era mais uma marcha mortal do que um mero andar, e quando apertou ferozmente a mão de Gabriel e lhe deu uma palmada entre as espáduas, Gabriel sentiu-se como que atingido por um bloco de pedra herodiana.

Partiram ao longo da Estrada Número Um, a antiga fronteira entre Jerusalém Oriental e Ocidental. Ramallah, o centro nominal do poder palestino, ficava poucos quilômetros ao norte. Surgiu um posto de controle diante eles. Do lado oposto encontrava-se o campo de refugiados de Kalandiya: dez mil palestinos empilhados em algumas centenas de metros quadrados de apartamentos feitos de hulha betuminosa. Para a direita, espalhando-se por uma pequena colina, os telhados vermelhos e bem ordenados do assentamento judeu Psagot. Erguendo-se acima de tudo encontrava-se um retrato enorme de Yasser Arafat. A inscrição em árabe dizia: SEMPRE CONTIGO.

Yonatan apontou o polegar em direção ao assento traseiro e disse: — Vista essas coisas.

Olhando por cima do ombro, Gabriel viu um colete blindado de colarinho alto e um capacete de combate metálico. Não usava capacete desde sua breve tarefa no IDF. O que Yonatan usava era grande, e caía sobre seus olhos.

— Agora parece um verdadeiro soldado — disse Yonatan. Depois sorriu. — Bem, quase.

Um homem da infantaria acenou para que passassem pela barreira, e depois, vendo quem estava atrás do volante, sorriu e disse:

— Olá, Yonatan.

A disciplina nas fileiras do IDF, como no Escritório, era notoriamente frouxa. Os primeiros nomes eram a norma, e as saudações, algo quase inaudito. Gabriel estudava a cena do outro lado da barreira através da sua janela de vidro fumê à prova de bala. Dois soldados, armas niveladas, ordenava aos homens que abrissem os casacos e levantassem as camisas para se certificarem de que não usavam cintos-bomba debaixo da roupa. As mulheres passavam pela mesma revista atrás de uma barreira que as escudava dos olhares dos homens. Para lá da barreira, serpenteava uma linha com diversos metros de comprimento — uma espera, calculou Gabriel, de três ou quatro horas. Os homens-bomba tinham infligido desespero a ambos os lados da Linha Verde, mas os palestinos honestos — os trabalhadores que tentavam conseguir empregos em Israel, os agricultores que apenas queriam vender os seus produtos — é que pagara o preço mais elevado em termos de absoluto transtorno.

Gabriel olhou para lá do posto de controle, em direção ao Muro de Separação para a Cisjordânia.

— Que acha disso? — perguntou Yonatan.

— Não é certamente nada para dar orgulho.

— Acho que é uma cicatriz feia através desta nossa bela terra. É o nosso novo Muro das Lamentações, muito maior que o primeiro, e diferente, porque agora as pessoas se lamentam de ambos os lados do muro. Mas receio que não tenhamos outra escolha. Com boa inteligência conseguimos evitar a maior parte dos ataques suicidas, mas nunca seremos capazes de evitar todos. Nós precisamos deste muro.

— Mas não é o único motivo para construí-lo.

— Isso é verdade — disse Yonatan. — Quando estiver terminado, podemos virar as costas aos árabes e nos afastar. É por isso que eles têm tanto medo dele. Interessa-lhes permanecerem acorrentados a nós no conflito. O muro vai permitir-nos que nos separemos, e essa é a última coisa que eles queriam. A Estrada Número Um virava para a Autoestrada 60, uma faixa de asfalto negro macio que corria para o norte através de uma paisagem cinza de poeira da Cisjordânia. Tinham-se passado mais de 30 anos desde que Gabriel estivera pela última vez em Ramallah. Então, como agora, chegara num veículo blindado, com um capacete IDF na cabeça. Aqueles anos iniciais da ocupação tinham sido relativamente calmos — na verdade, todas as semanas, o maior desafio de Gabriel tinha sido encontrar uma carona do seu posto para casa da mãe, onde morava, no vale de Jezreel. Para a maior parte dos árabes da Cisjordânia, o fim da ocupação da Jordânia conduzira a um melhoramento vincado na qualidade das suas vidas. Com os Israelenses viera o acesso a uma economia vibrante, água canalizada, eletricidade e educação. As taxas de mortalidade infantil, outrora entre as mais elevadas do mundo, haviam caído rapidamente. As taxas de alfabetismo, entre as mais baixas do mundo, aumentaram muito. O islamismo radical e a influência da OLP acabariam por transformar a Cisjordânia num caldeirão fervilhante e colocar os soldados IDF em confrontos diários com crianças que lançavam pedras, mas para Gabriel o serviço do Exército tinha sido em grande medida um teste ao tédio.

— Então vai ver o Irrelevante — disse Yonatan, intrometendo-se nos pensamentos de Gabriel.

— Seu pai conseguiu uma reunião com ele para mim.

— O homem tem 75 anos e continua a puxar os cordéis como o mestre das marionetes. — Yonatan sorriu e sacudiu a cabeça. — Por que ele não se limita a se aposentar e a relaxar?

— Ficaria doido — disse Gabriel. — Bem como sua pobre mãe. A propósito, ele mandou cumprimentos. Gostaria que fosse a Tiberíades no Shabbat.

— Estou de serviço — disse Yonatan apressadamente.

Aparentemente, o serviço era a desculpa pré-preparada para evitar passar tempo com o pai. Gabriel mostrava-se relutante em envolvê-lo nas emaranhadas disputas internas da família Shamron, embora soubesse que o velhote ficara muito magoado com o afastamento dos filhos. Também tinha um motivo egoísta para a intervenção. Se Yonatan fosse uma presença mais importante na vida de Shamron, poderia aliviar alguma da pressão sobre Gabriel. Agora que Gabriel estava a viver em Jerusalém, e não em Veneza, Shamron sentia-se à vontade para telefonar a todas as horas para trocar mexericos do Escritório ou para dissecar os últimos desenvolvimentos políticos. Gabriel precisava de reaver o seu espaço. Se se levasse Yonatan com habilidade, ele poderia agir como uma espécie de Muro de Separação.

— Ele quer ver você mais vezes, Yonatan.

— Só consigo lidar com ele em pequenas doses. — Yonatan afastou os olhos da estrada durante um momento para olhar para Gabriel. — Além disso, ele sempre gostou mais de você.

— Bem sabe que isso não é verdade.

— Tudo bem, estou exagerando um pouco. Mas não está assim tão afastado da verdade. É certo que pensa em você como filho.

— Seu pai é um grande homem.

— Sim — disse Yonatan — , e os grandes homens são duros com os seus filhos. Gabriel vislumbrou dois enormes transportes de pessoal blindados, de cor castanha, estacionados à beira da estrada diante deles. — É melhor não entrar na cidade sem um pouco de músculo — disse Yonatan. Formaram um pequeno trem, com o jipe de Yonatan ao centro, e continuaram.

A primeira prova da aproximação da cidade era o fluxo de árabes a caminharem pela beira da autoestrada. Os hijabs das mulheres adejavam como estandartes na brisa do meio-dia. E depois, Ramallah, baixa e parda, erguia-se da paisagem árida. A rua de Jerusalém conduziu-os até o coração da cidade. Os rostos dos "mártires" olhavam para Gabriel de todos os postes de iluminação por que passavam. Havia ruas com nomes dos mortos, praças e mercados para os mortos. Um quiosque vendia porta-chaves com rostos dos mortos agarrados. Um árabe movia-se por entre o tráfego, a vender um calendário dos mártires. Os cartazes mais recentes revelavam a sedutora imagem de uma bela jovem, a adolescente árabe que se fizera explodir no centro comercial Ben Yehuda duas noites antes.

Yonatan virou à direita para a Rua Broadcast, por onde seguiram cerca de um quilômetro, até chegarem a uma barricada controlada por meia dúzia de agentes da segurança palestina. Ramallah estava uma vez mais tecnicamente sob controle palestino. Gabriel fora lá a convite do presidente da Autoridade, o equivalente a entrar numa aldeia da Sicília com a bênção do padrinho local. Houve pouca tensão evidente enquanto Yonatan falava, num árabe fluente, com o líder do destacamento palestino.

Passaram-se diversos minutos enquanto o palestino consultava os superiores via rádio portátil. Em seguida, bateu no teto do jipe e acenou-lhes para avançarem.

— Devagar, coronel Shamron — acautelou ele. — Alguns destes rapazes estiveram aqui na noite em que o Batalhão Egoz abateu o portão e começou a fazer explodir o lugar. Não quereríamos que houvesse mal-entendidos.

Yonatan serpenteou através de um labirinto de barreiras de cimento, e depois acelerou ligeiramente. Surgiu à direita um muro de cimento com cerca de 3,5 metros de altura e esburacado por tiros de metralhadoras de alto calibre. Fora derrubado em alguns locais, conferindo-lhe assim o efeito de uma boca com dentes de má qualidade. As unidades de segurança palestina, algumas em vans de caixa aberta, outras em jipes, patrulhavam o perímetro. Olharam para Gabriel e Yonatan com uma expressão provocadora, mas mantiveram as armas baixas. Yonatan travou à entrada. Gabriel retirou o capacete e o blindado.

— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Yonatan.

— Calculo que isso dependa dele.

— Prepare-se para um sermão. Nos últimos tempos, anda maldisposto.

— Podemos culpá-lo?

— Só pode culpar a si mesmo, Gabriel, lembre-se disso.

Gabriel abriu a porta e saiu.

— Ficará bem aqui sozinho?

— Não há problema — disse Yonatan. Depois acenou a Gabriel e disse: — Cumprimentos meus a ele.

Um agente de segurança palestino saudou Gabriel através das grades do portão. Usava um uniforme verde-seco, um boné plano e uma venda preta sobre o olho esquerdo. Abriu o portão o suficiente para Gabriel passar e fez-lhe sinal para que avançasse. Faltavam-lhe os últimos três dedos da mão. Do outro lado do portão, Gabriel foi entregue a mais dois homens de uniforme, que o sujeitaram a uma revista corporal rigorosa e intrusiva enquanto Só Um Olho observava, sorrindo como se toda a coisa tivesse sido preparada para seu divertimento pessoal.

Só Um Olho apresentou-se como sendo o coronel Kemel e levou Gabriel para dentro. Não era a primeira vez que Gabriel entrava na Mukata. Durante o período do Mandato tinha sido uma fortaleza do exército britânico. Depois da Guerra dos Seis Dias, o IDF tomara-a aos Jordanos e usara-a durante toda a ocupação como posto de comando da Cisjordânia. Quando Gabriel era soldado apresentara-se muitas vezes para serviço no mesmo lugar que Yasser Arafat agora usava como quartel-general.

O escritório de Arafat situava-se num edifício quadrado de dois pisos anichado junto à parte norte do muro da Mukata. Extremamente danificado, era um dos poucos edifícios ainda de pé no recinto. Gabriel passou por uma segunda revista no hall, desta vez às mãos de um gigante de bigode em roupas à paisana com uma metralhadora compacta atravessada ao peito.

Terminada a revista, o segurança fez sinal ao coronel Kemel, que tocou em Gabriel para que subisse um estreito lance de escadas. No patamar, sentado numa cadeira de aparência frágil que balançava precariamente sobre duas pernas, estava outro segurança. Este lançou a Gabriel um olhar apático, depois estendeu o braço e bateu com os nós dos dedos na porta de madeira. Uma voz irritada do outro lado disse: "Entre." O coronel Kemel virou a maçaneta e conduziu Gabriel ao interior.

O escritório onde Gabriel entrou não era muito maior do que o seu no Boulevard King Saul. Havia uma modesta secretária de madeira e uma pequena cama de campanha, com uma apelativa cópia do Corão forrada a pele e pousada em cima da fronha branca engomada. Pesadas cortinas de veludo cobriam a janela; um candeeiro de secretária, colocado num ângulo virado para baixo em direção a um monte de papel, era a única fonte de luz. Ao longo de uma parede, quase perdidas nas sombras pesadas, pendiam filas e filas de fotografias emolduradas do líder palestino com muitas pessoas famosas, incluindo o presidente americano que lhe concedera de fato o reconhecimento do seu Estado miniatural e a quem Arafat recompensara apunhalando-o pelas costas em Camp David e afastando-se do acordo de paz.

Atrás da secretária, com uma aparência frágil e doentia, sentava-se o próprio Arafat. Usava um uniforme engomado e um kaffiyeh aos quadrados brancos e pretos. Como habitual, caía-lhe sobre o ombro direito e estava preso à frente do uniforme de maneira a assemelhar-se à terra de Palestina — a versão de Arafat da Palestina, reparou Gabriel, pois parecia-se muito com o Estado de Israel. Quando fez um gesto a Gabriel para se sentar, a mão tremeu-lhe violentamente, como sucedeu ao protuberante lábio inferior ao perguntar-lhe se desejava tomar chá. Gabriel conhecia os costumes árabes suficientemente bem para ter consciência de que uma recusa iria fazer com que as coisas começassem com o pé esquerdo, por isso aceitou prontamente o chá, e foi com um certo prazer que ficou a observar Arafat enviar o coronel Kemel para o ir buscar.

Sozinhos pela primeira vez, trocaram um olhar em silêncio por cima da pequena secretária. A sombra do seu último encontro pendia sobre eles. Tivera lugar no estúdio de um apartamento em Manhattan, onde Tariq al-Hourani, o mesmo homem que tinha plantado uma bomba debaixo do carro de Gabriel em Viena, tentara assassinar Arafat pela sua suposta "traição" do povo palestino. Antes de fugir do apartamento, Tariq atirara uma bala contra o peito de Gabriel, um ferimento que quase o tinha morto.

Agora sentado em frente de Arafat, o peito de Gabriel doía-lhe pela primeira vez em muitos anos. Nenhuma pessoa, com exceção porventura de Shamron, o influenciara mais no decurso da sua vida que Yasser Arafat. Tinham nadado juntos ao longo de 30 anos no mesmo rio de sangue. Gabriel matara os tenentes de maior confiança de Arafat; Arafat ordenara a "represália" contra Gabriel em Viena.

Mas seriam Leah e Dani os alvos ou a bomba era para ele mesmo? Gabriel viveu obcecado com a questão durante 13 anos. Arafat sabia certamente a resposta. Era um dos motivos por que Gabriel tinha aceite tão prontamente a sugestão dada por Shamron de visitar Ramallah.

— Shamron disse-me que desejavas discutir um assunto importante comigo — disse Arafat. — Concordo em ver-te apenas como uma cortesia para com ele. Temos a mesma idade, Shamron e eu. A História atirou-nos aos dois para esta terra, e infelizmente travamos muitas batalhas. Por vezes, venci-o eu, por vezes venceu-me ele. Agora estamos ambos a ficar velhos. Eu tinha esperança de que pudéssemos ver alguns dias de paz antes de morrermos. As minhas esperanças estão a desaparecer.

Se assim era, pensou Gabriel, então Por que te afastaste do acordo que te teria dado um Estado em Gaza e 97% da Cisjordânia com Jerusalém Este como capital? Claro que Gabriel conhecia a resposta. Era demonstrada no mapa de pano da "Palestina" que Arafat usava sobre o ombro. Ele quisera tudo. Gabriel não teve oportunidade de responder, porque o coronel Kemel regressou com uma pequena bandeja de prata com dois copos de chá. Depois o coronel sentou-se numa cadeira e olhou para Gabriel com o seu único olho são. Arafat explicou que o adido falava fluentemente hebraico e o iria auxiliar em qualquer tradução. Gabriel esperara encontrar-se sozinho com Arafat, mas era possível que viesse a ser útil um tradutor. O árabe de Gabriel, embora aceitável, não possuía as sutilezas nem a flexibilidade necessárias para uma conversa com um homem como Yasser Arafat.

Arafat colocou com mão tremente o copo de chá no pires e perguntou a Gabriel o que o tinha levado a Ramallah. A resposta monossilábica de Gabriel deixou Arafat momentaneamente abalado, como fora intenção de Gabriel.

— Khaled? — repetiu Arafat, recuperando terreno. — Conheço muitos homens chamados Khaled. Receio que seja um nome bastante vulgar entre os palestinos. Tem de ser mais específico.

A ignorância fingida, como Gabriel bem o sabia, era uma das táticas de negociação favoritas de Arafat. Gabriel insistiu.

O Khaled de que ando à procura, dirigente Arafat, é Khaled al-Khalifa.

— Presidente Arafat — disse o palestino. Gabriel assentiu com indiferença. — Onde está Khaled al-Khalida?

A pele manchada do rosto de Arafat corou subitamente, e o seu lábio inferior começou a tremer. Gabriel baixou o olhar e contemplou o seu chá. Pelo canto do olho, reparou que o coronel Kemel se remexia nervosamente no assento. Quando tornou a falar, Arafat conseguiu manter controlado o seu famoso temperamento.

— Deduzo que se esteja a referir ao filho do Sabri al-Khalifa?

— Na verdade, ele agora é seu filho.

— Meu filho adotado — disse Arafat — , porque você assassinou o pai dele.

— O pai dele foi morto no campo de batalha.

— Foi assassinado a sangue frio nas ruas de Paris.

— Foi Sabri quem transformou Paris num campo de batalha, presidente Arafat, e com sua bênção.

Caiu um silêncio entre eles. Arafat pareceu escolher cuidadosamente as suas palavras seguintes.

— Sempre soube que um dia você iria aparecer com uma provocação qualquer para selecionar Khaled para ser eliminado. Foi por isso que depois do funeral de Sabri enviei o rapaz para longe daqui. Dei-lhe uma nova vida, e ele aceitou-a. Não vejo Khaled nem tenho notícias dele desde jovem.

— Temos indícios que sugerem que Khaled al-Khalifa esteve envolvido num ataque à nossa embaixada em Roma.

— Disparate — disse Arafat com desdém.

— Já que o Khaled nada teve a ver com Roma, estou certo de que não se importará de nos dizer onde o podemos encontrar.

— Como já lhe disse, não sei onde está o Khaled.

— Como é que ele se chama? Um sorriso prudente.

Dei-me a um trabalho imenso para proteger o rapaz de si e do seu serviço vingativo. O que o leva a pensar que eu agora lhe dissesse o nome do rapaz? Acredita realmente que eu deva representar o papel de Judas Iscariote e entregar-lhe o meu filho para um julgamento e execução? — Arafat sacudiu lentamente a cabeça. — Temos muitos traidores entre nós, muitos dos quais trabalham aqui na Mukata, mas eu não sou um deles. Se quer encontrar o Khaled, terá de o fazer sem a minha ajuda.

— Houve um assalto a uma pensão em Milão pouco depois do atentado a bomba. Um dos homens que estava aí escondido chamava-se Daoud Hadawi, e era um palestino que tinha sido membro do seu Serviço de Segurança Presidencial.

— Se assim o diz.

— Gostaria de ter uma cópia do arquivo pessoal de Hadawi.

— Trabalham diversas centenas de homens num Serviço de Segurança Presidencial.

Se esse homem... — gaguejou. — Qual era o nome dele?

— Daoud Hadawi.

— Ah, sim, Hadawi. Se ele alguma vez trabalhou nesse serviço, e se ainda tivermos um arquivo pessoal dele, ficarei satisfeito por lho entregar. Mas acho que as possibilidades de encontrarmos alguma coisa são escassas.

— A sério?

— Deixe-me esclarecer bem as coisas — disse Arafat. — Nós, os palestinos, não tivemos nada a ver com o ataque a sua embaixada. Talvez tenha sido o Hezbollah ou Osama. Talvez tenham sido os neonazistas. Sabe Deus que vocês têm muitos inimigos.

Gabriel colocou as palmas nos braços da cadeira e preparou-se para se levantar. Arafat levantou a mão.

— Por favor, Jibril — disse ele, usando a versão árabe do nome de Gabriel. — Não se vá já embora. Fique mais um pouco.

Gabriel decidiu ceder dessa vez. Arafat brincou com o seu kaffiyeh, depois olhou para o coronel Kemel e instruiu-o, em voz baixa e em árabe, a deixá-los sozinhos.

— Não tocou no seu chá, Jibril. Posso oferecer-lhe outra coisa? Talvez alguns doces.

Gabriel sacudiu a cabeça. Arafat cruzou as suas pequenas mãos e olhou Gabriel em silêncio. Sorria ligeiramente. Gabriel tinha a nítida sensação de que Arafat se estava a divertir.

— Sei o que fizeste por mim em Nova Iorque há alguns anos. Se não fosses tu, bem que Tariq me poderia ter morto naquele apartamento. Numa outra altura poderias desejado que ele fosse bem sucedido.

Um sorriso pensativo. — Quem sabe? Numa outra altura poderias ter sido tu, Jibril, ali de pé com uma arma na mão.

Gabriel não respondeu. Matar Arafat? Nas semanas que se sucederam ao episódio de Viena, em que fora incapaz de imaginar outra coisa que não a carne carbonizada da mulher e o corpo mutilado do filho, pensara muito nisso. Na verdade, nos momentos em que se achava mais em baixo, Gabriel teria de bom grado trocado a própria vida pela de Arafat.

— É estranho, Jibril, mas por um breve instante fomos aliados, tu e eu. Ambos queríamos paz. Ambos precisávamos de paz.

— Alguma vez quiseste paz, ou fazia tudo parte da tua estratégia faseada para destruir Israel e tomar todo o lugar?

Desta vez foi Arafat que permitiu que a questão pairasse no ar sem resposta. — Devo-te a minha vida, Jibril, e por isso vou ajudar-te nesta matéria. Não há nenhum Khaled. Khaled é uma invenção da tua mente. Se continuares a persegui-lo, os verdadeiros assassinos hão de escapar.

Gabriel levantou-se abruptamente, terminando a reunião. Arafat saiu de trás da secretária e colocou as mãos nos ombros de Gabriel. A carne de Gabriel parecia estar em chamas, mas ele nada fez para cortar o abraço palestino. — Fico satisfeito por nos termos enfim encontrado formalmente

— disse Arafat. — Se eu e tu nos pudermos sentar juntos em paz, talvez exista esperança para todos nós.

— Talvez — disse Gabriel, embora o tom revelasse o seu pessimismo. Arafat libertou Gabriel e começou a avançar para a porta, depois parou subitamente.

— Surpreendes-me, Jibril.

— Por quê?

— Esperei que usasses esta oportunidade para clarificar as coisas relativamente a Viena.

— Assassinaste a minha mulher e o meu filho — disse Gabriel, mentindo deliberadamente a Arafat acerca do destino de Leah. — Não sei se alguma vez seremos capazes de "clarificar as coisas", como tu dizes.

Arafat sacudiu a cabeça.

— Não, Jibril, eu não os assassinei. Ordenei a Tariq que te matasse para vingar Abu Jihad, mas disse especificamente que não devia tocar em sua família.

— Por que fez isso?

— Porque você merecia. Comportou-se com uma certa honra naquela noite em Túnis. Sim, matou Abu Jihad, mas se certificou de que nenhum mal aconteceria à mulher e ao filho. De fato, parou a caminho da villa para confortar a filha de Abu Jihad e a instruir a tomar conta da mãe. Lembra disso, Jibril?

Gabriel fechou os olhos e anuiu. A cena em Túnis, como o ataque a bomba em Viena, estava suspensa numa galeria de memória por onde ele caminhava todas as noites nos seus sonhos.

— Senti que merecias o mesmo que Abu Jihad: morrer a morte de um soldado testemunhada pela mulher e pelo filho. Tariq não concordou comigo. Achava que merecias um castigo mais severo, o castigo de veres a tua mulher e filho morrerem, por isso ele plantou a bomba debaixo do carro deles e certificou-se de que estavas próximo para presenciares a detonação. Viena foi obra de Tariq, não minha. O telefone na secretária de Arafat tocou, despedaçando a memória de Viena de

Gabriel como uma faca despedaça uma tela. Arafat virou-se subitamente e deixou Gabriel para que este saísse sozinho. O coronel Kemel estava à sua espera no lancil. Escoltou Gabriel sem uma palavra através dos destroços da Mukata. A luz crua, depois do brilho do Escritório de Arafat, era quase insuportável. Para além do portão partido, Yonatan Shamron estava a jogar à bola com alguns dos guardas palestinos.

Voltaram a entrar para o jipe blindado e conduziram através de estradas de morte. Quando estavam longe de Ramallah, Yonatan perguntou a Gabriel se ele ficara a saber mais alguma coisa de útil.

— Khaled al-Khalifa bombardeou a nossa embaixada em Roma

— disse Gabriel com certeza.

— Mais alguma coisa?

Sim, pensou ele. Yasser Arafat tinha ordenado pessoalmente a Tariq al-Hourani que assassinassem a mulher e o filho.

CAPÍTULO 11

JERUSALÉM: 23 DE MARÇO

O telefone de cabeceira de Gabriel tocou às duas da manhã. Era Yaakov.

— Parece que a tua visita à Mukata remexeu a colmeia.

— Estás a falar de quê?

— Estou na rua.

A chamada caiu. Gabriel sentou-se na cama e vestiu-se no escuro.

— Quem era? — perguntou Chiara, com a voz pesada de sono. Gabriel disse-lhe.

— O que aconteceu?

— Não sei.

— Onde é que vais?

— Não sei.

Inclinou-se para a beijar na testa. O braço de Chiara levantou-se por entre os cobertores, enrolou-se à volta do pescoço dele e aproximou-o da sua boca. — Tem cuidado — sussurrou ela, com os lábios pressionados contra a face dele.

Um instante depois, ele estava preso ao assento do passageiro do Volkswagen Golf sem matrícula, atravessando a alta velocidade Jerusalém no sentido ocidental. Yaakov dirigia velocidade louca, verdadeiramente à Sabra, com o volante numa mão, café e cigarro na outra. Os faróis do tráfego lançavam uma luz desagradável nas feições marcadas pelas bexigas do seu rosto. — Chama-se Mahmoud Arwish — disse Yaakov. — Um dos nossos bens mais valiosos no seio da Autoridade palestina. Trabalha na Mukata. Muito próximo de Arafat.

— Quem fez a abordagem?

— Arwish enviou um sinal há umas duas horas e disse que queria falar.

— Acerca de quê? — Do Khaled, claro. — O que ele sabe?

— Não disse.

— Porque é que precisas de mim? Porque é que ele não está a falar com o seu contato?

— Eu sou o contato dele — disse Yaakov — , mas a pessoa com quem ele quer mesmo falar és tu.

Tinham chegado à extremidade ocidental da Cidade Nova. À direita de Gabriel, banhado na luz prateada de uma Lua que acabara de se erguer, encontravam-se as terras planas da Cisjordânia. As velhas mãos chamavam-lhe "país Shabak". Era uma terra onde as regras normais não se aplicavam — e onde as poucas convenções que existiam podiam ser contornadas ou quebradas sempre que se achasse necessário combater o terror árabe. Homens como Yaakov eram o punho protegido da segurança de Israel, peões que se tinham envolvido no trabalho sujo do contraterrorismo. Os Shabakniks tinham o poder de prender sem motivo e de fazer buscas sem mandado, de fechar negócios e dinamitar casas. Viviam à custa de nervos e nicotina, bebiam demasiado café e dormiam pouquíssimo. As mulheres tinham-nos deixado, os seus informantees árabes temiam-nos e odiavam-nos. Embora tivesse concedido a última sanção do Estado, Gabriel sempre se considerara afortunado por lhe ter sido pedido para se juntar ao Escritório, e não a Shabak.

Os métodos de Shabak entravam por vezes em conflito com os princípios de um Estado democrático, e como o Escritório, os escândalos públicos tinham prejudicado sua reputação, tanto no seu país quanto no estrangeiro. O pior era o infame caso Bus 300. Em abril de 1984, o ônibus nº 300, a caminho de Tel Aviv para Ashkelon, no sul, foi pirateado por quatro palestinos. Dois foram mortos na operação de resgate militar; os dois terroristas sobreviventes foram levados a um campo de trigo próximo e nunca mais vistos. Mais tarde revelou-se que tinham sido espancados até a morte por agentes do Shabak, sob as ordens do diretor-geral. Seguiu-se rápida sucessão de escândalos, cada um expondo os métodos mais impiedosos do Shabak: violência, confissões forçadas, chantagem e fraude. Os defensores do Shabak gostavam de dizer que interrogatório de suspeito de terrorismo não pode ser acompanhado de uma agradável xícara de café. Shabak não queria os terroristas depois do sangue derramado. Queria impedir os ataques atacar e, se possível, assustar os jovens árabes para que entrassem no caminho da violência.

Yaakov freou subitamente para não bater numa van que se movia devagar. Fez simultaneamente piscar as luzes e buzinou. A van respondeu mudando de pista. Enquanto Yaakov ultrapassava em disparada, Gabriel vislumbrou dois haredins que mantinham animada conversa como se nada tivesse acontecido.

Yaakov atirou um kippah para o colo de Gabriel. Era maior do que a maioria e de malha larga, com um padrão laranja e âmbar num fundo preto. Gabriel compreendeu o significado do desenho.

— Vamos atravessar a linha como colonos, para o caso de alguém da segurança PA ou Hamas estar a observar a barreira. — De onde é que somos?

— Kiryat Devorah — respondeu Yaakov. — Fica no vale do Jordão. Não vamos pôr aí um pé.

Gabriel levantou o kippah.

— Presumo que não sejamos terrivelmente populares junto da população local. — Digamos somente que os residentes de Kiryat Devorah levam muito a sério o seu compromisso à Terra de Israel.

Gabriel enfiou o kippah na cabeça e ajustou o ângulo. Yaakov ia informando enquanto ele dirigia: os procedimentos na Cisjordânia, a rota que deveriam tomar para a aldeia árabe onde Arwish estaria à espera, o método de extração. Quando Yaakov terminou, ele estendeu a mão para o assento traseiro e pegou uma metralhadora Uzi.

— Prefiro esta — disse Gabriel, levantando sua Beretta. Yaakov riu.

— Isto é a Cisjordânia, a Margem Ocidental, não a Oriental. Não seja tolo, Gabriel. Pegue a Uzi.

Gabriel pegou a arma com relutância e enfiou um cartucho na câmara. Yaakov cobriu a cabeça com um kippah idêntico ao dado a Gabriel. Alguns quilômetros depois do aeroporto Ben-Gurion saiu da via rápida e seguiu a estrada de duas vias no sentido oriental, em direção à Cisjordânia. O Muro de Separação, que se elevava diante deles, lançou uma sombra negra através da paisagem.

No posto de controle, havia um homem da Shabak entre os soldados IDF. Enquanto Yaakov se aproximava, o homem da Shabak murmurou algumas palavras aos soldados e deu permissão ao Volkswagen para que passasse sem inspeção. Depois de ter passado pelo posto de controle, Yaakov acelerou a alta velocidade ao longo da estrada banhada pelo luar. Gabriel olhou por cima do ombro e viu um par de faróis. As luzes flutuaram ali durante alguns instantes, depois desapareceram na noite. Yaakov pareceu não reparar nelas. Gabriel suspeitou de que o segundo carro pertencesse a uma equipe de contravigilância da Shabak.

Um letreiro avisava que Ramallah se situava quatro quilômetros mais à frente. Yaakov saiu da estrada, entrou num caminho de terra que corria através do leito de um antigo wadi. Desligou os faróis e navegou pelo wadi apenas com o brilho âmbar das luzes de estacionamento. Passado um momento, parou o carro. — Abre o porta-luvas.

Gabriel fez o que lhe disseram. Encontrou um par de kaffiyehs no seu interior.

— Deves estar a brincar.

— Cobre o rosto — disse Yaakov. — Todo, como eles fazem.

Com um movimento deliberado, Yaakov prendeu o kaffiyeh à volta da cabeça e atou-o à garganta, de modo que o seu rosto ficou escondido excepto por uma abertura estreita para os olhos. Gabriel fez o mesmo. Yaakov começou a conduzir de novo, lançando-se ao longo do wadi escurecido com ambas as mãos a agarrarem o volante, deixando Gabriel com a desconfortável sensação de estar sentado junto a um militante árabe numa corrida suicida. Pouco mais de um quilômetro à frente, chegaram a uma estrada estreita e pavimentada. Yaakov virou para a estrada e seguiu-a para norte.

A aldeia era pequena, mesmo pelos padrões da Cisjordânia, e envolta numa atmosfera de deserção súbita — um amontoado de casas baixas, cor de areia, aninhadas à volta do estreito pináculo de um minarete, quase sem uma luz acesa. No centro da aldeia ficava uma pequena praça de mercado. Não havia mais carros e nenhum peão, apenas um rebanho de cabras afocinhando entre os produtos caídos.

A casa onde Yaakov parou ficava na extremidade norte. A janela sobranceira à rua estava fechada. Um dos estores pendia obliquamente de uma dobradiça partida. A alguns metros da porta da frente havia um triciclo de criança. O triciclo apontava para a porta, o que significava que a reunião ainda estava a decorrer. Se estivesse apontado na direção oposta, eles teriam sido forçados a abortar e a dirigirem-se à localização alternativa.

Yaakov agarrou na metralhadora Uzi do chão e saiu do carro. Gabriel fez o mesmo, depois abriu a porta traseira do lado do passageiro, como Yaakov lhe indicara.

Virou-se de costas para a casa e observou a rua à procura de qualquer sinal de movimento. "Se alguém se aproximar do carro enquanto eu estiver no interior, disparem", tinha dito Yaakov. "Se eles não perceberem a mensagem, arrumem-nos." Yaakov saltou por cima do triciclo e deu um pontapé na porta com o pé direito. Gabriel ouviu o estalar da madeira a partir-se, mas manteve os olhos fixos na rua.

Do interior chegou o som de uma voz a gritar em árabe. Gabriel reconheceu-a, era Yaakov. A voz que ouviu a seguir era-lhe desconhecida.

Surgiu uma luz numa casa vizinha, depois outra. Gabriel soltou a patilha de segurança da Uzi e fez deslizar o indicador para o gatilho. Ouviu passos atrás de si e virou-se a tempo de ver Yaakov a conduzir Arwish através da porta partida, de mãos no ar, rosto encoberto por um capuz preto, com uma Uzi encostada à nuca.

Gabriel tornou a olhar para a estrada. Um homem, vestindo uma túnica cinza-clara, tinha saído da casa e estava a gritar com Gabriel em árabe. Gabriel ordenou-lhe na mesma língua que se mantivesse afastado, mas o palestino aproximou-se.

— Abate-o! — gritou Yaakov, mas Gabriel não disparou.

Yaakov jogou Arwish de cabeça na traseira do carro. Gabriel entrou apressadamente atrás dele e empurrou o informante para o chão. Yaakov contornou a correr a parte da frente do carro até a porta do condutor, parando durante o tempo suficiente para disparar uma salva a alguns metros dos pés do aldeão palestino, que fugiu a correr para o abrigo da sua casa.

Yaakov saltou para trás do volante e fez marcha-a-ré na estrada estreita. Chegado à praça do mercado, fez inversão de marcha e acelerou através da aldeia. Os disparos e o rugido do motor tinham alertado os aldeãos para sarilhos.

Surgiram rostos às janelas e portas, mas ninguém se atreveu a desafiá-los. Gabriel atentou no vidro traseiro até a aldeia ter desaparecido na obscuridade. Passado um momento, Yaakov tornava a acelerar ao longo do wadi sulcado, dessa vez na direção oposta. O colaborador continuava colado ao chão, enfiado no espaço estreito entre ao assento traseiro e o dianteiro.

— Deixa-me levantar, cretino!

Gabriel empurrou o antebraço contra a parte lateral do pescoço do árabe e submeteu-lhe o corpo a uma minuciosa revista, em busca de armas e explosivos. Nada tendo encontrado, puxou o árabe para o assento e arrancou-lhe o capuz negro. Foi malevolamente fitado por um único olho: o do coronel Kemel, o tradutor de Yasser Arafat.

A cidade de Hadera, um dos primeiros assentamentos agrícolas sionistas, agora transformado numa cidade israelense industrial e pesada, situa-se na planície costeira a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv. Na zona proletária da cidade, adjacente a uma fábrica de pneus em expansão, existe uma fileira de prédios cor do trigo. Um deles, o mais próximo da fábrica, cheira sempre a borracha queimada. No piso superior desse prédio fica um apartamento de segurança da Shabak. Trata-se, para a maioria dos agentes, de um local de reunião de último recurso. No caso de Yaakov, era na verdade o seu preferido. Estava convicto de que o odor acre conferia um ar de urgência aos procedimentos, pois poucos eram os homens que até ali se deslocavam que desejavam demorar-se. Mas Yaakov era movido por outros fantasmas. Seus bisavós, judeus russos de Kovno, tinham estado entre os fundadores de Hadera. Haviam transformado um inútil pântano de malária num terreno agrícola produtivo. Para Yaakov, Hadera era a verdade. Hadera era Israel.

O apartamento não tinha qualquer conforto. A sala de estar fora mobilada com cadeiras de dobrar metálicas, e o chão de linóleo era desnivelado e nu. Pousada na bancada da cozinha estava uma chaleira elétrica barata; no lava-loiças enferrujado, quatro xícaras sujas.

Mahmoud Arwis, também conhecido como coronel Kemel, recusara a xícara de chá que Yaakov lhe oferecera de má vontade. Pedira ainda a Yaakov que deixasse as luzes apagadas. O uniforme impecavelmente engomado que nessa manhã usara em Mukata fora substituído por um par de calças impermeáveis e uma camisa de algodão branco, que brilhava suavemente ao luar que atravessava a janela. Entre os dois dedos que lhe restavam da mão direita repousava um dos cigarros americanos de Yaakov. Com a outra mão, massajava a parte lateral do pescoço. Com o seu único olho fitava Gabriel, que se esquecera da cadeira dobrável e estava sentado no chão, encostado à parede e de pernas cruzadas. Yaakov era uma sombra disforme contra a janela.

— Vi que ficaste a saber umas coisas acerca do nosso amigo da Shabak — disse Arwish, esfregando o maxilar. — Têm fama de serem bons com os pulsos. — Disseste que me querias ver — disse Gabriel. — Não gosto que peçam para me ver.

— Que pensavas que estava a planejar fazer? Matar-te?

— Não seria a primeira vez — respondeu calmamente Gabriel.

Sabia que os agentes de Shabak estavam no auge da vulnerabilidade quando em reunião com agentes do outro lado. Vários deles tinham sido assassinados em anos recentes durante reuniões. Um deles fora morto a golpes de machado num apartamento de segurança de Jerusalém.

— Se te quiséssemos matar, tê-lo-íamos feito hoje de manhã em Ramallah. O nosso povo teria celebrado a tua morte. Tens as mãos manchadas com o sangue dos heróis palestinos.

— A celebração da morte é o seu forte atualmente — respondeu Gabriel. — Por vezes parece ser o único. Ofereçam ao seu povo outra coisa que não o suicídio. Liderem, em vez de seguir os elementos mais radicais de sua sociedade. Construam alguma coisa.

— Já tentamos construir alguma coisa — retorquiu Arwish — , e vocês destruíram com seus tanques e bulldozers.

Gabriel vislumbrou a sombra de Yaakov agitando-se junto à janela. O homem da Shabak queria que o tema mudasse para um terreno menos contencioso. A julgar pela maneira ameaçadora como Mahmoud Arwish acendeu o segundo cigarro, não estava disposto a ceder. Gabriel desviou o olhar do brilhante olho do árabe e passou distraidamente o indicador pelo pó do chão de linóleo. Deixá-lo disparatar, teria sido o conselho de Shamron. Deixa-o ver em ti o opressor e o vilão. Ajuda a aligeirar a culpa da traição.

— Sim, nós celebramos a morte — disse Arwish, fechando a tampa do antiquado isqueiro de Yaakov com um estalo. — E alguns de nós colaboram com o inimigo. Mas na guerra é sempre assim, não é? Infelizmente, nós, os palestinos, somos facilmente comprados. Shabak chamava-lhe os três "K"; kesef, kavod, kussit. "Dinheiro", "respeito", "mulheres". Imagine-se, trair o povo pelos amores de uma prostituta israelense. Gabriel continuou a fazer desenhos no pó em silêncio. Apercebeu-se que estava a desenhar os contornos de um Caravaggio: Abraão de faca na mão, a preparar-se para chacinar o próprio filho a pedido do Senhor.

Arwish continuou.

— Sabe por que eu colaboro, Jibril? Colaboro porque a minha mulher ficou doente. O médico da clínica de Ramallah diagnosticou câncer e disse que ela morreria a não ser que recebesse tratamento em Jerusalém. Pedi autorização às autoridades israelenses para entrar na cidade, o que me pôs em contato com a Shabak e o meu querido amigo. — Fez um gesto com a cabeça na direção de Yaakov, que estava agora sentado no parapeito da janela com os braços cruzados. — À minha frente diz chamar-se Salomão. Sei que o seu nome verdadeiro é Yaakov, mas refiro-me sempre a ele como Salomão. É um dos muitos jogos que jogamos. Arwish contemplou a ponta do cigarro.

— Desnecessário dizer que a minha mulher recebeu autorização para viajar até Jerusalém para receber tratamento, mas a um preço elevado, o preço da colaboração. De tempos a tempos o Salomão prende os meus filhos, apenas para manter a informação a fluir. Até prendeu um familiar meu que vive do lado israelense da Linha Verde. Mas quando o Salomão me quer mesmo apontar a faca, ameaça falar da traição à minha mulher. Sabe que ela nunca me perdoaria. Gabriel levantou o olhar do seu Caravaggio.

— Acabaste?

Sim, acho que sim.

— Então porque não me falas do Khaled?

— Khaled — repetiu Arwish, sacudindo a cabeça. — Khaled é o menor de seus problemas. — Interrompeu-se e olhou para o teto escurecido. — "Israel anda desnorteado. Estão agora entre as nações como um missionário indesejado, como um solitário burro selvagem." — O seu olhar incidiu uma vez mais em Gabriel. — Sabe quem escreveu estas palavras?

— Hosea — respondeu Gabriel com indiferença.

— Certo — disse Arwish. — É religioso?

— Não — respondeu honestamente Gabriel.

— Nem eu — confessou Arwish — , mas talvez devesses seguir o conselho de Hosea.

— Qual é a solução de Israel para seus problemas com os palestinos?

— Construir um muro. Para agir, segundo as palavras de Hosea, como redefinidor de fronteiras. Os judeus queixam-se amargamente dos séculos que passaram nos guetos, e no entanto o que é que fazem com o Muro de Separação? Estão a construir o primeiro gueto palestino. Ainda pior, estão a construir um gueto para vocês mesmos.

Arwish iniciou o gesto de levar o cigarro aos lábios, mas Yaakov afastou-se da janela e sacudiu-lhe a arruinada mão palestina com uma palmada. Arwish olhou-o com um sorriso superior de vítima, depois virou a cabeça e pediu chá a Yaakov. Yaakov regressou para junto da janela e permaneceu imóvel.

— Hoje não há chá — disse Arwish. — Só dinheiro. Para conseguir o meu dinheiro, devo assinar o livro-razão do Salomão e nele imprimir a minha impressão digital. Assim, se eu trair o Salomão, ele poderá castigar-me. Só há um destino para a colaboração na parte desta terra que nos pertence. A morte. E não se trata da morte de um cavalheiro. Refiro-me a uma morte bíblica. Serei apedrejado ou feito em bocados pelos fanáticos assassinos de Arafat. É assim que Yaakov assegura que só lhe conto a verdade, e em momentos oportunos.

Yaakov inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arwish, como um advogado que instruísse uma testemunha sob interrogatório hostil. — O Salomão fica irritado com os meus discursos. Bem gostaria que eu tratasse do assunto. — Arwish ficou a observar Gabriel por um instante. — Mas não tu, Jibril. Tu és o paciente.

Gabriel olhou para cima. — Onde está o Khaled?

— Não sei. Só sei que o Arafat te enganou hoje de manhã. Tens razão. O Khaled existe, e pegou na espada do pai e do avô. — Foi ele que esteve por trás do ataque em Roma?

Um momento de hesitação, um olhar lançado à figura escura de Yaakov, depois um aceno lento.

— Está a agir em nome de Arafat?

— Não o posso garantir. — O que podes garantir?

— Está em comunicação com a Mukata.

— Como?

— De diversas maneiras. Por vezes usa faxes. São enviados a partir de diversos aparelhos de fax, e quando chegam aos Territórios são quase impossíveis de ler.

— Que mais?

— Por vezes usa e-mails codificados, que são enviados através de diferentes endereços e servidores. Por vezes, envia mensagens a Arafat por correio ou através de delegações de visita. No entanto, na maior parte das vezes, limita-se a usar o telefone. — Consegues identificar a sua voz? — Não sei se já o ouvi falar. — Já alguma vez o viste?

— Acho que o encontrei uma vez, há muitos anos, em Túnis. Um jovem foi visitar Arafat e ficou durante alguns dias instalado no seu recinto. Tinha nome e passaporte franceses, mas falava árabe como um palestino.

— Porque achas que era Khaled?

— Pela maneira como Arafat estava a agir. Ele brilhava na presença desse jovem. Estava verdadeiramente nas nuvens.

— É tudo?

— Não, havia qualquer coisa na sua figura. Eles sempre disseram que Khaled se parecia com o avô. Não há dúvida de que o homem tinha uma presença espantosa com o Sheikh Asad.

Arwish levantou-se de repente. O braço de Yaakov ergueu-se e apontou a Uzi para a cabeça do árabe. Arwish sorriu e puxou a camisa para fora da calça. Tinha um envelope colado à parte inferior das costas.

Gabriel não dera por ele durante a rápida revista que levara a cabo na traseira do carro à procura de armas. Arwish retirou o envelope e atirou-o a Gabriel, que o abriu e sacudiu a fotografia para o colo. Tratava-se do retrato de um homem jovem, extremamente atraente, sentado a uma mesa junto a Arafat. Parecia não se aperceber de que lhe estavam a tirar uma fotografia. — Arafat tem o hábito de fotografar secretamente qualquer pessoa que com ele se encontre — disse Arwish. — Tens fotografias de Khaled em criança. Talvez seus computadores possam confirmar que este homem é mesmo ele.

— É pouco provável — disse Gabriel. — Que mais tens?

— Quando liga para a Mukata, não é a voz dele ao telefone.

— Como é que ele faz isso?

— Tem alguém que fala por ele. Uma mulher... uma mulher europeia. — Como é que ela se chama?

— Usa nomes e telefones diferentes.

— Onde? Arwish encolheu. — Qual é a sua língua nativa?

— É difícil dizer, mas fala um árabe perfeito.

— Sotaque?

— Clássico. Jordano de classe alta. Talvez Beirute ou Cairo. Refere-se ao

Khaled como Tony.

— Tony quê? — perguntou Gabriel calmamente. — Tony onde?

— Não sei — disse Arwish — , mas descobre a mulher, e talvez descubras o Khaled.

CAPÍTULO 12

TEL AVIV

 

 

— Diz chamar-se Madeleine, mas só quando finge que é francesa. Quando quer ser inglesa, chama-se Alexandra. Quando italiana, o seu nome é Lunetta, Pequena Lua.

Natan olhou para Gabriel e pestanejou várias vezes. Usava rabo-de-cavalo, os óculos ligeiramente tortos na ponta do nariz e a camiseta de surfista de Malibu esburacada. Yaakov prevenira Gabriel do aspecto de Natan. — É um gênio. Depois de formado na Cal-Tech, todas as empresas de alta tecnologia americanas e israelenses o queriam. É um pouco como tu — concluíra Yaakov, com o tom ligeiramente invejoso de um homem que só fazia uma coisa bem feita.

Gabriel olhou para o exterior do Escritório de vidro de Natan, para o piso de luzes brilhantes com fileiras de terminais de computador. Em cada terminal havia um técnico. A maior parte desses técnicos era chocantemente jovem e mirahim, judeus vindos de países árabes. Eram os guerreiros não cantados da guerra israelense contra o terrorismo. Nunca viam o inimigo, nunca o forçavam a trair o seu povo nem o confrontavam numa mesa de interrogatório. Para eles, o inimigo não passava de um crepitar elétrico num fio de cobre ou de um sussurro no ar. Natan Hofi estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de monitorizar toda a comunicação eletrônica entre o mundo exterior e os Territórios. Os computadores faziam a maior parte do trabalho, filtrando as intercepções em busca de certas palavras e expressões, ou das vozes de terroristas conhecidos, mas Natan continuava a considerar as suas orelhas como sendo a arma mais fiável no seu arsenal.

— Não sabemos o seu nome verdadeiro — disse ele. — De momento, ela é apenas a Impressão Vocal 572/B. Até agora interceptamos cinco chamadas telefônicas entre ela e Arafat. Queres ouvir?

Gabriel anuiu. Natan clicou num símbolo no monitor do computador, e as gravações começaram a fazer-se ouvir. Em todas as chamadas, a mulher fingia ser uma ativista da paz estrangeira que expressava apoio ao desordeiro líder palestino ou a sua comiseração pela mais recente atrocidade sionista. Todas as conversas continham uma breve referência a um amigo chamado Tony, como Mahmoud Arwish dissera.

Depois de ter ouvido quatro das conversas, Gabriel perguntou:

— O que podes dizer a seu respeito com base na voz?

— O árabe dela é excelente, mas não é árabe. Francesa, diria eu. Do Sul, talvez da região de Marselha. Excesso de formação. Demasiado sexual. Tem uma pequena borboleta tatuada no rabo.

Yaakov ergueu bruscamente os olhos.

— Estou a brincar — disse Natan. — Mas oiçam a gravação número cinco. Faz-se passar por Madeleine, uma francesa que dirige uma coisa chamada Centro para a Paz Justa e Duradoura na Palestina. O tópico da conversa é uma futura manifestação em Paris.

— Paris? — perguntou Gabriel. — Tens certeza de que é em Paris? Natan assentiu. — Diz ao Arafat que um dos organizadores, um homem chamado Tony, prevê o comparecimento de cem mil. Depois hesita e corrige-se. A previsão de Tony não é de cem mil, diz ela, é de 200 000.

Natan fez passar a gravação. Quando terminou, Yaakov disse:

— O que isso tem de tão interessante?

— Isto.

Natan abriu outro arquivo de som e ouviu-se alguns segundos de um som abafado e inaudível.

Havia outra pessoa com ela na sala nessa altura, que estava a monitorizar a conversa noutra extensão. Quando Madeleine diz que o Tony está à espera de cem mil pessoas, o sujeito cobre o bocal e diz-lhe em francês: "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Julga que ninguém o consegue ouvir, mas encosta o bocal às cordas vocais. É um erro típico de um caloiro. Temos as vibrações em cassete. Recorrendo a uma pequena dose de filtragem e raspagem, fiz com que aquele grunhido se ouvisse assim.

Natan tornou a passar a cassete. Desta vez era audível: um homem num francês perfeito. "Não, não, não são cem mil. Vão ser 200 000." Natan clicou no rato e apontou para o canto superior direito do monitor: um padrão em grelha atravessado por uma série de linhas onduladas.

— Isto é uma espectografia de som. A impressão vocal. É uma equação matemática, baseada na configuração física da boca e da garganta do orador. Comparamos esta impressão com todas as vozes que temos em registro.

— E?

— Nada encontramos de compatível. Chamamos-lhe Impressão Vocal 698/D.

— Quando é que aquela gravação foi feita?

— Há seis semanas.

— Sabes de onde foram feitas as chamadas? Natan sorriu.

Havia uma fila, mas também nenhuma operação do Escritório ficava completa sem uma. Lev queria manter Gabriel fechado na cave com rações punitivas de pão e água, e levantou a mão por instantes. O Gabriel estava acabado e já não servia para trabalho de campo, argumentou Lev. Além disso, as gravações telefônicas sugeriam que o Khaled estava escondido no mundo árabe, onde o Gabriel eurófilo nunca operara, excepto naquela breve passagem por Túnis. Como último recurso, Lev procurou refúgio nas papeladas burocráticas, argumentando que o comitê de Gabriel não possuía qualquer charter estrangeiro operacional. O assunto chegou a Shamron, como acabava por acontecer com todos os assuntos. Lev esquivou-se, mas demasiado tarde para se proteger do golpe fatal, pois o conselho de Shamron tinha a autoridade dos mandamentos de Deus gravados em pedra.

Tendo triunfado nas trincheiras burocráticas, Gabriel lidou depois apressadamente com os seus problemas de identidade e aparência. Decidiu viajar como alemão, pois o alemão era a língua materna e continuava a ser a linguagem dos seus sonhos. Escolheu o ramo da decoração de interiores e Munique como local de residência. As operações forneceram-lhe um passaporte em nome de Johannes Klemp e uma carteira repleta de cartões de crédito e outros artigos pessoais, incluindo cartões-de-visita com um número telefônico de Munique. O número, se marcado, tocaria no apartamento de segurança do Escritório, sendo depois automaticamente transferido para uma central telefônica no Boulevard King Saul, onde a voz gravada de Gabriel anunciaria que estava de férias e que retribuiria o telefonema quando regressasse.

Quanto à sua aparência, os especialistas nas Operações sugeriram uma barba, e Gabriel, que considerava qualquer homem com pêlo facial como sendo de pouca confiança e escondendo alguma coisa, concordou com relutância. Para eterna desilusão sua, cresceu muito grisalha, o que agradou aos especialistas, que lhe pintaram o cabelo para combinar. Acrescentaram um par de óculos quadrados sem aros e uma pasta repleta de elegantes roupas monocromas de Berlim e Milão. Os magos da Técnica forneceram-lhe diversos dispositivos eletrônicos para uso pessoal e de aparência inocente, mas que, na verdade, não eram assim tão inocentes.

Certa tarde quente, pouco antes da sua partida, vestiu um dos distintos ternos do Herr Klemp e andou pelas discotecas e clubes noturnos ao longo da Rua Sheinkin, em Tel Aviv. Herr Klemp era tudo aquilo que ele, e por extensão Mario Delvecchio, não era: um tagarela chato, mulherengo, um homem que gostava de bebidas caras e música tecno. Odiava o Herr Klemp, mas recebia-o ao mesmo tempo com agrado, pois Gabriel só se sentia verdadeiramente seguro quando usava a pele de outro homem.

Pensou na apressada preparação para a Operação Ira de Deus; em percorrer as ruas de Tel Aviv com Shamron, roubando carteiras e assaltando quartos de hotel ao longo do passeio. Fora apanhado apenas uma vez, quando uma judia romena agarrara Gabriel pelo pulso à moda de Shamron e gritara pela Polícia.

— Foste como um cordeiro para o matadouro — tinha dito Shamron. — E se tivesse sido um gendarme? Ou um carabineiro? Achas que poderia ter entrado lá a exigir a tua liberdade? Se eles te tentarem apanhar, luta. Se tiveres de fazer derramar sangue inocente, então derramo-o sem hesitações. Mas nunca te deixes prender. Nunca!

A tradição do Escritório exigia que o Gabriel passasse a última noite em Israel num "local de salto", que era a expressão usada internamente para designar um apartamento de segurança de partida. Sem exceção de locais desolados que fedem a cigarros e a fracasso, de modo que escolheu, em lugar disso, passar a noite com a Chiara na Rua Narkiss. Fizeram amor de forma tensa e desajeitada. Depois disso, Chiara confessou que Gabriel era como um estranho para si.

Gabriel nunca tinha sido capaz de dormir antes de uma operação, e a sua última noite em Jerusalém não foi exceção. Ficou pois satisfeito por ouvir, pouco antes da meia-noite, o resmungar distintivo do Peugeot blindado de Shamron a ser estacionado na rua — e por vislumbrar a cabeça calva de Shamron flutuando acima do passeio do jardim com Rami seguindo-o de perto. Passaram o resto da noite no estúdio de Gabriel com as janelas abertas para o frio ar noturno. Shamron falou acerca da Guerra de Independência, da sua busca por Sheikh Asad, e da manhã em que o matara no chalé situado nos arredores de Lídia. Com o aproximar da madrugada, Gabriel sentia relutância em deixá-lo, uma sensação de que talvez devesse ter seguido o conselho de Lev e deixado ir outra pessoa no seu lugar.

Shamron só falou daquilo que o esperava quando ficou dia lá fora. — Não passes por perto da embaixada — disse ele. — O Mukhabarat parte do princípio, com alguma justificação, de que todas as pessoas que lá trabalham são espiões. — Depois entregou um cartão-de-visita a Gabriel. — Ele é nosso, comprado e pago. Conhece toda a gente na cidade. Disse-lhe para ficar a aguardar a tua visita. Tem cuidado. Gosta da sua bebida.

Uma hora depois, Gabriel entrou num carro do Escritório disfarçado de táxi de Jerusalém e dirigiu-se pela Bab al-wad até o aeroporto Ben-Gurion. Passou pela alfândega como Herr Klemp, aguentou um entediante exame na segurança e depois dirigiu-se à sala de embarque. Quando o seu voo foi anunciado, atravessou o piso branco como osso em direção ao jet liner que o aguardava e foi sentar-se na segunda classe. Enquanto o avião levantava, olhou pela janela e viu a terra afundar, dominado por um medo perverso de não tornar a vê-la nem a Chiara. Pensou na viagem que tinha pela frente, uma odisseia de uma semana no Mediterrâneo que o levaria de Atenas a Istambul e, por fim, à cidade antiga na extremidade ocidental do Crescente Fértil, onde esperava encontrar uma mulher chamada Madeleine, ou Alexandra, ou Lunetta, a Pequena Lua, e seu amigo Tony.

CAPÍTULO 13

CAIRO: 13 DE MARÇO

 

 

O cavalheiro de Munique era um hóspede que o pessoal do Hotel Intercontinental não esqueceria tão depressa. O Sr. Katubi, o bem bebido chefe da recepção, já vira muitos como ele: um homem pequeno, sempre na iminência de se melindrar, um homem baixo com um duvidoso amuo estampado no rosto insignificante. Na verdade, o Sr.

Katubi aprendeu a desprezá-lo com tanta veemência que pestanejava visivelmente só de o ver. No terceiro dia, saudou-o com um sorriso tenso e com a pergunta:

— Que foi agora, Herr Klemp?

As queixas tinham começado passados minutos da sua chegada. Herr Klemp reservara um quarto para não fumadores, mas era evidente, afirmava ele, que alguém estivera ali a fumar recentemente — embora o Sr. Katubi, que se orgulhava de possuir um olfato apurado, não tenha sido capaz de detectar sequer um vestígio de tabaco no ar. O quarto ao lado ficava demasiado próximo da piscina, o seguinte demasiado perto do clube noturno. Por fim, o Sr. Katubi deu-lhe, sem qualquer custo adicional, uma suíte no andar superior com um terraço sobre o rio, que Herr Klemp declarara ser "irremediavelmente adequada".

A piscina era demasiado quente, a casa de banho demasiado fria. Torceu o nariz ao bufete do pequeno-almoço e rejeitou, fiel à sua rotina, o jantar. Os empregados estragaram as lapelas de um dos ternos, a massagem no spa deixou-o de pescoço dolorido. Exigiu que as criadas lhe limpassem a suíte todas as manhãs às oito em ponto, e ficava no quarto a supervisionar o seu trabalho: tinham-lhe roubado dinheiro no Hilton de Istambul, afirmava ele, e não ia permitir que isso tornasse a acontecer no Cairo. No instante em que as criadas saíam, o letreiro NÃO INCOMODAR aparecia na maçaneta da porta, onde permaneceria como uma bandeira de guerra durante o resto do dia. Tudo o que o Sr. Katubi desejava era poder pendurar um letreiro semelhante em seu posto no hall.

Todas as manhãs às dez, Herr Klemp deixava o hotel munido dos seus mapas e guias turísticos. Os condutores do hotel escolhiam à sorte quem teria o infortúnio de servir como seu guia durante o dia, pois cada saída parecia mais calamitosa do que a anterior. O Museu Egípcio, anunciou ele, precisava de uma limpeza em profundidade. Pôs de parte a Cidadela por ser um forte antigo e sujo. Nas Pirâmides de Gize foi mordido por um camelo rabugento. Aquando do seu regresso de uma visita ao Cairo copta, o Sr. Katubi perguntou-lhe se tinha gostado da Igreja de Santa Bárbara.

— É interessante — disse Herr Klemp — , mas não tão bonita como as nossas igrejas na Alemanha.

No seu quarto dia, o Sr. Katubi estava de pé na entrada do hotel quando Herr Klemp entrou pelas portas giratórias, num vento do deserto cheio de pó.

— Bom dia, Herr Klemp.

— Isso ainda está por se ver, Sr. Katumbi.

— Herr Klemp precisa de um carro para hoje? — Não, não preciso.

E dizendo isto, deslocou-se ao longo da cornija, com as costas do paletó do terno supostamente "estragado" açoitada pela brisa, como o para-lama de um caminhão. O Cairo era uma cidade de notável elasticidade, pensou o Sr. Katubi, mas nem ela se adaptava a Herr Klemp.

Gabriel viu qualquer coisa de Europa nos edifícios sombrios e decadentes ao longo da Rua Talaat Harb. Depois lembrou-se de ter lido nos guias de Herr Klemp que Khedive Ismail, o governante egípcio do século XIX, tinha pensado em transformar o Cairo na "Paris à beira do Nilo" e contratara um dos melhores arquitetos da Europa para alcançar o seu sonho. A sua obra ainda era evidente nas fachadas neogóticas, nas varandas de ferro forjado e nas janelas altas e retangulares fechadas, embora estivesse em ruínas por um século de poluição, tempo e negligência.

Chegou a um círculo de tráfego ribombante. Um menino de sandálias puxou-lhe pela manga do casaco e convidou-o para visitar a perfumaria da família. — Nein, nein — disse Gabriel no alemão de Herr Klemp, mas afastou-se da criança com o ar de indiferença de um israelense habituado a esquivar-se dos vendedores ambulantes dos becos da Cidade Velha.

Seguiu o círculo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e virou para a Rua Qasr el-Nil, a versão dos Campos Elísios no Cairo. Caminhou durante algum tempo, parando de vez em quando a olhar para as garridas montras das lojas com o intuito de ver se estava a ser seguido. Saiu da Qasr el-Nil e entrou numa rua lateral estreita.

Era impossível caminhar pelos passeios porque estavam atafulhados de carros estacionados, por isso avançou pela rua como um habitante do Cairo. Chegou à morada escrita no cartão-de-visita que Shamron lhe dera na noite anterior à sua partida. Era um edifício de estilo italiano com uma fachada da cor da lama do Nilo. De uma janela do terceiro andar chegava um fio musical do genérico do serviço noticioso da BBC, que passava de hora a hora. A alguns metros da entrada, um vendedor vendia pratos de papel de esparguete-à-bolonhesa de um carrinho de alumínio. Junto ao vendedor, uma mulher de véu vendia limões e pães de forma. Do outro lado da rua congestionada havia um quiosque. À sombra do pequeno telhado, de óculos escuros e com um corta-vento que dizia "Members Only", encontrava-se, mal escondido, um homem da vigilância da Mukhabarat, que observou a entrada de Gabriel. Estava fresco e escuro no hall. Um emaciado gato egípcio de olhos encovados e orelhas enormes silvou-lhe das trevas, desaparecendo em seguida por um orifício na parede. Sentado imóvel numa cadeira de madeira estava um porteiro núbio envergando uma túnica cor de limão e um turbante branco. Ergueu uma enorme mão de ébano para receber o cartão-de-visita do homem que Gabriel desejava ver.

— Terceiro andar — disse ele em inglês.

Duas portas acolheram Gabriel no patamar. Junto à porta da direita havia uma placa de latão onde se lia: DAVID QUINNELL — IMPRENSA INTERNACIONAL. Gabriel premiu a campainha e foi de imediato mandado entrar numa pequena antecâmara por um paquete sudanês, a quem Gabriel se dirigiu num inglês com um sotaque alemão calculado.

— Quem devo anunciar? — respondeu o sudanês.

— Chamo-me Johannes Klemp.

— O Sr. Quinnell está à sua espera?

— Sou amigo do Rudolf Heller. Ele irá perceber.

— Só um momento. Vou ver se o Sr. Quinnell o pode receber.

O sudanês desapareceu através de um conjunto de portas duplas altas. Um momento transformou-se em dois, depois em três. Gabriel dirigiu-se à janela e espreitou para a rua. Uma empregada de mesa do café na esquina oferecia um copo de chá num pequeno tabuleiro prateado ao homem da Mukhabarat. Gabriel ouviu o sudanês atrás dele e virou-se.

— O Sr. Quinnell vai recebê-lo agora.

A sala onde Gabriel foi admitido tinha o ar de um degradado salão romano. O soalho de madeira estava áspero por falta de verniz; a cornija era quase invisível sob a densa camada de pó e sujidade. Duas das quatro paredes tinham sido destinadas a estantes recheadas com uma impressionante coleção de obras que tratava da história do Oriente Médio e do Islão. A grande secretária de madeira estava enterrada sob pilhas de jornais amarelecidos e correio por abrir.

A sala encontrava-se na obscuridade, com exceção de um trapezoide de sol que atravessava, oblíquo, as portas envidraçadas semiabertas e incidia sobre uma chanca de camurça aberta atrás, que pertencia a um tal David Quinnell. Baixou metade do Al-Ahram daquela manhã, o jornal diário dirigido pelo Governo egípcio, e fitou Gabriel com um olhar lúgubre. Vestia uma camisa amarrotada de tecido branco e um casaco castanho-claro com dragonas. Uma comprida madeixa de cabelo loiro-acinzado caía-lhe sobre um par de olhos redondos, raiados de sangue. Coçou o queixo barbeado com desmazelo e baixou o som do rádio. Mesmo a uma distância de vários passos, Gabriel sentia no hálito o cheiro do whisky da noite anterior.

Qualquer amigo de Rudolf Heller é um amigo. — A expressão amarga de Quinnell não combinava com o seu tom jovial. Gabriel teve a impressão de que ele estava a falar para uma audiência de ouvintes da Mukhabarat. — Herr Helley disse-me que talvez me viesse visitar. Em que posso ajudá-lo?

Gabriel pousou uma fotografia na secretária desordenada — a fotografia que Mahmoud Arwish lhe dera em Hadera.

— Estou aqui de férias — disse Gabriel. — O Herr Heller sugeriu-me que viesse ver você. Disse que pode me mostrar alguma coisa do verdadeiro Cairo.

Explicou-me que sabe mais do Egipto que qualquer homem vivo.

— Que amável da parte do Herr Heller. Como é que ele tem passado?

— Como sempre — disse Gabriel.

Nada movendo além dos olhos, Quinnell baixou-os para a fotografia. — De momento, estou um pouco ocupado, mas acho que posso ajudar. — Pegou na fotografia e enfiou-a no jornal. — Vamos dar uma volta, sim? É melhor sairmos antes que eles liguem o aquecimento.

— O teu escritório está sob vigilância.

Caminhavam ao longo de um beco estreito e sombreado, bordejado por lojas e vendedores. Quinnell parou para admirar uma peça de tecido de algodão egípcio cor de sangue.

— Às vezes — disse ele com indiferença. — Todos os escritórios estão sob vigilância. Quando se tem um aparato de segurança tão grande como os Egípcios, ele tem de servir para alguma coisa.

— Sim, mas você não é um escritoriozinho qualquer.

— É verdade, mas eles não sabem. Para eles, não passo de um merda de um inglês velho e amargo tentando ganhar a vida à custa da palavra impressa. Conseguimos chegar a uma espécie de compromisso. Pedi que me arrumassem o apartamento quando acabassem com as buscas, e a verdade é que fizeram um bom trabalho.

Quinnell soltou o tecido e começou a avançar precariamente ao longo do beco. Antes de o seguir, Gabriel lançou um olhar por cima do ombro e viu o Members Only a examinar uma cafeteira árabe em cobre com uma expressão de indiferença. Quando o Gabriel o apanhou, Quinnell já estava de rosto corado devido ao calor do final da manhã. Outrora fora uma estrela, o errante correspondente de um importante diário londrino, o tipo de jornalista que se lança de para-quedas nos pontos quentes do globo e parte antes que a história se torne enfadonha e o público comece a perder interesse. Arruinado por força de bebida e mulheres em excesso, chegara a Israel em trabalho durante a primeira Intifada e dera à costa na ilha de Shamron. Durante um jantar particular em Tiberíades, Shamron sondara e encontrara fraquezas: uma montanha de dívidas, um secreto passado judeu ocultado por trás de um exterior inglês, trocista e ébrio. Quando o café foi servido no terraço, já Shamron fizera a sua jogada. Seria uma parceria, prometera Shamron, que considerava seu "parceiro" qualquer homem que conseguisse persuadir ou chantagear para que lhe fizesse os lanços. Quinnell usava a sua impressionante coleção de fontes árabes para fornecer informações e acessos a Shamron. Por vezes, imprimia artigos da propaganda negra de Shamron. Em contrapartida, a dívida igualmente impressionante de Quinnell seria silenciosamente removida. Receberia também alguns artigos noticiosos exclusivos destinados a polir a sua reputação desvanecida, e encontrar-se-ia um editor para o livro que sempre quisera escrever, embora Shamron nunca tivesse revelado como sabia que Quinnell tinha um manuscrito na gaveta. O casamento foi consumado, e Quinnell, como Mahmoud Arwish, lançou-se no caminho da traição, cuja punição era a morte profissional. Como penitência pública pelos seus pecados privados, Quinnell passara completamente para o lado árabe. Na Fleet Street foi referido como a "Voz da Palestina" — apologista dos homens-bomba e islamofascistas. "O Ocidente imperialista, ávido de petróleo, e o seu filho bastardo, Israel colheram o que semearam", explodia com frequência Quinnell.

"Não existirá segurança em Piccadilly enquanto não existir justiça na Palestina." Era o comentador ocidental preferido da Al-Jazeera e muito procurado no circuito de festas do Cairo. Yasser Arafat chamou-lhe certa vez "um homem corajoso que se atreve a escrever a verdade: o único homem no Ocidente que verdadeiramente compreende a realidade árabe".

— Há um lugar em Zamalek que devias tentar. Chama-se Mimi. Boa comida, boa música. — Quinnell deteve-se e acrescentou num tom provocador. — Uma malta interessante. — Quem é a Mimi?

Mimi Ferrere. Faz parte da mobília da cena social de Zamalek. Veio para aqui há cerca de 20 anos e nunca mais partiu. Toda a gente conhece a Mimi, e a Mimi conhece toda a gente.

— Quem a trouxe para o Cairo?

— A Convergência Harmônica.

Ao deparar-se com o olhar confuso de Gabriel, Quinnell explicou:

— Um sujeito chamado José Arguelles escreveu há algum tempo um livro chamado The Mayan Fator, onde afirmava ter encontrado indícios na Bíblia e nos calendários maias e astecas que indicam que Agosto de 1987 seria uma conjuntura crítica na história da humanidade. O mundo podia continuar de duas maneiras. Podia entrar numa nova era ou ser destruído. Para evitar a destruição, teriam de se reunir 144 000 pessoas nos chamados centros de poder à volta do globo a ressoar energia positiva. A Mimi chegou às pirâmides, juntamente com milhares de outras almas perdidas. Na altura, era uma beldade. Ainda é, se queres a minha opinião. Casou com um egípcio rico e assentou em Zamalek. O casamento durou cerca de uma semana e meia. Quando ruiu, a Mimi precisava de dinheiro, por isso abriu o café.

— De onde é que ela é? Quinnell encolheu os ombros.

— A Mimi é de todo o lado. A Mimi é uma cidadã do mundo.

— Como é que é a malta?

— Sobretudo expatriados. Alguns turistas espertos. Árabes com dinheiro que continuam a gostar do Ocidente. Há um tipo que vejo lá de tempos em tempos. Chama-se Tony.

— Tony? Tem certeza?

— É assim que ele diz que se chama. Um atraente demônio. Quinell entregou o jornal a Gabriel. — Não vás muito cedo. O lugar só começa a animar a partir da meia-noite. E tem cuidado com a Mimi. Ela pode ser uma louca da New Age, mas ninguém lhe faz o ninho atrás da orelha.

O Sr. Katubi marcou uma mesa para Herr Johannes Klemp no Mimi's Wine and Jazz Bar para as dez da noite. Às nove, Gabriel desceu do quarto e, evitando a praça de táxis, atravessou a ponte Tahrir lem direção à ilha Gezira. Chegado à ilha, virou à direita e seguiu para o norte pela estrada costeira ao rio, ao longo da franja de um antigo clube desportivo onde os colonizadores ingleses haviam jogado críquete e bebido gin, enquanto todo o império ruía em seu redor.

Surgiu à sua esquerda uma fila de elevados prédios de luxo, a primeira prova de que entrara na morada mais procurada do Cairo. Viviam ali estrangeiros, como egípcios ricos que tiravam as suas deixas, não do Islão, mas dos criadores de modas nova-iorquinos e londrinos. Zamalek era relativamente limpo, e o ruído incessante do Cairo não passava de um resmungo descontínuo vindo da outra margem do rio. Podia bebericar-se cappucinos nos cafés e falar francês em lojas exclusivas. Era um oásis, um lugar onde os pobres podiam fingir que não estavam rodeados por um mar de pobreza inimaginável.

O Mimi's ocupava o térreo de uma antiga casa junto à Rua 26 de Julho. O letreiro de néon estava em inglês, como o menu inteiramente vegetariano, exibido sob vidro e emoldurado em madeira pintada à mão. Perto do menu pendia um cartaz grande com imagem do espetáculo da noite: cinco homens jovens com lenços de seda e muitas joias. Era o tipo de lugar onde normalmente Gabriel só entraria com uma pistola apontada. Herr Klemp endireitou os ombros e entrou.

Foi acolhido por uma mulher de pele escura, que usava uma calça larga de cetim laranja e um lenço de cabeça combinando. Falou-lhe em inglês, e ele respondeu do mesmo modo. Ao ouvir o nome "Johannes Klemp", esboçou um sorriso prudente, como se o Sr. Katubi a tivesse avisado para esperar o pior, e levou-o a uma mesa junto da orquestra. Tratava-se de uma peça baixa, arabesca, rodeada por cadeirões de cores vivas e estofados em excesso. Gabriel teve a nítida sensação de que não passaria a noite sozinho. Seus receios se concretizaram minutos depois, quando se sentaram três árabes que pediram champanhe e ignoraram o alemão de ar moroso com quem partilhavam a mesa.

Era uma sala agradável, comprida e oval, com paredes de estuque ásperas e caiadas e faixas de seda que pendiam do teto alto. O ar cheirava a especiarias orientais, a incenso de sândalo e a um toque de haxixe. Ao longo da extremidade da sala, e quase invisíveis à luz débil, havia diversos nichos abobadados, onde os clientes podiam comer e beber em relativa privacidade. Gabriel ia picando de um prato de aperitivos árabes e procurava em vão alguém que se assemelhasse ao homem na fotografia.

Fiel à palavra de Quinnell, a música só começou às onze. O primeiro ato era de um peruano que usava um sarongue e tocava peças New Age numa guitarra de fios de nylon. Entre números, contava fábulas dos Andes superiores num inglês quase impenetrável. À meia-noite, chegaram os músicos anunciados para essa noite, um grupo de marroquinos que tocava em tons e ritmos que nenhum ouvido ocidental podia compreender. Os três árabes não prestaram atenção à música e passaram a noite numa conversa lubrificada pela bebida. Herr Klemp sorriu e aplaudiu, num gesto de apreciação dos admiráveis solos, mas Gabriel nada ouviu, pois toda a sua atenção estava focada na mulher que concentrava as atenções na outra extremidade do bar.

"Na época, era uma beldade", disse Quinnell. "Ainda é, se quer minha opinião."

Usava calças brancas à corsário e uma blusa de cetim azul-pálido atada à cintura estreita. Vista de trás, poderia ser tomada por uma moça na casa dos 20. Só quando se virava, revelando rugas à volta dos olhos e a madeixa grisalha no cabelo escuro, é que se percebia que era uma mulher de meia-idade. Usava pulseiras nos pulsos e um enorme pendente de prata à volta do pescoço comprido. A sua pele era de uma tonalidade azeitona e tinha os olhos quase negros. Saudou toda a gente do mesmo modo, com um beijo em cada face e uma confiança sussurrada. Gabriel já vira muitas versões dela, da mulher que se desloca de villa em villa e de festa em festa, que tem um bronzeado e uma linha permanentes e nem pensa em casar e ter filhos. Gabriel perguntou-se que raio estaria ela a fazer no Cairo.

O quinteto marroquino fez um intervalo e anunciou regressar em dez minutos. As luzes da casa intensificaram-se ligeiramente, como o som das conversas. A mulher afastou-se do bar e começou a trabalhar na sala, movendo-se sem esforço de mesa para mesa, de nicho para nicho, como uma borboleta flutuando de uma flor para a seguinte. Aos velhos conhecidos saudava com beijos e um sussurro. Os novos amigos eram tratados com um demorado aperto de mão. Falava-lhes em árabe e em inglês, em italiano e em francês, em espanhol e num respeitável alemão. Aceitava os elogios como uma mulher habituada a recebê-los e não deixava qualquer turbulência na sua esteira. Para os homens, era objeto de um desejo cauteloso; para as mulheres, de admiração. Chegou à mesa do Herr Klemp no instante em que a banda regressava ao palco para uma segunda atuação. Ele levantou-se e, inclinando-se ligeiramente pela cintura, aceitou-lhe a mão estendida. O aperto era firme, a pele fria e seca. Ela soltou a mão, afastou do rosto uma madeixa de cabelo rebelde e mirou-o com os olhos castanhos. Se ele a não tivesse visto lançar esse mesmo olhar a todos os homens na sala, poderia ter julgado que ela estava a namoriscar com ele.

— Fico satisfeita com que tenha se reunido a nós esta noite. — Falou em inglês e no tom confiante de uma anfitriã que tinha dado um pequeno jantar. — Espero que esteja a gostar da música. Não são maravilhosos? Aliás, chamo-me Mimi. Ditas essas palavras, desapareceu. Gabriel desviou o olhar para o palco, mas a sua mente regressara ao covil subterrâneo de Natan Hofi, e ouvia as gravações da mulher misteriosa que tinha um amigo chamado Tony.

"Aliás, meu nome é Mimi."

Não, não é, pensou Gabriel. Seu nome é Madeleine. E Alexandra. E Lunetta. É a Pequena Lua.

Na manhã seguinte, o Sr. Katubi estava no seu posto no hall quando o telefone ronronou. Olhou para o identificador de chamada e expirou pesadamente. Depois levantou devagar o receptor, qual sapador a neutralizar uma bomba, e levou-o ao ouvido.

— Bom dia, Herr Klemp. — É, de fato, Sr. Katubi.

— Precisa de ajuda com a sua bagagem?

— Não preciso de qualquer ajuda, Katubi. Alteração de planos Decidi prolongar a minha estada. Estou encantado com este lugar.

— Que ventura para nós — disse o Sr. Katubi, num tom gelado.

— Durante quantas noites adicionais irá requerer o nosso quarto? — Ainda é algo a decidir, Katubi. Mantenha-se atento a posteriores atualizações.

— Atento ficarei, Herr Klemp.

 

 

 

CONTINUA