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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUALQUER OUTRO LUGAR / A. G. Howard
QUALQUER OUTRO LUGAR / A. G. Howard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A Trupe Mística da Memória
Que pobre memória é essa que só trabalha para trás.
— Lewis Carroll, Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá

Eu achava que lembranças eram algo que seria melhor deixar para trás... bolsões de tempo congelados que você poderia rever por seu valor sentimental, mas mais uma indulgência do que uma necessidade. Isso foi antes de eu perceber que as lembranças poderiam ser a chave para seguir adiante, para recuperar a fé e o futuro de todos que você mais ama e aprecia no mundo.
Estou diante da porta vermelha e brilhante de uma câmara particular no trem da memória. Na plaqueta removível dentro do suporte está gravado o nome Thomas Gardner.
— Uma formalidade desnecessária, visto que ele está aqui em carne e osso — disse o condutor, um besouro revestido de tapete quase do meu tamanho, quando pedi a plaqueta. Lancei-lhe um olhar raivoso e insisti que ele fizesse o que eu queria.
Agora, ao pressionar a testa com força contra a moldura de latão, permitindo que o metal esfrie minha pele, penso no nome de papai e em como ele significa mais do que eu jamais imaginei... como ele próprio é mais do que eu poderia ter sonhado.
Quase o segui para dentro da sala quando chegamos. Ele estava tremendo tanto, mesmo antes de aterrissarmos em Londres.

Por que não estaria? Encolhido até ficar do tamanho de um inseto e cruzando o oceano montado em uma borboleta-monarca. Ainda posso sentir o gostinho de sal no ar. De madrugada, quando papai começou a aceitar que estávamos realmente voando em borboletas, escorregamos por um buraco na base de uma enorme ponte de ferro e aterrissamos ao lado de um trem de brinquedo enferrujado dentro de um túnel subterrâneo. O fato de estarmos pequenos o bastante para entrar no trem fez papai arregalar tanto os olhos que achei que iam saltar das órbitas.
Eu quero protegê-lo, mas ele não é fraco. Não vou tratá-lo como se fosse. Não mais.

Ele tinha nove anos — somente dois anos mais do que Alice tinha — quando entrou sem querer no País das Maravilhas e caiu na armadilha de uma aranha zeladora de túmulos, mas, de alguma maneira, sobreviveu. É melhor que ele encare suas memórias sozinho. De outro modo, poderia tentar me proteger. E eu não preciso de proteção mais do que ele.

 

 

 


 

 

 


Precisei enlouquecer para ver melhor as coisas. Se meu pai também precisar passar por isso, que assim seja.

Meus dedos tremem enquanto contornam as letras: T-h-o-m-a-s. Papai conhecerá seu verdadeiro nome hoje, não o nome que mamãe lhe deu. Todas as revelações, toda a monstruosidade que ele viveu quando criança, essas experiências nos levarão para Qualquer Outro Lugar — o mundo do espelho onde os exilados do País das Maravilhas ficam presos. Ele é coberto por uma cúpula de ferro, mantendo-os prisioneiros e, de alguma forma, distorcendo sua magia, caso eles a usem lá dentro. Cavaleiros da Vermelha e da Branca montam guarda nos dois portões de Qualquer Outro Lugar.

Meus dois cavaleiros, Jeb e Morfeu, estão aprisionados lá. Já se passou um mês desde que eles foram sugados por aquele lugar. Quero acreditar que ainda estejam vivos.

Tenho de acreditar.

E ainda tem a mamãe, isolada em um País das Maravilhas em desintegração, refém da mesma malévola criatura aracnídea que um dia manteve papai cativo em sua teia. A toca do coelho, o portal para o reino interior, foi destruída por mim. E agora Qualquer Outro Lugar é a única porta de entrada.

Estamos em uma missão de resgate, e a memória de papai é a chave de tudo.

Arrasto os pés enlameados pelo piso de azulejos vermelhos e pretos, dirigindo-me para a frente do vagão de passageiros. Meus músculos doem de pilotar uma monarca por vinte e quatro horas. Teria levado muito mais tempo se não tivéssemos sido carregados por uma tempestade e levantados milhares de metros no ar, cobrindo centenas de quilômetros em questão de minutos — uma viagem maluca que papai e eu não vamos esquecer tão cedo.

Meu cabelo cai sobre os ombros em um emaranhado loiro platinado lavado pela chuva. Os nós combinam bem, pois é assim que me sinto por dentro: caótica, mas exaurida. A metade intraterrena de meu coração se expande para se libertar das emoções humanas nele enredadas. Não haverá trégua até eu encontrar meus amados e consertar as coisas no País das Maravilhas.

Ainda assim, sei que nenhum de nós voltará a ser o mesmo.

Meia dúzia de criaturas esquisitas ocupa os bancos de vinil branco. Elas não estão aguardando para recuperar suas memórias. Estão aqui porque também ficaram isoladas. Desde que a toca do coelho foi destruída, elas não têm como voltar para o País das Maravilhas, seu lar.

Uma das criaturas é humanoide e pálida, com cabeça em forma de cone cujo crânio se abre esporadicamente para que ela possa discutir com uma versão menor de si mesma. Depois, a versão pequena do crânio se abre e revela uma imagem ainda mais pequenina. A menor é um macho de nariz grande. Ele bate em suas sósias fêmeas com um diminuto rolo de macarrão e em seguida volta a se esconder. É como assistir a uma versão pesada de Punch e Judy, uma peça de fantoches que estudei na aula de teatro da escola.

Dois outros passageiros são duendes, e eu me pergunto se fizeram parte do grupo que encontrei ano passado no cemitério do País das Maravilhas. Ficam diferentes sem os capacetes de mineiro: cabeças calvas e escamosas com tufos de cabelos grisalhos. Uma sacola plástica farfalha entre eles, enquanto se revezam para atirar amendoins na criatura com cabeça de cone, provocando mais discussão.

A cauda longa dos duendes se debate e sua cara de macaco-aranha se retorce em expressões diligentes quando meu olhar encontra o deles. Eles não têm pupilas nem íris, e as pálpebras piscam na vertical, como cortinas de teatro.

Sussurram algo um ao outro enquanto eu cubro o nariz com a mão para conter o fedor de carne podre que exsuda em forma de lodo prateado de sua pele.

— Alice, pelinpeguaperupeda cinpetilante — um deles diz em voz profunda quando eu chego mais perto. — Peno peperpedipeda opsta pevez?

O dialeto é uma mistura estranha da língua do P com outras tolices. Ele quer saber se estou perdida desta vez.

— Não pé Alice, pestúpipedo — o outro interrompe antes que eu possa responder. — E aqui só petem pepensadores e omentsmaus.

Eu continuo andando pelo corredor, absorvida demais em meus problemas para me envolver.

O besouro condutor rabisca alguma coisa em uma prancheta enquanto conversa com os últimos três passageiros. Estes são redondos e fofos, com os olhos presos a hastes altas e felpudas que mais parecem orelhas de coelho do que globos oculares. Eles observam quando eu passo, as pupilas dilatando-se a cada rotação de suas orelhas.

O mais gordo espirra em resposta a uma pergunta do condutor, e uma nuvem de poeira levanta-se de sua pele.

— Malditos coelhos de poeira — o besouro resmunga, e puxa um aspirador de pó de um coldre na cintura, usando-o para sugar a poeira da própria pele de tapete.

Eu me acomodo em uma fileira na frente e me debruço sobre uma janela, esperando o condutor. Ele ficou de verificar uma coisa — as memórias perdidas que preciso ver. Elas não são minhas. Vou espionar os momentos que faltam na vida de outra pessoa.

Mamãe sentiu-se culpada por visitar as memórias perdidas de papai sem ele saber. O bom senso dela me faz ter cautela. No entanto, a pessoa cuja mente violarei não merece meu respeito. Ela é cruel e vingativa. Quase roubou meu corpo e conseguiu destruir minha vida e a maior parte das paisagens do País das Maravilhas.

Morfeu sempre diz que todos têm uma fraqueza. Se ele estivesse aqui, me diria para descobrir a dela, para que, quando encontrá-la novamente, eu possa esmagá-la.

E pretendo fazer justamente isso.

O aspirador do besouro zune, abafando a discussão, os espirros e a gritaria à minha volta. Recosto-me e olho para os lustres feitos de vaga-lumes — cada um tem metade do tamanho do meu braço — amarrados juntos por tiras e correntes de latão. Os insetos luminosos voam para cima e para baixo, pincelando com luz amarela as paredes de veludo vermelho. Inclino a cabeça e olho pela janela. Mais peças feitas de vaga-lumes iluminam a escuridão, rolando pelo teto do túnel como refulgentes rodas-gigantes.

Resisto a um bocejo. Estou exausta, mas ligada demais para fechar os olhos. Parece que não consigo permanecer em nenhum tempo e espaço. Ainda ontem eu estava sentada a uma mesa no ensolarado pátio do sanatório, tentando enganar meu pai e fazê-lo comer um cogumelo que o encolheria. Parece que isso aconteceu há uma eternidade, mas faz mais tempo ainda que abracei mamãe pela última vez... discuti com Morfeu... e beijei Jeb. Sinto saudade do cheiro de mamãe depois que ela trabalha no jardim — de terra mexida e flores. Sinto saudade do modo como as joias nos olhos de Morfeu volteiam por um arco-íris de emoções quando ele me desafia, e da expressão concentrada de Jeb quando ele pintava.

As mínimas coisas, que sempre tomei como naturais, tornaram-se preciosos tesouros.

Meu estômago ronca. Papai e eu não tomamos café da manhã, e meu corpo já me diz que é hora de almoçar. Enfio a mão no avental amarrado sobre a camisola de hospital dura de lama e rolo os cogumelos que sobraram entre os dedos. Estou com fome o bastante para pensar em comê-los, mas não farei isso. A magia dentro deles, que nos tornou pequenos o suficiente para voar em borboletas, nos tornará grandes novamente depois que terminarmos aqui. Preciso conservá-los.

Meu perfil é refletido no vidro da janela: camisola azul, avental branco, cabelo loiro embaraçado com uma mecha carmim de um lado.

O primeiro duende tinha razão. Eu sou o epítome de Alice.

Uma Alice de pesadelo.

Uma Alice que enlouqueceu, que tem sede de sangue.

Quando eu encontrar a Rainha Vermelha, ela vai implorar para que eu só corte sua cabeça.

Rio dessa ironia e fico quieta quando o besouro desliga o aspirador. Ele ajeita o chapéu de condutor e vem claudicando sobre duas de suas seis pernas finas. Os outros dois pares servem de braços e aninham uma prancheta.

— E então? — pergunto, olhando para ele.

— Encontrei três memórias. De muito tempo atrás, quando ela era jovem e solteira. Antes de ser — ele olha em volta e abaixa a voz, sussurrando — rainha.

— Perfeito — respondo. Começo a me levantar, mas volto a sentar no banco quando ele empurra meu ombro com seu braço espinhento.

— Primeiro você destrói a única passagem de volta para o País das Maravilhas, me transformando em babá de coelhos empoeirados e duendes fedidos. Agora quer que eu arrisque minha vida lhe mostrando... — ele estuda os passageiros atrás de mim com as mandíbulas cruzadas tremendo — as memórias particulares dela. — Seu sussurro é acompanhado de uma série de cliques, como o estalar de dedos.

Eu ranjo os dentes.

— Desde quando os intraterrenos respeitam a privacidade de alguém? Isso não faz parte de seu código de ética. Na verdade, a maioria de vocês nem sabe o que é ética.

— Eu sei tudo o que preciso saber. E sei que aquela lá não perdoa. — Ele evita falar o nome dela, mantendo-a anônima.

Sigo seu exemplo.

— Ela nunca vai saber que você me mostrou.

O condutor vira páginas na prancheta e rabisca alguma coisa com sua caneta, enrolando.

— Há outro motivo para preocupação — ele diz, mais alto desta vez. — As memórias são repudiadas.

— O que quer dizer isso?

— Ela não foi forçada a esquecer. Ela escolheu esquecer. Tomou uma poção de esquecimento.

— Melhor ainda — eu falo. — Ela tem medo delas por alguma razão. É aí que eu levo vantagem.

Os estalidos crescem conforme suas mandíbulas tremem mais.

— Idealmente, você poderia usá-las como armas. Memórias repudiadas são maculadas, marcadas por magia emocional volátil. Elas querem vingança contra quem as criou e as repudiou. Mas você teria que levá-las até ela, mantendo-as adormecidas em sua cabeça. Sendo mestiça, você não tem força suficiente.

Eu me irrito com a condescendência.

— Os mortais têm sua própria maneira de manter as memórias adormecidas. Eles anotam, para que o passado não preocupe seus pensamentos. Eu só preciso de um diário.

Ele segura a caneta bem perto de meu nariz.

— Isso não vai funcionar com memórias encantadas, a menos que seu caderno esteja cheio de papel encantado para retê-las. Infelizmente, nunca ouvi falar de um diário assim. E você?

Eu o encaro em silêncio.

— Eu achava que não, mesmo. — O besouro bate em meu nariz com a ponta da caneta.

Rindo com desdém, arrebato a caneta e a meto no bolso, desafiando-o a pegá-la de volta.

— Bobinha. Quando as memórias repudiadas se aninham em uma mente, são como aquelas músicas que ouvimos uma vez e não saem da cabeça, voltando sem parar a um grau que chega a ser doloroso. Na melhor das hipóteses, elas fazem com que você simpatize com sua presa e não tenha forças para enfrentá-la. Na pior das hipóteses, você é levada à loucura. Está disposta a arriscar tamanha perda?

Deslizo as mãos sobre meus joelhos dobrados e em seguida enfio o excesso de tecido da camisola hospitalar sob os quadris. Não importa como seja terrível imaginar as memórias hostis de alguém devorando minha mente. Descobrir as fraquezas da Vermelha é a única maneira de derrotá-la.

— Eu já perdi tudo e já enlouqueci. — Encaro seus olhos bulbosos. — Quer uma demonstração?

Múltiplas pálpebras movem-se em seus olhos compostos. Insetos não têm pálpebras nem cílios, mas este não é um inseto normal. É um inseto do espelho, ou rejeitado, dependendo da terminologia que você escolher: a de Carroll ou a do besouro-tapete.

O besouro foi engolido pela madeira tulgey e foi parar no portão de Qualquer Outro Lugar. Então ele foi cuspido de volta para cá como mutante. Exatamente o que quase aconteceu com Jeb e Morfeu. Por sorte, eles foram aceitos no mundo do espelho, embora pensar neles sozinhos lá me eleve a um novo nível de horror. Morfeu não será capaz de usar sua magia por causa da cúpula de ferro, e Jeb é somente humano. Como eles poderão ter alguma chance em uma terra de assassinos intraterrenos exilados?

Um grito mudo de frustração queima meus pulmões.

Abaixo a voz para que somente o condutor possa ouvir.

— Eu costumava colecionar insetos. Eu os prendia com alfinetes em quadros de cortiça. Eles cobriam todas as paredes do quarto. Eu estava pensando em voltar a fazer isso. Talvez você queira ser minha primeira peça.

O condutor faz uma careta ou franze o cenho — é difícil dizer com todos aqueles traços se movimentando. Ele faz um gesto indicando o corredor.

— Por favor, madame.

Dirigimo-nos para as câmaras particulares. Duas portas adiante da sala de papai, o besouro para, olha para trás para se certificar de que não fomos seguidos e insere uma plaqueta com um nome no suporte: Rainha Vermelha.

Os botões de minhas asas coçam, querendo libertar-se. Uma torrente de magia e ódio ferve logo abaixo da minha pele. Pronta, aguardando.

O condutor começa a destrancar a porta, mas se detém.

— Certa vez compareci a uma festa no jardim do palácio dela. — Ele volta a sussurrar. — Eu a vi tirar a pele do amigo do Camundongo... aquela lebre.

Eu me contraio, lembrando-me da primeira vez que vi a lebre durante o chá da tarde, um ano atrás, e de como ela parecia estar do avesso.

— O Lebre Careca? Foi a Vermelha que o escalpelou?

O besouro balança a cabeça freneticamente, confirmando, e seu boné quase cai.

— Ela o pegou mordiscando as pétalas das rosas. Elas eram um presente e tinham sido plantadas para homenagear o pai dela. Mas mesmo assim. Ela usou uma enxada como se fosse um descascador de legumes... esfolando a pele dele. O sangue jorrou sobre os convidados. Estragou a melhor roupa de todos, e todas as margaridas. Já ouviu um coelho gritar? Não se esquece um som como aquele.

Eu estudo as pálpebras piscantes do inseto. Ele está perdendo a coragem. Compreendo, pois eu mesma fui vítima da violência da Vermelha. Ela certa vez usou minhas veias como cordões de marionete — a experiência física mais excruciante de minha vida. Ela até deixou uma marca no meu coração... que ainda posso sentir, uma pressão diferente.

Ultimamente, tem sido mais do que uma pressão. Desde aquela malfadada noite em que tudo deu errado no baile de formatura, quando aceitei minha loucura, a pressão em meu coração progrediu para uma pontada de dor recorrente, como se algo dentro de mim estivesse lentamente se desenrolando.

Não contei nada a papai. Estava ocupada exercitando minha magia, formulando meu plano. Meus entes queridos precisam que eu vença esta batalha, que eu seja mais forte do que a Vermelha de uma vez por todas.

Não posso me dar ao luxo de marcar uma consulta médica. E não adiantaria. Seja o que for, o que tenho foi causado pela magia. A magia da Vermelha. Sinto isso em minhas entranhas. E vou fazê-la consertar isso antes de acabar com a existência dela para sempre.

Mais determinada do que antes, tento pegar a chave que está na mão do condutor.

Ele a enfia debaixo do chapéu e em seguida começa a brincar com a plaqueta, tentando tirá-la do suporte.

— Mudei de ideia — ele diz entre estalos das mandíbulas. — Um inseto faz isso de vez em quando.

— Não. — Eu seguro seu braço, que mais parece um graveto. Seria fácil quebrá-lo. Uma tentação atravessa meus pensamentos, desafiando-me a ser cruel, mas eu me afasto e coloco a palma da mão sobre o peito, jurando: — Eu juro, pela magia da minha vida, que nunca direi que foi você que me mostrou.

— É melhor você sentar e esperar seu pai — o condutor sugere. Mexendo desajeitadamente no trapo que cobre seu tórax, ele tira um pacote de amendoim e o entrega a mim. — Você deve estar com fome depois da viagem. Vá almoçar.

— Não saio daqui até ver as memórias dela, inseto de tapete. — Jogo o pacote no chão e apoio as costas na porta, bloqueando a plaqueta.

O besouro faz um som regurgitado de raiva.

— Não importa se meu corpo é feito de tapetes. Minha cabeça funciona tão bem quanto a sua.

— É óbvio que não. Você esqueceu o que Morfeu disse. Eu faço parte da realeza.

— Ah, mas Morfeu não está aqui agora, está?

Esforço-me para pensar em uma réplica, mas a lembrança do motivo de Morfeu não estar aqui me deixa imóvel, tornando minha língua inútil — um naco de carne congelada.

— Você nada mais é do que uma chateação real — o condutor retruca. — Tem consciência de que estamos sob uma ponte de ferro? A magia dos intraterrenos é limitada aqui. É por isso que guardamos as lembranças perdidas neste lugar: para mantê-las seguras. Então você não pode me forçar a fazer nada. E não serei esmagado sob o polegar da Rainha Vermelha por uma mesticinha esquelética e inútil.

O pulsar do orgulho me invade, descongelando minha língua.

— Você deveria se preocupar mais em ficar preso do que em ser esmagado.

Invoco os lustres de vaga-lumes acima de mim, visualizando-os como uma enorme água-viva de metal. As correntes chacoalham e os parafusos se soltam do teto. As cintas se abrem, libertando os vaga-lumes presos. Excitados com a liberdade, os insetos cintilantes quicam e voam em espiral dentro do vagão, feito uma demonstração de asteroides em um planetário. Os outros passageiros, aos guinchos, enfiam-se debaixo dos bancos.

Uivando, o condutor tenta se afastar conforme as geringonças voam na nossa direção — com os tentáculos metálicos impulsionando-as em um espetáculo gracioso, mas perturbador. Eu me agacho e as correntes acertam o inseto, derrubando seu chapéu e atirando-o contra a parede. Os parafusos voltam ao lugar e formam uma enorme rede de metal. Ele fica preso lá dentro, tão alto que as pernas ficam suspensas no ar.

Os vaga-lumes pairam no ar, lançando um brilho suave.

Cerrando os dentes, fisgo a chave de dentro do chapéu que caiu do condutor e está ao lado do pacote de amendoim.

— Tem uma nova rainha na cidade. — Olho para ele. — E, por causa do meu sangue meio humano, minha magia não é afetada pelo ferro. Então a Vermelha não leva vantagem sobre mim. — Dirijo-me à porta da Rainha Vermelha.

— Espere — o besouro implora. — Perdoe minha impertinência, Majestade. A senhora tem toda a razão. Mas eu sou o condutor. Devo proteger as reservas de lembranças perdidas dos passageiros clandestinos. Tire-me daqui, eu imploro!

Giro sobre o calcanhar para encarar os outros. Eles espiam de debaixo dos bancos — os olhos saltados, a cauda encolhida, os pelos eriçados —, espirrando e tremendo de medo.

O condutor choraminga enquanto jogo para ele o pacote de amendoim, que fica preso em uma das correntes perto de seus braços esquerdos.

— Ele está em horário de almoço — digo aos passageiros. — Qualquer um que sair do seu assento, por qualquer motivo, terá que se ver comigo. Estamos entendidos?

Os clandestinos respondem com um balançar de cabeça coletivo e se acomodam cuidadosamente nos bancos. Um começo de satisfação se desdobra dentro de mim.

Sorrindo, enfio a chave na fechadura e abro a porta que leva ao passado de minha inimiga.

 

 

2


Descendo

No momento em que fecho a porta atrás de mim, toda a minha confiança fraqueja.

A sala é pequena e não tem janelas. Uma tapeçaria de cor marfim cobre uma espreguiçadeira, e um abajur alto está ao lado dela, lançando uma luz tênue sobre o chão quadriculado.

Um aroma de amêndoas vem dos biscoitos de luar que parecem sempre estar aguardando em uma travessa. Por mais fome que eu tenha, não consigo comê-los. Tudo é muito doloroso e familiar aqui dentro.

Eu abracei Jeb e mamãe neste lugar, sentindo seu amor quando retribuíram o abraço. Meus braços doem de saudade. Na parede oposta, cortinas de veludo vermelho à espera de serem abertas para revelar pedaços do passado. Eu conheci a história de amor de meus pais neste trem e assisti às lembranças de Jeb também. Entrei na cabeça deles e senti suas emoções como se fossem minhas.

Senti a mudança de atitude de mamãe quando ela abdicou da coroa de rubis para dar a meu pai uma chance na vida... vi até Morfeu ajudando-a, carregando meu pai pelo portal até o reino humano, embora fazer isso fosse pôr todos os seus meticulosos planos em risco. Vivenciei a nobreza e a coragem de Jeb quando ele deu as costas para o seu futuro para que eu pudesse ter um.

Tantos sacrifícios conduziram a este momento. Eu faria qualquer coisa para reverter o relógio e consertar tudo. Mas este momento é impiedoso.

“Momento. Você não terá essas restrições no País das Maravilhas. Permita-se ver o lado bom. Agora, recomponha-se. Temos que nos preparar para a Vermelha.” Essas foram as palavras de Morfeu na noite do baile de formatura, poucas horas antes de tudo desmoronar. A mensagem tem tanta ressonância que parece estar conectada à minha mente; mas isso é impossível, com a cúpula de ferro que nos separa. Mesmo assim, faz sentido que essa percepção ecoe por minha alma quando estou nos limites da insegurança, considerando-se que ele é o guardião da sabedoria do País das Maravilhas, o depositário de todas as coisas loucas e ousadas.

Jeb é uma âncora; ele me mantém conectada à minha humanidade e compaixão. Mas Morfeu é o vento; mesmo me debatendo e gritando, ele me arrasta para o precipício mais alto, me empurra e fica me observando voar com asas de intraterrena. Quando Jeb está ao meu lado, o mundo é um quadro — imaculado e acolhedor; quando estou com Morfeu, é um playground insano — malévolo e viciante.

Cada um deles ocupa um lado diferente de meu coração duplo. Juntos, eles fazem uma ponte entre meu mundo intraterreno e meu mundo humano. O que devo fazer com esse conhecimento, não sei ao certo. E, a menos que meu pai saia daquela sala com suas memórias intactas, talvez nunca tenha a oportunidade de saber.

Lágrimas me queimam os olhos pela primeira vez em semanas. Acabei ficando boa em esconder o desespero. Fazia parte da minha encenação de louca para o sanatório — parecer distante e isolada. Mas isso está muito longe do que sinto agora.

Recusando-me a chorar, levanto o queixo. Morfeu diria que sou uma rainha, e rainhas não choram. E Jeb diria: “Você vai dar conta, menina do skate”.

Os dois têm razão.

Giro o controle na parede para diminuir a luz. As cortinas do palco se abrem, revelando uma tela de cinema. “Imagine o rosto dela enquanto olha para a tela vazia” — eu imito as instruções dadas pelo condutor da última vez que estive aqui — “e vivenciará o passado dela como se fosse o dia de hoje”.

Fico surpresa ao perceber como é fácil recordar as imagens da Vermelha nos desenhos do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas de mamãe. Antes de a pequena Alice cair na toca do coelho, antes de o mundo da rainha ser arruinado por um marido infiel... antes de ela ser traída por seu rei. No tempo em que a Vermelha era somente uma princesa.

A tela se ilumina e eu explodo em mil pedaços que se reúnem na tela dentro do corpo e do ponto de vista da Vermelha.

Ela é pequena e jovem, talvez tenha uns dez anos humanos. Embora as crianças sejam diferentes no reino interior — mais inteligentes e cínicas, e lhes faltem inocência e imaginação. Sua respiração é arfante e ela corre atrás de um bando de duendes. Eles estão arrastando um cadáver enrolado em veludo vermelho. Os duendes só param quando adentram os portões do cemitério, seguros dentro dos jardins cobertos.

— Esperem! Tragam-na de volta! — grita a Vermelha.

Ela quase tropeça em seu vestido, mas abre as asas e se ergue do chão. Aterrissa diante do portão no momento em que ele se fecha. Parada lá, sozinha, ela espia por entre as grades. A Irmã Um sai correndo de seu labirinto de arbustos com as oito pernas chutando a barra da saia. O torso humanoide da guardiã do jardim inclina se sobre a mãe da Vermelha e persuade o espírito a sair do corpo. Ele se debate, erguendo-se do cadáver feito um ramo fluorescente.

A Irmã Um enrola o espírito em seu pulso e manda os duendes saírem com o corpo vazio.

— Não, a senhora não pode ficar com ela! — grita a Vermelha com um peso tão grande no peito que até respirar dói. O fedor de bolor e folhas queimadas faz arder seu nariz. Ela nunca chegou tão perto do jardim das almas, e cresceu ouvindo histórias sobre as guardiãs e o lugar. Mas lendas sobre mãos de tesoura e invasores reduzidos a fiapos sangrentos não podem assustá-la hoje. Não com sua mãe sendo levada para sempre.

A Irmã Um fica olhando de dentro do portão, franzindo a cara.

— Aqui é terreno sagrado, pequena rainha. Se estiver planejando alguma coisa, é bobagem. Você não tem aqui o poder de que usufrui em seu reino.

A Vermelha faz uma carranca. Seu corpo inteiro brilha em carmim enquanto ela se concentra no cabelo da mulher-aranha. Os fios, tremeluzentes e finos como aparas de lápis, pairam no ar em torno de seu rosto de jardineira com uma brisa, mas a magia da Vermelha não surte efeito.

A Vermelha olha para a cerca alta e para os ramos espinhosos que avançam sobre a amplidão dos jardins do cemitério, como um telhado. Não há forma de quebrar essas defesas.

A Irmã Um sorri desdenhosamente.

— Seria um erro tentar encontrar uma brecha, princesinha, a menos que deseje conhecer minha irmã pessoalmente. Ela tem o dom de fazer confete com pestinhas delicadas que nem você.

Um arrepio percorre a espinha da Vermelha até a ponta das asas.

Com um último olhar para a Vermelha, a Irmã Um enrola o espírito lamuriento e brilhante nos dedos. Com um movimento rápido de saias e pernas de aranha, ela desaparece no labirinto de folhagens.

Chega o pai da Vermelha, o rei, com o rosto vermelho de tentar alcançar sua filha.

— Qual é a vantagem em ser imortal — pergunta a Vermelha com o nariz enfiado no portão e frio do contato com o metal — se não podemos ficar juntos eternamente?

— A imortalidade significa somente que você atinge um ponto e para de envelhecer... e seu espírito nunca morre — ele responde ofegante. Aperta o ombro dela. — Mas o corpo é vulnerável a algumas coisas e pode ser deixado, pois é uma casca.

Os braços e pernas da Vermelha ficam entorpecidos. Seu próprio corpo parece uma casca. Vazia e quebradiça, como se pudesse ser levada pela primeira lufada de vento.

Ela se agarra às barras, procurando manter-se de pé.

— Mas por que não podemos enterrá-la no chão, entre as begônias e as margaridas, no pátio de nosso palácio, como fazem os humanos? Se ela vivesse no meio das flores, poderíamos visitá-la todos os dias.

Seu pai franze a testa, como se estivesse pensando.

— Você sabe que nossos espíritos precisam de sonhos para saciá-los, para impedir que fiquem inquietos... e possuam corpos vivos. Somente as Irmãs Twid podem encontrar e fornecer essas coisas.

— Sonhos. — A Vermelha funga. — Um dia, vou trazer sonhos para nossa espécie, pai. Eles serão abundantes em todo lugar, não só no cemitério. Um dia, vou libertar os espíritos para que possam dormir em nossos jardins, roçando nossas janelas à noite e tropeçando em nossos pés de dia. Vou trazer imaginação ao nosso mundo para que todos possam sempre estar com aqueles que amam.

Ele dá tapinhas na cabeça dela, um gesto terno que quase preenche o imenso vazio em seu peito.

— Isso faria de você a rainha mais adorada de todos os tempos, meu botão de rosa. Mas, até lá, devemos seguir as mesmas regras que todos os demais. Não podemos abusar de nosso poder e status nem colocar nossos súditos em perigo. Não importa quanto a amemos. — Ele seca os olhos com um lenço. — Compreende?

A Vermelha, com um gesto de cabeça, diz que sim.

A cena se embaralha e some. Sou arrastada para fora da memória e jogada em meu assento, acolhida pela escuridão à minha volta. Uma sensação de batida faz meu crânio balançar, como um soco vindo de dentro. Pressiono as mãos contra as têmporas até parar.

Deve ser a memória repudiada aninhando-se no meu crânio, porque eu não senti nada disso da última vez que estive aqui.

A tela se acende novamente. Um arco-íris vívido invade a sala e me joga de volta para o palco. Meus ossos se acomodam aos da Vermelha e minha pele se adapta à dela.

Ela está uns seis anos mais velha. Seu pai desposou uma viúva intraterrena depois da morte da mãe, para que a Corte Vermelha tivesse uma rainha para regê-la até que a Vermelha tivesse idade suficiente. Contudo, daqui a alguns meses, a Vermelha será coroada e a magia da coroa correrá em seu sangue...

A Vermelha se esconde atrás de alguns arbustos no jardim do pátio do castelo. As zínias com listras púrpura murcham com o ódio que pinga dela quando espiona seu pai e sua meia-irmã, mais nova. Grenadine é filha do primeiro casamento da nova rainha e provou ser uma pedra no sapato da Vermelha.

Não basta que seu cabelo esvoace com o brilho de rubis e seus olhos cor de prata dancem sob cílios grossos de lavanda. Ela vive distraída — uma lousa em branco aguardando que alguém escreva nela. Sua fragilidade e dependência oferecem uma distração para o coração entristecido do rei, algo que a força e independência da Vermelha não conseguem fazer.

O rei inclina-se para mostrar a Grenadine, pela centésima vez, como se joga croqué, já a tendo lembrado, pela milésima vez, de que ele é seu novo pai. Ele aponta os aros de metal em formato de U que formam um losango no chão. Estacas cor-de-rosa e cinza marcam cada final, e dois jogos de bolas aguardam em uma caixa revestida de cetim.

— Nós seguimos o circuito de aros — o rei diz gentilmente. — Minha cor vermelha contra a sua cor prata. O primeiro lado que conseguir passar as bolas pelos aros na ordem e atingir a marca vence.

Grenadine balança a cabeça, com seus cachos rubros roçando os ombros.

— O que é uma marca mesmo?

— A estaca no final da pista.

— E um aro... é isto? — Grenadine levanta um ser mágico com pescoço de flamingo cujo corpo foi enrijecido magicamente no formato de um bastão de hóquei. As plumas rosadas se eriçam, como se tivesse ficado ofendido com a troca de nomes.

— Isso é um taco, querida. Os aros são as argolas que atravessamos com nossas bolas.

As covinhas de Grenadine aparecem, como sempre o fazem quando ela está desorientada.

— Oh, pai, eu simplesmente não consigo lembrar.

Ele sorri, encantado com sua graça insensata.

— Creio que descobri uma maneira de driblar isso. Senhor Bill? — Ele acena para alguém.

Bill, o Lagarto — um réptil intraterreno com a habilidade de escrever sem tinta —, surge e faz uma mesura. Seu fraque e suas calças vermelhas tornam-se verde-folha, combinando de modo tão convincente com o arbusto ao seu lado que ele parece uma cabeça decapitada e mãos cheias de garras em pleno ar.

Grenadine retribui a reverência.

— Prazer em conhecê-lo, senhor.

O lagarto sorri, encantado com sua doçura, como todos.

— O Senhor Bill é o estenógrafo da Corte Vermelha. Ele tem a habilidade de comer sussurros — o rei explica. — E, depois, ele pode anotá-los em qualquer superfície, onde ficarão colados para sempre, como murmúrios silenciosos, para que possam ser ouvidos e não vistos. Sussurre algo de que deseje lembrar-se.

Grenadine murmura as regras do croqué que acabou de ouvir.

As mandíbulas camaleônicas de Bill rangem e sua língua estala em pleno ar, capturando o eco do sussurro dela. Os olhos bulbosos giram em diferentes direções e ele engole um caroço bem grande. Em seguida, tira do bolso uma fita de veludo e escreve sobre ela com a ponta do dedo com garra.

Piscando, ele entrega a fita vermelha ao rei.

— Escute — o rei diz, levando-a ao ouvido de Grenadine.

Ela espera, e depois explode numa gargalhada de bochechas rosadas.

— São as regras sussurradas!

O rei amarra a fita no dedo mindinho dela.

— Agora você nunca vai esquecê-las. Pedi ao Senhor Bill que seja seu consultor real particular. Ele vai fazer fitas encantadas durante o tempo que você precisar.

Grenadine enruga o nariz.

— Bill? Creio que não conheço essa pessoa.

O rei dá risada.

— É claro que conhece. Ele está bem aqui.

Bill, o Lagarto, faz mais uma mesura.

Cansada do espetáculo, a Vermelha se concentra na fita amarrada no dedinho da irmã. De seu corpo emana um brilho carmim enquanto sua magia desata a fita. A tira de veludo voa de Grenadine e vai pousar na palma da mão da Vermelha. Ela sai do esconderijo.

O rei enrubesce. Ele dispensa Bill, mandando-o para dentro do palácio com Grenadine para que possam dar vida a mais sussurros.

— Por que fez isso? — o pai da Vermelha pergunta, tentando pegar a fita roubada.

A Vermelha a aperta entre os dedos.

— Talvez eu deva nomear Bill para fazer fitas para o senhor, para que se recorde de que tem outra filha. Com quem nunca fica.

O rei olha para os sapatos vermelhos.

— Fitas não ajudariam. Porque eu não esqueci.

O queixo da Vermelha fica rijo.

— Ela nem é sua filha! Eu sou, de sangue.

— Sim, meu botão de rosa. E a cada dia você se parece mais com sua mãe. E a cada dia volto a sentir a dor de ter sido afastado dela. Você tem mais coragem do que eu.

— E é por isso que serei rainha — declara a Vermelha, tentando endurecer o coração.

— Sim, porque você aceita as coisas que a fazem se recordar dela. Você toma chá com cinzas, para recordar como ela a acalentava quando você ainda era bebê. Você pede que o cozinheiro faça as tortas de Tumtum, as favoritas dela, para poder lembrar que vocês as comeram juntas. E cantarola as músicas dela.

A Vermelha não responde.

— Por favor, compreenda, amada filha. Eu só a evito para não arrastá-la comigo. Você é importante demais para o reino e não posso atrapalhá-la. Então, observo de longe. Sou um homem de sorte por ter uma filha que cresceu e se tornou uma mulher tão forte.

A Vermelha zomba dos elogios vazios.

— Quem tem sorte é Grenadine. Porque ela não tem memória. Ela pode esquecer qualquer regra que confinaria suas ações, apagar qualquer erro que minaria sua confiança, relegar qualquer tristeza que a impediria de amar. Ela não tem padrões que regulem sua vida. Ela é imune, por suas próprias limitações, a tudo o que poderia restringi-la. Ela vê o mundo com o encanto de um filhotinho que nunca foi escorraçado nem preso a uma corrente.

O rei cutuca a caixa da bola de croqué com o dedo do pé.

— Esquecer não a faz mais forte. Você é que é forte. Pois você se lembra e mesmo assim segue em frente. É isso que a tornará uma regente maravilhosa um dia, assim como sua mãe: solidária e compreensiva.

O punho da Vermelha aperta a fita com mais força.

— As emoções nascem da fraqueza. Não quero nada com elas.

— Como? — A voz severa de seu pai a assusta. — Você desrespeitaria a memória de sua mãe? Tudo por causa de uma pontada de ciúme?

A Vermelha cerra os dentes, sentindo o olhar da mãe sobre si, mesmo ela estando muito longe — uma rosa cristalina dentro do jardim das almas.

O rei estreita os olhos por baixo da sombra da coroa.

— Você tem a mesma qualidade sombria de toda a linhagem real Vermelha. Sua mãe foi a primeira que aprendeu a equilibrar a loucura e a sabedoria. Não renegue esse legado. Permita que ela se orgulhe de você. — Ele estende a mão.

Lágrimas invadem os olhos da Vermelha e ela larga a fita de sussurros na mão dele, uma promessa velada de honrar a memória da mãe, de nunca esquecer seu exemplo.

Meus ossos se agitam e a cabeça dói quando sou novamente jogada na espreguiçadeira, e em seguida atirada outra vez de volta à tela para a lembrança final.

A Vermelha está ajoelhada ao lado de uma roseira, inalando seu doce perfume. Os botões são de um vermelho profundo, parecendo poças de sangue fresco em meio ao brilho quase artificial das folhas azul-petróleo. Ela plantou a roseira no pátio como um tributo ao seu pai, depois que ele morreu. Ela anseia pelo espírito dele. Gostaria que ele estivesse aqui, e não aprisionado no jardim das almas, embora fique confortada em saber que ele finalmente se reuniu à sua mãe.

— Eu deveria estar com vocês dois no cemitério — ela murmura às rosas. — Agora que minha vida está acabada. — Ela gira um frasco que tem na mão, revelando o rótulo: Poção do Esquecimento.

Seus ombros cedem quando, ao longe, ouve o riso alto da meia-irmã acompanhado pelas gargalhadas do esposo da Vermelha. A Vermelha o conheceu uma semana depois que o pai faleceu. Ele tinha um coração bom, como o pai, e provou ser o único homem que poderia lidar com sua raiva, amenizar sua amargura. A força dele era a compaixão, e ele adorava a Vermelha. Mas a rainha ficou obcecada pela ideia de trazer sonhos para o País das Maravilhas e acabou negligenciando seu casamento, sem mesmo se preocupar em dar ao rei os filhos que ele tanto desejava. Em sua ausência, o marido era comumente deixado sozinho com Grenadine.

Várias vezes, a Vermelha viu o marido tentar fazer amizade com sua irmã, embora esta sempre o repelisse. Quando o rei da Vermelha voltava para seu lado feito um filhote ferido, a tristeza dele atiçava o ciúme da esposa. Ela fazia a única coisa que podia: roubava as fitas da irmã para mostrar ao marido como Grenadine era bobalhona.

Todos os dias, durante meses, toda vez que sua irmã amarrava fitas nos dedos das mãos ou dos pés, a Vermelha, usando magia, as atraía e fazia com que ficassem flutuando no céu. Em breve, elas eclipsaram o sol, como uma nuvem de rubras borboletas cintilantes. O reino ficou imerso na escuridão, mas a Vermelha não se importava. Não tinha vontade de chamar as fitas de volta nem de ouvir os lembretes mundanos e irrelevantes de Grenadine.

Para a Vermelha, roubar as fitas tornou-se um jogo de malícia e grande satisfação, até que, finalmente, Grenadine parou de usá-las. E, logo depois, parou de impedir os avanços do Rei Vermelho.

Os dois ficavam cada dia mais apaixonados, e a Vermelha testemunhava isso repetidas vezes. Furiosa, ela chamou de volta todas as fitas do céu. Elas se espalharam pelo pátio do castelo em uma torrente de chuva carmim. A Vermelha postou-se em meio às centenas de sussurros que a rodeavam, repetindo as mesmas palavras: Mantenha o marido da Vermelha longe de seu coração. Ela é sua irmã, um amor precioso. Sempre seja fiel à Vermelha.

Grenadine vinha lembrando a si mesma, diariamente, de fazer o que era certo, e a Vermelha havia tornado impossível que ela lembrasse. A responsabilidade sobre a falência de seu casamento pesava toda em seus ombros. E a única maneira de a Vermelha sobreviver era ser como Grenadine e esquecer o papel que tivera em tudo isso. Determinou que se lembraria somente das traições dos outros, para que esses erros pudessem endurecer seu coração.

Afagando uma pétala de rosa, a Vermelha sussurra uma última vez:

— Mãe, Pai, espero que ambos me perdoem, porque a única maneira de perdoar a mim mesma é esquecer. — Em seguida, ela leva o frasco aos lábios.

A imagem se apaga, a cortina se fecha e o abajur se acende.

Desmoronada na espreguiçadeira, levo as mãos às têmporas até que o martelar dentro do meu crânio se acalme. Quase me engasgo com o cheiro agridoce das rosas profundamente gravado em meus sentidos. Finalmente consigo reconhecer o que nunca me permiti admitir: sou descendente da Rainha Vermelha. Ela é uma parte permanente de mim. Agora posso aceitar isso porque sei que ela, um dia, teve coração. Um coração que sentiu perdas parecidas com as minhas: a ausência de uma mãe que ela adorava; o medo de perder a admiração do pai; o arrependimento por um erro tão monumental que lhe custou o amor de sua vida.

A Vermelha afastou seus momentos mais vulneráveis para não hesitar em sua busca de vingança. Desse modo, ela pôde abandonar-se à crueldade completa sem nenhum remorso.

A empatia espeta minha consciência, mas eu a afasto. Não há lugar para a piedade no campo de batalha... seja ele mágico ou não.

Se eu conseguir conter suas memórias repudiadas por tempo suficiente para reuni-las à sua mente, elas irão contra ela, a encherão de arrependimento. Depois, enquanto ela estiver vulnerável, eu atacarei, e o País das Maravilhas nunca mais precisará temer sua fúria.

Ainda desorientada em meio a um turbilhão de emoções obscuras, coloco me de pé e aliso a camisola hospitalar. Estou a poucos passos da porta quando ela se abre, revelando papai — com os olhos castanhos iluminados por uma chama ardente.

— Allie, eu me lembro... de tudo.

 

 

3


Dilemas em Miniatura

Papai me conta que seu verdadeiro nome é David Skeffington.

— Interessante — eu digo, enquanto caminhamos pelo corredor. — E eu pensava que daríamos em algo relacionado a Martin Gardner.

Papai franze a testa.

— Quem é esse?

— O cara que escreveu Alice: Edição Comentada. Um mago da matemática. — Eu dou de ombros. — Isso só prova quanto mamãe estava envolvida com o País das Maravilhas. Como ela não conseguiu encontrar seu verdadeiro nome, deu a você um que se encaixasse no legado de Lewis Carroll.

— Sem saber que eu já estava encaixado — papai emenda.

— Por quê? Quem são os Skeffingtons? — pergunto.

Ao notar o condutor pendurado na parede, papai não responde.

Eu o ajudo a libertar o besouro que esperneia sem parar.

— O inseto de tapete não estava cooperando muito — explico, soltando a pele emaranhada do meu prisioneiro dos fios e metais.

— Existem outras maneiras de ser persuasivo. — A expressão de papai é séria enquanto ele abaixa o inseto desalinhado até o chão. — Maneiras menos violentas.

Fico calada em sinal de respeito, mas quero dizer que ele não sabe nada sobre como lidar com intraterrenos.

Depois de um pedido de desculpas que ganha uma cautelosa, embora reverente, mesura do condutor e dois pacotes de amendoim de brinde, papai me pega pela mão e vamos juntos para a plataforma do trem de brinquedo. A porta do vagão se fecha atrás de nós com um rangido forte.

Eu bocejo, inalando o aroma de poeira e pó de pedras no frescor do túnel parcamente iluminado. Os sussurros de centenas de insetos se misturam — uma distração que me acalma. As memórias da Vermelha continuam me cutucando, ofuscando minha mente com manchas rubras desconcertantes: seu rosto vermelho quando ela tentava segurar o espírito da mãe, o tremeluzir cor de rubi do cabelo da meia-irmã durante uma difícil aula de croqué, vendo o pai se afastar, e o vermelho cor de sangue das fitas sussurrantes anunciando o erro mais devastador da Vermelha.

Não posso sentir empatia. Tenho de ser forte.

Coloco as mãos sobre o estômago, enjoada e tonta. Eu não fazia ideia de que o efeito aderente das memórias seria tão poderoso. Preciso encontrar um modo de controlá-lo.

Papai percebe que esfrego o estômago e estende um pacote de amendoim.

— Você precisa comer.

Jogo alguns amendoins na boca. O sabor salgado e crocante aplaca minha fome, mas não alivia as rajadas de chuva vermelha que inundam minha mente.

— Me diga onde está sua mãe — papai diz abruptamente.

Eu quase me engasgo.

— Me diga que ela não está no mundo do espelho.

Depois de engolir, respondo:

— Ela está no País das Maravilhas.

Ele solta um suspiro de alívio.

— Que bom! Existem criaturas em Qualquer Outro Lugar que nenhum ser humano... — Ele se detém, como se lembrasse que mamãe pode ser tudo, menos humana. — Ela é uma deles. Como aquele rapaz alado que me carregou através do portal. Ela é intraterrena.

— Em parte — eu sussurro. Eu também sou fica parado em minha língua, não dito.

— Ela é mais forte do que eu poderia imaginar — ele murmura. — Ela pode proteger o Jeb. Eles têm um ao outro.

Ele está meio certo. Mamãe é forte, e eu tenho de acreditar que ela está sobrevivendo no País das Maravilhas. Se o Jeb estivesse com ela, ele estaria mais seguro, também. Ainda não vou contar ao papai que eles não estão juntos. Primeiro, ele precisa digerir tudo o que acaba de saber.

— Eles estão bem. Todos... os dois estão bem.

Papai já está tendo de se esforçar muito para entender a lembrança daquele ser alado ajudando mamãe a tirá-lo do jardim das almas no País das Maravilhas. Ele não precisa saber que Morfeu é parte de nossa missão de resgate neste momento. No entanto, depois terei de explicar o imenso papel que Morfeu desempenhou em minha vida desde a infância. Mas nunca poderei confessar o papel que ele planeja desempenhar em meu futuro, pois jurei, pela magia da minha vida, não dizer uma palavra. Nem posso contar a Morfeu que vi o que vai acontecer, mesmo que ele próprio tenha visto.

— O problema é que — eu continuo — a toca do coelho foi soterrada. Todos os portais estão interligados. Então, se a entrada não está funcionando, as saídas também não.

— Foi por isso que você me trouxe aqui para ver minhas memórias. — Papai capta no ar os fios soltos da minha explicação. — Para encontrar outra entrada para o País das Maravilhas.

Tenho medo de contar a ele o estado em que o País das Maravilhas se encontra. E, pior ainda, que eu sou culpada por isso. Que minha inabilidade para usar poderes não cultivados e negligenciados causou toda essa tragédia. E que, para consertá-la, terei de encarar meu maior medo.

Temos muito a conversar antes de eu incluir a Vermelha na história.

— O que aconteceu entre você e o condutor? — Papai muda de assunto, para meu alívio. — Por que você o intimidou daquele jeito?

Jogo um amendoim na boca.

— Ele me chamou de mesticinha esquelética — respondo, mastigando. — Achei a minha solução bem criativa. — Minha voz é abafada pelo som de motores e pessoas conversando que chega da ponte através dos dutos de ar.

Papai limpa migalhas da camisa polo da sua loja de artigos esportivos.

— Assim como achou que as mentiras que você e sua mãe inventaram também eram criativas.

Ai! Jogo outro punhado de amendoim na boca, desejando que as coisas entre nós voltem a ser como eram antes. É tão estranho que, de alguma forma, as mentiras tenham se tornado a base de nosso relacionamento. Sem elas, nosso vínculo é frágil... precário.

Que vontade eu tenho de abraçá-lo, mas o vácuo entre nós é grande demais.

— Se vamos ajudar sua mãe e o Jeb — papai continua —, preciso de respostas sinceras de você. De toda a verdade. Chega de disfarces.

Analiso os dedos de meus pés descalços, que se contraem a cada passo que damos sobre seixos e pedras quebradas. A sola de meus pés não é a única coisa que parece exposta e frágil.

— Nem sei por onde começar, papai.

Ele franze a testa.

— Não espero respostas imediatas. Temos que encontrar a Estalagem do Humphrey primeiro.

— Estalagem do Humphrey? — Quase mordo a língua. O único Humphrey que já conheci é a criatura em forma de ovo do País das Maravilhas, também conhecido por Humpty-Dumpty, do romance de Lewis Carroll. — O que é isso?

— É a única pista que tenho para localizar minha família. Eu vivia aqui.

— Aqui, tipo em Londres?

— Aqui, tipo neste mundo. A Estalagem do Humphrey é uma espécie de casa de passagem entre o mundo mágico e o reino mortal. Fica escondida debaixo da terra.

O fato de ele aceitar de imediato um mundo subterrâneo mágico me deixa confusa. Talvez eu esteja errada em achar que ele não está preparado para lidar com intraterrenos. Talvez eu até suspeitasse disso, mas ainda é difícil aceitar quão enraizado o País das Maravilhas se encontra em meu sangue — dos dois lados da minha família.

Esse pensamento deflagra outro flash de memórias da Vermelha, e eu cambaleio.

Papai me segura.

— Você está bem?

— É só uma dor de cabeça — respondo quando a sensação vai embora. Vou ter de fazer um esforço concentrado para não pensar em minha tataravó até que possa descobrir uma maneira de reprimir esses episódios. — Você estava me falando sobre a estalagem.

— Sim. Fica em algum lugar de Oxford.

— Sério? Foi lá que Alice Liddell cresceu. E onde ela conheceu Lewis Carroll.

Papai esfrega a barba por fazer.

— De alguma maneira, no passado, os Skeffingtons eram aparentados com os Dodgsons, que era o sobrenome de Carroll antes de ele criar um pseudônimo. Espero obter mais detalhes quando encontrarmos a estalagem.

Não pressiono mais. Nem consigo imaginar a overdose de informação que ele está processando.

A distância, as monarcas que nos deram carona estão penduradas nas paredes dos túneis, batendo as asas lenta e relaxadamente. Os lustres de vaga-lumes refletem seus desenhos em laranja e preto e lembram tigres se esgueirando pelas florestas em um programa sobre a natureza.

As borboletas sussurram: Nós sabemos o caminho para a Estalagem do Humphrey. Gostaria que os levassem, pequena rainha flor?

Meus braços ficam completamente arrepiados quando penso em sacolejar no meio de mais uma rajada de vento e chuva. Não é medo. É uma ansiedade eletrizante — como ficar na fila para andar na sua montanha-russa favorita. Os brotos de minhas asas se agitam. O da direita ainda não está totalmente curado. Talvez eu possa soltá-lo enquanto voamos, exercitar as asas sem o perigo de cair.

Sim, por favor, levem-nos. Envio a resposta silenciosa para as borboletas.

— Elas estão falando com você? — papai pergunta quando me pega olhando fixamente para elas.

Engulo em seco. É difícil me acostumar a não fingir com alguém para quem menti a vida inteira.

— Ã-hã.

Ele me analisa, com a pele quase verde sob a luz tênue. Pergunto-me se ele já se tocou que permitimos que mamãe ficasse trancada em um sanatório por algo que estava realmente acontecendo, e não por uma ilusão.

— As borboletas sabem onde fica a estalagem — eu afirmo.

Papai faz um ruído de insatisfação.

— Quando chegarmos lá, podemos voltar ao nosso tamanho normal, por favor?

— É claro. Eu tenho aqui exatamente do que precisamos. — Dou um tapinha no bolso onde os cogumelos aguardam, surpresa por sentir a caneta do condutor junto deles. Tinha esquecido que ainda estou com ela.

Papai tira a carteira e vasculha entre recibos, dinheiro e fotos. Ele para ao ver um retrato de família que tiramos meses atrás e, com a ponta do dedo trêmulo, percorre a silhueta de mamãe.

— Não acredito no que ela fez por mim — ele murmura, e eu me pergunto se deveria ouvir aquilo, ou se é um momento íntimo. Nunca duvidei da força do amor que papai sentia por ela, mas só recentemente vim a saber como o amor dela por ele era forte.

Estou curiosa para saber quanto ele lembrou, se compreende que ela ia ser rainha antes de conhecê-lo.

O queixo de papai se fecha com força, e ele desliza a foto de volta para seu lugar.

— Não temos a moeda daqui. Vamos ter que usar meus cartões de crédito. Devemos chegar por volta da hora do jantar. Enquanto comemos, vamos discutir as coisas. — Ele parece cansado, mas há anos não o vejo tão alerta. — Vamos planejar nosso próximo passo. Mas é importante ficarmos quietinhos para não chamar atenção. Considerando a profissão da minha família, eles podem ter feito inimigos muito perigosos.

Um nó de apreensão se forma em minha garganta.

— Que profissão?

Ele guarda a carteira no bolso.

— Porteiros. Eles são os guardiões de Qualquer Outro Lugar.

Meus joelhos amolecem.

— O quê?

— E chega de falar nisso. Ainda estou processando.

Sua aspereza me magoa. Mas que direito tenho de me sentir magoada? Eu o fiz esperar dezessete anos para saber a verdade sobre mim.

— Tá bom. — Reprimo um pedido de desculpas e analiso minha roupa rasgada. — Não vai ser fácil passarmos despercebidos usando roupas de sanatório. Você vai precisar se trocar também.

— Alguma ideia? — papai pergunta, e em seguida levanta uma mão. — E, antes que diga alguma coisa, não vamos roubar nada do varal de ninguém.

É como se ele tivesse lido minha mente.

— Por que não? Os motivos sempre justificam o crime. — Eu mordo a língua. Esse é o raciocínio de Morfeu, não o meu. É ao mesmo tempo atemorizante e libertador que sua lógica ilógica esteja começando a fazer todo o sentido.

Papai estreita os olhos.

— Me fale que você não acabou de dizer isso.

Controlo o desejo de sustentar meu ponto de vista. Justificar crimes pode ser a lei vigente no reino interior, mas isso não a torna legítima para meu pai neste momento.

— Eu só quis dizer que seria como tomar emprestado, se depois nós comprássemos roupas novas e devolvêssemos as outras.

— Muitas manobras. Precisamos de uma solução rápida. Roupas improvisadas.

Roupas improvisadas. Queria que Jenara, com seu talento de estilista, estivesse aqui. No mês que passei no sanatório, não pude receber nenhuma visita além de meu pai. Mas Jen mandava mensagens, e papai sempre se encarregava de entregá-las. Ela não me culpou pelo desaparecimento de seu irmão, apesar dos boatos dizendo que eu fazia parte de um culto cujas vítimas tinham sido ele e mamãe. Jen se recusa a acreditar que eu poderia estar envolvida em algo que fizesse mal a eles.

Eu queria merecer essa fé.

Queria que ela estivesse aqui. Ela saberia o que fazer quanto às roupas. Jenara consegue criar roupas com qualquer coisa. Certa vez, para um projeto de mitologia, ela transformou uma Barbie na Medusa, pintando a boneca de prateado e criando um vestido “de pedra” com uma tira de papel-alumínio e giz branco.

Bonecas...

— Ei! — eu grito para o lustre de vaga-lumes mais próximo. — Será que vocês poderiam iluminar um pouquinho aqui, por favor?

Eles percorrem o teto e param bem acima de nossa cabeça, iluminando o que está à nossa volta. Este lugar já foi um corredor que dava em um elevador, onde os passageiros aguardavam para ser levados à cidade depois que desciam do trem. Pais distraídos e crianças descuidadas deixaram para trás brinquedos que são compatíveis com o nosso tamanho: blocos de madeira que poderiam passar por barracões de ferramentas, um catavento que poderia servir de moinho, e alguns elásticos de cabelo maiores do que os arbustos que eu via rolando ao vento nas estradas de Pleasance, no Texas.

Há uma placa acima dos brinquedos. As palavras ACHADOS E PERDIDOS foram riscadas e substituídas por TREM DO PENSAMENTO.

Pouco adiante de alguns livros de ilustrações mofados há uma mala infantil redonda de pé, de modo que a frente está visível. O estilo é retrô — rosa, de vinil estofado, com uma menina de rabo de cavalo parada diante de um avião. Seu vestido desbotado já foi azul um dia. Abaixo do zíper, escrito com letra de criança e marcador preto, lemos: Loja de Roupas da Emily. Esparramada no chão ao lado da mala está uma Barbie vintage.

— Roupas de boneca — eu sussurro.

Papai estreita os olhos.

— Precisamos de coisas que sirvam quando ficarmos do tamanho normal, Allie.

— Elas crescem e encolhem com a gente. Faz parte da magia.

Ele olha para seu uniforme rasgado e cheio de lama.

— Ah, certo...

— Vamos. — Pego a mão dele e avanço na direção da mala, controlando-me para não uivar de dor, pois as pedras no chão furam meus pés. Papai se detém por um momento para tirar os sapatos e me ajudar a pisar nelas.

Os sapatos são grandes demais, é claro, mas a ternura do gesto me recorda dos tempos em que eu costumava me equilibrar sobre a ponta dos seus sapatos para que pudéssemos dançar juntos. Eu sorrio. Ele também sorri, e volto a ser sua menininha. Em seguida, sua expressão muda da admiração para o desapontamento, como se ele estivesse continuamente tentando aceitar o que eu sou, o que mamãe é, e todo o tempo que escondemos isso dele.

Meu peito parece encolher. Por que o privamos de uma parte tão grande de nós? De uma parte integral dele?

— Papai, eu sinto...

— Não, Allie. Ainda não estou pronto para ouvir isso. — Sua pálpebra esquerda começa a tremer e ele desvia o olhar, os pés protegidos por meias sondando os escombros com cautela.

Sigo em frente e sinto o ar, dizendo para mim mesma que é a poeira que faz meus olhos lacrimejarem.

Quando chegamos perto da mala de roupas de boneca, ela parece alta como um prédio de dois andares, e o fecho do zíper é do tamanho da minha perna.

— Como vamos abrir essa coisa? — pergunto.

— Tenho uma pergunta melhor: como vamos caber nessas roupas? — Papai aponta a Barbie coberta de poeira. — Você está do tamanho da cabeça dela.

As íris da boneca são pintadas, como se ela estivesse olhando para o outro lado. Com sua maquiagem felina, ela parece estar zombando de mim. Exasperada, enfio as mãos nos bolsos do avental. Meus dedos sentem a caneta do condutor. Mais no fundo, chego aos cogumelos, e uma ideia se forma na minha cabeça.

— Vamos sentá-la apoiada na mala.

Papai me lança um olhar perplexo, mas não titubeia. Ele pega nos ombros da boneca e eu, nos calcanhares. Uma aranha amarelada do tamanho de um cocker spaniel foge correndo, reclamando por termos destruído sua teia. Ela desaparece dentro da pilha de livros. Quando colocamos a Barbie sentada, acomodo-me ao lado dela.

Entrego um cogumelo a papai e devolvo seus sapatos. Em seguida, pego outro cogumelo para mim e dou uma mordida no lado salpicado. Ranjo os dentes ao sentir o desconforto dos nervos se esticando, os ossos se alargando e a pele e cartilagens crescendo. Tudo à minha volta começa a encolher e eu continuo a comer até minha cabeça ficar na altura da cabeça da boneca.

Papai compreende tudo e também morde seu cogumelo até ficarmos ambos grandes o bastante para abrir a mala e vestir as roupas estilo anos 1950 de Ken e de Barbie que escorregam de dentro da mala.

Jogo para o lado calças boca de sino prateadas e um maiô com listras brancas e pretas, descobrindo um collant e uma saia de balé da mesma cor verde-mar dos olhos de Jeb quando ele fica bravo. Exatamente da cor que ficaram quando ele pegou Morfeu aos beijos comigo no meu quarto antes do baile de formatura.

O arrependimento me corrói as entranhas. Todas essas semanas, Jeb ficou pensando que eu o traí. No último momento que passamos juntos no baile, ele pegou o pingente que eu usava no pescoço — um amontoado de metal que um dia já fora minha chave para o País das Maravilhas, seu medalhão em forma de coração e seu anel de noivado — e me beijou. Prometeu que nós ainda estávamos longe de terminar. Mesmo depois de eu ter traído sua confiança, ele ainda planejava lutar por mim.

Uma sensação de cócegas chama minha atenção para o tornozelo, onde uma teia de aranha se pendura na beira de minha tatuagem de asa. Eu a fiz meses atrás para camuflar a marca de nascença intraterrena. Aqui, nas sombras, percebo quanto a tatuagem realmente se parece com uma mariposa, como Morfeu sempre disse. Quase consigo ver os lábios dele se enrugarem de deleite com o fato de eu admitir isso.

Aquela estranha dor que se desdobra me arranha o peito novamente. Ela me atinge quase sempre que estou hesitando entre meus dois mundos.

O que será que a Vermelha fez comigo?

A Vermelha...

Suas memórias repudiadas trovejam em meu crânio mais uma vez. Eu gemo baixinho.

— Disse alguma coisa, Allie? — Papai olha para mim enquanto vasculha as roupas de Ken.

Depois de esfregar as têmporas, levanto um vestido-camisa sem mangas com botões de pressão na frente e estampa de cereja e galhos verdes que combina com o collant.

— Acho que encontrei alguma coisa. — Ergo as roupas para papai inspecioná-las.

— Parecem ótimas. Estarei logo ali. — Ele pega sua trouxa de roupas e vai para o outro lado da mala.

Dispo-me das roupas do sanatório, tendo cuidado para não deixar os cogumelos que sobraram caírem do bolso do avental. Vou ter de encontrar outra forma de carregá-los.

Antes de tirar tudo, procuro alguma roupa de baixo feita de renda. Venho usando roupa íntima básica de algodão desde que fui para o sanatório. Seria bom vestir algo bonito. Sem encontrar nada, me conformo com o que já tenho e visto o collant verde. O detalhe mais legal da roupa de balé é uma abertura na parte de trás. Isso deixará mais fácil abrir as asas. O tecido acetinado cheira a lápis de cera e a jujuba, fazendo-me sentir saudade da minha infância, antes de mamãe ser internada.

Em seguida, visto a camisa-vestido e fecho os botões de pressão da parte de cima, deixando a saia aberta para mostrar as três camadas de tule verde que saltam acima dos meus joelhos.

Uma fita fúcsia serve como cinto. Meias finas cor-de-rosa completam o conjunto. Elas vestem perfeitamente das minhas coxas até as panturrilhas, mas ficam sobrando nos dedões. Eu dobro o excesso e calço botas moles e vermelhas de cano alto.

Botas vermelhas. As memórias da Vermelha martelam meu crânio até eu sentir tanta tristeza por ela que caio sobre a pilha de roupas que sobraram. Levo os punhos fechados à cabeça até passar. Quando abro os olhos, estou quase soterrada entre sapatos e acessórios da Barbie, como se tivesse me debatido inconscientemente.

— Está tudo bem por aí? — papai pergunta do outro lado da mala.

Eu solto um grunhido baixinho ao tirar tudo de cima de mim.

— Estou com dificuldade para calçar a meia. — Talvez roubar as memórias da Vermelha tenha sido um grande erro, afinal. Vou acabar usando novamente uma camisa de força, e desta vez para valer.

Quando me levanto, meu pé esbarra em um diário do tamanho da Barbie com uma chave que deve ter um quarto do tamanho de um alfinete, para um humano normal.

O condutor disse que eu precisaria de papel encantado para conter as memórias repudiadas. Um ano atrás, no cemitério do País das Maravilhas, a Irmã Um me contou que os brinquedos do reino humano eram usados para aprisionar almas no covil de sua irmã gêmea.

A Irmã Um disse que, quando os brinquedos mais queridos são abandonados, eles desejam as coisas que costumavam preenchê-los e confortá-los. Eles ficam solitários e anseiam ter o que tinham. E, se alguém lhes der essas coisas, eles se apegarão a elas com toda a sua força e determinação.

Folheio o diário. Algumas das pequeninas páginas foram preenchidas — corações, iniciais e flores, porque escrever palavras de verdade deste tamanho seria difícil para qualquer criança. Os dois terços finais estão em branco.

Talvez este diário tenha sentido falta de alguém que escrevesse nele.

O próprio Morfeu disse que os brinquedos guardam o resíduo do amor inocente de uma criança, a magia mais poderosa do mundo. Se isso for verdade, então quem sabe estas páginas sejam encantadas o bastante para conter as memórias da Vermelha e, assim, afastar os laços emocionais da minha mente.

Mordo o lábio inferior. Veja só, inseto de tapete. Acabo de encontrar um diário mágico.

— Já terminou? — Papai se movimenta do outro lado da mala, como se estivesse andando para lá e para cá.

— Só um segundo! — Remexo tudo à procura do avental que estava usando e tiro a caneta do bolso. — A lógica intraterrena reside no limite tênue entre o bom senso e a falta dele. — Eu balbucio as palavras de Morfeu para que papai não escute.

Descarrego as memórias da Vermelha nas páginas restantes, escrevendo o mais rápido que consigo. As emoções jorram de mim para o papel, uma experiência catártica, como escrever um diário para apaziguar o impacto de alguma tragédia.

Quando termino, fecho o caderno. Ele se retorce em minhas mãos, abrindo-se o suficiente para franzir o papel. As memórias estão tentando escapar. Apertando os dedos em torno da capa, eu o fecho, tranco-o com a chave e ele para de se agitar.

Minha cabeça parece melhor, os pensamentos mais claros e a empatia mais distante. A transferência deve ter dado certo. Ainda consigo me lembrar do passado esquecido da Vermelha, mas os eventos parecem ter acontecido com alguma outra pessoa, e não comigo. As memórias vão se distanciando, silenciando a empatia que martelava dentro da minha cabeça.

— Allie, nós temos que ir.

— Estou procurando um lugar para guardar os cogumelos — respondo, enrolando.

Enquanto procuro, aparece uma sacola de balé cor-de-rosa com um cordão. Enfio o diário dentro dela e amarro a chave do diário em um pedaço do cordão para confeccionar um colar. Desde o desastre do baile de formatura, sinto-me perdida sem a minha chave para o País das Maravilhas. Esta aqui não é cravejada de rubis e não abre um portal para outro mundo. Mesmo assim, é um conforto tê-la pendurada no pescoço.

Separando um cogumelo para mim e outro para papai, enfio o resto na bolsa junto ao diário, fecho-a com o cordão, amarro bem e a penduro no ombro.

Com uma escova de plástico, desato os nós do cabelo e faço tranças dos dois lados da cabeça. Fico olhando para o chapéu e o cachecol púrpura e escarlate de crochê, testando para ver se as memórias da Vermelha continuam dormentes. Preciso ter certeza antes de partirmos. Não posso arriscar perder o controle quando estivermos a vários quilômetros de altura.

Como nada acontece, pego o cachecol e o chapéu.

Vou para a frente da mala. Papai está esperando com trajes de Ken; casaco xadrez preto e branco, calça pregueada de flanela cinza e camisa branca.

Levo a mão à pele sob os olhos, preocupada que minhas marcas intraterrenas estejam aparecendo depois de toda a magia que exerci.

— Estou bem?

— Está linda, borboleta — ele diz. Com a ponta do dedo, percorre o contorno de meus olhos, seguindo um desenho ilógico que só pode significar que minhas marcas estão totalmente abertas.

O fato de ele usar meu apelido me enche de gratidão. Ele está tentando me aceitar, com todas as minhas peculiaridades, mesmo tendo passado por um grande choque.

Eu ajeito seu colarinho e limpo a poeira de seu casaco.

— Sabe qual é a melhor coisa destas roupas? Sabemos que somos as primeiras pessoas a usá-las — eu provoco.

Papai dá risada. O som ecoa no túnel enquanto mordemos nossos cogumelos — os lados macios — até encolhermos o suficiente para caber no dorso das borboletas. Subimos em nossas montarias aladas, decolamos através do buraco na base da ponte e ganhamos o céu rumo a Oxford.

 

 

4


Carne e Sangue

Uma chuva fria me desperta com um solavanco. O cheiro de umidade preenche minhas narinas e o estrondo dos trovões faz tremer meus tímpanos, abafado por um som de investida. Minha bochecha direita se aninha em algo que é ao mesmo tempo macio e espigado.

Balanço a cabeça, tentando me lembrar de onde estou.

O covil do cogumelo. Estou nos braços de Morfeu... Ele está voando comigo para sua mansão. Tenho pavor de olhar, mas preciso saber para onde ele levou Jeb. Ergo-me, esperando ver paisagens do País das Maravilhas passando por baixo de nossa altura estratosférica. Em vez disso, um relâmpago ilumina a névoa à minha volta, revelando papai planando sobre sua montaria de borboleta pouco adiante. Estou rodeada por nuvens de tempestade, e não nos braços de Morfeu. Estou conduzindo uma monarca.

A tristeza me assola. Ultimamente, quando durmo, meus sonhos revivem momentos no País das Maravilhas com Morfeu, ou na garagem de Jeb, observando-o pintar e trabalhar nos motores, ou até fazendo biscoitos com a mamãe na cozinha. Um fio em comum une todos eles: acordar é uma ocorrência temerosa.

Seguro com mais força os pelos do tórax da borboleta quando nos precipitamos de uma nuvem e mergulhamos em outra. Minha visão se ajusta através de rajadas de chuva e da escuridão completa. As copas das árvores parecem mais próximas a cada relâmpago. Nossas borboletas estão descendo, o que significa que estamos prestes a chegar a Oxford e ter aquela conversa franca.

O que papai vai pensar quando descobrir que sou eu a responsável por todo este pesadelo?

O vento é muito forte e força nossas montarias a dar guinadas bruscas, balançando o cordão em meu ombro. A sacola de balé dá um tranco forte o suficiente para o diário bater contra minhas costelas.

Por um instante, me abandono ao sabor da chuva, de voar margeando as nuvens, acesas por descargas elétricas. Minhas tranças molhadas se debatem sobre meu rosto e meus ombros — movidas ora pela magia, ora pelo vento.

O diário dá um novo tranco contra minhas costelas. Não é a montaria nem o tempo que causam esse movimento agora. Os cordões se esticam com força contra a direção do vento. Alguma coisa despertou as memórias contidas nas páginas, deixou-as inquietas. Talvez, ao me aproximar de meu lado sombrio, eu tenha lembrado à Vermelha que as memórias são uma parte de mim agora, não importa a distância que eu crie entre nós. Afinal, a Vermelha já fez parte do meu corpo uma vez. E ela será, para sempre, uma parte do meu sangue.

Talvez até do meu coração.

Engalfinho-me com o cadarço para dominar o diário. A bolsa sacoleja e se solta, escorrega do meu ombro e mergulha na escuridão e na chuva, levando consigo nossa oportunidade de voltar ao tamanho normal e, ainda pior, minha vantagem sobre a Vermelha.

— Siga aquela bolsa! — exijo de minha montaria.

Não somos táxis, a monarca responde. Nós permanecemos na rota.

— Mas é por isso que você tem que recuperar a bolsa! — eu grito. — Para permanecer na rota!

A monarca ignora meu apelo. Um arroubo de ousadia ganha vida dentro de mim, algo que Morfeu sempre alimentou e que venho aperfeiçoando há um mês.

Com um puxão, abro os botões de pressão e tiro a camisa-vestido, deixando somente o collant aberto atrás. O cachecol em torno de meu pescoço protege a chave do diário pendurada nele.

Minha camisa descartada vai na direção de papai. Ela o atinge na nuca e ele olha para trás.

— O que está fazendo? — grita.

— Recuperando nossa única chance de salvar todo mundo. — Minhas asas se libertam. Solto um gemido de agonia quando, no ombro direito, a asa machucada se desfralda.

Sem arriscar olhar para papai, salto da borboleta. Sua antena bate na sola da minha bota quando eu desmonto, de braços abertos, carregada por uma corrente de vento.

O chapéu pula da minha cabeça, mas o cachecol permanece seguro, com as pontas esvoaçando com minhas tranças.

— Allie! — O grito desesperado de papai é cortado pelo som de um trovão.

Despenco pelo céu pontilhado pela chuva, o terror dando lugar ao êxtase. Minhas asas oferecem resistência e me desaceleram, mas são fracas demais para me levantar. O vento acrescenta outra barreira, golpeando-me feito um chicote. Sinto-me revigorada. Se existe uma coisa que ser coroada rainha no País das Maravilhas me ensinou é: o poder é impotente a menos que seja cultivado com riscos.

Isso, sim, é viver... uma queda livre para o desconhecido.

A chuva tamborila em mim, rodopiando. Faço força para abrir os olhos e curvar as asas para guinar na direção da bolsa que caiu. Ao ganhar impulso, consigo visualizá-la, embora ainda desfocada. Um instante antes de ultrapassá-la, agarro a bolsa e a enfio no peito de meu collant, contente por ter tomado a providência de amarrar o cordão antes de partirmos. Tudo continua lá dentro.

Um raio ilumina tudo à minha volta. Árvores gigantes vão ficando cada vez mais próximas, as folhas parecendo enganosamente macias. Mas o que aguarda no meio dos espaços — galhos pontudos e monstruosos — me rasgará inteira. Com o meu tamanho, sou como um inseto atingindo o para-brisa de um carro. Não sobrará nada de mim a não ser sangue e asas destroçadas.

Um instante antes de colidir com a árvore mais próxima, imagino que seus galhos se fundem uns nos outros, com o musgo macio e espesso se erguendo para revestir a copa, formando uma alfineteira gigante.

Com o impacto, todo o ar é expelido de meus pulmões. Escorrego para dentro da superfície acolchoada feito um alfinete atravessando o estofo de serragem. A força dobra o musgo e a folhagem em torno de mim até que o alto da minha cabeça emerge e bate no tronco escorregadio. Sinto uma dor aguda no crânio e na coluna, e tudo fica preto.


Quando recobro os sentidos, meus músculos e minha carne zunem com a sensação de estar sendo esticada. Alguma coisa ronrona em meu ouvido, e em seguida um rufar de asas e uma sensação de encostar em pelos macios, tudo muito familiar.

Chessie?

Não pode ser. Eu não o vi mais depois do incidente no ateliê de arte há um mês. Presumi que já tivesse retornado ao País das Maravilhas e estivesse preso lá, como a mamãe. Caso contrário, ele teria ido me visitar no sanatório.

Meus olhos não querem se abrir. Agito braços e pernas por baixo do aconchego das cobertas, esperando que minha cabeça vá latejar. Ouvi meu crânio estalar quando bateu naquela árvore. Em vez disso, sinto-me confortável, serena... até eufórica. Sinto uma comichão no tornozelo. Alguém uniu sua marca de nascença com a minha.

Talvez tenha sido Chessie.

Solto um grunhido.

— Ela está acordando. — É a voz de papai.

Meus cílios recusam-se a se abrir. Sinto um sabor amargo no fundo da língua e estalo os lábios.

— Eu não sabia se tinha dado o suficiente a ela. — Papai afaga meu cabelo carinhosamente.

— Beber chá de cogumelo é cinco vezes mais potente do que comê-los. — É a voz de um estranho: áspera, como se ele tivesse gargarejado com areia. — Ela vai precisar comer alguma coisa para neutralizar os efeitos. Creio que é melhor trazer algo aqui para que ela fique escondida. Nem todos os rejeitados são compreensivos como este camaradinha aqui. Na verdade, ele é o responsável por manter todos aqui durante essas semanas. A maioria queria encontrá-la para que ela consertasse os portais. Eles têm saudade do seu mundo e de seus pares.

Então, Chessie não foi me visitar no sanatório porque não queria conduzir nenhum intraterreno irritado até mim. Ele está mesmo aqui!

Forço os olhos a se abrirem.

O aroma de cera de vela derretida conforta minhas narinas, e o brilho suave do fogo faísca junto a uma parede sem janelas estofada com tecido azul-real e verde-floresta.

É um aposento privado. Estou em um sofá redondo e sem encosto repleto de almofadas com borlas coloridas. A decoração me lembra um circo — extravagante, mas estranhamente graciosa. Tapetes de pele de zebra guarnecem o teto abobadado. Com exceção dos candelabros, todo o resto é acolchoado, até o chão. O entorno é uma mistura da cela acolchoada do sanatório com o chalé da Irmã Um no País das Maravilhas.

Duas silhuetas ganham forma, paradas diante de mim.

O estranho parece ter a altura de meu pai. Há algo muito familiar nele, embora eu nunca o tenha visto antes.

Um manto marrom envolve seu vulto musculoso, e calças cáqui de camurça estão enfiadas em suas botas. Seu capuz enorme cai por sobre os ombros e as costas. Ele só precisa de uma aljava com flechas para ficar igualzinho a Robin Hood.

O cabelo escuro com fios grisalhos complementa seu cavanhaque e suas sobrancelhas cerradas. Olhos cor de âmbar me analisam.

— Finalmente, olá — ele diz carinhosamente.

Sinto uma comichão na ponta do nariz. Arrasto uma mão de debaixo das cobertas para cobrir o espirro iminente. Solto um som agudo e meu nariz encolhe e fica do tamanho de uma ervilha.

— Ah, está tendo uma ligeira reação ao chá, não é? — o estranho fala.

— Ligeira? — Minha voz parece mais a de um pato por causa do nariz minúsculo. Livro-me das cobertas e esforço-me para ficar de pé.

Papai senta-se ao meu lado na borda da almofada.

— Vai ficar tudo bem, Allie. Aguarde só um segundo. — Mesmo sua expressão calma não consegue tranquilizar meus nervos. Mais um espirro irrompe de mim, e meu nariz retoma o tamanho normal, mas a mão direita começa a inflar até ficar do tamanho de uma bola de basquete.

Engulo em seco.

— O queixo é igual ao seu — o estranho diz, alheio à minha deformidade espontânea. — Mas as asas e os olhos...

— São da mãe — papai declara com orgulho, como se também estivesse cego para o que está acontecendo.

Talvez a reação seja que estou tendo alucinações. Tento erguer a mão inchada, mas ela fica parada ao meu lado feito um pedregulho. Fecho a mão e a sacudo. Ela esmurra papai no estômago e ele cai do sofá, pousando sobre uma pilha de almofadas.

Nada disso. Não estou alucinando.

Mais um espirro me acomete. Quando ele para, eu suspiro, aliviada ao ver que minha mão está normal e todas as outras partes do corpo também.

O estranho ajuda papai a se levantar. Papai espana as calças de flanela e os dois olham para mim com seus olhos castanhos arregalados — como se eu fosse um experimento científico.

Levo a mão ao topo da cabeça, a única parte de mim que não consigo ver.

— Ah, não. Minha cabeça está do tamanho de um balão, não está?

O estranho dá uma gargalhada.

— Que nada, menina. — Ele dá um tapinha nas costas de papai. — Ela certamente herdou o senso de humor dos Skeffingtons, hein?

Chessie aparece flutuando no ar com um sorriso maroto. Fico tão contente em vê-lo que grito seu nome.

A pequenina bolsa de balé da Barbie está pendurada no pescoço dele e tem um buraco enorme no fundo. Os cogumelos sumiram. Mas felizmente o contorno do diário ainda deforma o tecido acetinado por dentro. As memórias mágicas da Vermelha sobreviveram.

Toco minha clavícula e encontro o colar ainda no lugar, embora a chave esteja do tamanho de uma chave normal, depois de ter crescido comigo. Como o diário ainda está do tamanho de um brinquedo, ela deve ter caído de dentro de meu collant antes de eu beber o chá. Talvez seja melhor que o diário continue pequeno. Será mais fácil de manusear se as emoções se rebelarem novamente.

Chessie desenrosca a cabeça e ela rola na minha direção pelo chão, com o cadarço da bolsa enrolado no crânio. Um riso bobo escapa dele enquanto seu corpo decapitado começa a persegui-la.

Papai e o estranho dão um risinho irônico.

Como é que meu pai pode ficar tão à vontade em meio a tantas coisas bizarras? E o estranho também? Os dois estão dando o mesmo sorriso pateta à la Elvis.

Na verdade, eles se parecem tanto que poderiam ser...

Minhas pernas começam a ficar agitadas. As cores brilhantes do aposento me desorientam.

— Papai? Esse homem é...?

— Ah, me desculpe, borboleta. — Papai volta a sentar-se ao meu lado e envolve minha cintura com o braço para evitar amassar minhas asas. — Esse é o Bernard.

— Pode me chamar de tio Bernie — o homem complementa.

O nariz de Chessie bate em minha bota de plástico e para. Puxo o cadarço da bolsa de balé e a cabeça dele sai girando feito um pião. Quando seguro o diário entre os dedos, as palavras do estranho repicam em minha mente: tio Bernie.

Um sorriso se forma em meu rosto. Há uma compreensão em seus olhos, uma afeição incondicional que não fiz nada para conquistar a não ser ter nascido.

— Vocês são irmãos.

O sorriso de Bernie fica mais largo.

— Somos, sim. É um prazer conhecê-la, enfim. — Ele coloca a mão no ombro de papai. — A nossa família... vai ficar eufórica. Já tínhamos perdido a esperança.

Um som esganiçado que não reconheço irrompe de minha garganta.

— Ela precisa tomar água — papai diz ao irmão.

Seu irmão.

Tio Bernie concorda e promete voltar logo. Olho para suas costas — mais largas que as de papai —, enquanto ele sai do quarto e entra em um corredor acolchoado repleto de portas estofadas parecidas com a porta do cômodo em que estamos.

Chessie atarraxa a cabeça de volta, tremula as asas e segue meu tio antes que eu possa agradecer-lhe por me curar e cuidar de meu diário.

A porta se fecha, deixando papai e eu a sós com nada além do crepitar das velas acesas. Ainda posso ver as linhas de preocupação em sua testa, ali gravadas pela ausência de mamãe e Jeb nas últimas semanas. Mas há certa felicidade atenuando as rugas que lhe contornam os olhos.

Toda a minha vida eu pensei que não tivéssemos mais nenhuma família. Então, no ano passado, soube que mamãe e eu tínhamos parentesco com as criaturas mágicas do País das Maravilhas. Agora, tenho um tio. Um tio humano que parece o Príncipe dos Ladrões.

Devo ter outros parentes também. Primos e tias, talvez até avós.

O que significa que papai tem sobrinhos e sobrinhas. Parentes dele...

— Quando vamos conhecê-los? — pergunto, sem saber se ele vai entender a quem estou me referindo.

— Minha mãe e meu pai morreram. — Um pesar ecoa em sua voz, e torna-se meu também. — Mas tenho duas irmãs, e elas têm filhos. Assim como Bernard e a esposa dele. Vamos conhecê-los depois que encontrarmos sua mãe e Jeb. Exceto pelos intraterrenos que passam por aqui, somente membros da Ordem do Espelho podem dormir nesta estalagem. Meus irmãos, tios, primos e sobrinhos. As mulheres e as crianças mais jovens ficam em algum lugar em Oxford.

Fico olhando para ele, estupefata.

Papai pega minhas duas mãos.

— Somos descendentes da mesma linhagem de Charles Dodgson. Depois que ele descobriu o caminho para o País das Maravilhas, e depois que Alice encontrou a saída da toca do coelho...

— Espere — eu interrompo. — Foi Charles quem descobriu o caminho para o País das Maravilhas? Eu achava que Alice havia contado a ele sobre a toca do coelho. Que tinha sido ela quem havia inspirado a narrativa de ficção. Está me dizendo que ele sabia que o lugar era real?

Papai encolhe os ombros.

— A única história que nós recordamos é que os homens de nossa família foram chamados por Charles para guardar os portões de Qualquer Outro Lugar. Para serem nomeados cavaleiros. Os trabalhos publicados dele ajudam a nos financiar. Tem sido nossa tarefa por mais de um século. Os meninos são testados quando têm sete anos de idade. Normalmente, um dos filhos nasce com o gene. Meu irmão e eu fomos a exceção. Nós dois o tínhamos.

— Que gene?

— Uma segunda visão, como a que Charles tinha. Uma habilidade de ver os pontos fracos na barreira entre o reino interior e o nosso mundo. Tem a ver com espelhos infinitos.

Os únicos espelhos infinitos de que tenho conhecimento estão em parques de diversões. Engulo em seco, imaginando como uma diversão tão infantil poderia ser a porta de entrada para um lugar terrível como o mundo do espelho. Mas, pensando bem, até que combina, considerando que o País das Maravilhas é construído sobre os sonhos das crianças, a imaginação e os pesadelos — considerando que essas coisas são o seu alicerce.

— Então... você tinha essa habilidade? — eu pergunto.

— Tenho — papai corrige. — Eu esqueci, depois que minhas memórias foram apagadas. Mas agora está tudo voltando. Fui capturado pela criatura aranha alguns meses depois de começar a treinar para ser um cavaleiro Branco.

Meu queixo literalmente cai. Eu deveria estar maravilhada imaginando-o como um cavaleiro, mas há certa tristeza em sua voz. Eu me inclino e o abraço. Ele passa os braços em torno de mim, com cuidado para não amassar minhas asas.

Ele lamenta ter perdido a vida que nasceu para ter. Assim como mamãe perdeu a dela.

Meu nascimento e toda a minha existência aconteceram à custa de suas vocações nobres e reais. Sem mencionar a mancha negra sobre as paisagens que já foram lindamente bizarras do País das Maravilhas e agora murcham por minha causa.

— Sinto muito — eu digo, desejando poder apagar todos os meus erros com um pedido de desculpas. Mas não é possível.

Penso no minúsculo diário dentro da bolsa de balé. Os arrependimentos da Vermelha eram tão agudos que ela os rejeitou, abandonando as memórias que os causavam. Mas não existe uma “poção do esquecimento” que eu possa tomar. E, mesmo que houvesse, não a tomaria. Nada pode ser apagado se quero consertar as coisas para todo mundo. E vou fazer isso, não importa quanto me custe no fim.

 

 

5


Ovos Beneditinos

— Não lamente. — Sinto o hálito morno de papai no alto da minha cabeça. — É claro que queria ter conhecido meus parentes. Mas não mudaria mais nada. Se eu fosse um cavaleiro Branco, nunca teria conhecido sua mãe. Você não teria nascido. E, só para deixar claro, não trocaria minhas meninas por nada de mundo algum. — Ele me estala um beijo na cabeça.

Aconchego-me, fazendo esforço para a voz sair firme.

— Obrigada, papai — eu sussurro, sentindo-me reconfortada pelo cheiro de giz de cera em sua camiseta. Mesmo que ele consiga aceitar a guinada em seu passado, eu não consigo aceitar a que acontece no presente.

— O.k. — A voz dele retoma o tom grave e firme enquanto me afasta. — Deixe-me olhar você. — Ele franze a testa enquanto passa o dedo no alto da minha cabeça. — Aquele truque de cura funcionou mesmo. Você sangrou tanto que pensei que tinha sofrido uma concussão.

Ele deve ter ficado bem assustado ao me ver penetrar na tempestade e bater na árvore.

— Como você sabia que eu podia ser curada?

— Eu não sabia. Queria levar você a um hospital, mas estávamos muito pequenos e os cogumelos tinham desaparecido. — Ele retesa a mandíbula. — Pedi às borboletas que nos trouxessem até aqui. Eu esperava que elas compreendessem e que alguém na estalagem soubesse o que fazer.

Deve ter sido aterrorizante sentir-se tão impotente, ir contra a lógica e deixar-se levar pela fé no insensato. Papai tem mais coragem do que mamãe, e jamais imaginamos isso.

Aperto seus braços.

— Você foi demais.

— Aquele gato-pássaro foi fantástico. — Papai abre minhas mãos e sente as cicatrizes. — Era isso que a sua mãe estava tentando fazer quando você era pequena e ela machucou suas mãos. Por isso é que ela vivia dizendo que podia consertar você. Ela queria curar você. E eu a afastei. — Seus olhos cheios d’água encontram os meus. — Sinto muito, Allie.

— Você não sabia. Nós nunca contamos.

Ele franze a testa e a encosta na minha.

— Bom, você pode se redimir. Para começar, nunca mais quero ver você se atirando no céu novamente.

Sorrio para ele através das lágrimas.

— Ora, eu tenho asas.

Ele se inclina para trás.

— Sim, e elas são lindas. Mas não estavam funcionando muito bem. — Ele olha sobre meus ombros para a sombra que as finas asas lançam sobre o sofá. — Embora pareçam mais fortes do que foram naquela hora.

Agito-as. Não sinto dor. Até a da direita está forte. A mistura de Chessie deve ter curado mais do que a minha cabeça.

Agora vou poder voar, bem na hora de ir para Qualquer Outro Lugar.

Papai deve ver os pensamentos em meu rosto, pois segura meu queixo de novo.

— Você não é indestrutível, mesmo que tenha habilidades que as outras garotas não têm. Nada de se arriscar sem necessidade. Está bem?

Assinto com a cabeça para tranquilizá-lo. Ele não entende quanto é necessário me arriscar para consertar as coisas. E, o pior, não entende que estou começando a gostar disso.

— O que mais? — pergunto, para mudar de assunto.

Ele deixa a mão cair sobre o joelho.

— O quê?

— Você disse “para começar”. Quer dizer que tem mais.

As rugas de preocupação reaparecem em sua testa.

— Certo. É hora de você me contar a verdade. Toda ela.

Meu estômago se aperta em um nó.

— São muitos anos para recapitular. Por onde começo?

— Desde o comecinho. A história da sua mãe. Como Jeb se envolveu. Ele sabe o que você é? E aquela criatura com asas que me carregou para fora do portal do País das Maravilhas. Qual é o papel dela?

— Nossa, papai. Isso é só o comecinho?

— Isso mesmo.

— Um comecinho enorme, pelo jeito — eu brinco.

Seu sorriso me encoraja e conto tudo a ele. Desde o momento em que ouvi pela primeira vez uma abelha e uma flor discutirem na enfermaria na quinta série até o sonho com Alice no País das Maravilhas aquela noite, e sobre o último verão, quando Jeb e eu entramos pela toca do coelho e fui coroada Rainha Vermelha depois de descobrir de quem mamãe e eu descendíamos.

Vejo o rosto de meu pai empalidecer, mas continuo. Afinal, ele tem de saber sobre mamãe, como ela própria quis ser rainha e desistiu de tudo por ele. E de como Jeb sofreu lavagem cerebral, esquecendo-se do que passamos no País das Maravilhas, mas, assim que lembrou, lutou por mim e pelos humanos na festa de formatura. E é por isso que ele está no mundo do espelho agora.

— Ah, não. Lá, não. — A expressão de papai se enche de pavor. — Fui tão duro com ele... quando ele disse que tinha escondido você depois daquele incidente na escola. Ele só estava tentando proteger os seus segredos.

— Está tudo bem. Ele sabia que você não teve intenção de magoá-lo.

Papai balança a cabeça.

— Ele sempre foi como um filho para mim. Quando nos encontrarmos, vou me acertar com ele. Prometo.

— Sei disso, papai. — Gosto que ele diga quando, e não se. — Também preciso me acertar com ele. — Apesar de minhas falhas o terem ferido bem mais profundamente.

Respiro, trêmula, antes de confessar o resto: o papel de Morfeu em tudo aquilo. Como ele ajudou mamãe a encontrar um jeito de ganhar a coroa, mas foi traído quando ela escolheu papai à sua missão. E de como essa traição fez Morfeu visitar meus sonhos de criança e se tornar ele próprio criança para me atrair até o País das Maravilhas sem me dizer por que eu estava ali.

Uma sombra percorre o semblante de papai — uma severa desconfiança escurece suas feições. Igual a Jeb, quando o nome de Morfeu é mencionado.

Papai abre a boca para falar, mas o interrompo.

— Antes que o condene, você precisa saber que ele salvou minha vida no País das Maravilhas. E também a salvou aqui, no reino humano. Na verdade, salvou o Jeb. Ele não é de todo ruim, papai. Ele é...

Glória e reprovação — a luz do sol e as sombras —, o escapulir de um escorpião e a melodia de um rouxinol. A descrição que a Irmã Um fez dele nunca pareceu tão perfeita. A respiração do mar e a canhonada de uma tempestade. Pode falar essas coisas com sua língua?

Não. Não posso.

— Ele é o quê, Allie? — papai pergunta.

— É maligno. É perigoso. E está longe de ser confiável. Mas é fiel a mim e ao País das Maravilhas. Por isso é meu amigo. — Paro antes que o resto escape: ele se alojou na metade intraterrena de meu coração, por mais que eu tentasse negar-lhe acesso.

— Como pode dizer isso? — papai pressiona. — Depois de toda a tristeza que ele causou à nossa família?

— Porque não seríamos uma família se ele não tivesse retirado você do País das Maravilhas e mantido sua identidade em segredo por todos esses anos. Ele não precisava ter feito isso.

O desagrado de papai se intensifica.

— Não estou bem certo se concordo com seus argumentos.

— Não há argumentos quando se trata de Morfeu. Tem que aceitá-lo como é.

— Bem, eu não o aceito. Foi ele quem provocou tudo isso. É ele o culpado por sua mãe e o Jeb estarem em...

— Está enganado — interrompo-o e sou tomada pela vergonha de minha confissão. — Fui eu quem começou tudo.

— Allie, não. O que entendi foi que, de algum modo, você contribuiu para o soterramento da toca do coelho. Mas sei que foi por acidente.

— É mais do que isso. — Espremo as palavras entre os dentes. — Eu libertei a Rainha Vermelha, mas tive medo de encará-la. Não consegui voltar ao País das Maravilhas, então ela veio ao nosso mundo. E, agora, mamãe, Jeb e Morfeu são todos vítimas da minha covardia.

A justa indignação no rosto de meu pai desaparece. Uma batida na porta nos sobressalta e estremecemos. Tio Bernie entra com a água que prometera.

— Hora errada? — ele pergunta.

Papai faz um gesto para que entre, e pego o copo. O líquido desliza por minha garganta, fresco e limpo, embora não consiga acalmar o estômago. Ainda não contei a papai a pior parte. Como libertei um poder no baile de formatura que fez com que mamãe fosse tragada pela toca do coelho antes que ela desabasse.

— Você não parece muito bem — tio Bernie diz, colocando a mão em minha testa. — Sem dúvida ainda é efeito do chá de cogumelo.

Sua explicação paira no ar, embora eu e papai saibamos que é muito mais do que isso. Preocupo-me com o pequeno diário. Tirando o cordão da bolsa de balé rasgada, passo-o pelo fecho do livro, formando um colar. Enfio-o pela cabeça de modo que o diário esteja ao lado da chave, que é três vezes maior. Terei de redimensionar um ou o outro quando chegar a hora de abrir as páginas e libertar a magia da memória volátil sobre a Vermelha quando ela menos esperar.

— Vocês precisam comer alguma coisa — Bernie sugere. — E a sala de jantar está quase vazia agora, então ela estará em segurança.

Meu tio sai do quarto e papai me olha incisivamente.

— Vá tomar um banho primeiro. Terminaremos nossa conversa no jantar.


A sala de jantar tem o estilo espalhafatoso e colorido dos outros cômodos, com o detalhe adicional dos conjuntos de mesa e cadeira almofadados e do aroma de comida. Só uma mesa está ocupada, e os hóspedes são intraterrenos.

Eles olham fixamente para o piso alguns metros abaixo do restaurante, onde quatro cavaleiros humanos lutam com espadas. Isso me faz lembrar os jantares animados por encenações de duelos no reino humano, à moda de Las Vegas.

Um dos grupos de cavaleiros veste túnica vermelha por baixo da manta de malha de ferro, e o outro está de branco. Cada dupla consiste em um homem mais velho e um garoto com idade entre oito e doze anos. O cavaleiro mais velho no grupo de branco é tio Bernie. Os garotos lutam enquanto os mais velhos os instruem. As espadas envergam e soltam cinzas que sobem pelo ar, às vezes quase os encobrindo.

— Então, jantar com direito a show? — cochicho com papai.

— Estão usando floretes... espadas flexíveis com pontas arredondadas — ele fala enquanto assiste ao acontecimento no ringue com olhar distante. — É parte do treinamento de nossa concentração fazer com que atuemos na frente dos clientes desde jovens. Temos que manter a cabeça fria e ao mesmo tempo estar conscientes dos que nos olham e do aroma de comida... do som das vozes. Não podemos nos distrair.

— E as cinzas?

— As cinzas cobrem boa parte da terra de Qualquer Outro Lugar. Então, aprendemos a nos mover sem escorregar ou deixar que nos atrapalhem. — Ele me dá um beijo na testa e indica uma mesa vazia no canto. — Peça alguma coisa. Vou dar um alô.

Ele segue pelas escadas de pedra na direção de seus parentes. Nossos parentes.

Os cavaleiros deixam de lado as espadas e adagas à medida que ele se aproxima. Ele se junta aos de branco, pois veste a mesma túnica e calças de camurça marrons.

Olho para minha túnica vermelha. A segunda pele que uso por baixo das calças, embora longe de ser de renda como gostaria, é macia ao toque sobre a pele limpa depois do banho. Devem ter me dado um tamanho de menino, porque serviu direitinho. E, o melhor, as costuras do ombro têm um rasgo para encaixarem minhas asas. Ainda estou com as botas da Barbie, o único sapato que me serve.

Minha aparência por fora é tão descombinada quanto me sinto por dentro. Os parentes de papai acenam para mim, indiferentes às marcas em meus olhos e às minhas asas.

Aceno de volta, mais tímida do que desejaria.

Todos se voltam para papai, que coloca um manto de malha de ferro. Ele pega a espada que lhe oferecem e se dirige ao meio do ringue com o irmão. Cumprimentam-se; em um piscar de olhos, estão lutando. Cinzas esvoaçam em torno, a cada golpe e desvio.

Papai parece pouco à vontade, os movimentos desengonçados e desequilibrados. É derrubado e levado ao chão pela espada de Bernard algumas vezes. De repente, é como se algo se acendesse. Seus golpes com a espada tornam-se fluidos e naturais. Os dedos, pulsos, corpo e braços ganham a cadência graciosa de uma valsa. O estalar das espadas reverbera no ar. Foi bom ele ter se mantido em forma jogando tênis e correndo, do contrário nunca teria resistência para isso.

As epifanias e os eventos das últimas vinte e quatro horas começam a me inquietar. Alcanço a mesa que papai tinha indicado e me sento. Os hóspedes intraterrenos que avistei ainda não perceberam minha presença.

Um é uma criatura reptiliana. O outro tem rosto de macaco e é peludo. O lagarto parece ter cabeça e mãos flutuantes. A memória da Rainha Vermelha acerca de Bill, o Lagarto, vem à tona — com detalhes frios e distantes. O corpo do lagarto pareceu sumir quando suas roupas adquiriram a cor das folhas à sua volta. Era como se, em vez dele, as vestes é que fossem camaleônicas.

Será que é Bill? Se for, meu reino está mais em perigo do que eu imaginava. Grenadine, a meia-irmã amnésica e minha substituta temporária como rainha, não tem sangue real nem uma magia pulsante como a minha. Ela ficará inevitavelmente perdida se o lagarto não a cobrir de lembretes. Ao aprisionar Bill aqui, tornei as coisas ainda piores.

— Fique sabendo que é uma ilusão de óptica.

Em pé ao meu lado está uma criatura branca e oval. Partes do corpo ovoide são recobertas de miçangas coloridas e fitas brilhantes grudadas no lugar. Parece um ovo Fabergé gigante que escapou de um museu.

Ele coloca um copo de água e um cesto com pãezinhos fumegantes sobre a mesa e me passa o cardápio.

— Meu cliente que você está encarando. A roupa dele tem um capuz e é feita de seda simulacro. É confeccionada por vermes telepáticos encantados. Fica transparente quando sobreposta a outras roupas. Conecta-se com a mente de quem a veste e reflete o que está em volta. Quem observa tem a ilusão de ver apenas as partes do corpo descobertas. Engana, não é? Você nem imagina o quanto é útil.

Seus olhos amarelo-gema, o nariz vermelho e a boca larga me lembram tanto o homem-ovo do País das Maravilhas que deixo escapar seu nome:

— Humphrey?

— Dificilmente — ele responde mal-humorado. — O nome é Hubert. Ninguém lhe ensinou como se apresentar às pessoas?

Uau. Até a voz é de Humphrey. Eu estreito os olhos.

— Hum...

— Bem, você vai ficar sentada aí à toa ou vai pedir alguma coisa? — Um de seus braços de louva-a-deus ajeita a gola debaixo do pescoço, enquanto o outro equilibra a bandeja com bloquinho e caneta à espera de minha resposta.

— Você é irmão dele, não é? — pergunto, afastando o cardápio. O cheirinho de pão fresco é irresistível e cravo os dentes em um.

As bochechas de Hubert ruborizam.

— Ah, entendi. Basta termos a mesma forma e cor que somos parentes, não é isso? Sou só um ovo com outro nome e pronto.

— Na verdade, não. É que você trabalha aqui e o lugar tem o nome dele. — Dou outra mordida no pão. — Pensei que era um negócio de família.

— Em primeiro lugar, pediria a você que não falasse com a boca cheia de pão. E, em segundo lugar, se você olhar no menu, o nome da estalagem é “Humphrey e Hubert”. Séculos de clientes com preguiça de falar o abreviaram. Mas está bem aqui, e preste atenção para não fazer isso também.

— Então vocês são sócios.

— Éramos.

Eu me retraio.

— Desculpe, só pensei que...

— Shhh. Sei tudo sobre você e seus pensamentos nefastos. — Ele agita os bracinhos. — Foi você quem tampou a toca do coelho.

Agora são minhas bochechas que ruborizam, ao mesmo tempo em que o pão forma um pedaço grande demais para engolir.

— F-f-foi um acidente.

— Um acidente. — O rubor das bochechas de Hubert se espalha por todo o rosto e o corpo. Penso que ele vai explodir, lançando as miçangas do corpo às paredes, ricocheteando como projéteis. — Um acidente como aquele que quebrou a casca de Humphrey e fez com que ele fosse expulso para o jardim das almas? Um acidente desse tipo?

Espetando a ponta do garfo no cesto de pães, eu franzo a testa.

— Bem, sim. Ele caiu do muro. E depois tropeçou na cabeça de Chessie.

— Empurrado. Ele foi empurrado de cima do muro por sua tataravó. Tudo para que Humphrey caísse por cima do Rábido Branco. Tudo para que suas entranhas cozinhassem a carne daquele pobrezinho. E a corroesse para a Rainha Vermelha poder “salvá-lo”.

Balanço a cabeça.

— O que aconteceu ao Rábido foi um feitiço maligno...

— Ah, foi maligno. Mas não foi um feitiço. Nossas entranhas são como ácido. A não ser que você possua a poção curativa. O que, é óbvio, a Vermelha tinha à mão, por uma grande conveniência. — Ele bufa. — Por que você acha que Humphrey estava sob a proteção da Irmã Um no cemitério? Somente por causa de sua alma? Ele tinha tantas rachaduras após cair duas vezes que não podia mais ser remendado. Ele estava em perigo. É por isso que tudo aqui é acolchoado. Para que eu não exponha meus clientes ao mesmo destino.

A aparência de ovo Fabergé de Hubert faz sentido agora. Ele se remendou. Ao menor sinal de rachadura, ele gruda algo no lugar.

— Mas isso não tem lógica — eu digo, apesar de saber que no País das Maravilhas isso é o que menos existe. — A Vermelha planejando um acidente só para ter o Rábido nas mãos? Alguém com todo aquele poder teria súditos atendendo aos seus desejos por toda parte.

Um vozerio alto vem do andar de baixo. Dou uma olhada e vejo papai ajudando seu irmão a se levantar. Os outros cavaleiros se reúnem em volta de papai, parabenizando-o. Estão todos rindo e felizes, até tio Bernie.

Hubert empurra o cardápio em direção à minha mão.

— Parece que você sabe bastante sobre o que aconteceu com a Rainha Vermelha — retruco, encarando-o.

Ele debocha.

— Ouvi da própria fonte. Sua tataravó visitou minha estalagem. O compatriota dela, o Rábido, veio com ela. Ele me contou a história de como o salvou. Mas eu já sabia da verdade, porque Humphrey tinha me contado que ela o empurrou.

— Você está dizendo que a Vermelha esteve aqui. No reino dos humanos. Quer dizer, depois que ela foi banida do País das Maravilhas? — Antes mesmo de a pergunta deixar meus lábios, sei que não pode ser isso. A Vermelha estaria usando sua forma de Alice se fosse depois da expulsão, vivendo como uma menininha humana.

— Ela esteve aqui enquanto ainda reinava — Hubert corrige. — Muito antes daquela trapalhona da Alice se enfiar na toca do coelho e provocar toda aquela desordem e a queda da Vermelha.

Minha boca seca. Tomo um gole de água.

— Por que a Vermelha teria vindo ao reino humano antes do incidente de Alice?

— Você é lerda? Ela veio porque estava solitária. Seu marido a traía. Parecia que ela esqueceu a si mesma depois disso, e também a bondade que a família real lhe incutira. Esqueceu até como fazer amigos entre os de sua própria espécie.

As memórias insatisfeitas e repudiadas da Vermelha obscurecem meus pensamentos. Hubert não faz ideia do quanto está certo sobre o esquecimento dela, nem de que ele aconteceu deliberadamente.

— O único jeito que ela tinha de saber se alguém era leal — o ovo continua — era se a pessoa estivesse em dívida com ela. Pelo visto, esse é o único jeito de alguém da sua linhagem garantir devoção. Assim como você fez ao tampar a toca do coelho. Agora todos nós dependemos de você abrir um caminho de volta, já que não podemos reduzi-la ao tamanho de um inseto e esmagá-la sob nossos sapatos como gostaríamos.

A voz de Hubert ecoa, estridente. A criatura lagarto e seu companheiro peludo voltam os olhares em nossa direção. Ao me verem, fazem caretas.

— Não sou como a Vermelha — protesto, surpresa com a raiva por trás das palavras.

Embora seja verdade que, tecnicamente, maltratei o besouro de tapete para conseguir o que queria... e forcei meu pai a comer um cogumelo e a voar em uma borboleta até Londres. Mas foi por um bem maior.

Cerro os dentes.

— Não sou tirana como ela. Sou apenas... determinada.

— Igualzinha a ela. Determinada a melhorar nosso mundo. Ela chegou a ponto de estudar os humanos, como se fossem melhores do que nós. Como se fossem algo a que devêssemos aspirar. — O homem-ovo olha sobre meus ombros. — Essas asas não são a única prova de sua linhagem. Você é uma traidora, enviando-nos rio acima para que você pudesse salvar sua insignificante metade mortal. Você não é nada além de uma...

— Beneditinos — interrompo, falando entre os dentes.

Hubert estreita os olhos — curiosos e cheios de raiva.

— Ovos beneditinos. — Aponto a figura no cardápio. — Ovos poché. Bacon canadense. Molho holandês e um muffin. E uma fruta de acompanhamento.

Ele apanha o cardápio e rabisca meu pedido no bloquinho.

— E, só para registro — acrescento, voltando-me para os intraterrenos que me encaram —, estou aqui para reabrir os portais e a toca do coelho. Os momirratos me entenderam mal e bloquearam tudo. — Estremeço ligeiramente ao imaginar as criaturas fantasmagóricas pavorosas e seus lamentos lancinantes. — Vou reverter tudo isso. Estou aqui para melhorar as coisas.

— É claro — Hubert bufa com desdém. — Assim como a Vermelha ia fazer um País das Maravilhas melhor. Mas ela tinha uma ideia meio distorcida do que era melhor. Ela até se deixou influenciar por um humano e revelou coisas que seria melhor manter em segredo.

Uma intuição forte atravessa minha mente.

— Que humano?

— O nome dele era Dodgson. Conhecido pelos seus como aquele autor... Lewis Carroll.

Aperto as costas contra a cadeira e encaro Hubert, incrédula.

— Você está tentando me dizer que a Rainha Vermelha conhecia Lewis Carroll. Pessoalmente. Antes mesmo que Alice Liddell encontrasse a passagem para o País das Maravilhas?

O olhar amarelado de Hubert se escurece como gemas ressequidas.

— Pelo que ouvi, a Vermelha disfarçou-se sob o glamour de um professor e fez amizade com Dodgson em uma universidade conceituada aqui em Oxford. Eles travaram embates filosóficos intermináveis sobre um reino mágico e sobre onde haveria uma entrada. A Vermelha ajudou Dodgson a elaborar uma fórmula matemática para encontrar a latitude e a longitude dessa entrada. Foi assim que Dodgson descobriu esta estalagem. Talvez você devesse questionar o Rábido, visto que ele faz parte disso tudo e é o seu conselheiro real agora. — O homem-ovo cobre a boca e dá um tapinha nos lábios. — Ah, espere. Ele está preso no País das Maravilhas, de onde não há saída, graças a você. Portanto, você nunca saberá.

Ele se retira, balançando os bracinhos de louva-a-deus e deixando-me intrigada.

Não permito que a culpa ressurja desta vez. Estou firme quanto ao meu novo propósito. A explicação de Hubert confirma a alegação de papai de que Charles sabia sobre a entrada para o País das Maravilhas antes de Alice cair na toca do coelho. Mas por que a Vermelha plantaria a possibilidade de tal local na mente de Charles Dodgson, para começo de conversa? Por que ela quereria que ele descobrisse o País das Maravilhas?

A voz de papai interrompe meus pensamentos e olho para cima. Ele está de volta ao restaurante. Hubert está de pé entre ele e tio Bernie. O homem-ovo escreve em seu bloquinho, anotando o pedido de papai. Quando o dono da hospedaria se encaminha para a cozinha, papai dá um tapinha nas costas do irmão. Eles se separam, tio Bernie volta ao ringue e papai vem em minha direção.

Brinco com o garfo na mesa, pensativa. A luz suave da vela se reflete nos dentes do garfo, enquanto tento entender a história com Charles Dodgson.

— Em que você está pensando? — Papai puxa delicadamente uma de minhas tranças.

— Em nada. — Até que essa informação faça sentido, acho que não vale a pena compartilhá-la.

Papai deixa-se cair na cadeira e toca com o polegar a covinha de seu queixo, como se ponderando se insiste ou não no assunto.

— Você foi demais, lá — digo para distraí-lo.

Ele sorri e enxuga um pouco o suor do rosto com o guardanapo.

— Veio tudo à tona de novo. Como andar de bicicleta. — Faz um gesto em direção à cozinha. — O homem-ovo está acelerando nossa refeição. Temos que partir em uma hora. — Olha de relance para os hóspedes intraterrenos que deixam o salão.

— Certo. Qual é o plano? — Empurro o cesto de pães para papai.

Ele dá uma mordida em um pão.

— Esta noite é a troca de guarda. Bernard vai entrar. Ele pode nos garantir a entrada pelos espelhos infinitos, porque eu posso estar enferrujado e não conseguir localizar o portal. Mas ainda assim temos que passar pelo portão. — As rugas de preocupação na testa dele indicam que há mais alguma coisa.

— O tio Bernie disse o que pode acontecer se formos pegos? — arrisco, deixando a parte do viraremos mutantes subentendida.

Papai olha para baixo.

— Não foi preciso. Eu me lembro.

Retraio-me. Com certeza ele testemunhou algo ou alguém ser rejeitado pelo espelho. Sinto formigar a pele por baixo de minha túnica e passo para ele o copo cheio de água.

Papai dá vários goles.

— Se você estiver preocupada com mutações, saiba que isso só é perigoso onde a passagem se conecta com a floresta tulgey. É o que acontece quando se é engolido e depois cuspido pela garganta de uma árvore tulgey, e só é danoso para os que têm magia no sangue. Humanos são imunes. — Um sulco de preocupação se acentua em seu rosto quando se dá conta de que a imunidade não se aplica a mim.

— Tudo bem, papai. — Toco sua mão. — Só precisaremos passar por esse portão quando formos sair de Qualquer Outro Lugar.

— E então estaremos fazendo o caminho inverso, e você estará a salvo.

Eu não deveria me surpreender com a complexidade das regras. Nada no País das Maravilhas é simples.

— Agora, sobre o portão que leva ao mundo humano. — Ele bate os dedos no copo. — Ele tem um olho. Minha família fez um trato com esse olho, um século atrás. O combinado é que ele deixará dois guardas entrarem e dois saírem em cada troca. Bernard e meu primo Philip são os dois cavaleiros que entram. Eles têm que nos colocar para dentro com eles. Se o portão os pega, mata todos nós.

Meu corpo inteiro se enrijece. Legal. Não coloco em perigo só aqueles que amo e todos os ocupantes do País das Maravilhas, como também o tio que conheço há apenas duas horas e um primo de segundo grau que nunca conheci. Parece não fazer sentido.

— Se o portão é tão formidável, por que precisa de cavaleiros? Por que vocês têm que correr esse perigo?

Papai dá outro gole da água.

— Antigamente havia dois olhos, um que olhava quem entrava e outro que vigiava quem tentasse sair. Mas os olhos disputavam o poder em vez de trabalharem juntos. O que estava para fora conseguiu matar o de dentro sem se dar conta de que deixaria um ponto cego lá. E é aí que nós entramos. Monitoramos o mundo do espelho para que ninguém escape.

Levanto as sobrancelhas. É incrível como os humanos têm vivido lado a lado com o mundo mágico sem que a maioria não tenha a mínima ideia de que ele existe.

— Só mais uma coisa — papai acrescenta. — Meu irmão diz que, pela primeira vez, tem alguém em Qualquer Outro Lugar exercendo magia apesar da cúpula de ferro. Isso tornou a troca de guardas complicada no mês passado. Normalmente, eles se revezam a cada duas semanas. Mas o único contato que tivemos com os cavaleiros que estão no portão do País das Maravilhas foi por mensagens via pombos mecânicos. Os guardas sempre levam suprimentos extras por precaução, mas eles estão se esgotando. Seja quem for que estiver exercendo essa magia, tem poder suficiente para abalar as terras e confundir as coisas. Essas encenações não são muito bem-vistas. Os prisioneiros estão zangados e com inveja. Podemos estar entrando em uma zona de batalha.

Meus ombros ficam tensos. Apesar de não ser a primeira vez que penetro na instabilidade de outro mundo, essas informações me pegam de surpresa.

— Pensei que só eu poderia usar magia lá.

— Sim. Eu também pensei. — Papai coloca um pedaço de pão na boca e mastiga, enquanto vestígios irreprimíveis de medo atravessam seu semblante como nuvens carregadas.

— E se for a Vermelha? — pergunto, de impulso.

— Fazendo magia? Como?

— Não sei como. Mas não pode ser apenas mera coincidência. Talvez ela seja imune ao ferro, já que, tecnicamente, está usando o corpo da flor zumbi. — Fecho os olhos perante a lembrança. Não me deixarei abater. Estou cansada de fugir dela, de meu destino e de meus erros. De um jeito ou de outro, já está na hora de seu reino de terror chegar ao fim.

Papai segura minha mão. Abro os olhos e vejo sua pálpebra tremer.

— Você ainda não me disse o que estava fazendo na câmara do trem com o nome dela na plaqueta. — Seus dedos apertam os meus. — Não quero que se meta em confusão. Ela já recebeu a sentença e está onde deve estar. Vamos entrar, pegar o Jeb e sair pelo portão do País das Maravilhas. Sem interagir com nada nem ninguém mais. E muito menos nos deixar distrair com raiva ou dívidas antigas. Está bem?

O diário pendurado em meu pescoço parece mais pesado do que um tijolo, apesar do tamanho diminuto. Essa missão tem mais uma razão de ser. Vamos resgatar mais alguém. Não deixarei o País das Maravilhas sem três coisas: Morfeu, Jeb e a total aniquilação da Vermelha.

Papai bebe o último gole de água.

— Allie, responda. Precisamos ser honestos um com o outr...

O tilintar de pratos interrompe papai no meio da frase e Hubert serve a comida fumegante juntamente com água e uma xícara de café para papai. O intraterreno me olha pelo canto do olho ao retornar para a cozinha.

— Belas maneiras, Ovobert — deixo escapar, mais alto do que deveria.

Papai faz uma careta quando nosso anfitrião para no meio do caminho e se volta para nós, a alva casca avermelhando-se por debaixo dos enfeites de miçangas.

— Da próxima vez que eu a vir — Hubert aponta para mim com a bandeja —, você estará ou em um caixão ou banida de seu reino por seus atos irresponsáveis. Seja como for, aproveite sua última refeição aqui como Rainha Vermelha reinante.

E deixa a mim e papai comendo na sala de jantar deserta, com o som das espadas se chocando no andar de baixo pairando entre nós como uma sentença de morte.

 

 

6


Camuflagem Curiosa

Enquanto papai vai coletar armas e praticar mais alguns movimentos e golpes com o tio Bernie, vagueio pelos corredores à procura de Chessie.

Tenho medo de chamá-lo em voz alta, levando em conta a reação de Hubert e o fato de que vários intraterrenos compartilham de seu preconceito contra mim. Em vez disso, chamo por ele mentalmente, esperando ter a mesma habilidade de Morfeu. Esperando que seja um talento intraterreno que eu possa dominar.

Uma porta se abre e eu me escondo. Uma funcionária sai, empurrando um carrinho de limpeza. No lugar de rodinhas, o carrinho desliza sobre pranchas de esqui que o impulsionam suavemente pelo chão acolchoado. Uma mistura de aromas apimentados e produtos de limpeza penetra minhas narinas quando ela passa.

O perfil da funcionária de limpeza me lembra o de um buldogue — inclusive o focinho achatado e úmido que faz com que ela ronque a cada respiração. Seu corpo parece o de um porco, à exceção das mãos em forma de garras de lagosta. Tufos de cabelo despontam nas bochechas esverdeadas, nos cotovelos e nos joelhos por baixo do avental do uniforme.

No carrinho, três macacões transparentes com capuz estão amontoados em uma pilha, revelando leves dobras e pregas que se destacam do entorno. Parece que Bill, o Lagarto, mandou suas roupas de simulacro para lavar.

“Conecta-se com a mente de quem a veste e reflete o que está em volta. Quem observa tem a ilusão de ver apenas as partes do corpo descobertas. Engana, não é? Você nem imagina o quanto é útil.”

Ah, imagino, sim, Hubert. Se eu e papai fôssemos invisíveis, seria mais fácil nos esgueirarmos para dentro do portão do País das Maravilhas. E, já que estamos nos encaminhando para uma zona de batalha, seria muito útil poder usar um disfarce assim.

Começo a perseguir a funcionária, esforçando-me para encontrar um modo de pegar as roupas. Talvez eu precise apelar para a magia.

— Com licença — digo suavemente.

Ela se vira, roncando. As letras em relevo reluzem em seu broche de metal: Duquesa. Pensando bem, até que ela se parece com o desenho da duquesa do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas de minha mãe. Não consigo entender por que uma duquesa estaria limpando quartos em uma hospedaria. A não ser que eu a tenha retido aqui também. Em todo caso, é melhor não me apresentar.

— O que você quer? — Sua pergunta soa mais como um grunhido. Os dentes me lembram espigas de milho, como os daquela criatura suína que encontrei no Banquete das Bestas no ano passado: o filho da duquesa. Ele nos deu pimenta para acordar os convidados do chá. A semelhança do parentesco é notável.

— Preciso de toalhas limpas — eu digo. Enquanto ela se distrai na parte de baixo do carrinho, vou pegar os disfarces de cima e correr.

— Estes são roupões aveludados, não toalhas. É uma cortesia para nossos hóspedes mais importantes. Meu chefe contabiliza as peças e, se faltar alguma, desconta do pagamento. — Ela me enxota com seu espanador.

Seguro as penas do espanador e ela agarra o cabo, formando um cabo de guerra.

— Seu chefe não se importaria se você me desse um — insisto. — Somos muito amigos. — A mentira soa batida, mas não me importo, pois por trás do ombro da funcionária avisto uma névoa alaranjada e brilhante; silenciosa e furtiva. Antes mesmo de Chessie se materializar, sei que é ele.

Sorrio por dentro. Ele me ouviu.

Envio-lhe uma explicação silenciosa do que estou tentando fazer e Chessie assente com a cabeça, dando aquele sorriso largo e maroto. Ele sempre topa tudo, sem questionar, só pela diversão. Não é à toa que Morfeu o considera um valioso aliado.

— E sobre o roupão — digo à funcionária —, só preciso mesmo de um. Você pode dizer ao Hubert que ele criou pernas e saiu correndo. — Faço um leve sinal afirmativo com a cabeça para Chessie. Deixando um rastro de listras laranja e cinza, ele se infiltra na pilha de roupões aveludados dobrados no canto do carrinho.

— Eu tenho pernas curtas, na sua opinião? — a duquesa pergunta.

— Não. Por quê?

— Porque dizem que a mentira tem pernas curtas. E, como eu não tenho, não pretendo mentir. — Ela arranca o espanador da minha mão e rosna: — Agora caia fora.

Assim que o “caia fora” sai da boca no focinho amassado, o roupão aveludado sai correndo pelo chão, arrastando as mangas atrás dele. A funcionária solta um ganido e seus olhos alaranjados movem-se do roupão para mim.

— Parece que você não vai ter que mentir, afinal — comento.

Ela atira o espanador para o alto e começa a perseguir o roupão que, com Chessie por baixo, flutua como um tapete mágico. A funcionária tem de usar as quatro patas para alcançá-lo.

Assim que eles fazem a curva no corredor, apanho os macacões transparentes e corro no sentido contrário até chegar a uma intersecção entre três corredores. Penso em Chessie e envio-lhe um agradecimento mudo. Não me preocupo com ele; sei que não será capturado a não ser que queira.

Viro o corredor e dou de cara com papai.

— Calma! — Segura meus ombros. — Por onde você andou?

— Tentando... achar você — minto, ofegante. O tecido faz volume em meus braços, sem ser visto, apenas sentido.

Papai não aprovaria o roubo. Mas isso mudará uma vez que estivermos em Qualquer Outro Lugar e sua consciência der lugar à autodefesa.

Jeb vem à minha cabeça. Ele é como papai em muitos aspectos. Protetor, moralista e gentil. Será que perdeu seu sentido estrito de preto e branco, de certo e errado, para se adaptar a um mundo de criminosos intraterrenos? Ele deve ter precisado fazer isso. É um sobrevivente. Sua infância é a prova.

Espero apenas que ele não tenha esquecido como perdoar. E espero que Morfeu me perdoe também.

Mesmo assim, as coisas ainda serão complicadas por causa da visão que a Rainha de Marfim me mostrou antes de voltar pela toca do coelho no dia da formatura e por causa do que uma vida com Morfeu significaria para o País das Maravilhas.

Sinto uma pontada no peito, lembrando-me novamente da Vermelha. Do que é importante agora. Qualquer decisão sobre meu futuro terá de esperar até que a Vermelha tenha corrigido o que quer que tenha colocado errado em mim e eu a tenha destruído.

— Por aqui. — Papai segura meu cotovelo. — Bernard está nos esperando na sala dos espelhos.

Ignorando a pontada no centro do peito, retiro a sacola de viagem do ombro de papai. Ele está tão ocupado olhando os números nas portas que não me percebe reorganizando garrafas de água, barras de proteína, mix de cereais, frutas, primeiros socorros, lanternas e sortimento de armas para colocar no meio deles os tecidos roubados.

Tecidos emprestados. Quando retornar, devolverei as roupas encantadas com um pedido de desculpas.

Minha respiração fica suspensa ao perceber que não há “quando” em nossa situação a partir de agora. Antes que papai e eu possamos encarar o mundo do espelho e resgatar os rapazes, ou ajudar mamãe e consertar o País das Maravilhas, precisamos passar pelo portal e pelo portão.

Tudo — nossa vida, nossos amores, nosso futuro — depende de uma única palavra: SE.


Papai pega a sacola de viagem de volta e entramos no quarto 42.

Ele já me instruiu sobre o que acontecerá assim que passarmos pelo portão de Qualquer Outro Lugar: como pularemos para dentro de um funil sobrenatural de cinzas e vento que leva os prisioneiros para o centro do reino, e os guardas de um reino para o outro.

Primeiro, porém, precisamos levar o portal de espelho para a entrada.

Esperava que as paredes do salão fossem forradas de espelhos. Em vez disso, o lugar é forrado de almofadas. A circunferência é maior do que nosso quarto e não há mobília, somente uma engenhoca circular no centro do assoalho. É tão alta que quase encosta no teto.

Cores vivas reluzem no exterior de metal e lâmpadas redondas alinhadas separam cada painel — extinto e sem vida. Lembra uma pequena versão do Gravitron, um brinquedo que havia no parque de diversões. Era sempre a primeira atração que Jenara, Jeb e eu procurávamos quando o parque vinha para nossa cidade.

Uma nostalgia aguda ecoa em mim com gosto de algodão-doce e cheiro de cachorro-quente. Era como mágica, nós nos posicionávamos no interior de um cilindro e o brinquedo começava a girar tão rápido que o chão abaixava e nós continuávamos encostados à parede. Hoje sei que não era magia o que nos mantinha presos; era a força centrífuga. Hoje sei também o que é magia de fato — e que ela tem um preço.

A saudade dos tempos simplórios com meus dois melhores amigos é tão aguda que dou um passo adiante e percorro com os dedos os painéis lisos e gelados para me distrair. Um zumbido alto dispara ao mesmo tempo que o motor liga e luzes começam a piscar — brilhantes e espalhafatosas. Papai me empurra para trás.

— O que foi que eu fiz? — pergunto.

— Nada. Está tudo bem. Absolutamente correto. — Ele sorri com uma expressão distante. Seus olhos brilham como os de um menino maravilhado com as luzes que piscam.

— Papai, você nunca me contou... Como você foi parar no portão para o País das Maravilhas?

A ponta de seus dedos assume onde os meus haviam parado, e ele alisa os painéis de metal.

— O tio William estava me ensinando como abri-lo, apenas nós dois, e de repente ele caiu de joelhos. Não conseguia respirar. Eu era pequeno demais para conseguir arrastá-lo para o funil de vento e sabia que, se fosse em busca de ajuda, ele estaria morto quando eu voltasse com alguém. — Papai comprime os lábios, como se a confissão tivesse um gosto distinto: azedo e cortante. — Ele começou a ficar roxo. Entrei em pânico. Eu tinha ouvido histórias sobre o País das Maravilhas. Que as criaturas tinham poderes curativos. Eu me enfiei pelo portão... pensando que assim conseguiria ajuda mais rapidamente. Eu sabia que elas poderiam ser malignas, mas também tinha ouvido falar que algumas eram boas. Infelizmente, encontrei primeiro as más. — Ele pressiona a testa contra a máquina. As luzes piscam e se refletem em seu rosto enquanto ele fecha os olhos com força.

Ponho a mão em seu ombro, assombrada pela imagem dele preso na toca da Irmã Dois, emaranhado na teia de raízes cintilantes presas em sua cabeça e seu peito. Seus sonhos estavam sendo sugados para alimentar os mortos inquietos. Por dez anos ele foi o estimado menino sonhador da Irmã Dois, até que mamãe o resgatou. Não era o momento de contar-lhe que talvez ele enfrentasse o mesmo mal quando chegássemos ao País das Maravilhas. Nem que a Irmã Dois talvez estivesse com mamãe presa em suas garras pegajosas, a menos que de algum modo ela tenha conseguido escapar.

— Papai, você era apenas um menino. Tomou a única decisão possível. Estava certo também. Se seu tio estava começando a ficar roxo, ele não teria sobrevivido a tempo de você voltar com alguém.

Papai suspira e levanta a cabeça.

— Ele teve um derrame. Bernie me contou que o encontraram morto perto do portão em que eu havia desaparecido. — Estreitando os olhos, ele leva o polegar até uma fresta entre dois painéis e a pressiona. Dá um passo para trás, uma porta se abre e uma escada com degraus motorizados se estende até o chão.

Tio Bernie coloca a cabeça para fora de uma das entradas da engenhoca. Está usando um uniforme novo de cavaleiro Branco.

— Vejo que você se lembra de como entrar. É um bom sinal.

E de repente a tristeza de papai desaparece. Ele dá um meio sorriso e passa a sacola para tio Bernie.

Encaro-o incrédula. Primeiro, vejo-o lutar como um especialista. Agora ele domina a arte das passagens secretas. Como este pode ser o mesmo homem que me criou? O homem que lia os livros de figuras fazendo vozes engraçadas, preparava minha merenda e nunca esquecia que eu gostava de biscoito com recheio de maçã?

Eu o achava tão normal. No entanto, ele levava uma vida extraordinária antes de se perder no País das Maravilhas.

Papai me ajuda a subir as escadas atrás dele. Do lado de dentro, deparamo-nos com inúmeras imagens de nós mesmos entre quadrados pretos e brancos refletidos no chão. Espelhos e mais espelhos distribuídos pelo interior arredondado cobrem as paredes e o teto abobadado, formando reflexos que refletem outros reflexos até que não exista mais começo ou fim. A ilusão do infinito.

Cavalos de carrossel — em cores vivas e poses estranhas — parecem brotar do chão xadrez, captados nos reflexos, apesar de não haver nenhum onde nós estamos.

— O carrossel... está pintado nos espelhos? — Assim que pergunto, percebo que são como os espíritos de mariposa no corredor espelhado da casa de Morfeu no País das Maravilhas, exceto pelo fato de que os cavalos não estão presos nos reflexos. Estão por trás deles, de alguma maneira.

— Você vê o carrossel? — papai pergunta. Ele e tio Bernie trocam olhares de surpresa.

— Parece que sua menina herdou algo mais do que o senso de humor dos Skeffingtons — tio Bernie brinca, dando um tapinha no alto da minha cabeça enquanto nos encaminha para o corredor estreito.

Papai segura minha mão e me conduz através do espaço arredondado.

— O que você enxerga é o outro lado do portal, Allie. Nenhuma das mulheres de nossa família demonstrou essa habilidade.

Tio Bernie concorda, abanando a cabeça.

— Pode ser da linhagem da Alison.

Como se adivinhasse que vou estremecer ao ouvir o nome de mamãe, papai aperta minha mão.

— Os reflexos refletidos... — Ele faz um gesto, indicando tudo à nossa volta. — O labirinto de imagens sem fim... são como uma ilusão de óptica. Somente aqueles que têm o gene podem decifrar o efeito duplo do espelho. O carrossel está do lado de fora da entrada para o mundo do espelho. A cavalaria o montou décadas atrás, peça por peça, porque a área ao redor do portão é árida. Precisávamos de algo para mirarmos do outro lado. Agora, assim que discernirmos qual cavalo é real e qual é apenas reflexo, saltamos e montamos neles através do portal.

— Certo — eu digo com cautela —, mas por que vocês não podem usar uma sala com espelhos como ponto de partida? Por que um Gravitron?

— Bem, não foi sempre assim — tio Bernie responde enquanto abre um painel de circuitos e aciona algumas chaves. — Anos atrás, antes de essas geringonças serem aperfeiçoadas, nossos ancestrais costumavam ir a parques de diversões em busca de atrações como as casas de espelhos. Era perigoso. Eles corriam o risco de ser vistos por outros caçadores de emoções. Então, começaram a construir suas próprias salas de espelhos infinitos. Mas é difícil ter impulso suficiente para saltar pelo portal. Lá pelos idos de 1950, começamos a ver algumas atrações nos parques de diversões que nos inspiraram a usar a força centrípeta em nosso favor.

— Pensei que era centrífuga. — Sinto-me zonza, e a máquina ainda nem foi acionada.

— A força centrífuga é reativa — meu tio explica. — Existe apenas por causa da centrípeta. Se você começar a rodopiar e esticar o braço segurando um martelo, estará exercendo a força centrípeta para fazer o objeto seguir uma trajetória curva. Mas vai sentir que o martelo está puxando sua mão. Essa é a força centrífuga: uma coerção na direção oposta. Nossa máquina foi elaborada para usar ambas as forças uma contra a outra, de modo que, quando o chão se destacar, seu corpo será lançado para a frente, como o que aconteceria com o martelo se você o largasse. Isso torna a entrada mais simples.

Suspiro, bufando.

— Nossa, parece tudo... menos simples. — Nem paro para pensar em como aterrissaremos em cima dos cavalos de carrossel sem machucar partes importantes de nosso corpo. As leis da natureza são diferentes do outro lado e, de algum modo, isso deve influenciar. Entretanto, ainda sinto vergonha ao me lembrar de como me espatifei contra o espelho na noite da formatura. De como o vidro se estilhaçou e cortou minha pele. — Se mirarmos mal, deve ser bem dolorido.

— Dolorido, mas suportável. — Tio Bernie fecha a porta da engenhoca. Raios alaranjados penetram pelas frestas entre os painéis, vindos do lado de fora. — É assim que se adquire sabedoria. Levando uma pancada no coco ou no nariz. Aprendemos pelos nossos erros, não é verdade?

Sinto o diário em meu pescoço. A menos que, como a Vermelha, você escolha esquecer seus erros e, nesse caso, nunca aprender.

— Tem um truque — papai acrescenta. — Se olhar bem de perto, alguns cavalos têm sombras provocadas pelas luzes do carrossel. Outros, não. Os que têm sombras são os reais.

Foco no carrossel, assustada por ter de escolher tão rapidamente os que são reais. Só de pensar que serei atirada em direção a um painel de vidro em alta velocidade minha pulsação se acelera tanto que sinto o sangue correr pelas veias. Posso já ter saltado de uma borboleta no meio de uma noite de tempestade, mas isso aqui não é o mesmo que voar. Não terei vento nenhum para planar. Não terei controle sobre nada.

Agora sei o que Morfeu sentia quando tinha medo de andar de carro, e não é muito engraçado quando se está do lado de cá.

O motor do Gravitron ronca debaixo de meus pés.

Papai aperta seus dedos entre os meus.

— Esse é o único jeito de entrar e salvar sua mãe e Jeb. Segure em mim e salte quando eu saltar. É minha vez de criar asas.

Um sorriso nervoso se esboça no canto de minha boca.

— E, por falar em asas — Tio Bernie aponta minhas costas —, você deveria recolhê-las por enquanto. O portal é muito pequeno. Não queremos que fique presa.

Fico contrariada. Já tinha me acostumado a deixá-las expostas — ao poder que me conferem. Reabsorvê-las é algo fácil, depois de tanta prática no sanatório, embora eu estranhe a falta de peso no mesmo instante em que se vão.

Agarro a mão de papai e não a solto enquanto nos posicionamos contra a parede de espelho. Tio Bernie segura a sacola de viagem de papai, já que ele e eu somos novatos. Ou melhor, o corpo adulto de papai é iniciante nisso tudo.

O zumbido do motor fica mais alto à medida que vai girando mais e mais, até que nossas costas estão totalmente coladas ao espelho e ficamos imobilizados no lugar, como os insetos que eu costumava colecionar. Meus pulmões se espremem como se estivessem encolhendo. Estou tão desorientada que não consigo distinguir nada a não ser um borrão nos reflexos. Reprimo a bile que vai subindo pelo esôfago.

No momento em que penso que vou devolver os ovos beneditinos, papai grita:

— Agora!

Ouve-se o barulho de uma alavanca sendo acionada. O chão se retrai e somos ejetados para a frente, papai e eu unidos por uma corrente de mãos e dedos, como naquela vez no País das Maravilhas que Jeb e eu navegamos pelo abismo em carrinhos de chá.

O vidro vem em nossa direção. Solto um grito e o espelho se afunda como uma bolha que estica e nos envolve, estourando em seguida, quando somos lançados no outro reino.

Papai solta minha mão. Por um instante, flutuo e pouso em cima de um cavalo do carrossel que se move sincronizado com o Gravitron do outro lado.

Um odor fétido e úmido nos envolve, como o de um brejo estagnado. Papai não exagerou quando disse que tudo era árido por aqui. As únicas luzes vêm do carrossel. Olhando de perto, são na verdade insetos bioluminescentes dentro de globos de vidro. Um firmamento plúmbeo paira acima de nossa cabeça — uma névoa do nada.

Uma bruma negra encobre tudo ao nosso redor, tão espessa que não distingo nada além da plataforma da máquina. Não há som algum; até a engrenagem do carrossel se move em silêncio.

Papai e tio Bernie pegam suas montarias à minha frente. Phillip, o primo de papai, vestindo um uniforme de cavaleiro Vermelho, já está sentado em um banco ao lado do cavalo do tio Bernie. Agarro-me à barra de latão que segura minha montaria no lugar. Pequeninos espelhos a cobrem. Através deles enxergo o interior do Gravitron. É por onde saímos e por onde os cavaleiros devem, de algum modo, voltar para lá. Parece fisicamente impossível, considerando nosso tamanho em contraste com os pequenos cacos de vidro brilhante.

A adrenalina que pulsa dentro de mim vai desacelerando à medida que a máquina para. Papai pega a sacola de tio Bernie e me ajuda a descer. Minhas pernas oscilam, como se precisassem reaprender a andar.

Juntos, nós quatro nos afastamos das luzes e penetramos no nada. Minhas botas deslizam como se estivessem no ar. Parte de mim esperava por um lamaçal debaixo dos pés. A bruma esquisita borbulha na altura de nossos joelhos e, perto dos calcanhares, se assemelha a um caldo fervente fumegando, embora nada esteja molhado. A névoa tem a qualidade de absorver os sons, engolindo o ruído de qualquer suspiro, respiração, movimento de roupas ou passos.

Um portão branco e brilhante sobressai a distância. Por trás dele se avista a cúpula de ferro, escura e ameaçadora como um gigantesco caldeirão de bruxa virado para baixo.

Detenho-me. O plano que meu tio e seu primo armaram — distrair o olho do portão enquanto papai e eu nos infiltramos — é perigoso demais. Com as roupas de simulacro, temos passagem garantida. Mas precisamos vesti-las antes de chegarmos perto o suficiente para o olho do portão nos ver.

Seguro na sacola que está no ombro de papai, fazendo-o parar.

— Preciso mostrar uma coisa a você — tento dizer, mas o som é absorvido antes mesmo que deixe minha boca. Tio Bernie disse que a comunicação seria difícil aqui. Eu jamais imaginaria que nossas palavras seriam tragadas pelo vazio.

Pego a sacola e visto o simulacro sobre a roupa. O tecido transparente ajusta-se sobre meus ombros e minha cintura. Ajeito o tecido excedente nas pernas e amarro-o para que cubra as botas.

Então, concentro-me no que está à minha volta e estico os braços. O tecido se encolhe, ajustando-se sobre minhas roupas com perfeição. Mantenho-me concentrada na paisagem que me cerca e ela começa a se transferir para mim. Apenas as mãos podem ser vistas para fora dos punhos encantados. O resto do corpo desapareceu. Coloco as mãos para dentro dos punhos e, exceto pela cabeça flutuante, me transformo em um nada.

Phillip e tio Bernie aprovam, fazendo um gesto com a cabeça.

Em poucos minutos, papai também está com seu disfarce e invisível. Por não poder falar, também não pode me interrogar sobre onde arrumei essa camuflagem e muito menos brigar comigo pelo modo como a obtive. Ele enfia a sacola debaixo do braço por dentro do macacão para escondê-la. O capuz esconde nosso rosto de modo que podemos enxergar sem sermos vistos.

Nossos acompanhantes se dirigem para o portão. Nós os seguimos, mantendo certa distância para não esbarrarmos acidentalmente nos cotovelos e nos pés um do outro. À medida que nos aproximamos, aquilo que pensei serem barras são na verdade tentáculos escamosos e brancos, contorcendo-se como cobras albinas. Sou tomada de uma súbita emoção. Nenhum medo. Nenhum tremor.

Apenas um sentimento avassalador de solidão, tão vasto quanto o nada que nos rodeia.

Em algum lugar daquele portão estão meus dois cavaleiros — a luz e a sombra. Morfeu deve estar decepcionado comigo por minha falha colossal quando destruí as entradas e saídas para seu amado País das Maravilhas. E ainda há Jeb, que acredita que rejeitei o amor mais puro e devoto que já conheci.

Nas últimas semanas, estive concentrada no bem-estar deles. Mas o que dizer de seu estado emocional? Jeb pensa que o traí. E Morfeu fará tudo para reforçar esse engano a cada chance que tiver.

Talvez não seja com os prisioneiros assassinos ou as criaturas selvagens que eu deva me preocupar. Seria quase engraçado pensar que Morfeu se apiedou de Jeb e o ajudou. Tudo o que espero é que, por algum milagre, cada um tenha tomado seu rumo sem matar um ao outro.

Mais uma vez, meu coração está dividido entre duas direções — uma sensação ardente, física e real. Cerro os dentes por baixo do véu invisível e me esforço para seguir nossos acompanhantes.

Chegamos perto do portão, da altura de um prédio de três andares. Tio Bernie alisa os tentáculos serpenteantes. Nem mesmo um ninho de anacondas equivaleria a seu tamanho. As escamas murcham e relaxam por cima dos músculos ondulantes. Não há dúvida quanto à forma como o portão mata suas presas. Uma simples espremida esmagaria qualquer um que violasse a passagem.

Esses tentáculos poderiam aniquilar exércitos inteiros. E provavelmente já o fizeram.

A imagem é tão medonha que solto um gemido — e agradeço pela névoa engolidora de sons. Ao centro do portão, um apêndice ofídio se destaca dos outros. Uma protuberância alongada, semelhante a uma planta carnívora, tomba na frente de meu tio e de Phillip. Ela tem a metade do tamanho de um humano. As bordas dentadas se abrem, virando longos cílios, e de dentro espia um único globo ocular prateado, com a pupila negra fendida como um olho de cobra. Contenho um arrepio.

As pestanas piscam, lenta e cautelosamente.

Tio Bernie e Phillip estão à nossa frente. A criatura escamosa analisa-os de perto, dos pés à cabeça. Quando ela se ergue para olhar sobre seus ombros, prendo a respiração, receosa de que perceba minha presença ou a de papai.

O olho aperta-se e cerra as pestanas, depois se mistura aos demais tentáculos. Então, eles se agrupam para o lado, como cortinas sendo abertas. Avançamos juntos como um só corpo. Meus cabelos se eriçam quando recolho o cotovelo para não esbarrar nas escamas.

Não ouso respirar até o portão se fechar atrás de nós.

Papai e eu retiramos o capuz e damos um suspiro de alívio. Seu irmão e o primo me dão um tapinha nas costas e direcionam-se para o alto da plataforma de pedra nas laterais do portal, junto aos cavaleiros a quem vão substituir. Avisto, mais à frente, um redemoinho de cinzas e vento parecido com os tornados brancos dos programas de meteorologia.

A névoa de nada se prolonga entre a plataforma onde estamos e a paisagem de Qualquer Outro Lugar. O vapor brilha esverdeado, como se fosse radioativo. De acordo com o que tio Bernie explicou anteriormente, em vez de absorver ruídos, suga tudo o que tente atravessá-lo.

Ambos os portões destacam-se do solo de certa maneira. O sorvedouro verde brilhante retém os prisioneiros, tornando impossível que ataquem o portão. Eles teriam de controlar os funis de vento para atravessar. O outro olho, aquele que costumava tomar conta do lado de cá do portão, era mentalmente conectado aos funis. Os cavaleiros moldaram medalhões com os restos da criatura e agora se aproveitam dessa força para trafegar em segurança, entrando e saindo de Qualquer Outro Lugar.

Após uma breve conferência com os cavaleiros, tio Bernie desce e oferece a papai um pombo mecânico.

— Aperte o botão abaixo da garganta dele — ele diz, demonstrando. — Quando o bico se acender, grave a mensagem. Assim que encontrarem o garoto e chegarem ao País das Maravilhas com os suprimentos, enviem-nos uma mensagem para sabermos que está tudo certo. O pombo nos encontrará. Ele é banhado em ferro para evitar que algum prisioneiro o detecte. Vocês têm um dia. Se não tivermos notícias em vinte e quatro horas, seguiremos o sinal do pombo e os encontraremos.

Papai pega o pássaro de ferro, enfia-o na sacola e tenta falar. Nenhum som.

Tio Bernie explica:

— Você ainda não desenvolveu tolerância à névoa negra que inalou. — Sua voz vai aumentando à medida que o redemoinho se aproxima. — Suas cordas vocais permanecerão desse jeito por meia hora ou mais. — Ele gesticula apontando para trás, e vemos o funil chegando cada vez mais perto. Rajadas de vento jogam minhas tranças contra o rosto e o pescoço.

— Lembra-se de como fazer isso? — meu tio grita para papai.

Ele assente com a cabeça.

— Entrem e agarrem-se bem firme — tio Bernie avisa. Ele pega um medalhão do pescoço e o segura, erguido. Uma pedra oval esbranquiçada reluz no centro do pingente e raios vermelhos finíssimos correm através dela, como veias de sangue. Uma armação de metal fosco envolve a estranha pedra. — Daríamos a vocês um medalhão como este, mas não podemos arriscar que caia em mãos erradas. Já que vocês têm que encontrar uma pessoa, vou fazer com que o funil os largue no local onde deixamos os prisioneiros. Mas fiquem atentos. As terras têm estado imprevisíveis ultimamente e, já que os ciclones estão atrelados a ela, tornaram-se indomáveis. É por isso que não temos certeza de onde vocês cairão. Providenciamos um mapa. Procurem os dois portões verdes brilhantes onde estiverem. São o norte e o sul. Usem-nos como referência ao mapa. E, acima de tudo, permaneçam juntos.

Papai concorda, fazendo um gesto com a cabeça. Tio Bernie nos abraça e nos direciona ao funil que se aproxima. Vejo a mão de papai desaparecer por dentro do disfarce e ele segura a sacola contra o corpo. Lança-me um olhar bem profundo. Quero pular em seu colo e me esconder, como fazia quando era criança.

Agora, porém, além de moça, sou rainha. E sou a única responsável por tudo isso. Não há como esconder-me. Levanto o queixo. Estou pronta.

Colocamos o capuz para nos proteger das cinzas e entramos, segurando firme enquanto nossos pés são suspensos e o corpo rodopia. Em questão de minutos, o funil se abre, revelando uma colina coberta de neve que se aproxima rapidamente abaixo de nossos pés. Árvores esparsas e sem folhas pontilham a paisagem. Não avisto mais a cúpula de ferro acima da cabeça. Apenas um falso firmamento entre a cúpula e o chão, parecendo um céu alaranjado. Um aroma de fumaça chega às minhas narinas por baixo do tecido, como se houvesse um incêndio por perto.

Somos ejetados para o topo da colina e, com o baque da queda, nos separamos. Papai tenta me segurar, mas rola para baixo na direção oposta. Seu capuz abaixa e vejo o rosto e o pescoço. É uma imagem terrível, como se ele estivesse decapitado. Cravo as unhas através do tecido, tentando agarrar-me na neve. Mas não é neve. A colina está recoberta de cinzas, como o funil por onde chegamos. O solo se desfaz sob meus dedos, fazendo-me deslizar e perder papai de vista.

Lembro a mim mesma que ele esteve aqui quando era criança e sobreviveu, e que desta vez, tem a vantagem da invisibilidade e de uma sacola cheia de armas.

Meu corpo gira lateralmente e o capuz se aperta mais enquanto escorrego pela encosta empoeirada. Meus ossos chacoalham na descida áspera e, chegando ao pé da colina, sou atingida no estômago por uma pedra do tamanho de uma bola de futebol. O impacto deixa-me sem ar.

Esforço-me para respirar.

— Ora, ora! O que temos aqui? — O forte sotaque britânico ressoa como veludo em meus ouvidos.

Espio através do capuz. Morfeu está de pé do outro lado, olhando em minha direção. Ele resplandece sob a luz alaranjada; um halo azul irradia de seus cabelos. A camiseta lilás por baixo do casaco de tapeçaria azul-marinho harmoniza com sua pele alva. Calças listradas definem a silhueta alongada. Sobre a cabeça, um chapéu meio de lado. E, embora eu não veja as mariposas dispostas em volta da tira do chapéu, sei que estão ali.

Ele segura uma bengala. A parte de cima ostenta uma águia tão real que poderia estar numa loja de taxidermia. Asas e penas recobrem a haste e quatro patas despontam da base, recobertas de uma pelagem dourada como a dos leões. Garras enormes sobressaem.

Morfeu continua estiloso e excêntrico como eu me recordava. De algum modo, este lugar não o alterou. Estou tão feliz que quero abraçá-lo — até notar as joias vermelhas brilhando nas bordas de seus olhos.

Ele coloca a bengala sob o braço e se aproxima, baixando as asas. A raiva endurece suas feições delicadas.

— Esperava nunca mais ver sua cara por aqui.

 

 

7


Ilusões

O ódio de Morfeu me atinge como um soco, uma pulsação agonizante que se equipara à contusão onde a rocha se projeta para dentro de minhas costelas.

— O fato de você estar aqui não muda nada — ele diz, fervendo de raiva. — Você fez a cama. Agora, deite-se nela. — Não desperdiça mais nenhuma palavra, não pergunta como cheguei aqui nem menciona meu nome. Simplesmente empurra a pedra para o lado para que ela não fique entre nós.

Eu me curvo numa bola. O que poderia esperar? Destruí o lar que ele ama e depois o mandei para o mundo do espelho para apodrecer sem sua magia. Ele não poderia me receber nos braços e dizer quanto sentiu minha falta.

Não que ele não tenha tido participação nesse pesadelo, também.

Um pedido de desculpas bate de frente com minha justa indignação. É melhor que as palavras fiquem presas em minha garganta dormente. Haverá tempo para quebrar as barreiras de Morfeu depois. Neste momento, preciso encontrar papai e me certificar de que ele esteja bem. Depois, vamos procurar Jeb — que, certamente, terá a mesma reação ao fato de eu estar aqui.

Procuro o diário e a chave no meu pescoço para garantir que estão a salvo por baixo das roupas. Estou prestes a ficar de pé e a caminhar através das árvores secas quando Morfeu se levanta e dá as costas e asas para mim.

— Eu disse: volte para sua cama de cinzas. — Ele cutuca a pedra com a bengala. — Você não tem permissão para me seguir a menos que eu sinalize.

Baixo a cabeça. Estendo um braço e olho através dele. Ainda estou invisível. Morfeu não sabe que estou aqui. Ele estava falando com a pedra o tempo todo. Fico de pé o mais silenciosamente que consigo e estico os músculos doloridos.

— Nós só g-g-gostaríamos de saber — a pedra responde para Morfeu, com uma boca que surge por baixo da superfície branca e empoeirada — se nosso mais g-gracioso rei pensou em nosso p-pedido de nos ajudar a recuperar nossos ovos.

— Essa é nossa única pergunta — acrescentam cerca de trinta pedras menores, articulando os lábios empoeirados. — Se o senhor vai salvar nossos ovos.

— Vamos colocar isso em perspectiva. — Morfeu ergue as asas sobre sua escarpada plateia. — Foram vocês que perderam os ovos por descuido, deixando-os sozinhos para poderem nadar um pouquinho em um oceano temporário. Agora, eu disse que pensaria em ajudar vocês. Pensar, por definição, é avaliar os fatos e meditar sobre os resultados. Isso leva tempo. Até mesmo cabeças de pedra fujonas que nem vocês conseguem compreender que eu vim aqui hoje porque queria ficar só, um sentimento raro quando se tem sempre a própria sombra por trás. Finalmente encontrei um ponto sem sol, o lugar perfeito para meditação. Então, vão embora.

As pedras continuam no lugar. Usando a ponta com garras da bengala, Morfeu cutuca uma que rolou para mais perto.

— Talvez seu cérebro tenha se fossilizado — ele grunhe. — Você realmente deseja se desentender com o único que tem magia suficiente para transformar seus ovos em poeira?

Uma luz púrpura treme na ponta dos dedos de Morfeu que seguram a bengala. A estática desce pela haste e pula das patas do leão para o chão, como um raio violeta.

Eu tapo a boca com uma mão, tarde demais para abafar um gemido.

Os músculos de Morfeu se retesam e ele olha para trás, mas as pedras voltam a chamar sua atenção.

— Ah, não. Nós não que-que-queremos nossos ovos esmagados — a criatura pedregosa maior responde. — P-p-por favor. — Seis pernas de lagosta e dois olhos de contas saltam de seu corpo. As outras pedras fazem o mesmo, libertando os membros e os olhos, lembrando-me da lagosta de pedra da história de Carroll.

Lamentando-se, as pedras rastejam para trás, formando uma onda, a fim de evitar o brilho mágico e crepitante que se arrasta em sua direção saindo das mãos e da bengala de Morfeu. Suas pinças dianteiras cortam as cinzas, jogando uma névoa branca sobre os raios de magia violeta.

Eu estreito os olhos. Então Morfeu é o único a ostentar seus poderes sob a cúpula de ferro? É melhor que seja ele do que a Vermelha, mas como ele está usando a magia sem ser distorcido por ela? Teria sido o ferro que tornou sua magia púrpura em vez de azul?

— Por favor! — as lagostas de pedra imploram em uníssono.

— Muito bem — Morfeu diz, rebobinando os fios encantados, que sobem pela bengala até desaparecerem dentro de seus dedos. — Deixe que seu rei analise a questão. Quando uma decisão for tomada, chamarei vocês. Está claro?

— Sim, m-m-muito claro. — A cor da pedra maior vai esmaecendo até ela ficar quase transparente, como se fosse feita de cristal. Sua concha é como uma pérola tremeluzindo sob o céu laranja. As pedras menores a seguem, arrastando-se até a colina e enterrando-se na pilha de cinzas até todas ficarem tão escondidas quanto eu.

— Maldito reino — diz Morfeu. Ele apoia a bengala nas quatro patas, tira do bolso um par de luvas e as veste. — Tudo e todos desejam um pedaço do bolo real. Até a paisagem tem intenções.

Eu contenho um sorriso. Ele está igualzinho a quando foi sugado para cá — narcisista, desconcertantemente irritável e inteligente. Fico feliz que tenha encontrado um modo de reinar sobre as criaturas daqui. Mesmo que seus poderes tenham causado inquietação entre os prisioneiros e problemas aos parentes de papai, pelo menos o mantiveram vivo.

Ele se vira para ir embora, acariciando as penas da bengala enquanto anda.

Esforço-me para tirar o simulacro do rosto e das mãos, mas ele gruda na minha pele suada. Deixo as palmas das mãos caírem para o lado, concentrando-me em minhas roupas. Quem sabe, se eu mentalizar o que estou usando por baixo, isso reverta a magia que me deixou invisível.

— Morfeu, espere. — Minha voz é fraca e sai como um sussurro. Mesmo assim, ele se detém.

Silêncio... nada além de sua respiração. Cinzas se revolvem sob um giro de seu calcanhar. Estendo a palma da mão para ele, transparente com um contorno vagamente distinguível.

— Tem alguém aí? — Morfeu estreita os olhos.

Uma mão segura meu ombro por trás. Eu a sinto, mas não a vejo.

— Allie. — O sussurro de papai roça minha orelha. — Não se mostre.

Eu agarro sua mão, aliviada por ele estar a salvo. Antes que eu possa responder, o chão treme, abrindo-se feito pedaços de um quebra-cabeça. O braço de papai me envolve com força e nós dois cambaleamos no lugar. Em um instante, o terreno se movimenta e fica rachado. Água borbulha pelas frestas, enchendo os veios entre nós. Minúsculos gêiseres esguicham — do tamanho do jorro de um bebedouro.

As árvores, a colina, Morfeu, eu e papai — estamos todos flutuando em nossas próprias ilhas em miniatura.

O ar quente e suave sopra em rajadas, com a umidade aumentando.

— Mas que droga — Morfeu resmunga, com as asas esticadas bem baixo para estabilizar o fragmento de terra sob os pés. Ele levanta o rosto para o céu quando este se torna cinza. — Sério? — Grita para ninguém em especial. — Gêiseres? Esta é sua noção de piada?

Arrasto meu pé para perto do pé de papai, equilibrada em nossa ilha flutuante, tentando entender o sentido da tirada de Morfeu. Um zumbido mecânico surge acima de nós à medida que um bando de pássaros gigantes vai aparecendo. Em vez de usar suas asas, eles estão agarrados a sombrinhas de renda com estampas florais de cores vivas que rodopiam para erguer os pássaros. Cada um deles parece uma Mary Poppins monstruosa pairando no céu. Para descerem, as sombrinhas se invertem e as criaturas-pássaros se chocam com a água. O esguicho atravessa o simulacro e atinge minhas roupas. Sinto o calor na pele.

A maioria dos pássaros abandona as sombrinhas, usando o bico para içar os fumegantes corpos emplumados da água. Alguns levam as sombrinhas junto.

Embora alguns se pareçam com patos e outros com filhotes de águia-pesqueira, são horrorosamente deformados: do tamanho de gorilas, com quatro braços peludos e mãos ligadas a dois pares de asas. As costas são retorcidas e nodosas, fazendo com que coxeiem ao andar.

Papai me puxa para mais perto. Nossa ilha flutuante balança quando três pássaros passam mancando em suas pernas de avestruz. Algo me diz que eles não nos perceberiam nem se estivéssemos visíveis, pois seu olhar está fixo em Morfeu.

Ele permanece no lugar enquanto sete criaturas batem as asas para pular os fossos e o cercam, estalando os bicos afiados. Mais cinco sobem a colina onde as lagostas de pedra se escondem.

— Ora, ora. — Morfeu sorri com prazer. — Se não é o bando dos patetas. Uma entrada e tanto. Vejo que estão fazendo o possível para controlar suas mutações. Mas temo que o verdadeiro estrago já tenha sido feito. Eu realmente espero que vocês não tenham vindo buscar conselhos de moda. Não há estilo ou charme que consigam esconder tanta feiura.

— Cale a boca — grasna um pássaro que parece mais um martim-pescador. — Você não será tão petulante depois de saber que o Manti descobriu seu ponto fraco.

— Sim, ponto fraco. — Uma criatura semelhante a um filhote de águia estala o bico perto da orelha de Morfeu, deixando um arranhão vermelho no lóbulo. Morfeu se retrai, mas não recua. Ele praticou magia agora há pouco. Por que não voa e escapa? Tento me libertar de papai, mas ele me prende com mais força.

— Essa luta não é sua — ele sussurra, quase inaudível em meio ao farfalhar de penas molhadas e gêiseres borbulhantes.

Eu reprimo um grunhido.

— Acabou a farsa, rapaz — uma águia-pesqueira diz, puxando a lapela de Morfeu com a mão de macaco molhada. A bengala escorrega da mão dele. — Manti andou espionando você. Ele sabe que você desaparece depois de seus truques mágicos para se recarregar. O que ele quer saber é como você se recarrega e como usa sua magia sem que ela o afete. — A águia olha para o casaco de Morfeu onde o tecido que ela havia agarrado se desintegrou, deixando um buraco. — Como isso aconteceu?

Morfeu sorri com desdém.

— Parece que minhas roupas têm aversão ao seu toque pegajoso e escolhem evitar isso a todo custo.

Meu corpo treme em um riso involuntário. Papai aperta meu ombro novamente — um alerta.

A águia se inclina para mais perto do rosto de Morfeu.

— É melhor ir parando com essa gaiatice. Manti não tem o nosso senso de humor.

Morfeu estala a língua.

— Bem, então talvez devêssemos deixar isso para outra tarde qualquer. Estou me sentindo particularmente espirituoso hoje. Agora, se me dão licença, vou pegar minha bengala...

— Não vai, não. — O mutante martim-pescador se aproxima. — Nós mandamos as lagostas de pedra para drenar sua magia em troca dos ovos. Você está sem carga. Então, não tem escolha a não ser vir conosco e responder às perguntas de Manti.

Morfeu olha para o alto da colina, onde as outras criaturas-pássaros estão pegando as pedras com o que parecem ser cordões de pérolas do tamanho de bolas de beisebol. Seus dedos enluvados batem na coxa.

— Crustaceozinhos traidores. Eu deveria saber que eles estavam mal-intencionados. — Ele dá as costas para seus captores. — Então, seu chefe gostaria de entrar na competição, não é?

— Foi você quem insistiu em balançar o barco e formar uma ditadura real. Todos nós sabemos que a coroa pertence a Manti. Ele já era o valete da rainha antes de eles serem exilados aqui. Há séculos. Você acha mesmo que poderia se tornar rei sem outro candidato para desafiá-lo? — A águia-pesqueira chuta a bengala de Morfeu, fazendo suas penas esvoaçarem. — Não. A Rainha de Copas marcou a Festa de Consagração para depois de amanhã, e haverá uma corrida eleitoral para eleger um rei oficial. Quem vencer a corrida reinará ao lado da rainha. E os derrotados perderão seu coração pulsante.

— É as regras — diz um pássaro com bico de pato, zombando e balançando a sombrinha diante do rosto de Morfeu. — Criadas pela própria rainha.

— É as regras? — Morfeu diz com um sorriso profundo e suave. — Você precisa melhorar suas táticas de intimidação, Patolino. Gramática incorreta usada por um pássaro troglodita carregando uma sombrinha de renda não surte bem o efeito esperado.

Os sete pássaros o atacam, derrubando-o no chão.

Eu luto contra papai, mas ele se recusa a me soltar.

— Nada de comê-lo! — diz a criatura com bico de pato. — O chefe mandou!

— Ele tem razão — a águia-pesqueira grunhe para os companheiros. — Manti ordenou que o levássemos vivo. Mas ele não foi muito específico. Quase vivo está bom para vocês, cavalheiros?

Todos grasnam, concordando, atacando o corpo inclinado de Morfeu. Alguns batem com suas sombrinhas; outros usam seus múltiplos punhos.

Sem conseguir me libertar de papai, eu grito até minha garganta despertar completamente. Ao me ouvirem, os pássaros olham para trás dos próprios ombros emplumados. Tiro o simulacro no momento em que as mãos de Morfeu se soltam da distraída pilha de penas. Ele estala os dedos enluvados e as asas da bengala se abrem.

A bengala se transforma em um grifo vivo — cabeça e asas de águia, com o corpo coberto de pelos dourados e patas de um enorme leão. Com um rugido, a besta voa na direção do bando, mergulhando sobre os pássaros.

Morfeu rola para fora da confusão e se levanta. Mais buracos decoram seu casaco agora, junto a alguns na camisa, onde o peito liso fica à mostra. Mesmo em suas calças há buracos, como se o conjunto tivesse passado algum tempo pendurado em um armário infestado de traças. Ele pega o chapéu e o espana com a mão. Seus olhos grudam nos meus. O calor me sobe às bochechas quando ele limpa o rosto manchado com um lenço.

Os sete pássaros não se mexem diante do grifo. Rosnando um alerta, a criatura mitológica ganha o céu, indo atrás dos outros cinco pássaros e das lagostas de pedra até todos desaparecerem sobre a colina.

Enquanto papai tenta se livrar de seu simulacro, Morfeu sustenta nosso olhar. Ele guarda o lenço, a expressão em algum ponto entre o fascínio e o orgulho. É difícil dizer com exatidão, porque as joias sob seus olhos estão piscando com incontáveis emoções.

— Minha Rainha — ele finalmente fala, e sua voz costumeiramente forte demonstra um ínfimo tremor.

— Meu lacaio. — Eu nem pisco, retribuindo a indiferença. — Não parece surpreso por me ver aqui.

— Ah, eu sabia que encontraria um modo. Era só uma questão de tempo. Na verdade, você chegou antes do que eu esperava. — Ele gesticula, indicando o entorno. — Daí, o deplorável estado de minha casa.

— Bons criados são difíceis de achar — eu provoco.

Suas íris pretas como tinta cintilam feito ônix, e um sorriso aponta em seus lábios. Não consigo resistir mais um segundo, e sorrio em resposta. O momento é quebrado por sete pássaros mutantes que surgem acima dele.

— Cuidado! — eu grito.

Quatro o atacam. Os outros três voam na nossa direção.

— Allie, abaixe-se! — Papai abre a bolsa de viagem.

Um dos pássaros investe contra a cabeça de papai. Os outros dois colidem em pleno ar e despencam no chão. Papai se defende com uma adaga de ferro em uma mão e um mangual na outra. Trocando os pés com destreza, ele gira a bola com pontas de ferro e arranca um pedaço do bico do atacante.

Os dois pássaros do chão rolam de encontro a papai, fazendo-o cair de joelhos. Ele solta um gemido, esparramado ao lado de garrafas de água e barras de proteína. A captura de mamãe surge em flashes na minha cabeça, em dores vivas e pulsantes.

A loucura por baixo da superfície de minha pele desperta. Concentro-me nos gêiseres em miniatura mais próximos de nós, mentalizando-os como línguas que se desenrolam das bocas de serpentes. As cascatas crescem até ficarem grandes o suficiente para estalar no ar e arrebatar os atacantes de papai, capturando o pássaro com o bico ferido em seu retorno. As línguas líquidas puxam os pássaros gigantes para os fossos e os submergem.

Papai cambaleia na beira da água, com a adaga em punho. Bolhas emergem das profundezas e vão escasseando aos poucos.

— Alyssa — ele chama.

Não me importo com o fato de ele ter usado meu nome por extenso nem com a preocupação em sua voz.

Em vez disso, permito que as espirais da loucura rastejem sobre minha compaixão humana — enjaulando-a para que fique alheia às minhas ações. Então, olho fixamente para as bolhas, comandando que o ar se dissipe, aguardando que os pulmões dos pássaros sucumbam. Desejando sua morte.

— Você nunca matou ninguém, Allie. Certifique-se de que essa é a única maneira. De outro modo, isso vai assombrá-la... — A lógica de papai me desperta.

Uma pontada de nojo revolta meu estômago.

Ele está errado. Eu matei. Houve tantos insetos em minha vida que eu poderia encher um elevador de grãos com os corpos, se não os tivesse usado em meus mosaicos. Também contribuí para a morte de inúmeros guardas de cartas e pássaros jubjub no País das Maravilhas, sem falar no octopolvo.

Já chega. Por enquanto.

Com um comando silencioso, ressuscito os gêiseres. Eles se erguem, carregando os pássaros mutantes para o alto. Um esguicho quente me açoita enquanto conduzo a água cascateante para a árvore mais próxima, imaginando que seus ramos estéreis são pétalas de flor. A água estatela seus passageiros dentro dela, e os ramos se fecham à sua volta, deixando meus prisioneiros ensopados e arfantes de cara para mim. Os gêiseres voltam a afundar nos fossos.

— Essa é a minha menina — papai diz.

O poder que estou aprendendo a exercer me assusta, mas não o suficiente para me fazer parar e analisar a situação. E isso me assusta ainda mais.

Viro-me para ver como está Morfeu. O grifo voltou e segura os quatro pássaros restantes sob as garras gigantes. Há sangue pingando delas, o que não deixa dúvida quanto ao destino dos cinco pássaros que ele perseguiu na colina.

Morfeu coloca-se diante dos cativos.

— Uma palavra minha e minha mascote os cortará ao meio, como fez com seus comparsas.

A criatura com bico de pato emite um som que é algo entre um chiado e um grasnido, e os outros tremem sob as garras afiadas que pressionam suas penas.

Morfeu agacha-se ao lado da águia-pesqueira.

— Os rapazes têm com a senhorita uma dívida de gratidão. — Ele arranca uma pena da cara feia do pássaro. — Como estou tentando impressioná-la, vou seguir seu exemplo e ser piedoso. Mas levem uma mensagem para Manti, por favor. Digam-lhe que ele não tem a menor chance de vencer nenhuma corrida se não pode nem travar suas batalhas pessoalmente. — Morfeu traça o contorno do bico trêmulo do pássaro com a ponta da pena. — Ah, e obrigado pela nova pena de escrever.

Com um sinal para o grifo, Morfeu levanta-se e os pássaros mutantes ganham a liberdade. Viro-me para meus prisioneiros na árvore e os solto também. Com grasnidos e guinchos de derrota, eles se espalham pelo céu púrpura sem as sombrinhas, tornando-se ainda mais deformados a cada bater de asas.

Dois deles começam a perder as penas. Os corpos se contorcem em pleno ar até eles não conseguirem mais voar. Despencam das alturas. Nuvens de cinzas se agitam a distância, marcando o contato.

— Estão mortos? — pergunto.

— Estão — Morfeu responde com indiferença. — A derradeira consequência por continuarem usando magia. Sua espinha enrolada e seu corpo murcho e reduzido a uma carcaça inútil.

Aperto os dedos em torno do diário sob minha túnica. As memórias da Vermelha estão quietas e calmas por enquanto, mas sua presença me traz à mente várias perguntas.

— O que acontece com os espíritos deles? Vão procurar corpos para possuir?

Morfeu enfia a pena no bolso.

— Não é assim que funciona em Qualquer Outro Lugar. Quando você morre, desaparece para sempre. É um efeito do ferro. Cada parte de nós que continha magia vira cinzas, do corpo ao espírito. Nossos restos são levados com o vento, formando os ciclones que trazem e levam prisioneiros. — Seu rosto torna-se sombrio. — Então, não hesite em matar se for o único modo de sobreviver, Alyssa. Aqui, não.

Papai e eu trocamos olhares inquietos.

O grifo se esfrega na perna de Morfeu como um gato gigante e em seguida volta a se transformar na bengala. Morfeu a pega na mão, limpando o sangue das garras com o lenço.

— Agora eu entendo — digo ao observá-lo.

Os cílios negros de Morfeu se levantam, o interesse iluminando os olhos.

— Entende o quê?

— Por que você precisa de uma bengala.

Ele ergue uma sobrancelha.

— Que bom que saciou sua curiosidade.

— Exceto pelo que aconteceu com suas roupas.

Olhando para seu conjunto, ele grunhe:

— Só lavagem a seco, oras. — Ele espana o casaco com a mão, franzindo a testa para os buracos onde aparece sua pele.

— Morfeu.

Ele volta a olhar para mim.

— Como é que você está usando magia sem ser afetado, apesar da cúpula de ferro?

— Creio que manterei essa resposta para mim, amorzinho. Se eu lhe contasse todos os meus segredos, não haveria mais mistérios em nosso relacionamento.

— Não sou grande fã de mistérios.

Aquele sorriso malandro que um dia eu odiei curva seus lábios e minhas entranhas.

— Bobagem. Você adora. — Ele anda até a beira de sua mini-ilha e usa a ponta com garras da bengala para puxar nossa ilha flutuante para mais perto, evitando a água. — Você se delicia com o desafio de solucioná-los.

Ele pisa em nosso pedaço de terra e suas asas se erguem. Seu brilho negro e suave é o oposto do brilho das que tenho enfiadas na pele, incrustadas com joias opacas. Sinto o aroma de tabaco. Está diferente de antes — menos açucarado e mais frutado, terreno —, como carvão e ameixas.

— Pare bem aí — meu pai grunhe quando os pés de Morfeu se detêm a poucos centímetros de minhas botas.

— Papai, ele é meu amigo e eu não o vejo há um mês. — Não vou admitir quanta saudade senti dele. Sei que não devo dar nenhuma vantagem a Morfeu. — Poderia nos dar um segundo, por favor?

Papai lança um olhar corrosivo da cabeça às asas de Morfeu.

— Nada de gracinhas — ele diz.

As joias de Morfeu cintilam em um malicioso púrpura-avermelhado, precursor de alguma réplica irônica que aguarda para saltar de sua língua. Eu lhe lanço um olhar de súplica e ele revira os olhos em resignação silenciosa.

Satisfeito, papai se afasta e se agacha para guardar os simulacros e as armas na sacola de viagem.

— Jeb está vivo? — pergunto a Morfeu.

A cor branca desbota suas marcas de joias — a cor da indiferença.

— Eu não o matei, se é isso que está sugerindo.

— Você sabe que não. Será que poderia, uma vez na vida, me dar uma resposta direta?

Ele olha para o nebuloso céu cinza.

— Seu mortal está vivo e bem. Na verdade, você certamente o verá muito em breve.

Lágrimas de alívio brotam em meus olhos.

— Então, isso quer dizer que você sabe onde ele está? — É possível que Morfeu tenha acolhido e protegido Jeb, afinal?

Papai para de guardar as roupas na sacola, esperando pela resposta.

Estudando sua bengala, Morfeu grunhe:

— Eu sei onde ele está, sim. — Antes que eu possa responder, ele levanta os olhos e encara os meus, as joias agora de um tom verde-esmeralda. — Suponho que eu deveria ser grato porque não foi o nome dele a primeira coisa que saiu de sua boca.

O ciúme e a mágoa com que ele me encara não são inesperados, mas o efeito que têm em meu coração, sim. Provocam aquela mesma sensação dilacerante e tortuosa que está se tornando muito familiar. Controlo a respiração para abrandá-la.

— Eu fiquei com muito medo por vocês dois. Agora que sei que você está bem, é claro que preciso saber dele.

— Você poderia pelo menos me perguntar primeiro como minha orelha está.

O pedido é quase cômico. Morfeu — o mais confiante e independente intraterreno do País das Maravilhas — está amuado, e isso o faz parecer uma criança... como meu companheiro de brincadeiras de tantos anos atrás. Mais do que isso, ele parece o filho que tivemos na visão da Marfim, o que deflagra uma torrente de emoções à qual tenho medo de dar um nome.

O som dos passos de papai fica mais fraco. Ele está recolhendo as garrafas de água e as barras de proteína para nos dar a privacidade que pedi.

Eu me aproximo e corro a ponta do dedo sobre o sangue seco na orelha de Morfeu.

— Está doendo? — sussurro.

Ele inclina a cabeça ao meu toque.

— Arde um pouco — ele diz baixinho, e estuda minha boca tão fixamente que meus lábios parecem ficar mais pesados. Seu corpo inteiro se retesa, limitando-se. Se estivéssemos sozinhos, eu não o reprimiria. — Você pode curar isso, sabe.

Suas palavras me fazem perder o equilíbrio.

— Curar... o quê?

Ele enruga a testa por baixo da aba do chapéu.

— A dor.

Meu rosto fica quente com a ideia de curá-lo, e depois arde em chamas quando percebo que não é da dor na orelha que ele está falando.

Uma flutuação por baixo da pele em sua clavícula me diz que sua pulsação está disparando, assim como a minha. Começo a tirar a mão, mas ele a apanha, pressionando a palma contra seu rosto macio. A ação ao mesmo tempo me surpreende e me conforta.

— Eu pensei que você estaria furioso — eu digo. — Porque mandei você para cá. Porque destruí a toca do coelho e negligenciei o País das Maravilhas. Eu arruinei tudo. — A confissão provoca um nó em minhas entranhas.

Ele balança a cabeça.

— Você tomou uma decisão de rainha ao enviar os momirratos. E foi a decisão certa. Mesmo quando fazemos o que é certo, as consequências às vezes podem ser calamitosas. Pensar duas vezes a cada passo restringe o ímpeto de avançar. Confie em si mesma, perdoe-se e siga adiante.

Passo a ponta dos dedos em seu queixo. Há muito tempo eu precisava ouvir essas palavras.

— Obrigada.

— O importante é que você veio para consertar as coisas — ele diz. É uma observação, não uma pergunta.

Eu concordo.

Segurando meu pulso, ele inclina a cabeça para que sua boca roce minha mão.

— Eu sempre soube que viria — ele sussurra contra minhas cicatrizes, suas joias cintilando intensamente em dourado, como cintilaram há mais de um ano no País das Maravilhas, na primeira vez que ele disse essas palavras para mim, pouco antes de me arrastar para um jogo louco de desordem e política que quase me matou.

Mesmo assim, apesar da forma como o perigo o atrai, de como cresce dentro dele, ou talvez por causa disso, meu lado obscuro e cruel amolece ao sentir seus lábios em minha pele.

A adaga de papai se interpõe entre nós, a ponta pressionando a jugular de Morfeu.

— Acabou o tempo.

Morfeu solta minha mão.

Eu aperto meus dedos ao lado do corpo para as cicatrizes pararem de formigar.

— Papai, por favor. A faca não é necessária.

Com o queixo retesado feito granito, ele me empurra para trás com o cotovelo. É só um pouco mais baixo do que Morfeu, mas a justa indignação que emana dele compensa a diferença de altura.

A pele de Morfeu se tinge de verde, um efeito do contato com o ferro. Então, por que a cúpula não limita sua magia? Ele certamente tem um segredo. E eu vou descobrir qual é.

A ideia do desafio me provoca, como Morfeu disse que faria. É mais do que uma pequena inquietação saber que ele conhece tão bem o que me motiva.

— Você tem ideia do que fez com a minha família? — papai diz com raiva, tirando-me da contemplação.

Morfeu conduz a ponta da adaga para seu ombro em lugar do pescoço nu.

— Acredito que tornei possível que você tivesse uma família, em primeiro lugar, Thomas. Um agradecimento seria suficiente.

Papai escorrega a adaga de volta para o pescoço de Morfeu.

— Vamos fazer o seguinte: você vai nos levar até o Jeb e depois nos conduzir em segurança por este reino amaldiçoado até o portão do País das Maravilhas, para podermos encontrar a Alison. — A ponta de metal enruga a pele de Morfeu. — E depois, somente depois, eu vou decidir se devo agradecer-lhe ou “cortá-lo ao meio” e transformá-lo em um monte de cinzas aos meus pés.

 

 

8


Asas Quebradas e Cavalos
sem Pernas

Morfeu e eu trocamos olhares enquanto papai vasculha a sacola. Quando ele abre o mapa, centelhas alaranjadas irrompem de dentro dele e entram pela boca da sacola. Um leve espirro emerge lá de dentro. Papai dá um pulo para trás e Morfeu dá um passo para a frente, com um meio sorriso entretido nos lábios.

Ele enfia a mão dentro da sacola e tira uma bolinha do tamanho de um beija-flor, listrada com pelos laranja e cinza. O sorriso provocador de Chessie aparece quando ele desenrola o corpo e senta, balançando as patas da frente, na beira da mão enluvada de Morfeu. Sua cauda fofa tremula, uma indicação precisa de que ele está orgulhoso de si mesmo.

— Ora, ora, veja quem deixou o gato entrar — Morfeu diz. — É bom vê-lo, velho amigo. — Ele afaga a cabecinha do felino intraterreno com o polegar.

Chessie arqueia as costas e em seguida volta os olhos travessos para mim.

— Danadinho. — Não consigo parar de sorrir, lembrando-me daquele momento em que tio Bernie fechou a porta do Gravitron e centelhas laranja se infiltraram na câmara. Chessie estava planejando pegar uma carona desde o começo.

O pequeno intraterreno tenta voar, mas eu o detenho, fechando os dedos sobre a palma da mão de Morfeu.

— Espere. Existem regras aqui. Se usar sua magia, vai acabar se machucando. Você pode sofrer mutações... e até morrer.

— A maior parte é verdade — Morfeu corrige, levantando minha mão. — Mas lembre-se de que nosso Chessie é de uma linhagem rara. Espírito e carne ao mesmo tempo. Ele pode usar magia. É o único intraterreno puro que pode.

— Além de você, é o que quer dizer? — eu provoco.

Morfeu intencionalmente evita meu olhar e concentra-se em Chessie.

— Você deve evitar soltar a cabeça enquanto estiver aqui. Do jeito que a paisagem muda, arriscaria perdê-la. Agora, você quer voar ou gostaria de pegar uma carona?

Chessie flutua até o único bolso que restou na roupa de Morfeu e deposita-se lá dentro, deixando somente a cabeça para fora.

Antes que Morfeu possa se mover, coloco a mão em sua lapela.

Esticando-me na ponta dos pés, esfrego o nariz felpudo de Chessie no meu.

— Obrigada por me curar lá atrás — digo para ele — e por manter meu colar em segurança. — Quando estou prestes a beijar sua cabeça, ele se agacha dentro do bolso.

Meus lábios pousam no meio de uma das aberturas na camisa de Morfeu, beijando a pele quente e macia.

— Me desculpe. — Corando, dou um pulo para trás e perco o equilíbrio quando o chão abaixo de mim treme.

Morfeu me pega pela cintura, a afeição tingindo suas joias num tom rosáceo.

— Não precisa se desculpar.

Papai solta um pigarro. Eu engulo em seco, afastando-me.

— Temos que ir andando. — Papai pega a sacola de viagem e dá o mapa a Morfeu. — Onde está o Jeb, de acordo com esse mapa?

Ainda com a atenção voltada para mim, Morfeu empurra o pergaminho sem ao menos olhar para ele.

— Esse frangalho não o levará a lugar algum. A paisagem é imprevisível, caso não tenha notado. Quem lhe deu este mapa deveria ter dito isso. Talvez, com seu limitado intelecto humano, eles não consigam assimilar a magnitude de tais alterações.

Papai franze a testa.

— Disseram que as posições dos portões nunca mudam. Eu posso ver o brilho deles, ali e ali. — Ele aponta as ondas verdes radioativas no horizonte a distância, à nossa direita e esquerda.

Suspirando, Morfeu volta a atenção para papai.

— Muito bem. Responda-me uma coisa: onde é o norte e onde é o sul? Sabe de qual direção chegou? É impossível deixar de andar em círculos neste mundo sem uma bússola.

— E você tem essa bússola? — papai pergunta.

— Eu tenho a minha bengala — Morfeu responde com ar de segredo.

Papai range os dentes.

— Então você espera que nós simplesmente o sigamos.

Os lábios de Morfeu se curvam em um sorriso largo e malévolo.

— Alyssa não terá problemas em me acompanhar. Quanto a você, posso carregá-lo nos ombros mais uma vez, se necessário.

É uma farpa maldosa, e eu lanço um olhar de repreensão para Morfeu.

— Não será necessário — papai diz, inabalável. — Você nos levará até Jeb. Tenho formas de convencê-lo. — Ele bate na adaga embainhada pendurada em seu braço esquerdo.

— De acordo — Morfeu revida. — Afinal, não tenho escolha. — Sua réplica é cheia de frustração. Deve haver um motivo mais forte do que a adaga de ferro de papai para persuadi-lo. Afinal, ele pode alçar voo a qualquer momento que queira.

Ele se vira sobre o calcanhar e começa a escolher o caminho através das ilhotas flutuantes, usando a bengala para uni-las sobre os fossos, como fez antes. Papai e eu o seguimos.

O fato de termos de nos equilibrar sobre um terreno balouçante torna o caminhar difícil, até que aprendemos onde pisar e pegamos o ritmo. Surtos momentâneos de atividade pontuam a paisagem: bandos de coelhos fofinhos saltitando a distância que, olhando mais de perto, têm o focinho e caninos afiados de lobos; criaturas parecidas com crocodilos levantando a cabeça por entre os fossos — mandíbulas gigantes bocejando e revelando dentes macios e brancos que lembram vagamente cerdas de escovas de dentes; e centopeias arrastando-se sob ervas daninhas espinhentas para proteger o corpo coberto por uma pele prateada e aveludada, e pernas cravejadas de pequeninas joias verdes.

A maioria dos animais e insetos nos ignora, e eu prefiro assim. Não consigo ouvi-los, nem às flores. Contudo, quando minha túnica fica presa em uma planta com frutos que parecem xícaras de chá de couro vermelho penduradas de cabeça para baixo, penso em tocar nela.

— Eu não incomodaria essas aí, se fosse você — Morfeu grita da minha frente, sem nem se dar ao trabalho de olhar.

Recolho a mão.

— O fruto é venenoso?

— Não é um fruto — papai responde lá de trás. — São bolsas de ovos para um gênero anfíbio de morcego aqui de Qualquer Outro Lugar.

Morcegos que vivem na terra e na água. Assustador.

Aumento a distância entre mim e as plantas para não perturbar os receptáculos em forma de xícara. O poema da história de Carroll ecoa em minha mente:

Pisca, pisca, morceguinho,

Aonde vais nem adivinho.

Lá no céu, como travessa

Para chá, voas depressa.

Pisca, pisca, morceguinho,

Aonde vais nem adivinho.[1]

Enquanto tento lembrar o resto dos versos, tropeço em um grande arbusto. Uma confusa miscelânea de borboletas-monarcas revoa das folhas. Suas asas são finas como papel, e metálicas, como uma mistura entre cobre forjado e vitral. Estendo a mão para capturar uma, mas minha intuição intraterrena detém minha mão no ar.

— E as borboletas? — pergunto.

— Elas são nativas deste lugar — Morfeu responde alguns passos adiante, antes que papai possa responder. — E, por causa disso, pode contar que elas sejam o oposto do que você esperaria. Os dentes dos crocodilos eram de cerdas macias de escovas de dentes, e seu temperamento era igual. Eles são como gatinhos neste mundo. Mas as borboletas? Uma picada e você vira pedra. Ou então elas podem escolher cortar uma artéria com uma de suas asas afiadas como navalhas. As mudanças constantes no cenário servem para manter a fauna distraída. Ignore-os, e eles retribuirão com a mesma cortesia.

As graciosas borboletas se distanciam, flutuando em uma corrente de ar, e eu percebo uma agulha brilhante e afiada projetando-se de seu tórax, curva e com uma ponta venenosa, feito o ferrão de um escorpião.

As coisas se acalmam à medida que a fauna retoma sua rotina. Se é que se podem chamar coisas como ovos feito xícaras de chá e escorpiões com asas de metal algo rotineiro...

Depois de falar de outras criaturas estranhas com papai, liberto minhas asas e voo para alcançar Morfeu.

Ele olha para mim quando pouso ao seu lado. Um sorriso satisfeito me saúda.

— O que foi? — pergunto.

— Você pode não estar vestida como a realeza, mas é bom vê-la aceitar seu lado intraterreno tão abertamente.

Olho para minhas botas vermelhas, reprimindo um arroubo de orgulho. Ele nem desconfia de como está ficando fácil soltar as rédeas da loucura.

— E então, vai me dizer quem é esse tal de Manti? Ele é perigoso?

— Que nada. É um manticórnio ambicioso que foi um humilde valete por tempo demais. Ele anseia por poder e prestígio. Nada com que você tenha que se preocupar.

O fato de haver um ser que é metade homem, metade unicórnio de verdade correndo por aí já é suficiente para me preocupar, e a garantia de Morfeu parece, no mínimo, forçada.

— Você não acha que chegaríamos mais depressa se voássemos? — pergunto para apaziguar meus nervos tensos. — Papai pode usar o seu grifo. Você poderia deixar que ele o levasse.

Morfeu volta a atenção para a paisagem. As joias de seu perfil mudam de vermelho para preto.

— Não sinto muita vontade de compartilhá-lo com seu pai. Tenho certeza que entenderá.

— Então, espere por nós e eu voltarei para pegar uma das sombrinhas que os pássaros deixaram.

— Também não tenho vontade de esperar.

Eu faço uma careta.

— Pare de ser tão mesquinho. — Olho para papai, que nos mantém sob sua vista, alguns passos atrás. — Coloque-se no lugar dele. Pode imaginar o que ele tem passado? O pesadelo que ele teve que reviver e aceitar como realidade nas últimas horas?

Vários passos adiante de mim, Morfeu ergue a cabeça, deixando a brisa úmida enrugar a franja azul na aba do chapéu.

— Sim, pobre homem. Deve ter sido insuportável perceber quanto a mulher que ele adora também o ama.

Batendo as asas, acompanho seu passo rápido.

— Você não está comparando o romance deles com...

Ele estuda meu rosto com um sorriso irônico e amargo.

— Com o de quem, Alyssa?

Mordo a parte interna do lábio, irritada comigo mesma por quase levantar a mão.

— Espere. — Eu o estudo, dos pés à cabeça. Sim, ele ainda parece ser o mesmo Morfeu que eu conhecia. Mas há uma diferença discernível: suas asas o seguem feito rastros de tinta, enquanto as minhas batem, levantando-me um pouco do chão. — Essa não cola. Você está mudando de assunto. Está enrolando.

Morfeu faz ar de escárnio enquanto traz outro pedaço vagante de terra para podermos pisar nele sem nos molharmos.

— Ridículo. Por que eu faria isso?

Pulo com leveza na frente dele.

— Porque é você quem precisa do grifo. Você não pode voar sozinho, assim como meu pai.

Enquanto esperamos que papai nos alcance, Morfeu segura a ilha vizinha no lugar com a bengala. O único som é o dos gêiseres borbulhando à nossa volta. Seu silêncio é muito significativo.

Coloco minha mão sobre a mão que segura a bengala. Através da luva fina, sinto seus músculos tensos.

— Não vi você usar as asas nem uma vez desde que estou aqui. Aquela coisa-pássaro... ela disse que você precisa se recarregar, que sua magia acabou. O que significa que você não é imune à cúpula. Vai me contar o que está havendo?

Sua outra mão se fecha sobre a minha, tornando-me cativa em vez de captora, enquanto ele sustenta meu olhar.

— Naturalmente. Assim que você me disser o que há nesse pequenino diário que traz no pescoço.

Meu coração dispara junto ao diminuto caderno que descansa sobre meu esterno. Ainda está sob a túnica, então ele não poderia tê-lo visto.

— Como é que você...?

— Chessie fala com os olhos. Você só tem que olhar e ouvir.

A cauda de Chessie escorrega para fora do bolso de Morfeu e se contorce, como se zombasse de mim.

— Na verdade — eu digo quase para mim mesma —, estamos aprendendo a nos comunicar ultimamente.

— Bom. — Morfeu balança a cabeça. — A maior prioridade de uma rainha deve ser uma comunicação aberta com os súditos. Agora, de volta à minha pergunta.

Aperto os lábios. Ainda não estou pronta para compartilhar o segredo do diário. Trazer à baila meu plano para derrotar a Vermelha vai abrir o assunto do voto pela magia da minha vida que fiz para Morfeu um mês atrás, que eu passaria vinte e quatro horas com ele depois que a derrotasse. Agora não é a hora nem o lugar de discutir isso.

Papai cruza o fosso que o separa de nós, obviamente atraído por nossas mãos unidas.

— Por que paramos?

Morfeu faz cara feia.

— Só esperando que o humano nos alcance, embora saibamos que ele nunca realmente nos alcançará — ele graceja, frio como sempre. Mas há uma ruga de preocupação entre suas sobrancelhas, um tique inconsciente que ele não consegue esconder de mim. Não respondeu à minha pergunta sobre as asas. O invencível Morfeu está aleijado. E isso me entristece.

Voltamos a caminhar, com papai nos seguindo de perto. Quero pressionar Morfeu sobre sua fraqueza aqui, mas seu orgulho não o deixará responder. Então, mudo de assunto.

— Voltei a ficar curiosa.

Ele rodopia a bengala.

— Mas é claro. Esta é sua qualidade mais encantadora.

Balanço a cabeça em resposta à provocação.

— Os pássaros mencionaram uma Rainha de Copas. É o pseudônimo da Vermelha aqui?

Morfeu entorta o queixo.

— A Rainha de Copas não é a Rainha Vermelha. Sua mãe sempre as confundia, mas eu tentei explicar. A Copas era uma rainha da Corte Vermelha séculos atrás. Ela é uma parenta sua, mas distante. Ela tinha tendências à barbárie, assassinando os súditos pelos motivos mais inanes. Pegar um pedaço de torta e deixá-lo no prato, ou derramar seu esmalte de unhas. Por isso, ela herdou a alcunha de Sem Coração. Em uma manobra distorcida para ganhar respeito, começou a colecionar a única coisa que os súditos diziam faltar a ela.

— Corações? — eu pergunto, quase engasgando com a ideia. — Era a isso que o pássaro troglodita se referia quando disse que aqueles que não vencerem a corrida perderão seu coração pulsante?

— Precisamente. Os corações intraterrenos são únicos. Eles podem ser colhidos e continuar a bater para sempre depois que sua prisão corpórea desaparece. A rainha se aprimorou nessa técnica. Ela também pode sentir a qualidade de um coração. Ela usa esses órgãos para tudo: desde acessórios para suas roupas até pesos de papel. Ela foi banida do reino por essa prática e enviada para cá depois que se tornou uma assassina demasiadamente violenta para ser contida. Infelizmente, agora ela está abrigando o espírito da Vermelha. Duas rainhas pelo preço de uma. É uma pechincha e tanto.

Minha garganta se fecha.

— Mas você disse que os espíritos não podem possuir outros corpos aqui...

— Exceto se esse “corpo” for adequado e tiver a mesma linhagem. Na ausência de magia, a linhagem se torna o elo mais forte. A fada-flor em que a Vermelha chegou estava acabada. De fato, da última vez que a vi, achei que ela estava morta; forragem para os pássaros trogloditas. Mas ela os convenceu a carregá-la até o castelo da Copas e ofereceu alguma barganha à sua ancestral para compartilhar o corpo. Embora eu ainda desconheça quais foram os termos.

Um arrepio de terror gela meus ossos. Se a Vermelha está dentro do corpo de outra rainha, tão maliciosa e selvagem quanto ela, as memórias do meu diário podem se mostrar inúteis. Preciso de mais alguma coisa para poder barganhar. Se eu descobrisse o grande plano da Vermelha...

— Fiquei sabendo de uma coisa, por parte de um amigo do Humphrey, o Hubert. Nós ficamos na estalagem dele.

Morfeu fica radiante.

— Ah, o Hubert. Como está aquele velho bebum?

— Esplêndido. — Eu franzo as sobrancelhas. — E rabugento.

Um riso profundo irrompe do peito de Morfeu.

— Eu sempre gostei da companhia dele.

— É — eu digo, zombando. — Ele é um ovo muito legal.

Morfeu ri novamente, e não consigo conter um sorriso em resposta.

— Enfim — continuo —, ele disse algo inacreditável sobre a Vermelha e Lewis Carroll. Que eles se conheceram antes de Alice entrar na história. — Morfeu parece genuinamente surpreso, mas aguarda que eu termine. — A Vermelha queria que Lewis encontrasse o País das Maravilhas, de acordo com o cabeça de ovo. Você sabe algo sobre isso?

Morfeu não tem tempo de responder, porque repentinamente o sol aparece por entre as nuvens do céu, um flash ofuscante que nos faz cobrir os olhos. O céu desvanece em um brilho cor de pêssego e o chão treme. Morfeu segura meu cotovelo. Água jorra dos fossos e as peças do quebra-cabeça voltam a se encaixar. As árvores ressecadas à nossa volta ganham folhas de um verde tímido e flores brancas; no mesmo instante, nossos pés ficam rodeados de grama.

Quando tudo se estabiliza, incluindo o chão, Morfeu me solta e papai nos alcança. Eu estreito os olhos. Fica tudo tão claro que nós até lançamos sombras, e as formas altas e frondosas da folhagem salpicam matizes sobre a terra. Até os cheiros mudaram, de estagnados e fumacentos para fragrantes e florais, trazidos por uma brisa temperada. É como a primavera no Texas. Uma pontada de saudade de casa acompanha esse pensamento. Estou prestes a mencionar isso para papai quando uma luz verde — não maior do que um gafanhoto — cintila no céu e cai.

Ao descermos, podemos ver melhor o ser de pele verde-viva com escamas brilhantes curvadas sobre os seios e o torso, e orelhas pontudas. As asas da fada tremulam, de um branco leitoso e cobertas por uma penugem, e seu cabelo brilha como algodão-doce feito de açúcar mascavo. Ela pousa sobre o ombro de Morfeu, escondendo-se sob o chapéu. Quando ele ergue o dedo mindinho para afagar seu pé, ela espia por trás da cortina de cabelo azul dele, com os olhos metálicos tremeluzindo, como se usasse óculos escuros marrons.

— Olá, minha pequena e adorável Nikki — Morfeu diz a ela carinhosamente. — Suponho que esteja aqui para me avisar que minha carona está a caminho.

Ela fala baixinho no ouvido dele, e só consigo ouvir um tilintar parecido com sinos de vento.

— Espere — eu digo. — Por que ela pode voar sem sofrer mutações? Não faz sentido.

— Você terá todas as respostas que procura muito em breve. — Morfeu me passa a bengala. O gesto é mecânico, quase resignado. — E reencontrará Jebediah também. Mas estou avisando. Ele não é o mesmo rapaz que você conheceu.

— Hum? — eu indago.

— É só pedir à bengala que voe — Morfeu diz, evitando minha pergunta. — Aconteça o que for, não a deixe ficar molhada. — Em seguida, dá as costas para mim.

Os pelos de minha nuca se arrepiam quando percebo que sua sombra não se vira com ele. Em vez disso, ela o encara, mais como um reflexo borrado do que como um contorno eclipsado no chão. Suspirando, Morfeu dá as mãos para a silhueta escura e é erguido no ar ao som dos ecos fantasmagóricos das próprias asas. A pequenina fada olha para mim mais uma vez antes de segui-los.

Fico boquiaberta, imóvel.

Papai coloca a mão nas minhas costas.

— Temos que ir. Ele é nossa única chance para encontrar Jeb e sair daqui. — Sua voz está trêmula, e eu sei que ele está tão apavorado quanto eu.

Dou-lhe o bastão do grifo.

Arrumando a sacola no ombro sobre a adaga, ele sobe na bengala como uma criança sobe em seu cavalo de madeira.

— Voa — ele sussurra baixinho, e, com um rufar de asas e pelos, a criatura ganha vida. Ela abre o bico com um rugido. Suas asas de águia se agitam, fazendo meu cabelo esvoaçar, e o grifo alça voo com papai segurando firme em sua juba.

Reprimo as perguntas que rodopiam em minha mente, abro as asas e me lanço ao céu, mantendo papai e Morfeu à vista enquanto cortamos nuvens macias, na direção das ondas espumantes de um oceano que brilha a distância.


Uma montanha surge da água quando estamos descendo, como se estivesse nos aguardando. A fada e Morfeu, junto a sua sombra, mergulham na direção das pedras na encosta. A montanha se abre e os engole, em seguida fechando a entrada.

No momento em que papai toca no solo, o grifo se transforma na bengala. Eu pouso ao lado deles. Minhas asas fazem muito peso sobre os ombros, cansadas do esforço. Eu limpo o suor da testa.

— E agora? — papai pergunta.

Tento encontrar uma fresta ou buraco que possa ser a chave para abrir a montanha.

— Poderia me emprestar isso? — Pego a bengala de Morfeu e uso as garras para cavar algumas pedrinhas. Como nada acontece, cutuco algumas saliências com o pé.

— Pare! — Uma voz, áspera como pedras raspando uma na outra. — Pare já com isso!

Fico boquiaberta.

— Isso não é maneira de dar uma boa primeira impressão — a voz fala novamente.

— Sim, para dar uma boa impressão você deveria estar segurando um cinzel — uma segunda voz, menos rabugenta, acrescenta.

Dois rostos aparecem na encosta da montanha, um deles feito de terra, o outro de pedra. O rosto de pedra é o rabugento e tem olhos arregalados e grandes. O outro — o de terra — tem olhos estreitos e um jeito quase engraçado.

Papai larga a sacola de viagem e senta sobre ela. Sua pálpebra esquerda está tremendo tanto que parece o ponteiro de segundos de um relógio.

— Tudo bem, papai. Eu cuido disso.

Concordando, ele passa a mão pelo cabelo.

Pisando sobre algumas pedras soltas, chego mais perto do rosto simpático.

— Precisamos entrar.

— Aaaahhh, sinto muito — diz a voz rabugenta e empedrada por trás de mim. — Só o mestre pode abrir a porta.

— É, sim. Lamento. — Olhos quase fechados me encaram com simpatia. — Sinto muito mesmo. Meu coração fica triste por você.

O solo abaixo de nós treme, e começamos a afundar no oceano. Papai pega a sacola e, juntos, subimos a montanha com a mesma velocidade com que o oceano sobe à nossa volta. Todas as vezes que fiz escalada com Jeb me voltam à mente, e tenho a vantagem das asas. Papai também, com a bengala de grifo.

— Vamos ter que voar! — eu grito. — Antes que o pico fique submerso!

Papai se desequilibra quando a sacola e a adaga escorregam de seu ombro. Ele as segura no último instante, mas perde a bengala. Ela cai montanha abaixo e é engolida pelas ondas que crescem. Quando emerge, é o grifo. Ele guincha, batendo as asas, e vai derretendo aos pouquinhos até tornar-se uma mancha oleosa e colorida que flutua.

Papai e eu olhamos estarrecidos, alheios às ondas que já tocam nossos tornozelos.

— Allie, vá! — papai grita, o primeiro a lembrar que a montanha está encolhendo.

Escalando junto a ele, tento invocar minha magia. Minha mente está tão acelerada que minha imaginação não consegue acompanhá-la. Estou em um branco total.

— Pare! — eu grito para a montanha, de puro desespero.

O movimento cessa. A espuma branca toca meus calcanhares.

— Seu mestre gostaria que vocês nos ajudassem — eu digo, na esperança de persuadir os rostos a se mostrarem.

— É mesmo? — O rosto de terra aparece no topo da montanha. — Bem, existe outro modo de entrar.

Arfando, papai e eu trocamos olhares esperançosos.

— Muito bem. E qual é? — eu pergunto.

— Um cavalo. Um cavalo especial. Ele pode fazer vocês entrarem. Só precisam gritar o nome dele a plenos pulmões.

Algo me diz que vou me arrepender de perguntar, mas pergunto mesmo assim.

— Então... qual é o nome dele?

— Não posso dizer para você, magricela bobinha.

Eu olho desconfiada, segurando o desejo de pisar nos torrões de poeira que formam os lábios do rosto.

— Então me dê uma pista. As letras do nome... um anagrama. Qualquer coisa!

— Só posso dizer que é um cavalo.

O outro rosto aparece na beira de uma pedra do tamanho de uma bola de golfe, com os traços comprimidos para caber em uma superfície menor.

— Um cavalo sem pernas que pode se mover para cima e para baixo, para a frente e para trás... Um cavalo sem sela que pode acomodar o cavaleiro mais frágil... Um cavalo sem asas que pode deslizar com a graça de um pássaro.

Eu passo a mão no rosto.

— Está brincando comigo? Mais uma charada idiota?

O falante de pedra entorta a boca numa careta.

— Eu prefiro dar um mergulho a ficar ouvindo suas lamúrias. Você tem uma chance somente, então tenha certeza do que vai dizer! — Em seguida, balançando-se para a frente e para trás até que a pedra se solte, ele rola para dentro da água com um tibum.

O de olhos estreitos olha para mim e enruga os brotos de grama que formam seu nariz.

— É melhor você descobrir depressa. Porque sua ingratidão me fez sentir muito mal.

A montanha começa a encolher novamente. Em questão de momentos, as ondas já lambem nossas coxas.

Solto um gemido.

— Papai, o que você acha?

Ele esfrega a pálpebra que treme.

— Não sei. Talvez um cavalo de balanço?

Penso nas dicas. Parece combinar mais ou menos.

— E quanto à parte de deslizar? Cavalos de balanço não deslizam. Talvez um cavalo de carrossel. Eles são suspensos em um poste, e isso pode contar. Eles se movem para cima e para baixo. Mas não se movem para a frente e para trás, na verdade. E têm pernas...

A água chega ao abdômen de papai.

— Allie. — Sua expressão é aquela que ele faz quando está prestes a estabelecer as regras. Não quero ouvir o que ele está pensando, porque já sei. — Você vai ter que voar — ele diz quando a água bate no meu esterno. — Vá enquanto ainda temos onde pisar.

— Não! Não vou deixar que você se machuque! — Não como fiz com mamãe.

O rosto dela volta à minha mente, o desespero no olhar quando os momirratos a arrancaram e a arrastaram para a toca do coelho que desmoronava, junto com a Irmã Dois e seus brinquedos recheados de almas. Eu não conseguia mais aguentar, por mais que tentasse. Lágrimas brotam do canto de meus olhos.

— Pai, fui eu quem chamou as criaturas que levaram mamãe embora. Sou responsável pelo perigo que ela está correndo agora. Se ela desaparecer para sempre...

— Alyssa Victoria Gardner. — Papai pega minha mão. — Nem diga isso. Seja o que for, você o fez porque teve que fazer. Sua mãe sabe disso. Ela é forte e está bem. E nós vamos encontrá-la.

Nós. Internamente, hesito, com as emoções me arrasando.

— Promete que vai ficar comigo?

— Até o fim. Você vai nos tirar desta.

— Como? — Se pelo menos eu fosse forte o bastante para carregá-lo.

— Eu sei nadar — ele responde. — Posso nadar de costas por tempo suficiente para você ir pegar uma daquelas sombrinhas que os pássaros deixaram, ou até um pedaço de madeira em que eu possa me segurar.

A cena é igual à do ano passado no País das Maravilhas, quando não consegui carregar Jeb na travessia do abismo. Eu deveria encontrar uma maneira de voltar para ele, mas falhei, como falhei com mamãe.

Cerro os dentes com força. Não posso deixar minhas dúvidas vencerem.

Faço um sinal de cabeça para papai, concordando.

Ele larga a sacola para poder deitar-se na água. A sacola submerge, soltando bolhas de ar. Vasculho a distância, incapaz de ver terra em lugar algum. Não tenho ideia se andamos muito ou se as sombrinhas desapareceram na última mudança de paisagem.

Mesmo assim, preciso tentar.

Abraçando papai com força, dou-lhe um beijo apertado no rosto, que tem gosto de sal por causa dos borrifos do mar.

— Não vou desapontar você.

— Eu sei — ele diz, e roça o nariz no alto da minha cabeça.

Ele trança os dedos das mãos para eu pisar e me erguer da água. Respirando fundo, eu tomo impulso e abro as asas, e veios de água escoam delas quando eu me levanto.

— Quando estiver pronta, eu dou um impulso. — Papai faz força e seus lábios se curvam, formando aquele meio sorriso à la Elvis. Sua confiança encenada tem o efeito oposto, fazendo-me lembrar de todas as vezes que ele fingia que estava tudo bem quando mamãe estava no sanatório, e durante essas últimas semanas em que ela está desaparecida. Ele está fazendo a mesma coisa, embora esteja tão confuso e assustado quanto eu.

Chegou a hora de eu ser forte.

Preparando-me para decolar, sacudo as asas. Elas estão pesadas sobre minhas costas, não só por estarem molhadas, mas devido ao musgo enrolado nelas, como criaturas do mar.

Criaturas do mar.

As ondas atingem o queixo de papai.

— Allie, depressa. — A água já entra em sua boca. Seus dedos se retesam sob a sola das minhas botas.

— Espere — eu imploro. Um cavalo sem pernas que pode se mover para cima e para baixo, para a frente e para trás... Um cavalo sem sela que pode acomodar o cavaleiro mais frágil... Um cavalo sem asas que pode deslizar com a graça de um pássaro.

— Um cavalo-marinho... — eu sussurro. Eles usam as caudas para manobrar em qualquer direção, carregam seus bebês em bolsas e deslizam graciosamente pela água, como se navegassem.

— Não dá mais tempo! — papai grita, e me impele rumo ao céu. Logo sua cabeça desaparece debaixo d’água.

— Cavalo-marinho! — eu grito tão alto que meus pulmões doem, abrindo as asas e batendo-as de modo a pairar no lugar.

Papai emerge e começa a nadar de costas. A água se avoluma como se alguma coisa enorme fosse surgir atrás dele. Uma corcova blindada emerge, coberta por placas de ossos claros como vidro. A água escorre, revelando a curva de uma espinha por baixo da armadura transparente. O gracioso pescoço de um cavalo-marinho — grande como o monstro do Lago Ness — vem à tona. O sol cintila sobre a criatura. Ela é linda e parece mais uma estátua de vidro do que um ser vivente: o corpo de um cavalo-marinho com a cabeça de um garanhão selvagem.

Sua barriga se abre e um funil de água arrasta papai em sua direção. Eu mergulho para unir-me a ele. Escorregamos para dentro de um bolsão translúcido. A abertura se fecha novamente antes que a criatura volte a submergir. A cavidade é úmida, mas confortável. Papai e eu sentamos e ficamos abraçados, observando plantas submarinas e peixes confusos passarem depressa por nós enquanto descemos na direção da montanha que afundou. Surge uma entrada — como aconteceu com Morfeu — e, seguros dentro de nosso submarino vivo, entramos em um túnel escuro enquanto a montanha envolve tudo à nossa volta, bloqueando a luz.

 

 

9


O Olho da Mente

Quando emergimos, um brilho purpúreo e tênue lança sombras por toda parte. O cavalo-marinho curva a espinha para a frente e para trás, espremendo o bolsão até nos expelir para a água rasa.

Eu tusso e caio apoiada nas mãos e nos joelhos. Nas costas, minhas asas pendem, tão ensopadas e enlameadas como as roupas. O cavalo-marinho bufa, solta espuma pelo nariz equino e volta a afundar nas profundezas.

Fraca devido ao extremo esforço físico, eu me forço a ficar de pé na água que bate em meus tornozelos. Papai se levanta, oferece a mão e nós caminhamos com dificuldade até uma barragem de cimento para sentar e recuperar o fôlego.

— Alguma ideia de onde estamos? — eu pergunto, torcendo minha túnica. — Você esteve aqui quando era criança? Lembra de alguma coisa?

Sua testa se franze.

— Este mundo é tão diferente do que eu lembro, Allie. Ele vive mudando. É como se estivéssemos em um livro de ilustrações e as páginas virassem com o vento.

Quando viro a cabeça para trás para olhar melhor o túnel escuro, minha respiração para: pichações se estendem pelo que parecem ser quilômetros — palavras como amor, morte, anarquia, paz e imagens de corações partidos, estrelas e rostos pintados em cores fluorescentes.

É uma réplica do bueiro em que Jeb e eu quase nos afogamos há mais de um mês, no lugar ao qual costumávamos ir quando crianças. Até o som parece o mesmo, com água pingando por todo lado. Mas há uma diferença enorme: as imagens dessas paredes se movem.

Os corações partidos costuram a si mesmos, batem várias vezes e depois quebram e sangram. As estrelas correm de uma ponta à outra, deixando no rastro centelhas que pegam fogo e se desintegram com o aroma de folhas chamuscadas. E os rostos olham para nós, como se estivessem zangados. Eu reprimo um gemido.

— Está vendo isso? — pergunto a papai.

— Não é possível.

— Qualquer coisa é possível aqui — eu corrijo, e me detenho, estudando as imagens ultravioleta. Minhas pernas tremem, mas dou um passo à frente. — Percebe o que isso significa?

Papai não responde.

É claro que ele não percebe. Não consegue ver meu passado.

— Essas imagens são das memórias de Jeb — eu explico. — Nossas memórias. — A ideia de que estou prestes a vê-lo faz cada músculo do meu corpo saltar. Saio correndo para a outra ponta do túnel.

— Allie, precisamos ter cuidado. — Papai me alcança e segura meu ombro.

Eu me liberto.

— Nós temos que encontrá-lo! — A cada passo, porém, o túnel encolhe e nós também. Ou é isso, ou é uma ilusão, porque não me sinto encolhendo. E já encolhi vezes suficientes para ter memorizado a sensação.

Não. Não estamos ficando menores. As imagens estão crescendo, se alongando. Elas se erguem de seus lugares nas paredes e roçam nossa pele enquanto passamos. As estrelas chamuscam minhas mangas; os corações jorram sangue. Os rostos me mordiscam — com dentes frios e afiados feito alfinetes.

Sinto arrepios à medida que apressamos o passo.

Um desenho monta guarda no fim do túnel — uma fada de néon laranja cujas asas se abrem em tons de rosa, azul e branco.

Sou eu. A figura que Jeb pintou na parede do túnel em nosso mundo. Mas esta não faz parte da parede. Ela está nos encarando, uma barricada nefasta...

— Fique atrás de mim. — Papai saca a adaga, movendo-a de um lado para o outro enquanto a encara. Cores vivas se refletem na lâmina reluzente e o ferro trespassa suas linhas. Papai consegue passar sem problemas. — Vamos, borboleta. É só uma ilusão. — Ele estende a mão.

Eu estendo a mão para ele, mas algo vindo das sombras lá atrás puxa seu ombro. A adaga cai de sua mão e atinge o chão, fazendo ruído.

— Corra, Allie! — ele berra enquanto é arrastado para fora de vista.

O terror gela minha espinha.

— Pai!

Minha dublê fluorescente volta ao lugar, bloqueando o caminho.

— Você deveria estar em pedaços, como os outros — ela sussurra. Seu hálito cheira a tristeza, sonhos perdidos e esperanças abandonadas, como suvenires mofados e cobertos de poeira em algum sótão vazio.

Cerro os dentes, lutando contra a repulsa e o medo. Papai passou através dela. Isso prova que ela não é real.

Jogo o corpo para a frente.

Meu corpo encontra uma barreira espinhenta, cada linha do desenho parecendo me espetar feito um arame farpado. Eu grito e minha atacante faz eco. Eu me liberto de suas farpas e despenco no chão. Meus ossos chacoalham mesmo com as asas amortecendo o impacto.

O desenho parte na minha direção, com o corpo e o rosto se deformando quando ela chega mais perto. A boca se alarga numa caverna e ela guincha:

— Rasgue-a!

Seus dedos espinhosos arranham meu pescoço. Eu protejo o rosto, tentando usar magia para recrutar os outros desenhos nas paredes para ajudar. Ou estou muito aterrorizada ou eles estão sob o feitiço de outra pessoa, porque se recusam a obedecer.

Eu rolo e arrebato a adaga que papai deixou cair na passagem ao lado. No mesmo movimento, passo a lâmina pelas linhas fluorescentes do desenho, mas não surte efeito. Ela ataca novamente, junto com outras pichações que agora saíram das paredes. Elas me rodeiam: obras de arte brilhantes e cheias de farpas.

Jogo a adaga para longe e levo as mãos para o alto da cabeça, como fazíamos na escola durante o exercício de evacuação para tornados. O diário no meu pescoço treme e balança. Arrisco olhar para a sensação de calor no meu peito. Uma luz irradia de debaixo de minha túnica, como se as palavras nas páginas fossem infravermelhas.

Os desenhos estremecem e recuam, todos choramingando, até o desenho da fada. Eles se reintegram às paredes e ficam no lugar, deixando o túnel vizinho desprotegido.

Recupero a adaga de papai e saio correndo atrás dele, usando o brilho vermelho do diário para me guiar. É a primeira vez que vejo o caderninho reagir dessa forma, como se a magia dentro dele estivesse queimando de vontade de sair. Não sei ao certo o que causou aquilo, mas fico grata. Salvou minha vida.

Absorvendo minhas asas pesadas e molhadas na pele, sigo manobrando pelos corredores estreitos. O som de água pingando cessa. Minhas botas plásticas produzem um ruído de esguicho no chão de pedra. Cada nervo do meu corpo estremece quando penso no que os desenhos planejavam fazer comigo e no que pode estar acontecendo com meu pai.

Você deveria estar em pedaços como os outros... Rasgue-a!

O que a fada do desenho queria dizer com os outros? Eu me retorço sob as roupas molhadas.

O teto vai caindo gradualmente, como se eu estivesse crescendo outra vez. A sensação é estonteante, mas também me dá certa segurança. Quanto maior fico, mais forte me sinto.

Vozes masculinas ecoam pelo corredor e me atraem para uma passagem à direita, onde tênues fachos de luz saem de trás de uma porta de aparência pesada que está entreaberta. De fininho, vou até ela na esperança de que uma das vozes pertença a papai.

— Você nem imagina o que fez, em seu desespero, para me manter sob seu domínio. — É Morfeu. — Não tem ideia do que me fez deixar para trás.

— Não foi desespero — Jeb responde.

Um alívio total e completo me toma ao ouvir sua voz. Aproximo-me da porta.

— As fadas me disseram que Manti estava atrás de você — Jeb continua a dizer do outro lado. — Que ele tinha mandado pássaros trogloditas no seu encalço. E é assim que você me agradece por salvar você pela milésima vez desde que estamos aqui.

— Eu uma ova — diz Morfeu. — Você é que está numa maldita batalha pelo poder, como sempre. Mas passou dos limites. E, quando eu contar o que você fez, nunca vai se perdoar.

Jeb bufa.

— Ã-hã. Venha aqui para eu consertar sua orelha. Tenho que terminar uma pintura.

O tom doméstico da interação deles é tão fascinante que me faz parar. Pergunto-me há quanto tempo eles estão escondidos aqui juntos. Por todo o tempo em que estão presos neste reino? Espio lá dentro.

Prendo a respiração quando vejo as costas de Jeb. Ele está sem camisa, usando uma calça jeans desbotada e rasgada em uma sala iluminada com um pôr do sol laranja-rosado. A luz entra por um teto de vidro. É como uma estufa — uma cópia exata do estúdio do reino humano em que ele ficou preso um mês atrás. Novamente, o mesmo padrão: tudo aqui nasceu e foi construído com base nas memórias de Jeb.

A tinta brilha em pontos úmidos ao longo de seus braços torneados. Fico imóvel, desejando poder ver seu rosto, mas ele não vira o corpo. O cabelo está mais comprido agora, com as ondas escuras e descuidadas quase tocando os ombros.

Morfeu me enganou. Jeb não mudou. Ele tem até as mesmas paixões.

Há cavaletes por toda parte. Alguns intocados, outros cheios de paisagens, alguns deles retratando as terras mutantes pelas quais passamos no mundo do espelho. Eu franzo a testa, tentando encontrar um sentido naquilo tudo.

Morfeu está sentado em uma mesa diante de Jeb, com as asas negras pensas para a frente e arrastando no chão. Suas luvas estão no colo, e ele brinca com um dos buracos da perna da calça.

Sua pequenina fada de companhia, Nikki, paira no ar entre os dois, como se não soubesse onde se aninhar.

Jeb ergue um pincel até a orelha de Morfeu, acidentalmente pisando na ponta de uma asa.

Morfeu se contrai e dá um tapa na mão de Jeb.

— Ai! Onde estão seus modos tranquilizadores, pseudoelfo?

Nikki paira na frente do nariz de Jeb, balançando um dedo. Depois de gentilmente tirar a fada da frente, ele se inclina sobre Morfeu e ergue novamente o pincel.

— Se você colocasse essas coisas em cima da mesa, não teríamos problemas. Agora, fique quieto e pare de agir feito uma menininha.

Um pulsar de luz violeta passa das cerdas úmidas para a orelha de Morfeu. Num passe de mágica, a ferida se fecha. Tenho de colocar a mão na boca para abafar um gemido de surpresa.

Ainda de costas, Jeb se endireita para apreciar seu trabalho.

Morfeu sorri com ironia — um torcer mordaz e ensaiado dos lábios.

— Então, eu o lembrei de alguma menina em particular?

Nikki flutua entre eles com as mãos entrelaçadas e a cabeça inclinada, numa pose dramática. Ela dá piscadelas rápidas e fortes.

— Tem razão, Nikki. — Depois de passar a ponta do dedo na tinta sobre o peito de Jeb, Morfeu esfrega o resto de tinta entre o indicador e o polegar. — Ele deve estar pensando na namorada. Mas ouso dizer que, se eu fosse Alyssa, os modos dele melhorariam tremendamente.

Jeb joga o pincel no chão e agarra Morfeu pela lapela esburacada, com cada músculo do corpo se retesando. Nikki paira sobre eles, a voz tilintante repreendendo-os.

— Ela é minha ex-namorada — Jeb diz. — E não quero ouvir o nome dela. Não quero que ela atormente meu subconsciente. — Ele afasta Morfeu. — Você se lembra do que aconteceu quando o rosto dela apareceu em minhas pinturas. Temos que esquecê-la. Assim como ela nos esqueceu.

Ex-namorada. Todo o entusiasmo dentro de mim se esvai. Ele nunca pareceu tão desanimado, nem mesmo depois que brigava com seu pai. E tudo porque pensa que eu o abandonei.

Morfeu limpa a tinta do polegar e do indicador em um trapo jogado ao seu lado na mesa. O olhar que ele lança para Jeb é de malvado deleite.

— Uma pena que você tenha tão pouca fé naquela que um dia alegou amar. — Ele enfia os dedos no bolso do casaco e tira Chessie. O intraterreno peludo tremula as asas e se ergue no ar. Ele sorri para Jeb, sinceramente feliz por vê-lo.

Jeb dá dois passos para trás.

— Onde... como ele veio parar aqui?

Morfeu encolhe os ombros.

— Você deveria perguntar quem o trouxe para cá. A resposta seria muito mais interessante.

Jeb balança a cabeça enquanto a fada pega as patas de Chessie nas mãos e eles começam a dançar em pleno ar.

— A Al nunca viria...

— Viria, sim — Morfeu provoca. — Ela veio. E logo encontrará um modo de entrar em nosso refúgio. A não ser que esta última vez que você mandou me prender tenha feito com que ela fosse capturada. Nesse caso, ela está em perigo, e a culpa é sua.

— Não — Jeb insiste. — Ela não se importa o suficiente para vir.

Quero entrar correndo e provar que ele está errado. Ele perdeu toda a fé em mim. E esse fato é mais excruciante e inacreditável do que qualquer coisa que enfrentei desde que caí pela primeira vez na toca do coelho.

Meus membros ficam inertes e a adaga de papai quase escorrega de minhas mãos suadas.

Papai! Como pude me esquecer dele?

Ouço uma confusão vinda da escuridão do fundo do corredor. Prendendo a respiração, ando na ponta dos pés pela passagem sinuosa. Ainda não cheguei longe quando alguma coisa gruda em meu braço vinda de trás. Uma mão me tapa a boca e outra me joga contra a parede com força suficiente para minhas costas rasparem na parede de pedra.

O corpo de meu captor é masculino. Ele agarra meus pulsos com a mão livre e os prende sobre meu abdômen. Meus dedos envolvem a adaga de papai, apontada para o chão.

Tento gritar, mas a mão livre do atacante sela meus lábios com força. Ele é mais alto do que eu e inclina a cabeça feito um filhote curioso, tentando ver quem sou. Há algo muito familiar em sua altura e físico. Quando meus olhos se adaptam à escuridão, eu quase desmorono.

É Jeb, desde o piercing labret até o corpo que conheço tão bem... só agora consigo ver seu rosto.

Do lado direito, pontos com joias vermelhas cintilam em uma linha curva que vai da têmpora até a maçã do rosto, da mesma cor que o piercing vermelho. Um olhar mais detalhado nas orelhas revela que elas são pontudas. Ele lembra um cavaleiro élfico da corte da Marfim, exceto pelo queixo com barba por fazer. Até mesmo os olhos, vagos e distantes, são desprovidos de emoção.

Um grito luta para se libertar quando percebo mais detalhes macabros. A pele sob seu olho esquerdo ostenta uma fenda. Onde deveria haver tecido e ossos aparecendo, não há nada além do vazio.

Minha língua fica seca, asfixiada sob sua mão.

— Ele não é o mesmo rapaz que você conheceu — Morfeu alertou. Era a isso que ele se referia. Jeb está sofrendo mutações. Por minha causa.

Engasgo-me com um soluço.

O movimento chama minha atenção para o vazio onde lhe falta pele. Um globo ocular pula para a superfície, cheio de veias e invertido. Eu arfo, tentando empurrá-lo. Ele é forte demais e me mantém grudada na parede por minhas próprias mãos.

Ele inclina o rosto para mais perto. Um conjunto de dedos se desenrola de dentro da pele aberta acima da maçã do rosto — uma mão tentando se esticar e tocar-me. Os dedos são brilhantes, de um vermelho profundo como sangue. O globo ocular desconectado rola para olhar a ponta dos dedos enquanto os outros dois olhos de Jeb continuam a me estudar.

Tento respirar sob a mão implacável que cobre minha boca. O calor escalda meu peito — elétrico como um raio — e o diário sob a túnica brilha mais uma vez. Ele acorda meu sentido de autopreservação. Mostro os dentes e mordo seus dedos com força suficiente para cortar a pele.

Com um grito selvagem, Jeb me solta. Eu cuspo seu sangue, vagamente consciente de que tem gosto de tinta.

Busco desesperadamente a adaga escorregadia em meus dedos suados e a pego no último segundo, acidentalmente cortando sua calça jeans e a coxa. Ele uiva — um som animal e angustiante — quando a pele da perna se abre em um corte de quase um palmo.

— Me perdoe! — eu grito. — Eu sinto muito, por tudo!

Olhos desconectados e mãos sem corpo saem da abertura, subindo por galhos vermelhos e escorregadios com bocas que estalam feito plantas carnívoras.

Largo a adaga. Com as costas pressionadas contra a parede, escorrego para o chão. Meus gritos se unem aos uivos agonizantes. Os galhos viscosos rastejam à minha volta e eu os chuto, afastando-os. A bile chega à minha garganta quando vários deles envolvem meu tornozelo.

A porta no final do corredor se abre. Morfeu sai correndo, com Nikki e Chessie logo atrás.

Lágrimas salgadas rolam pelo meu rosto, cobrindo meus lábios enquanto murmuro desculpas sem sentido para tantas coisas. Tantas coisas irreversíveis.

Morfeu arranca os galhos e me levanta, aninhando-me em seu peito.

— Tire esse animal horrendo daqui! — ele grita por sobre o ombro. Com o olhar embaçado, procuro ver a quem ele se dirige.

É o Jeb. O meu Jeb. Com quem Morfeu estava falando minutos antes. E a única coisa de errado com seu rosto são alguns respingos de tinta.

O outro Jeb, o que me atacou, está todo enrolado no chão, uivando — um dublê do rapaz humano que eu conheço e em quem confio.

— Por que ele está andando por aí sozinho? — Morfeu continua a repreender. — Eu disse a você... que nunca deveria ter dado certas liberdades a ele.

O olhar de Jeb se volta para mim, os olhos verdes muito distantes do encarar sem emoção do cavaleiro élfico. Eles estão cheios de surpresa, amargura e agonia.

Sinto-me arrepiar dos pés à cabeça. Preciso dizer a ele que vim para salvá-lo. Que ainda o amo. Que sinto muito por tudo. Mas minhas cordas vocais endurecem, como se eu estivesse congelada.

Minha cabeça também parece congelada. Pesada e entorpecida. Nem sei mais se estou acordada ou não. Talvez tudo isso seja um pesadelo. Envolvo a nuca de Morfeu com as mãos, enterrando o rosto em seu casaco. Nikki e Chessie se enfiam no meu cabelo. Eu inalo o perfume de Morfeu. É a única coisa que reconheço, a única coisa que é segura.

Ele me leva de volta à sala cheia de luz e me acomoda com cuidado sobre a mesa. Não consigo parar de tremer. A garganta dói de tanto segurar soluços.

— Acalme-se, Alyssa. — Morfeu cobre meus ombros com um tecido usado para cobrir as pinturas.

Chessie sai do meu ombro e pula no meu colo, os olhos arregalados indagando se estou bem. Nikki voa, agitada, de um lado para o outro do meu rosto, dando tapinhas em minha têmpora com as mãozinhas de joaninha — maternal e carinhosa.

Meu sangue dispara, quente e frio.

— Você está pálida — Morfeu diz, envolvendo o tecido com mais cuidado em torno de meus ombros. — Vai precisar de um balde?

Eu balanço a cabeça em negativa, resistindo ao embrulho que tenho no estômago.

— Ca... cadê o Jeb? O que era aquela coisa...? — Um ataque de tosse estremece todo o meu corpo.

— Shhh. — Morfeu coloca as mãos nos meus quadris sobre a mesa. Suas asas nos envolvem. — Jebediah está afastando a coisa. Ele vai voltar logo. Respire fundo e concentre-se em mim. Você está segura.

Eu respiro, mas me engasgo com o ar.

— Olhe para mim — Morfeu insiste. Concentro-me no rosto dele, na cor das sombras claras por baixo do eclipse de suas asas, e ele começa a cantar. Não dentro da minha mente, pois a cúpula de ferro o impede, mas em voz alta... uma canção de ninar simples, doce, entoada por sua linda voz.

— Florzinha, cheia de temor, tire do peito essa dor. Cantarei este acalanto, para assim secar seu pranto.

Ele costumava cantar esses mesmos versos quando virou criança para me levar ao País das Maravilhas em meus sonhos. Eu puxava uma de suas asas acetinadas sobre mim como um cobertor, e o aroma de alcaçuz e mel combinava com a linda canção de ninar, me aquietando, me relaxando. Enquanto ele canta, suas joias piscam num azul sereno como a superfície de um oceano.

Inspirando profundamente mais algumas vezes, consigo superar o acesso de tosse.

— Obrigada — digo.

Morfeu aperta meus ombros sobre o tecido pesado.

— A criatura lá fora não ia machucá-la. Ela estava simplesmente intrigada. Já viu seu rosto antes. Todas as criações daqui já viram.

Lembrando-me dos desenhos de arame farpado, eu balanço a cabeça.

— Não. As pichações agiram como se eu estivesse infectada com uma doença contagiosa. Elas tentaram me matar.

Ele ergue uma sobrancelha e passa a ponta de um dedo em meu pescoço.

— Foi assim que você ganhou esses arranhões?

Eu faço que sim.

Ele estuda os rasgos em minhas mangas e as queimaduras das estrelas cadentes.

— Que curioso.

— São monstros. — Envolvo-me no tecido com mais força.

— Nem todos são — Morfeu corrige. — A pequena Nikki teve o mesmo criador e ela é bem agradável. — Como se quisesse provar o que ele disse, Nikki pousa ao lado de sua mão sobre meu ombro e afaga meu cabelo.

O mesmo criador. O sangue na barra da minha túnica deixado pelos corações partidos... as manchas parecem tinta. Assim como o sósia de Jeb tinha gosto de tinta.

Uma triste percepção aperta minha traqueia. A fada fluorescente e as pichações, o elfo desfigurado parecido com Jeb e as paisagens nos cavaletes — tudo isso me faz recordar a primeira vez que descobri meus poderes... o momento em que eu, inadvertidamente, fiz um mosaico ganhar vida. Eu o animei na parede da minha casa — grilos mortos e frutas vermelhas dançando e pingando dentro de sua moldura de gesso.

— Ah, não — digo com a voz quase irreal. — Não é que a Nikki seja imune às consequências de usar sua magia aqui. Ela é feita de magia. O Jeb a pintou. Ele pintou seu sósia também. Suas obras estão ganhando vida. — A explicação parece ficção, embora minhas entranhas sintam que é verdade.

Uma centelha de orgulho é refletida no fundo dos olhos negros de Morfeu.

— Esplêndida dedução. Sim, Jebediah adquiriu dons intraterrenos. Mas não é somente isso.

Como se satisfeito por ver que estou bem, Chessie pula de minha coxa, saindo de debaixo da tenda formada pelas asas de Morfeu. Nikki o segue.

Quando os dois se foram, volto-me para Morfeu.

— O que você quer dizer com isso?

— Hum. — Seus dedos dirigem-se novamente para o meu pescoço, mas desta vez ele encontra o cordão ali pendurado e retira o diário e a chave antes que eu possa detê-lo. — Primeiro, conte-me sobre este pequenino tesouro. — Um brilho vermelho ilumina seu rosto. Ele tenta abrir o caderno, mas a magia é muito poderosa e a chave, muito grande.

Arranco o cordão dele, enfiando-o debaixo da túnica novamente.

Morfeu me analisa.

— O que está escondendo nessas pequenas páginas, Alyssa? E por quê?

Olho bem dentro dos olhos dele.

— Finalmente, eu tenho um segredo só meu. Não é tão divertido ficar do outro lado, hein?

O lento arder da curiosidade aquece sua expressão. Ele se aproxima e sussurra:

— Pelo contrário, minha Rainha. Não consigo imaginar nada mais delicioso do que despi-la de suas defesas, camada por camada, e desnudar seu precioso... segredo.

Um calor me sobe ao peito e corre para meu pescoço e minhas bochechas. É para lá de inquietante a rapidez com que ele pode passar de confortador a atormentador.

Ele observa minha pele ruborizar-se, obviamente adorando a provocação.

— Na verdade, estou disposto a apostar que desmascaro seu segredo antes de você desmascarar o meu. É como eu sempre disse: a lógica intraterrena reside entre o bom senso e a falta dele. Quando você der as costas a tudo o que pensava ser real, encontrará a iluminação. — Ele solta as asas.

O calor do pôr do sol atravessa o teto de vidro.

— Suponho que vamos constatar quanto você aprendeu a confiar em seu lado do País das Maravilhas. — Ele separa a mecha vermelha de cabelo da minha trança e a segura contra a luz, em seguida enfiando-a atrás de minha orelha. — A intuição intraterrena pode decifrar a ilógica de tudo o que você encontrar enquanto estiver aqui, o que a ajudará em sua grandiosa busca.

Tenho a impressão de que essa “grandiosa busca” a que ele se refere é mais do que só a minha tentativa e a de papai de recuperarmos a mamãe.

Papai... me esqueci dele novamente!

— Meu pai!

— É bom saber que você se preocupa — Jeb diz da porta, e eu me pergunto há quanto tempo ele estava ali. — Fique fria. Estive com ele agora há pouco, e ele está bem.

Uma camisa preta de seda e mangas compridas cobre os ombros largos e os braços de Jeb, desabotoada e esvoaçante. Seus olhos brilham com uma luz desorientada que confirma que há algo de outro mundo correndo dentro dele. Embora aliviada por ele não ter se transformado fisicamente, fico aterrorizada ao pensar no que está acontecendo em seu interior.

Seu labret cintila em vermelho sob a luz que se esvai, lembrando-me de como os cavaleiros élficos espetam a própria pele para marcar o rosto com joias feitas de sangue cristalizado. Com o cabelo longo e ondulado, Jeb realmente lembra os que eu conheci no País das Maravilhas. A expressão petrificada — sem demonstrar emoção — só amplifica a ilusão.

— Poderia me levar até ele? — peço, sentindo-me como se falasse com um estranho.

— Primeiro, me responda a uma pergunta — Jeb diz. — Se você se importa tanto com ele, por que o colocou no meio de tudo isso?

O tom acusatório de Jeb magoa. Eu não o vejo há semanas e acabo de ser atacada por suas criaturas, mas, em vez de me confortar ou de me dar as boas-vindas, ele me joga na fogueira.

— Meu pai faz parte deste conto de fadas distorcido tanto quanto o resto de nós.

Jeb e Morfeu se entreolham.

— Certo. O meleca de inseto me contou sobre o passado do Thomas. Mas por que você o faria reviver todo esse sofrimento? É melhor que ele não se recorde.

— Eu... eu tive que fazê-lo recuperar as memórias — respondo, gaguejando, abalada pela ideia de Jeb e Morfeu terem trocado confidências. — Acha que seria melhor se você não tivesse as suas?

Jeb olha para o chão, com uma ruga de reflexão na testa.

— Acho que seria melhor não ter nem criado essas memórias, para começo de conversa.

Eu luto para não chorar. Com uma confissão tão lancinante, eu choraria sangue.

— Eu precisava da ajuda do meu pai para encontrar o caminho para o mundo do espelho. Ele queria que você e mamãe voltassem. Já era hora de ele saber a verdade.

— A verdade. — Jeb esfrega as manchas vermelhas na palma das mãos. — Me surpreende que você ainda saiba o que é isso.

Começo a choramingar antes mesmo de perceber.

— Não é o que você acha que é — Jeb diz sem levantar os olhos. Ele exibe as mãos, como se fossem elas que me fizeram reagir. — É tinta, não sangue.

Balanço a cabeça.

— Não me importa o que você tem nas mãos. Por favor, olhe para mim. Eu senti sua falta. Fiquei muito preocupada com você.

— É mesmo? De qual de nós você está falando? — A atenção dele se volta para Morfeu, que sorri de lado com ar de conspiração.

Ainda mais inquietante do que ver esses homens do mesmo lado é vê-los unidos contra mim. Aquela dor aguda me rasga o interior do coração novamente, como se a Vermelha estivesse aqui, antagonizando, chafurdando no meu infortúnio.

Fecho os olhos com força, expulsando as lágrimas que querem sair. Aguente, Alyssa. Você é uma rainha. Aja como uma. Enrijeço os ombros e abro os olhos.

— Eu encontro meu pai sozinha. — Livro-me do tecido que me cobre e começo a descer da mesa.

Morfeu coloca a palma da mão na minha clavícula.

— Você não está pronta para correr nenhuma maratona, amor. Ainda está abalada.

— Eu tenho que encontrá-lo.

— Ele já foi encontrado, eu disse — Jeb responde, com a atenção voltada para a mão sobre meu pescoço. Ele estreita os olhos e, com um estalar de dedos, a sombra de Morfeu se ergue do chão e o afasta de mim.

Grunhindo, Morfeu empurra a silhueta escura para o lado e olha para Jeb.

— Amador. Truques de salão.

Jeb responde com um sorriso malvado:

— Um aluno só é tão bom quanto seu professor.

Olho fixamente para os dois, pasma.

Jeb vira-se para mim.

— Seu pai só precisa dormir. Ele está cansado.

A sombra rastejante de Morfeu cheira meu cabelo emaranhado, como um cão. Eu a afasto, e Morfeu a força a ficar atrás dele.

— Quero ver com meus próprios olhos — eu digo a Jeb.

Ele estreita os olhos.

— Por quê? Não confia em mim? Acha mesmo que eu machucaria o Thomas? Ele é o único pai de verdade que eu tive na vida. O único da sua família que não me apunhalou pelas costas.

Recuso-me a deixar que ele perceba quanto está me magoando.

— Não é em você que eu não confio. É naquela... coisa que você pintou.

Ele caminha até o outro lado da sala com a cabeça abaixada.

— Você contou a ela.

Seu olhar de acusação é dirigido a Morfeu, mas quem responde sou eu.

— Meu pai foi capturado e arrastado para longe de mim. Tenho certeza de que isso foi feito pela mesma coisa que me atacou no corredor. A coisa mostrou a você para onde o levou? Ela tinha que mostrar, não é? Você é o criador.

Os cílios de Jeb se levantam em minha direção, e naquele momento consigo ver meu melhor amigo novamente. Marcas escuras de cansaço sob seus olhos revelam a vulnerabilidade do que ele está tentando esconder. Ele é humano e desprotegido. Só preciso descer, andar até ele e diminuir o espaço entre nós. Mas ele logo desvia o olhar, e sou golpeada pela realidade, percebendo que o número de passos entre mim e ele não é nada comparado às paredes que terei de escalar para alcançar seu coração.

— Como é que ela sabe de tudo isso? — Jeb pergunta a Morfeu. — O que andou dizendo para ela?

Morfeu faz uma careta.

— Guarde sua pequena invenção e então nós conversaremos.

Jeb faz um sinal com a cabeça e a sombra afunda novamente no chão, deixando somente uma forma escura aos pés de Morfeu.

Morfeu apoia o quadril na beira da mesa e, com uma ponta do tecido que me cobria, envolve Chessie e Nikki, que dormem a sono solto.

— Como sempre, você subestimou a engenhosidade de Alyssa. Ela descobriu tudo sozinha depois de ser atacada por seu exército de pichações na entrada do túnel.

Jeb olha para mim.

— Eles atacaram você? — Por um instante, eu poderia jurar que há preocupação em seus olhos. Em seguida, ela se foi. — Não costumam ser violentos com seres vivos.

Morfeu franze os lábios.

— Bem, como a maioria de suas criações não é capaz de sair desta montanha, e como nunca tivemos visitantes vivos por aqui, não chegamos a testar essa teoria. Ademais, ela não é uma visitante qualquer. Alyssa é o objeto de sua raiva.

— Isso não é verdade — Jeb murmura, desviando o olhar.

Morfeu suspira.

— Por mais que tente negar, é óbvio que suas criações acabaram perpetuando a raiva que sente dela. Alimentando-se com esses sentimentos negativos.

— Jeb? — eu pergunto num sussurro.

Ele não responde.

— Talvez tenha chegado o momento de você passar uma borracha em tudo e começar novamente. — Morfeu fala suavemente, de modo atencioso e com bom senso, embora seja óbvio que ele esteja procurando encorajar Jeb.

Jeb o encara.

— Acho que chegou o momento de você parar de falar.

— Por quê? Alyssa vai descobrir tudo em breve.

Começo a me sentir enjoada novamente.

— Quero que vocês dois parem de falar sobre mim como se eu não estivesse aqui. O que aconteceu com você, Jeb? Foi quando você passou pelo portal? Sofreu alguma mutação?

Morfeu ri.

— “Mutação.” A palavra que você está procurando é “evolução”, amor. Ele abandonou seu estado mortal de macaco e vestiu o manto da imortalidade intraterrena. É um degrau acima, não abaixo.

Ao lado de um de seus cavaletes, Jeb solta um grunhido.

— Cale a boca, Morfeu. Eu é que vou decidir quanto ela precisa saber e quando devo contar.

— Bem, esperamos que você decida antes que ela vire picadinho, está bem?

Engulo em seco.

Jeb cobre uma pintura com um pedaço de tecido e segue adiante para cobrir outra.

— Seu pai está preocupado com você. — Ele fala comigo sem olhar na minha direção. — Vou levar você até ele... para descansarem juntos.

É com Jeb que eu preciso ficar a sós, mesmo que seja somente o tempo que levamos para percorrer o corredor.

— Obrigada.

Morfeu acomoda a fada e Chessie num canto e atravessa a sala. Ele para à porta, com as asas e as costas voltadas para nós.

— Durma tranquila, Alyssa. Quando acordar, eu a ajudarei a criar uma estratégia para seus planos de batalha. Tenha em mente que eu não esqueci a promessa que me fez. Nem pretendo deixá-la esquecer.

Fico olhando para o corredor vazio depois que saímos. Ajudar a criar estratégias para meus planos de batalha? Ele sabe que estou indo atrás da Vermelha. Sua fascinação pelo diário... de alguma maneira, descobriu que planejo usar o que está dentro daquelas páginas para destruí-la. A guerra nem está vencida e ele já está recolhendo os despojos.

— Então, você vai me dizer que tipo de acordo fez com o Baratão? — Jeb me observa enquanto abotoa a camisa preta, cobrindo as cicatrizes circulares antes que eu consiga contá-las. Fico tentada a usar minha magia para impedir seu avanço, para expor sua pele à luz do fim da tarde que nos envolve. Meus dedos anseiam buscar suas partes defeituosas... os lugares feridos e autênticos que provam que ele é real; que é o rapaz em quem eu confio desde o verão da quinta série. Que o humano que eu amo ainda está em algum lugar lá dentro.

Depois de meu encontro com seu sósia e das acusações de Morfeu sobre sua raiva reprimida, preciso ter cautela.

— Al.

Meu nome dito por ele faz com que eu o encare. O que não daria para ouvi-lo me chamar de “menina do skate”.

— Do que Morfeu estava falando? — ele pergunta, pressionando.

— Eu prometi uma coisa a ele — respondo com calma. Não quero admitir o que ele já sabe. Que há muito mais acontecendo entre mim e Morfeu do que eu jamais demonstrei.

— Uma promessa, é? Que romântico. — Suas palavras cortam como facas. Ele se tornou mestre em manejar mais do que um pincel desde que está aqui. — Então, foi por isso que você veio parar aqui no nosso pequeno paraíso? Para cumprir a promessa que fez a Morfeu.

Eu me retraio.

— Não. Eu vim para cá resgatar vocês dois. Você tem todo o direito de não acreditar em mim... de estar bravo comigo. Eu sei que deve ter sido um inferno. Este lugar... acabou com você.

— Eu já estava acabado antes disso. — Sua expressão atormentada confirma a alegação (graças a você e ao caruncho de inseto)melhor do que sua voz poderia fazê-lo. — Mas eu retomei minha vida. Aqui, quem tem poderes sou eu. Tenho a habilidade de fazer o mundo como ele deveria ser. Como sempre deveria ter sido.

Ele ergue a mão direita e enrola a manga da camisa de modo que a tatuagem na parte interna do pulso fique aparecendo. As palavras em latim Vivat Musa não estão mais em preto. Elas brilham com a mesma magia violeta que seu pincel tinha antes, dando novo significado à tradução: Vida longa à musa.

— Agora eu compreendo — ele murmura — por que o poder seduziu você. Com um gesto de mão eu posso criar, matar, mutilar e curar. — Há uma qualidade onírica em seus movimentos e palavras, como se ele estivesse em transe. Piscando, solta o braço ao longo do corpo. — Ninguém pode me fazer de vítima novamente, nem a ninguém de que gosto. Este lugar não é o inferno. É o paraíso. E eu... sou um deus.

A nefasta declaração paira no ar entre nós. Meu peito se contrai, como se alguém tivesse me dado um soco.

O olhar tremeluzente de Jeb percorre meu rosto, e em seguida ele sai pela porta.

A lua aparece através do teto de vidro, conferindo uma aura prateada a tudo o que nos cerca. Algo se mexe debaixo dos tecidos cobrindo os quadros. São as pinturas começando a se mover. Elas dão socos na pesada coberta, como se tentassem se libertar.

Mordendo a língua para não gritar, eu pulo da mesa e vou atrás do homem responsável por esses monstros... o homem que está perigosamente perto de se tornar um monstro também.

 

 

10


O Paraíso do Pesadelo

— Jeb, vá mais devagar, por favor.

Alguns metros à minha frente, ele ignora meu pedido ao nos encaminharmos para o quarto de papai. Minhas pernas se arrastam como se houvesse blocos de cimento em volta de minhas botas, e isso se deve apenas parcialmente ao fato de eu estar cansada. E mais, estou perturbada. Esse corredor sinuoso e inclinado parece muito a casa de Jeb e a minha, cada canto enfeitado com pinturas familiares e mosaicos de nossas próprias coleções. Saliências mórbidas saem das paredes, como mãos desencarnadas.

Prendo a respiração ao passar, esperando que nada me agarre. Não consigo parar de me lembrar dos ramos vermelhos estalando, dos dedos e olhos que saltavam da cópia monstruosa de Jeb.

— Jeb, aquela criatura no corredor...

— Bom, para que fique claro, não é uma criatura. O nome dele é CC.

— CC?

— Cópia Carbono. E ele não tem uma tatuagem no braço. No caso de você precisar nos distinguir. Sabe, caso as orelhas pontiagudas e os cortes debaixo dos olhos não sejam suficientes.

É tão raro Jeb ser irônico que nem sei como responder.

— Aquelas coisas dentro dele. O que era aquilo?

— Ora, vamos. — Ele faz a curva e apresso-me para alcançá-lo. — Você é uma artista. De que são feitas as suas obras?

A exaustão está a ponto de me vencer. Luto contra o ímpeto de tropeçar em alguma protuberância no chão, determinada a manter-me junto dele a qualquer preço.

— Pedaços e partes de nós?

Jeb olha-me por cima do ombro. Por um instante, sua expressão muda, como se estivesse satisfeito com a resposta. Então, a fachada isenta de emoções retorna e ele desvia o olhar.

— Pedaços e partes de tudo o que já imaginamos ou experimentamos, bom ou ruim. Então, se fosse para uma pintura se tornar realidade... em vez de intestinos, órgãos, sangue... qual seria sua essência?

— Nossos sonhos e pesadelos.

— Acertou — ele responde.

Abaixo-me e vejo mais uma porta passar. É isso o que aguarda dentro dessas salas? Pesadelos?

Um misto de ressentimento e angústia compõe o passado de Jeb. E ele escolheu remexer justo naquela paleta para construir seu mundo ideal. Onde estão as lembranças felizes? As esperanças? O amor?

Após o que calculo serem dez minutos, paramos diante de uma porta feita de diamantes. Imediatamente, lembro-me da árvore das praias de areia negra do País das Maravilhas. As pedras reluzem mesmo com pouca luz.

Jeb detém-se com a mão sobre a maçaneta de rubi.

— Eu não sabia que você estava lá fora hoje. Nunca teria deixado você e seu pai sozinhos... indefesos.

Não sei se acredito nele. Quero acreditar, mas como, depois que fui atacada por suas criaturas?

Não. Jeb merece o benefício da dúvida. Esse é o primeiro lampejo real do garoto com quem cresci, e vou lutar por ele.

— Nada nos faria desistir de encontrar você. Sentimos sua falta. Amamos você. — Coloco a mão sobre a dele na maçaneta. — Eu amo você.

Ele fica tenso. Meu tronco encosta nele e seu corpo se volta para mim involuntariamente, as costelas expandindo-se a cada respiração.

— Você se lembra do que disse da última vez que estivemos juntos? — eu sussurro, a boca perto de seu ombro, sofrendo com a proximidade e o calor que ele irradia. Quero ficar na ponta dos pés e encostar os lábios na nuca dele, perto dos cabelos, quero senti-lo estremecer ao meu toque, como ele costumava fazer. — Você disse que não desiste sem lutar. Foi uma promessa. — Entrelaço meus dedos nos dele, sobre a maçaneta.

Sua mão se enrijece.

— Nunca prometi.

— Você disse. E sua palavra é o mesmo que uma promessa. Eu me recuso a acreditar que isso tenha mudado.

Ele relaxa, como se eu o tivesse atingido. Vira a cabeça, e o maxilar roça minhas têmporas. Sinto sua respiração no alto da minha cabeça.

O diário da Barbie me queima o peito e novamente se ilumina por baixo da túnica.

— Você está errada, Al — Jeb murmura, como se o brilho avermelhado tivesse lhe devolvido a razão. — Tudo mudou.

O tom amargo em sua voz acaba comigo.

— Abra — ele ordena à maçaneta. Com um lampejo púrpura, ela gira. Jeb me puxa para dentro e a porta se fecha atrás de nós. Desorientada, eu rodopio, tentando absorver tudo aquilo.

Não é um quarto com meu pai dormindo em um sofá ou cama. Entramos na simulação de uma praia à noite. Uma brisa morna e salgada passa por meus cabelos. Ouço o barulho do mar batendo na areia branca e o teto é um céu infinito. A luz do luar é refletida nas ondas e as estrelas brilham, lançando uma luminosidade suave nas flores aos nossos pés.

— O oceano de lágrimas — sussurro, embevecida com os pensamentos da primeira noite que passamos no País das Maravilhas dentro de um barco a remo. Apesar de estarmos em um lugar místico rodeado de morte e loucura, foi o local onde me senti mais segura na vida, pois adormeci nos braços de Jeb.

Agora, seguindo-o pela beira do mar em silêncio, tudo o que me lembro é de como ele foi suave, como me virou para que eu pudesse vê-lo no casco do barco enquanto eu dormia, como acariciou meus cabelos e prometeu cuidar de mim.

Ele reconstruiu um dos momentos mais românticos que tivemos. Talvez isso queira dizer que todo esse tempo ele esteve tentando me perdoar.

A não ser que considere isso uma má recordação.

— Jeb, por que estamos...

— Você vai à ilha para dormir — interrompe. Um facho de luz branca passa por nós. A distância, um platô sobressai no oceano. Há um farol em funcionamento no topo de uma rocha. Jeb se ajoelha, cava e retira uma corda escondida pela areia. Ele puxa com força, esticando o tecido tremeluzente de sua camisa. Um barco a remo aparece, vindo para mais perto a cada puxada. — Cercada de água, você estará fora do alcance dos outros.

Outros. Sua explicação em código me lembra a ameaça da pichação: Você deveria estar aos pedaços como os outros.

— Que outros, Jeb? O que mais você fez?

Ele hesita, o corpo tenso.

— Borboleta! — o grito de papai me surpreende. Sua silhueta se define sob a luz fraca, sentada no casco do barco.

Jeb traz o barco para a areia.

Papai se inclina para a frente e aperta a mão dele.

— Obrigado por trazê-la.

Jeb baixa a cabeça, em reconhecimento, e dá um passo para trás, deixando espaço para eu subir.

Papai me estende a mão. Somente quando meus dedos tocam sua pele morna e calejada é que eu relaxo e entro na proa. Ele me ajuda a sentar.

— Papai, pensei que você estava...

— Eu estou bem, querida — responde, abraçando-me. — Conto tudo a você mais tarde.

Viro-me para Jeb.

— Você vai ficar conosco esta noite, não vai? Precisamos planejar como levar todos para casa. Por favor...

— Vou pegar o cavalo-marinho e sair à procura de sua sacola de viagem — diz, evitando meu olhar. — Há roupas no farol para esta noite. Providenciarei para que tenham o que vestir amanhã. Então discutiremos como levá-los ao portão do País das Maravilhas.

— Levar-nos lá? — Olho-o, incrédula. — Não deixaremos Qualquer Outro Lugar sem você!

Ele conduz o barco de volta à água. A areia raspa o fundo da embarcação quando esta se move.

— Vocês encontrarão comida nos armários. Há uma flor amarela nativa deste mundo. Morfeu viu um animal comendo-a certa vez. Deve conter todos os nutrientes de que precisamos, já que temos vivido à base dela e de um ou outro coelho, ocasionalmente. Há água de chuva para beber. Não precisarão de muito para ficarem satisfeitos. — Dizendo isso, faz um sinal para papai partir.

— Jebediah, você sabe que é bem-vindo. — Papai faz uma pausa, para ver se Jeb muda de ideia. Quando percebe que não, pega os remos.

Jeb fica observando enquanto os remos afundam nas águas resplandecentes e formam marolas junto do casco. Um facho de luz do farol cintila sobre seus olhos verdes e a tatuagem fluorescente. No instante seguinte ele já se foi, voltando por onde veio, em direção à porta.

Papai para de remar e toca minha mão.

— Allie.

A solidão me corrói, pensando em tudo o que Jeb já significou em minha vida.

— Ele não pode ficar aqui. Ele precisa voltar para casa, papai.

— Está tarde e estamos cansados. Tenho certeza de que amanhã ele verá as coisas de outro modo. Se lhe dermos tempo, ele tomará a decisão correta. Precisamos acreditar nele.

— Ele me odeia.

Papai suspira.

— Não, querida. Se isso fosse verdade, então por que ele ainda está protegendo você? Ele está nos mandando para a ilha porque se preocupa com a sua segurança.

— E como é que ficar nessa ilha chata pode nos proteger?

Papai recomeça a remar.

— Não tenho certeza. Achei que ele tinha explicado isso a você.

Agarro as bordas do barco.

— Ele não me confia mais nada. Está mais próximo de Morfeu do que de mim. — Meus ossos pesam e as emoções estão em frangalhos. Inclino a cabeça para trás, fechando os olhos e deixando que o ruído das águas desfaça os nós em meus nervos.

— Bem, faz sentido que eles estejam mais próximos — papai diz. — Considerando que Jeb se fundiu à magia de Morfeu quando atravessaram o portão.

Arregalo os olhos e sento-me, espantada.

É por isso. O comentário cruel de Jeb para Morfeu sobre aluno e professor, a estranha cor púrpura da magia... como superaram a raiva que sentiam um pelo outro e aprenderam a conviver. Mais do que conviver. Unir-se. Dois homens que no passado eram inimigos e aprenderam a confiar um no outro para sobreviver.

— Allie, você está bem?

— Eu só queria... que ele próprio tivesse me contado.

— Ele também foi meio fechado comigo — papai diz — quando me encontrou naquele quarto vazio em que a criatura me deixou. Mas conversamos sobre meu passado e sobre o dilema de sua mãe. Eu pedi desculpas por tê-lo julgado mal na noite da formatura. Ele me perdoou. E fará o mesmo com você. Você só tem que ser sincera com ele. No fundo, ele sabe que você não pretendia mandá-lo para cá.

É muito pior do que isso. Você nem imagina. Se pelo menos eu tivesse energia para contar tudo a papai, mas estou cansada demais para tentar. A luz perpassa nosso barco e ficamos novamente na escuridão. Não me renderei ao sentimento de autopiedade que me atormenta. Vou reconquistar a confiança de Jeb. Até lá, fico satisfeita em saber que ele ainda confia em papai.

— O lado bom disso — papai continua — é que parece que Jeb é quem tem mais poder aqui, já que é humano e o ferro não o afeta. Ele o concede a Morfeu por meio de suas criações. É por isso que Morfeu pode fazer magia sem sofrer mutações.

Comprimo os lábios.

— Espere. A bengala do grifo é que era mágica, e não Morfeu? Era isso que precisava de recarga?

Papai confirma com um sinal de cabeça.

Então, sem a magia de Morfeu, Jeb estaria indefeso, e, sem Jeb, Morfeu seria magicamente impotente — um destino pior do que a morte, na cabeça dele. Pensando bem, ele não vai gostar nada quando souber que derretemos sua bengala.

Debruço-me sobre a borda e deixo a mão sentir a água que passa.

— O bastão se transformou numa poça de tinta. Jeb o criou e a água o dissolveu. — Franzo a sobrancelha. — É a água que nos protegerá hoje à noite. Não a ilha. Mas como o remo ainda está intacto? E o cavalo-marinho? Também são criações dele. Por que não se derreteram? — Enxugo as mãos na calça.

— Jeb não pintou o cavalo-marinho. — Papai conduz os remos pelas ondas que respingam. — Ele é parte da fauna daqui. Jeb e Morfeu o domaram. E, quanto ao barco, talvez tenha algo a ver com a resposta que ele deu quando perguntei sobre aquela... aquela coisa. A imagem dele. Por que estava defeituosa.

— Sim?

— Ele disse alguma coisa sobre os limites da realidade de uma pintura. Que tudo o que se origina da mesma tela pode conviver. A maior parte das pinturas dele fica restrita a um cenário que ele cria. Mas as poucas que não ficam (as pinturas sobre telas negras), quando, sem querer, entram no território de outra pintura, coisas imprevisíveis podem acontecer.

Começo a juntar as peças. Isso explica por que Nikki pode voar para fora do mundo do espelho e por que o sósia elfo — CC — podia perambular pelos corredores.

— Então, se algo estiver pintado em uma cena com água, não se desmanchará. Mas se não estiver...

— Isso. Acho que, no caso da imagem de Jeb, ela se misturou com pinturas de outro território e seu rosto se partiu em pedaços.

As palavras de papai reativam as palavras da fada da pichação para mim: você deveria estar em pedaços. Morfeu disse que todas as criações conhecem a minha imagem e Jeb mencionou algo sobre meu rosto aparecer na arte dele. Isso quer dizer que ele deve ter me pintado.

Talvez a fada do desenho possa ter pensado que eu era uma pintura errante que não pertencia àquela cena. E pretendia me despedaçar por estar lá. Ou talvez seja como Morfeu disse, e ela estivesse buscando vingança para seu mestre.

Um tremor de inquietação percorre minha espinha.

— Allie — a voz de papai muda de tom. — Há mais uma coisa que você deve saber: Jeb não perguntou sobre a mãe dele ou a irmã. Na verdade, fala nelas como se estivessem aqui. Como se estivesse com elas.

As lágrimas que estive contendo finalmente explodem em grandes pingos escorrendo pelo meu rosto.

— É culpa minha — murmuro, enxugando as bochechas com as costas da mão. — Eu o feri tanto que ele prefere ficar aqui e criar uma falsa realidade a encarar um mundo repleto de memórias ruins.

— Por que você fica dizendo isso? O que você está escondendo? — Papai para de remar. Estamos a apenas alguns metros da ilha agora. Eu só quero que ele continue. Não quero conversar sobre isso. Já me sinto mal mesmo sem seu julgamento.

— Algo aconteceu na noite da formatura — admito, relutante. — Antes do baile.

— Deixe-me adivinhar. Tem a ver com Morfeu.

Respondo, gemendo:

— Foi só um beijo! Por que Jeb ficou tão magoado com um beijo idiota?

— Espere um pouco. — Papai volta ao banco, fazendo o barco balançar. — Você beijou aquele arrogante...? Não sei nem o que pensar disso.

— Eu também não. — Ele ficaria ainda mais zangado se soubesse do resto. Que não foi a primeira vez. Que o Jeb também sabe do outro beijo que dei em Morfeu no País das Maravilhas. Que eu disse a Jeb que não tinha significado nada (mentira), depois fui e fiz de novo... mesmo não querendo que isso tivesse acontecido. Morfeu distorceu a história a seu favor, como sempre faz.

— Morfeu é um erro, Alyssa — papai continua, como se estivesse lendo meus pensamentos. — Ele é manipulador. Não tem escrúpulos. E não é humano.

— Nem mamãe. Nem eu. Ou Jeb, por falar nisso. Não mais. Isso faz com que você nos ame menos?

A luz do farol passa por nós e sinto arder o rosto ante o exame atento de papai.

— Claro que não. Mas amor? É isso que você sente por Morfeu?

Engulo em seco.

— Não tenho certeza. Está muito misturado à lealdade que tenho pelo País das Maravilhas. Mas há algo real entre nós. Algo poderoso. — Afundo-me no banco. — É complicado.

Papai retoma os remos.

— Bom, eu sei o que você sente pelo Jeb. E é simples e puro. Vocês são amigos desde o dia em que se conheceram. E isso virou algo mais. Isso é uma coisa tangível, Borboleta. E tão rara. O melhor tipo de amor. Ele planejava pedir você em casamento. Sabia disso? Ele me pediu a sua mão.

Fico atordoada. É a cara do Jeb fazer algo assim, tão fora de moda e bonito. Pelo menos, o Jeb que eu conhecia.

— Ele pediu a minha mão — consigo falar afinal. — Mas não cheguei a responder.

— E qual seria a sua resposta?

— Sim — digo, sem hesitar. — Mas isso foi antes...

Papai olha para as estrelas.

— Já sei. Antes que ele e sua mãe fossem capturados.

Penso em corrigi-lo, mas isso levaria a um interrogatório que não desejo enfrentar esta noite.

— Você é a única pessoa que conseguiria convencer esse rapaz e ajudá-lo a encontrar o caminho de volta para casa — papai pressiona. — Mas para fazer isso você terá de deixar para trás o País das Maravilhas.

— Não! — Apoio os cotovelos nos joelhos e seguro a cabeça para evitar que exploda. — Sou uma rainha. Tenho responsabilidades lá que você nem sequer imagina. Não é correto renegar esse lado meu. Virar as costas para um mundo que depende de mim. Já tentei fazer isso... — Gesticulo, mostrando o entorno. — É, e você está vendo o que aconteceu. Nunca mais vou fugir das minhas responsabilidades. Tenho um compromisso com os intraterrenos. Eu me importo com eles. Se Jeb e eu tivermos qualquer tipo de futuro juntos, ele terá de fazer as pazes com o fato de que o País das Maravilhas terá peso em qualquer decisão que eu tome, para o resto da minha vida. — Penso no diário pendurado em meu pescoço. — Em qualquer decisão que eu tome aqui.

Papai rema mais forte e a água respinga em nós.

— Em primeiro lugar, você é humana. Você tem compromissos lá também. Pessoas que dependem de você e que a amam. Não se deixe envolver tanto pelo poder e pela política a ponto de se esquecer disso. Ou estará fazendo exatamente o que Jeb está. Fugindo de sua humanidade.

A marca da Vermelha — aquela sensação de meu peito partindo-se em dois — me atinge como um soco. Apoio as mãos nas pernas para não cair.

— Não é isso que estou fazendo — digo entre os dentes. — Estou tentando achar um equilíbrio.

— E como isso é possível? — papai pergunta. — A loucura é a antítese do equilíbrio. Já presenciei você tomada pelo outro lado. E, honestamente, isso me assusta. Você está se deixando levar para a escuridão, para um mundo sem leis. Deixando-se levar para...

Morfeu.

Papai não fala em voz alta, mas ouço seu nome ecoar no silêncio.

— Ele se infiltrou em sua vida — papai prossegue.

— Alguns diriam que as escolhas da mamãe tiveram um papel nisso tudo — respondo.

O barco atraca na areia, dando um solavanco. Meu pai irradia raiva, o que alimenta o senso de justiça queimando dentro de mim.

— Não quis dizer isso — emendo, tentando aplacá-lo. — O que quero dizer é que Morfeu não tinha intenção de usar ninguém. Não no início. Ele e mamãe tinham um acordo mutuamente benéfico, até que ela desistiu.

Papai atira os remos no barco, fazendo barulho.

— Jamais acuse sua mãe de tomar uma decisão impensada. Ela tomou a decisão certa até quando era difícil. Deixou para trás um mundo que lhe prometia poder e imortalidade, simplesmente porque não tinha estômago para raptar criancinhas humanas a fim de roubar os sonhos delas.

— Simplesmente porque não tolerava a ideia de deixar você como um dos raptados. — Arrependo-me no instante em que falo. Sei que foi muito mais do que isso.

Papai balança a cabeça.

— Vou fazer questão de esquecer esta conversa, Allie. Você está cansada e obviamente não está pensando antes de falar. — Ele salta para fora do barco, andando na parte rasa para puxá-lo.

Ele está enganado. Estou pensando antes de falar, tanto é que não contei a ele a verdade mais inacreditável de todas: a de que, na verdade, posso pôr um fim às infâncias roubadas. A de que, ao ter um futuro e um filho com Morfeu, eu poderia consertar todas as coisas entre nossos mundos.

Não poderia contar-lhe nem que eu quisesse. Não posso arriscar perder meus poderes por quebrar o voto de silêncio vitalício da magia. Para me defender da Vermelha, encontrar mamãe e recompor o País das Maravilhas, preciso de minha magia intacta.

Papai amarra uma corda em volta de um toco para segurar o barco na areia. Eu salto antes que ele possa me oferecer ajuda.

Odeio quando há atrito entre nós. Odeio sentir-me distante de Jeb enquanto ele assombra os cômodos deste refúgio na montanha, enfrentando seus pesadelos e desgostos sozinho. Odeio ter sentimentos confusos quando se trata de Morfeu: sentir pena dele agora que está sem poderes, ficar zangada por ele manter um juramento que é pesado demais para mim — e, ao mesmo tempo, ser infinitamente fascinada por ele.

E, mais do que tudo, odeio o fato de mamãe e meus súditos intraterrenos estarem presos em um País das Maravilhas que se deteriora, sem saber se algum dia conseguirei salvá-los.

Algo nesse pensamento me aquieta... uma esperança serena. Eu vi como a magia de mamãe é forte na noite da formatura. Compreendi quanto ela conhece sobre o funcionamento interno do País das Maravilhas. Ela já foi quase uma rainha. Pode sobreviver naquele mundo.

Guardo os pensamentos para mim, pois são apenas palpites e não tenho provas. Mesmo assim, me confortam.

Guiados pela luminosidade das estrelas, papai e eu subimos por uma escadaria de pedra íngreme e sinuosa até o farol. Lá dentro, lustres espiralados flutuam próximo ao teto e acompanham nossos movimentos, irradiando uma luz suave de cor âmbar. As paredes são de pedra, o chão forma quadrados de areia pretos e brancos — réplicas minúsculas das dunas em que eu e Jeb surfamos no País das Maravilhas há um ano. Tiro as botas e afundo os pés exauridos na areia fresca. No alto da torre, há um quarto arredondado com uma cama de dossel e uma portinhola que dá vista para o oceano, deixando entrar o luar, o ruído das ondas e a maresia.

Papai insiste para que eu durma lá e opta pelo sofá no andar de baixo. Vamos à cozinha e comemos flores secas. São estriadas, como carne-seca, mas de uma coloração dourada intensa. O gosto é doce e lembra cera de abelha, como os favos de mel do reino humano. Terminamos com água de chuva em canecas feitas de casca de lagosta. Papai e eu estamos esgotados e não conversamos.

Entro no banheiro para tomar um banho e lavar minha segunda pele para poder estendê-la a fim de secar durante a noite. Encontro tudo de que alguém poderia precisar: um vaso sanitário, lâmina de barbear, escova de dentes e sabonete de aroma cítrico. De certa maneira, Jeb ainda vive de forma humana, não importa quanto negue.

Dirijo-me à escada e vejo papai esticando uma colcha sobre o sofá. Apesar do clima esquisito entre nós, nos abraçamos antes de ir dormir.

Na torre, abro um armário encostado à parede e encontro uma camisa de flanela xadrez. Retiro a roupa que tio Bernie me deu e penso nos guardas no portão do País das Maravilhas, torcendo para que estejam bem depois de tanto tempo por lá sem suprimentos. Também fico preocupada com a mensagem que deveríamos ter mandado pelo pombo de metal. Mesmo que o cavalo-marinho de Jeb encontre nossa sacola de viagem, é pouco provável que o pássaro mecânico esteja intacto depois de ter sido submerso. Nem sei se o sinal que ele emitiria funcionará para que o tio Bernie possa nos encontrar.

Aconchego-me na camisa de flanela, enrolando os punhos para ajustá-los ao meu tamanho. Ela bate em minhas coxas. Uma calça de moletom com cordão para amarrar na cintura está cuidadosamente dobrada dentro do armário. Separo-a para vestir pela manhã.

Quando estou pronta para me deitar na cama, uma luzinha verde tremeluzente pousa na portinhola aberta.

Nikki faz uma delicada reverência.

— Da parte do mestre Morfeu. — A vozinha aguda da minúscula fada confunde-se com a brisa. Ela me entrega uma caixa branca embrulhada com fita vermelha brilhante. Tem três vezes o tamanho dela. É mais forte do que parece para ter carregado a caixa pelo caminho.

Assim que pego a caixa, ela rodopia no ar e desaparece no céu noturno, sem mais palavras. Ao contrário de Gossamer, ela não é de falar muito.

Dentro da caixa há duas peças inusitadas de lingerie: um sutiã e uma calcinha short feitos de algodão branco recoberto de renda dourada. A renda metálica me parece vagamente familiar.

Ruborizo-me ao imaginar as mãos elegantes de Morfeu dobrando as peças e colocando-as na caixa. Há um bilhete em papel preto, sem dúvida escrito com a mesma pena que ele retirou da águia mais cedo.

A tinta parece feita de prata e cintila à luz das estrelas.
Queridíssima Alyssa,
Envio minhas desculpas por não recebê-la apropriadamente hoje. Gostaria de erguê-la acima de mim e rodopiá-la em círculos até estarmos ambos tontos e gargalhando. Gostaria de beijar seus lábios e sentir seu hálito. E gostaria de vesti-la em trajes condizentes com uma rainha. Esta noite, contento-me com as humildes peças que darão início ao seu guarda-roupa real. Imagino que o que você está vestindo por baixo das roupas seja tão indigno de você quanto as próprias roupas. Mas saiba que lhe darei armários repletos de renda, cetim e veludo um dia, quando você reinar no País das Maravilhas. Basta você pedir.
Seu fiel lacaio,
Morfeu

Os sentimentos dele me envolvem, sensuais como a seda. Coloco as peças de renda sobre o parapeito da vigia e examino o desenho dourado, tentando lembrar onde já o vi antes. Subitamente, lembro: a roupa da formatura de Morfeu era uma camisa de algodão e um casaco recoberto de renda dourada com fechos de colchete iguais aos do sutiã. Minha lingerie foi confeccionada com pedaços das roupas dele. Foram costurados à mão, o que deve ter lhe custado um bom tempo, pois ele não tem tais poderes. Isso significa que ele já os tinha aprontado para mim e estavam à minha espera.

Bilhetes de amor e presentes confeccionados à mão. Desprovido de magia, ele está me deixando mais confusa do que nunca. Sinto novamente aquela sensação de um murro no coração. Está ficando cada vez mais forte e frequente — como se houvesse uma costura no meio dele esticando-se além do limite.

Massageio o centro do peito para aliviar o incômodo. Então, tiro a camisa de Jeb e visto a lingerie por baixo.

Ruborizo-me ainda mais ao perceber que as peças me caem com perfeição... que Morfeu conhece meu corpo sem jamais tê-lo sentido com um toque; e, ainda mais, sabe que venho desejando peças bonitas desde que deixei o sanatório. Ele me conhece.

Abotoando a camisa de Jeb, subo na cama e abaixo as cortinas do dossel, agradecida por serem pesadas o suficiente para barrar a luz do farol. Na escuridão, debaixo das cobertas, abraço-me bem forte, envolvida pelo perfume de Jeb e pela lingerie feita à mão de Morfeu.

Sonho que sou uma boneca de papel, uma criação de tinta e imaginação trazida à vida pelas mãos de Jeb. Rasgo-me em duas, finalmente aliviando a sensação que trago no coração. Uma parte minha brinca de pula-sela por cima de cogumelos, envolve-se nas asas negras de Morfeu e dança com ele no céu ao lado da lua... a outra parte anda de skate no Submundo, passeia de motocicleta com Jeb e rouba-lhe beijos à luz das estrelas debaixo de um salgueiro. E, apesar dos paralelos e contrastes — ou talvez graças a eles —, sinto-me em paz como há muito não me sentia. Tanto Jeb quanto Morfeu estão felizes, e o País das Maravilhas e o reino humano prosperam.

Acordo de repente, desejando ser realmente a boneca de papel, dividir-me bem ao meio e proporcionar a cada parte seu final feliz, como em meu lindo sonho.

 

 

11


Máscaras

Vozes vindas da cozinha me despertam uma segunda vez. Visto a calça de moletom de Jeb, calço as botas plásticas e desço as escadas. Jeb e papai já estão ali há algum tempo, a julgar pelas canecas vazias e pela travessa salpicada de migalhas da flor de favo de mel.

Estou desorientada pela sensação distorcida de tempo aqui. Como Jeb pintou o oceano como uma cena noturna, ainda está escuro lá fora, mas deve ser de manhã, porque papai parece descansado.

Jeb, no entanto, não.

Os círculos sob seus olhos estão mais definidos, exagerados pelo brilho dentro das íris. Ele está usando jeans furado e uma camiseta branca manchada de tinta vermelha. Basta olhar para as manchas de tinta da mesma cor nas mãos dele e sei que ele está criando algo novo. Imagino o que pode ser.

Quando estou no último degrau, Jeb levanta-se e afasta o cabelo que caía sobre sua testa. A ação beira a timidez e o constrangimento, mas não demora para sua fachada impávida voltar ao lugar.

— Agora que você levantou, vamos arrumar umas roupas para os dois. — Ele oferece uma maçã e uma garrafa de água de nossa sacola de mantimentos. Parece que a patrulha com o cavalo-marinho foi bem-sucedida. — Café da manhã — ele diz, esperando que eu pegue a comida.

Eu me detenho.

— Como chegou aqui? O barco está com a gente.

— Eu andei sobre o oceano — ele responde de imediato.

Sua declaração de ontem à noite, de que ele é um deus, me atinge com toda a força.

— É mesmo?

O sorriso galanteador em sua boca é tão inesperado e adorável quanto um eclipse.

— Na verdade, eu pintei mais de um barco.

— Ah, certo. — Sorrindo, pego a fruta e a água que ele oferece. Nossos dedos se tocam. Um músculo no queixo dele pulsa mais forte, e em seguida ele se vira para papai e faz um sinal para que o sigamos.

Eu entro na fila, mastigando a maçã, esperançosa. Ontem, achei que tinha perdido Jeb. Entretanto, se ele ainda tem seu senso de humor, posso tentar quebrar a barreira da raiva.

Quando terminamos de atravessar o oceano, ele nos conduz de volta ao estúdio-estufa. Visto do alto, mariposas pretas e brancas encobrem a maior parte do teto de vidro. Elas se empilham e rastejam umas na direção das outras, formando um cobertor vivo que parece um céu noturno salpicado de estrelas. Isso diminui a luz da sala, reduzindo-a a sombras. Uma lâmina de luz do dia atravessa o único painel de vidro vazio — criando a desnorteante ilusão de noite e dia ao mesmo tempo.

Uma paleta de várias cores aguarda em cima da mesa. O cheiro familiar de tinta me reconforta. Nem pergunto onde ele está conseguindo ingredientes para fabricá-las. Embora o cheiro seja normal, as origens devem ser mágicas.

O estúdio parece maior esta manhã, na ausência das paisagens, que são as obras-primas de Jeb, e dos cavaletes. A única tela ainda ali é um lençol sobre uma parede, do teto ao chão. Há um espelho basculante em um canto da sala, e biombos japoneses escondem dois cantos. Os grous vermelhos em relevo nos painéis se movem como se estivessem vivos. Uma mariposa sai de seu lugar no teto e aterrissa na tela mais distante, sendo engolida por um dos pássaros pintados com uma mordida crocante.

Papai vê aquilo tudo com uma careta de perturbação.

Quanto a mim, estou fascinada. Na noite passada, eu estava desconfiada do trabalho de Jeb, mas hoje um encanto me aquece o sangue — o ressurgimento da minha loucura. As criações aberrantes de Jeb, sua extravagância e funções macabras parecem alimentar meu lado intraterreno.

— Primeiro — Jeb diz, dirigindo-se a papai enquanto alinha os pincéis e lapiseiras sobre a mesa —, temos que desenhar sua sombra.

Ele pede que papai tire a camisa e os sapatos e enrole as calças até os joelhos. Depois, ele o posiciona diante da tela e acende um abajur. A luz forte imprime a forma de papai sobre o lençol.

— Não se mexa — Jeb fala enquanto desenha a imagem. Eu estava com saudade de vê-lo trabalhando e de testemunhar o poder que fermenta sob sua pele enquanto ele confere vida às suas criações... isso acrescenta uma dimensão que nunca poderíamos compartilhar no reino humano.

Como disse ontem à noite, ele compreende o encanto exercido pela magia agora, a paixão e a liberdade contidas em dar às nossas obras-primas a habilidade de interagir com o mundo. A escuridão dentro de mim se enche de fascinação enquanto a humana dentro de mim me cutuca, alertando — um apelo pequeno, mas poderoso... exigindo ser ouvido.

Para aceitar o poder, é preciso também reconhecer quanto ele pode ser inebriante. Jeb tornou-se um viciado, assim como seu pai. Eu mesma estive embriagada de magia e loucura. A única maneira de encontrar a sobriedade é equilibrá-la com as melhores partes de ser humano. Mas não será fácil lembrar alguém das virtudes humanas quando essa pessoa foi maltratada tantas vezes, como Jeb.

— Quando eu terminar o contorno — ele diz, desenhando a metade inferior de papai —, vou preenchê-lo com tinta. Depois, vai precisar recuar e se juntar à pintura antes que ela seque. Ela tem que ficar unida à sua pele para poder segui-lo aonde for. Ela vai permanecer intacta, desde que não se molhe. Como fui eu que manipulei o tempo e as paisagens, isso não será problema.

Ergo uma sobrancelha.

— Então, você basicamente está fazendo o papel da Wendy.

Jeb se detém e olha para mim.

— Windy?

— A Wendy, de Peter Pan. Você está costurando a sombra de papai no lugar. — Peter Pan era a história favorita dele quando criança. Sua mãe lia para ele toda noite.

Mais uma vez, uma nuance juvenil de rapaz tímido em seu rosto — o olhar que ele costumava me dar quando eu o pegava de surpresa. Em seguida, o sorriso desaparece e ele volta a se concentrar no trabalho.

Seu afastamento é como um jato de água fria. Papai dá uma piscadela sutil para mim, encorajando-me a saborear a vitória, por menor que ela seja.

Jeb termina o desenho sobre a tela e começa a acrescentar asas.

— Ao contrário da Al — curvas e linhas florescem, impecáveis, a um gracioso movimento de sua mão —, nós não temos esse equipamento embutido. A maneira mais segura de viajar é voando, então vai precisar de asas para nossa viagem ao portão do País das Maravilhas.

— Vamos para o portão hoje? — Tenho sentimentos conflitantes acerca dessa notícia. Sei que, se eu for embora sem enfrentar a Vermelha, ela vai voltar para assombrar o País das Maravilhas e aqueles que amo. Ela provou que não vai desaparecer até que eu a obrigue. Mas também quero resgatar mamãe o mais depressa possível, e é impossível não ficar animada com o fato de Jeb ter decidido ir conosco. — Então você vai com a gente?

Papai me observa com olhar pesaroso.

— Você entendeu mal — Jeb responde, fazendo furos na boia da minha esperança, não somente pela resposta lacônica, mas pelo tom indiferente da voz. Ele volta para a mesa e mistura tintas até obter um pigmento preto com nuances de púrpura. — Só seu pai e eu vamos hoje. Foi escolha dele.

Papai faz uma careta de quem pede desculpas.

— Nós planejamos levar os suprimentos para os guardas e sentir como estão as coisas — ele explica. — Você fica aqui. Assim podemos ter certeza de que tudo está correndo bem antes de você e eu tentarmos partir juntos.

Você e eu. A sala fica mais triste.

Fecho as mãos com força.

— Não tem a menor chance de eu ficar sentada aqui enquanto vocês dois enfrentam toda essa loucura aí fora. Eu vou junto.

Quero acrescentar mais uma coisa: que se Jeb acha, por um segundo, que vou deixá-lo para trás quando partirmos para o País das Maravilhas, ele está enganado. Lançarei mão de minha magia para forçá-lo a voltar para casa, se necessário.

A ideia de enfrentar seu exército de pichações me assola. Não tive poder sobre ele. Jeb agora é um rival à minha altura, em todos os sentidos. Seria uma luta difícil de vencer.

— Allie, por favor — papai insiste.

— O quê? — eu retruco. — Acha que ainda não sei me cuidar? Mesmo depois de tudo o que você viu?

— Não é isso. O que me preocupa é a sua sede de sangue. Nenhum de nós sabe onde a Vermelha está. Mas é quase certo que ela saiba que você está aqui agora, depois do nosso encontro com aqueles pássaros. Não quero que você se depare com ela. Lembra-se do nosso trato? Entramos, chegamos ao portão, saímos.

Não posso deixar de notar que ele omitiu a parte que falava de salvar Jeb. A frustração queima meus olhos. Não há nada que eu possa fazer acerca de Jeb até ficar algum tempo sozinha com ele. Mas talvez eu possa usar a ausência dele e a de papai a meu favor. Depois que eles saírem, irei sozinha à procura da Vermelha. Tenho um pressentimento de que o diário me levará diretamente a ela.

Olho para as mariposas no teto para manter a cara de brava. Se Jeb desconfiar do meu plano, pode pintar uma jaula dourada à minha volta e eu ficarei presa.

— E o que eu vou fazer o dia todo enquanto vocês estão lá? Brincar com insetos?

Jeb se agacha para preencher a parte inferior do esboço com tinta. Seus lábios se curvam em um sorriso de escárnio.

— É o seu passatempo favorito, não? E você terá o príncipe das mariposas para lhe fazer companhia.

Mantenho a expressão inescrutável. É bom que Morfeu fique. Ele pode me acompanhar na busca pela Vermelha. Ele conhece os caminhos deste mundo e compreende seus ocupantes melhor do que eu. A única desvantagem é o voto que fiz, e quanto ele está determinado a cobrá-lo, e como uma parte de mim está começando a ansiar por essas vinte e quatro horas ao lado dele no País das Maravilhas.

— Então... vocês não vão levar Morfeu? — consigo falar em tom indiferente.

— Ele ficaria perdido sem o seu grifo. — É impossível não sentir a presunção na voz de Jeb. — Não pode voar sem ele e precisa de seu brinquedinho para saber o rumo de volta, se quiser se virar para o outro lado.

— Então aquela era a bússola dele.

— Isso mesmo. Todas as minhas pinturas têm a habilidade de encontrar o caminho de volta para esta montanha, para mim, por mais distantes que estejam.

— Mas Morfeu pode usar sua sombra — tento argumentar com ele.

— Eu a peguei de volta. Ela precisa de reparos — Jeb diz; uma resposta para tudo.

Incapaz de esconder minha irritação, eu brado:

— Bom, essa parece uma manobra bem idiota. Quanto mais gente, mais seguro, vocês sabem. — Mordo a língua para que eles não saibam que sou eu quem precisa de segurança.

— Vamos levar reservas. — Jeb aponta para um dos biombos japoneses no canto. O grou bate as asas e bica o painel ao qual está grudado.

— O quê? Os grous?

Concentrado e em silêncio, Jeb conduz papai de volta à pintura e em seguida sela os dois juntos com um passe de mágica do pincel.

Papai se afasta e a pintura se destaca da tela — um rastro quiescente e fluido no chão —, parecendo uma sombra comum que ganhou asas.

Caminho até o biombo japonês para o qual Jeb apontou, curiosa.

— Al, espere — ele alerta, largando o pincel em um pote de água e correndo na minha direção.

Antes que possa me alcançar, espio atrás do biombo. Um tecido pesado cobre alguma coisa que tem a forma de um porta-chapéus. Eu puxo a coberta.

CC guincha e se debate, libertando-se e quase me derrubando em sua pressa de escapar.

Eu grito.

— Ei! — Papai corre na direção da criatura.

Jeb o segura antes que ele chegue à porta.

— Tudo bem. Eu o proibi de tocar em vocês novamente. — Ele dá um tapinha no ombro do sósia. — Mostre a eles, CC — ele instiga com voz suave, como se falasse com uma criança ou um animal de estimação.

A criatura se vira e eu me preparo para encarar as macabras fissuras em seu rosto. Em vez disso, um remendo vermelho em forma de coração cobre o olho e os buracos abertos que vi ontem. Há uma fenda no meio para CC poder enxergar. O outro olho perfeito e a bochecha estão descobertos, e as marcas de elfo cintilam sob a luz do dia. É mais fácil agora distinguir as cores de porcelana da criatura — pouco mais claras do que a tez morena de Jeb. Com o coração sobre o olho, CC lembra o arlequim de uma peça infantil. Só falta a fantasia com losangos em vez da calça jeans e da camiseta.

Considerando-se as manchas vermelhas nas roupas e nas mãos de Jeb, era esse o projeto em que ele estava trabalhando antes de ir até a ilha.

— Você fez uma máscara para o CC hoje de manhã? — pergunto.

— Eu a fiz para você. Ontem à noite. Não queria que a aparência grotesca dele a assustasse de novo.

A gentileza do gesto me comove. Não admira que as olheiras de Jeb pareçam tão mais escuras hoje. Pergunto-me se ele chegou a dormir.

Ele manda a criatura embora e evita olhar para mim.

— Farei sua sombra aparecer quando chegar o momento de voar — ele diz para papai.

Papai assente e observa a forma escura mover-se com ele pelo chão.

— Agora vêm as roupas — Jeb continua, limpando o pincel. — Elas serão removíveis quando estiverem secas, e você pode usá-las várias vezes. Mas a tinta tem que tocar o máximo possível de sua pele nua.

Papai se detém.

— O máximo possível?

— Você vai usar um tapa-sexo. É assim que eu faço as roupas do baratão.

Imaginar Jeb e Morfeu em posição tão íntima é, ao mesmo tempo, sexy e cômico. Vaidoso do jeito que Morfeu é, deve ter havido muita discussão sobre as escolhas de estilo.

— E quanto à Allie? — papai pergunta com uma defesa paternal, elevando o tom da voz.

Jeb se concentra na mistura de tintas.

— A menos que ela queira usar minhas roupas, não teremos nenhuma outra opção.

Eu dou de ombros, acentuando o tamanho de sua camisa.

— Estas aqui estão quase caindo. Não vão servir para viajar.

— Ela não vai usar só uma tanguinha enquanto você a pinta — papai insiste.

— É claro que não. — Jeb joga dois rolos de bandagens elásticas para mim. — Encontrei isso em sua sacola. Elas vão aderir à tinta para se tornar parte de sua roupa. Cubra suas roupas de baixo. Deixe os braços, barriga e pernas de fora. Não será pior do que usar um biquíni. E tem uma fivela para você prender o cabelo.

A aspereza da fala machuca. Quatro semanas atrás, ele não teria sugerido que eu usasse algo assim sem expectativa no olhar. Na verdade, antes de todo o País das Maravilhas escapar no baile de formatura, estávamos discutindo o próximo passo físico de nosso relacionamento. O maior passo. É excruciante saber que perdi o poder de tocá-lo em um nível humano.

Enfio-me atrás do biombo mais próximo e tiro a roupa, em seguida prendendo o cabelo no alto da cabeça.

Papai sai primeiro de seu biombo. Enquanto Jeb trabalha em suas roupas, vou bem devagar para não ter de ver meu pai de tanga. De todas as coisas horripilantes que já testemunhei, esta seria a pior.

Envolvo as bandagens em torno da lingerie que Morfeu me deu e confecciono um maiô do qual qualquer mãe teria orgulho. Depois de me certificar de que papai e Jeb terminaram, saio usando a camisa de flanela como um roupão.

Papai dá uma olhada rápida e parece satisfeito que eu esteja adequadamente coberta.

Meu queixo cai. Ele está envolto em plumas, tem quatro asas e me faz lembrar os pássaros trogloditas que encontramos ontem.

— O que é isso?

— Vamos passar despercebidos se parecermos com a gangue de Manti — Jeb explica, lavando o pincel. — Eles montam guarda pelo céu. Tenho uma fantasia de pássaro também. É a camuflagem perfeita.

A palavra camuflagem me recorda o simulacro.

— Será que a melhor camuflagem não seria a invisibilidade? — Ajoelho ao lado da sacola de viagem no chão.

— Jeb e eu procuramos os disfarces — papai responde. — Não estavam aí dentro.

Eu franzo a testa e checo os outros itens. O pombo mensageiro aparece, mas, quando aperto o botão em sua garganta, o bico não brilha mais. Volto a procurar os simulacros.

— Não faz sentido — digo para mim mesma depois de desistir. — Todo o resto está aqui.

Jeb dá de ombros.

— Talvez a seda encantada não seja à prova d’água.

Papai dirige-se para a porta.

— Acho que vou até ao farol limpar a cozinha. Preciso praticar como me movimentar com estas penas.

Ou ele se sente constrangido me vendo seminua como eu me senti ao vê-lo, ou está me dando algum tempo a sós com Jeb. Seja qual for o motivo, fico grata.

— Obrigada, papai.

Ele faz um sinal com a cabeça e fecha a porta. Só faz dois minutos que ele saiu quando a porta volta a se abrir e Morfeu entra, retumbante, dando de cara com Jeb na mesa, sem saber que estou no canto oposto.

Ele está com roupas novas hoje: uma jaqueta acetinada na cor prata sobre camiseta branca e calças pretas elegantes. Sem um chapéu para contê-las, as ondas sedosas do cabelo combinam perfeitamente com a gravata de seda azul pendurada frouxamente no pescoço. Contudo, apesar da mudança de guarda-roupa, suas asas ainda estão caídas, um sinal claro de que ele está triste.

— Sabe que você está sendo totalmente insensato — ele grunhe para Jeb. Como este não responde, Morfeu bate a palma da mão ao lado dos pinceis, fazendo-os pular. — Estou somente pedindo outra bengala... — A voz dele emudece quando Jeb olha para mim. Morfeu se vira.

Um rubor invade meu rosto. Fecho a abertura da camisa para esconder o diário em miniatura em meu pescoço e mexo-me para cobrir a tatuagem no tornozelo esquerdo antes que ele possa caçoar dela. Depois, lembrando que estou nua das coxas para baixo, volto para trás do biombo e fico espiando.

Morfeu diz com voz brava:

— Alyssa, o que é isso debaixo do roupão? — Ele se vira para Jeb. — Essa é nossa rainha. E você a veste com bandagens?

Jeb nem tira os olhos de seus preparativos.

— O que ela usa debaixo das roupas não é da sua conta.

— Bah! — Morfeu rouba um pincel. — Ela deveria estar vestida com o brilho das estrelas e nuvens, com renda e maciez. Nada menos delicado deveria tocar sua pele. — Ele aponta as cerdas para Jeb. — Eu vi no que você meteu o Thomas. Você não vai pintar uma dessas fantasias de pássaro troglodita para ela. Ela faz parte da realeza. Vista-a como a realeza. Dê-lhe algum brilho... um pouco de pompa. E uma coroa.

— Volte para o seu quarto, Morfeu. — Jeb pega o pincel. — Os adultos têm mais o que fazer.

Morfeu inclina a cabeça para encontrar meu olhar por detrás do biombo.

— Ah, minha florzinha. Você deveria ter visto as atrocidades com que ele queria me vestir nos primeiros dias. Ele não me deixou dar nenhuma opinião até eu andar por aí pelado por algumas horas. Se você decidir empregar essa estratégia, eu estarei totalmente do seu lado. Ou na sua frente. A dama escolhe. — Ele pisca.

Uma inesperada centelha de diversão me invade. Aguardo que sua provocação sugestiva cause um ataque de ciúme em Jeb. Em vez disso, porém, ele continua calmamente organizando suas tintas.

— Jeb não estaria aqui para ver mesmo — eu murmuro a Morfeu. Um implícito E ele nem perceberia mesmo ecoa em minha cabeça. — As fantasias de pássaro são para a expedição dele com papai. Não fui convidada, nem você. Estamos em prisão domiciliar.

Morfeu percebe minha expressão austera e volta-se para Jeb.

— Ora essa! Você está deixando Alyssa aos meus cuidados? Que maduro e confiante de sua parte, pseudoelfo. — Ele segura o ombro de Jeb. — Se quiser ir logo, pode abster-se das novas roupas. Ela não vai usar nada depois que você partir. Considere essa a minha contribuição para a causa.

Jeb joga Morfeu contra a parede com tanta rapidez que quase não percebo o movimento.

Provocadas pela atividade, as mariposas no teto descem feito pedaços de cinzas caindo do céu. Elas grudam na parede próxima às asas de Morfeu, delineando seu contorno. Fortes raios de sol entram pelos painéis de vidro abandonados.

Jeb e Morfeu se encaram — olhos nos olhos. Uma luz púrpura pulsa entre seus corpos.

— O que você tem que se perguntar, Alyssa — Morfeu se dirige a mim, mas continua focado em Jeb —, é de quem ele tem mais ciúme. — Ele corre os dedos pelo cabelo ondulado de Jeb. — De mim ou de você.

Jeb não move um músculo.

— Acho que nunca vão saber. — Ele estuda a expressão imutável de Morfeu e seus músculos começam a relaxar. — E boa tentativa. Mas não vou entrar nesse joguinho. Vocês dois ficam por aqui.

Ele solta Morfeu, que me lança um olhar pesaroso.

— Lamento, amor. Agora que tem a perspicácia intraterrena, ele não é tão fácil de manipular. Eu decidi achar isso charmoso. Mas não se preocupe. Você e eu vamos pensar em alguma coisa para nos manter ocupados. — Ele lança as asas para cima e as mariposas flutuam à sua volta em pequenos tornados.

Com um movimento de mão, Jeb chama os insetos. Eles pairam no ar diante dele, construindo uma forma humana, como se espelhassem sua imagem.

— Escoltem o mariposão de volta ao quarto dele — Jeb as comanda. — E mantenham-no ocupado enquanto eu estiver fora.

Morfeu sorri com desdém e caminha na direção da porta, com o guarda-mariposa forçando-o a avançar.

A porta se fecha sozinha.

Eu saio de trás do biombo e faço uma careta para Jeb.

— Por que fez isso?

— Porque temos que começar, e, se eu deixasse a porta aberta, teríamos mais distrações. — Enfiando o polegar no buraco da paleta, ele indica que eu me coloque na posição em que papai estava, para tomar as medidas.

Não me mexo.

— Você sabe que não estou falando da porta. Não suporto o modo como você o está tratando. Sem mencionar o fato de ele estar sem poderes... e que você detém toda a magia.

— Ah, está certo. Como se ele nunca tivesse feito isso comigo.

Olho para meus pés descalços. Segurando o pincel entre os dentes, Jeb pega meu cotovelo e me posiciona sobre um quadrado de tecido.

Ele levanta meu queixo com a ponta de um dedo e em seguida pega o pincel da boca.

— Olhe direto para a frente.

Meu corpo permanece estático, mas minha opinião dá pulos para ser ouvida.

— Sabe que eu esperava esse tipo de crueldade vindo do Morfeu, não de você. A ideia de certo e errado que ele tem é distorcida. — Estudo o rosto de Jeb. — Mas a sua não é. Intimidação? Eu achei que isso tinha ficado na infância. Você é um homem agora. E não é esse tipo de homem. Você não é como o seu... — Eu paro bruscamente e mordo a língua com força suficiente para tirar sangue.

A expressão de Jeb endurece.

— Meu pai? Pode apostar que não sou como ele. Sou mais forte do que ele jamais foi. — Sua voz é baixa e controlada. — Sou mais do que ele achava que eu poderia ser. Fiz mais do que ele disse que eu era capaz. Você sabe o que ele pensava da minha arte. Imagine o que diria se me visse agora.

Ele sustenta meu olhar por tempo suficiente para registrar minhas desculpas não verbalizadas. Depois, sem me tocar, ele abre minha camisa. Minha pele reage à proximidade de suas mãos — lembrando como é ser afagada por elas. A camisa escorrega de meus ombros, livre de minhas mãos, e cai no chão atrás de mim, desnudando os seios e a cintura cobertos por bandagens e o estômago nu. Sinto-me exposta, em todos os níveis.

Jeb respira fundo. Ficamos ali, piscando um para o outro sob a luz forte. Sua pele exala cheiro de tinta e sabonete cítrico. Manchas de tinta fresca brilham nos braços e no pescoço, chamando atenção para os músculos firmes.

Respondendo a um impulso, passo o indicador pela mancha azul próxima de sua clavícula.

Ele franze o rosto e se afasta. Baixo a mão, derrotada.

Com a atenção em sua paleta, Jeb passa o pincel na tinta preta. Ele o desliza sobre meu braço esquerdo, do ombro ao alto do bíceps. Linhas definidas formam uma manga curta. As cerdas pinicam e a tinta é fria, mas é a habilidade de Jeb em desligar suas emoções que me dá calafrios. Não o conheço mais.

Ele dá um passo para trás e recarrega o pincel, em seguida passando para o braço direito. Como se estivesse ausente, passa a língua pelo lábio inferior, cutucando seu piercing.

— Lembra quando eu coloquei isto?

A pergunta inesperada me desequilibra. Eu me mantenho inerte, apesar do calor que brota por baixo da minha pele.

— Duas horas depois do funeral do seu pai — respondo secamente.

— E sabe há quanto tempo eu vinha querendo fazer isso, mas toda vez que tocava no assunto... — Ele vira o antebraço para baixo.

A tatuagem brilha, mas são as marcas de cigarro que chamam minha atenção.

— É.

— Bem, foi mais do que para provar que o reinado de terror dele tinha acabado. — A voz de Jeb é distante, como se estivesse lendo a história da vida de outra pessoa. — Foi um lembrete. Que agora eu estava no controle das minhas escolhas, do meu corpo e da minha vida. Que podia dar minha opinião quanto ao que acontecia com minha mãe e minha irmã. — Ele dá a volta e vai para as minhas costas, deixando meu peito e minha barriga sem pintar. Depois que termina as costas das minhas mangas, as cerdas traçam uma linha que desce pela minha espinha e para alguns centímetros acima da cintura, fazendo uma listra de um lado ao outro das minhas costelas.

Eu controlo qualquer reação à sensação de cócegas.

— Engraçado — Jeb continua — como eu pensei que algo tão insignificante pudesse colocar uma pedra no que aquele bêbado miserável fez. — Ele ri. Não a risada cálida que costumava dar. Essa é profunda, frágil e sem alegria. — Agora... agora eu posso pintar um piercing em qualquer lugar do meu corpo, ou uma tatuagem, e eles se tornam reais. Vivos. Poderosos. — Ele passa o líquido frio e cremoso nas minhas costas, criando uma camiseta cortada. — Tudo o que eu criar lutará por mim. Meu labret poderia ser tão mortal como a espada de um samurai. Eu só preciso pintar e dar a ordem. Se eu tivesse isso no nosso mundo, poderia ter impedido que ele machucasse minha mãe e a Jen. Eu poderia ter melhorado a vida delas. Aqui, eu posso fazer isso. — Ele faz uma pausa. — Eu tenho feito isso, sabe. Aquelas cenas agora acontecem como deveriam ter acontecido. Todas as vezes, é meu velho que apanha até rachar. E a mamãe e a Jen ficam intocadas e felizes.

Eu tremo, aterrorizada ao ver quanto ele se afastou de nossa realidade.

— Jeb, elas não são a sua irmã e a sua mãe. São só pinturas. Você sabe disso, não é?

O pincel retoma a viagem pelas minhas costas, mas ele não diz nada.

— Você tem que se livrar dessa culpa — eu continuo. — Você era só um menino. Se permitir que isso o envenene, vai matar tudo de bom dentro de você. Você não é como ele. Mesmo quando ele o machucava, você não era violento. É isso que fez de você uma pessoa melhor. Não o poder para revidar, mas o poder de se elevar e ajudar sua irmã e sua mãe a ter uma vida boa, apesar disso. Você encontrou uma maneira de fazer isso de modo pacífico, por meio da sua arte.

— Encontrei uma maneira melhor agora. — O perigo que permeia sua voz faz com que os cabelos do meu pescoço se ericem.

Lágrimas crestam meus olhos. Algumas se libertam e correm pelo rosto. Elas ficam penduradas no queixo antes de cair e rebentar sobre meu peito.

Jeb termina as costas da camiseta — deixando aberturas nos ombros para as asas — e passa para a frente. Ele estuda meu rosto.

— Você tem que parar de chorar. Vai borrar a tinta.

— Jeb, por favor.

— Não vale a pena chorar — ele me garante, mas sua voz estremece quando percebe que meu peito está molhado. Ele arrasta uma faixa de tinta no sentido horizontal ao longo da minha caixa torácica e acima do meu umbigo para formar a barra frontal da camiseta. — Você está olhando pelo lado errado. Ser capaz de criar as próprias cenas e paisagens significa que você reina sobre elas. Poxa, eu me dei asas com a minha sombra. Agora posso voar. Juntos, poderíamos dirigir este mundo e construir nossos próprios finais felizes. Posso oferecer a você tudo o que Morfeu tem. — Ele levanta o queixo, pensando. — Tinha — corrige com um sorriso sarcástico.

Meus pulmões doem, como se ele tivesse me arrancado o ar.

— Não quero essas coisas de você. Eu amo seus defeitos e imperfeições. Seu coração bondoso. As cicatrizes que combinam com as minhas, e as lutas que tivemos para encontrar a nós mesmos. Eu quero a sua humanidade. Nada mais.

Ele franze a testa. O que eu não daria para ver seus lábios se abrindo em um sorriso genuíno. Aquele com as covinhas que eu amo. Minha garganta arde, obstruída por emoções que temo libertar.

— Eu teria seguido você para qualquer lugar — ele murmura com a voz árida de agonia. — Eu só queria passar a vida toda com a minha melhor amiga. Com a garota que deu vida às minhas pinturas. Mas não fui eu quem inspirou seus mosaicos, fui? Foi sempre o País das Maravilhas. Foi por isso que você o escolheu.

— Escolhi? Foi só um beijo, só isso...

— Não é o beijo. Às vezes, as palavras falam mais alto do que as ações.

— Palavras...? Que palavras?

— A promessa que fez a ele, e que não pôde fazer para mim.

Solto um grunhido para não chorar novamente.

— Você está falando coisas sem sentido. Por favor, me explique o que quer dizer. — Talvez Morfeu tenha contado a ele sobre o meu voto. Se ele vem provocando Jeb esse tempo todo sobre nosso dia juntos, isso explicaria uma parte dessa animosidade. Mas não toda.

— Chega de conversa. Preciso me concentrar. — Jeb preenche a metade inferior da minha camiseta. Ele coloca camadas de tinta sobre a pele por baixo da linha do busto, evitando o ponto onde estão meus colares. Eu deveria tê-los tirado... tê-los afastado, mas não posso me mexer porque o pincel está fazendo a curva do meu seio direito, pintando-o para que a bandagem não apareça.

A respiração de Jeb está no mesmo ritmo da minha. Conheço sua linguagem corporal, como os músculos do queixo se comportam quando ele está se esforçando para manter o controle.

O pincel se torna uma extensão da mão dele. Não importa que as cerdas e o cabo estejam entre nós. Mesmo através das bandagens, posso sentir nossa conexão. Não há calor, nem entusiasmo, nem pressão. É um elo mais profundo, nascido da amizade e da confiança conquistada a duras penas: um chamado por baixo da pele, como se meu espírito convidasse o dele.

Engulo o ar aos poucos, com cada movimento do pincel... temendo respirar muito alto, temendo mover-me. Temendo que, se eu perturbar a atmosfera de alguma forma, quebrarei o encanto que o envolve. Talvez eu possa trazê-lo de volta, ajudá-lo a lembrar-se das coisas boas de sua vida humana. Se puder fazê-lo me abraçar, talvez isso o faça se recordar de tudo o que significamos um para o outro.

A mão dele começa a tremer no momento em que termina de pintar meu seio esquerdo.

— Jeb. — Eu arrisco um apelo sussurrado. — Todas essas semanas eu estava em um sanatório. Eu cedi à minha loucura, encarei meus medos. Mas nunca me esqueci de você. De nós. Por favor, me mostre que você também se lembra.

Seu olhar se intensifica dentro do meu. Meu corpo dói de desejo, reconhecendo aquele olhar do passado.

A paleta e o pincel caem aos meus pés quando ele segura meu rosto com cuidado para não borrar a tinta em meu peito. Seu polegar percorre o curso das lágrimas sobre meu rosto e então ele toca a covinha em meu queixo. Sua respiração envolve meu rosto, quente e adoçada pelas flores de mel que ele comeu antes.

Passo a palma da mão por seu peito e mais abaixo, buscando as cicatrizes através do tecido fino da camiseta. Buscando o Jeb com quem cresci. Minha rocha, apesar de suas próprias fraquezas.

Ele geme. Seus dedos entram no cabelo preso na base do meu pescoço. Eu agarro sua camiseta, viro o rosto para beijar o piercing na beira de seu lábio inferior.

Com um som de surpresa, ele me larga e dá um pulo para trás. Uma luz vermelha é refletida em seu rosto. Nós olhamos para o meu pescoço simultaneamente. As páginas do diário estão brilhando.

— O que é essa coisa? — A voz dele está carregada de emoção. A luz vermelha pisca dentro dos olhos dele feito chama de velas. A expressão muda de curiosidade para fascínio. Ele usa o dedo mindinho para levantar os dois cordões que tocam minha clavícula, conseguindo não tocar no vão entre meus seios.

— Essas páginas são de verdade? — ele pergunta.

Empurro o coração que pulou até minha garganta, engolindo em seco.

— Não é nada. — Passo o pequeno caderno e a chave pela cabeça e os escondo no punho.

Não escape novamente... Por favor, fique comigo... Me abrace, me abrace, me abrace.

Meu mantra silencioso se espatifa quando ele pega meu pulso e o vira para que eu deixe cair os colares na palma de sua mão. No momento em que isso acontece, ele xinga e joga-os para o outro lado da sala. Com os olhos arregalados, abre os dedos.

O diário deixou uma impressão — uma marca vermelha da cor de fogo — no centro de sua mão.

 

 

12


Salas

Jeb inspeciona a mão enquanto tento avaliar a gravidade do ferimento. Seu humor muda para o acusatório em um piscar de olhos.

— O que você tem dentro desse livro? Por que ele me queimou?

— Eu não sei — murmuro a ele e também a mim mesma.

O diário me protegeu pelo menos duas vezes desde que estou dentro desta montanha. Será que ele acha que Jeb também é um perigo para mim?

Será que é?

— São só palavras — eu acrescento. — Palavras mágicas. Não têm nada a ver com você. — Não posso ser mais específica ou ele descobrirá que estou planejando procurar a Vermelha enquanto ele e papai estiverem fora.

Jeb estreita os olhos, como se não tivesse acreditado. Fico desnorteada, perguntando-me mais uma vez de onde vêm toda essa animosidade e desconfiança.

Papai escolhe este instante para voltar para a sala. Ele percebe meu estado semipintado e rapidamente desvia o olhar.

— Está tudo bem com vocês dois?

— Não poderia estar melhor — diz Jeb.

Papai pega a sacola e a coloca em cima da mesa para olhar os suprimentos com as costas para nós, um truque óbvio para nos dar privacidade.

Não que precisemos de alguma. Jeb acrescenta algumas coisas — uma fita de renda na barra da camiseta para cobrir meu umbigo e a parte inferior das costas, e meias-luvas combinando —, tão desligado de seus movimentos que me sinto como se fosse uma boneca unidimensional e ele estivesse colocando roupas de papel em mim.

Quando termina, ele me conduz até o espelho basculante para que eu possa vê-lo tocar cada peça pintada com a ponta do pincel, agora aceso com magia violeta.

O pigmento dourado em minhas pernas se torna uma meia-calça cintilante sem pés que termina nos tornozelos. Ele estica e dobra, feito Spandex. As duas camadas em xadrez vermelho, marfim e verde que ele pintou da cintura até o meio da coxa formam as costuras dianteira e traseira de uma minissaia, e a camiseta preta se alarga, adquirindo um talhe confortável. O crânio marfim e os ramos dourados na frente dela se inflam, como se fossem um bordado com fios metálicos.

Ele solta meu cabelo e roça o pincel em minhas ondas platinadas. Ergo a mão para tocá-las e sinto uma bandana em forma de tiara com rosas brancas e rubis cintilantes que combinam com minha mecha vermelha.

Pela primeira vez em um mês, sinto-me eu novamente. Parte intraterrena e parte humana — e um toque de majestade.

O reflexo de Jeb aparece atrás do meu, com o queixo acima da minha cabeça. Ele coloca o diário e os cordões com as chaves no lugar, com cuidado para tocar somente nos cordões.

— Vou repetir mais uma vez — ele diz. — Não deixe as roupas se molharem.

Eu me viro para agradecer-lhe por me dar essas coisas lindas, mas ele já está do outro lado da sala, discutindo a missão ao portão do País das Maravilhas com papai.

De volta para trás do biombo, verifico sob as roupas. As bandagens se uniram à roupa pintada, deixando somente os presentes rendados de Morfeu intactos. Coloco minhas botas de Barbie sobre a meia-calça. Decidimos que era melhor eu ter sapatos à prova d’água. Assim que eu sair, papai e Jeb me acompanharão até o farol.

Papai me dá um abraço e instruções rigorosas para que eu não me mexa até eles voltarem. Juntos, eles retornam ao barco. Eu me regozijo em silêncio, rindo de como eles esqueceram que posso voar, quando Jeb para no meio das escadas de pedra, diz alguma coisa a papai e volta para perto de mim.

Ele apoia a mão sobre o batente da porta acima da minha cabeça, inclinando-se sobre mim, com os traços fortes iluminados pela lua.

— Eu sei que está planejando sair — ele diz.

Reprimo uma negação, furiosa por ele ter previsto cada movimento meu quando eu nem consigo extrair uma migalha dos pensamentos dele.

— Só existem dois modos de sair deste refúgio — ele continua. — O primeiro é o caminho que você usou para entrar. Eu ordenei às pichações que não a machucassem, mas também não a deixassem sair daquele túnel. E, se você tentar tirar água deste oceano, ele vai evaporar assim que você o retirar do cenário. O outro modo é a passagem pela montanha e eu sou o único que a controla.

A intraterrena em mim está impressionada pelo seu novo papel de mestre manipulador. Mas o lado humano, o que sabe que este não é o verdadeiro Jeb, tem medo do que ele se tornou.

— Aproveite esse tempo — ele insiste. — Descanse e preserve suas forças para o País das Maravilhas. Não vai ser um piquenique para você nem para o seu pai. — O velho Jeb aparece de relance quando ele hesita, e eu me pergunto se pensou no que significará para nós o fato de ele permanecer em Qualquer Outro Lugar. Será um adeus definitivo.

Ele baixa a mão queimada e olha com atenção para a cicatriz recente.

— Você não me disse o que tem nesse caderno aí.

Eu aperto o diário entre os dedos.

— Eu disse que eram só palavras.

Ele bufa.

— Bem, então parece que são palavras que sempre vão ficar entre nós, não é? — Depois de dizer isso, ele parte. A frase “Às vezes, as palavras falam mais alto do que as ações” ecoa no ruído da sola de suas botas arranhando os degraus de pedra.

O que eu posso ter dito da última vez que estivemos juntos que pareceu tanta traição e destruiu a fé que ele tinha em nós dois?

Cerrando os dentes, eu bato a porta. Apesar do que Morfeu queria que eu acreditasse, existe algo mais do que raiva, ciúme e arrependimento dilacerando o Jeb que eu conheço. Talvez a magia intraterrena seja demais para qualquer mortal controlar sem ir à loucura.

Sento-me na cama da torre. Preocupada com a excursão de Jeb e papai e desorientada pela escuridão perpétua, deixo as cortinas em dossel abertas e deito-me de lado para observar o céu estrelado através da vigia. Inalo o ar salgado e planejo minha fuga: depois de algum tempo que Jeb e papai tiverem saído, vou procurar Morfeu nas salas de baixo. Ele deve conhecer alguma outra saída da montanha. Vamos usar o diário para nos conduzir até a Vermelha. Embora eu não saiba ao certo como encontraremos o caminho de volta depois disso.

As pálpebras começam a pesar e eu adormeço...

Em algum lugar de meus sonhos, vislumbro lampejos de mamãe. Seu cabelo está comprido agora, muito abaixo dos ombros, e brilha em um tom suave de rosa. Ela parece saudável, radiante de magia. Está com Grenadine no castelo Vermelho, substituindo as fitas sussurrantes da minha rainha substituta na ausência de Bill, o Lagarto. Todos os dias, mamãe gentilmente recorda Grenadine das coisas de que ela precisa se lembrar. Por causa disso, ela é respeitada e reverenciada pelos súditos da corte.

Mas há algo sombrio se infiltrando que não respeita ninguém... um temor obscuro que rasteja pelos muros do castelo e penetra em suas frestas.

Antes que esse mal possa tomar o palácio, chegam a Marfim e seus cavaleiros. A Marfim sopra uma névoa prateada que congela tudo o que toca, incluindo os guardas de cartas. Depois, ela leva mamãe e Grenadine para um lugar seguro. Um lugar de luz e esperança radiantes.

O sonho termina, deixando o local em que elas estão como um mistério. Tudo o que sei é que mamãe encontrou um refúgio.

Sem saber por quanto tempo dormi, pulo correndo da cama e atravesso a porta. No momento em que o ar me atinge, liberto minhas asas. Meio voando e meio dormindo, desço os degraus na direção da costa. Dou um salto no último segundo. Minhas botas raspam na água, e então alço voo.

Lembro-me de como mamãe voou ao meu lado no baile de formatura. Morfeu certa vez me disse que ela e eu temos uma conexão incomum. Que ele era capaz de usar os sonhos dela como veículo para os meus. Talvez ela tenha encontrado alguma forma de reverter esse poder e se comunicar comigo. Talvez por eu estar aqui em Qualquer Outro Lugar, tão próximo do País das Maravilhas, ela tenha conseguido se comunicar — porque o sonho que tive me pareceu uma premonição.

Meu corpo fica mais leve e eu voo mais alto, como se pensar nela tivesse ajudado a me elevar. As ondas vão ficando menores, cada vez mais longínquas. Sua crista parece a espuma de um cappuccino, a água escura como o café, só com o luar para iluminá-la.

Quando chego aos corredores da montanha, absorvo minhas asas e vou diretamente ao estúdio de Jeb — a única porta entreaberta. O sol está brilhando, então talvez eu não tenha dormido por tanto tempo. Olho para a mesa e os pincéis. O que ele usou em minhas roupas ainda brilha com a magia violeta.

Pego o pincel e sigo a direção que Morfeu tomou quando saiu escoltado pelas mariposas. Cinco portas se alinham no corredor sinuoso. Mexo em cada maçaneta ao passar, sem me surpreender por encontrá-las trancadas.

A primeira porta é confeccionada inteiramente de bolas de gude. A madeira da seguinte está danificada por queimaduras de cigarro. Outra é feita de casca de árvore, cheia de nós, com folhas de salgueiro penduradas. Pétalas de rosa vermelhas e aveludadas formam a próxima, ao lado da última. Eu acaricio as flores macias e inalo a delicada fragrância, pensativa.

— Morfeu! — chamo em voz alta. Sem ouvir nada, decido abrir todas e encontrá-lo pelo processo de eliminação. Não há buracos para chave. Lembro-me então de que, cada vez que Jeb abre a porta de diamante, ele simplesmente ordena que a maçaneta de rubi se abra.

— Abra — digo para a porta de bolas de gude, mas nada acontece. Ergo o pincel luminescente e roço as cerdas na maçaneta. Nada. Então, percebo que o cordão com o diário está brilhando. Não só isso, está tentando alcançar a maçaneta, esticando o cordão com força em volta do meu pescoço, como se estivesse magnetizado.

Franzindo a testa, inclino-me para que ele possa tocar na maçaneta de metal. Forma-se uma centelha e ouço um clique. Colocando o pincel de lado, abro a porta e adentro em uma réplica exata da porta de entrada da casa de Jenara e Jeb.

— Al? — Jenara cumprimenta.

Fico sem ar. Seus olhos são indiferentes e sem emoção, como os da cópia de Jeb. O cabelo cor-de-rosa está preso em um coque e ela usa uma legging de xadrez branca e preta com uma túnica metálica prateada.

— O que a traz aqui? — Ela age como se me ver fosse a coisa mais natural do mundo.

A emoção fecha minha garganta. Quero me atirar em seus braços. Mas esta não é a Jen. Ela não é nada mais do que um reflexo vazio da minha melhor amiga.

— Mãe! — Jen grita. — A Al está aqui! Faça uns biscoitos ou alguma coisa parecida para a gente. — De braços dados, ela me conduz para a sombria sala de estar.

Minha pele se arrepia. Ela parece Jenara. Age como Jenara. Contudo, pela minha experiência com algumas das criações de Jeb, ela não merece confiança.

— Olá, Alyssa. — A voz de um homem sai do canto mais escuro da sala, de trás de uma plataforma de madeira projetada com rodas e polias. — O Jeb está com você?

— Hum... — respondo, reconhecendo vagamente a voz.

Jenara acende uma luminária de chão, iluminando a engenhoca de madeira, que tem as palavras RATOEIRA DO LINGUARDARTE pintadas na frente.

— Não — murmuro, incrédula. É o mesmo aparelho que estava no fundo da toca do coelho quando eu e Jeb caímos lá na primeira vez e que abriu a porta para o jardim de flores e a loucura.

E deu início a tudo...

O pai de Jeb está de pé atrás do labirinto de madeira, brincando com uma das polias. Seu perfil parece jovem e gentil — nada parecido com o homem amargo e desgastado que ele era antes de morrer.

Sinto náuseas. Jeb o trouxe de volta à vida nessa versão mais gentil para reviver seus momentos ideais em família. É sentimental, é triste, e é perturbador.

— Bom, ele deve estar a caminho — diz o Sr. Holt, e me encara. Eu reprimo um gemido. Seus olhos são laranja, tremeluzindo feito a ponta acesa de um cigarro. Quando ele pisca, caem cinzas sobre seu rosto, deixando rastros. — Este é o jogo favorito dele. — Ele joga bolas de gude em uma das rampas. — E ele me deve uma revanche.

— Você está esperando que ele o deixe ganhar desta vez, papai. — Jenara dá risada. Ele pisca para ela, fazendo caírem brasas por seu rosto.

Eu estremeço.

— Olha, eu tenho que ir. — Afasto-me, com Jen e seu pai me seguindo.

— Mas você acabou de chegar — ela diz com voz mais ameaçadora do que amistosa.

Eu esbarro em algo macio e giro no calcanhar.

— Biscoitos? — A rechonchuda mãe de Jeb sorri para mim e oferece uma travessa cheia de guloseimas. Biscoitos de chocolate, lâminas de barbear sujas de sangue e vidro quebrado parecem ser o sabor do dia.

— Este não é o meu lugar — eu sussurro, incapaz de tirar os olhos dos petiscos mortais.

— Não é mesmo — concorda o Sr. Holt. — Porque estamos aqui para fazê-lo feliz. E você o deixou triste. Mas nós vamos consertar isso. Coma um biscoito.

Sinto um nó no estômago. Vou de lado até o centro da sala, e eles me rodeiam, com o pedido tornando-se um sibilo:

— Ssssssimmm, nósss inssssissstimosss. Ssssó um bissscoitinho...

O diário em meu pescoço lança uma luz vermelha escaldante. A pseudofamília de Jeb recua, gritando. Eles caem no chão, num emaranhado de membros. Com o coração aos pulos, saio da sala e os tranco lá dentro, dando graças a Deus que Jeb os tenha pintado em seu próprio cenário, para que não possam passar pela porta.

Apoio as costas na porta. Sua frieza vítrea entra pelas fendas de minha camiseta. As bolas de gude devem representar uma das lembranças mais felizes de Jeb, que era fazer rampas para elas com seu pai. Se essa é uma cena agradável, fico horrorizada só de pensar no que há por trás da porta com queimaduras de cigarro depois da próxima curva.

Não tenho certeza se é a determinação para encontrar Morfeu ou um desejo do meu lado obscuro de mergulhar mais fundo na mente de Jeb, mas sigo adiante.

Usando o diário para abrir a fechadura, espio lá dentro. Um ginásio com pesos, uma bicicleta ergométrica e uma esteira aguardam lá dentro sob fracas luzes fluorescentes. Não há ocupantes, então eu entro. Um saco de pancada em forma de ovo está pendurado perto de uma parede com espelhos quebrados. A parte da frente me encara com olhos pintados, rosto redondo e uma boca — uma versão assustadora da rima de Humpty Dumpty.

Ouço um sibilo saindo de trás do saco. Tremendo, eu o observo virar-se lentamente e assumir o que parece ser seu lugar, apesar das cordas torcidas que esperam ser desenroladas.

O ar me falta. É o rosto do Sr. Holt do outro lado. Não é um desenho plano, mas um rosto tridimensional de carne e osso, rosnando. Esse é o Sr. Holt que eu conheci: as feições, antes bonitas, agora aguçadas pelo ódio e pela discórdia, as bochechas cavadas pelo grande consumo de álcool e pela falta de uma alimentação adequada.

Os olhos, como os do outro Sr. Holt, são feitos de bitucas de cigarro acesas.

Ele vocifera:

— Me faça tropeçar de novo. Vamos lá, seu pirralho inútil. Me faça derrubar a cerveja. É isso que você vai receber em troca. Pare de chorar, maldito. É isso que acontece quando você deixa os brinquedos pela casa. Não! Sua mãe não tem que recolher os brinquedos pra você. Assim ela vai ter que ser punida também. E, se ela está sangrando, a culpa é sua. Toda sua.

As imagens de infância que vi com o olhar de agonia de Jeb me vêm à cabeça. Era isso que ele vivia todos os dias. Estou surpresa que tenha sobrevivido. Não é de admirar que ele sempre tenha culpado a si mesmo pelo que aconteceu com a mãe e a irmã.

A língua do Sr. Holt continua a se agitar, com palavras degradantes e cheias de ódio.

Alguma coisa irrompe de dentro de mim — a parte que deseja vingança por tudo o que ele fez para o rapaz que eu amo. Eu o ataco, atingindo seus lábios com tanta força que o som faz um eco agudo e minha mão dói.

O saco gira lentamente.

— Ah! Ah! Ah! Eu deveria ter sentido isso? Sua irmãzinha bate com mais força que você. — O Sr. Holt cospe um dente, um pouco de sangue e uma torrente de obscenidades.

Não consigo me mexer. Eu deixei uma marca nele de verdade... cortei seus lábios e quebrei um dente. Quantas vezes o Jeb esteve aqui, socando o rosto do pai? A julgar pelos danos e cortes no saco, ele deve ter perdido a conta. Se ele se sentia tão impotente quanto eu me sinto agora, não deve ter lhe feito nada bem.

Saio correndo da sala, com a alma pesada e tristonha, e tranco os insultos cruéis do Sr. Holt lá dentro.

Jeb, o que você fez consigo mesmo? Ele caiu num desespero e amargura tão grandes que é como se estivesse morto. Uma desesperança imensa se aloja em minha alma e estrangula toda a esperança.

Com as pernas pesadas, vou aos tropeços para outra curva do túnel e chego à terceira porta.

— Morfeu! — grito novamente, a voz falhando. Não quero ver mais isso. Jeb não é o garoto que eu conhecia, e não sei como trazê-lo de volta...

E, o que é pior, não tenho tempo de descobrir.

Um som de motor me atrai para a porta feita de casca de árvore e folhas de salgueiro.

Eu hesito. Se cada porta simboliza o que está por trás dela, esta deve ter algo a ver com o salgueiro que une o quintal de minha casa ao da casa de Jeb. Nós jogávamos xadrez debaixo dessa árvore quando éramos crianças. Depois, quando nos tornamos um casal, íamos lá para ficar a sós um com o outro.

Não faz sentido ele colocar Morfeu aqui, mas o som de vibração não parou.

— Morfeu? — O ruído fica mais forte. Respiro bem fundo, bato de leve com o diário na maçaneta e espio lá dentro.

Flocos de neve caem das vigas. O cheiro é de neve real, embora não se sinta o frio na pele, só o brilho. Luzes negras e neblina complementam a atmosfera onírica. Ao contrário das outras duas salas, esta não é insana nem perturbadora.

É linda.

Entro com cuidado. A metade da frente está decorada como uma cena de baile de formatura: colunas adornadas com folhagens, um arco envolto em veludo púrpura, e tule branco guarnecendo um banco de vime. Máscaras reluzentes de carnaval estão penduradas em vigas, com uma variedade de tamanhos de cordões — púrpuras, pretos e pratas.

Há uma réplica do vestido que Jenara fez para eu usar no baile em cima do banco — renda branca, pérolas e sombras feitas com aerógrafo. Eu me aproximo, intrigada com o buquê de pulso dentro de uma caixa plástica branca. Ao perceber o anel aninhado dentro de uma das rosas — pequeninos diamantes formando um coração com asas —, despenco sobre a cadeira, meu corpo subitamente fraco. Ele é exatamente igual ao que Jeb me deu quando me pediu em casamento. O que usei no pescoço e se fundiu com minha chave do País das Maravilhas e o medalhão de coração sob a pressão da magia de Morfeu.

Corro o dedo pela tampa da caixa, amarrada com uma fita dourada. Com um puxão, o laço se transforma em uma chuva de letras brilhantes que formam uma mensagem em pleno ar:

Coisas que um dia esperei dar a você:

1. Uma festa de casamento mágica...

Engasgada com as lágrimas, tiro o anel e o amarro no cordão, junto à chave do diário no meu pescoço, enfiando-o debaixo da camiseta para ficar mais seguro.

Uma cesta de piquenique está aos meus pés, debaixo do banco. Lá, outra fita, e, quando a desamarro, mais letras formam um desfile no ar:

2. Piqueniques no lago com sua mãe e seu pai...

Começo a fungar e vou até o meio da sala, onde reproduções de meus mosaicos flutuam ao lado de avisos de Vendido. Puxo uma fita e liberto outra mensagem:

3. Compartilhar toda uma vida de vitórias e risos...

Tomada pela emoção, eu me viro na direção do ruído de motor que vem da parede dos fundos. Uma motocicleta está parada no alto das vigas, em meio a cordões de luzes de Natal. Há um laço amarrado no guidão. Liberto minhas asas e ergo-me. Flocos de neve e uma brisa suave serpenteiam à minha volta enquanto eu me acomodo no assento, voltando aos tempos em que andava na garupa de Jeb, os braços envolvendo seu corpo forte. Completamente à vontade, mas tão sem equilíbrio. Tão perfeita e erroneamente humana.

Reteso o queixo ao sentir um tremor e puxo a fita do guidão:

4. Passear de moto pelas estrelas...

As palavras lindas voam à minha volta, alimentando minha necessidade de mais. Há tantas fitas e objetos para contar. Voo de um para o outro, deflagrando mais desejos: por garotinhas com meu cabelo e olhos, e meninos que têm o temperamento teimoso da mãe; pela segurança dos braços um do outro todas as noites; por envelhecermos juntos e curtirmos cada ruga, cada mancha de velhice e cada cabelo branco, para sempre.

Meu peito incha — tanto que poderia estourar. A sala é um templo dedicado a tudo o que eu esperava ter. Coisas que Jeb queria me dar. Seu coração brilha em tudo o que criou aqui; seu altruísmo, sua nobreza e devoção, o desejo de fazer os outros felizes. Seu verdadeiro caráter não foi destruído. Ele foi guardado, reprimido.

O meu Jeb está vivo.

Eu voo até o chão e reabsorvo as asas. Não quero sair. Todavia, antes que possa ajudar a recuperar Jeb, encontrar mamãe e consertar o País das Maravilhas, tenho de achar Morfeu e enfrentar a Vermelha.

— Eu voltarei — sussurro, e olho para a porta atrás de mim.

Restam duas salas a explorar.

Paro diante da porta de pétalas de rosas. Desta vez, nem hesito. Uma batidinha do diário, e eu entro.

As paredes, também cobertas de rosas vermelhas, se curvam no teto e se encontram no meio, formando uma cúpula. Pequeninos globos transparentes flutuam acima de mim, tilintando ao baterem uns nos outros. Cada um deles abriga cenas vivas — como filmes mudos em miniatura.

Um, em particular, chama minha atenção. Dentro dele, um funil cinzento cai do céu. Dele sai a Rainha Vermelha em sua forma de flor zumbi gigante, ao lado de Jeb e Morfeu. É o momento em que eles chegaram a Qualquer Outro Lugar. Os meninos ainda estão usando as roupas do baile de formatura, e Jeb está com sua máscara.

Eu seguro o globo para ver a cena se desenrolar mais de perto. A Vermelha aproxima-se de Jeb e Morfeu, lançando uma longa sombra azul. Uma boca torta que rosna se alarga no meio de sua cabeça de flor, e fileiras de olhos piscam em cada pétala. Sua hera se enrosca nos rapazes, e eles se debatem, tentando escapar. Jeb liberta um braço e enfia a mão no bolso, tirando uma faca. Morfeu distrai a Vermelha — fazendo queda de braço com a hera até que ela comande várias outras para paralisá-lo. Jeb serra suas amarras — como fez quando enfrentamos o jardim de flores monstruosas em nossa viagem ao País das Maravilhas.

Uma vez livre, ele agarra a hera cortada, usando-a para amarrar os outros membros da Vermelha e ajudar Morfeu.

A Vermelha perde o equilíbrio e vai ao chão, indefesa.

Quando a poeira abaixa, Jeb e Morfeu se entreolham. Ainda segurando uma vinha, Jeb arranca a máscara do baile, grita alguma coisa e vira-se para ir embora. Morfeu pula em suas costas. Eles lutam no chão e Morfeu termina por cima, com as asas envolvendo os dois como uma tenda. Posso ver o contorno do rosto de Jeb pressionado contra a membrana acetinada do outro lado. Ele está sendo asfixiado. A raiva ferve dentro de mim.

A cena termina. A Marfim me disse, semanas atrás, que é nas ações de Morfeu que está a verdade. No ano passado, quando ele usou aquele truque para asfixiar Jeb, queria deixá-lo inconsciente para ficar a sós comigo. Então, precisava ter um motivo para querer Jeb inconsciente desta vez. E só há uma maneira de descobrir qual era.

No momento em que me viro para ir embora, os globos restantes descem para perto, insistindo em que eu olhe dentro deles. Um tremor de desconforto me envolve a cada vez que espio. Um é uma imagem da mãe da Rainha Vermelha quando esta era jovem; também há momentos entre a Vermelha e seus pais — bebendo chá, rindo... plantando flores; e dançando com o pai enquanto a mãe aplaude a distância.

Jeb não poderia saber todas essas coisas. São coisas que somente a Vermelha saberia.

Antes que eu consiga juntar todas as peças para saber seu significado, uma imagem de Charles Dodgson toma forma dentro de um globo que flutua para longe. Eu me estico e o pego.

Ele está andando em um caminho ladeado por flores junto de um distinto cavalheiro mais velho. Quando eles penetram na sombra de algumas árvores, a aparência do homem mais velho se transforma e eu vejo, muito claramente, a Vermelha usando o disfarce do professor. Assim como Hubert disse na hospedaria.

Meu coração acelera.

Charles leva um diário cheio de equações escritas à mão e indicações de latitude e longitude. Juntos, Charles e o disfarce de professor da Vermelha atravessam alguns arbustos, parando na estátua do menino com o relógio de sol — o portal para a toca do coelho — que um dia escondeu a entrada para o País das Maravilhas antes de eu destruir tudo.

A imagem escurece. Estou prestes a soltar o globo quando ele se ilumina mais uma vez, mostrando outra cena em que um grupo de pessoas faz um piquenique. Várias crianças, uma mãe, um pai e Charles. O rosto de Alice Liddell aparece. Sua aparência é igual à da menina de sete anos na fotografia que mamãe tinha escondido na poltrona reclinável de papai. Esta deve ser a família dela... os Liddells, amigos íntimos de Charles.

O rosto de Alice está radiante de animação enquanto ela corre sozinha por entre vários espectadores. Bolinhos, xícaras de chá sobre toalhinhas de crochê e sombrinhas são abundantes. Ela dá voltas em uma moita familiar. Com os olhos cheios de encanto, ela para ao lado da estátua com o relógio de sol. Ela foi afastada para o lado, deixando à mostra o buraco abaixo.

Duas orelhas brancas e peludas surgem lá de dentro, e aparece uma cara de coelho completa, com o nariz agitado e adoráveis bigodes. Alice fica boquiaberta e o coelho faz um sinal com a pata rosada e almofadada para que ela o siga. O que ela não vê é o outro lado do disfarce de coelho: a mão ossuda do Rábido Branco, o rosto do homem velho de antenas brancas.

O coelho branco desaparece dentro do buraco. Olhando em volta, Alice hesita. Mas a luz curiosa em seus olhos brilha mais do que o medo, e ela mergulha. A Rainha Vermelha sai rastejando de trás de uma touceira de rosas e empurra a estátua do relógio de volta para cima do buraco, tapando-o. Ela vai embora antes que Charles e o pai de Alice apareçam, procurando a criança que sumiu.

Nenhum deles sabe que há um buraco debaixo da estátua, a julgar pelo espanto no rosto deles. Charles havia encontrado o portal, mas nunca descobriu como abri-lo.

Conheço o resto da história de cor: Alice ficou desaparecida por dias. Depois que ela retornou, Charles, também conhecido como Lewis Carroll, colocou a história dela no papel. Mas não foi Alice quem retornou. Foi a Vermelha.

O globo escurece novamente, e eu o solto.

Fico parada no lugar, entorpecida.

Todo esse tempo eu pensava que Alice havia descoberto o País das Maravilhas por acidente. Entretanto, a Vermelha fabricou a possibilidade do reino intraterreno na mente de Charles Dodgson fazendo-se passar por seu colega. Quando Charles descobriu a estátua com o relógio de sol e nada mais, pensou que seus cálculos estivessem errados. Então a história floresceu como ficção dentro da imaginação de seu contador. Ele encheu a cabeça de Alice e a de seus irmãos com ideias fantasiosas e tentações de contos de fadas, cometeu o erro de mencionar a estátua e até levou a família para vê-la durante um piquenique, sem nunca perceber a repercussão disso.

A Vermelha queria que Alice entrasse na toca do coelho. Ela preparou tudo.

Um calor desconfortável lateja no meu crânio — minha intuição intraterrena acordando... cutucando. Seja porque o espírito da Vermelha um dia compartilhou meu corpo, seja porque suas memórias ainda estão em algum canto obscuro de minha mente, eu sei que esta epifania é fato, não especulação.

Hubert disse que a Vermelha queria melhorar a linhagem intraterrena. Que ela achava que os humanos eram melhores, de alguma maneira.

O que torna as crianças humanas melhores? Por que a Irmã Dois as rouba e as amarra no jardim das almas?

Sonhos e imaginação...

O diário se mexe em meu pescoço, uma prova ainda maior. As memórias esquecidas nestas páginas moldaram as motivações da Vermelha muito antes de ela escolher esquecê-las. Mas o problema é que ela escolheu esquecer. Esqueceu porque queria levar sonhos para o País das Maravilhas.

“Um dia, vou trazer sonhos para nossa espécie, pai. Eles serão abundantes em todo lugar, não só no cemitério. Um dia, vou libertar os espíritos para que possam dormir em nossos jardins, roçando nossas janelas à noite e tropeçando em nossos pés de dia. Vou trazer imaginação ao nosso mundo para que todos possam sempre estar com aqueles que amam.”

As únicas coisas que a Vermelha continuou lembrando depois de matar suas memórias eram que ela queria levar sonhos para o reino intraterreno e queria poder e vingança. De alguma forma, essas coisas se fundiram em sua mente. Depois que o marido a traiu, ela não tinha nada a perder fazendo o papel de rainha negligente, banindo a si mesma do reino para que ninguém percebesse quando ela sumisse no reino humano.

Ela aprisionou uma criança humana no País das Maravilhas e usou uma cópia dela como camuflagem para poder procriar com um mortal e levar de volta herdeiros mestiços. Esses descendentes deveriam introduzir sonhos e imaginação no mundo intraterreno. Mas como melhorar as coisas no País das Maravilhas poderia satisfazer sua necessidade de vingança e poder?

Sinto a cabeça confusa e enorme. Ainda há algo que não percebi. Uma parte crucial do plano dela.

Olho em volta buscando mais cenas. No centro do teto abobadado, os globos estão sendo confeccionados por uma hera verde e folhosa, igual à que Jeb tinha na mão quando Morfeu o atacou depois que eles escaparam da Vermelha. A hera está suspensa no ar sem ninguém que a controle, dando vida a cada cena com um cintilar de magia carmim que goteja de sua extremidade.

Magia carmim. Essa era a cor da magia da Vermelha em suas memórias. A de Morfeu é azul. A de Jeb é púrpura.

Encosto-me na parede, com falta de ar por causa do opressivo aroma de rosas.

Como é que não percebi? Quando Jeb caiu neste mundo enrolado nessa hera, ele absorveu parte da magia da Vermelha, junto a uma parte da magia de Morfeu — que também estava preso. E eu aposto minha vida que Morfeu já sabe. Isso explica por que as imagens nesta sala pertencem à Vermelha e por que as pichações me atacaram. Explica por que Jeb parece outra pessoa... e por que as memórias esquecidas da Vermelha o queimaram por meio do diário.

As palavras do besouro de tapete ecoam em minha mente: Memórias repudiadas... querem vingança contra quem as criou e as repudiou.

As memórias nas páginas do diário sentiram os fragmentos da Vermelha dentro de Jeb e de suas criações e queriam vingança. O intuito não era me proteger.

Quase tropeçando nas próprias botas, recuo e saio pela porta. Ela bate atrás de mim.

A Vermelha é uma parte de Jeb. Então, como posso destruir o espírito da Vermelha e acabar com ela sem matá-lo também?

 

 

13


Armadura

A porta final não contém enfeites ou design. É claro que Jeb criaria uma entrada simples para o quarto de Morfeu.

Corro para dentro e escondo o colar com o diário por baixo da camiseta, junto à chave e ao anel, certa de que as mariposas de Jeb estarão de guarda. Em vez disso, sou invadida por um forte aroma de tabaco de narguilé, com toques de carvão e ameixa, espalhado por uma suave brisa. A distância, avisto um cogumelo ultravioleta do tamanho de um pneu de caminhão. A nuvem de fumaça se assenta sobre ele como neblina sobre uma cidade.

Árvores dispostas em círculo entrelaçam-se, formando uma cúpula. Um céu lilás aparece por cima das copas, lançando sombras que se movem. Pequeninas luzes penduram-se dos galhos.

O lar de Morfeu está exatamente como era quando Jeb e eu visitamos o País das Maravilhas e quando eu o visitei nos sonhos da infância, aprendendo a ser rainha.

Salpicado de musgo verde-limão e líquens amarelo-vivos, o chão se afunda por baixo da sola de plástico dos meus sapatos. Sou assolada por lembranças felizes de brincadeiras infantis com Morfeu, misturadas às emoções adultas que ele despertou ao longo do último ano.

Fadas descem pelas árvores, luminescentes e temperamentais. Agitam os punhos para mim, intolerantes à minha presença, assim como a maioria das criações de Jeb. Elas começam a se atirar contra mim como pedras de granizo, usando tanta força que me deixam marcada. Nikki aparece e me resgata, seguida por Chessie logo atrás. Eles cercam as outras e as enxotam na direção da névoa do narguilé. As fadas retiram-se soltando grunhidos que tilintam como talheres de prata sendo jogados em uma gaveta.

— Chapéu de festa! — Morfeu grita lá de dentro.

Chessie e Nikki disparam e desaparecem na direção das árvores, à procura do chapéu para Morfeu.

— Você os mandou atrás da coisa errada — protesto. — Não vamos comemorar nada.

— É uma pena. — A voz de Morfeu emana da nuvem, abafada como a fumaça que o envolve. — Você já está até vestida para isso. Seu mortal se superou. — Ele exala um anel de fumaça que flutua em minha direção. — Suponho então, já que não vamos exibir suas vestes estonteantes, que poderíamos encontrar uma cachoeira onde brincar. Eu gostaria de dar uma olhada nos presentes que mandei para você na noite passada.

Minha pele se arrepia por baixo da lingerie. Levanto o queixo, determinada a não deixá-lo perceber o efeito que provoca em mim.

— Eu vi os quartos.

— Ah! — ele responde, sem o menor traço de surpresa. — Bem, antes que você despeje as acusações de sempre, gostaria de esclarecer que eu não permitiria que você matasse a Vermelha. Pelo menos não até que a expulsemos de seu brinquedinho mortal.

Finjo uma risada.

— Certo. Você a quer morta tanto quanto a Jeb. Dois coelhos com uma só cajadada.

— Se isso fosse verdade, ele não estaria aqui agora. Quando aterrissamos, os pássaros trogloditas começaram a nos sobrevoar. Eles preferem alimento vivo, então simulei que matava Jebediah. Eu o escondi para protegê-lo, e é o que tenho feito desde então.

Aproximo-me um pouco mais, mexo com o pé em uma pedra do tamanho de uma bola de beisebol. Apanho-a e rolo-a entre minhas luvas rendadas.

— Você não está protegendo Jeb, está ocultando. Ele é a sua joia da coroa. Com a magia que ele concede a você, todos o tratam como rei. — Contenho-me, pois esse é um papel que Morfeu desempenhará de verdade se eu me comprometer eternamente com ele, algum dia.

Sua risada profunda se enrosca em um filete de fumaça.

— Você se sente vulnerável, Alyssa... pelo fato de podermos ler os pensamentos um do outro? Eu me sinto. — Seu tom de voz se ameniza com a confissão, uma faceta desprotegida raramente utilizada por ele.

É claro que me sinto vulnerável; tudo a respeito dele me faz sentir assim. Passo a pedra de uma mão para outra.

— Farinha do mesmo saco. Blá-blá-blá. Esse clichê me deixa entediada.

— Prefiro pensar em nós como mariposas da mesma chama. E tentar adivinhar qual de nós dois vai se queimar primeiro está longe de ser entediante, amor.

Uma agitação percorre meu corpo ante o desafio implícito.

— Você percebeu que Jeb havia adquirido magia. Por isso o salvou.

Outra risada engrossa a fumaça em volta do cogumelo.

— Eu vi um líquido carmim gotejando da ponta da hera e a luz púrpura sob a manga da camisa dele. De alguma forma, a cúpula de ferro causou uma reação magnética, incorporando a minha magia e a da Vermelha nele. Sim.

— Então, foi aí que vieram para a montanha? — insisto.

— Jebediah fez um desenho na lama a céu aberto. Sua criação ganhou vida. Então fizemos tintas e pincel improvisados. Com essas coisas, escavamos a montanha e domamos o oceano e seus habitantes, modificando o mundo já existente. É assim que suas paisagens funcionam: ele redesenha a água em lagos e fossos... molda a terra em montanhas, colinas ou vales. Cada vez que me arrisco a sair, ele modifica o entorno para confundir os seres daqui e apagar minha trajetória. Mas essa habilidade tem limites emocionais. Apesar de ele não ter problema nenhum em redesenhar paisagens e inventar criaturas, quando se trata de pinturas mais pessoais, ele é acometido por um bloqueio artístico. E, quanto menos satisfeito está com seus resultados, mais cai em desespero, o que confere à magia da Vermelha mais poder sobre a inspiração dele.

Meus olhos lacrimejam, tanto pela fumaça quanto pelo receio da sanidade de Jeb. O alerta que ele deu a Morfeu quando os vi juntos da primeira vez agora faz todo o sentido: Você se lembra do que aconteceu quando o rosto dela apareceu em minhas pinturas.

— Alguma coisa deu errado quando ele tentou me pintar.

— Ele não conseguia retratar você bem. Faltavam-lhe pernas e braços. Seu rosto tinha buracos. Como o autorretrato que ele fez.

Meu estômago se embrulha.

— Mas eu pensei que as outras pinturas tinham atacado CC.

— Por vezes, as pinturas atacam umas às outras. Mas aquilo foi culpa de Jebediah. Ele não consegue ver além da imagem partida que seu pai o ensinou a ver. Então, não consegue pintar a si mesmo por inteiro. E é por isso que acabou se retratando como um cavaleiro elfo, como última tentativa. O mesmo aconteceu em relação a você. A confusão e a raiva dele não deixavam que ficasse perfeita. Ele se escondeu no quarto do salgueiro tentando pintá-la direito... tentando retratá-la à altura de sua memória. O único jeito que arrumei de tirá-lo dali para que voltasse a viver novamente foi sequestrar cada uma das suas cópias. Eu as conduzi até a água e fiquei observando enquanto se desmanchavam e desapareciam. Estavam desfiguradas a tal ponto que era desumano mantê-las vivas, apesar de o criador delas não ter força suficiente para destruí-las. Então eu o fiz por ele. Eu o convenci de que a melhor maneira de se libertar era sair do quarto do salgueiro. Para evitar lembranças suas e assumir a raiva que sentia.

Apoio-me em uma árvore e pressiono a pedra fresca contra o anel pendurado por baixo da camiseta para aliviar as pontadas no peito. Não é de espantar que a raiva e a violência tenham dominado o coração de Jeb. Ele sobrevive à custa do poder extraído dos dois habitantes mais potentes, mais brilhantes e mais manipuladores do País das Maravilhas. Está em guerra consigo próprio tentando contê-lo. Assim como eu fazia. Contudo, seu esforço é ainda maior, já que ele é dois terços intraterreno e um terço humano.

Cerro os olhos.

— Ele deve ter se sentido tão solitário.

Ouve-se um grunhido vindo da nuvem:

— Francamente, Alyssa. Você me magoa. Sou uma excelente companhia.

Arregalo os olhos.

— Você mentiu para ele. Você não queria que ele soubesse que era a magia da Vermelha que o fazia sentir raiva de mim. Como você conseguiu isso? Ele teve que ver as memórias na sala de pétalas de rosa.

— A despeito da magia que ele exerce, sua porção mortal está fora de seu elemento natural aqui. Ele não tinha em quem confiar a não ser em mim. Ninguém exceto a origem de sua força. Então, quando eu disse a ele que as imagens no quarto de pétalas de rosa eram memórias minhas, do tempo que passei com a família real, ele não teve por que duvidar da minha sinceridade.

Aperto os dedos em volta da pedra.

— Sinceridade. Como se você soubesse o que é isso. Você permite que ele seja devorado pela raiva dela apenas para colocar um obstáculo entre nós dois.

Morfeu estala a língua dentro de seu véu de névoa.

— Se ele soubesse da Vermelha, teria voltado sua magia contra mim. Teria me matado com um estalar de dedos. Foi autodefesa. O fato de isso ter afastado vocês dois foi simplesmente um bônus. — Um fiapo de fumaça se desprende, formando corações, anéis, notas musicais.

Solto um grunhido.

— Sim. Qualquer coisa que traga vantagem a você. — Abano um coração de fumaça, partindo-o ao meio.

Uma asa grande e escura corta a fumaça e desaparece em seguida, envolvida pela névoa.

— Você me levou a isso. Você colocava aquele rapaz em um pedestal. E lá é muito escorregadio para alguém tão sem princípios como um solitário ser mágico. Não é que eu não tenha tentado trazê-lo para baixo. Olhei dentro da alma dele. Esperava encontrar seus pontos fracos. Mas então percebi que até eles poderiam ser considerados pontos fortes em circunstâncias apropriadas.

— Espere. O quê? — Olho em direção à nuvem, desejando que ele saia dela e me encare. — O que você quer dizer com olhar dentro da alma dele?

— Peguei o trem da memória alguns meses depois de você deixar o País das Maravilhas. Antes de você e Jebediah nos visitarem no dia da formatura. Que tal minha sinceridade?

A fúria transparece em meu rosto.

— Você espionou as memórias perdidas dele? Você não tinha o direito! — Os galhos acima de minha cabeça tremulam, como se provocados pela minha explosão. O diário se aquece por baixo da roupa, resplandecendo.

— Ah, por favor — Morfeu debocha. — Guarde a sua justa indignação para alguém que não conheça de perto seu lado manipulador. Você não fica para trás, espionando as memórias de sua mãe. De seu pai. Da Vermelha. Menos ainda usando um diário encantado pela magia amorosa de uma criança para manter as memórias repudiadas a uma distância segura... uma ideia brilhante. Se eu já não estivesse louco por você, essa artimanha já teria me puxado o tapete e me derrubado de costas no chão.

Agarro o diário por baixo da roupa.

— Como você sabia que eram as memórias esquecidas que estavam aqui?

— Da mesma maneira que você sabe que a Vermelha envenenou a inspiração do seu brinquedinho mortal. Intuição intraterrena e raciocínio superior. Provando mais uma vez que você e eu somos mais parecidos do que você gosta de admitir.

— Não somos nem um pouco parecidos. — Mentira, sei disso. E o pior é que ele também. — Minha motivação foi honrada. Roubei as memórias da Vermelha para que ela parasse de arruinar a vida de todos.

— Uma iniciativa de rainha, é verdade. Mas tudo se resume a uma única coisa: você é uma dama de ação e eu, um homem da mesma estirpe. Somos peritos em riscos e truques e não hesitaremos em usá-los para preservar aquilo que amamos. E é por isso que, não obstante meus deslizes éticos, quando comparado ao seu príncipe de cartolina, você escolherá a mim.

Sua assertividade invade minha mente, zombando de minha própria indecisão.

— É mais do que isso. É escolher qual lado meu assumir e a qual dar as costas. Eu vou consertar o País das Maravilhas. E estarei lá cada vez que o reino intraterreno precisar de mim. — Sinto-me estonteada com a ardência no coração, como se tivesse sido talhado ao meio com uma faca. A marca da Vermelha vai se acentuando a cada hora que passa. — Mas ainda não consigo escolher. — Não sem cair de joelhos de tanta dor.

— E aí, minha flor, é onde seu egoísmo completa o círculo e fica confirmado, sem sombra de dúvida, que você é uma rainha maliciosa da Corte Vermelha, sem tirar nem pôr.

— Chega! — Perdendo o controle, atiro a pedra em direção à nuvem do narguilé. Ela a atravessa sem encontrar obstáculos, caindo no chão do outro lado, próximo ao cogumelo. A risada zombeteira de Morfeu me incita a atirar mais uma, mas dois buracos na nuvem não me satisfazem. Quero lançar cada pedra que encontrar como se fosse um míssil até que Morfeu fique igual a um pedaço de queijo suíço.

Minha magia demonstrou ser inútil contra as criações de Jeb, mas as memórias da Vermelha podem afetá-las. Talvez eu possa persuadir o poder das páginas do diário, atiçá-lo contra minha magia. Como o Gravitron, usar as duas forças, uma contra a outra, para obter uma reação violenta.

Quanto mais me concentro, mais esquenta o livro em minha pele. O brilho avermelhado emana pelo centro do peito e pelas veias. Incorporo-o até que meu sangue ferva e transborde, e então redireciono a força para levantar as pedras do chão. Acima, os galhos das árvores estalam e caem, atingindo minha munição improvisada, fazendo grande ruído e lançando-a em direção à névoa, abrindo rasgos. A nuvem começa a se dissipar.

— Finalmente — Morfeu fala em um tom de voz exausto. — Será preciso sempre provocá-la para que você perceba que não tem limitações além daquelas que você mesma se impõe?

Ainda não posso vê-lo, mas as fadas estão lá, pairando no ar e dando risadinhas. Mostram a língua e saem em disparada, rodopiando na mesma direção que Chessie e Nikki tomaram.

Os vestígios de fumaça se dissolvem como fiapos de algodão no céu, expondo o cogumelo completamente. Equilibrada e aberta em cima dele pousa uma grande mariposa, balançando vagarosamente as asas negras. A tromba aspira o tubo do narguilé e solta no ar mais anéis em forma de estrelas e corações.

— Espere — digo, a raiva dando lugar à confusão. — Você não pode estar com forma de mariposa. Você não pode usar sua magia. É tudo ilusão.

— Isso mesmo, minha Rainha. — A voz dele faz cócegas na ponta da minha orelha direita, apesar de vê-lo no cogumelo. — Assim como você, usando as memórias repudiadas da Vermelha para dar a ilusão de poder contra as pinturas de nosso pseudoelfo. Bom trabalho, aliás.

Viro-me, mas não vejo ninguém à minha volta.

— Isto não é real.

— É tão real quanto desejar que seja. — Seu sussurro roça a orelha esquerda agora, provocando um calor irresistível em meu pescoço.

Olho em volta, mas ele não está em lugar nenhum.

A mariposa abana as asas, devagar e lânguida em seu poleiro. Ao mesmo tempo, sinto o toque de lábios macios descendo pela minha nuca. À minha revelia, sinto desabrochar o prazer quando ele me toca.

— Como você está em dois lugares ao mesmo tempo?

— Ilusão de óptica — responde sua voz atrás de mim. Ele me puxa para mais perto com mãos invisíveis em minha cintura.

Mãos invisíveis...

— O simulacro. — Percorro seus braços invisíveis com os dedos. — Por isso é que os trajes não estavam na sacola de viagem. Você os roubou.

— E você tornou isso possível roubando-os primeiro. Sua garota esperta e malvada.

Por mais que eu resista, meu lado intraterreno satisfaz-se com o elogio. Minha pele brilha como a luz das estrelas, refletida em pequenos prismas no chão e nas árvores.

Morfeu me incita a encará-lo e retira o capuz do simulacro. Seu cabelo se agita com a brisa, as joias nos olhos reluzem num púrpura ardente e o sorriso com que me cumprimenta é ao mesmo tempo selvagem e brincalhão. O resto de seu corpo torna-se visível à medida que a realidade se infiltra pela miragem do disfarce — jaqueta prateada por cima de uma camiseta, calças pretas, gravata azul e magníficas asas recolhidas nas costas.

Coloco a mão em seu tórax para ter certeza de que ele não é uma alucinação.

— Você pegou os disfarces para podermos passar pelos guardas de pichação depois que Jeb saísse.

Ele dá um passo para trás, retira o tecido encantado, faz uma reverência e um floreio.

— Foi um bom plano — admito, enquanto ele ajeita as roupas e recompõe as asas. — Mas não temos meios de fazê-lo voar ou de encontrar o caminho de volta.

Ele sorri novamente.

— É claro que temos, sua tola. Você não sabe que eu sempre penso em tudo? — Ele coloca as mãos em meus ombros e vira-me, apontando a mariposa gigante que descansa no cogumelo. — Olhe com seus olhos intraterrenos.

Ajusto o foco e percebo que não é uma única mariposa. São centenas ou mais, reunidas, compondo uma grande. São as mariposas que acompanharam Morfeu até aqui sob as instruções de Jeb. E o cogumelo também não é comum. Seu interior é oco, com uma pequena porta na lateral e um arreio ligado à mariposa.

— Essa seria sua montaria? — pergunto, sussurrando.

— Nossa montaria. — Morfeu bate palmas. As asas gigantes provocam rajadas de vento à nossa volta conforme a mariposa suspende o cogumelo do chão. Elevam-se juntos, como um balão de ar quente e seu cesto, graciosos e majestosos. Os galhos das árvores se afastam, abrindo passagem para que o aparato suba cada vez mais alto no céu.

Fico pasma assistindo à subida.

— E temos serviço de chá planejado para a viagem — Morfeu diz. — As fadas foram buscar alguns víveres.

— Mas... como? O cogumelo não pode existir fora deste cenário criado por Jeb. Não é?

Morfeu retira as elegantes luvas azuis das mãos.

— Pode, agora que o reprogramei.

— O quê?

— As criações de Jebediah são metade magia e metade visão artística. Portanto, embora eu não possa modificar suas formas, elas podem ser convencidas, desde que imaginemos seu novo propósito. É verdade que funciona melhor com as pinturas que não obedecem a um comando específico dele. A única função dos cogumelos aqui é serem belos. E a instrução que ele deu às mariposas para me manterem ocupado é sujeita a várias interpretações. Elas aceitam qualquer cenário que eu imagine, contanto que eu esteja ocupado.

Balanço a cabeça. O mestre das manipulações acertou mais uma vez.

O transporte de mariposa balança acima das correntes de ar, levando minha curiosidade às alturas.

— Mas você é um intraterreno puro. Você não sabe usar a imaginação.

— Muito pelo contrário. Sei, sim. Graças a você. Segui seu exemplo na infância. Eu o absorvi mesmo sem perceber. Então, quando eu estava preso aqui, desprovido de magia, precisei encontrar o que fazer durante muitas semanas e horas. Talvez esse tenha sido o lado bom de todo esse fiasco. A falta de magia é o que leva os humanos a fantasiar, em primeiro lugar. E, Alyssa, que força maravilhosa e cheia de poder a imaginação pode ser.

A expressão dele é de assombro, exatamente do jeito que ficava em nossas escapadas na infância. É inconcebível que eu tenha sido sua professora também. Uma vez ele me disse isso, mas eu nunca tinha entendido o que queria dizer até agora.

As palavras da Marfim sobre o País das Maravilhas, semanas atrás, vêm à tona e pairam no ar como o aparato de Morfeu: Por muito tempo, a inocência e a imaginação não tiveram lugar aqui... Morfeu vivenciou essas coisas com você... por intermédio de seu filho... nossas proles se tornarão crianças novamente; aprenderão mais uma vez a sonhar. E tudo ficará bem em nosso mundo.

Morfeu sempre dominou a manipulação de sonhos; nesse quesito, ele é diferente de qualquer outro intraterreno. Agora que aprendeu a utilizar a imaginação também, isso faz dele o único intraterreno completo capaz de gerar uma criança que sonha.

O diário se aquece em meu peito. Uma criança assim seria perfeita para os planos da Vermelha. Sinto um desconforto pinicar a garganta quando me dou conta: ela teve muitos peões alinhados em seu tabuleiro de xadrez. Seu marido, sua irmã. O Rábido Branco, Carroll, Alice, mamãe e eu. E Morfeu. Acima de tudo, Morfeu.

— Você a quer para si? — As palavras de Rainha Vermelha ressurgem em minha memória daquele agonizante momento há mais de um ano, quando a Vermelha habitava meu corpo e tentou fazer com que Morfeu a ajudasse a dominar minha vontade.

— Muito — ele disse.

— Então faça como eu mando. Ela será sua fisicamente, e depois o coração e a alma virão a seu tempo. Com romance, você pode conquistar suas graças. Terá a eternidade para ganhá-la.

Até nesse momento a Vermelha estava usando Morfeu. Ela tinha todas as cartas na mão. Àquela altura, ele não sabia da criança. Não até ver a visão da Marfim alguns meses atrás. A Marfim foi específica quanto a isso e, entre todos os intraterrenos, é ela a mais honesta.

Mas como uma criança que Morfeu e eu compartilhássemos poderia dar à Vermelha mais poder?

— Alyssa?

Devo ter ficado de boca aberta novamente, pois ele segura meu queixo, fechando-a.

— Por onde sua cabeça vagueava agora? — ele pergunta.

Preciso dizer a ele que tive uma visão de nosso filho. Preciso saber como ele acha que isso pode estar ligado à vingança da Vermelha. Mas tenho de analisar as palavras que usei em meu voto para a Marfim. Deve haver um jeito... algum jeito de contar a Morfeu sem contar a ele...

As fadas tilintantes retornam e deixam cair um pano de seda sobre minha cabeça. Morfeu o tira de cima de mim. Parece ser um saco próprio para roupas. Ele faz cara feia para as fadas. Elas aplaudem e rodopiam no ar, como se tivessem descoberto um tesouro escondido.

— Fadinhas malandras — Morfeu adverte. — Não foi isto que pedi que vocês buscassem. Pedi uma cesta de piquenique, não?

Elas voam à minha volta, apontando em minha direção com as bochechas inchadas e vermelhas e fazendo gestos de birra no ar.

— Bom, suponho que agora seja a hora de dá-lo a ela — ele admite. — Mas sou eu quem deve abri-lo.

As fadas unem-se em uma onda e apontam para mim.

— Está bem — Morfeu suspira e me passa a sacola.

— O que é isto? — pergunto.

— Apenas tenha cuidado — ele adverte.

Solto o cordão e milhares de asas de borboletas-monarcas cintilantes saem em massa pela abertura. É uma revoada de moscas-escorpião!

Um grito se desprende de minha garganta.

Morfeu pega a bolsa de volta enquanto os risinhos das fadas ecoam em meus ouvidos — um tilintar de sinos debochando de mim.

— Eu avisei para você ter cuidado — ele repreende, retirando a bolsa. As asas não estão presas a insetos; são parte de um vestido em que cada asa foi meticulosamente costurada em camadas. Pernas de centopeia cravejadas de joias foram bordadas ao longo das bordas afiadas para deixá-las seguras ao toque. A franja acrescenta um brilho verde deslumbrante ao conjunto laranja e preto. O corpo é sem mangas e justo, enquanto a saia se abre até a barra, na altura dos joelhos.

As camadas agitam-se com a brisa, produzindo um ruído metálico como se fossem centenas de minúsculas correntes.

Mal acredito em meus olhos.

— Você fez isso? Para mim?

Morfeu passa a mão pelos cabelos, deixando vários fios azuis apontando para cima, como os galhos de árvore à nossa volta.

— Eu sabia que você viria para dar um fim à Vermelha. Espero que você vista isso quando for enfrentá-la. É a única armadura digna de sua perigosa beleza.

— Armadura? — Não consigo tirar os olhos de seu cabelo desalinhado. — Isso é incrível. Quantas vezes teve que arriscar a vida para fazê-la?

— Ora, vamos, Alyssa. Você sabe que eu sei lidar com agulha e linha. Costurar não mata ninguém.

Dou risada, lembrando-me de nossa infância, quando enfiávamos mariposas mortas em uma linha com agulha, prendendo os mórbidos fios aos chapéus dele para decorá-los. Um hábito excêntrico que ele pratica até os dias de hoje.

— Sério. Você poderia ter virado uma estátua de pedra. Ou acabar fatiado. De quantas asas precisou?

Ele encolhe os ombros.

— Perdi a conta depois de mil setecentas e vinte e duas. — Um sorrisinho de lado levanta seus lábios.

Sorrio. Ainda há algo dentro da bolsa. Retiro um par de botas carmim que vão até os joelhos, feitas de um material parecido com couro, além de luvas que chegam até os ombros e uma legging combinando.

— São pintadas?

— Ah, são de verdade. Feitas inteiramente de pele de morcego. As criaturas ficam enormes quando crescem. Pedi a meu grifo que capturasse um para mim. — Ele guarda tudo e então fecha a sacola e a entrega às fadas.

Passo as mãos pela minha minissaia e as fadas desaparecem pelas árvores mais uma vez.

— Você sempre me surpreende.

Ele me pega pela cintura.

— Então terei que repensar minha estratégia. Minha intenção era arrebatá-la.

E, antes que eu possa reagir, ele me suspende até minhas botas tocarem suas canelas. Ele nos rodopia, envolvendo-me em suas asas até que fico tonta e começo a rir.

— Gostaria de erguê-la acima de mim e rodopiá-la em círculos até estarmos ambos tontos e gargalhando — ele murmura perto de meu pescoço e caímos ao chão, presos por baixo de suas asas.

Meu corpo dói com a queda — mas é uma dor deliciosa. Mal posso respirar com o peso das costelas dele em cima das minhas, com o aroma de tabaco me asfixiando e me intoxicando. A curva de seu sorriso roça em meu colo e eu arquejo com seu toque aveludado. Levanto seu rosto para olhá-lo... quebrar o encanto.

Ele retira a faixa com enfeites do meu cabelo, afastando os fios do meu rosto. A maciez das luvas roça as marcas em meus olhos.

— Gostaria de beijar seus lábios e sentir seu hálito — ele fala suavemente enquanto se aproxima.

Percebo que está realizando os desejos listados no bilhete que enviou com a lingerie.

Recordo-me do último beijo que demos — o gosto de sua língua, o jeito como elevou meu espírito, mas fez o de Jeb despencar ao chão.

Jeb — que está lá fora com papai, tentando preparar tudo para que possamos pegar a mamãe. Mesmo com a raiva da Vermelha atuando dentro dele, ainda é capaz de arriscar a vida para me ajudar.

Seguro os ombros de Morfeu, afastando-o.

— Eu... não estou pronta.

Ele ergue minhas mãos acima da cabeça, segurando-as por cima da grama pontiaguda e fosforescente, prendendo-me ao solo. Seu toque é sutil, deixando-me livre para eu sair, se quiser.

— Você veio aqui para destruir a Vermelha — ele fala. — Isso quer dizer que você está pronta... pronta para reivindicar seu trono porque assumiu seu amor pelo País das Maravilhas. E, antes que você esqueça, eu sou o País das Maravilhas. Assim como você. — Mesmo eclipsada sob as asas, o brilho em meu rosto ilumina o dele. Ele me desarma com esses olhos negros emoldurados pelos cílios longos, deixando-me sem chão com sua loucura e beleza.

Ele continua:

— Jebediah desistiu de você, mas eu nunca farei isso. Posso lhe oferecer a segurança que deseja. Se você for somente minha, seu coração estará sempre sob minha proteção e meu cuidado. Sim, teremos discussões sem fim e lutaremos por poder. E, sim, teremos arroubos de paixão, mas também suavidade e calmaria. É assim que somos quando estamos juntos. Você nunca precisará duvidar da reciprocidade de seu amor. Pois, embora você tenha me feito sentir coisas que não são da minha natureza... não consigo parar de senti-las. — Seu queixo treme. — Você abriu a caixa de Pandora dentro de mim. Libertou a imaginação e as emoções de um homem mortal. E não há como voltar atrás. — As joias em torno de seus olhos brilham em tons alternados de púrpura e azul. — Por mais que eu rejeite qualquer característica humana, Alyssa, não ousaria me fechar para isso. Pois significaria perder você.

A confissão é encantadora e brutal — arrematada por uma honestidade que não apenas ouço no tom rascante de sua voz, mas também sinto em seus músculos trêmulos ao segurar minhas mãos acima da cabeça.

— Você pensa que sou egocêntrico e incapaz de ser sincero — ele continua, entrelaçando nossos dedos de modo que as cicatrizes por baixo de minha luva de renda ficam junto às suas mãos enluvadas. — É verdade. O seu cavaleiro mortal estava disposto a morrer por você sem hesitar, altruísta ao extremo. Eu tinha a espada vorpal quando deixei o bandersnatch me levar em seu lugar; eu sabia que poderia escapar. Talvez isso tenha feito o sacrifício de Jebediah parecer mais grandioso. Mas eu também fiz sacrifícios. Mantive-me distante por tantos anos após nossa infância, depois que sua mãe foi para o sanatório, para que você pudesse viver a sua vida.

— Porque você fez para ela um voto pela magia de sua vida; você não teve escolha... — Quase conto a ele que sei muito bem quanto esses votos podem nos prender.

— Sim. Mas deixei você partir de novo, no ano passado, após ser coroada. E todas as noites em que eu a trouxe de volta ao País das Maravilhas em seus sonhos, embora me fosse doloroso ver que você abandonava nossas paisagens de sonho e retornava ao reino mortal, permiti que você partisse pela manhã para viver sua realidade lá. Pode não parecer muito, comparado aos galanteios do seu mortal. Mas, para mim, sujeito interesseiro e arrogante que sou, é a forma mais sincera de sacrifício. Deixar você partir. Você não vê isso?

Sinto-me tomada pela empatia. Esforço-me para encontrar uma palavra de gratidão ou de desculpa, mas nada me parece suficiente. Tudo o que consigo fazer é um gesto com a cabeça, concordando.

Como se esperasse por esse gesto, ele solta minhas mãos, segura meu rosto e sussurra em meu ouvido.

— Minha preciosa Alyssa, compartilhe a realidade comigo. Dê-me a eternidade. Juntos causaremos os mais belos estragos.

A tentação ilumina meu sangue, com gosto de poder eterno e loucura. Seus lábios macios deslizam em meu rosto. Fico extasiada quando ele me toca, drogada por suas promessas, cada vez mais envolvida por ele. Antes que ele chegue à minha boca, seguro suas mãos e o viro, deixando-o de costas no chão, sem as asas a nos esconder, agora voltadas para baixo.

Coloco meu tronco sobre o dele, assumindo o controle.

— Não consigo raciocinar — sussurro. — Você está me deixando louca.

— A insanidade é a mais pura clareza. — Ele passa a perna sobre meu quadril e me ajeita em cima dele. — Deixe a loucura entrar. Deixe-a ser sua guia. — Um dos cantos de sua boca se eleva em um sorriso malicioso.

Apoio-me nos cotovelos. Não o via relaxado assim desde que brincávamos juntos: pedaços de grama no meio dos cabelos, roupas desalinhadas e amassadas. Até a camiseta está para fora da calça. Ele se espreguiça languidamente sob meu corpo e a cicatriz prateada em sua barriga cintila, a marca reveladora causada pela Irmã Dois quando ele a enfrentou dentro da Fios de Borboleta, semanas atrás. Ele quase morreu para ajudar Jeb e a mim a escapar. Mas não permiti que morresse porque não poderia conceber o mundo sem ele.

Da mesma maneira que também não imagino o futuro sem ele. Não mais.

Seguindo um instinto obscuro e um desejo mais obscuro ainda, toco a cicatriz. Sua pele reage ao toque e ele se sobressalta.

Retiro a mão.

Ele agarra meu braço e me puxa de volta, os narizes se tocando.

— É bonita — ele diz, seu hálito perfumado e frutado. — A marca deixada por seu amor quando você salvou minha vida. Combina com as marcas na palma das suas mãos, da primeira vez que você me salvou. Uma após a outra, suas ações denunciam seus verdadeiros sentimentos. Mas quero ouvir as palavras. — Os lábios dele acariciam meu rosto e param ao meu ouvido. — Diga-as.

Sua voz baixa e rouca eletrifica minha pele. A rainha do País das Maravilhas ganha vida. Ela dá vazão ao sentimento escondido nos cantos mais obscuros do meu coração, até que eu não tenha mais como negá-los.

Procuro seus olhos, extasiada pela profunda emoção neles.

— Eu gosto de você... — É uma resposta superficial e inapropriada. A verdade mais profunda se congela em minha boca: Meu lado intraterreno ama você loucamente.

Essas palavras são assustadoras, vulneráveis e extraordinariamente únicas para serem proferidas; podem se desmanchar como flocos de neve quando expostas ao calor da realidade antes da hora.

Morfeu, porém, está farto de esperar. Ele me puxa para mais perto, aperta meus lábios com os seus e me beija quente e primorosamente.

Acontece rápido demais. Mal vi quando se aproximava.

Ah, mas a minha parte intraterrena viu e colocou minhas defesas de lado.

Ela guia minhas mãos, corre meus dedos entre os cabelos dele, brinca com a língua dele. Ela não deixa que eu me afaste, pois quer voltar para lá, para o País das Maravilhas, aonde seus beijos com gosto de tabaco sempre nos levam...

Porque as coisas que eu abomino nele são as coisas que ela adora: o sarcasmo, a condescendência irritante. Seu domínio ameaçador das meias verdades e dos enigmas. O modo como ele me empurra para o perigo, me força a olhar para além dos meus medos e a alcançar meu potencial completo.

Acima de tudo, porque me encoraja a acreditar na loucura... nela... meu lado mais obscuro: a rainha que nasceu para reinar no reino Vermelho e dar ao País das Maravilhas um legado de sonhos e imaginação.

Suas mãos enluvadas tateiam buscando a curva de minha cintura e a inclinação dos quadris. Ele me coloca por cima de seu corpo, tão perto que entre nós não há espaço para nem sequer uma folha de grama. Seus beijos ficam mais insistentes e desesperados. Seu sabor penetra em mim, frutas, fumaça, terra e outras coisas provenientes das sombras e tempestades... coisas que nem sei nomear.

Sou levada a um lugar distante onde chamas incendeiam minha pele, ofuscando-me com tons de laranja, amarelo e branco. O calor faz arder minhas narinas.

Estou no sol. Não o sol terrestre, mas o do País das Maravilhas. Morfeu está comigo, usando uma coroa de rubi. Juntos, dançamos descalços no interior flamejante, sem que o inferno ao redor nos afete, atentos apenas à nossa dança. Brasas cintilantes douram nossas asas. Meu vestido vermelho, feito de rosas e renda, atrai uma faísca e queima-se por inteiro. O mesmo acontece com seu belo terno carmim, dispersando-se como cinzas. Nosso espírito reflete nossa carne, todos os segredos e desejos despidos. Estamos livres, face a face, em igualdade... sem lugar algum para nos esconder a não ser dentro um do outro. Ele abre os braços e me entrego a ele sem reservas.

A imagem enfraquece. Estou por cima de Morfeu novamente, vestidos e sobre a grama. Deve ter sido uma visão, como aquela que a Marfim teve de um banquete com uma criança, um lampejo do futuro transmitido a mim pela magia da minha coroa.

As profundezas fluem através de mim, no entanto não posso esquecer minha humanidade e meu amor pelo homem mortal que pintou um quarto repleto de lindos sonhos, um homem que se perdeu e precisa de mim, mais do que nunca.

A pressão que sinto no coração explode pelo peito e rouba meu fôlego. Desvencilho-me e procuro respirar, tentando ficar de pé.

— Jeb — murmuro.

Morfeu resmunga e põe-se de pé, colocando a camisa para dentro da calça. Retira a grama das pernas e ajeita a gravata ao pescoço.

— Essa foi uma declaração de amor extremamente decepcionante. Talvez fosse melhor se você escrevesse um soneto, de preferência omitindo as letras J, E e B.

— Eu sinto muito. — Massageio o centro do peito para aliviar a sensação de ardência. — Tenho que fazer a coisa certa, por todos. Eu só não sei o que é. Tudo o que sei é que todos precisam de algo diferente. Você, Jeb, meus pais, o País das Maravilhas. Quero me partir em duas... ser duas ao mesmo tempo.

Morfeu franze a testa.

— Nunca diga isso, Alyssa. É perigoso desejar tais coisas.

— Por quê? Não posso mudar o fato de que meu coração tem dois lados. Por mais que eu queira.

— Você nunca deveria pensar isso. O único jeito de você encontrar a paz é se seus dois lados aprenderem a conviver. Você não seria a garota com quem compartilhei a infância sem esses dois lados.

Sua admissão tocante faz-me considerar algo em que até então não tinha pensado.

— A garota que você ajudou a formar como rainha. — Olho para o teto de céu, enredando-me em minha própria indecisão. — Você sempre me disse que eu era a melhor de dois mundos. Ensinou-me a assumir minha magia e minha imaginação. Agora, tenho duas vozes em meu interior para seguir. Cada uma é atraída por uma vida diferente, em um mundo diferente. Estou machucando a todos porque estou confusa. E odeio isso. — Volto-me para ele. — Talvez seja isso que me faz querer odiar você.

Ele examina meu rosto, silencioso e estoico. Imagino que finalmente está se arrependendo de ter me ensinado tudo, de tudo em que me envolveu.

Roço os dedos nas joias que brilham em tons melancólicos em seu rosto.

— Mas ódio é o que há de mais distante do que sinto por você. O mais distante de tudo.

Ele pega em minha mão e pressiona a palma coberta de renda contra seu peito, passando o polegar sobre meus dedos.

Rejeito o momento de ternura para permitir que as engrenagens de minha mente estejam livres para funcionar.

— Você disse que vamos expulsar a Rainha Vermelha de Jeb para que eu possa destruí-la para sempre. Como podemos fazer isso sem feri-lo?

Morfeu abaixa-se para pegar minha tiara, colocando-a de volta em meu cabelo e alisando os fios.

— Isso, amor, exigirá o maior sacrifício de todos. — Seus dedos percorrem o cordão em meu pescoço. — E só você poderá fazê-lo.

Ele não tem tempo de explicar, pois a porta se abre de repente, revelando Jeb. Embora ele tenha insistido que terminamos, minha consciência tem um déjà vu, como se eu tivesse sido pega traindo-o novamente.

Minha preocupação desaparece à medida que percebo sua aparência: sangue gotejando, cabelos em desalinho, rosto pálido e expressão ansiosa. Faltam penas em seu traje — um pássaro que quase não sobreviveu a um ciclone. E, o pior de tudo, papai não está com ele.

— Jeb, onde...?

Seu olhar nos penetra com uma luz sobrenatural.

— Vocês dois. Venham comigo. Depressa.

 


CONTINUA